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Texto 04 – Bourdieu e Os Esquemas Reprodutores

O pensamento de Durkheim serviu de base e ofereceu os métodos fundamentais para a


construção de uma sociologia da educação muito influente ao longo do século XX. Um dos mais
importantes sociólogos a analisar a educação contemporânea sob a influência do modelo de Durkheim é
o também francês Pierre Bourdieu.
Para levar a cabo a ambição de Durkheim de unificar as ciências humanas em torno da sociologia,
Bourdieu introduziu uma síntese teórica entre o modelo durkheimiano e o estruturalismo.
O estruturalismo se conecta à sociologia de Durkheim na medida em que pretende desvendar
justamente o peso das estruturas sociais por trás das ações dos sujeitos. Na verdade, trata-se aqui de
uma versão mais radical do modelo de Durkheim, que leva às últimas conseqüências o ponto de partida
segundo o qual os indivíduos estão submetidos ao controle das estruturas da sociedade.
Para o estruturalismo em geral, e também o de Bourdieu na primeira fase de sua produção,
publicada por volta da década de 1960, os sujeitos sociais são vistos - para simplificar a questão, como
uma espécie de marionetes das estruturas dominantes.
Para o sociólogo francês, a teoria durkheimiana e o estruturalismo permitem demonstrar como
os indivíduos, em sua ação, apenas reproduzem as orientações determinadas pela estrutura social
vigente.
Segundo ele, os agentes sociais, mesmo aqueles que pensam estar liberados das determinações
sociais, são na verdade movidos por, digamos assim, forças ocultas, que os estimulam a agir, mesmo que
não tenham consciência disso. São essas "condições objetivas" que o investigador deve desvendar, pois
nelas é que residem as explicações. Os sujeitos da ação estão ausentes daquele nível da sociedade em
que são objetivamente determinadas as suas ações. O sujeito de fato não existe. O que chamamos de
ação, para Bourdieu, é na verdade o processo pelo qual as estruturas se reproduzem. O sujeito está
simplesmente submetido aos desígnios da sociedade, faz o que suas estruturas determinam, não sabe
disso e ainda é iludido pelos discursos dominantes, que o fazem pensar que sua ação é resultante de
vontade própria.
Em 1964, Bourdieu publicou um livro, em colaboração com Jean-Claude Passeron, que pretendia
combater uma idéia muito comum na França da época, segundo a qual os estudantes e o meio estudantil
seriam uma classe social à parte na sociedade. E seriam responsáveis, em razão de sua juventude e de
sua disposição para a ação, pela liderança da transformação social.
Apenas quatro anos depois, no célebre mês de maio de 1968 em Paris, os estudantes de fato
sairiam às ruas, culminando um processo de mobilização que teria um alcance bem maior do que a
capital francesa. Mas para Bourdieu, em seu livro, a explicação dos processos educacionais realmente
importantes reside em outra parte. Nas estruturas, é claro. A ironia é que o livro serviu como
combustível, por seu aspecto crítico às bases do sistema de ensino, para essas mesmas revoltas
estudantis.
Neste livro, chamado Os herdeiros, os autores atacam o discurso dominante segundo o qual a
conquista de uma “escola para todos”, de caráter igualitário, tornaria possível a realização das
potencialidades humanas. E o fazem colocando em evidência o que a instituição escolar dissimula por
trás de sua aparente neutralidade, ou seja, justamente a reprodução das relações sociais e de poder
vigentes. Encobertos sob as aparências de critérios puramente escolares, estão critérios sociais de
triagem e de seleção dos indivíduos para ocupar determinados postos na vida.
Ao mesmo tempo em que expõem a face oculta do sistema de ensino, Bourdieu e Passeron
negam qualquer possibilidade de romper com as estruturas de reprodução e afirmam que as teorias
pedagógicas na verdade são uma cortina de fumaça que procura ocultar o poder reprodutor do sistema
que está nas mãos dos educadores. Simplesmente não há saída: o sistema de ensino, filtra os alunos sem
que eles se dêem conta e, com isso, reproduz as relações vigentes. Não há possibilidade de mudança. A
própria revolta estudantil, para eles, não faz mais que reforçar o sistema.

