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diversidade sexual e
gênero em quilombos
nordeste e do norte
Brasil: Para início
conver
sd
e de As experiências da
s do gênero diversidade sexual e de
em quilombos do
e do nordeste e do norte do
Brasil: Para início de conversa.
o de
rsa.
FABIANO GONTIJO
Professor Associado, PPGA/UFPA.
B R U NO R OD R I G O C A RVA L HO D O M I N G U E S
IGOR ERICK
Bacharelando em Antropologia, UFOPA
Gontijo, Fabiano | Domingues, B. R. C. | Erick, Igor
ções de vida dos quilombos da região dores não tardaram em perceber que,
onde reside; o segundo, 19 anos, estu- além de Pedro, havia outros rapazes
dante do Ensino Médio, que sonha em que não escondiam totalmente seu in-
sair do quilombo para morar na capital teresse afetivo e sexual por outros ra-
e fazer fluir seus desejos livremente).3 pazes, como Dênis.
Esses relatos devem contribuir para Pedro e Dênis são amigos de longa
mostrar como alguns marcadores so- data: o primeiro, afeminado, mas se
ciais da diferença, tais como corpora- recusa em se “travestir totalmente de
lidade, ruralidade, racialidade, etnicida- mulher”, embora tenha as unhas sem-
de, gênero e sexualidade, são acionados pre muito bem cuidadas, use batom
situacionalmente. Assim, será possível “cor de pele” nos lábios, delineie as
propor um conhecimento alternati- sobrancelhas e tenha cabelo “sempre
vo complementar sobre os modos de bem tratado, alisado”5; o segundo, tra-
vida de sujeitos quilombolas: eis a nos- veste-se para sair à noite, principalmen-
sa proposta para iniciar uma conversa te para ir às festas nas diversas comuni-
mais ampla sobre as múltiplas facetas dades quilombolas ou rurais da região,
das diversificadas realidades quilombo- usa shorts e blusas femininas durante
las no Brasil. o dia, mas não usa maquiagem. Além
da amizade, um segredo une os dois
rapazes: a relação amorosa que Dênis
DA MATA DOS COCAIS PIAUIENSE, mantinha com Antônio, o irmão mais
PEDRO E DÊNIS: A DIFÍCIL GESTÃO novo de Pedro, “um homem mesmo,
DOS FLUXOS DE AFETOS. homem de verdade, ele come homem
Conversando com uma colega de tra- e mulher”, segundo Pedro. O triângulo
balho, na Universidade Federal do relacional estava montado.
Piauí, Fabiano Gontijo4 foi informado A comunidade em questão está espar-
de que, numa comunidade quilom- ramada nas proximidades de uma fa-
bola onde ela atuava junto com uma zenda do Século XIX em ruínas. Nes-
equipe de pesquisadores brasileiros e sa fazenda, trabalhavam os ancestrais
estrangeiros, havia um rapaz, Pedro, escravizados das 62 famílias (pouco
bastante “peculiar” pela maneira como menos de 350 pessoas) que atualmente
cuidava zelosamente de suas unhas. Na compõem a comunidade. Na década
comunidade, segundo a colega, todos de 1990, a comunidade se organizou
diziam que ele era homossexual. Após para solicitar que os proprietários, que
conseguir a autorização das lideranças não apresentavam mais interesse eco-
quilombolas da comunidade, Fabiano nômico pela fazenda, a vendessem. No
Gontijo partiu com dois estudantes início da década de 2000, com recur-
para um breve período de observação sos de uma entidade estrangeira e da
direta e de conversa com Pedro, exa- Prefeitura, a fazenda foi desapropriada
tamente no momento em que estava e a propriedade da terra foi concedida
acontecendo uma das festividades da à associação de produtores rurais local
região. Ao chegarem lá, os pesquisa- em regime de comodato por tempo in-
Maria, para mim, foi bom demais outros rapazes, principalmente com
[a última ida à capital]! Andei mui- seu amante preferencial, Dênis, mesmo
to, só andando, vendo tudo. Se eu tendo namoradas. Desde então, Pedro,
passar dois, três dias, nunca me Antônio e Dênis viviam numa espécie
dou mal; mas para um ano, dois de triângulo relacional que gerenciava
anos, não dá, nunca, não gosto de
os ditos e os não-ditos dos três.
