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LITERATURA

RAÍZES HISTÓRICAS, CULTURAIS


E IDEOLÓGICAS DO PENSAMENTO
DE ELLEN G. WHITE SOBRE
ROMANCE FICCIONAL E DRAMA

MARTA B. GOMES, licenciada em Letras pelo Unasp, Campus Engenheiro Coelho.


SOLANGE DE FÁTIMA SOUZA, licenciada em Letras pelo Unasp, Campus Enge-
nheiro Coelho.
NEUMAR DE LIMA, professor dos cursos de Letras e Tradutor e Intérprete do
Unasp, Campus Engenheiro Coelho e mestre em Lingüística Aplicada pela PUC-SP.

Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre as origens socioculturais


e ideológicas do pensamento de Ellen G. White a respeito do romance ficcional
e do drama. O estudo está embasado em alguns conceitos teóricos de Foucault
(2002) sobre a formação e análise do discurso. Como resultado, o trabalho revela
que a postura da escritora em relação às reproduções artísticas não era anacrônica
ou fruto de idiossincrasias pessoais, mas uma formação ideológica e discursiva que
influenciou o seu pensamento, bem como o de seus contemporâneos.
Palavras-chave: Romance, teatro, formação discursiva, formação ideológica,
puritanismo e grande despertamento

HISTORICAL, CULTURAL AND IDEOLOGICAL ROOTS OF


ELLEN WHITE´S THINKING ON DRAMA AND FICTIONAL
NOVELS
Abstract: This article aims at reflecting about the historical, cultural and ide-
ological origins of Ellen White’s thinking on drama and fictional novels, drawing
on some concepts of Foucault (2002) about ideological formation and discourse
analysis. As a result, our reflections reveals that Ellen White’s thinking about drama
and fictional novels was not anachronistic or the result of personal idiosyncrasy,
but reveals a particular ideological and discursive formation which influenced her
thinking as well as that of her contemporaries.
Keywords: Novel, drama, discursive formation, ideological formation, puri-
tanism, great awakening

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Introdução
Ellen G. White, escritora religiosa norte-americana, exibições se corromperá em seus princípios. Não há em
viveu a maior parte de sua vida durante o século 19 nosso país influência mais poderosa para envenenar a
(1827-1915) e foi co-fundadora da Igreja Adventista imaginação, destruir as impressões religiosas e tirar o
do Sétimo Dia. Douglass (2001, p. 517), citando gosto pelos prazeres tranqüilos e as realidades sóbrias
documentos oficiais, comenta sobre a relevância da da vida, do que as diversões teatrais (Ibid, p. 334).
escritora para essa denominação: “A sra. White e o Davis (2002, p. 46), comentando o impacto dos
movimento Adventista do Sétimo Dia surgiram juntos conselhos da escritora para os educadores adventistas,
no mesmo ano, [e sua] contribuição foi exercida de afirma que
forma constante”. O autor ressalta, ainda que, para
os líderes da Igreja Adventista, “ela e o movimento os comentários de Ellen G. White sobre ficção e teatro
estavam inseparavelmente ligados”. [drama] são tão contundentes e consistentemente nega-
Douglass (Ibidem), citando A. G. Daniells, um tivos que não é de se admirar que líderes e professores
dos presidentes da denominação, salienta que Ellen de literatura da Igreja Adventista do Sétimo Dia, há
G. White teve grande importância “para diversas fa- décadas, têm-se dedicado com afinco à tarefa de avaliar
ses do pensamento adventista, inclusive a atitude da as implicações de seus comentários para a educação e a
Igreja em relação à Bíblia, ao evangelismo mundial, definição de atividades de lazer (tradução nossa).
à prestação de serviços aos não-adventistas em obras Reconhecendo que esse assunto já tem sido tratado
sociais e comunitárias, à saúde e serviço médico e ao extensamente, o objetivo deste artigo não é repetir o
conselho educacional”. Na verdade, para os Adven- que já foi discutido por muitos educadores adventistas
tistas do Sétimo Dia, Ellen G. White era mais do que quanto à interpretação e aplicação dos conselhos de
uma escritora talentosa; era uma mensageira da missão Ellen G. White nas escolas e universidades adventistas.
para a qual acreditavam terem sido chamados. Com Portanto, segue-se uma reflexão sobre as raízes históri-
esse compromisso em mente, a escritora escreveu cas, culturais e ideológicas do pensamento da escritora
dezenas de livros e artigos sobre vários temas, entre a respeito de romance ficcional e drama, tendo como
eles, o livro Educação, no qual relata em grande parte embasamento teórico alguns conceitos de Foucault
seu pensamento sobre obras de ficção. Em diversas de (2002) sobre formação ideológica e discursiva.
suas obras a autora apresenta uma postura crítica em
Discurso e ideologia
relação a certas obras ficcionais:
Esta seção apresenta a base teórica do trabalho, isto
Além disso, há uma multidão de escritores de ficção,
é, alguns conceitos da Análise do Discurso, baseados nas
convidando a sonhos deleitáveis em palácios de ócio.
teorias de Foucault, priorizando os aspectos ideológi-
Podem não ser taxados de imoralidade; contudo, suas
cos da formação do discurso. O objetivo deste exame
obras nem por isso deixam de estar carregadas de males.
é fornecer base para avaliar o conteúdo ideológico do
Estão roubando a milhares e milhares o tempo, a energia
pensamento de Ellen G. White no contexto das forças
e a disciplina exigidos pelos severos problemas da vida
culturais, ideológicas e religiosas de seu tempo e de sua
(White, 2001, p. 227).
tradição cultural-religiosa.
Obras de romance, frívolos e provocantes contos, pouco Conforme descreve Perez (1999, p. 37), há inú-
menos ruinosos são ao leitor. Talvez o autor professe meras definições para discurso. Entretanto, apesar da
ensinar uma lição de moral, pode entretecer na obra diversidade, o conceito escolhido como base para o
sentimentos religiosos; freqüentemente, porém, isso não trabalho é o de Foucault (2002, p. 135). Segundo o
serve senão para velar a loucura e a vileza que se acham filósofo, o discurso é
no fundo (White, 2004, p. 445). um conjunto de enunciados na medida em que se apóiem
Entre os mais perigosos lugares de diversões acha-se o na mesma formação discursiva. [...] Indefinidamente
teatro. Em vez de ser uma escola de moralidade e vir- repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos
tude, como muitas vezes se pretende, é um verdadeiro assinalar [e explicar se for o caso] na história: é cons-
foco de imoralidade. Hábitos viciosos e propensões tituído de um número limitado de enunciados para os
pecaminosas são fortalecidos e confirmados por esses quais podemos definir um conjunto de condições de
entretenimentos. Canções baixas, gestos, expressões e existência. [...] é um conjunto de regras anônimas, histó-
atitudes licenciosas depravam a imaginação e rebaixam ricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que
a moralidade. Todo jovem que costuma assistir a essas definiram, numa dada época e para uma determinada

