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Producao de Subjetividade e Msaude
Producao de Subjetividade e Msaude
ARTIGO ARTICLE
de subjetividade: contribuição para o debate
sobre a trans-formação do sujeito na saúde
Abstract This article intends to raise a few Resumo Este artigo se propõe a levantar al-
points to be debated, about the transformation gumas questões para o debate em torno da te-
of the subject in the health area. It offers a con- mática da transformação do sujeito no campo
ceptual frame that seems to be especially useful da saúde, oferecendo um quadro conceitual
to explore the relationships between some “ob- particularmente útil para explorar as relações
jective conditions” that we produce as social entre algumas “condições objetivas” que pro-
workers – and will be treated in terms of a duzimos como trabalhadores sociais, tratadas
techno-semiotic environment –, and the col- em termos de um meio tecnosemiológico, e os
lective processes of subjectivity production. processos coletivos de produção da subjetivi-
Key words Subjectivity, Technologies, Semi- dade.
otics, Communication, Health Palavras-chave Subjetividade, Tecnologias,
Semiótica, Comunicação, Saúde
1 Departamento de
Medicina Preventiva,
Centro de Saúde Escola
Samuel B. Pessoa,
Faculdade de Medicina
da USP. Av. Dr. Arnaldo,
455/2o andar – 01246-903
– São Paulo – SP
ricarte@usp.br
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Teixeira, R. R.
Há liberdade para o homem todas as vezes que de vista, nas conversas – reais e imaginárias –
ele chegar, intelectualmente ou afetivamente, à que mantemos com possíveis interlocutores.
mais íntima relação que existe entre Sujeito e A presente intervenção, como mais um mo-
Objeto. Agostinho da Silva mento dessa conversa, é privilegiadamente di-
rigida aos “trabalhadores sociais” (cf. infra de-
Este texto foi originalmente elaborado para finição de Guattari & Rolnik, 1986), particular-
apoiar minha exposição oral no debate sobre mente àqueles que vêm atuando no campo da
“A trans-formação do sujeito na saúde”, du- saúde coletiva, oferecendo-lhes uma possível
rante o VI Congresso Brasileiro de Saúde Co- “imagem para se pensar” (Deleuze & Guatta-
letiva (Salvador, de 28 de agosto a 1o de setem- ri, 1991), uma possível imagem para pensar
bro de 2000). Apresento, a seguir, sua adapta- como, com seu trabalho, com suas ações, par-
ção para um artigo, mas conservando seu ca- ticipam da formação (que é sempre trans-for-
ráter original de uma peça dirigida a levantar mação) do sujeito.
questões para o debate. Faço um pouco mais Essas conversas são, igualmente, o diapa-
que isso: traço um quadro prévio, do qual pre- são em que afinamos as elevadas motivações
tendo fazer que derivem as autênticas ques- ético-políticas que dominam o campo da saú-
tões para o debate. de coletiva e que sustentam a compreensão
Esse quadro prévio é, no fundo, a explici- mais amplamente partilhada, por essa comu-
tação do modo como entendo estar substan- nidade de atores sociais e políticos, do senti-
tivamente colocada a questão mais geral da do geral dessa trans-formação. Foi assim, por
trans-formação do sujeito. Ofereço, como é exemplo, que, num outro momento dessa in-
inevitável, um ponto de vista particular sobre finita conversa, considerei como um desafio
o problema. Esclarecerei, rapidamente, de que especialmente endereçado a este debate, a ques-
lugar falo e a quem me dirijo e, desse modo, tão lançada por Carmem Teixeira (2000), no
justifico um pouco a particularidade da mi- último boletim da Comissão Organizadora do
nha contribuição. Congresso: “como formar o sujeito da saúde
A questão do sujeito interessa-me central- coletiva?” Sua feliz colocação não apenas nos
mente, mas minha aproximação do tema de- lembra da formidável tarefa formadora que ca-
corre, em grande medida, da posição que ocu- be ao campo da saúde coletiva, mas ressalta,
po, como trabalhador e pesquisador, no am- uma vez mais, que a idéia de trans-formação
plo universo da saúde coletiva, que eu defini- contém a idéia de formação. Na mesma linha
ria como uma posição marcada por um inten- de preocupação, coloca uma questão ainda
so interesse pela problemática da inovação tec- mais fundamental: como criar “o espaço pe-
nológica (particularmente na área da preven- dagógico capaz de estabelecer um olhar sin-
ção e dos cuidados primários em saúde). Um gular, inovador?” Não seria incorreto dizer que
intenso interesse pelos processos culturais (ma- minha contribuição para o debate se restringe
teriais e imateriais) em jogo (e, mais especifi- a procurar responder a essa única indagação,
camente, pelas chamadas questões de comu- já que é possível se dizer que o meu principal
nicação e de educação em saúde). Dito de um esforço é o de examinar as reciprocidades que