cidade... Não quero viver longe da
minha mãe, não quero. Nem longe Quanto a Dênis, tinha 22 anos no mo-
daqui, das brincadeiras, as festas.” mento da entrevista. Nasceu numa ou-
tra comunidade rural próxima à de Pe-
Pedro se considerava quilombola “por-
dro, que está passando pelo processo
que eu sou negro, sou mais claro que
de reconhecimento como comunidade
meu irmão, mas sou negro, a gente veio
quilombola. Desde muito cedo, ainda
de escravo, a fazenda tinha escravo, era
criança, se sentia atraído por homens e
tudo parente nosso, os fazendeiros dei-
se feminilizava: brincava com bonecas,
xaram a fazenda, mas nós ficou tudinho
se maquiava e colocava roupas de suas
aqui, nós somos quilombola descen-
três irmãs. Sua mãe era quebradeira de
dente de escravo.”
coco de babaçu e Dênis ia quebrar coco
O irmão de Pedro, Antônio, também com suas irmãs, sua mãe e as mulheres
afirmava seu pertencimento quilombo- da comunidade. Nunca trabalhou na
la. Um “quilombola macho”. Quando roça com os homens. Foi à escola até
Pedro contou aos pesquisadores que a primeira série do ensino médio, mas
Dênis e seu irmão “tinham um caso”, abandonou a escola porque achava
criou-se um interesse em conversar cansativo ter que ir à sede do muníci-
com Antônio. Pedro disse que, um dia, pio para ter aulas, assim como Pedro.
estava “ficando” com um rapaz em Durante sua infância, seus pais decidi-
sua casa, enquanto sua mãe havia ido ram migrar para o Maranhão. Alguns
à sede do município e seu irmão, esta- meses depois, seu único irmão decidiu
va trabalhando. Mas, seu irmão voltou voltar para o Piauí, indo morar na co-
mais cedo e viu os dois na cama. Seu munidade de Pedro, onde residia sua
irmão esperou que terminassem e lhe noiva. Dênis foi morar com o irmão,
disse que era para tomar cuidado para bem em frente à casa de Pedro. Assim
a mãe não saber daquilo. Pedro espe- começou a amizade com Pedro. Juntos,
rava uma reação mais agressiva por eles seduziam os homens da comuni-
parte de seu irmão. Algumas semanas dade, vestindo-se com roupas femini-
depois, quando Dênis estava passando nas e se maquiando. Seus pais não se
uns dias em sua casa, Pedro viu os dois adaptaram muito bem ao Maranhão e
se relacionando sexualmente. Dênis e resolveram voltar ao Piauí, indo morar
Antônio perceberam que Pedro os ha- na mesma comunidade onde moravam
via “descoberto”, mas fizeram como se antes. Dênis ficou morando um pouco
nada tivesse acontecido. Antônio era na casa de seu irmão e um pouco na
um dos rapazes da comunidade conhe- casa de seus pais. Depois, passou a mo-
cido por manter relações sexuais com rar também na casa de Pedro, quando
Bruno poderia pressupor que haveria versar sobre assuntos diversos, desde o
ali uma certa facilidade para se apro- currículo dos seus cursos de graduação,
ximar de Bento e falar sobre sexuali- passando pela situação política do País
dade. Ao serem apresentados um ao e os impactos do golpe jurídico-políti-
outro, durante a primeira atividade do co-midiático ocorrido em 2016 sobre
projeto, Bento disse que era quilombo- a situação das pessoas negras – afinal,
la, que participava ativamente da luta Bruno também compõe o movimento
quilombola e que sua comunidade era negro paraense e, assim, aproveitaram
próxima de onde Bruno e a equipe es- para conversar sobre como articular
tavam pesquisando. movimentos de negros urbanos com
Como, então, Bruno “reconheceu” a os movimentos quilombolas e demais
homossexualidade de Bento? Bento negros rurais –, até assuntos de cunho
infringia alguns padrões socialmente mais pessoal, família, amigos, relacio-
estabelecidos sobre como homens e namentos amorosos, entre outros, mas
mulheres falam e gesticulam ou como em nenhum momento Bento tocou no
homens e mulheres devem se vestir ou assunto da sexualidade, e optou-se por
como devem se comportar, portanto, não conduzi-lo a tal assunto – pelo me-
Bruno viu em Bento um “igual”, um nos, por enquanto.