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área social, econômica, geográfica ou lingüística, as segundo o qual “os embates históricos, sociais etc se
condições de exercício da função enunciativa. cristalizam no discurso” (Maingueneau, apud Brandão,
Perez (1999, p.37), comentando esses conceitos, 2002, p. 18). Dessa forma, “a linguagem passa a ser
um fenômeno que deve ser estudado [...] enquanto
explica que tal concepção interessaria à análise discursi-
formação ideológica, que se manifesta por meio de
va de Ellen G. White por duas razões: primeiro, porque
uma competência socioideológica” (Ibidem).
afirma constituir o discurso “um número delimitado
de enunciados para os quais se poderia definir um con- Formação ideológica e formação discursiva
junto de condições de existência”, e, segundo, porque Formação ideológica e formação discursiva são
define os discursos como sistema de restrições, que dois conceitos que mantêm relações muito próximas
controlariam “em uma dada época e para uma determi- entre si. Brandão (2002, p.38), com base em Haroche et
nada área social, econômica, geográfica ou lingüística, al., define formação ideológica como uma organização
as condições de exercício da função enunciativa”. de posições políticas e ideológicas. A autora, entretan-
Corroborando o assunto, Brandão (2002, p. 31) to, ressalta que ao se falar em formação ideológica,
afirma que Foucault “não tinha como preocupação cen- temos que levar em conta um confronto de forças em
tral o enfoque do discurso enquanto problema lingüís- determinada conjuntura ideológica, característica de
tico”. Ela menciona, ainda, duas concepções da teoria uma formação social em um dado momento. Haroche
discursiva de Foucault que contribuem efetivamente et al. (1971), citado por Brandão (Ibidem), salienta
para a análise de seu próprio discurso. São elas: que uma determinada formação ideológica constitui
a) concepção de discurso considerado como “um conjunto complexo de atitudes e representações
prática que provém da formação dos saberes, e a que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’, mas se
necessidade, sobre a qual insiste obsessivamente, relacionam mais ou menos diretamente a posições de
de sua articulação com as outras práticas não classes em conflito umas em relação às outras”.
discursivas; Brandão (Ibidem) ainda comenta que “consti-
b) o conceito de ‘formação discursiva’ cujos ele- tuindo o discurso um dos aspectos materiais, pode-se
mentos constitutivos são regidos por determinadas afirmar que ele é uma espécie pertencente ao gênero
‘regras de formação’ (Brandão, 2002, p. 31). ideológico. Em outros termos, a formação ideológica
Perez (1999, p. 42), em consonância com Brandão, tem necessariamente como um de seus componentes
explica que Foucault tem “uma concepção de discurso uma ou várias formações discursivas interligadas. Isso
que valoriza exclusivamente as condições históricas e significa que os discursos são governados por forma-
institucionais ligadas ao aparecimento dos enuncia- ções ideológicas”. Dentro desse contexto, Brandão
dos”. Ainda salienta que para Foucault “a resposta à (Ibidem) conclui que são as “formações discursivas que,
em uma formação ideológica especificando e levando
pergunta de como apareceu um determinado enunciado
em conta uma relação de classes, determinam ‘o que
e não outro em seu lugar é institucional e histórica, ou
pode e deve ser dito’ a partir de uma posição em uma
seja, explica-se ‘com restrições de ordem histórica’”
conjuntura dada”.
(Ibidem).
Com base nas considerações teóricas apresentadas,
Definição de ideologia é possível analisar a conjuntura ideológica do discurso
Segundo Brandão (2002, p. 26-27), a palavra ideo- de Ellen G. White sobre a leitura de ficção e drama.
logia freqüentemente evoca visão negativa e está ligada Fundamentação histórica e ideológica
à tradição marxista. Por outro lado, a autora ressalta Nesta seção, o artigo oferece alguns fundamentos
que “temos uma noção mais ampla de ideologia que é históricos e ideológicos da literatura anglo-americana,
definida como uma visão, uma concepção de mundo com o objetivo de contextualizar as forças históricas,
de uma determinada comunidade social numa deter- filosóficas e religiosas que influenciaram a época de Ellen
minada circunstância histórica”. G. White. O ponto de partida será o Renascimento e a
Brandão (2002, p. 27), apoiando-se nesta segun- Reforma do século 16 e seus conseqüentes desdobra-
da visão de ideologia, endossa a posição de Foucault mentos até o período em que viveu a escritora.
que vê os “fenômenos linguagem e ideologia como Um breve exame da literatura mostra que há
noções estreitamente vinculadas e mutuamente ne- movimentos em cadeia que influenciam as reações
cessárias, uma vez que a primeira é uma das instâncias literárias. Esses movimentos envolvem eventos políti-
mais significativas em que a segunda se materializa”. cos, econômicos, filosóficos e culturais que se alteram
Para confirmar essa idéia, a autora cita Maingueneau, e reagem aos paradigmas reinantes. A literatura, por

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exemplo, aponta o Classicismo como uma reação ao cença. Todas as transformações que ocorrem na
Trovadorismo. Por isso, uma análise específica da lite- Europa Ocidental, a partir do século 14, estão
ratura anglo-americana – no caso – e sua relação com intrinsecamente ligadas entre si e atuando umas
o movimento renascentista e a Reforma Protestante sobre as outras.
merece evidência, pois ambas representam grandes
O Renascimento cultural, segundo Pedro e Cáceres,
rupturas em paradigmas reinantes.
teve início na Itália e se espalhou em outros países euro-
Contexto histórico e ideológico do Renasci- peus, como nos Países Baixos, na França, na Espanha,
mento e da Reforma em Portugal, e, onde mais nos interessa, na Inglaterra.
No final do século 15, a Inglaterra, do ponto de vista
Em meados do século 14, a produção feudal es-
econômico, tornou-se um país próspero, com uma
tava em crise e a sociedade – principalmente os bur-
grande concentração de manufaturas. Do ponto de
gueses – buscava uma nova ética e moral. A situação
vista cultural-literário, passou a ser palco para muitos
da época clamava o fim do cavalheirismo medieval.
escritores renascentistas, sendo William Shakespeare
O movimento que surgiu para solucionar a ansiedade
o grande expoente.
social foi o Humanismo, que tirou Deus do centro
Lima (2002, p. 33-34), refletindo sobre os aspectos
de todas as coisas – teocentrismo – e passou a exal-
positivos e negativos do Renascimento, faz uma análise
tar a ciência e a razão humana. Shakespeare (1600),
bíblico-cristã do movimento:
em Hamlet, sintetiza essas novas aspirações com as
seguintes palavras: Seria postura simplista negar que o Renascimento
não tenha apresentado contribuições positivas para a
Que obra de arte é o homem: tão nobre no raciocí-
sociedade daquela época e para o Ocidente como um
nio; tão vário na capacidade; em forma e movimento,
todo. Com efeito, a valorização do homem, seu desen-
tão preciso e admirável, na ação é como um anjo; no
volvimento individual e coletivo são todos aspectos
entendimento é como um deus; a beleza do mundo, o
essencialmente bíblicos, e ressaltados pelos escritores
exemplo dos animais.
da Bíblia. Grandeza nacional e mesmo material não
Lima (2002, p. 33), explicando a contribuição do é incompatível com a filosofia bíblica. O que temos
Humanismo, afirma que esse movimento estabelece “um de levar em consideração, no entanto, é que a cultura
divisor de águas na história ocidental bem como o marco greco-latina possuía uma base filosófica naturalista, e os
principal que determina os rumos e contornos da literatura povos que a formavam viviam ‘sem Deus no mundo’,
ocidental”. O humanismo é considerado um movimento conforme as palavras de Paulo (Ef 2:12). Sendo assim,
intelectual de valorização da antiguidade clássica, procura- a rejeição do teocentrismo medieval e a adoção do
da como inspiração, a qual provocou o Renascimento, que antropocentrismo greco-latino produziu uma mudança
é o pico da falência do teocentrismo medieval. O homem de cosmovisão: daquela baseada no pensamento cristão
volta a ser, então, o centro do universo. para uma, segundo seu ponto de vista bíblico-cristão,
Pedro & Cáceres (1976, p. 123) sintetizam a humanista e secular. Essa transição atingiu seu auge com
realidade social do século 14 como a desagregação o Iluminismo do século 18. Dentro dessa perspectiva,
do mundo medieval. A análise envolve cinco planos o Renascimento desencadeou tendências negativas na
intrinsecamente ligados: medida em que rejeitou a autoridade de Deus, adotando
1) Econômico: derrocada da economia feudal e o homem como centro e a medida de todas as coisas,
renascimento do comércio, que culmina com as conforme o modelo clássico.
grandes navegações do século 16. Lima (Ibidem), com base em Cairns (1984, p. 162-
2) Social: desenvolvimento de uma camada de mer- 164), chama a atenção para o fato de que em paralelo
cadores e progressivo declínio da nobreza feudal. ao Renascimento humanista ocorreu um movimento
3) Político: progressiva centralização do poder nas humanista bíblico-cristão que culminou na Reforma
mãos dos reis. As soberanias feudais desaparecem e Protestante. Pedro & Cáceres (1976, p.123), corro-
o rei, aliado aos mercadores, sujeita sua autoridade borando com esse pensamento, afirmam que, com o
ao poder da nobreza feudal e da Igreja. declínio da Igreja, surge “uma série de movimentos que
4) Religioso: declínio da Igreja e surgimento de irão culminar com a Reforma Protestante”. Os autores
uma série de movimentos que resultam na Reforma relembram que “com a Reforma Protestante, foi que-
Protestante. brada a unidade da Igreja Católica”. Eles acrescentam
5) Cultural: Renascimento cultural ou Renas- que a “Reforma Protestante incitou o nacionalismo e

