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Botoni LS, Veado JCC, Val APC. Medvep - Revista Científica de Medicina Veterinária - Pequenos Animais e Animais de Estimação; 2012; 10(32); 108-111.
Resumo
Distanásia, antônimo do conhecido termo eutanásia, é conceituada como morte lenta, em uma condição
onde o retorno a normalidade da vida é considerado impossível. Devido à enorme gama de recursos
existentes à disposição dos clínicos, animais portadores de doenças terminais ou debilitantes têm sido
submetidos à tratamentos paliativos com o objetivo de prolongar a vida ao invés de melhorar sua qua-
Geral
lidade. Assim, distanásia tem sido praticada na rotina da clínica veterinária. Isso ocorre, muitas vezes, a
pedido do proprietário, que não aceita perder o animal de estimação e outras vezes, pela visão errônea
dos médicos veterinários de que a morte significa o fracasso do tratamento. É de suma importância que
estes conceitos sejam revistos e que haja uma tentativa de implementar na medicina veterinária a visão de
qualidade de vida, mesmo que isto signifique seu fim, para que sejam evitados protocolos de tratamentos
fúteis, extenuantes e onerosos ao proprietário. Este trabalho propõe uma discussão ética dessa realidade
cada vez mais frequente na clínica veterinária.
Abstract
Disthanasia, the antonym of the well-known term euthanasia, is defined as slow death, in a condition
where return to a normal life is considered impossible. Due to a wide range of resources available to the
clinicians, animals with debilitating or terminal diseases have been submitted to palliative treatments,
which aim to prolong life, rather than improving its quality. Thus, disthanasia has been practiced in vete-
rinary routine. This often happens as a request of the owner, who does not accept losing the pet and, so-
metimes as an erroneous view of the veterinarian, that death means failure of the treatment. The revision
of these concepts are extremely important, as well as an attempt to implement in veterinary medicine,
the vision of quality of life, even if means the end, in order to avoid futile treatment protocols, that are
exhausting and costly to the owner. This paper proposes an ethical debate about this reality, increasingly
common in the veterinary medicine.
Geral
é medicamente inútil e intensificar os esforços no sentido dade de interrupção signifiquem falha clínica. Um número
de amenizar o desconforto da morte (1). Entretanto, cabe surpreendente de clínicos erroneamente equiparam a prá-
aqui outra discussão. As definições encontradas nos di- tica da medicina veterinária com a preservação da vida do
cionários são específicas para o homem, o que torna mui- animal independentemente da sua qualidade ou qualquer
tas vezes polêmico, o emprego da palavra sofrimento. O ônus que esse objetivo pode imprimir ao animal ou aos
sofrimento pode ser definido como uma emoção negativa proprietários (5).
correspondente a qualquer experiência aversiva. Em uma Dois paradigmas, o do curar e do cuidar, orientam a
frase como “sofrimento de uma doença” a ênfase está em medicina moderna. O paradigma do curar propõe que, se
ter a doença e menos no desprezar o que ela causa. Assim, há recursos, estes têm que ser utilizados, sem considerar se
a expressão sofrimento pode ser considerada como uma devem ou não ser usados. Também idolatra a vida física e
manifestação emocional, mais ligada a sensação, que é alimenta a tendência de usar o poder da medicina para pro-
de interpretação subjetiva nos animais. Evitaremos aqui, longá-la mesmo em condições inaceitáveis. Esta idolatria à
então, o emprego da palavra sofrimento para expressar vida remete à convicção de que a inabilidade para curar
qualquer sensação de um animal. ou evitar a morte é uma falha da medicina moderna, assim
A eutanásia e a distanásia, como procedimentos mé- acredita-se que a responsabilidade para com o paciente ter-
dicos, têm em comum a preocupação com a morte do mina quando todos os tratamentos se esgotam. O paradig-
indivíduo e a maneira mais adequada de lidar com isso. ma do cuidar permite que o limite da vida seja respeitado
Enquanto a eutanásia se preocupa prioritariamente com e que os esforços sejam feitos para preservar sua qualidade
a qualidade da vida na sua fase final, a distanásia dedica- e não sua duração. Desta forma, retira-se do clínico o sen-
-se a prolongar ao máximo a quantidade de vida, tentan- timento de fracasso causado pela morte do paciente, vista
do a todo custo mantê-la a despeito de qualquer outra que a morte é inevitável. Não é o objetivo principal evitar a
questão (3). morte e sim preservar a vida digna e em condições de bem
Cada vez mais os médicos veterinários têm se depa- estar. A medicina, orientada para o alívio do sofrimento,
rado com casos críticos em que muito pode ser feito, mas estará mais preocupada com o doente que com a doença.