“mesmo”. Mas, como explicar, durante Em alguns momentos, perceberam-se
uma pesquisa sobre “ecologia de sabe- falas que pareciam indícios de formas
res”11, que Bruno gostaria de entrevis- de preconceitos de cunho sexual ou
tá-lo para outra pesquisa, relacionada de gênero, quando Bento conversava
a gênero e sexualidade? Bento sequer com algumas pessoas da comunidade,
havia se identificado enquanto homos- geralmente pessoas mais velhas que
sexual, mas, dado sua performance de têm contato direto com a família de
gênero (Butler, 2003), Bruno já havia Bento; então, em conversas com elas,
percebido que, sendo homossexual ou percebia-se ali um “outro Bento”, com
não, ele seria um sujeito em potencial voz firme e mais grossa, um modo de
para a pesquisa sob a coordenação de agir diferente, com falas que até re-
Fabiano Gontijo, sobre as experiências produziam certos preconceitos. Ficou
da diversidade sexual e de gênero em claro que havia uma preocupação, por
contextos rurais e situações etnica- parte de Bento, enquanto uma jovem
mente diferenciadas e quilombos. liderança quilombola, em reforçar a
Mais tarde, a equipe do projeto se reu- masculinidade. Contudo, assim que
niu para dividir as tarefas e, por conse- os dois se afastavam daquelas pessoas,
guinte, montar as equipes, compostas voltavam à configuração anterior de
por oito pessoas. Seriam formadas, interação. Estaria Bento acionando um
portanto, quatro duplas e, coincidente- “armário”, quando interagia com pes-
mente, Bento viria a ser o parceiro de soas próximas à sua família? Segdwick
Bruno na dupla. Durante as longas ca- (2007) sugere que uma pessoa nunca
minhadas pela comunidade onde esta- se livra totalmente de seus “armários”,
vam, Bruno e Bento costumavam con- por mais “desconstruída” que seja a
pra ele e vi que o ‘coiso’ dele estava casado de lá. Eles gostam de corpo fe-
assim... Duro né?! Aí, eu perguntei minino, bunda grande... Mas as mulhe-
se ele tinha camisinha, e ele disse res, às vezes, não faz o que a gente faz,
que estava no bote, e aconteceu lá né?! Daí, eles procuram a gente. Prefi-
mesmo. A gente ficou um tempo, ro os solteiros.”
mas tem mais de um ano que a gen-
te não fica... Desde que eu comecei Tais dados remeteriam à “heterossexu-
a universidade.” alidade como modelo social”, (Miskol-
ci 2009: 6) ou à “heterossexualidade
Bento tem muitas histórias sobre os
compulsória” (Rich 1983), mas com
relacionamentos com rapazes da co-
fortes nuanças – já que nossa amostra
munidade, que não se afirmam en-
ainda é muito reduzida e nos impede
quanto homossexuais, durante as
de propor generalizações perigosas.