modo ainda mais genérico, trata-se da proble- se estabelecem entre um dado “espaço peda-
mática propriamente humana das técnicas, das gógico” e a constituição de um olhar, que é
diferentes culturas tecnológicas, o meu princi- sempre de um sujeito e, oxalá, que possa ser
pal foco de preocupações. É dessa perspecti- singular e inovador... E poderia começar pela
va, de quem transita pelo campo da saúde com própria idéia de um “espaço pedagógico”, que
tais preocupações, que foi se delineando um nos remete imediatamente a um conceito in-
certo olhar e um certo modo de levar em con- troduzido por um dos autores que mais tem
ta a questão do sujeito, da sua formação, da sua iluminado a compreensão das questões trata-
trans-formação – o que se reflete, por exem- das a seguir: o filósofo francês Michel Serres
plo, na busca de certas referências teóricas, no (1995). Ele define a sociedade contemporânea
estudo de determinados autores, num mergu- precisamente como uma “sociedade pedagó-
lho em linhagens filosóficas bem específicas. gica” (Teixeira & Costa, 2000). Na concepção
É claro que nossos pontos de vista e nos- desse autor, todo “espaço social”, todo “espa-
sas falas também são, em outra boa medida, ço de relações sociais” se constituiria e opera-
moldados “de fora”, no entrechoque com ou- ria um pouco como um “espaço pedagógico”.
tros discursos, no diálogo com outros pontos Eu parto de concepções assemelhadas, que,
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Assim, devo esclarecer, de maneira abre- de uma noção de subjetividade que não se
viada, que “sujeito” é esse que não é um indi- prende verticalmente a qualquer “ontologia”
víduo (e nem mesmo está centrado no indiví- particular, ela não reconhece instância algu-
duo), que não é universal (e nem sequer cons- ma de determinação dominante que guie as
titui uma totalidade), que não se separa com outras instâncias segundo uma causalidade
precisão de seus “objetos” (e, de fato, estão va- unívoca; os elementos que engendram a sub-
riavelmente acoplados) e que nem se prende jetividade não mantêm relações hierárquicas
verticalmente a uma “ontologia” particular (e, obrigatórias e definitivas, o que não quer di-
de fato, se produz em processos multíplices e zer que não haja, a cada vez, em cada situação
heterogêneos, que se dão em vários níveis e es- concreta, uma hierarquia de determinação ou,
calas diferentes). Para isso, para tratar desse melhor dizendo, uma hierarquização dos fa-
outro “sujeito”, darei preferência à noção de tores condicionantes dos modos possíveis de
subjetividade. subjetivação. Trata-se, portanto, de uma hie-
Temos, então, em primeiro lugar, a subje- rarquização intensamente contextual, varian-
tividade como algo não passível de totalização do por completo no tempo e no espaço, jamais
e nem centrada no indivíduo. Uma coisa é a submetida a uma regra universal da psicogê-
individuação do corpo, outra é a multiplici- nese ou da antropogênese (Guattari, 1992). O
dade dos processos que modelam a subjetivi- que quer dizer que, no meu entender, qual-
dade. Nesse sentido, o indivíduo situa-se no quer “ciência da subjetividade” só pode fun-
entrecruzamento de múltiplos componentes cionar no “regime” ou no “paradigma da com-
de subjetividade, ou melhor, de múltiplos ve- plexidade”...
tores de formação da subjetividade. Quando Um último ponto, que ainda considero es-
digo que a subjetividade é concebida como al- sencial abordar nesta breve discussão sobre a
go modelado, fabricado, produzido, por pro- noção de subjetividade, diz respeito à sua rela-
cessos que não se dão no indivíduo, mas que ção com o chamado “mundo objetivo”. É cla-
o atravessam, processos esses que podem ser ro que a contrapartida desse desmanche da vi-
ditos coletivos e sociais, não quero fazer desa- são de um “sujeito-substância ativo” de um la-
parecer nem diminuir as dimensões indivi- do só pode ser o desmantelamento da visão de
duais nos processos de subjetivação. Numa um “mundo objetivo inerte” de outro. O es-
síntese, poderia dizer que a subjetividade é quema, que ora apresento, propõe uma visão
produzida tanto por instâncias individuais, da realidade como autênticos “encaixes frac-
quanto coletivas e institucionais. O mais im- tais de subjetividade e objetividade” (Lévy,
portante, em todo caso, é essa idéia de algo 1993). O deslocamento de uma visão a outra
produzido. Ela é inteiramente simétrica à refu- passa por compreender o quanto os chamados
tação bergsoniana das teses da fenomenologia “objetos” são “sujeitos” ou, pelo menos, “ato-
que definiam a consciência como “consciên- res”, no mesmo movimento em que se busca
cia de alguma coisa” e a sua proposição de que compreender que a chamada subjetividade se
a consciência não é “consciência de”, a cons- compõe de múltiplas dimensões “objetais”.