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quebrou a autoridade do Papa sobre os governantes O poder da Igreja era um empecilho para o fortalecimento
seculares”. E no que diz respeito à Inglaterra, os autores do absolutismo, ao mesmo tempo que competia com os
ressaltam que “o rei estendeu sua autoridade sobre o grandes proprietários rurais leigos. A derrota da Igreja era
poder espiritual” (Ibid, p. 145). alvo comum dos monarcas e dos nobres feudais.
Mediante o que foi exposto, há um ponto de par- As camadas populares, principalmente os camponeses
tida, conforme propõe a introdução deste trabalho, que conservavam os ensinamentos de Wycliff, acolhe-
para a análise da formação ideológica que marcou a ram também com bons olhos [sic], os ensinamentos
época de Ellen G. White. Em outras palavras, temos de Lutero.
o Renascimento secular e a Reforma Protestante, Além disso, a Igreja era odiada pelo povo inglês, de um
surgindo e se desenvolvendo ao mesmo tempo. Lima modo geral, na medida em que estava associada ao maior
(2002, p. 33-34) explica que embora ambos tenham inimigo da Inglaterra – a Espanha.
“participado do mesmo espírito de insatisfação com a Pedro & Cáceres (1976) continuam descrevendo
igreja dominante, os renascentistas dirigiram-se para a que, no período entre 1529 a 1536, novas leis coloca-
literatura da Antigüidade Clássica enquanto Lutero e ram a Igreja da Inglaterra sob o controle do Estado,
outros reformadores dirigiram-se para as Escrituras”. separando-a da Igreja Romana. Assim, terras romanas
Pedro & Cáceres (1976, p. 166) apontam que a foram apropriadas e mosteiros fechados pela Igreja
influência da Reforma Protestante foi além do aspecto inglesa, que vendeu tudo posteriormente.
religioso. Os autores afirmam que “este movimento teve Neste mesmo período, a Igreja Anglicana era
implicações econômicas, políticas e sociais na medida em chefiada por Henrique VIII, o segundo monarca da
que refletiu as lutas de classes entre nobreza, burguesia, dinastia Tudor, sucessor de Henrique VII. Embora
artesãos e camponeses do início da Idade Moderna.” houvesse rompido com Roma, a Igreja Anglicana ainda
Em relação às diferenças entre o Renascimento “continuava sendo a mesma da Igreja Romana, embora
e a Reforma, Lima (Ibid, p. 35) ressalta que “um e alguns auxiliares do rei tentassem convencê-lo a mo-
outro [movimento] provêem respostas antitéticas dificar os dogmas [da Igreja]” (Ibidem). Cairns (1984,
para as mesmas questões básicas: o Renascimento fez p. 267) explica que os humanistas bíblicos também
do homem o fundamento central de toda pesquisa e eram chamados de “Reformadores de Oxford”. Esses
expressão, desviando a autoridade da Igreja para o homens objetivavam mudar os princípios católicos da
próprio homem, tornando-o autônomo. A Reforma, época por meio do ensino da Bíblia ao povo. Entre
por sua vez, rejeitou igualmente a autoridade da Igreja os reformadores, Cairns cita John Colet (1466-1514),
e a transferiu para a Bíblia”. pároco da Igreja de São Paulo, que estimulou o estudo
A Reforma na Inglaterra da Bíblia na língua original a partir do Novo Testamento
grego de Erasmo, a fim de explicá-lo às pessoas.
Segundo Cairns (1984, p. 266), a Reforma Pro-
Em relação à postura de Henrique VIII diante dos
testante que abarcou a Grã-Bretanha e os Estados
dogmas da Igreja Católica, Pedro & Cáceres (1976,
Unidos foi a Reforma Anglicana, “que por sua feitura
p. 173) expõem que ele “perseguia os protestantes que
conservadora pode ser comparada com o movimento
não acreditavam na doutrina católica da transubstan-
luterano”. O autor ainda explica que este último mo-
ciação”. Esse e outros aspectos revelam que a Reforma
vimento não tinha um líder religioso e, por isso, foi
de Henrique VIII (1509-1547) foi mais no sentido de
“controlado pelo rei, que se tornou o chefe da Igreja
uma reforma política do que religiosa.
nacional”. Assim, a Reforma Anglicana “começou
Henrique VIII solicitou o divórcio religioso a
como uma agitação política, prosseguiu como um mo-
Roma várias vezes, no entanto, Clemente VII, que
vimento religioso, terminando no governo da rainha
já era controlado por um sobrinho de Catarina, sua
Elizabeth I, em meados do século 16” e expandindo-se
esposa, o poderoso Carlos V, rei da Espanha e im-
por todo o mundo.
perador da Alemanha, negou o pedido. Percebendo
Pedro & Cáceres (1976, p.172) explicam resumi-
a dificuldade do Papa em permitir seu divórcio, o rei
damente qual era a situação histórica pré-reforma da
Henrique resolveu obtê-lo por meio do clero inglês.
Inglaterra:
Cairns (1984, p. 267) afirma que as razões pessoais de
Ao nível político, com a dinastia dos Tudor, desenvol- “Henrique constituíram-se na causa direta e pessoal
via-se o absolutismo. A Igreja Católica, além de grande do início da Reforma”.
proprietária de terras, exercia na Inglaterra, como em Henrique VIII foi sucedido por Eduardo VI, que
outros países, o monopólio do comércio da graça divina. fortaleceu a expansão do protestantismo na Inglaterra.