atividades de trabalho ou de lazer na
Afinal, tal como apontava Foucault
mata, assim como nosso interlocutores
(2001), o sexo sempre carregou a ver-
piauienses.12 Percebe-se, portanto, que
dade por trás dos seres humanos; logo,
a mata, longe das vilas, sítios ou cami-
a ação de manterem casamentos hete-
nhos da comunidade e demais espaços
rossexuais, e, ao mesmo tempo, viven-
de trabalho no meio rural parecem ser
ciarem práticas sexuais com pessoas
espaços privilegiados (os “guetos da ru-
consideradas como sendo do mesmo
ralidade”?13) para as relações afetivas e
sexo ainda se afirmando como hete-
sexuais entre jovens homens, em meio rossexuais reforçaria que tal afirmação
a encantados e visagens, entes sobre- nada mais seria do que uma forma de
naturais típicos do cenário amazônico: garantir a hegemonia das relações de
“Eu fui com um homem da minha poder vivenciadas no cotidiano. Isso
comunidade, casado, pegar mara- vale também para a realidade piauiense
jás14, aí chegou lá, ele perguntou se
relatada mais acima. Mas, os homosse-
eu queria transar. E a gente “ficou”
xuais teriam que ser afeminados, como
lá mesmo. Também teve outro ca-
sado, quando a gente tava pegando
vimos com Pedro e Dênis, embora afe-
açaí15... Mas aí, tinha muita gente, minados de um certo jeito.
era um grupo de homens da co- Bento relatou que somente um rapaz
munidade... Aí, ele se afastou e me em sua comunidade disse abertamen-
chamou, aí, perguntou se eu queria te ser homossexual. Ele percebeu que,
e eu disse que sim. A gente entrou nas comunidades quilombolas, existia
mais pra dentro do mato e aconte- muitos jovens homossexuais ou bisse-
ceu.”
xuais, mas que, dado o medo, não pre-
É comum que homens casados bus- tendiam “se assumir” – Bento, aqui,
quem relações extraconjugais com ra- usou as categorias comumente usadas
pazes na comunidade de Bento, assim nos grandes centros urbanos, cate-
como na comunidade piauiense citada gorias médico-científicas, como “ho-
mais acima. Sobre isso, ele nos diz: “É mossexual”, “bissexual” e até mesmo
normal, isso, na minha comunidade; “gay”, mostrando, assim, seu trânsito
eu mesmo já fiquei com muito homem entre rural e urbano e a maneira como
de uma pesquisa com garantia de ano- desde 2014. Nunca contou para a sua
nimato e que ele poderia ficar tranqui- família, pois não precisou: as vizinhas
lo, pois seus dados pessoais não seriam contaram. Ainda assim, sempre que
divulgados. Bruno acabou tendo que sua mãe o perguntava, ele ainda nega:
retornar a Belém, frustrado, sem tê-lo “Minha mãe sabe e me pergun-
entrevistado. ta, mas eu nego. Teve um tempo
Em setembro de 2016, Bruno voltou também que eu estava na 6ª série e
mamãe me perguntou se eu sentia
a campo. Num dos últimos dias, pôde,
atração por homem, e eu disse que
enfim, se concretizar a conversa com não, peguei minha mochila e fui
Alan. O interlocutor esclareceu sobre embora pra escola. Ela sabe... Dis-
a razão de não ter ido aos encontros se que vai contar pro meu pai, ele
anteriores: “Eu perguntava pra Jô ‘o mora em outra cidade, vem pra cá
que que esse homem quer comigo? Ai, só no Natal... Uma pessoa aqui da
será que vou ter que responder algo di- passagem contou pra minha mãe
fícil?’ e ela dizia que não, mas eu ficava que meu namorado veio da cidade
meio assim [balançando a cabeça para pra minha festa de aniversário aqui,
demonstrar falta de confiança]...” e ela disse que quando o papai che-
gar vamos conversar sério. Aqui o
A entrevista aconteceu no bar situado meu nome roda, dizem que eu te-
em frente à casa de Jô, na comunidade nho macho, que eu tenho marido,
em que Alan mora. Bruno contou com tudo mentira. Quando o papai che-
a ajuda de um outro estudante do cur- gar, aí, eu não sei, né?! Aí, eu vou
so de Ciências Sociais da UFPA que, ter que falar a verdade, não dá pra
na época, o acompanhava em campo negar o tempo todo.”
