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As experiências

diversidade sexual e
gênero em quilombos
nordeste e do norte
Brasil: Para início
conver
sd
e de As experiências da
s do gênero diversidade sexual e de
em quilombos do
e do nordeste e do norte do
Brasil: Para início de conversa.
o de
rsa.
FABIANO GONTIJO
Professor Associado, PPGA/UFPA.

B R U NO R OD R I G O C A RVA L HO D O M I N G U E S

Bacharelando em Ciências Sociais, UFPA.

IGOR ERICK
Bacharelando em Antropologia, UFOPA
Gontijo, Fabiano | Domingues, B. R. C. | Erick, Igor

AS EXPERIÊNCIAS DA DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO


EM QUILOMBOS DO NORDESTE E DO NORTE DO BRASIL:
PARA INÍCIO DE CONVERSA.
Resumo
Trata-se aqui de iniciar uma reflexão sobre as experiências da diversidade
sexual e de gênero em contextos quilombolas brasileiros – a partir de
um quilombo situado na região Nordeste e um outro, na região Norte
–, com base na crítica às lacunas apresentadas tanto nos estudos sobre
etnicidade e/ou sobre quilombos quanto nos estudos de gênero e sexu-
alidade no que diz respeito a essa experiência.
Palavras-chave: quilombos, diversidade sexual e de gênero, marcadores
sociais da diferença.

THE EXPERIENCES OF SEXUAL AND GENDER DIVERSITY IN


QUILOMBOS OF THE NORTHEASTERN AND NORTHERN RE-
GIONS OF BRAZIL: TO BEGIN WITH
Abstract
This paper presents a preliminary discussion on the experiences of se-
xual and gender diversity in the context of Brazilian quilombos – from
a quilombo situated in the Northeastern and another in the Northern
region of the country – based on the criticism on the presented gaps
both in the studies about ethnicity and/or quilombos and in the studies
of gender and sexuality with regard to this experience.
Keywords: Quilombos, sexual and gender diversity, markers of social
difference.

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As experiências da diversidade sexual e de gênero

LAS EXPERIENCIAS DE LA DIVERSIDAD SEXUAL Y DE GÉNE-


RO EN COMUNIDADES DE CIMARRONES EN EL NORDESTE Y
EN EL NORTE DE BRASIL: PARA DAR INICIO A LA CONVER-
SACIÓN
Resumen
El texto intenta dar inicio a una reflexión sobre las experiencias de diver-
sidad sexual y de género en contextos de quilombos brasileros – a partir
de una comunidad de cimarrones ubicada en la región Nordeste y otra
en la región Norte– basada en una crítica tanto a los vacíos presentes en
los estudios de etnicidad y/o sobre quilombos, como en los estudios de
género y de sexualidad en lo que concierne a esta experiencia.
Palabras clave: comunidades de cimarrones, diversidad sexual y de géne-
ro, marcadores sociales de diferencia.

Endereço do autor para correspondência: Avenida Presidente Vargas,


499/402. Bairro Campina. CEP: 66017-000. Belém - PA.

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APRESENTAÇÃO da arte” dos estudos sobre quilombos


e quilombolas no Brasil, nem fronteiras
Quando se pensa em quilombos no
étnicas e etnicidade, territorialidades
Brasil, as imagens que vêm à mente
específicas, conflitos de base étnica,
talvez sejam, num primeiro momen-
etc. Não era esse o nosso objetivo. A
to, aquelas dos dolorosos movimen-
nossa intenção é a de apresentar um es-
tos históricos de resistência, acresci-
boço de interpretação sobre a maneira
das daquelas, não menos dolorosas,
como alguns homens quilombolas fa-
dos processos étnicos e políticos de
lam de suas vidas e, assim, constroem
reivindicação territorial atuais de des-
socialmente e formulam culturalmente
cendentes de africanos escravizados no
suas experiências, quando são conside-
passado colonial. Falar de quilombo é,
rados pelos seus pares como homens
pois, tratar de origens e raízes, reminis-
que se relacionam afetiva e sexualmen-
cências e tradições, ancestralidade, he-
te com outros homens. Essas vidas
ranças e diferenças culturais, adaptação
afetivas se desenrolam obviamente em
e resistência, territórios e conflitos, etc.
Há uma vasta literatura brasileira sobre meio a definições de fronteiras étnicas,
quilombos e quilombolas, englobando territorialidades específicas, conflitos
as mais diversas áreas do conhecimen- de base étnica, etc.
to, sobretudo as Ciências Humanas –
devido às especificidades identitárias e
DOS QUILOMBOS AOS QUILOMBO-
às reivindicações territoriais, que levam
a um interesse maior por parte de his- LAS
toriadores, antropólogos, sociólogos Segundo Marques e Gomes (2013:
e juristas pela “questão quilombola”.1 137), “[o] reconhecimento do direito
Essa literatura aborda basicamente as ao território no qual as comunidades
temáticas relativas a essas duas ima- negras desenvolvem seus modos de
gens, dentre outras mais. Nela, não fazer e viver tem sido garantido em
conseguimos achar estudos específicos diversas Constituições na América La-
sobre as experiências da diversidade tina.” As lutas e reinvindicações dos
sexual e de gênero em contextos qui- movimentos sociais e das comunida-
lombolas2. des rurais negras na década de 1970 e
Diante de tal constatação, resolvemos as mudanças políticas ocorridas na dé-
iniciar uma reflexão sobre essas expe- cada de 1980 desembocaram na Cons-
riências a partir dos resultados prelimi- tituição de 1988 e a garantia do reco-
nares das análises de algumas narrativas nhecimento da propriedade definitiva
biográficas ou relatos de vida de quatro das terras ocupadas por “remanescen-
rapazes de dois quilombos – um situ- tes das comunidades de quilombos”,
ado na Mata dos Cocais, no norte do conforme estipulado pelo Artigo 68
estado do Piauí; o outro, na Amazônia do Ato das Disposições Constitucio-
paraense. Sendo assim, o/a leitor/a nais Transitórias (ADCT). Em 2003,
não encontrará nesse artigo qualquer o Decreto Presidencial 4.887 de 20 de
tentativa de produção de um “estado novembro regulamentaria o Artigo 68

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do ADCT. O Artigo 2º desse Decreto geralmente se baseavam na percepção


define os sujeitos quilombolas da se- de que as construções identitárias são
guinte maneira: flexíveis, os pertencimentos, porosos, e
“Consideram-se remanescentes das os fluxos culturais, dinâmicos.
comunidades dos quilombos, para A pluralidade de significados acerca do
os fins deste Decreto, os grupos sujeito quilombola, aliado ao “racismo
étnico-raciais, segundo critérios de
à brasileira” (DaMatta 1987; Guima-
auto atribuição, com trajetória his-
tórica própria, dotados de relações
rães 2004; Munanga 2007; Nogueira
territoriais específicas, com presun- 2007), pode ter acarretado uma espécie
ção de ancestralidade negra relacio- de folclorização (por que não dizer feti-
nada com a resistência à opressão chização”) das questões relativas às re-
histórica sofrida.” alidades identitárias quilombolas. Para
Uma ampla discussão crítica se desen- demonstrar essa folclorização, Leite
cadeou a partir desse marco jurídico (1999: 125) citou seu incômodo diante
para deliberar sobre a validade de cate- de perguntas que lhe foram feitas em
gorias como “remanescentes” (pensa- duas ocasiões: na primeira, a autora é
da como algo que estaria em vias de ex- perguntada sobre o que é um remanescente
tinção) e “quilombos” (pensada como de quilombo? e se seria possível, durante
uma unidade fechada e coesa), como um voo, reconhecer, entre os passagei-
bem observou Leite (2000). A expres- ros da aeronave, um remanescente; na
são “remanescentes das comunidades segunda, a autora é indagada por um
de quilombos” suscitou muitos ques- professor do ensino básico sobre onde
tionamentos sobretudo por “não cor- ele poderia encontrar um quilombo ver-
responder à autodenominação destes dadeiro para levar seus alunos em uma
mesmos grupos, e por tratar-se de uma excursão.
identidade ainda a ser politicamente Durante os preparativos de nossa pes-
construída” àquela altura (Leite 2000: quisa, essa “folclorização” tomou a
341). Destacou ainda que “a vastidão forma de perguntas, por parte de al-
de significados, como concluem vários guns colegas acadêmicos, por exem-
estudiosos da questão, favorece o seu plo: “Como assim?! Tem homossexu-
uso para expressar uma grande quan- al em quilombo?” e “No interior não
tidade de experiências, um verdadeiro tem gay, menos ainda em quilombo”.
aparato simbólico a representar tudo o Talvez isso se dê, por um lado, pela
que diz respeito à história das Améri- ausência de publicações sobre a temá-
cas” (Leite 2000: 341). A partir daí, de- tica, como já constatamos em outros
senvolveu-se uma série de estudos para momentos (Gontijo 2015; Gontijo &
problematizar a categoria “quilombo” Erick 2015), ou até mesmo pelas múlti-
e tornar mais visível o protagonismo plas formas que tomam o preconceito
político dos sujeitos quilombolas, suas racial e o discriminação sexual presen-
múltiplas formas organizativas e seus tes em nossas experiências sociais co-
diversos processos de produção de tidianas, que sustentam a formulação
pertencimento étnico. Esses estudos cultural do corpo negro a partir da he-