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O rei Eduardo foi influenciado pelo duque de Somerset, entre Inglaterra e Espanha causou uma guerra contra
irmão de sua mãe. Cairns (Ibid, p. 269) menciona que a França, fazendo com que a Inglaterra perdesse o
o duque “simpatizava pelo protestantismo e aceitava porto de Calais, seu único território no continente
a liberdade religiosa”. O autor nos esclarece ainda que europeu. Essa situação fez a burguesia ficar ainda
“Somerset persuadiu o jovem rei a introduzir mudanças mais revoltada com Maria Tudor.
que tornariam a reforma na Inglaterra religiosa e teo- Após essa tensão, a Reforma se consolida na
lógica, política e eclesiástica, ao mesmo tempo”. Desse Inglaterra por meio da sucessora de Maria Tudor,
modo, a decisão do Parlamento, em 1547, de permitir Elizabeth I. Cairns (1984, p. 270-271) avalia que nesse
aos leigos tomarem o cálice da Comunhão, repelir as leis período a Inglaterra estava dividida entre protestantis-
de traição, heresia e os Seis Artigos de feição católica, mo e catolicismo, e que Elizabeth I, vendo que o clero
legalizar o casamento de sacerdotes e passar os cultos romano não havia legitimado o casamento de seus
do latim para o inglês fortaleceu os objetivos do mo- pais, assume postura favorável ao protestantismo. O
vimento protestante. Comentando sobre essa última autor ressalta, ainda, que Elizabeth I procurou resolver
reforma, Cairns (1984, p. 270) diz que os problemas sem ter que entrar em conflito aberto
com as forças que apoiavam o Papa, resolvendo se
um ato de uniformidade de 1549 estabeleceu o uso do
posicionar do lado que fosse mais aceito pelo povo da
Livro de Oração Comum, preparado por Cranmer. O Livro
Inglaterra. Essa atitude de sua parte, segundo Cairns
fortalecia o uso do inglês, a leitura da Bíblia e a parti-
(Ibidem), fez com que o próprio povo preferisse “uma
cipação da congregação nos cultos. A segunda edição,
constituição moderada que evitasse os extremos de
mais protestante, publicada em 1552, refletia influências
qualquer facção religiosa”.
calvinistas. As igrejas foram obrigadas a usá-lo por um
Pedro & Cáceres (1976, p. 174), comentando
segundo ato de uniformidade. Com pequenas modifi-
sobre a moderação de Elizabeth I, explicam que a
cações adotadas no reinado de Elizabeth, este é o livro
rainha veio a assinar o Ato de Supremacia, que aboliu
de oração usado pela Igreja Anglicana até hoje.
“novamente a autoridade do Papa sobre a Igreja ingle-
Essas reformas, porém, não exerceram impacto sa”. Os autores ressaltam que a postura da rainha pôs a
muito duradouro, pois Eduardo VI “pelo seu caráter Inglaterra na rota da grandeza e do império, entretanto
corrupto” foi “extremamente impopular” e “afastou o progresso não eliminou transtornos, pois ainda no
da reforma as camadas populares”, conclui em Pedro governo de Elizabeth I “foram perseguidos tanto os
& Cáceres (1976, p. 174). católicos, fiéis seguidores de Roma, como também as
Maria Tudor, filha de Henrique VIII e Catarina de seitas protestantes mais democráticas”.
Aragão, substituiu Eduardo VI e “tentou uma restaura- Paralelamente a esses acontecimentos, em um
ção do catolicismo na Inglaterra [...], reconciliando-se país vizinho à Inglaterra, a Escócia, acontecia uma
com Roma e reintroduzindo a inquisição para queimar reforma mais intensa. Tratava-se da reforma esco-
os hereges” (Ibidem). Maria Tudor reinou durante o cesa, diretamente inspirada no calvinismo. Pedro &
período da contra-Reforma da Igreja Romana, de 1553 a Cáceres (Ibidem) comentam que essa reforma “foi
1558. Católica fervorosa, a rainha obrigou o Palarmento a mais democrática e com uma participação maior das
restaurar as práticas católicas na Inglaterra. Como conse- massas populares”. Os autores esclarecem que a “Igreja
quência, muitos clérigos ingleses perderam suas paróquias Nacional da Escócia, fundada por John Knox, discípulo
e foram obrigados a fugir, por não aceitarem a restauração. de Calvino, rompeu definitivamente, em 1560, com os
Cairns (1984, p. 270) observa que “perto de 300 pessoas, princípios da Igreja Católica”. Os autores descrevem
principalmente do Sul da Inglaterra, foram martirizadas ainda que enquanto a dinastia Tudor oscilava entre a
por sua fé”. Maria Tudor exerceu um regime opressor e Igreja Católica e a Reforma Protestante, Knox, após Ul-
ficou conhecida como a “sanguinária”. rich Zwínglio e João Calvino, batalhava pela extinção do
Apesar de toda a sua influência, a rainha era catolicismo, sendo perseguido pela burguesia reinante
controlada pelos proprietários rurais – a burguesia na Suíça e pelos Stuarts, soberanos na Escócia. Embora
da época. No entanto, estes se opuseram à rainha esse reformador enfrentasse muitas dificuldades, era
quando ela casou-se com Felipe da Espanha, herdeiro grandemente apoiado pelos protestantes.
do trono espanhol. Os burgueses, interpretando a Com a morte de Elizabeth I, a dinastia Tudor
situação da Europa no século 16, temiam que a In- chega ao fim, já que a rainha não deixara um herdeiro
glaterra se tornasse no futuro um país subordinado sucessor. Jaime VI, rei da Escócia, com o nome de
à Espanha, principal potência marítima e colonial. Jaime I, assumiu em 1603 o poder da Inglaterra, dando
Cairns (Ibidem) acrescenta que a aliança formada início à dinastia dos Stuarts, o que levou, então, à união