para definir o tema de seu trabalho de O interlocutor sempre negou quando
conclusão de curso. Eles se sentaram sua mãe o perguntava acerca de sua se-
em cadeiras ao lado de um bilhar, os xualidade para poupar a família, pois,
estudantes um ao lado do outro e Alan, segundo ele, todos dizem que na fa-
em frente aos dois. Tomavam café e mília dele não têm homossexuais, nem
comiam biscoitos enquanto a conversa “espaço pra gay”.
fluía. “Eu sinto vergonha, a minha fa-
Bruno iniciou explicando do que a pes- mília sempre diz que não tem gay
quisa tratava, de sua importância e que na nossa família, só que já têm três
os dados pessoais de Alan não seriam comigo, mas meus primos são bem
mais discretos, elas nem descon-
divulgados. Disse-lhe que seria inicia-
fiam. Pra eles, vai ser uma vergonha
da uma conversa, permeada de poucas
enorme, mas gosto não se discute,
perguntas, e que, se em algum momen- né?! E eu tenho vergonha da socie-
to o interlocutor se sentisse desconfor- dade, também, porque a partir do
tável ou achasse que as perguntas esta- momento que tu te assumes como
vam sendo invasivas, que poderia pedir gay, a sociedade te olha com outros
a interrupção da conversa. olhos.”
Alan se afirma como “homossexual” Alan não entrou em detalhes acerca de
sua iniciação sexual, disse que foi “nor- constituem sob os moldes da hetero-
mal, com muita conversa, tem que ter normatividade, uma vez que é como
conversa, né?! Não pode ser nada for- se o “passivo” precisasse esperar e ser
çado”. Disse que já ficou com rapazes submisso ao “ativo”, ou ao “macho de
da comunidade, mas que não se sente verdade”, num sistema onde tudo o
muito à vontade para isso, pois, segun- que remete ao “não homem” é auto-
do ele: “Os caras daqui que são sol- maticamente tido como “abjeto” (Bu-
teiros ficam contigo e espalham pros tler, 2000) e que necessita obedecer às
amigos, daí, depois que todo mundo já hierarquias. Mas, há negociação entre
tá sabendo, eles dizem que é mentira. os sujeitos, até mesmo para definir as
Teve um que é casado e que eu tive que fronteiras da abjeção e as posições na
ir lá falar com a mulher dele, dizer que hierarquia.
era mentira, fofoca.” O interlocutor falou acerca de pre-
Uma consideração importante a se fa- conceito e racismo no Marajó, além
zer é que o “ser homem” na concep- de fofocas, tema que, aliás, aparecia
ção de Alan, tem a ver com: “homem, em quase todos os pontos que Bruno
pra mim, é o que anda16 com mulher, colocava durante a conversa, como se
não o que anda com homem; tem ho- pode observar nos trechos a seguir:
mem que até fica17 com outro homem, “Aqui na comunidade ninguém
mas tem uma mulher.” Sendo assim, a gosta de se comprometer. Se eu es-
imagem do homem é construída sobre tou namorando contigo, por exem-
os padrões heteronormativos, em que plo, e a gente se expõe, isso vai virar
só é “homem de verdade”, “macho”, um fato. E aqui ninguém gosta de
ver os seus problemas, né?! Só gos-
aquele que constitui relações heteros-
tam de falar dos outros. Mas, quan-
sexuais permanentes, mesmo que es-
to mais eles falam, quanto mais eu
poradicamente e sem se afirmar como faço! A vida é só uma, temos mais
tal, tenha relações sexuais provisórias que aproveitar.”
