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FORMAÇÃO HUMANÍSTICA

Aula 6 – TEMAS DE SOCIOLOGIA JURÍDICA


PROFESSOR DANIEL CHIARETTI
1. Introdução à sociologia jurídica

A sociologia consiste no “estudo científico da vida humana, de grupos sociais, de sociedades inteiras
e do mundo humano”1.
Inspirado em Anthony Giddens, sugiro um exercício de “imaginação sociológica”: o que
seria possível falar sobre o ato de comer uma barra de chocolate? Muitas coisas. Pode ser
um ritual simbólico de grande valor pessoal ou social. Pode ser um meio de interação social
ou um cortejo afetivo. Pode ser um estímulo para relaxar em uma situação de estresse.
Podemos analisar o chocolate no contexto do comércio internacional, lembrando todas as
interfaces necessárias para que o chocolate chegue até nós. Podemos pensar no
desenvolvimento histórico do chocolate, que para os povos astecas tinha um papel social
distinto. Podemos analisar o chocolate lembrando que o cacau é produzido por países
pobres, como a Costa do Marfim, onde a massa da população jamais provou chocolate.2
Podemos pensar nos impactos ambientais do consumo em massa do cacau, ou na opção de
certos grupos em consumirem chocolate orgânico ou artesanal. Enfim, todos esses temas
permitem analisar um tema que, à primeira vista, era individual, como algo mais amplo.
Assim, é interessante pensar no papel da sociologia como o de investigação das conexões entre a
estrutura social e o comportamento dos indivíduos. Essa investigação assume diversas formas dentro da
sociologia, mas de modo geral podemos afirmar que a disciplina depende tanto de perspectivas teóricas
quanto de análises empíricas ou factuais. Ou seja, uma explicação sociológica, como o impacto da
indústria do cacau, pode buscar, a partir de certos dados empíricos (concentração de renda, distribuição
dos cargos conforme o gênero dos trabalhadores, modelo das trocas comerciais etc.), formular uma
explicação. Esse trabalho, contudo, estará orientado por um conhecimento teórico.3
Do ponto de vista histórico, a disciplina surge de forma autônoma a partir das mudanças sociais,
econômicas e culturais ocorridas na Europa a partir do século XVIII, em especial aquelas decorrentes da
Revolução Francesa e da Revolução Industrial: urbanização, surgimento de novas classes sociais
(burguesia e proletariado), secularização e alteração das relações sociais. Neste contexto, os cientistas
sociais buscaram compreender essa nova ordem a partir da perspectiva de grupos sociais. A disciplina se
desenvolve de forma mais sistemática a partir do século XIX com o trabalho de autores como Auguste
Comte, e, principalmente, a tríade Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber.
A sociologia do direito, a seu turno, tem por objeto as relações sociais estabelecidas, de forma mútua,
entre o Direito e a sociedade. Isso significa que a sociologia jurídica, a partir de um método específico,
investiga a influência da sociedade no direito, bem como o impacto deste nas relações sociais. O jurista-
sociólogo faz uma leitura externa do direito, examinando as relações entre o direito e a sociedade. Assim,
“o jurista-sociólogo desvincula-se da dogmática jurídica, apesar de permanecer ligado ao direito.”4

1
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6ª. Ed. Porto Alegre: Penso, 2012, p. 19.
2
https://revistagalileu.globo.com/blogs/buzz/noticia/2014/07/na-costa-do-marfim-produtores-de-cacau-provam-chocolate-
pela-primeira-vez.html
3
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6ª. Ed. Porto Alegre: Penso, 2012, pp. 20-23.
4
SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: RT, 2018. p. 51.