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entre Escócia e Inglaterra. Jaime I, segundo Pedro & 1564. Para Cairns (Ibidem), foi Elizabeth I quem ini-
Cáceres (1976, p. 181), queria implantar o absolutis- ciou a perseguição ao puritanismo, quando promulgou
mo no país, e, por essa razão, pretendia destruir “o em 1593 um ato que “permitia às autoridades prender
poder nominal (teórico) do Parlamento”. No entanto, os puritanos por faltarem à Igreja Anglicana”. Apesar
os membros puritanos que compunham o congresso das perseguições, o movimento foi tomando força
opuseram-se à política de Jaime I, por serem contrários e ameaçou tornar presbiteriana e congregacional1  a
ao poder absoluto dos reis. Igreja Episcopal Oficial, e obteve o apoio de pessoas
Assim, o monarca passou a intensificar as persegui- importantes, como advogados, comerciantes e mora-
ções ao outro ramo do Protestantismo na Inglaterra, o dores da zona rural.
Puritanismo, o qual recebeu destaque e ligação direta Dentro desse contexto, o puritanismo foi se divi-
com o surgimento dos Estados Unidos da América, dindo em alguns ramos. Cairns (1984, p. 273-274) os
berço de Ellen G. White. classifica em dois grupos principais:
O Puritanismo a) os Puritanos da Igreja Estatal, considerados não
dissidentes, e que defendiam uma reforma dentro
Pedro & Cáceres (1976, p. 174-175) apontam que,
da própria Igreja Anglicana;
a partir do reinado de Elizabeth I, a Igreja Anglicana
b) os Puritanos Separatistas, considerados dissidentes,
“foi uma tentativa de conciliação entre os princípios
e que criticavam a Igreja da Inglaterra por sua “ex-
religiosos protestantes e os católicos [...], não tendo
travagância no vestir, [...] frouxidão na guarda do
sido uma ruptura total com o catolicismo”. Na ver-
domingo e [...] falta de consciência do pecado”.
dade, a Igreja inglesa rompeu relações com o Papa, e
permitiu-se ser subordinada ao Estado. Os favorecidos Dentro do primeiro grupo, destacam-se duas
pela Igreja Anglicana foram os grandes burgueses figuras importantes: Thomas Cartwright (1553-1603)
comerciantes monopolistas e os nobres que compu- e Henry Jacob. Thomas Cartwright, de acordo com
nham a classe média e alta da época, “tendo sido esses Cairns (Ibidem), era um professor de teologia em
dois grupos os elementos integrantes da hierarquia Cambridge que deu ênfase a “reforma da teologia e da
eclesiástica anglicana”, embora o povo de classe baixa eclesiologia [e] se opunha ao sistema episcopal”. Esse
também estivesse envolvido com a Reforma, pois es- líder religioso também acreditava que o governo da
tavam entrando em contato com a Bíblia, por meio da igreja “deveria estar sob o controle de um presbitério
tradução desta para o inglês. de bispos ou anciãos com funções apenas espirituais”.
Além disso, o calvinismo começava a penetrar nas Logo depois, Cartwright estabeleceu os fundamen-
classes mais importantes da população inglesa: a bur- tos do presbiterianismo na Inglaterra. Henry Jacob
guesia manufatureira, o campesinato, os artesãos e o (1563-1624) foi o fundador dos Independentes ou
proletariado nascente. A primeira classe, os burgueses, Congregacionais Puritanos, que não queriam seguir o
foram os responsáveis pela formação da seita calvinista presbiterianismo de Cartwright, e não tendiam para o
puritana, oposta ao absolutismo e ao mercantilismo, separatismo. Cairns (1984, p. 274) ressalta que Jacob
que pregava a intervenção do Estado na economia “foi preso por crer que cada congregação da igreja
e uma postura política que interferia na liberdade da oficial devia ser livre para escolher seu próprio pastor,
propriedade defendida pelo movimento calvinista. determinar seu programa e administrar seus negócios”,
Foram os puritanos, então, que lideraram as re- ou seja, ele queria uma alteração no episcopado da
voluções inglesas do século 17. Cairns (1984, p. 273) Inglaterra e foi castigado por isso.
explica que de 1567 a 1660 eram os puritanos quem Em relação à segunda ramificação, houve três grupos
dominavam os negócios internos da Inglaterra e cons- separatistas. O primeiro foi fundado por Richard Fitz
tituíam um problema para os reis ingleses, que somente e Robert Browne (1550-1633). Os dois pioneiros sepa-
conseguiram subjugar os rebeldes após a derrota da ratistas foram obrigados a procurar refúgio, sendo que
Espanha e do Papa. Browne fugiu para a Holanda, onde escreveu três livros
Segundo Cairns (Ibidem), o puritanismo iniciou-se sobre os princípios do congregacionalismo separatista.
como uma corrente espiritual que considerava a Bíblia O segundo grupo foi fundado por John Greenwood e
como única regra de vida e recusava taxativamente tudo Henry Barrow. Esses líderes modificaram por volta de
quanto fosse mundano. Como movimento organiza- 1587, em Londres, os princípios do congregacionalismo
do, o puritanismo surgiu quando alguns membros da de Browne. O terceiro grupo separatista surgiu por meio
Igreja Anglicana se rebelaram contra os resquícios de de John Robinson, no ano de 1609, em Scrooby, junta-
catolicismo que subsistiam no novo Livro de Orações, de mente com William Bradford (Cairns, 1984).

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Nesse período a perseguição contra os puritanos Carlos I, governante de 1625 até ser executado em
atingiu seu auge. A esse respeito, White (1996, p. 290) 1649, era honrado, corajoso e capaz, embora fraco. Ele
afirma que “o monarca (Jaime I), recém-coroado rei cria firmemente no casamento da monarquia com o
da Inglaterra, declarou que faria com que os puritanos episcopado como direito divino estabelecido por seu
‘se conformassem ou [...] oprimi-los-ia para saírem do pai. Insistiu também na subserviência do Parlamento
país, ou faria coisa pior’” (George Bancroft, História dos e, quando não a obteve, governou sem ele de 1629
Estados Unidos da América). Cairns (1984, p. 274) afirma até 1640. Muitos puritanos, cansados de esperar por
que por volta de 1606, Jacob, fundador do movimento condições melhores na Inglaterra, emigraram para os
puritano independente, “imigrou para a Holanda e se Estados Unidos, entre 1628 e 1640.
fez ministro dos ingleses em Middleburg”. Robinson Desdobramento do Puritanismo na Inglaterra
e o restante do grupo também viajaram rumo às ter-
ras holandesas, onde “encontraram abrigo nas praias Depois da ascensão de Jaime I, o movimento
amigas da República holandesa” (White, 1996, p. 290). puritano cresceu e desenvolveu-se efetivamente na
Cairns (1984, p. 274), comentando sobre o relacio- Inglaterra. Por isso, John Robinson, líder do terceiro
namento entre Jacob e Robinson, afirma que ambos grupo separatista, retornou à Inglaterra a fim de auxiliar
“influenciaram-se mutuamente”. alguns membros independentes em Londres (Cairns,
White (1996, p. 290-291) descreve a situação dos 1984, p. 274). Cairns acrescenta que o puritanismo
puritanos que se exilaram na Holanda: independente ou congregacional teve um início frágil,
porém, a liderança de Oliver Cromwell firmou o grupo
Em sua fuga deixaram casas, bens e meios de vida. Eram até torná-lo mais forte que o presbiterianismo.
estrangeiros em terra estranha, entre um povo de língua e Cromwell foi um personagem importante no forta-
costumes diferentes. Foram obrigados a recorrer a ocupa- lecimento do puritanismo na Inglaterra, sendo um dos
ções novas e a que não estavam afeitos, a fim de ganhar pioneiros da Revolução Inglesa, devido à sua intensa
o pão. Homens de meia-idade, que haviam despendido
influência junto ao rei. Pedro & Cáceres (1976, p. 182)
a vida no cultivo do solo, tiveram agora de aprender
descrevem que, em 1625, Carlos I (1625-1649), filho
ofícios mecânicos. Animosamente, porém, enfrentaram
de Jaime I, desmanchou o Parlamento, iniciando assim,
a situação, e não perderam tempo em ociosidade ou
uma luta entre o poder real e o Parlamento. Por isso,
murmurações. Posto que muitas vezes premidos pela po-
o Parlamento tomou algumas posturas políticas em
breza, agradeciam a Deus as bênçãos que ainda lhes eram
relação à revolta separatista na Irlanda, que, juntamente
concedidas, e encontravam alegria na tranqüila comunhão
com a Escócia e Inglaterra, era governada pelos Stuarts.
espiritual, ‘sabiam que eram peregrinos, e não olhavam
Pedro & Cáceres (Ibidem) tecem alguns comentários
muito para essas coisas, mas levantavam os olhos ao Céu,
sobre o duelo:
seu mais caro país e acalmavam o espírito’ (Bancroft).
Em meio de exílio e agruras, cresciam o amor e a fé. No outono de 1641, explodiu na Irlanda a revolta
Confiavam nas promessas do Senhor, e Ele não faltava separatista. A Irlanda católica opõe-se ao domínio dos
com elas no tempo de necessidade. Seus anjos estavam ao protestantes ingleses. Os deputados partidários do rei
seu lado, para animá-los e ampará-los. E, quando a mão de e os puritanos estavam de acordo em uma questão: era
Deus pareceu apontar-lhes através do mar uma terra em necessário um grande exército para combater os cató-
que poderiam fundar para si um Estado e deixar a seus licos irlandeses. No entanto, estavam em desacordo em
filhos o precioso legado da liberdade religiosa, seguiram outra questão fundamental: com quem ficaria a liderança
eles, sem se arrecear, pela senda da providência. do exército, com o rei ou com os líderes puritanos do
Parlamento? Por isso, os puritanos negam a chefia do
Em 1620, um grupo de separatistas liderados por
exército pelo rei, acusando-o de incapacidade.
Willian Bradford emigrou para os Estados Unidos, no
Mayflower, e desembarcou em Plymouth. Cairns (Ibid, Diante desse contexto, estourou a Guerra Civil
p. 277) acrescenta que um pouco mais tarde, em 1629, (1641-1645), também conhecida como a primeira
alguns anglicanos puritanos chegaram à baía de Mas- fase da Revolução Puritana. Durante esse período,
sachussetts e “foram levados ao congregacionalismo Cromwell, deputado puritano no Parlamento, assumiu
pelos colonos de Plymouth”. Na verdade, muitos puri- o comando do exército parlamentar, e suas tropas con-
tanos ingleses, no período que compreendeu de 1628 a seguiram rapidamente vitórias consideráveis sobre as
1640, buscaram refúgio na América do Norte devido às tropas realistas, graças à reforma militar operada por ele
condições desfavoráveis que enfrentavam sob o reinado mesmo. Em 1645, ele venceu as tropas realistas, embora
de Carlos I. Cairns (Ibid, p. 277) explica que o Parlamento fosse dominado por presbiterianos.

