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ORGANIZADO por Catherine Coquery-Vidrovitch A DESCOBERTA DE AFRICA edicoes 70 3. OS PORTUGUESES OU O COMERCIO CONQUISTADOR Aié ao fim do século XIV, a descoberta da Africa foi obra do Islao, senhor do Mediterraneo meridional e do oceano Indico, as duas artérias vitais do comércio maritimo. Significa isto que os Europeus nunca tinham enfrentado 0 oceano Ailantico, objecto de tantos receios? Desde a Antiguidade que a rota do norte em direcgao ao estanho da Cornualba era conhecida e, embora no século XII a Europa preferisse a via interior que, ligando as cidades italianas ds cidades flamengas através do vale do Rédano, fez a fortuna das feiras de Champagne ou de Lido, a navegagao de cabotagem no Atlantico servia as cidades tecelas da Flandres, centro do capitalismo nascente. Em contrapartida, para o sul, ao largo da costa marroquina, as tentativas foram raras e mal sucedidas: o fracasso dos irmaos Vivaldi de Génova, que partiram em 1281 para o «Rio do Ouro» e dos quais nada mais se soube, s6 veio aumentar os terrores por essas zonas torridas do sul, povoadas por uma fauna extraordindria e perigosa, onde o mar, cada vez mais quente, dizia-se, acabava por entrar em ebulicao... O objectivo dos primeiros navegadores que se aventuraram no Atlantico nao era tanto, alids, descobrir a Africa, como contornd-la pelo sul para atingir 0 Oriente: mais do que 0 ouro do Sudao, eram as sedas, as pedras preciosas ¢ as especiarias (elemento indispensdvel a alimenta- (Go ¢, sobretudo, a farmacopeia medieval) da India e da China que despertavam as cobigas. Também se interpretou muitas vezes a marcha em direcedo a Africa como a resposta de um Ocidente em plena transformacao face ao progressivo avango turco que ameacava, com a iomada do Préximo Oriente, desorganizar as vias tradicionais este-oeste do comércio inter- nacional. No entanto, até ao fim do século XV, 0 trinsito ao longo das 61 pistas de caravanas que sulcavam a Africa, ou das rotas maritimas do oceano Indico e do golfo Pérsico continuou intenso: se o desmoronamen- to do califado tinha, no século XII, perturbado o comércio da da Mesopotamia, se a revolta dos povos da Asia contra os Tartaros dominadores e fandticos (revolta que pusera fim a «paz mongol» instau- rada pelo império de Gengis Khan) havia interrompido, no século seguinte, a rota do norte e tornado pouce segura a rota central, Tamerlao, em 1363, pés fim ao caos, transformando o florescente mercado de Samarcanda no grande entreposto do comércio da Asia, enquanto ao sul passava a ser utilizada a rota marttima: os sultées mamelucos, tendo vencido os Mongois, fundaram no Egipto um poderoso império que garantiu, a partir do século XIV, 0 acesso ao mar Vermelho; como habeis politicos que eram, souberam alimentar, apos as Cruzadas, a sede de comercio de venexianos, genoveses, pisanos, marselheses e catalaes que bassaram a abastecer-se de especiarias em Alexandria. Este periodo brilhante do Egipto medieval s6 passou a ressentir-se com 0 avanco otomano (') em 1516, data em que os Turcos chegaram ao oceano Indico: as grandes descobertas jé entao tinham terminado e deve dizer-se que elas provocaram o brusco declinio do Mediterraneo e nao foram uma consequéncia do mesmo. Mas teriam os promotores da circum-navegacdo de Africa pensado nesse declinio do comércio mediterranico? Teriam eles projectado retivar aos muculmanos infiéis 0 monopdlio do comércio das especiarias, ..cujo grande engano foi causa de mui grandes despesas, que doze anos continuados durou o Infante em aqueste trabalho, mandando em cada um ano quela parte seus navios, com grande gasto de suas rendas, nos quaes nunca foi algum que se atrevesse de fazer aquela passagem (°). 1434: Gil Eanes dobra o cabo Bojador E finalmente, depois de doze anos, fez o Infante armar uma barca da qual deu a capitania a um Gil Eanes, seu escudeiro, que ao depois fez cavaleiro © agasalhou mui bem, o qual seguindo a viagem dos outros, tocado daquele mesmo temor, nao chegou mais que as ilhas de Canaria, donde trouxe certos cativos com que se tornou para 0 reino. E foi isto no ano de Jesus Cristo de mil quatrocentos ¢ trinta e tres. Mas logo no ano seguinte, o Infante fez armar outra vez a dita barca, e, chamando Gil Eanes a de parte, o encarregou muito que todavia se trabalhasse de passar aquele Cabo; e que ainda que por aquela viagem mais ndo fizesse, aquilo veria por assaz. ~ «6s nao podeis ~ disse 6 Infante - achar tamanho perigo que a esperanga do galarddo nao seja muito maior, E em verdade eu me maravilho que imaginacao foi aquesta que todos filhaes, de uma consa de tio pequena certidéo, que se ainda estas cousas que se dizem tivessem alguma autoridade, por pouca que fosse, nao vos daria tamanha culpa. Mas quercis-me dizer que por opiniie de quatro mareantes, 05 quaes, como sao tirados da carreira de Flandres ou de alguns outros portos para que comummente navegam, nao sabem mais ter agulha nem carta para marear. Porem vos ide todavia e nao temaes sua opiniao, fazendo vossa viagem, que, com a graga de Deus, nao podereis dela trazer sendo honra e proveito.» @) Gomes Eanes de Zurara, Cronica de Guiné, cap. Vill, pp. 49, 50 © 51. 68 Eo Infante era homem de mui grande autoridade pela qual suas admoestagées, por grandes que fossem, eram para os sisudos de mui grande encargo, como se mostrou por obra em aqueste, que depois destas palavras determinon em sua vontade néo tornar mais ante a presenga de seu Senhor, sem certo recado daquilo por que 0 enviavam. Como de feito fez, que daquela viagem, menospregando todo perigo, dobrou 0 Cabo a alem, onde achou as cousas muito pelo contrairo do que ele e os outros até ali presumiam, E ja seja que o feito, quanto 4 obra, fosse pequeno, s6 pelo atrevimento foi contado como grande; que se o primeiro que chegou a cerca daquele Cabo fizera outro tanto, lhe fora tao louvado nem agradecido; mas quanto o perigo da cousa aos outros foi posto em maior temor, tanto trouxe maior honra ao cometimento daqueste. E entao lhe contou todo o caso como passara, dizendo como fizera langar o batel fora, no qual saira em terra, onde nao achara gente alguma, nem sinal de povoagio. =

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