1
Do ponto de vista histórico, costuma-se atribuir a fundação da sociologia do direito ao austríaco
Eugen Ehrlich (1862-1922), o qual teria sido pioneiro ao escrever a obra Fundamentos da Sociologia do
Direito (1913). Neste livro, Ehrlich adotou uma concepção social do direito. Como explica Luciano Oliveira:
Daí que ele considere como o verdadeiro direito aqueles usos e costumes realmente
observados pelos grupos sociais, não só os reconhecidos pelo direito oficial, mas também
os que passaram despercebidos e até mesmo os que a lei desaprovou. É o que chama de
‘direito vivo’.5
Este foco no “direito vivo” relaciona-se com a crítica ao direito legislado, incapaz de lidar com as
especificidades sociais. E, do ponto de vista metodológico, Ehrlich propunha ênfase em pesquisas
empíricas.
Voltando para uma abordagem mais conceitual, de acordo com Ricardo Maurício Freire Soares a
sociologia jurídica pode ser definida como um saber científico (apresenta-se como um conhecimento
racional, sistemático e metódico, com um objeto específico), empírico (estuda o fenômeno jurídico a
partir do mundo do ser), causal (se vale da causalidade para estabelecer a relação entre o fenômeno
jurídico e a realidade social) e zetético (reflexão crítica sobre as relações entre o direito e a sociedade). 6
É importante destacar ainda que a abordagem sociológica do direito exige a aplicação de um método
que permita uma avaliação do fenômeno jurídico do modo mais isento possível. Isso significa que o
intérprete não pode já chegar com uma conclusão pronta, mas sim, a partir de um método de pesquisa
(teórico ou empírico), buscar extrair de maneira objetiva as conclusões a partir da realidade social.
Esta abordagem é muito valorizada por Max Weber, o qual preza pela neutralidade axiológica, ou
seja, despreza, do ponto de vista da sociologia, a busca por um significado objetivamente certo ou errado
do ponto de vista do valor. Assim, se o objeto do estudo for, por exemplo, o encarceramento no Brasil,
caberia ao cientista social avaliar os impactos dessa política em diversos campos (econômico, familiar,
reincidência etc.), e não fazer um juízo de valor sobre a política, “contaminando” a pesquisa. Esta é,
contudo, uma visão simples do tema que encontra desafios na contemporaneidade.
De acordo com a Resolução 75/CNJ, são poucos os temas de sociologia cobrados no edital básico da
magistratura. Contudo, como o edital básico é aberto e pode ser expandido pelos Tribunais,
eventualmente há a cobrança de autores específicos. Pode-se mencionar, por exemplo, Weber, que já
esteve presente no edital para o XIX concurso do TRF3 e foi cobrado explicitamente no 186º Concurso do
TJSP. Desse modo, escolherei alguns autores que já estiveram presentes em provas ou editais.
Além disso, alguns temas presentes na resolução básica merecem atenção, como “Relações sociais e
relações jurídicas. Controle social e o Direito. Transformações sociais e o Direito”. A partir desta temática
decidi abordar a questão do pluralismo jurídico, tema que já foi objeto, por exemplo da questão
dissertativa no TJPE de 2015.
Por fim, deixarei de fora alguns itens do edital que, apesar de serem classificados como “sociologia
do direito”, estão mais relacionados a aspectos administrativos do judiciário (“Aspectos gerenciais da
atividade judiciária (administração e economia). Gestão. Gestão de pessoas”) ou ao Direito Processual
Civil (composição de conflitos).

5
OLIVEIRA, Luciano. Manual de Sociologia Jurídica. Editora Vozes. Edição Kindle.
6
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Sociologia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 17-19.

2
2. Max Weber

Max Weber (1864-1920) é considerado um dos fundadores da sociologia moderna ao lado de Karl
Marx e Émile Durkheim. O autor nasceu em Erfurt, na Alemanha. Cursou filosofia, economia e direito,
tendo inclusive dado aulas de direito cambiário. Sua obra foi extremamente ampla, tendo abordado temas
como economia, direito e religião. Faleceu em 1920 na pandemia da gripe espanhola. Neste material,
vamos nos concentrar apenas em alguns assuntos da rica obra weberiana.
Inicialmente, vale marcar uma diferença com relação a autores que buscavam uma explicação
sociológica através da descoberta de leis. Weber defendeu uma sociologia como ciência interpretativa,
que buscava a compreensão, diferenciando-se, portanto, das ciências naturais. Não buscava, desse modo,
descobrir um significado objetivamente correto em sua sociologia.
Um ponto que merece ser enfatizado do ponto de vista da metodologia de Weber é sua aspiração
pela neutralidade axiológica. Isso significa que, para Weber, o cientista social deveria deixar de lado suas
preferências ideológicas, valores, posições pessoais etc. para manter um certo ideal de imparcialidade
perante o objeto de estudos.
Weber sabia que a objetividade absoluta era impossível, já que somos todos “seres de cultura”, de
modo que a distinção entre “fato” e “valor” nunca é absoluta. Mesmo assim, afirmava que os cientistas
sociais deveriam fazer um esforço para distinguir suas convicções pessoais daquilo que é extraído do
objeto de estudos a partir do método adequado. Weber admite, no entanto, que na escolha do objeto de
estudos os valores possuem influência. Todavia, no momento da pesquisa, os cientistas devem se afastar
desses valores.
Pois bem. Um dos principais temas tratados por Weber ao longo de sua obra foi o funcionamento do
Estado moderno. Aponta o autor que o Estado contemporâneo deve ser compreendido como “uma
comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território - a noção de território
corresponde a um dos elementos essenciais do Estado – reivindica o monopólio do uso legítimo da
violência física”.7 Ou seja, consiste o Estado na dominação do ser humano pelo ser humano por meio da
violência física através de um “direito”.
O poder fundado exclusivamente na força física seria muito instável. Assim, é importante que haja o
estabelecimento do que Weber chama de dominação legítima. Segundo Weber, essa dominação é a
probabilidade de que um grupo determinável de indivíduos (em consequência de vários motivos)
oriente sua ação social a emitir ordens, somada à probabilidade de que outro grupo, também
determinável, oriente sua ação social para a obediência (em consequência de vários motivos), e que as
ordens sejam de fato cumpridas em um nível sociologicamente relevante.
Como explica Stephen Kalberg, “[a] dominação pode ser adstrita a diferentes indivíduos, como juízes,
funcionários públicos, banqueiros, artesãos e chefes tribais. Todos exercem dominação sempre que
reclamam obediência e, de fato, a suscitam”.8

7
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2011. pp. 66-67.
8
KALBERG, Stephen. Weber: uma introdução. São Paulo: Zahar, 2010.