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terossexualidade compulsória, do ideal Neste sentido, parece se confirmar que


reprodutivo (Rich 1983) e de um certo há certa fetichização e/ou exotização
tipo de determinismo biológico, assim do homem negro, seja este urbano,
como o corpo camponês, o corpo in- rural, interiorano e/ou etnicamente
dígena e o corpo interiorano estudado diferenciado, no imaginário formulado
por um (ainda) pequeno número de culturalmente sobre a raça no Brasil,
pesquisadores (Ferreira 2006; Gonza- politicamente instituído e reproduzido
lez 1984; Moutinho 2004a, 2004b; Mc- no cotidiano das experiências sociais.
Callum 2013). No imaginário constru- Além do mais, como geralmente o qui-
ído sobre o quilombola e no Decreto lombola é visto como pertencente ao
de 2003, quilombola teria que ser for- universo rural, tem-se uma idealização
çosamente um sujeito negro. Junqueira de seu corpo como sendo bíblico, sagra-
(2012: 12) nota, por exemplo, que: do e puro, não cabendo, pois, de modo
“Homens socialmente negros são algum, sua percepção enquanto corpo
em geral percebidos como “ne- sexualizado, erótico e desejante (Ferreira
gros de verdade” se e somente se 2006).
apresentarem determinados dotes A partir dessas considerações acerca
“naturais”, “próprios da raça”, tais
dos processos de folclorização das re-
como: abundante virilidade – su-
posto atributo de uma acentuada
alidades quilombolas (e da fetichização
masculinidade heterossexual – e dos corpos negros que estariam a elas
habilidade para determinados rit- atrelados) é que se justifica a necessi-
mos, danças, esportes e trabalhos. dade de trazer ao debate e fomentar a
Deles se espera que ajam segundo produção de conhecimentos sobre as
um igualmente “natural” pendor à formas identitárias ou pertencimentos
malandragem, à indolência e à pre- “desviantes” do padrão heterossexual
dação sexual.” compulsório, para além do contexto
Kilomba ([2010] 2016: 174), por sua urbano brasileiro, como já apontamos
vez, acrescenta que: em outro momento (Gontijo & Erick,
“No mundo conceitual branco, o 2015).
sujeito Negro é identificado como Compartilharemos, a partir daqui, os
o objeto ‘ruim’, incorporando os relatos das experiências de Pedro e Dê-
aspectos que a sociedade branca nis, ambos moradores de um quilombo
tem reprimido e transformando em situado no centro-norte do estado do
tabu, isto é, agressividade e sexua- Piauí, na Mata dos Cocais (o primei-
lidade. Por conseguinte, acabamos
ro, 24 anos, manicure; e o segundo, 22
por coincidir com a ameaça, o peri-
anos, quebrador de coco de babaçu), e
go, o violento, o excitante e também
o sujo, mas desejável – permitindo de Beto e Alan, ambos moradores de
à branquitude olhar para si como um quilombo situado na parte leste do
moralmente ideal, decente, civiliza- Arquipélago do Marajó, na Amazônia
da e majestosamente generosa, em Paraense (o primeiro, 21 anos, estudan-
controle total e livre da inquietude te universitário, militante/ativista polí-
que sua história causa.” tico que luta por melhorias das condi-

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ções de vida dos quilombos da região dores não tardaram em perceber que,
onde reside; o segundo, 19 anos, estu- além de Pedro, havia outros rapazes
dante do Ensino Médio, que sonha em que não escondiam totalmente seu in-
sair do quilombo para morar na capital teresse afetivo e sexual por outros ra-
e fazer fluir seus desejos livremente).3 pazes, como Dênis.
Esses relatos devem contribuir para Pedro e Dênis são amigos de longa
mostrar como alguns marcadores so- data: o primeiro, afeminado, mas se
ciais da diferença, tais como corpora- recusa em se “travestir totalmente de
lidade, ruralidade, racialidade, etnicida- mulher”, embora tenha as unhas sem-
de, gênero e sexualidade, são acionados pre muito bem cuidadas, use batom
situacionalmente. Assim, será possível “cor de pele” nos lábios, delineie as
propor um conhecimento alternati- sobrancelhas e tenha cabelo “sempre
vo complementar sobre os modos de bem tratado, alisado”5; o segundo, tra-
vida de sujeitos quilombolas: eis a nos- veste-se para sair à noite, principalmen-
sa proposta para iniciar uma conversa te para ir às festas nas diversas comuni-
mais ampla sobre as múltiplas facetas dades quilombolas ou rurais da região,
das diversificadas realidades quilombo- usa shorts e blusas femininas durante
las no Brasil. o dia, mas não usa maquiagem. Além
da amizade, um segredo une os dois
rapazes: a relação amorosa que Dênis
DA MATA DOS COCAIS PIAUIENSE, mantinha com Antônio, o irmão mais
PEDRO E DÊNIS: A DIFÍCIL GESTÃO novo de Pedro, “um homem mesmo,
DOS FLUXOS DE AFETOS. homem de verdade, ele come homem
Conversando com uma colega de tra- e mulher”, segundo Pedro. O triângulo
balho, na Universidade Federal do relacional estava montado.
Piauí, Fabiano Gontijo4 foi informado A comunidade em questão está espar-
de que, numa comunidade quilom- ramada nas proximidades de uma fa-
bola onde ela atuava junto com uma zenda do Século XIX em ruínas. Nes-
equipe de pesquisadores brasileiros e sa fazenda, trabalhavam os ancestrais
estrangeiros, havia um rapaz, Pedro, escravizados das 62 famílias (pouco
bastante “peculiar” pela maneira como menos de 350 pessoas) que atualmente
cuidava zelosamente de suas unhas. Na compõem a comunidade. Na década
comunidade, segundo a colega, todos de 1990, a comunidade se organizou
diziam que ele era homossexual. Após para solicitar que os proprietários, que
conseguir a autorização das lideranças não apresentavam mais interesse eco-
quilombolas da comunidade, Fabiano nômico pela fazenda, a vendessem. No
Gontijo partiu com dois estudantes início da década de 2000, com recur-
para um breve período de observação sos de uma entidade estrangeira e da
direta e de conversa com Pedro, exa- Prefeitura, a fazenda foi desapropriada
tamente no momento em que estava e a propriedade da terra foi concedida
acontecendo uma das festividades da à associação de produtores rurais local
região. Ao chegarem lá, os pesquisa- em regime de comodato por tempo in-

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determinado. A certificação da comu- de rural (ainda não reconhecida como


nidade como “remanescentes de qui- quilombo) e se mudou para a atual
lombos” se deu logo em seguida, em quando tinha 10 anos, com sua mãe e
meados da década6. seu irmão, para morar próximo a um
Entre palmeiras de cocais (babaçu, tio viúvo. Na outra comunidade, sua
buriti e carnaúba7, etc) e árvores fru- mãe deixou alguns filhos mais velhos
tíferas, encontram-se as casas, em sua e o marido. Pedro não tem notícias do
maioria de alvenaria8, e áreas de hortas pai no momento da entrevista. Com
e plantações. A comunidade margeia esse tio, Pedro e o irmão trabalhavam
uma rodovia estadual que liga a sede no roçado, enquanto a mãe extraía o
de dois munícipios pequenos do nor- óleo do babaçu, “quebrava coco”. Ao
te piauiense. Se há um centro espacial concluir a quarta série do ensino fun-
na comunidade, talvez este seja o lo- damental, Pedro teve que abandonar a
cal onde se encontra a igreja católica e escola para se dedicar mais à lavoura.
um tamarineiro que sombreia o largo. Ele conta que, desde essa época, co-
Na igreja, além dos rituais católicos, meçou a cuidar das mãos e das unhas.
acontecem as principais reuniões de Com a morte do tio, a mãe de Pedro
caráter político e administrativo local, passou a cuidar também das três sobri-
momento em que as lideranças dialo- nhas órfãs.
gam com os membros da comunidade. Alguns anos depois de chegar à co-
As famílias, em sua grande maioria, são munidade, conheceu Lourival, um ra-
agricultoras: dominam todo o proces- paz com quem manteve inicialmente
so de produção agrícola (arroz, feijão uma relação de amizade muito forte,
e milho são os principais produtos) e a ponto de se tornar em seguida uma
também de distribuição e comercializa- relação amorosa fulminante. Pedro e
ção dos produtos. Programas de trans- Lourival se iniciaram sexualmente jun-
ferência do Governo Federal comple- tos, um com o outro, quando tinham
mentam a renda familiar, sobretudo o 19 anos, embora Pedro já tivesse tido
Bolsa-Família. Uma atividade de gran- uma relação afetiva com um primo,
de relevância que merece destaque é a quando tinham, ambos, cinco anos de
extração do óleo do babaçu, trabalho idade. Pedro conta que: “sempre fui
tradicionalmente realizado pelas mu- igual uma mulher do Lourival, nunca
lheres (as “quebradeiras de coco”), teve esse negócio de querer... fazer de
para, por um lado, a fabricação de sa- outro jeito...”. Quase todas as noites,
bão, sabonete e cosméticos em geral os dois se encontravam, após as 22hs,
para a comercialização e, por outro, o para conversar e ir “pra outro canto,
uso doméstico na culinária local; en- assim, mais escondido, assim, na beira
fim, a casca do babaçu é usada para de um caminho ou na beira do mato.”
aquecer os fornos de barro, existentes Lourival começou a namorar também
em praticamente todas as residências9. mulheres, o que deixou Pedro bastante
Pedro tinha 24 anos no momento da entristecido. A decepção de Pedro au-
entrevista. Nasceu em outra comunida- mentou ao saber que Lourival também