ACTA Científica - Ciências Humanas 2º Semestre - 2006 13


O rei Carlos I, vendo a situação, jogou os presbite- formuladas na Inglaterra e na Europa Ocidental po-
rianos contra os puritanos independentes, convencendo diam ser aplicadas na prática sem o empecilho das
o Parlamento a votar no presbiterianismo como religião leis, costumes e tradições de uma sociedade feudal e
oficial. Com isso, criou-se uma séria de leis repressivas obsoleta”. Nesse “imenso laboratório” os puritanos
contra as outras seitas independentes, tentando, assim, puderam exercer suas crenças sem serem perseguidos,
desativar o exército dominado pelos puritanos. A situ- e outros exploradores aventureiros e livres pensadores
ação, porém, se reverteu “em 1649, quando o exército, puderam exercer seu espírito de liberdade. Spiller
tendo à frente Cromwell, deu um golpe de Estado (Ibidem) afirma que a literatura norte-americana, em
que prendeu os deputados presbiterianos moderados seus primórdios, era um reflexo da realidade da época.
e executou o rei. Assim, iniciou-se a segunda fase da Ele acrescenta, ainda, que
Revolução Puritana: a República Puritana” (Pedro & a diferença entre a América e a Europa residia no fato
Cárceres, 1976, p. 182). de que o que podia ser apenas discutido teoricamente na
Cromwell governou como ditador militar abso- Europa podia ser concretizado na América. A profunda
lutista até 1658, período também conhecido como a revolução religiosa, política e intelectual que envolvera
“ditadura puritana” (Pedro & Cáceres, ibid). Burgess do Renascimento e da Reforma para o Iluminismo e a
(1996, p. 300) destaca que durante o sistema ditatorial Era da Razão tornou-se, nas colônias da orla atlântica,
os teatros e manifestações artísticas eram censurados, o padrão da vida diária. Durante os primeiros duzentos
uma vez que a rigidez puritana não aceitava essa forma anos de sua existência, a literatura norte-americana re-
de divertimento, marco principal do Renascimento. fletia a importância das questões supremas.
Após a morte de Cromwell, seu filho Ricardo assu-
miu o poder como Lorde Protetor. Os ingleses, porém, A colonização puritana
cansados da rigidez puritana, destituíram Ricardo, o
No ano de 1620, em Plymouth, sob a liderança de
qual foi substituído por Carlos II. Com a ascensão de
William Bradford, chegaram os Pais Peregrinos (The Pilgrim
Carlos ao trono, a dinastia Stuart volta ao poder e eli-
Fathers). Spiller (1967, p. 22) diz que os colonos “ao prepa-
mina o domínio político do puritanismo na Inglaterra,
rarem-se para desembarcar do ‘Mayflower’ [...] formularam
cuja influência crescia na América do Norte.
um contrato solene por meio do qual se uniriam pra consti-
O impacto do Puritanismo nos Estados Unidos tuir ‘uma comunidade civil e política’ destinada a ‘proclamar
e sua influência na Literatura a glória divina e promover a difusão da fé cristã’”.
Após a iniciativa, outras colônias surgiram como
A América, primeiramente, recebeu influência da
Salém (1628), Massachussetts Bay (1630), entre outras
expansão marítima e comercial, e, posteriormente, da que ficaram conhecidas como as colônias da Nova In-
liberdade que a Reforma Protestante oferecia. Em vista glaterra. Camargo (1986, p. 3), contudo, explica que “a
disso, os Estados Unidos eram colonizados por homens atmosfera intelectual das colônias da Nova Inglaterra
interessados apenas em explorar a terra e dela tirar todo era mais intensa do que a de outras colônias, pois um
benefício financeiro possível. Entre eles, encontravam- bom número dos 20 mil ingleses que se estabeleceram
se aqueles que, conforme relata Spiller (1967, p. 16), na Nova Inglaterra eram pessoas instruídas e de grande
tentavam “justificar suas próprias empreitadas (tomar erudição” (tradução nossa).
posse de novas terras, riquezas naturais e povo) afir- Em relação à literatura, Camargo (Ibidem) relata que
mando que assim faziam em nome dos soberanos que “a maior parte da produção literária dos habitantes da
tinham patrocinado suas viagens e exigido descrições Nova Inglaterra possuía um teor religioso, quer seja em
sobre as condições geográficas e econômicas prevalen- forma de sermões diários ou mesmo biografias. É por
tes no Novo Mundo, a fim de facilitar as viagens dos essa razão que a produção literária da Nova Inglaterra
próximos homens que viriam depois deles, provindos é freqüentemente mencionada como prosa ou poesia
da mãe pátria”. Os primeiros a chegarem aos Estados puritana” (tradução nossa).
Unidos se estabeleceram ao sul do país, criando a pri-
meira colônia, Virgínia. Outro grupo, porém, procurava A estrutura político-social das colônias da
por liberdade religiosa, por isso, povoaram a região da Nova Inglaterra
Nova Inglaterra, criando núcleos coloniais como Ply- Spiller (1967, p. 22), comentando sobre a estrutura
mouth, Pensilvânia, Masschussetts, Connecticut, Rhode político-social das primeiras colônias, afirma que todas
Island e mais tarde outras colônias ao norte.2  “aceitaram a religião como uma lei, um hábito e um objeto
Spiller (Ibid, p. 21) define os Estados Unidos de suas atenções diárias, porque isso lhes tinha sido negado
como um “imenso laboratório no qual as idéias em seu país de origem e causado sua peregrinação.”