3
Nesse sentido, segundo Weber as pessoas assumem uma posição de autoridade quando são capazes
de emitir uma ordem com razoável certeza de cumprimento. Isso ocorre, no entanto, apenas quando
aqueles que recebem as ordens acreditam na legitimidade daquele que as emite.
Mas de onde decorre a legitimidade para o exercício desta dominação no âmbito do Estado? Ou seja,
quando a submissão à dominação adquire um caráter voluntário? De acordo com Weber, os sistemas de
autoridade variam conforme a sociedade e o momento histórico. Ele aponta, assim, três tipos de
autoridade, ou seja, crenças típicas que fundamentam a validade da dominação:
a) Dominação tradicional: crença na santidade de tradições imemoriais e na legitimidade dos que
exercem a dominação sob tais tradições. Weber fala de uma autoridade dos costumes e do
hábito com base em um status tradicional. Aqui a submissão se dá em relação a determinados
indivíduos, a quem se deve uma lealdade pessoal, e não a leis ou instituições. Ex: líder de uma
comunidade tradicional ou da nobreza hereditária da Idade Média.
b) Dominação carismática: baseia-se na devoção a um líder por certas qualidades excepcionais,
como santidade, heroísmo, capacidade de oratória, seu caráter exemplar de uma pessoa ou as
revelações ou ordenações por ela emitidas. Segundo Weber, seus tipos mais puros são a
dominação do profeta, do herói guerreiro e do grande demagogo. Podemos exemplificar com
a figura do político que adquire um caráter mítico através da demagogia. Weber aponta ainda
que todos os líderes carismáticos devem apresentar “provas” de suas qualidades especiais, o
que torna esse modelo instável.
c) Dominação legal (ou legal-racional): segundo Giddens e Sutton, trata-se “de poder legitimado
por regras e regulamentos legalmente decretados e combina uma crença na lei com a
racionalidade formal na tomada de decisões”.9 Há o reconhecimento da autoridade de
obrigações emitidas de acordo com certo ordenamento de regras Segundo Weber, o ideal
deste modelo é um proceder sem qualquer influência pessoal, sentimental etc. Trata-se de
uma ação formal e objetiva. Weber via esse modelo nos sistemas democráticos de governo, na
moderna empresa capitalista, em associações ou quaisquer agrupamentos humanos
hierarquicamente articulados, em especial na burocracia. Ou seja: a obediência é esperada não
por deferência ou respeito a tradições ou a um líder carismático, mas por mera obediência a
um sistema impessoal de normas.
Para deixar mais clara ainda a diferença, trago as considerações de Luciano Oliveira:
Simplificando bastante, a dominação tradicional é aquela exercida por uma figura como o
rei; a carismática, aquela exercida por uma figura como o líder; a racional, finalmente, é
exercida por... ninguém! Como diz o próprio Weber, “a dominação legal pode assumir
formas muito diversas”; mas há uma, típico-ideal, dessa forma de dominação, aquela do
“quadro administrativo: do ‘funcionalismo’, ou seja, da ‘burocracia’.10
Aqui é interessante ressaltar que um elemento importante na perspectiva sociológica de Weber é a
utilização do conceito de tipo ideal, os mais são modelos conceituais ou analíticos que podem ser usados
para entender o mundo. Explica Anthony Giddens o seguinte:

9
GIDDENS e SUTTON. Conceitos essenciais de sociologia. 2ª. Ed. São Paulo: Unesp, 2014, p. 303.
10
OLIVEIRA, Luciano. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Editora Vozes (Kindle). Loc. 973.