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ficava com outros rapazes: “pegava os solteiro, só rapaz solteiro. Depois


rapazes por trás, nunca pela frente.” do Lourival, não quero mais namo-
Um dia, Pedro resolveu terminar o re- ro, não. Quero é aproveitar. Quero
lacionamento, quando ambos estavam é brincar.”
bêbados. Hoje em dia, são muito ami- Pedro informou que havia outros ra-
gos, sempre se encontram nos bares e pazes afeminados na comunidade que
festividades, mas evitam ir para a “beira “ficavam” com rapazes e homens casa-
de um caminho ou na beira do mato”. dos. Ele se referia, em particular, a dois
Desde que deixou Lourival, havia pou- de seus amigos: um, Dênis, de quem
co mais de um ano no momento da falaremos mais a seguir; o outro, “um
entrevista, Pedro resolveu conhecer rapaz que ele também é homossexual,
outros homens da comunidade, sem- é o macumbeiro daqui, mora ali, eu
pre da comunidade: ele revelou que vou pra casa dele e fico duas semanas
não gosta de sair com homens de fora lá às vezes; ele mora só, sempre só,
da comunidade, por medo de ser leva- gosta de homem casado, já quis que eu
do para algum mato e ser assassinado ia morar lá, não quero”. Esse último
e por medo “de pegar doença de gente estava “ficando” com o ex-namorado
que eu não conheço, principalmente de Pedro, o que não o impedia de man-
que eu não sei com que mulher esses ter a amizade com ambos. Havia ainda
homens ficaram, se elas estavam doen- uma moça que “era um homem todo,
tes, sei lá”, o que fez com que Pedro todo, um macho”, que vivia com Dê-
tivesse que se visibilizar enquanto ho- nis. Essas quatro pessoas formavam o
mossexual na comunidade para que os núcleo dos sujeitos transgressores aceitos
outros homens percebessem seus inte- pela comunidade.
resses. Ao ser perguntado sobre como Pedro era conhecido na comunidade
é para conseguir parceiros na comuni- por ser o facilitador de relacionamen-
dade, Pedro foi categórico: tos: nas festas e bares, quando alguém
“Às vezes tem uma brincadeira estava interessado em “ficar” com al-
aqui, ali, tem uma festa acolá. Eu guém, bastava pedir a Pedro “arranjar
vou. Os meninos ficam me olhan- o encontro” que ele o fazia com todo
do, eu olho também, também a o prazer, para homens que queriam “fi-
gente pisca o olho e vai pra fora, car” com mulheres, assim como para
pra trás, pra beira do mato conver- homens que queriam “ficar” com ou-
sar. Depois a gente marca o lugar. tros homens (Pedro não se lembrava
Eu vou pro lugar, ele vai, a gente
de mulheres que o tivessem pedido
fica, assim, faz aquele negócio, né,
para ajudar a marcar encontros com
aquele serviço daquela coisa lá,
né. Mas tem vez que é no bar ali outras mulheres). Pedro achava que era
no caminho, ali na beira do cami- por isso que ele era visto como uma
nho mesmo, no bar. Tem muito pessoa amável e sociável por todos na
homem casado. A mulher não dá o comunidade. Durante os dias que os
que a gente dá, não dá. Eles vêm pesquisadores ficaram lá, só ouviram
procurar nós. Mas eu só gosto de elogios a respeito de Pedro.

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Mas, se todos sabiam da homossexu- é ficar em casa, cuidando da casa, da


alidade de Pedro e, aparentemente, o minha mãe velhinha, fazendo comida
respeitavam, será que ele nunca tinha pra ela”. No momento da entrevista,
sofrido alguma forma de preconceito? Pedro não trabalhava mais na lavoura,
Ele contou que sim, antes de um fato nem sua mãe quebrava coco. Seu irmão
curioso. Havia uma moradora, Dona continuava trabalhando na lavoura,
Marinalva, que, segundo ele, gostava de mas de agricultores da região, ganhan-
difamá-lo, exortando para que as mães do diárias – chegou a ir para Brasília
não deixassem seus filhos se aproxi- para “tentar a vida”, mas não gostou e
marem de Pedro para “não virar[em] voltou. Quando não estava em casa ou
viado”. Pedro estava sempre acom- conversando com outros moradores
panhado de Dênis, nesse momento (“Adoro conversar, meu Deus, adoro!
de sua vida. Os dois saíam juntos, de Posso passar a vida inteira na frente de
mãos dadas, pela comunidade; Dênis, casa conversando ou ali no tamarinei-
às vezes, travestido. Isso só aumenta- ro, é bom demais!”, afirmou Pedro),
va a difamação por parte de muitos Pedro estava cuidando da quadrilha
moradores, incitados por Dona Mari- junina da comunidade, como coreó-
nalva. A filha dela era agente de saúde. grafo, ou jogando futebol. Pedro era
Um dia, uma médica veio visitar a co- reconhecido como um dos melhores
munidade. Pedro e Dênis resolveram jogadores da comunidade, praticando
aproveitar a passagem da médica para quase todos os dias: “Só tomo cuidado
fazer uma espécie de denúncia junto pra ninguém quebrar minhas unhas,
à respeitada profissional da saúde, já nunca!” Os pesquisadores puderam vê-
que os difamadores diziam que eles -lo jogando e também tiveram a opor-
eram “doentes”. A médica lhes disse, tunidade de ver alguns membros da
em frente a outros moradores e à filha quadrilha indo à sua casa para provar
de Dona Marinalva, que eles não eram as roupas (dois deles, homossexuais
doentes e que estavam “mais saudáveis que se vestem com roupas de persona-
do que muita gente lá”. A notícia se gens femininos da quadrilha, segundo
espalhou rápido e chegou aos ouvidos Pedro, mas que moram em outra co-
de Dona Marinalva, que, desde então, munidade quilombola próxima).
nunca mais disse nada – e passou a ser Embora Pedro já tenha visitado outras
muito malvista pelos moradores, como cidades do interior do Piauí e já tenha
os pesquisadores puderam perceber ido algumas vezes à capital, Teresina,
durante as curtas estadias. Por outro para participar de umas edições da Fei-
lado, Pedro disse que os rapazes gosta- ra Piauiense de Produtos da Reforma
vam de “tirar brincadeira”, mas que ele Agrária e de Comunidades Quilom-
gostava, pois via nisso uma das facetas bolas (FERAPI), ficou claro que ele
do jogo de sedução e também “tirava não tinha nenhum interesse em sair da
brincadeira” com os rapazes – isso, comunidade para ir morar na “cidade
para ele, não era preconceito. grande”. Por que?
Para Pedro, “a melhor coisa do mundo, “Eu achei ótima [Teresina], Ave

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As experiências da diversidade sexual e de gênero

Maria, para mim, foi bom demais outros rapazes, principalmente com
[a última ida à capital]! Andei mui- seu amante preferencial, Dênis, mesmo
to, só andando, vendo tudo. Se eu tendo namoradas. Desde então, Pedro,
passar dois, três dias, nunca me Antônio e Dênis viviam numa espécie
dou mal; mas para um ano, dois de triângulo relacional que gerenciava
anos, não dá, nunca, não gosto de
os ditos e os não-ditos dos três.
cidade... Não quero viver longe da
minha mãe, não quero. Nem longe Quanto a Dênis, tinha 22 anos no mo-
daqui, das brincadeiras, as festas.” mento da entrevista. Nasceu numa ou-
tra comunidade rural próxima à de Pe-
Pedro se considerava quilombola “por-
dro, que está passando pelo processo
que eu sou negro, sou mais claro que
de reconhecimento como comunidade
meu irmão, mas sou negro, a gente veio
quilombola. Desde muito cedo, ainda
de escravo, a fazenda tinha escravo, era
criança, se sentia atraído por homens e
tudo parente nosso, os fazendeiros dei-
se feminilizava: brincava com bonecas,
xaram a fazenda, mas nós ficou tudinho
se maquiava e colocava roupas de suas
aqui, nós somos quilombola descen-
três irmãs. Sua mãe era quebradeira de
dente de escravo.”
coco de babaçu e Dênis ia quebrar coco
O irmão de Pedro, Antônio, também com suas irmãs, sua mãe e as mulheres
afirmava seu pertencimento quilombo- da comunidade. Nunca trabalhou na
la. Um “quilombola macho”. Quando roça com os homens. Foi à escola até
Pedro contou aos pesquisadores que a primeira série do ensino médio, mas
Dênis e seu irmão “tinham um caso”, abandonou a escola porque achava
criou-se um interesse em conversar cansativo ter que ir à sede do muníci-
com Antônio. Pedro disse que, um dia, pio para ter aulas, assim como Pedro.
estava “ficando” com um rapaz em Durante sua infância, seus pais decidi-
sua casa, enquanto sua mãe havia ido ram migrar para o Maranhão. Alguns
à sede do município e seu irmão, esta- meses depois, seu único irmão decidiu
va trabalhando. Mas, seu irmão voltou voltar para o Piauí, indo morar na co-
mais cedo e viu os dois na cama. Seu munidade de Pedro, onde residia sua
irmão esperou que terminassem e lhe noiva. Dênis foi morar com o irmão,
disse que era para tomar cuidado para bem em frente à casa de Pedro. Assim
a mãe não saber daquilo. Pedro espe- começou a amizade com Pedro. Juntos,
rava uma reação mais agressiva por eles seduziam os homens da comuni-
parte de seu irmão. Algumas semanas dade, vestindo-se com roupas femini-
depois, quando Dênis estava passando nas e se maquiando. Seus pais não se
uns dias em sua casa, Pedro viu os dois adaptaram muito bem ao Maranhão e
se relacionando sexualmente. Dênis e resolveram voltar ao Piauí, indo morar
Antônio perceberam que Pedro os ha- na mesma comunidade onde moravam
via “descoberto”, mas fizeram como se antes. Dênis ficou morando um pouco
nada tivesse acontecido. Antônio era na casa de seu irmão e um pouco na
um dos rapazes da comunidade conhe- casa de seus pais. Depois, passou a mo-
cido por manter relações sexuais com rar também na casa de Pedro, quando