com outros homens, mais ou menos “Lá na minha escola ia ter o concur-
como bem nos apontaram Fry (1982) so de Mister. Daí, eu nem queria,
e, depois, Parker (1991). Alan também mas começaram a falar meu nome,
tem uma forma peculiar de classificar e eu fui. Aí, chegou um outro meni-
“atividade” e “passividade” no rela- no lá de outra turma, que também
cionamento entre homens. Segundo o estava concorrendo. Ele é branco,
interlocutor: “O passivo, ele não pode alto, e disse que ia me bater, que eu
era uma bicha “muito por fora”18 e
ser atirado, ele tem que ser calmo, ser
que ele não gostava de mim. Teve
paciente e esperar. O ativo é quem che-
outro menino também que, eu esta-
ga e já chama, puxa pra dançar, convi- va passando no corredor da escola,
da pra transar, isso é o dever dele.” Isso e ele me xingou; e eu voltei, dei de
se repete na realidade rural piauiense porrada nele. Porque antes eu não
relatada acima. falava nada, mas agora, eu brigo e
Neste sentido, as noções de “ativida- muito!”
de” e “passividade” aqui também se Alan também relatou sobre o racis-
particulares de pertencimento: eis a di- que seriam usados nomes fictícios para
nâmica cultural em ação. Comunidades designá-los e que os nomes de seus qui-
rurais quilombolas não são entes fe- lombos não seriam citados, já que o uso
chados, mas fazem parte de um mundo dos nomes reais poderia acarretar em for-
global em transformação. Com Pedro, mas de represália ou usos indevidos dos
dados, não só por parte de outros mora-
Dênis, Bento e Alan, aprendemos que
dores dos quilombos, mas sobretudo de
ser quilombola é mais do que ser des- grileiros e fazendeiros que vêm atuando
cendente de africanos escravizados tra- principalmente no quilombo marajoara e
zidos à força para o trabalho braçal nas também de moradores das cidades próxi-
Américas. Ser quilombola é também um mas frequentadas por esses jovens rapazes.
estar-no-mundo nos dias de hoje, pro- As entrevistas com Pedro e Dênis foram
duzindo diferenças e reconhecimento realizadas por Fabiano Gontijo, Daniel
para viabilizar a igualdade e a paridade. Oliveira da Silva e Célia da Silva Costa em
maio e outubro de 2012 (a Daniel e a Célia,
AGRADECIMENTOS nossos agradecimentos), ao passo que as
entrevistas com Bento e Alan foram rea-
Agradecemos ao Conselho Nacional lizadas por Bruno Rodrigo Carvalho Do-
de Desenvolvimento Científico e Tec- mingues ao longo de 2016. As entrevistas
nológico (CNPq) pela bolsa de Produ- foram realizadas e analisadas de acordo
tividades em Pesquisa para o primeiro com as recomendações de Bertaux (2005),
autor e pelas bolsas de Iniciação Cien- Feal (1990), Gonçalves et al. (2012) e Pe-
tífica para os dois outros autores. As neff (1990), levando-se em consideração a
maneira como os interlocutores se consti-
bolsas viabilizaram a realização da pes-
tuem como sujeitos e dão sentido a suas vi-
quisa.
das, através da discursividade elaborada no
processo de entrevista (Foucault, 2007, foi
NOTAS de grande importância para se pensar a re-
levância dos discursos e sua transformação
1
Ver Acevedo Marín & Castro (1998), Ar- em discursividades). Igor Erick contribuiu
ruti (2006), Duprat (2007), Fiabani (2005), nesse artigo com as análises e interpreta-
Gomes (1997), Leite (1999, 2000,2008), ções das entrevistas.