4
No mundo real, os tipos ideais raramente, ou nunca, existem – muitas vezes, apenas alguns
dos seus atributos estão presentes. Todavia, essas construções hipotéticas podem ser muito
proveitosas, pois é possível entender qualquer situação do mundo real comparando-a com
um tipo ideal. Dessa forma, os tipos ideais servem como um ponto de referência fixo.11
Como são tipos que não possuem eco empírico de forma inteiramente pura, é normal que haja uma
“mistura” quando observamos a realidade. Esta é mais uma característica que o afasta do modelo das
ciências naturais: seus tipos ideais, ao invés de obedecerem a certas leis em um “tudo ou nada”, optam
por exagerar ou acentuar certos aspectos da realidade com o objetivo de melhor compreende-la.
Como afirma o próprio autor ao argumentar contra um modelo exclusivamente burocrático, “os
cargos mais altos das associações políticas ou são ‘monarcas’ (soberanos carismáticos hereditários) ou
‘presidentes’ eleitos pelo povo (ou seja, senhores carismáticos-plebiscitários), ou são eleitos por um
colegiado parlamentar cujos senhores de fato não são propriamente os seus membros mas os chefes, seja
carismáticos, seja de caráter dignatário, dos partidos majoritários”.12
Seja qual for o tipo de dominação, Weber aponta uma necessidade comum quando é exercida de
forma contínua e organizada:
(...) a dominação organizada necessita, por um lado, de um estado-maior administrativo
e, por outro lado, necessita dos meios materiais de gestão.13
Surge aí o modelo weberiano da dominação legal que se manifesta na burocracia, já mencionado
brevemente antes neste texto. Retomamos novamente a lição de Stephen Kalberg para enfatizar esse
ponto:
Nas sociedades industriais, diz Weber, esse tipo de dominação se encontra por toda parte.
Sua legitimidade repousa na crença em regras devidamente estatuídas e em normas
procedimentais ‘objetivas’, não em pessoas ou em tradições estabelecidas no passado.
Desse modo, a administração burocrática se distingue tanto da dominação carismática
quanto das diferentes configurações da dominação tradicional.
Para Weber, essa expansão da burocracia é inevitável nas sociedades modernas que se organizam
em grande escala. É a marca do capitalismo, cujo surgimento está ligado ao Estado nação. Seria impossível
imaginar o funcionamento de certos Estados sem uma organização a partir de regras escritas e a existência
de autoridades burocráticas.
De acordo com essa interpretação, a burocracia não seria, como no senso comum, associada à
ineficiência, sendo, ao contrário, a forma mais eficiente de organização já inventada: fatores emocionais
ou pessoais são substituídos por um modelo focado no desempenho e na eficiência.
Ainda dentro do conceito de tipo ideal, um modelo puro de organização burocrática weberiana teria
as seguintes características:

11
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6ª Ed. Porto Alegre: Penso, 201. p. 29.
12
WEBER, Max. “Os três tipos puros de dominação legítima”. In: CASTRO, Celso (org.). Textos básicos de sociologia. São Paulo:
Zahar, 2014.
13
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2011. pp. 70-71.

5
1. Existência de uma hierarquia clara de autoridade com distribuição de tarefas dentro de uma
estrutura piramidal.
2. As regras escritas comandam os funcionários e os níveis de organização, com baixo grau de
discricionariedade, em especial para os burocratas de baixo escalão.
3. Os funcionários têm dedicação exclusiva e são assalariados, havendo a possibilidade de
promoções fundadas no mérito.
4. Há uma separação entre as tarefas de um funcionário dentro da organização e sua vida externa.
Ou seja, a vida doméstica não se mistura com a profissional.
5. Nenhum membro da organização é proprietário dos recursos materiais que opera. Esse ponto é
muito enfatizado por Weber: com o desenvolvimento da burocracia, aquele trabalhador que antes
tinha controle de seus processos de produção ou tinha propriedade de seus meios de produção
(ex: artesãos, lavradores etc.), é substituído por funcionários que não são proprietários sequer das
cadeiras onde se sentam.
É um modelo que dá uma ênfase especial à racionalidade formal, que tem como uma das
características uma impessoalidade muito elevada, em especial na comparação com os modelos
tradicional e carismático.
O direito possui um papel fundamental neste ponto. Ele é responsável por garantir uma estrutura
formal e possibilitar a previsão de resultados a partir do comportamento dos sujeitos em relação à norma
jurídica: como afirma Weber, “o direito formalista é previsível”. Há, neste sentido, uma exigência de
coerência nas decisões e na aplicação de forma igualitária, sem privilégios especiais. E esse direito
necessita do Estado burocrático moderno.14
Esta racionalização tem ligação, ainda, com a ciência. Para Weber, a ciência permite o controle da
vida por meio da previsão. Neste sentido, destacamos novamente as seguintes considerações de Giddens:
A ciência moldou a tecnologia moderna – e supostamente continuará a fazê-lo em qualquer
sociedade socialista futura. A burocracia é a única maneira de organizar grandes números
de pessoas efetivamente e, portanto, expande-se inevitavelmente com o crescimento
econômico e político. Weber refere-se ao crescimento da ciência, da tecnologia moderna e
da burocracia como ‘racionalização’. A racionalização significa a organização da vida
social e econômica segundo os princípios da eficiência, com base no conhecimento
técnico.15
Percebemos, portanto, que a burocracia e a ciência são importantes para a organização da vida
contemporânea. De fato, seria impensável certos avanços sem esses dois fatores. Mas Weber via a
questão de forma totalmente otimista?
A resposta é negativa. Apesar de Weber articular uma reflexão sobre a racionalidade acentuando
algum grau de evolução, o autor não compartilhava o otimismo de um teórico como Karl Marx, o qual
enxergava uma Revolução ao final desse movimento. Weber entendia que os avanços racionais do
Iluminismo poderiam levar a humanidade a conhecer a estrutura do mundo, mas o preço a ser pago seria

14
MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito. p. 332.
15
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6ª Ed. Porto Alegre: Penso, 201. p. 29.