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se apaixonou por Antônio. instrumental de feminilização: “nunca


Até os nove anos de idade, Dênis brin- gostei de saia, vestido, nunca; gosto é
cava de “homem e mulher” com os de shortinho, blusinha, só, calcinha pe-
meninos de sua comunidade: “eu sem- quena”.
pre era a mulher deles”. Um de seus Ainda adolescente, Dênis começou a
tios, casado com a irmã de sua mãe, trabalhar em “casa de família, de do-
teve relação sexual anal com Dênis méstica”. Cozinhava e limpava a casa,
quando ele tinha nove anos. Os dois além de cuidar de filhos pequenos dos
mantiveram um relacionamento du- seus patrões. Sua fama de cozinheiro
rante alguns meses, mas Dênis afirmou se espalhou pela região e, ainda hoje
que era muito doloroso para ele. “Aí, em dia, Dênis ganha algum dinheiro
eu pequei esse pecado um pouqui- fazendo comida sob encomenda para
nho”, disse, referindo-se à descoberta de festas e recepções. Também é atuan-
sua homossexualidade, e continuou: te nas quadrilhas juninas locais, junto
“tem gente que acha que é sem-vergo- com Fernando. Ele sempre se fantasia
nhice da gente, mas não é; eu sempre de mulher e consegue ganhar algum
fui assim; já vem na sina da pessoa, que dinheiro em concursos de quadrilhas e
a gente traz esse dom, né”. de beleza, miss gay etc.
Na escola e na comunidade, as pes- Dênis fez uma análise bastante inte-
soas comentavam sobre os trejeitos ressante das diferenças entre os ho-
de Dênis. Um dia, sua tia e sua mãe mossexuais das sedes municipais e os
estavam quebrando coco com outras da comunidade onde mora Pedro. Ele
mulheres e veio à baila o assunto sobre contou que não gostava muito de se
a homossexualidade do adolescente. envolver com homossexuais das ci-
Num primeiro momento, sua mãe foi dades, pois eram “trambiqueiras, fal-
categórica, dizendo que não aceitaria sas, mentirosas, e dão encima de tudo
que seu filho fosse homossexual. Mas, quanto é homem, não respeitam nin-
ao longo da conversa, foi convencida guém! Elas querem ser mais do que a
por sua irmã de que um filho deve ser gente que é da roça! Elas acham que
amado de qualquer forma, mesmo que são melhores!” Na comunidade onde
seja homossexual. Ao voltar para casa, Pedro reside, Pedro, Dênis e um outro
Dênis é surpreendido por sua mãe, que homossexual afeminado ajudavam um
lhe pergunta se ele era mesmo homos- ao outro a “apanhar macho, pegar ho-
sexual. Aos trezes anos, Dênis confir- mem mesmo”. Não haveria ali “con-
mou a sua homossexualidade e, desde corrência” ou disputa por parceiro. Já
então, passou a ter o apoio incondicio- nas cidades da região e em sua comu-
nal de sua mãe. Seu pai soube algum nidade, Dênis afirmou que havia muita
tempo depois, mas se mostrou indife- concorrência. Ele contou a história de
rente, dizendo que a vida era do filho um rapaz que se mudou da cidade para
e que ele fazia o que achasse melhor. sua comunidade e que estava “atacan-
Sua mãe começou a comprar roupas do tudo quanto é macho, lá, tudinho!”
mais femininas para Dênis e todo o Esse rapaz, segundo Dênis, ia para a

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As experiências da diversidade sexual e de gênero

roça atrás dos homens: um equilíbrio quase que homeostático,


“Ela quer ser a poderosíssima, cor- nem pode haver relacionamentos amo-
re até atrás dos homens nos matos rosos fixos (e de exclusividade absolu-
onde os homens vão trabalhar, tra- ta, monogâmicos) entre homossexuais
balhar na roça; quando ela vê um e heterossexuais.
homem saindo com uma foice no
O único namorado que Pedro teve,
ombro, ela papoca atrás, eu só vejo
Lourival, se apaixonou por ele, o que
notícia dela, lá, forçando homem
casado a ficar com ela, só os ho-
infringe a regra dos relacionamentos
mens casados! Todo dia, todo dia locais. Por isso, quando terminaram,
tem história dela!” Lourival não conseguiu se casar com
uma moça e teve que “se juntar” a uma
Para Dênis, os homens casados não mulher mais velha, viúva, com quem
tinham interesse nesse rapaz, somente residia no momento da entrevista.
os solteiros. Dênis concluiu que, assim Antônio, o irmão de Pedro, teve que
como na comunidade de Pedro, por romper o relacionamento com Dênis,
mais que haja homem casado interes- quando percebeu que já era hora de
sado em homossexuais, são os mais procurar uma moça para se casar. No
jovens que mais “ficam” com homos- momento da entrevista, ele estava na-
sexuais para se iniciar sexualmente e morando. Já na comunidade onde os
acumular experiência, antes de se casa- pais de Dênis residiam, a chegada de
rem com as moças das comunidades. um homossexual citadino estava ame-
Assim, parece se confirmar, com essa açando o fluxo dos relacionamentos
análise de Dênis, que haveria uma es- afetivos, o que fez com que Dênis re-
pécie de cálculo complexo que equi- solvesse se mudar para a comunidade
libraria a tensão sexual e regularia os de Pedro, onde “os homossexuais se
relacionamentos localmente: homos- ajudam, não tem essa concorrência” e
sexuais são aceitos, se – e somente se os afetos fluem tranquilamente. Assim
– forem afeminados, passivos, perfor- parecia funcionar, ali, a gestão dos flu-
matizarem o gênero feminino (Butler, xos de afetos.
2003) e substituírem temporariamente
as moças (que devem “se preservar
para o casamento”) enquanto parcei- DA AMAZÔNIA PARAENSE, BENTO
ros sexuais de jovens rapazes ativos (o E ALAN: A DIFÍCIL GESTÃO DA VI-
que remete até certo ponto ao modelo SIBILIDADE.
hierárquico de gênero proposto por Bento é discente de um curso de gradu-
Fry, 1982). Assim, não faltam parcei- ação interdisciplinar da Universidade
ros para os homossexuais, nem para os Federal do Pará e uma jovem liderança
rapazes considerados heterossexuais quilombola. Bruno R. C. Domingues10
e, enfim, as moças não são assediadas. conheceu Bento durante uma pesquisa
Mas, não pode haver um número mui- que estava realizando no Arquipélago
to grande de homossexuais para que o de Marajó para um outro projeto. Fize-
sistema funcione de maneira a manter ram parte da mesma equipe, portanto,

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Bruno poderia pressupor que haveria versar sobre assuntos diversos, desde o
ali uma certa facilidade para se apro- currículo dos seus cursos de graduação,
ximar de Bento e falar sobre sexuali- passando pela situação política do País
dade. Ao serem apresentados um ao e os impactos do golpe jurídico-políti-
outro, durante a primeira atividade do co-midiático ocorrido em 2016 sobre
projeto, Bento disse que era quilombo- a situação das pessoas negras – afinal,
la, que participava ativamente da luta Bruno também compõe o movimento
quilombola e que sua comunidade era negro paraense e, assim, aproveitaram
próxima de onde Bruno e a equipe es- para conversar sobre como articular
tavam pesquisando. movimentos de negros urbanos com
Como, então, Bruno “reconheceu” a os movimentos quilombolas e demais
homossexualidade de Bento? Bento negros rurais –, até assuntos de cunho
infringia alguns padrões socialmente mais pessoal, família, amigos, relacio-
estabelecidos sobre como homens e namentos amorosos, entre outros, mas
mulheres falam e gesticulam ou como em nenhum momento Bento tocou no
homens e mulheres devem se vestir ou assunto da sexualidade, e optou-se por
como devem se comportar, portanto, não conduzi-lo a tal assunto – pelo me-
Bruno viu em Bento um “igual”, um nos, por enquanto.
“mesmo”. Mas, como explicar, durante Em alguns momentos, perceberam-se
uma pesquisa sobre “ecologia de sabe- falas que pareciam indícios de formas
res”11, que Bruno gostaria de entrevis- de preconceitos de cunho sexual ou
tá-lo para outra pesquisa, relacionada de gênero, quando Bento conversava
a gênero e sexualidade? Bento sequer com algumas pessoas da comunidade,
havia se identificado enquanto homos- geralmente pessoas mais velhas que
sexual, mas, dado sua performance de têm contato direto com a família de
gênero (Butler, 2003), Bruno já havia Bento; então, em conversas com elas,
percebido que, sendo homossexual ou percebia-se ali um “outro Bento”, com
não, ele seria um sujeito em potencial voz firme e mais grossa, um modo de
para a pesquisa sob a coordenação de agir diferente, com falas que até re-
Fabiano Gontijo, sobre as experiências produziam certos preconceitos. Ficou
da diversidade sexual e de gênero em claro que havia uma preocupação, por
contextos rurais e situações etnica- parte de Bento, enquanto uma jovem
mente diferenciadas e quilombos. liderança quilombola, em reforçar a
Mais tarde, a equipe do projeto se reu- masculinidade. Contudo, assim que
niu para dividir as tarefas e, por conse- os dois se afastavam daquelas pessoas,
guinte, montar as equipes, compostas voltavam à configuração anterior de
por oito pessoas. Seriam formadas, interação. Estaria Bento acionando um
portanto, quatro duplas e, coincidente- “armário”, quando interagia com pes-
mente, Bento viria a ser o parceiro de soas próximas à sua família? Segdwick
Bruno na dupla. Durante as longas ca- (2007) sugere que uma pessoa nunca
minhadas pela comunidade onde esta- se livra totalmente de seus “armários”,
vam, Bruno e Bento costumavam con- por mais “desconstruída” que seja a