Martins (2006), Moura (1981), Oliveira
(2016), O’Dwyer (2002), Reis & Gomes
4
Há um grande projeto de pesquisa e ex-
(1996), Treccani (2006), dentre tantos ou- tensão cadastrado na Universidade Federal
tros – em comum, pode-se dizer que esses do Piauí, envolvendo pesquisadores brasi-
textos definem os quilombos rurais como leiros e estrangeiros, sendo desenvolvido
compostos por uma “territorialidade espe- em algumas comunidades quilombolas si-
cífica”, uma identidade de cunho étnico e tuadas na região norte do estado do Piauí.
um histórico de resistência à escravização. Em 2012, Fabiano Gontijo e dois estudan-
tes da UFPI, foram convidados a visitar
2
Encontramos, todavia, estudos sobre as uma das comunidades. Durante a estadia,
particularidades das relações de gênero e os pesquisadores conheceram e conversa-
sobre a interface entre gênero e etnicidade, ram com Pedro. Numa segunda visita, ain-
como, por exemplo, no texto esclarecedor da em 2012, os pesquisadores conheceram
de O’Dwyer (2016). e conversaram com Dênis. Agradecemos
3
Foi negociado com os interlocutores a uma das coordenadoras do projeto, pelo
convite e pela facilitação de acesso à co- Oliveira da Silva e encontram-se nos rela-
munidade (preferimos não nomeá-la aqui tórios produzidos a partir das duas visitas
para evitar toda e qualquer possibilidade à comunidade.
de identificação da comunidade em ques- 10
Embora Bento seja um conhecido dos
tão). Agradecemos ainda às lideranças da três autores desse artigo, a entrevista foi
comunidade, que autorizaram o acesso à concedida a Bruno Rodrigo Carvalho Do-
comunidade, mostrando-se muito interes- mingues durante sua estadia no quilombo
sadas pela temática da pesquisa. Enfim, para a realização de uma outra pesquisa.
agradecemos a Pedro, Dênis e a Antônio Sendo assim, apresentaremos a maneira
por terem conversado com os pesquisa- como Bruno chegou até Bento e ate Alan
dores. Apresentaremos a maneira como para a realização da entrevista e as princi-
Fabiano e os dois estudantes chegaram até pais informações coletadas, deixando de
Pedro, Dênis e Antônio para a realização lado, por enquanto, os outros dois autores
das conversas e entrevistas e as principais do artigo.
informações coletadas pelos pesquisado- 11
Trata-se de um projeto de pesquisa sobre
res, deixando de lado, momentaneamente,
“ecologia de saberes” (Santos, 2007) sob a
os outros dois autores desse artigo, Bruno
coordenação de um antropólogo da Uni-
e Igor.
versidade Federal do Pará (preferimos não
5
As aspas serão usadas, a partir daqui, nomeá-lo aqui para evitar toda e qualquer
sempre que se tratarem de trechos das falas possibilidade de identificação da comuni-
dos interlocutores. dade em questão). Bruno é orientando de
6
As informações sobre a história da co- Iniciação Científica desse Professor A ele,
munidade foram obtidas através de um nosso agradecimento pela disponibilidade
site de divulgação da própria comunidade em colaborar com nossa pesquisa.
(não podemos divulgar o endereço do site 12
Em Santarém, no interior do Pará, em
aqui, pois isso permitiria a identificação pesquisa que está sendo realizada por Fa-
da comunidade) e as informações sobre a biano Gontijo e Igor Erick, percebe-se
certificação, do site da Fundação Palmares: uma dinâmica de uso dos espaços seme-
http://www.palmares.gov.br/wp-content/ lhante à relatada por Bento, mas muito
uploads/2016/06/COMUNIDADES- diferente daquela apresentada nos estudos
-CERTIFICADAS.pdf sobre sociabilidades homossexuais nos
contextos dos grandes centros urbanos do
7
Respectivamente, Attalea speciosa, Mauritia
eixo centro-sul do Brasil (Gontijo & Erick
flexuosa e Copernicia prunifera.