6
a excessiva submissão a tarefas racionais pautadas por cálculos formais: em nome da Razão rejeitamos
todas as crenças e tradições pré-modernas e a vida passa a ser submetida cálculos e análises.
Weber temia que a expansão desmedida da racionalidade formal, da burocracia. Via nela um risco de
os meios dominarem os fins, colocando em risco a própria democracia. Essa expansão seria ainda marcada
por uma excessiva impessoalidade, poderia esmagar o espírito humano e expandir-se para diversas
esferas da vida.
Daí seu alerta sobre o desencantamento do mundo, o qual se caracteriza pela maneira como o
pensamento científico contemporâneo destituiu um mundo de poesia, encanto etc. Afinal, de acordo com
o autor, a ciência não dá resposta sobre “como viver” ou “como agir na comunidade”.

3. Controle social e direito

O tema do controle social possui importância central na sociologia jurídica. Trata-se de um tema que
se relaciona tanto com o impacto que as normas jurídicas geram na sociedade quanto o inverso. Além
disso, refere-se também ao modo como as normas “moldam” o comportamento dos indivíduos. Como
bem aponta Ana Lúcia Sabadell, “[t]udo aquilo que influencia o comportamento dos membros da
sociedade pode ser entendido como controle social”.16
Do ponto de vista didático, as formas de controle social podem ser classificadas da seguinte
maneira:17
a. Controle social primário e secundário:
O controle social primário é aquele exercido nas etapas iniciais de socialização, caracterizando-se
pela informalidade e apego emotivo. É o caso da família, por exemplo. Já o controle social secundário é
aquele que se dá em etapas posteriores da socialização, caracterizando-se por formalidade e
institucionalização. Um exemplo é o controle social exercido nas relações entre governantes e
governados.
b. Controle social preventivo e repressivo:
O controle social preventivo se refere aos mecanismos voltados à prevenção de infrações, valendo-
se tanto de coercitividade gerada por normas sociais quanto sanções positivas. Já o controle social
repressivo está relacionado à imposição de sanções.
c. Controle social formal e informal:18
As formas de controle social formais estão, em regra, relacionadas ao direito, o qual é o instrumento
por excelência desse tipo de controle. Já as formas de controle social informais operam-se por
instrumentos como a opinião pública, os costumes, hábitos religiosos, regras de etiqueta etc. Não

16
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica. 7ª. Ed. São Paulo: RT, 2017. p. 131.
17
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Sociologia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2012; SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia
Jurídica. Op. cit.
18
OLIVEIRA, Luciano. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo, Vozes, 2015.

7
contam, portanto, com uma fonte institucionalizada tal qual ocorre com o direito, ainda que exerçam
certa forma de controle social. É, desta forma, mais difuso, mutável e espontâneo.
Do ponto de vista das finalidades do controle social, podemos distinguir duas perspectivas. Da
perspectiva liberal-funcionalista, o controle social tem por objetivo “impor regras e padrões de
comportamento para preservar a coesão social perante comportamentos desviantes”.19 O foco aqui é a
pacificação das relações sociais. Já a teoria conflitiva afirma que o controle social é exercido em favor de
grupos que detém o poder e a riqueza como forma de manter a ordem estabelecida. Funda-se, assim,
em uma assimetria entre grupos sociais.
Apresentada a tipologia e a finalidade, podemos abordar os mecanismos de controle social. Segundo
Ricardo Freire Soares seriam dois os mecanismos. O primeiro seria a socialização, consistente em um
processo de assimilação de valores, visões de mundo e padrões governamentais. Em segundo lugar temos
as sanções normativas, as quais complementam o mecanismo de socialização e relacionam-se a uma
norma social que, violada, gera uma imoralidade.
Em último grau temos a transgressão de uma norma jurídica, a qual consiste em uma ilicitude
propriamente dita. Neste caso, ao contrário dos dois anteriores, a sanção não é difusa, mas sim
organizada, consistindo no modo mais formal de exercício do controle social. De fato, ao contrário das
sanções difusas relacionadas à transgressão de normas sociais, no caso das normas jurídicas há órgãos
específicas incumbidos pela aplicação.
Este controle social exercido pelo direito tem dois aspectos. O primeiro é o da prevenção geral, a
qual condiciona os indivíduos na sociedade e aderir a determinada conduta. O segundo é o controle
exercido através da repressão, na qual há aplicação individual de uma sanção (pecuniária, prisão etc.)
para conformar o indivíduo a certa conduta.
Antonio Spagnol aponta que a força da norma no campo do controle social pode ser evidenciada a
partir do fato de que mesmo quando estamos sozinhos há uma tendência em se evitar a prática de um
ato ilegal. Isso se relaciona inclusive com a consciência coletiva de Durkheim.20
O mesmo autor assim sintetiza o assunto do ponto de vista das sanções:
Agimos no social segundo certos limites ditados pelos valores sociais. Esses valores são
ordenados de forma a orientar comportamentos, crenças, ações que formam o campo da
ética. Ética abrange, assim, as normas sociais e as normas jurídicas. No caso das normas
sociais, impõe-se a nós como sanção social e interna. No caso das normas jurídicas, impõe-
se a nós por meio das leis. Assim a norma liga, integra ação ao valor e preserva essa ligação.
Essa ligação dá-se mediante certa hierarquia dos valores, ordenando sempre os valores
supremos e subordinando os demais.21