não há discussão se deve ou não fazê-lo. Ocorre também Nesse sentido cuidar não é o prêmio de consolação pela
a mudança cultural na relação homem-animal, sendo cura não obtida, mas sim parte integral do estilo e projeto
cada vez maior o número de proprietários que deman- de tratamento a partir de uma visão integral (1).
dam tratamentos intensivos para os seus animais. Entre- A tomada de decisão médica deve ser baseada nos
tanto, é função do clínico participar da decisão se aquele princípios da ética clínica: autonomia, beneficência, não-
paciente é ou não um candidato aos procedimentos em -maleficência, justiça e veracidade (6). A vontade de viver
questão. Diante do exposto, este trabalho tem como ob- do paciente deve sempre ser respeitada e a família deve
jetivo a discussão do tema, ainda pouco debatido na Me- ser considerada ao definir o destino do doente. Assim,
dicina Veterinária, mas de muita relevância diante dos deve-se instruir os familiares e o paciente quanto ao seu
avanços que a clínica veterinária tem experimentado nos real estado de saúde e prognóstico para que eles possam
últimos anos. participar ativamente da tomada de decisão. Além disso,
dos os pré-requisitos necessários para os procedimentos e recidivante, mas pouco metastático. Como terapia
e não devem insistir no tratamento somente pelo desafio complementar à exérese do tumor, a cadela foi subme-
científico ou financeiro que este representa. Se estes crité- tida à seis sessões de quimioterapia, quando recebeu
rios forem seguidos, a decisão será, sob o ponto de vista alta, mas com recomendação de retornos mensais. De
ético, baseada no desejo ou interesse do animal (4). fato, até os dez meses após a cirurgia, o animal estava
Dentro deste contexto, é de suma importância a com- clinicamente bem e não apresentou recidiva local. En-
preensão das premissas bem estar animal. Em sua essên- tretanto, um ano após o diagnóstico, a cadela começou
cia, o bem estar animal é definido como o estado de um a apresentar-se dispnéica e com tosses constantes.
indivíduo em sua tentativa de se adaptar ao ambiente em Ao exame clínico constatou-se aumento da frequên-
que vive (7,8) e tem como princípio as cinco liberdades, cia respiratória, dispnéia expiratória, reflexo de tosse
em que o animal deve estar: a) livre de fome e de sede; b) exacerbado e discreta crepitação pulmonar à ausculta-
livre de desconforto; c) livre de dor, injúrias ou doença; d) ção torácica. Realizou-se então exames radiográficos de
livre para expressar o comportamento normal da espécie tórax nas posições LL e VD, que demonstraram área
e e) livre de medo e estresse (9).Via de regra, o tratamento sugestiva de enfisema, além de massas radiopacas di-
em um animal com doença terminal ou crônico-debilitante fusas no parênquima pulmonar de tamanhos variados,
deve ser descontinuado, se essas premissas não puderem sugestivas de metástase de fibrosarcoma, apesar de se-
mais ser restabelecidas. (10). rem pouco comuns. Exames de lavado tráqueo-brôn-
Avanços tecnológicos têm acontecido rapidamente na quico confirmaram a suspeita de patologia neoplásica.
medicina humana e muitos podem ser inseridos na medici- Em não havendo tratamento curativo para tais casos,
na veterinária se tiverem o seu uso justificado. Desta forma, e como a cadela apresentava estado geral bom, suge-
se é possível oferecer qualidade de vida sustentável por riu-se ao proprietário quimioterapia contínua como
algum tempo, então justifica o uso de técnicas avançadas tentativa de prolongar a vida do animal ou cuidados
em prol daquele animal. Já se não for haver beneficência, paliativos para promover conforto e qualidade de vida
o procedimento não deve nem ser iniciado. A motivação até o fim. O proprietário optou por nova quimioterapia
do médico veterinário para determinado tratamento não e após realização de hemograma e perfil bioquímico,
pode ser experimental ou científica em detrimento do bem marcou-se a primeira sessão para a semana seguinte.
estar do paciente. É importante esclarecer para o proprie- Prescreveu-se prednisolona, 0,5mg/kg/12h visando
tário todos os detalhes que envolvem aquele tratamento, atenuar o quadro respiratório, promovendo conforto
incluindo o estado geral do animal, os riscos de falhas no para o animal.