ciência é “coisa” (Bergson, 1997); aqui tam- Ora, tudo aquilo que produz diferença em
bém, não se trata apenas do sujeito como “su- uma rede, em um sistema, enfim, no mundo,
jeito de alguma coisa” ou “de uma ação”, mas pode ser considerado um ator e todo ator se
da subjetividade como “coisa” e “coisa produ- definirá a si mesmo pela diferença que pro-
zida” (Deleuze, 1988; Foucault, 1990). duz. Dentro dessa definição, creio que seria
Quando, no princípio, me propus a tratar até certo ponto desnecessário se estender de-
as transformações do “sujeito” a partir das mais demonstrando o quanto, por exemplo,
transformações na esfera “objetiva”, muitos objetos técnicos (estes de uma maneira parti-
podem ter imaginado que iria repetir os siste- cularmente flagrante) são efetivamente atores
mas de determinação do marxismo clássico, nos processos sociais em que estão envolvidos.
do tipo “infra-estrutura material/supra-estru- O que me parece fundamental é discutir co-
tura ideológica”. Mas, já ao considerar a subje- mo “atuam” os objetos técnicos.
tividade sob o ângulo da produção, temos que Mas, antes de passarmos a essa discussão
ela recai, de maneira surpreendente, muito sobre os objetos técnicos, ponto central e final
mais no campo da “infra-estrutura” do que da da minha intervenção, abandonemos este re-
“supra-estrutura”, onde seria classicamente si- gistro excessivamente teórico e abstrato e sal-
tuada. Além disso, como já disse, trata-se, aqui, temos para um plano de exemplos prosaicos,
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seus odores corporais ou com a extensão de seu por isso mesmo, nenhuma definição coincide
canto, como no caso dos pássaros. Mas, neste mais perfeitamente com a definição, que vi-
caso também, o território ainda não é um “ob- mos construindo até aqui, de um “objeto” emi-
jeto”, pois ele funciona como um elemento de nentemente humano, do que a definição mais
apropriação e identificação exclusiva. Tam- geral de um objeto técnico: todo e qualquer ar-
pouco já vimos um jogador que pretendesse a tefato que passe de “mão em mão” durante os
apropriação exclusiva da bola (quando o faz, trabalhos e a vida coletiva, catalisando as re-
dizemos que é “fominha”, e só é perdoado des- lações sociais.
sa “falha” se fizer uma bela jogada individual; Esse “objeto” pode ser, por exemplo, um
isso também se dá em certas atitudes “infan- objeto referido a um “espaço de conhecimen-
tis”, mas que são situações que significam jus- to”, como uma “mensagem” ou uma “informa-
tamente o fim do jogo). Para que um objeto ção” (e não faltam esquemas teóricos para con-
seja um “objeto” num sentido eminentemen- siderar os objetos técnicos em termos de “co-
te humano, é preciso que passe de mão em nhecimento”, “mensagem” ou “informação” –
mão, de sujeito a sujeito, e por isso a bola ilus- o exemplo mais banal é a cibernética, mas pen-
tra tão maravilhosamente bem este “objeto” so, em primeiro lugar, na obra do mais impor-
(um outro protótipo deste tipo de “objeto” – tante filósofo da técnica neste século: Gilbert
é quase impossível não lembrá-lo neste pon- Simondon [1989], sem falar na atualidade das
to – é o dinheiro, a moeda. E bastaria que to- ferramentas de informática em nossas vidas
dos a guardassem num cofre ou embaixo do cotidianas, fazendo a mais espetacular de-
colchão, isto é, bastaria a sua apropriação ex- monstração prática da natureza informacio-
clusiva e a interrupção da sua circulação, para nal dos objetos técnicos; e também não nos fal-
por fim ao jogo, para fazer ruir toda a estru- tam teorias para pensar todo “conhecimento”,
tura econômica). “mensagem” ou “informação” como artifícios,
Contudo, neste “objeto” não queremos ape- artefatos, como algo construído). Nesse terre-
nas destacar a sua propriedade “hominizado- no, também podemos identificar um certo ti-
ra” e “socializante” em geral, mas enfatizar, so- po de desdobramento da polaridade observa-
bretudo, que estas propriedades são da ordem da no “teorema antropológico dos estádios”.