19
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica. p. 135.
20
SPAGNOL, Antonio Sergio. Sociologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013. pp. 67-68.
21
SPAGNOL, Antonio Sergio. Sociologia Jurídica. p. 69.

8
4. Grupos sociais e o Direito

Segundo a lição de Jean Carbonnier22, o grupo sociológico por excelência é o que ele chama de
sociedade global, o qual coincide modernamente com o âmbito territorial do Estado. É, portanto, o
grupo social mais amplo submetido às normas jurídicas estatais.
No entanto, a sociologia jurídica admite que dentro deste corpo mais amplo existem outros
agrupamentos particulares que coincidem, em sociedades menos estruturalmente complexas, com clãs
e famílias e, nas sociedades contemporâneas, a classes, associações etc. Neste contexto, segundo o
mesmo autor, “entre o indivíduo e a sociedade global interpõe-se, concorrendo para compor o espaço
global, aquilo que a ciência política chamava antigamente, pelo menos em alguns casos, corpos
intermediários, aquilo que a sociologia de hoje chama de grupos ou agrupamentos particulares.”23
Um aspecto interessante desses grupos sociais e a relação deles com o Direito é o modo como eles
se organizam para determinadas lutas sociais. É um aspecto do recente desenvolvimento da ideia de
acesso à justiça a organização de mulheres, negros, indígenas, imigrantes, movimentos de luta pela
habitação, acesso à terra etc. com o objetivo de buscar a efetivação de certos direitos, especialmente
sociais. Isso mostra uma das dimensões da relação entre grupos sociais, cuja existência é
sociologicamente reconhecida, e o Direito.
Podemos analisar os grupos sociais também a partir de uma perspectiva de classes sociais. Esta
abordagem parte do prisma da estratificação social, ou seja, de que a sociedade é dividida em vários
grupos sociais superpostos ou hierarquicamente divididos. A sociologia jurídica, neste contexto, adota um
ponto de vista objetivo-descritivo, analisando o tema sem a tomada de uma posição específica.24 Este
assunto já foi tratado quando abordamos os métodos da sociologia jurídica e sua abordagem externa e é
relevante pelo fato do direito, ao menos em tese, adotar um ponto de vista “neutro” quanto às classes
sociais. Não haveria, ao menos em tese, uma norma específica destinada a punir certa classe social. Isso,
contudo, pode ser colocado em discussão justamente com o auxílio da sociologia jurídica.
A própria definição das classes sociais é complexa. Ana Lúcia Sabadell sugere duas abordagens. A
marxista adota uma perspectiva qualitativa, usando como critério a posse ou não dos meios de produção.
Já a abordagem weberiana tem uma perspectiva quantitativa, usando como critério o nível de renda.
Estudos sociológicos mais recentes levam em consideração ainda gênero, idade, situação de saúde e
origem étnica. Mas de modo sintético, pode-se definir classe social nas sociedades contemporâneas como
(...) um grande grupo de pessoas que ocupam semelhante posição no âmbito da
estratificação social com uma relativa estabilidade. Os membros de cada classe apresentam
comportamentos de vida comuns e têm semelhante acesso aos recursos disponíveis. As
classes sociais exprimem desigualdade nas sociedades modernas, que é forte apesar de
existir uma possibilidade de ascensão social.25

22
CARBONNIER, Jean. Sociologia Jurídica. Coimbra: Almedina, 1979. pp. 210 e ss
23
CARBONNIER, Jean. Sociologia Jurídica. pp. 211-212.
24
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica. 7ª. Ed. São Paulo: RT, 2017. pp. 179-185.
25
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica. 7ª. Ed. São Paulo: RT, 2017. pp. 184-185.

9
Isso nos leva a outro tema interessante, que é o da mobilidade social. Como visto, uma abordagem
a partir da estratificação leva a existência de classes superpostas. Neste contexto, em sociedades de
estratificação fechada a mobilidade social é impossível por razões sociais ou mesmo legais. Já nas
sociedades de estratificação aberta, como as sociedades ocidentais contemporâneas, a mudança de
status social é viável. Esta mobilidade pode ser horizontal, quando não há mudança de classe social, ou
vertical, quando há. No entanto, vale sempre ter em mente que ainda que essas mudanças sejam viáveis
nas sociedades contemporâneas, elas são difíceis e a desigualdade social é marcante.