tratamento e os custos para que ele participe da decisão a Todavia, o animal retornou antes da data previs-
ser tomada. A eutanásia pode ser a opção mais indicada ta, pois houve agravamento do caso. O proprietário
para aquele caso em que o tratamento não trará qualidade relatou diversas crises epiléticas completas, dispnéia
de vida justificada, mas deve sempre discutida com caute- intensa, síncope, cianose e anorexia. Ao exame clínico,
la para não haver banalização deste procedimento, já que o animal estava em esturpor, com a língua cianótica,
muitas vezes é simplesmente a saída mais fácil. (4). ofegante, dispnéia expiratória e crepitação pulmonar
Geral
neste trabalho, a conduta clínica dos veterinários procedimentos que prolonguem a vida do paciente por-
envolvidos no caso relatado foi correta, pois não tador de doença crônico-debilitante, é dever do médico
utilizaram de futilidade médica e obstinação veterinário zelar pela qualidade de vida e bem estar de
terapêutica, mesmo com a pressão do proprietário em seu paciente.
manter o animal vivo.
Quando o animal retornou, apresentando dispnéia
discreta, aumento da frequência respiratória e crepi-
tação pulmonar seria indicado retornar o tratamento Referências
quimioterápico, mesmo não havendo possibilidade
curativa, mas a qualidade de vida satisfatória do ani- 1. PESSINI, L. Até quando prolongar a vida?;. 2 ed. Edições Loyola;
São Paulo/2007.
mal estaria preservada, pois em se considerando o con-
ceito de bem estar animal, a cadela era perfeitamente 2. JOSEPH, R. Hospital Policy on Medical Futility — Does it Help in Con-
flict Resolution and Ensuring Good End-of-Life Care? – Annals Acade-
capaz de viver como um ser de sua espécie, livre para my of Medicine, Vol. 40 No. 1, Singapoure, 2011.
expressar seu comportamento natural e interagir com o
3. MARTIN, L. M. Eutanásia e Distanásia. Iniciação à Bioética, Parte III,
seu ambiente e com desconforto tolerável. p. 171 a 193. Conselho Federal de Medicina, Brasília, 1998
Entretanto, o quadro sofreu evolução muito rápida
4. JARVIS, S. Where do you draw the line on the treatment? Veterinary
e o animal se apresentou em um estado muito grave. Record2010 167: 636-637. October, 2010. Glasgow, Scotland.
Sendo assim, não seria mais indicado instituir nenhum
5. MILANI, M. The art of terminal illness and injury: The veterinarian.
tratamento, mesmo que paliativo para prolongar a The art of private veterinary practice. Can Vet J Volume 46, Canada,
vida do animal, pois não havia mais qualidade de vida. June 2005.
O fato de continuar vivo provocaria forte desconforto 6. LASELVA, C. R. O paciente terminal,vale a pena investir no trata-
àquele individuo. Desta forma, o mais correto do ponto mento? Disponível em: http://www.einstein.br/biblioteca/artigos/
Vol2Num2/O%20paciente%20terminal%20(Claudia).pdf . Acessado
de vista ético seria a eutanásia para que a morte ocor- em 12 de abril de 2011.
resse sem sofrimento, já que a patologia era incurável e
7. BROOM, D.M. Indicators of poor welfare. British Veterinary Journal ,
muito debilitante. London, v.142, p.524-526, 1986.
O ato de indicar eutanásia a um paciente não deve
8. BROOM, D.M.; MOLENTO, C.F.M. Bem-estar animal: Conceito e ques-
ser encarado como desistência daquele caso simples- tões relacionadas –Revisão. Archives of Veterinary Science v. 9, n. 2,
mente por haver práticas terapêuticas que podem p. 1-11, 2004.
manter aquele animal vivo. A eutanásia deve ser vista 9. Farm Animal Welfare Council. Five Freedoms. Abril, 2009. Disponível
como uma alternativa terapêutica necessária quando o em: http://www.fawc.org.uk/freedoms.htm. Acessado em 10 de abril
de 2011.
tratamento e a vida com determinada doença promo-
10. ROLLIN, B. E. Ethics and euthanasia. Colorado State University, Fort
ver malefícios ao animal, mesmo que haja pressão por
Collins,Colorado, USA. CVJ / Vol 50 / October, 2009.
parte do proprietário para continuar o tratamento, o
Recebido para publicação em: 19/10/2011.
veterinário deve-se manter em sua posição eticamente Enviado para análise em: 07/11/2011.
correta. Aceito para publicação em: 15/02/2012.