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As experiências da diversidade sexual e de gênero

pessoa. Ao voltarem para a casa em novamente o porquê da entrevista, do


que estavam hospedados, falaram, en- que tratava a pesquisa, que não faria
fim, sobre a pesquisa de Fabiano Gon- perguntas diretas, conversariam mais
tijo e Bruno perguntou se Bento tinha ou menos livremente para que não
interesse em colaborar. Eis a resposta fosse criado um tipo de formalida-
recebida: “Sim, mas só quando tu vol- de prejudicial à fluidez da conversa, e
tares! Aqui tem muita gente e não que- para que ele não ficasse nervoso. Em
ro que eles escutem o que tenho pra te seguida, Bruno perguntou como Bento
dizer, tipo, sei que vais publicar, e eles se afirmava, ao que ele respondeu pe-
vão ler, mas vou ficar com vergonha se remptoriamente: “Gay!”. Conversaram
alguém além de ti me ouvir falando.” acerca das primeiras experiências do
entrevistado que o permitiam se defi-
Bruno retornou a Belém e Bento, à
nir como “gay”: “O primeiro homem
sua comunidade. Eles se adicionaram
que eu fiquei foi meu primo, ele tá mo-
como amigos virtuais no Facebook e rando em outra comunidade agora e
por ali mantiveram contato. Vez ou ou- tem uma filha. Ele não se aceita, sabe?
tra, Bento o chamava para o bate-papo É preconceituoso. A família desconfia
virtual, perguntando-lhe sobre quando de mim e dele, a comunidade também,
voltaria ao Marajó; dizia estar ansioso só que a gente nunca falou nada pra
para a entrevista, porque nunca nin- ninguém.”
guém o tinha entrevistado, exceto para
processos seletivos, e que ele tinha A forma como Bento iniciou-se sexu-
interesse em falar um pouco sobre o almente não ocorreu como se obser-
va nos escritos sobre iniciação sexual
assunto. Bruno lhe disse que o retor-
em Belém (Silva Filho 2013), tampou-
no estava previsto para maio de 2016,
co como no Rio de Janeiro ou Paris
e que, nesta ocasião, poderiam marcar
(Bozon & Heilborn 2006), ou seja,
a entrevista.
não houve uma procura ou um que-
Na data prevista, Bruno retornou à rer iniciar-se para se incluir em grupos
comunidade quilombola, novamente de sociabilidade específica, segundo o
com a equipe do projeto anteriormen- interlocutor, mas aconteceu de forma
te citado. Ficou hospedado na mesma espontânea e, de certo modo, inespe-
casa. A entrevista aconteceu na última rada, assim como observamos com os
noite da pesquisa de campo, que deve- interlocutores piauienses mais acima:
ria ser a noite de folga da equipe (po- “A gente foi pescar, daí, a gente es-
deriam dormir mais tarde, ver filmes, tava no bote do meu pai, eu estava
ouvir música...). Enquanto uma parte pilotando. Aí, começou a chover
da equipe aproveitava para conversar e ele disse pra gente tomar banho
e depois assistir filmes, Bento e Bru- de chuva, depois disse ‘se for pra
no foram para um cômodo da casa que gente tomar banho é melhor sem
roupa aqui fora do que dentro do
estava servindo de quarto para o grupo
bote’, daí, a gente foi... E eu me
de pesquisadores.
abaixei, ele pegou na minha bunda,
Bruno iniciou a conversa explicando e eu disse ‘não’, aí, depois eu olhei

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pra ele e vi que o ‘coiso’ dele estava casado de lá. Eles gostam de corpo fe-
assim... Duro né?! Aí, eu perguntei minino, bunda grande... Mas as mulhe-
se ele tinha camisinha, e ele disse res, às vezes, não faz o que a gente faz,
que estava no bote, e aconteceu lá né?! Daí, eles procuram a gente. Prefi-
mesmo. A gente ficou um tempo, ro os solteiros.”
mas tem mais de um ano que a gen-
te não fica... Desde que eu comecei Tais dados remeteriam à “heterossexu-
a universidade.” alidade como modelo social”, (Miskol-
ci 2009: 6) ou à “heterossexualidade
Bento tem muitas histórias sobre os
compulsória” (Rich 1983), mas com
relacionamentos com rapazes da co-
fortes nuanças – já que nossa amostra
munidade, que não se afirmam en-
ainda é muito reduzida e nos impede
quanto homossexuais, durante as
de propor generalizações perigosas.
atividades de trabalho ou de lazer na
Afinal, tal como apontava Foucault
mata, assim como nosso interlocutores
(2001), o sexo sempre carregou a ver-
piauienses.12 Percebe-se, portanto, que
dade por trás dos seres humanos; logo,
a mata, longe das vilas, sítios ou cami-
a ação de manterem casamentos hete-
nhos da comunidade e demais espaços
rossexuais, e, ao mesmo tempo, viven-
de trabalho no meio rural parecem ser
ciarem práticas sexuais com pessoas
espaços privilegiados (os “guetos da ru-
consideradas como sendo do mesmo
ralidade”?13) para as relações afetivas e
sexo ainda se afirmando como hete-
sexuais entre jovens homens, em meio rossexuais reforçaria que tal afirmação
a encantados e visagens, entes sobre- nada mais seria do que uma forma de
naturais típicos do cenário amazônico: garantir a hegemonia das relações de
“Eu fui com um homem da minha poder vivenciadas no cotidiano. Isso
comunidade, casado, pegar mara- vale também para a realidade piauiense
jás14, aí chegou lá, ele perguntou se
relatada mais acima. Mas, os homosse-
eu queria transar. E a gente “ficou”
xuais teriam que ser afeminados, como
lá mesmo. Também teve outro ca-
sado, quando a gente tava pegando
vimos com Pedro e Dênis, embora afe-
açaí15... Mas aí, tinha muita gente, minados de um certo jeito.
era um grupo de homens da co- Bento relatou que somente um rapaz
munidade... Aí, ele se afastou e me em sua comunidade disse abertamen-
chamou, aí, perguntou se eu queria te ser homossexual. Ele percebeu que,
e eu disse que sim. A gente entrou nas comunidades quilombolas, existia
mais pra dentro do mato e aconte- muitos jovens homossexuais ou bisse-
ceu.”
xuais, mas que, dado o medo, não pre-
É comum que homens casados bus- tendiam “se assumir” – Bento, aqui,
quem relações extraconjugais com ra- usou as categorias comumente usadas
pazes na comunidade de Bento, assim nos grandes centros urbanos, cate-
como na comunidade piauiense citada gorias médico-científicas, como “ho-
mais acima. Sobre isso, ele nos diz: “É mossexual”, “bissexual” e até mesmo
normal, isso, na minha comunidade; “gay”, mostrando, assim, seu trânsito
eu mesmo já fiquei com muito homem entre rural e urbano e a maneira como

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As experiências da diversidade sexual e de gênero

usa categorias de ambos os contextos, Novamente, pode-se pensar aqui na


dando-lhes significados híbridos, que “epistemologia do armário”, quando
pertencem a um terceiro contexto, in- Sedgwick nos diz que “mesmo num ní-
tersubjetivo. Disse ainda que não pre- vel individual, até entre as pessoas mais
tendia contar para familiares e demais assumidamente gay há pouquíssimas
pessoas sobre sua sexualidade, princi- que não estejam no armário com
palmente por ter uma trajetória política alguém que seja pessoal, econômica
na comunidade. Por isso, a difícil tarefa ou institucionalmente importante
de gerenciar o dizível e o indizível e de para elas”. Bento nos fala ainda sobre
negociar os significados híbridos: os sujeitos com quem se relaciona na
“Se eu gostar de alguém quando cidade onde estuda: normalmente, são
eu tiver morando sozinho, ele vai pessoas “com uma mente mais aberta”,
morar aqui comigo, mas eu não que “convidam para almoçar em casa”
vou dizer para ninguém que a gen- e “são brancas”, embora o interlocutor
te é casado, a gente vai viver como
diga preferir rapazes negros. Qual a
amigos que moram juntos, mas não
diferença?
como casal. Muita gente me conhe-
ce, eu sou representante da comu- “Tem diferença, sim, os caras do
nidade em muitos lugares, não vou quilombo e os caras de lá. Lá, eles
falar nada, não.” são mais tranquilos e sem tanto
medo de serem pegos. Aqui, os
Bento é estudante universitário em meninos do quilombo têm medo
uma cidade do interior do Pará que de serem gay e alguém pegar eles
sofreu um boom populacional em razão durante o sexo. O sexo é sempre
de um grande projeto de desenvolvi- pensando ‘vai chegar alguém’. [...]
mento que está sendo implantando Os caras que eu fico por lá, e por
na região. A cidade abriga pessoas de Belém também normalmente são
diversas localidades do Brasil, toman- brancos, mas eu prefiro os negros.
do um certo ar cosmopolita, como Os brancos só dão atenção antes
acontece(u) com diversas cidades do do sexo, os negros dão mais aten-
interior do Pará ao longo das últimas ção durante o sexo. Quando eu tô
décadas. Isso faz com que Bento se com um negro, é algo mais igual,
sinta mais à vontade para se expressar sabe? Quando eu tô com um bran-
enquanto homossexual nessa cidade co, é diferente, porque eles são
mais ‘te vira, tu que tem que fazer
durante os meses de aulas. Lá, Bento
tudo’.”
vai a festas, usa maquiagem e roupas
femininas, enfim, expressa “seu” gêne- Ao distinguir a relação sexual entre ho-
ro como bem lhe convém: “Lá eu sou mens brancos e homens negros, o dis-
mais livre, uso bermuda de mulher, uso curso do interlocutor parece reforçar
maquiagem, vou para universidade de o debate sobre a sexualização da raça
batom... E meus amigos daqui que es- e/ou a racialização do sexo (Miskolci
tudam lá sabem que eu sou gay, mas 2008) e sobre a exotização/fetichiza-
eles guardam o segredo quando a gente ção do “ser quilombola” e, portanto,
volta pra cá”. a fetichização da diferença. Segundo