5. Pluralismo jurídico

O pluralismo jurídico consiste na “existência simultânea e em um mesmo ambiente de mais de um


conjunto articulado de regras, princípios e instituições com base nos quais a ordem social é construída e
transformada.”26 Também pode ser caracterizado a partir da negação de que o Estado seja a fonte
exclusiva da produção do Direito.
Este modelo pluralista contrasta com o monismo, que se tornou hegemônico na Europa a partir do
contexto de consolidação dos Estados soberanos que se seguiu à Paz da Vestfália (1648). Com o
estabelecimento de Estados soberanos com territórios bem demarcados, consolida-se entre os séculos
XVIII e XIX, um modelo monista de direito, no qual há apenas uma ordem jurídica, substituindo um modelo
fragmentário. Caracteriza-se, portanto, por girar em torno do Estado e ser centralizado.
Sintetizando o momento histórico em que o monismo se torna hegemônico no contexto ocidental,
Ana Lúcia Sabadell afirma o seguinte:
A expansão do sistema capitalista trouxe consigo a consolidação e a centralização do poder
político, que conseguiu controlar o território de um Estado e impor, como fonte exclusiva
de direito, sua própria legislação.27
Com isso, direitos distintos do estatal foram progressivamente suprimidos, o que em muitos casos
ocorreu com base em violência.
Isso não significa que após este momento não tenham sido reconhecidos ordenamentos jurídicos não
estatais em vigência no interior da ordem jurídica estatal. É o caso do Direito Canônico, estatutos privados
etc. Mas não são normas com capacidade de infirmar a exclusividade do direito oficial.28
Contra essa concepção monista a sociologia e a antropologia produziram muitos trabalhos a partir do
estudo de sociedades distintas da europeia. Até os anos 70, o estudo do pluralismo se concentrou no
estudo dos direitos em situação colonial ou pós-colonial no contexto da incorporação de ordens jurídicas
locais pelas metrópoles.

26
CASTRO, Marcus Faro de. Pluralismo jurídico: principais ideias e desafios. In: SILVA, Felipe Gonçalves; RODRIGUEZ, José
Rodrigo. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo, Saraiva, 201., Loc. 3291 (versão Kindle). Este resumo é inspirado
principalmente neste texto.
27
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica. 7ª. Ed. São Paulo: RT, 2017. p. 121.
28
OLIVEIRA, Luciano. Manual de Sociologia Jurídica. Loc. 1713 (Kindle).

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A partir dos anos 70 e 80 a discussão passa a contestar a subordinação existente entre esses direitos
locais e o direito “oficial”, não havendo necessariamente uma absorção ou limitação dos primeiros. Além
disso, passou-se a afirmar que essas ordens normativas se influenciavam mutuamente. Situações de
pluralismo passaram a ser caracterizadas também em uma amplitude maior de casos, não apenas no
contexto colonial ou rural.
É interessante notar que do ponto de vista jurídico esse pluralismo pode ser considerado, em certa
medida, “falso”, pois há alguma forma de reconhecimento ou incorporação dessas outras ordens
normativas. Assim, em muitos casos só a sociologia ou a antropologia podem ser ferramentas realmente
úteis para a análise do fenômeno.29 Isto porque trata-se de um fenômeno empírico, ou seja, que é
constatado a partir de uma observação da realidade social e não a partir do próprio ordenamento. Não
há nenhum respaldo legal para a existência de um “direito informal” em uma certa comunidade, por
exemplo, mas isso ocorre mesmo assim.
Do ponto de vista da ciência do Direito, essa discussão levou a um desafio contra o positivismo
jurídico e sua busca de “pureza”, despindo o direito de conteúdos políticos.
No Brasil o tema adquiriu importância a partir da influência do sociólogo português Boaventura de
Souza Santos, cuja tese defendida em 1973 na Universidade de Yale teve como objeto uma comunidade
carioca que ele denominou de “Pasárgada”. Na obra, Santos argumenta que os moradores dessa
comunidade desenvolveram informalmente um conjunto de regras aberto, pouco formal e à margem do
direito oficial. Esse “direito de Pasárgada” seria uma alternativa emancipatória diante do direito fechado,
burocrático e opressor do Estado. Este estudo se tornou um modelo na análise das relações entre o direito
estatal e o direito extraestatal.30
O Direito de Pasárgada, ou “direito do asfalto”, deste modo, desafia o monismo na medida em que
mostra a coexistência de duas ordens jurídicas. Sobre o tema, Santos afirma o seguinte:
Existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço geopolítico
vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica. Essa pluralidade normativa
pode ter uma fundamentação econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder
a um período de ruptura social como, por exemplo, um período de transformação
revolucionária; ou pode ainda resultar, como no caso de Pasárgada, da conformação
específica do conflito de classes numa área determinada da reprodução social – neste caso,
a habitação
Vale destacar que esse direito extraestatal não está livre de influxos do direito oficial. No caso do
Direito de Pasárgada, por exemplo, o conceito de direito de propriedade era análogo àquele adotado pelo
Direito Civil.
Na esteira deste trabalho, outros pesquisadores, como Roberto Lyra Filho e Antônio Carlos Wolkmer,
trabalharam o tema do pluralismo jurídico. O desenvolvimento do tema no Brasil, contudo, não impediu
a elaboração de críticas ao pluralismo:
Esses pesquisadores verificaram que, no Morro, ao lado da “comunidade” (a associação de
moradores), traficantes de droga desempenhavam um papel crucial na determinação de