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Os primeiros puritanos viam a “religião como uma colonial encontrou sua expressão mais duradoura”.
lei”, o que significava que Igreja e Estado estavam Spiller acredita que o teólogo construiu “os alicerces
intimamente ligados, à semelhança do que ocorria na de um idealismo racionalista na América”, além de ter
Europa, de onde haviam peregrinado (Spiller, 1967, preparado “o terreno [...] para a floração do grande
p. 22). High (1986, p. 8) menciona que, de acordo com movimento literário e intelectual do século seguinte”.
essa estrutura, muitos líderes puritanos consideravam Edwards cria “na doutrina calvinista da soberania
o Estado como uma teocracia, no qual as leis da so- divina absoluta [e na] depravação intrínseca do ser
ciedade deveriam ser iguais às leis da religião e quem humano”, pilares do puritanismo calvinista. Ele, ainda,
as quebrasse merecia ser punido. “sentiu-se combalido pela secularidade de seus fiéis e
White (1998, p. 290) critica essa estrutura política, dedicou-se à tarefa de torná-los conscientes da peca-
quando afirma que “sinceros e tementes a Deus como minosidade de suas vidas”. Os esforços de Edwards
eram, os peregrinos não compreendiam ainda o grande ficaram conhecidos como o Despertar Supremo, ou
princípio da liberdade religiosa. A liberdade, por cuja Grande Despertamento, que “foi parte de um movi-
obtenção tanto se haviam sacrificado, não estavam mento evangélico que varria toda a Europa Ocidental,
igualmente dispostos a conceder a outros.” a Inglaterra e a América ”.3
Spiller (Ibid, p. 22) lembra que houve outros co-
lonizadores puritanos que discordavam dessa estrutura
O Grande Despertamento e o surgimento da
política, como Roger Williams, o qual, juntamente com Igreja Adventista do Sétimo Dia
outros dissidentes da ortodoxia puritana, “utilizaram a Ao tratar dos movimentos religiosos que influen-
linguagem religiosa para difundir idéias e conceitos que ciaram o surgimento da Igreja Adventista do Sétimo
antecipavam a teoria revolucionária dos direitos do ho- Dia, Pereira (2005) conta que por volta do ano 1647,
mem”. White (1998, p. 293), avaliando positivamente os George Fox fundou na Inglaterra a Sociedade dos
conceitos de Roger Williams, comenta que “o princípio Amigos, “cujos adeptos logo foram conhecidos como
fundamental da colônia de Rogério [sic] Williams era ‘que quacres (quakers, ‘trêmulos’)4 . Em outros países da
todo homem teria liberdade para adorar a Deus segundo Europa, além da Inglaterra, surgiram diversos movi-
os ditames de sua própria consciência’ (Martyn). Seu pe- mentos, como o “pietismo5 , surgido na Alemanha
queno Estado – Rhode Island – tornou-se o refúgio dos no final do século 17”. O movimento “exerceu con-
oprimidos, e cresceu e prosperou até que seus princípios siderável influência sobre o metodismo, fundado no
básicos – a liberdade civil e religiosa – se tornaram as século 18 pelo teólogo inglês John Wesley, que, com seu
pedras angulares da República Americana”. irmão Charles e seu amigo George Whitfield, difundiu
O pensamento puritano e sua influência na entre os estudantes da Universidade Oxford uma série
literatura da Nova Inglaterra de métodos de vida cristã para reativar o sentimento
religioso” (Pereira, ibid).
High (1986, p. 6-7) relata que as obras literárias da Em 1739, George Whitfield dirigiu-se à América
Nova Inglaterra envolviam, em grande parte, o relato e desempenhou papel importante no Grande Reaviva-
de histórias, e que, de acordo com o pensamento pu- mento norte-americano. Whitfield “uniu seus esforços
ritano, a “história transcorria de acordo com o ‘plano [a vários outros] pregadores reavivalistas ao viajar por
de Deus’”. Desse modo, a Nova Inglaterra era vista todas as colônias em sete visitas, entre 1738 e 1769,
pelos puritanos como a “terra prometida” da Bíblia, [...] em todas as ocasiões pregava-se o reavivamento”.
envolvida pelo drama da “luta entre Cristo e Satanás”. Assim, é possível concluir que “o Grande Avivamento
Com base nessas considerações, é possível definir as foi a contrapartida norte-americana do pietismo na
principais características ideológicas da literatura purita- Europa e do avivamento metodista na Inglaterra”
na: a luta entre o bem e o mal e a importância do plano (Cairns, 1981, p. 316).
divino na história, segundo uma visão bíblica. Pereira (2005), explorando mais o assunto, es-
Entre os muitos autores que divulgaram o pensa- clarece que as doutrinas do metodismo e sua difusão
mento puritano durante o período colonial americano, na Europa e nos Estados Unidos representaram um
destaca-se Jonathan Edwards (1703-1758), devido sua “redespertar do protestantismo, caracterizado pela
influência no surgimento de importantes movimentos na associação à teologia tradicional de uma espiritualidade
América, especialmente o Grande Despertamento. sentimental e por uma profunda preocupação com
Segundo Spiller (Ibid, p. 23), Jonathan Edwards foi os problemas morais e sociais”. O autor acrescenta,
“o último e maior de todos os teólogos puritanos”, pois ainda, que esses movimentos ocasionaram também o
por seu intermédio “a intensidade espiritual da época surgimento de grupos menores com “características