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Miskolci (2012) o Brasil se constituiu percebeu, enquanto fazia a pesquisa


a partir de privilégios da branquitude, de campo de maio de 2016 (durante a
o que não exclui o fator sexualidade. qual procedeu à conversa com Bento),
Desde as relações coloniais, o negro que uma de suas colegas de pesquisa,
foi considerado como o cativo dis- Maíra, estava hospedada na casa de
ponível para servir ao senhor branco. uma das pessoas mais dinâmicas da
Mesmo com a Abolição da escravatura comunidade, que conhecia toda a co-
no Brasil, em 1888, esta situação não munidade (todos paravam em sua casa
foi totalmente modificada – talvez te- para colocar a conversa em dia, pois lá
nha sido até complementada, agora também funcionava um bar). Então,
com um forte viés de classe –, afinal, Bruno pediu para que Maíra comentas-
“o poder não é uma instituição e nem se com alguém da casa que ele gostaria
uma estrutura, não é uma certa potên- de conversar com “homens homosse-
cia de que alguns sejam dotados: é o xuais” para uma outra pesquisa. Bru-
nome dado a uma situação estratégica no contou com a sorte, torcendo para
complexa numa sociedade determi- que a notícia fosse espalhada por toda
nada” (Foucault 2015: 101). Portanto, parte.
as formas como as relações raciais se Quando Maíra retornou a Belém, de-
deram no Brasil pós-Abolição manti- pois do retorno de Bruno, tinha mui-
veram a hegemonia social, racial e eco- tos recados para o colega:
nômica da população branca, garantin- “Bruno, no próximo campo, tu já
do privilégios sociais e estabelecendo tens como entrevistar algumas pes-
novas relações de dominação, ainda soas. Falei lá na casa da Jô e eles
que de forma velada, configurando o conhecem, sim, [homossexuais] e
“racismo à brasileira” (o branco não se te apresentarão no próximo campo.
percebe como racista, uma vez que as- E tem outros nas comunidades vi-
socia o racismo somente aos aspectos zinhas. Tem uma travesti também,
físicos e, logo, objetivos e concretos). eu estava na festividade e a vi, ela
estava no mastro das mulheres. Os
Após conversar sobre mais alguns te- homens diziam que ela tinha que ir
mas, Bruno e Bento encerraram a con- pro dos homens, as mulheres fo-
versa/entrevista. Ao final, o interlocu- ram lá e disseram que não, que ela
tor disse que gostou de participar e que era mulher e tinha que permanecer
achou que seria algo mais complicado ali, foi tão lindo!”
de se falar. Passemos, enfim, à conver- Bruno voltou a campo em meados
sa/entrevista com Alan. de julho e tentou contato com al-
Bruno conheceu Alan de uma maneira guns jovens, dentre os quais, Alan.
um tanto quanto curiosa. Bruno ainda Contudo, não obteve muito êxito. O
não sabia muito bem como poderia se futuro interlocutor estava inseguro,
aproximar de seus potenciais interlocu- se esquivava e nunca comparecia
tores para pedir-lhes que lhe concedes- aos locais e horários que ele mesmo
se um momento de sua atenção para marcava para o encontro, embora
falarem de suas vidas. Então, Bruno Bruno tenha explicado que se tratava

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As experiências da diversidade sexual e de gênero

de uma pesquisa com garantia de ano- desde 2014. Nunca contou para a sua
nimato e que ele poderia ficar tranqui- família, pois não precisou: as vizinhas
lo, pois seus dados pessoais não seriam contaram. Ainda assim, sempre que
divulgados. Bruno acabou tendo que sua mãe o perguntava, ele ainda nega:
retornar a Belém, frustrado, sem tê-lo “Minha mãe sabe e me pergun-
entrevistado. ta, mas eu nego. Teve um tempo
Em setembro de 2016, Bruno voltou também que eu estava na 6ª série e
mamãe me perguntou se eu sentia
a campo. Num dos últimos dias, pôde,
atração por homem, e eu disse que
enfim, se concretizar a conversa com não, peguei minha mochila e fui
Alan. O interlocutor esclareceu sobre embora pra escola. Ela sabe... Dis-
a razão de não ter ido aos encontros se que vai contar pro meu pai, ele
anteriores: “Eu perguntava pra Jô ‘o mora em outra cidade, vem pra cá
que que esse homem quer comigo? Ai, só no Natal... Uma pessoa aqui da
será que vou ter que responder algo di- passagem contou pra minha mãe
fícil?’ e ela dizia que não, mas eu ficava que meu namorado veio da cidade
meio assim [balançando a cabeça para pra minha festa de aniversário aqui,
demonstrar falta de confiança]...” e ela disse que quando o papai che-
gar vamos conversar sério. Aqui o
A entrevista aconteceu no bar situado meu nome roda, dizem que eu te-
em frente à casa de Jô, na comunidade nho macho, que eu tenho marido,
em que Alan mora. Bruno contou com tudo mentira. Quando o papai che-
a ajuda de um outro estudante do cur- gar, aí, eu não sei, né?! Aí, eu vou
so de Ciências Sociais da UFPA que, ter que falar a verdade, não dá pra
na época, o acompanhava em campo negar o tempo todo.”
para definir o tema de seu trabalho de O interlocutor sempre negou quando
conclusão de curso. Eles se sentaram sua mãe o perguntava acerca de sua se-
em cadeiras ao lado de um bilhar, os xualidade para poupar a família, pois,
estudantes um ao lado do outro e Alan, segundo ele, todos dizem que na fa-
em frente aos dois. Tomavam café e mília dele não têm homossexuais, nem
comiam biscoitos enquanto a conversa “espaço pra gay”.
fluía. “Eu sinto vergonha, a minha fa-
Bruno iniciou explicando do que a pes- mília sempre diz que não tem gay
quisa tratava, de sua importância e que na nossa família, só que já têm três
os dados pessoais de Alan não seriam comigo, mas meus primos são bem
mais discretos, elas nem descon-
divulgados. Disse-lhe que seria inicia-
fiam. Pra eles, vai ser uma vergonha
da uma conversa, permeada de poucas
enorme, mas gosto não se discute,
perguntas, e que, se em algum momen- né?! E eu tenho vergonha da socie-
to o interlocutor se sentisse desconfor- dade, também, porque a partir do
tável ou achasse que as perguntas esta- momento que tu te assumes como
vam sendo invasivas, que poderia pedir gay, a sociedade te olha com outros
a interrupção da conversa. olhos.”
Alan se afirma como “homossexual” Alan não entrou em detalhes acerca de