29
OLIVEIRA, Luciano. Manual de Sociologia Jurídica. Loc. 1725 (Kindle).
30
Cf. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. Disponível em: < https://tinyurl.com/yxb2e9co >

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normas locais, impondo sua vontade arbitrária em casos que variavam desde a conciliação
de partes em conflitos de vizinhança até a castração de estupradores e a morte sumária de
assaltantes. Como destacado pelos autores, “[n]a imposição da ‘ordem’, a boca de fumo
aplica um código penal próprio, cujas penalidades variam da prisão domiciliar, expulsão
temporária, impedimento de circulação em determinada área, tiro na mão, até, para os
casos mais graves, a pena de morte”. A crítica de que tende a ocorrer uma romantização
do pluralismo jurídico tal como tem sido desenvolvido na literatura brasileira também foi
articulada por outros autores, com base em outros pressupostos.31
Ou seja, há sempre o risco desses modelos alternativos de direito configurarem formas de dominação
tão ou mais graves que aquela exercida pelo direito oficial.
O pluralismo também pode ser analisado à luz do desenvolvimento do Direito Internacional, o qual
também ver mudando suas características e colocando o monismo em xeque. Diante do aumento da
complexidade das relações sociais e econômicas no âmbito transnacional, o direito fundado na soberania
vem progressivamente perdendo espaço para outras formas de organização, muitas fundadas na ideia de
desregulamentação ou transações entre particulares.
José Eduardo Faria, na obra “Direito e Conjuntura”, faz um diagnóstico sobre esse contexto de perda
da centralidade de um direito de matriz soberanista (destaquei):
Suas normas, editadas e aplicadas no âmbito de uma realidade dominada por forças e
dinâmicas globais que ultrapassam os marcos institucionais e nacionais tradicionais, vêm
perdendo a capacidade de ordenar, moldar, conformar e regular a economia e de reduzir
incertezas, estabilizar expectativas e gerar confiança no âmbito da sociedade. Suas leis e
códigos, em face dos novos paradigmas de produção, das novas tecnologias de informação
e dos novos canais de comunicação, vêm enfrentando grandes dificuldades para promover
o acoplamento entre um mundo virtual emergente e as instituições do mundo real. Seus
instrumentos jurídicos destinados a corrigir os desequilíbrios produzidos pelas operações de
mercado, preservar a livre concorrência contra a concentração dos capitais, promover
orientações sociais e assegurar a legitimidade do poder, entre outras funções, com a
reordenação da riqueza já não se revelam mais eficazes. Seus mecanismos processuais
também já não conseguem exercer de modo satisfatório seu papel de absorver tensões,
reduzir incertezas, propiciar a gestão e a decisão de disputas e neutralizar a violência. Por
fim, as próprias instituições encarregadas de aplicar o direito positivo, como é o caso do
Poder Judiciário e do Ministério Público32, cada vez mais se revelam incapazes de se ajustar
organizacional e funcionalmente aos novos fatores, dinâmicas e circunstâncias que
determinam as transformações da economia e da sociedade. Diante do número cada vez
maior de sistemas de interação econômica, social e política fora do controle do Estado,
constituindo uma ampla gama de centros de referência de interesses diversificados, essas
instituições tendem a perder sua centralidade e, principalmente, sua exclusividade.
Quanto aos operadores do direito, a crise de funcionalidade e eficácia do direito os tem

31
CASTRO, Marcos Faro de. “Pluralismo jurídico”. Op. cit. Loc. 3540 (Kindle).
32
Na minha opinião, a crítica se aplica também à Defensoria Pública e à Advocacia Pública.

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levado a uma crise de identidade profissional, uma vez que sua formação de caráter
basicamente normativista e forense se revela incompatível com as novas competências e
especializações propiciadas pela evolução da complexidade econômica social e política
inerente ao avanço da tecnologia e da integração dos mercados.33

33
FARIA, José Eduardo. Direito e Conjuntura. São Paulo: Saraiva, 2010. pp. 6-7.

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