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Pois ela é absorvida e serve como aprendizado para as estruturas melhor se comportarem no sentido de
reproduzir as relações. A revolta contra as normas vigentes é apresentada por eles como um reforço da
interiorização da própria norma.
Em 1970, os autores refinaram suas idéias, incorporando mais sistematicamente as contribuições
de Marx e Weber, além de Durkheim, e publicaram um novo livro: A reprodução: Elementos para uma
teoria do sistema de ensino. Sua tese central nesta obra é a de que toda ação pedagógica é,
objetivamente, uma violência simbólica. O conceito de "violência simbólica" designa para eles uma
imposição arbitrária que, no entanto, é apresentada àquele que sofre a violência de modo dissimulado,
que oculta as relações de força que estão na base de seu poder. A ação pedagógica, portanto, é uma
violência simbólica porque impõe, por um poder arbitrário, um determinado arbitrário cultural. Dito de
modo simplificado, esse arbitrário cultural nada mais é do que a concepção cultural dos grupos e classes
dominantes, que é imposta a toda a sociedade através do sistema de ensino. Esta imposição, porém, não
aparece jamais em sua verdade inteira e a pedagogia nunca se realiza enquanto pedagogia, pois limita-se
à inculcação de valores e normas. Daí ser preciso, para que a ação pedagógica se efetive, uma autoridade
pedagógica, por parte das instituições de ensino. Ela é necessária para que a inculcação possa ocorrer,
sob a fachada dissimulada de uma alegada pedagogia.
Enquanto imposição arbitrária da cultura das classes e grupos dominantes, e na medida em que
pressupõe uma autoridade pedagógica, a ação pedagógica implica em algo que Bourdieu e Passeron
chamam de "trabalho pedagógico", isto é, um trabalho de inculcação daquele referido “arbitrário” que
deve durar o bastante para que o educando "naturalize" seu conteúdo, encare-o como natural, como
evidentemente correto em si mesmo, o bastante para produzir uma "formação durável". Na medida em
que o educando interioriza os princípios culturais que lhe são impostos pelo sistema de ensino tal modo
que, mesmo depois de terminada sua fase de formação escolar, ele os tenha incorporado aos seus
próprios valores e seja capaz reproduzi-los na vida e transmiti-los aos outros - Bourdieu diz que ele
adquire um habitus. Uma vez que o arbitrário cultural a ser imposto é incorporado ao habitus do
professor, o trabalho pedagógico tende a reproduzir as mesmas condições sociais (de dominação de
determinados grupos sobre outros) que deram origem àqueles valores dominantes.
Assim, todo sistema de ensino institucionalizado visa em alguma medida realizar de modo
organizado e sistemático a inculcação dos valores dominantes e reproduzir as condições de dominação
social que estão por trás de sua ação pedagógica. Isso explica a desigualdade que está na base do
processo de seleção escolar, Os autores, valendo-se de dados empíricos, demonstram que as "condições
de classe de origem" dos alunos que entram no sistema de ensino francês determinam tanto a
probabilidade de sucesso desse aluno quanto a probabilidade de passagem ao nível escolar seguinte,
quanto, ainda, o tipo de estabelecimento de ensino ao qual ele tem acesso (se de melhor ou pior
qualidade). Tal situação se reproduz, do ensino básico a condição de classe de chegada” deste aluno, isto
é, o tipo de habitus que adquiriu, o "capital cultural" ao qual teve acesso e em especial, a posição na
hierarquia econômica e social a que chegou.
Bem, mas talvez seja o momento de retomar a questão que coloquei no princípio deste livro: Será
que a barreira da dominação social é intransponível? Será que estamos condenados a reproduzir as
estruturas indefinidamente? Gramsci, do ponto de vista do marxismo, e Mannheim, do ponto de vista da
democracia liberal, achavam que não.

RODRIGUES, Alberto Tosi. Sociologia da Educação. 4ª. Edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

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