2017, no prelo). Semelhanças são encon-
8
Programas dos Governos Federal e Esta- tradas também com as pesquisas de Ferrei-
dual, através da Caixa Econômica Federal, ra (2006) ou Nascimento (2012).
ajudaram a substituir as antigas casas de 13
Noção apresentada, dentre outros, por
taipa ou pau-a-pique por casas de alvena-
Perlongher (1987) no contexto urbano.
ria, mais resistentes. No entanto, a popu-
Usando Levine, o autor define os guetos
lação continua construindo cômodos de
enquanto culturais e residenciais. Propõe
taipa agregados às casas principais, já que que se pense o gueto enquanto um espaço
as casas de taipa se adequam melhor a al- socialmente determinado, ou construído,
gumas necessidades habitacionais locais. utilizados por pessoas homossexuais para
9
As informações estruturais sobre a co- finalidades diversas, distante dos olhos e
munidade foram fornecidas por Daniel do preconceito social, sem que seja neces-
sário contabilizar uma grande quantidade M.S.C. & D. B. Santos (orgs.). 2015. Povos
de indivíduos. Não podemos, portanto, au- Tradicionais no Arquipélago do Marajó e Políti-
ferir o mesmo sentido de Perlongher, pois cas de Ordenamento Territorial e Ambiental. Rio
estamos trabalhando em um contexto qui- de Janeiro: CASA 8.
lombola, onde os espaços de sociabilidade
Arruti, J. M. 2006. Mocambo: antropologia e
são radicalmente distintos dos espaços de
história de formação do processo quilombola. Bau-
sociabilidade urbanos.
ru: EDUSC.
14
Bactris maraja (marajá) é uma palmeira
Bertaux, D. 2005. Le Récit de Vie. Paris: Ar-
frequente nas margens de lagos e igarapés
mand Collin.
amazônicos, cujos frutos comestíveis são
consumidos por homens e animais. Bozon, M. e M. L. Heilborn. 2001. As ca-
rícias e as palavras: iniciação sexual no Rio
15
Euterpe oleracea Mart.
de Janeiro e em Paris. Novos Estudos CE-
16
Fora da capital paraense, é comum as- BRAP n. 59: 111-135.
sociar “andar” com “relacionar-se”; por-
tanto, quando o interlocutor diz “anda Brasil. 2003. Decreto nº 4.887, de 20
com mulher”, diz que “se relaciona com de novembro de 2003. Disponível em:
mulher”. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de-
creto/2003/d4887.htm
17
É importante diferenciar o “andar” de
“ficar” no discurso de Alan, pois durante a Butler, J. 2000. Corpos que Pesam: sobre
entrevista, ficou nítido que “andar” é con- os limites discursivos do “sexo”. In: Lou-
tínuo, é relacionar-se de forma duradoura, ro, G. L. (org.). O corpo educado. Pedagogias da
ao passo que “ficar” é esporádico e oca- sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, pp.
sional. 151-168.
18
Termo do bajubá que, segundo nosso in- _______. 2003. Problemas de Gênero: femi-
terlocutor, significa “gay que só anda com nismo e subversão da identidade. Rio de
macho feio, que não se veste bem, que só Janeiro: Civilização Brasileira.
vive relaxado”. Bajubá, por sua vez, é o DaMatta, R. 1987. Digressão: A fábula das
“Nome que os homossexuais dão às gírias três raças, ou o problema do racismo à bra-
por eles utilizadas, incluindo nelas não so- sileira, in Relativizando: uma introdução à
mente as palavras, mas todo um jogo cor- antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco.
poral que permite o entendimento mais
apurado dos termos do bajubá.” (Silva Fi- Duprat, D. (org.) 2007. Pareceres Jurídicos:
lho & Palheta 2008). direitos dos povos e comunidades tradicionais.
Manaus: EdUEA.
19
“O que é o moreno?” Perguntou Bruno
a Alan. E ele respondeu: “Moreno é al- Feal, R. 1990. Spanish American Ethnobi-
guém mais escuro que eu, tu, por exemplo, ography and the Slave Narrative Tradition:
é moreno”. “Biografía de un Cimarrón” y “Me Llamo
Rigoberta Menchú”. Modern Language Stu-
dies v. 20, n. 1: 100-111.
REFERÊNCIAS
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Acevedo Marín, R.E., Teles, E. , Cardoso, -Graduação em Estudos Comparados so-