da modalidade, isto é, que um “objeto-víncu- Os exemplos são sempre muito simples. Pen-
lo” particular não instaura nenhuma “humani- semos apenas em dois contextos técnicos dis-
dade” ou “sociedade humana” em geral, mas tintos: num, a “mensagem” passa (é difundi-
diferentes modos de “ser humano” e “fazer-so- da) por um meio eletrônico de radiodifusão,
ciedade”. como o rádio ou a televisão (as chamadas re-
A história da humanidade (começando pe- des de broadcasting), noutro, passa (é distri-
lo seu nascimento) pode ser contada como uma buída) por um meio eletrônico onde produ-
sucessão de surgimentos de “objetos” (come- tores e exploradores das “mensagens” se con-
çando, segundo os paleoantropólogos, pelo fundem, como na internet (nas chamadas re-
surgimento de um objeto técnico), cada um de- des interativas ou de “hipertextualização”): a
les indissociáveis de uma particular dinâmica diferença em termos das socialidades que ins-
social e subjetiva, indissociáveis de um parti- tauram e das subjetividades que induzem po-
cular “regime de subjetividade” ou, melhor de ser a diferença entre os torcedores impo-
(para dar um acento marxiano!), de um par- tentes e os jogadores com suas pluripotencia-
ticular “modo de produção de subjetividade”. lidades. É interessante notar, entretanto, que
Na duração antropológica, objetos, sujeitos e estes meios técnicos induzem, mas não deter-
sociedades se criam no mesmo movimento. To- minam absolutamente as formas de socialida-
da mudança social e trans-formação dos “su- de ou subjetividade, já que tudo depende dos
jeitos” implica a invenção de novos “objetos”. agenciamentos coletivos com que vêm se ar-
Para progressivamente irmos nos reapro- ticular, já que raras vezes podemos levar em
ximando da proposição inicial – de levar em conta um meio técnico isolado e tudo funcio-
conta fundamentalmente as dimensões tecno- na muito mais em termos de agenciamentos
lógicas do trabalho em saúde, para pensarmos compósitos e redes técnicas heteróclitas. Dou
o problema da trans-formação dos sujeitos –, exemplos: sabemos que o celular possibilitou
consideremos agora o objeto por excelência uma transformação completa da socialidade
da “hominização”, da “socialização humana”: imposta pelo rádio – do meio de difusão por
o objeto técnico (Leroi-Gourhan, 1964). Ora, excelência do fascismo nos anos 30 (McLuhan,
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recepção geral
cada nó da rede corresponde a um “encontro” des que podem vir a ser satisfeitas. Contudo,
assistencial (individual ou grupal), um mo- é mais do que evidente que essa atividade não
mento de “conversa” envolvendo uma série de se restringe a determinados espaços formal-
atividades técnicas específicas. mente designados para a sua realização, pro-
Os diferentes “encontros” formalmente dis- liferando por todos os encontros assistenciais
postos ao longo da trajetória de um usuário que marcam a passagem de um usuário pelo
pelo serviço podem ser vistos como os mo- serviço, já que nunca se cessa efetivamente de
mentos “sinápticos” de uma fluxografia orga- investigar/elaborar/negociar as necessidades
nizacional em rede, cujos fluxos multidirecio- que podem vir a ser satisfeitas pelo serviço. E
nais, multicombinatórios e flexíveis, interli- é para que não se confunda esse já bem dife-
gam diferentes “módulos de atenção”. renciado conteúdo de atividade com o primei-
O funcionamento ótimo desta rede depen- ro contato de um usuário com o serviço, que
de sobremaneira do desempenho da chamada ele foi distintivamente denominado de acolhi-
atividade de recepção do usuário no serviço, mento-diálogo. Ele desempenha um papel cen-
entendida como espaço primordial de inves- tral no funcionamento da rede, ou, mais exa-
tigação/elaboração/negociação das necessida- tamente, um papel original. E original, não no
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Teixeira, R. R.