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sua iniciação sexual, disse que foi “nor- constituem sob os moldes da hetero-
mal, com muita conversa, tem que ter normatividade, uma vez que é como
conversa, né?! Não pode ser nada for- se o “passivo” precisasse esperar e ser
çado”. Disse que já ficou com rapazes submisso ao “ativo”, ou ao “macho de
da comunidade, mas que não se sente verdade”, num sistema onde tudo o
muito à vontade para isso, pois, segun- que remete ao “não homem” é auto-
do ele: “Os caras daqui que são sol- maticamente tido como “abjeto” (Bu-
teiros ficam contigo e espalham pros tler, 2000) e que necessita obedecer às
amigos, daí, depois que todo mundo já hierarquias. Mas, há negociação entre
tá sabendo, eles dizem que é mentira. os sujeitos, até mesmo para definir as
Teve um que é casado e que eu tive que fronteiras da abjeção e as posições na
ir lá falar com a mulher dele, dizer que hierarquia.
era mentira, fofoca.” O interlocutor falou acerca de pre-
Uma consideração importante a se fa- conceito e racismo no Marajó, além
zer é que o “ser homem” na concep- de fofocas, tema que, aliás, aparecia
ção de Alan, tem a ver com: “homem, em quase todos os pontos que Bruno
pra mim, é o que anda16 com mulher, colocava durante a conversa, como se
não o que anda com homem; tem ho- pode observar nos trechos a seguir:
mem que até fica17 com outro homem, “Aqui na comunidade ninguém
mas tem uma mulher.” Sendo assim, a gosta de se comprometer. Se eu es-
imagem do homem é construída sobre tou namorando contigo, por exem-
os padrões heteronormativos, em que plo, e a gente se expõe, isso vai virar
só é “homem de verdade”, “macho”, um fato. E aqui ninguém gosta de
ver os seus problemas, né?! Só gos-
aquele que constitui relações heteros-
tam de falar dos outros. Mas, quan-
sexuais permanentes, mesmo que es-
to mais eles falam, quanto mais eu
poradicamente e sem se afirmar como faço! A vida é só uma, temos mais
tal, tenha relações sexuais provisórias que aproveitar.”
com outros homens, mais ou menos “Lá na minha escola ia ter o concur-
como bem nos apontaram Fry (1982) so de Mister. Daí, eu nem queria,
e, depois, Parker (1991). Alan também mas começaram a falar meu nome,
tem uma forma peculiar de classificar e eu fui. Aí, chegou um outro meni-
“atividade” e “passividade” no rela- no lá de outra turma, que também
cionamento entre homens. Segundo o estava concorrendo. Ele é branco,
interlocutor: “O passivo, ele não pode alto, e disse que ia me bater, que eu
era uma bicha “muito por fora”18 e
ser atirado, ele tem que ser calmo, ser
que ele não gostava de mim. Teve
paciente e esperar. O ativo é quem che-
outro menino também que, eu esta-
ga e já chama, puxa pra dançar, convi- va passando no corredor da escola,
da pra transar, isso é o dever dele.” Isso e ele me xingou; e eu voltei, dei de
se repete na realidade rural piauiense porrada nele. Porque antes eu não
relatada acima. falava nada, mas agora, eu brigo e
Neste sentido, as noções de “ativida- muito!”
de” e “passividade” aqui também se Alan também relatou sobre o racis-

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As experiências da diversidade sexual e de gênero

mo em relacionamentos com pessoas sar a construção da masculinidade em


brancas, mas não quis aprofundar esse Cali, apontaram para essa fetichização,
assunto. Bruno verificou que há uma quando verificaram que comumente
tendência em Alan a se relacionar com pessoas de classes altas se sentiam atra-
homens brancos e de fora do contex- ídas sexualmente por homens da peri-
to do quilombo, assinalando, portanto, feria, assim como Fry já o havia notado
para o quanto as relações amorosas e em suas pesquisas (Fry, 1982). Pode-se,
afetivas em geral ainda se baseavam portanto, traçar a mesma linha de pen-
em idealizações e padrões de beleza samento acerca do aumento do núme-
externos ao contexto quilombola. Alan ro de homens homossexuais da cidade
disse: “Não que eu tenha preconceito, em busca de relações afetivas e sexuais
mas eu prefiro, assim, gosto de gente nos quilombos durante as festividades
clara do olho claro; meu ponto fraco locais.
são os morenos19; mas, pra namorar, Alan sonhava em, um dia, casar-se com
tem que ter olho claro mesmo.” Segun- um homem e sair do quilombo, mudar-
do Silva Filho (2013: 103) “a conquista -se para Belém, principalmente por se
de um/a parceiro/a de outra cor/raça sentir incomodado com as fofocas que
seria também uma forma de mostrar correm sobre ele na comunidade. De-
presteza na arte da conquista ou evi- sejava ser médico e encontrar alguém
denciar o quanto se é desejável, por sua que não sentisse vergonha dele, nem
condição racial, às outras raças”. de suas carícias, o oposto de seu úl-
Alan continuou a falar sobre seus timo namorado – branco e citadino.
“gostos” e sobre “pessoas de fora da Nota-se, assim, tanto com Bento como
comunidade” e disse que nas festivi- Alan, a difícil tarefa de gerenciar a visi-
bilidade dos afetos.
dades sempre encontrava rapazes das
cidades, que procuravam sexo com ra-
pazes do quilombo. Segundo ele:
PERSPECTIVAS
“Eles sempre vêm pras festivida-
des. No Círio mesmo, no sábado, Os estudos sobre realidades quilom-
que vocês estavam lá na festa, até. bolas, assim com os estudos rurais e
Eu contei seis homens que me pro- os estudos de gênero e sexualidade no
curaram, querendo sexo. Primeiro Brasil deixaram de lado as particulari-
eles ficam dançando e te olhando, dades da maneira como se dão os rela-
depois mordem os lábios, depois cionamentos afetivos entre sujeitos ru-
levantam a camisa, mostrando que rais quilombolas, talvez, em parte, por
têm interesse, né?! Depois, eles te acreditarem que esses sujeitos copia-
procuram.”
vam os modelos de comportamentos
Novamente, há de se remeter à feti- produzidos nos grandes centros urba-
chização da diferença, quando rapa- nos, sobretudo do centro-sul do País,
zes externos ao meio quilombola vão ou talvez ainda por respeitarem outras
até lá apenas com finalidades sexuais. agendas de pesquisa, geralmente res-
Giraldo, Arias e Reyes (2007), ao anali- peitosas das demandas dos sujeitos

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Gontijo, Fabiano | Domingues, B. R. C. | Erick, Igor

de direitos que exigiam e exigem dos dentro de suas comunidades, contan-


trabalhos acadêmicos o foco em outras to que respeitem o equilíbrio sistêmico
questões (no caso dos quilombolas, do fluxo de afetos e, sobretudo, que
por exemplo, nas questões relativas a saibam gerenciar o dizível e o indizível,
território, meio ambiente, parentesco, o visível e a visibilização e o permitido
cosmologia, dentre outros temas). e o permissível, na medida da manu-
Nos trechos dos relatos acima apresen- tenção do equilíbrio; mas, Alan, mes-
tados de Pedro, Dênis, Bento e Alan, mo mantendo relações dentro da sua
parece ficar claro, por um lado, que comunidade, prefere homens de olhos
há alguma particularidade na maneira claros, brancos, rompendo novamente
como os marcadores de corporalidade, com as regras do jogo, reproduzindo
ruralidade, racialidade, etnicidade, gê- um certo tipo de fetichização do corpo
nero e sexualidade percutem, se inter- negro ao se entregar aos homens “de
ceptam e se articulam nesses contextos fora” que visitam a comunidade duran-
de áreas rurais quilombolas, embora te as festividades locais. Essas são al-
também fique claro, por outro lado, gumas particularidades situacionais dos
que os padrões heteronormativos são contextos quilombolas em questão que
reproduzidos tal qual nos contextos tensionam, também situacionalmente, as
urbanos (a partir de negociações pecu- experiências da diversidade sexual e de
liares): Pedro e Bento se afirmam, mais gênero.
do que Dênis e Alan, como sujeitos qui- Essas particularidades situacionais pa-
lombolas e rurais, lideranças locais; por recem apontar para o fato de que, mais
serem marcados pela ruralidade, Pedro, do que duas realidades cristalizadas
Dênis e Bento, mais do que Alan, se que se opõem, as realidades rurais qui-
afeminam de um certo jeito peculiar, como lombolas e as realidades urbanas dialo-
uma forma de se adequar ao jogo lo- gam e se fundem, funcionando como
cal que regula as relações de gênero uma via de mão dupla: o mundo rural
e os relacionamentos afetivos e sexu- e quilombola não absorve passivamente
ais; Alan, por sua vez, não se afemina o influxo do mundo urbano, mas ne-
tanto, transgredindo as regras do jogo gocia com este último de acordo com
dos afetos, por isso deseja ir embora seus próprios interesses locais. Pedro,
do quilombo e viver na cidade grande Dênis, Bento e Alan têm aparelhos de
para deixar fluir seus desejos; Dênis e televisão em suas casas, acessam a rede
Alan sonham com um relacionamento internacional de computadores, fazem
estável e duradouro, uma “verdadei- amizades nas redes sociais virtuais, são
ra” vida de casal, o que é impossível escolarizados (em maior ou menor
no contexto rural e quilombola onde grau), circulam entre comunidades,
vivem – um relacionamento estável e cidades e capitais, interagem com um
duradouro seria uma outra transgres- grande número de pessoas... e selecio-
são das regras do jogo dos afetos, uma nam o que lhes parece mais interes-
infração da fluidez; todos os quatro sante, em cada um dos ambientes que
conseguem manter relações sexuais frequentam, para compor suas formas