ACTA Científica - Ciências Humanas 2º Semestre - 2006 15


próprias, [...] como os adventistas, pentecostais e tes- na Reforma Protestante do século 16, e, de maneira
temunhas de Jeová, entre outros”. mais específica, no puritanismo inglês levado para a
Corroborando o pensamento de Pereira sobre a América do Norte pelos colonos que se estabeleceram
relação entre a Igreja Adventista do Sétimo Dia e o na Nova Inglaterra.
Grande Despertamento, Ball (1981, p. 2) afirma que o High (1986, p. 27) contribui para essa conclusão ao
movimento adventista, como existe atualmente, surgiu explicar que, no período colonial, praticamente nenhum
na América do Norte durante a “primeira metade do romance havia sido escrito, embora o Romantismo
século 19”, e que sua existência é um “fato histórico estivesse em alta em outros lugares do globo. A aversão
indiscutível, com raízes no Grande Despertamento”. O às manifestações românticas se deu devido ao fato de
autor defende que muitas das crenças dos Adventistas que os americanos puritanos consideravam o romance
do Sétimo Dia evidenciam os ensinos de Wycliff e como uma forma de literatura “perigosa [que] colocava
Wesley, fundador do Metodismo, que, na realidade, foi idéias ‘imorais’ na mente dos jovens”.
o berço religioso de Ellen G. White. Em relação ao teatro, High (1986, p. 27) ressalta
Considerando as afirmações de Ball, Pereira e que “os puritanos da Nova Inglaterra, e alguns outros
outros escritores, percebe-se os elos entre a Igreja grupos protestantes, acreditavam que o teatro era ‘uma
Adventista do Sétimo Dia e os demais movimentos invenção do Diabo’, nocivo à moral das pessoas”. Essa
ligados direta ou indiretamente ao puritanismo. Ball posição seguramente tinha clara ligação com o puri-
(Ibidem) confirma esse fato, ressaltando que “embora tanismo inglês, pois convém lembrar que no período
a corrente puritana provavelmente não seja a única da Ditadura Puritana de Oliver Cromwell, na Inglaterra,
linhagem hereditária a ser traçada, ela representa muito todos os teatros foram fechados, certamente pelas
provavelmente a linhagem dominante”. Ball (Ibid, razões apresentadas acima.
p. 3) acrescenta que, do ponto de vista teológico, “o Voltando ao discurso de Ellen G. White sobre o
adventismo do sétimo dia pode ser considerado como assunto, Davis (2002, p. 44) confirma que “a maioria
uma síntese de certas doutrinas que reapareceram na dos pioneiros da Igreja Adventista do Sétimo Dia eram
Reforma e amadureceram em grande medida, se não originalmente membros das congregações protestantes
inteiramente, no puritanismo do século 17”, e que, conservadoras da Nova Inglaterra [...] e compartilhavam
assistiu ao renascimento no Grande Despertamento da mesma atmosfera de antagonismo e desconfiança em
do século 18. relação às manifestações artísticas” (tradução nossa).
A formação discursiva e ideológica do pen-
Em outras palavras, todos participavam de uma mesma
samento de Ellen G. White a respeito do
formação ideológica e discursiva. Por isso, “não é de se
romance ficcional e drama
admirar que Ellen G. White, de formação metodista, re-
vele postura bastante conservadora e geralmente negativa
Foucault enfatiza a importância das condições em relação à ficção e o drama” (Ibidem).
históricas, ideológicas e institucionais para o apareci- Seguindo a mesma linha de análise, surge uma segun-
mento dos enunciados. Por isso, este artigo procurou da pergunta: por que Ellen G. White criticou severamen-
apresentar o quadro histórico, ideológico e cultural que te os editores da revista Sings of the Times6  – um periódico
pode ter influenciado a formação discursiva e ideoló- oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia – por terem
gica dos conceitos de Ellen G. White sobre romance escrito um artigo enaltecendo Shakespeare e suas obras?
ficcional e drama. Sem levar em conta os aspectos éticos, que não são o
Depois da análise histórica apresentada, voltamos a foco do trabalho, parece natural que Ellen G. White,
questão básica deste trabalho: por que Ellen G. White tendo vindo de uma linha histórica diretamente ligada à
foi tão contundente e crítica em relação a romances Reforma Protestante, que por sua vez foi fruto do hu-
ficcionais e dramas teatrais? Ao descartar outros fatores manismo bíblico-cristão, tenha expressado desconfiança
que podem ter levado a autora a manter essa postura, em relação a um escritor que é o principal representante
é possível afirmar que o fato de Ellen G. White ter do Renascimento inglês, e cujos fundamentos firmam-se
usado “determinado enunciado e não outro” (Perez, no antropocentrismo greco-latino.
1999, p.42, com base em Foucault, 2002) reflete uma Por fim, é necessário refletir sobre uma terceira
formação ideológica e discursiva regida por “deter- questão: Por que Ellen G. White recomendou a leitura
minadas ‘regras de formação’” (Brandão, 2002, p. da obra de John Bunyan, The Pilgrim’s Progress (O pro-
31). Ou seja, os enunciados de Ellen G. White sobre gresso do Peregrino), sendo esta uma obra também de
romance ficcional e drama refletem certas condições de ficção7 ? E por que colocou um poema de Henry W.
existência que se fundamentam, em primeira instância, Longfellow em um dos seus livros ?8 Desconsiderando

16 ACTA Científica - Ciências Humanas vol. 2, n. 11


o conteúdo presente nas demais obras desses autores, No entanto, as reflexões aqui levantadas po-
deve-se levar em conta, com base em Cairns (1984, p. derão ser relevantes para educadores adventistas
279), que John Bunyan era figura de destaque entre os e não-adventistas, principalmente professores de
dois maiores escritores puritanos da literatura inglesa. literatura que freqüentemente se deparam com os
Portanto, não é de se admirar que Ellen G. White tenha enunciados críticos de Ellen G. White sobre ficção e
recomendado um autor diretamente ligado a essa tradi- drama. Muitos docentes estão familiarizados apenas
ção ideológica e discursiva. Em relação ao segundo au- com a tradição literária renascentista, base principal
tor, vale mencionar que Longfellow, segundo Camargo e exclusiva da literatura de língua portuguesa, e, por
(1986), foi um escritor romântico ligado à tradição da essa razão, podem ter dificuldades para entender o
Nova Inglaterra, com temas, entre outros, de teor mora- contexto ideológico-discursivo da autora, correndo
lista e didático, bastante comuns na tradição puritana. até o risco de ver sua postura sobre romance ficcional
e drama como anacrônica ou fruto de idiossincrasias
Considerações finais
pessoais. Assim, o propósito dessa analise é que esses
O estudo procurou refletir sobre as raízes históri- professores, mesmo que não concordem com a visão
cas, culturais e ideológicas do pensamento de Ellen G. de mundo da autora, possam estar abertos a analisar
White a respeito do romance ficcional e drama, tendo seu pensamento de maneira mais imparcial e passar
como embasamento teórico alguns conceitos de Fou- a vê-la sob uma ótica mais positiva.
cault (2002) sobre formação ideológica e discursiva. A O artigo também poderá ser útil a estudantes de
abordagem adotada neste artigo, contudo, não é a única literatura e cultura anglo-americana, já que apresenta
maneira de analisar o assunto, pois outros enfoques as bases históricas e ideológicas de um movimento
poderiam ser dados para explicar os fundamentos dos político e religioso que influenciou a história inglesa e
conceitos de Ellen G. White sobre ficção e drama. Na norte-americana e suas respectivas literaturas.
realidade, a intenção do trabalho não é validar indis- Finalmente, espera-se que o leitor receba um en-
cutivelmente as teorias de Foucault, já que a análise riquecimento histórico-cultural a partir das reflexões
embasada nesse autor foi bastante limitada, atendo-se apresentadas, e, se forem admiradores do pensamento
a um aspecto apenas do pensamento da escritora. Com de Ellen G. White, assim como os autores, esteja mais
efeito, há fortes evidências de que Ellen G. White preparado para compreender, valorizar e divulgar seu
mantinha concepções em diferentes áreas do saber que pensamento sobre o assunto.
não se adequavam à formação ideológica e discursiva
de seus contemporâneos, e, nesse caso, as teorias de
Foucault poderiam ser questionadas.

Notas
1
Sistema de organização de igrejas que abrem espaço à parti- (Pereira, 2005, disponível em: http://orbita.starmedia.
cipação leiga na direção da igreja em oposição ao sistema epis- com/~hyeros/index.html).
copal, cujas igrejas são dirigidas por um clero estabelecido. 5
Esse movimento nasceu como reação à teologia racionalista
2
Blair et al. (1968) discute as diferenças marcantes entre esse e ao dogmatismo que dominavam na igreja oficial alemã, e
dois grupos que definiram a feição cultural norte-americana. teve seu maior impulsor o pastor luterano Philipp Jakob
Ver capítulo 1, Planters and Puritans, p. 97-99. Spener, autor de Pia desideria (1675; Piedosos desejos). Nessa
3
Para uma discussão histórica e teológica do Grande Des- obra, ele defendeu o sacerdócio universal dos fiéis, a leitura
pertamento na América, ver Cairns (1981, p. 316-318). da Bíblia, um ensino teológico mais piedoso, a necessidade
4
“Nome procedente de uma frase pronunciada certa ocasião da oração individual e a formação de grupos para o estudo
por seu fundador: ‘Honrai a Deus e tremei ante sua palavra.’ das Sagradas Escrituras (Ibidem).
Os quacres concedem importância fundamental à palavra 6
Ver Gazeta (1991, p. 41-45).
interior de Deus, de quem dizem receber inspiração direta; 7
Reading Sabath, apud Gazeta (1991, p. 41-45).
não admitem sacramento algum; rejeitam as idéias calvinis- 8
Ver White E. G. Educação.Tatuí, São Paulo: Casa Publica-
tas sobre a predestinação, e recusam-se a pegar em armas” dora Brasileira, 2001.

ACTA Científica - Ciências Humanas 2º Semestre - 2006 17


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18 ACTA Científica - Ciências Humanas vol. 2, n. 11

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