sentido de primeiro encontro com o serviço, rísticas “microfísicas” dessa interface, deve
mas porque traduz a ação (passível de se rea- também levar em conta suas dimensões “de-
lizar e que se realiza em qualquer dos encon- clarativas”. Só então aparece com maior clare-
tros através do serviço e não apenas no pri- za o modo como o acolhimento-diálogo defi-
meiro encontro) que origina, que deflagra os ne a dimensão pragmática do encontro, os do-
diferentes possíveis trânsitos dos usuários pe- mínios de ação (emoções), de significação (lin-
lo serviço, por seus diferentes “módulos de guagem) e as utilizações possíveis da própria
atenção”. O acolhimento-diálogo, da perspec- interface. Muito sumariamente, poderia des-
tiva do desempenho global da rede, pode ser crevê-la considerando dois traços principais, já
visto como uma espécie de distribuidor, de indicados nos dois componentes de sua desig-
operador da distribuição, onipresente em to- nação: primeiramente, o acolhimento, que põe
dos os pontos da rede. Sendo tais encontros, em relevo, antes de mais nada, o caráter de um
momentos pautados pelo espírito do entendi- acolhimento “moral” da pessoa (usuária do
mento e da negociação permanente das neces- serviço) e suas demandas (que pode envolver,
sidades a serem satisfeitas, é neles que se de- muitas vezes, um sofrimento importante). Es-
cide a trajetória “necessária” de cada usuário se gesto “receptivo” se faz acompanhar (den-
através do serviço. tro dos limites dados pelas circunstâncias con-
Vê-se, aqui, a total adequação da metáfora cretas, como o bom senso faz supor) de um
da “sinapse”, já que é nelas também que se de- diálogo, que é o segundo traço descritivo des-
cide o essencial da plasticidade desse sistema ta interface. Este diálogo orienta-se pela bus-
de “fluxos” que é o sistema nervoso. No nosso ca de um maior “conhecimento” das necessi-
caso – de um sistema de “módulos de atenção dades de que o usuário se faz portador e dos
à saúde” interligados –, a plasticidade favore- modos de satisfazê-las, o que revela a, talvez,
ce a diversidade de singularizações possíveis, mais fina característica da operação de passa-
já que a maior possibilidade de diferentes gem promovida por esta interface e que está
usuários realizarem diferentes combinatórias dada no pressuposto geral, a pautar todas as
de “atenção” oferece uma margem maior de práticas de “conhecimento” que se dão no ser-
adaptabilidade a estruturas de necessidades viço (das atividades educativas stricto sensu a
bastante diversas, uma maior possibilidade de todas as formas de “conversa” em que se “pes-
se diversificarem as modalidades de acopla- quisa” alguma coisa), de que as nossas neces-
mento estrutural ao sistema (Maturana & Va- sidades não nos são sempre imediatamente
rela, 1998). A diversificação dos usos... Dife- transparentes e nem jamais definitivamente
rentes usuários, diferentes usos. definidas. O papel do acolhimento-diálogo na
(Se houvesse mais espaço para continuar dinâmica organizacional deve ser entendido
estes comentários, poderia ainda falar nas mu- como o resultado de um encontro pautado por
danças que se processam na “sensibilidade” de tais disposições “morais” e “cognitivas”.
uma organização de atenção à saúde, que sofra Creio que já expus o suficiente, até aqui,
uma tal evolução estrutural, nas suas novas para compor um quadro geral que permita
potencialidades “perceptivas”... A biologia con- (re)pensarmos o “sujeito” (ou antes, a proprie-
temporânea também nos ensina que a percep- dade de ser sujeito: a subjetividade) e o papel
ção é inteiramente dependente da estrutura desempenhado pelos “objetos” (entendidos
do organismo que percebe [Maturana & Va- como agenciamentos, como interfaces tecnose-
rela, 1998]. No nosso caso, isso pode signifi- miológicas) na trans-formação do nosso mo-
car, por exemplo, novas possibilidades de ex- do de ser sujeitos.
pressões de demandas... Novos ouvidos, no- Vejo vantagens nesse modo de se colocar
vas vozes.) o problema da trans-formação do sujeito no
Notemos que, até aqui, a descrição das ca- campo da saúde, porque não é pequena a par-
racterísticas de interface do agenciamento tec- ticipação dos “objetos” que pomos no mundo
nosemiológico representado pelo acolhimen- nos processos coletivos de produção de sub-
to-diálogo levou em conta apenas o que se po- jetividade. Essa é, afinal, a definição de “tra-
deria chamar de uma dimensão “procedural”, balhadores sociais” que nos é proposta por Fé-
isto é, de sua participação num agenciamen- lix Guattari: todo aquele que atua de alguma
to sistêmico, de seus efeitos na dinâmica da re- maneira na produção de subjetividade,... tra-
de. Contudo, a descrição completa de suas pro- balhando para o funcionamento desses processos
priedades de “condução”, isto é, das caracte- na medida de suas possibilidades e dos agencia-
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