84 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 62 - 89, 2016


As experiências da diversidade sexual e de gênero

particulares de pertencimento: eis a di- que seriam usados nomes fictícios para
nâmica cultural em ação. Comunidades designá-los e que os nomes de seus qui-
rurais quilombolas não são entes fe- lombos não seriam citados, já que o uso
chados, mas fazem parte de um mundo dos nomes reais poderia acarretar em for-
global em transformação. Com Pedro, mas de represália ou usos indevidos dos
dados, não só por parte de outros mora-
Dênis, Bento e Alan, aprendemos que
dores dos quilombos, mas sobretudo de
ser quilombola é mais do que ser des- grileiros e fazendeiros que vêm atuando
cendente de africanos escravizados tra- principalmente no quilombo marajoara e
zidos à força para o trabalho braçal nas também de moradores das cidades próxi-
Américas. Ser quilombola é também um mas frequentadas por esses jovens rapazes.
estar-no-mundo nos dias de hoje, pro- As entrevistas com Pedro e Dênis foram
duzindo diferenças e reconhecimento realizadas por Fabiano Gontijo, Daniel
para viabilizar a igualdade e a paridade. Oliveira da Silva e Célia da Silva Costa em
maio e outubro de 2012 (a Daniel e a Célia,
AGRADECIMENTOS nossos agradecimentos), ao passo que as
entrevistas com Bento e Alan foram rea-
Agradecemos ao Conselho Nacional lizadas por Bruno Rodrigo Carvalho Do-
de Desenvolvimento Científico e Tec- mingues ao longo de 2016. As entrevistas
nológico (CNPq) pela bolsa de Produ- foram realizadas e analisadas de acordo
tividades em Pesquisa para o primeiro com as recomendações de Bertaux (2005),
autor e pelas bolsas de Iniciação Cien- Feal (1990), Gonçalves et al. (2012) e Pe-
tífica para os dois outros autores. As neff (1990), levando-se em consideração a
maneira como os interlocutores se consti-
bolsas viabilizaram a realização da pes-
tuem como sujeitos e dão sentido a suas vi-
quisa.
das, através da discursividade elaborada no
processo de entrevista (Foucault, 2007, foi
NOTAS de grande importância para se pensar a re-
levância dos discursos e sua transformação
1
Ver Acevedo Marín & Castro (1998), Ar- em discursividades). Igor Erick contribuiu
ruti (2006), Duprat (2007), Fiabani (2005), nesse artigo com as análises e interpreta-
Gomes (1997), Leite (1999, 2000,2008), ções das entrevistas.
Martins (2006), Moura (1981), Oliveira
(2016), O’Dwyer (2002), Reis & Gomes
4
Há um grande projeto de pesquisa e ex-
(1996), Treccani (2006), dentre tantos ou- tensão cadastrado na Universidade Federal
tros – em comum, pode-se dizer que esses do Piauí, envolvendo pesquisadores brasi-
textos definem os quilombos rurais como leiros e estrangeiros, sendo desenvolvido
compostos por uma “territorialidade espe- em algumas comunidades quilombolas si-
cífica”, uma identidade de cunho étnico e tuadas na região norte do estado do Piauí.
um histórico de resistência à escravização. Em 2012, Fabiano Gontijo e dois estudan-
tes da UFPI, foram convidados a visitar
2
Encontramos, todavia, estudos sobre as uma das comunidades. Durante a estadia,
particularidades das relações de gênero e os pesquisadores conheceram e conversa-
sobre a interface entre gênero e etnicidade, ram com Pedro. Numa segunda visita, ain-
como, por exemplo, no texto esclarecedor da em 2012, os pesquisadores conheceram
de O’Dwyer (2016). e conversaram com Dênis. Agradecemos
3
Foi negociado com os interlocutores a uma das coordenadoras do projeto, pelo

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 62 - 89, 2016 85


Gontijo, Fabiano | Domingues, B. R. C. | Erick, Igor

convite e pela facilitação de acesso à co- Oliveira da Silva e encontram-se nos rela-
munidade (preferimos não nomeá-la aqui tórios produzidos a partir das duas visitas
para evitar toda e qualquer possibilidade à comunidade.
de identificação da comunidade em ques- 10
Embora Bento seja um conhecido dos
tão). Agradecemos ainda às lideranças da três autores desse artigo, a entrevista foi
comunidade, que autorizaram o acesso à concedida a Bruno Rodrigo Carvalho Do-
comunidade, mostrando-se muito interes- mingues durante sua estadia no quilombo
sadas pela temática da pesquisa. Enfim, para a realização de uma outra pesquisa.
agradecemos a Pedro, Dênis e a Antônio Sendo assim, apresentaremos a maneira
por terem conversado com os pesquisa- como Bruno chegou até Bento e ate Alan
dores. Apresentaremos a maneira como para a realização da entrevista e as princi-
Fabiano e os dois estudantes chegaram até pais informações coletadas, deixando de
Pedro, Dênis e Antônio para a realização lado, por enquanto, os outros dois autores
das conversas e entrevistas e as principais do artigo.
informações coletadas pelos pesquisado- 11
Trata-se de um projeto de pesquisa sobre
res, deixando de lado, momentaneamente,
“ecologia de saberes” (Santos, 2007) sob a
os outros dois autores desse artigo, Bruno
coordenação de um antropólogo da Uni-
e Igor.
versidade Federal do Pará (preferimos não
5
As aspas serão usadas, a partir daqui, nomeá-lo aqui para evitar toda e qualquer
sempre que se tratarem de trechos das falas possibilidade de identificação da comuni-
dos interlocutores. dade em questão). Bruno é orientando de
6
As informações sobre a história da co- Iniciação Científica desse Professor A ele,
munidade foram obtidas através de um nosso agradecimento pela disponibilidade
site de divulgação da própria comunidade em colaborar com nossa pesquisa.
(não podemos divulgar o endereço do site 12
Em Santarém, no interior do Pará, em
aqui, pois isso permitiria a identificação pesquisa que está sendo realizada por Fa-
da comunidade) e as informações sobre a biano Gontijo e Igor Erick, percebe-se
certificação, do site da Fundação Palmares: uma dinâmica de uso dos espaços seme-
http://www.palmares.gov.br/wp-content/ lhante à relatada por Bento, mas muito
uploads/2016/06/COMUNIDADES- diferente daquela apresentada nos estudos
-CERTIFICADAS.pdf sobre sociabilidades homossexuais nos
contextos dos grandes centros urbanos do
7
Respectivamente, Attalea speciosa, Mauritia
eixo centro-sul do Brasil (Gontijo & Erick
flexuosa e Copernicia prunifera.
2017, no prelo). Semelhanças são encon-
8
Programas dos Governos Federal e Esta- tradas também com as pesquisas de Ferrei-
dual, através da Caixa Econômica Federal, ra (2006) ou Nascimento (2012).
ajudaram a substituir as antigas casas de 13
Noção apresentada, dentre outros, por
taipa ou pau-a-pique por casas de alvena-
Perlongher (1987) no contexto urbano.
ria, mais resistentes. No entanto, a popu-
Usando Levine, o autor define os guetos
lação continua construindo cômodos de
enquanto culturais e residenciais. Propõe
taipa agregados às casas principais, já que que se pense o gueto enquanto um espaço
as casas de taipa se adequam melhor a al- socialmente determinado, ou construído,
gumas necessidades habitacionais locais. utilizados por pessoas homossexuais para
9
As informações estruturais sobre a co- finalidades diversas, distante dos olhos e
munidade foram fornecidas por Daniel do preconceito social, sem que seja neces-

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As experiências da diversidade sexual e de gênero

sário contabilizar uma grande quantidade M.S.C. & D. B. Santos (orgs.). 2015. Povos
de indivíduos. Não podemos, portanto, au- Tradicionais no Arquipélago do Marajó e Políti-
ferir o mesmo sentido de Perlongher, pois cas de Ordenamento Territorial e Ambiental. Rio
estamos trabalhando em um contexto qui- de Janeiro: CASA 8.
lombola, onde os espaços de sociabilidade
Arruti, J. M. 2006. Mocambo: antropologia e
são radicalmente distintos dos espaços de
história de formação do processo quilombola. Bau-
sociabilidade urbanos.
ru: EDUSC.
14
Bactris maraja  (marajá) é uma palmeira
Bertaux, D. 2005. Le Récit de Vie. Paris: Ar-
frequente nas margens de lagos e igarapés
mand Collin.
amazônicos, cujos frutos comestíveis são
consumidos por homens e animais. Bozon, M. e M. L. Heilborn. 2001. As ca-
rícias e as palavras: iniciação sexual no Rio
15
Euterpe oleracea Mart.
de Janeiro e em Paris. Novos Estudos CE-
16
Fora da capital paraense, é comum as- BRAP n. 59: 111-135.
sociar “andar” com “relacionar-se”; por-
tanto, quando o interlocutor diz “anda Brasil. 2003. Decreto nº 4.887,  de 20
com mulher”, diz que “se relaciona com de novembro de 2003. Disponível em:
mulher”. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de-
creto/2003/d4887.htm
17
É importante diferenciar o “andar” de
“ficar” no discurso de Alan, pois durante a Butler, J. 2000. Corpos que Pesam: sobre
entrevista, ficou nítido que “andar” é con- os limites discursivos do “sexo”. In: Lou-
tínuo, é relacionar-se de forma duradoura, ro, G. L. (org.). O corpo educado. Pedagogias da
ao passo que “ficar” é esporádico e oca- sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, pp.
sional. 151-168.
18
Termo do bajubá que, segundo nosso in- _______. 2003. Problemas de Gênero: femi-
terlocutor, significa “gay que só anda com nismo e subversão da identidade. Rio de
macho feio, que não se veste bem, que só Janeiro: Civilização Brasileira.
vive relaxado”. Bajubá, por sua vez, é o DaMatta, R. 1987. Digressão: A fábula das
“Nome que os homossexuais dão às gírias três raças, ou o problema do racismo à bra-
por eles utilizadas, incluindo nelas não so- sileira, in Relativizando: uma introdução à
mente as palavras, mas todo um jogo cor- antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco.
poral que permite o entendimento mais
apurado dos termos do bajubá.” (Silva Fi- Duprat, D. (org.) 2007. Pareceres Jurídicos:
lho & Palheta 2008). direitos dos povos e comunidades tradicionais.
Manaus: EdUEA.
19
“O que é o moreno?” Perguntou Bruno
a Alan. E ele respondeu: “Moreno é al- Feal, R. 1990. Spanish American Ethnobi-
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