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Maria Regina Teixeira da Rocha
Summary
1
Este artigo trata de um dos aspectos desenvolvidos na dissertação de mestrado da autora,
apresentado ao Núcleo de estudos Integrados sobre Agricultura Familiar
2
Socióloga, com mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável,
pesquisadora da Fundação Universidade do Tocantins – UNITINS. E-mail:
maria.rt@unitins.be e mrtrocha@yahoo.com.br.
1. Introdução:
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Vale ressaltar que em muitos casos, o que se está chamando de “doação”, na realidade foram situações
em que os escravos trabalharam para pagar as dívidas de seus senhores em épocas de crise financeira
desses grandes produtores.
não assumem a equivalência de mercadoria. Por isso a figura central da frente
de expansão é a do ocupante ou posseiro” (MARTINS, 1975, p.43-45).
O momento mais significativo na questão da posse e uso dessas terras
consideradas livres pelo Estado, se dá a partir da final do década de 1960, com
a promulgação da Lei de Terras do Estado, que considerava essas áreas de
fronteira agrícola como disponíveis, dando início a um violento processo de
mercantilização e grilagem dessas terras agora valorizadas principalmente pelo
investimento em infra-estrutura como estradas e eletrificação rural.
A Lei de Terras do Estado, lei nº 2.979/69, também denominada Lei
Sarney, reestrutura formalmente o mercado de terras, favorecendo os
interesses das grandes empresas que vieram implantar no estado projetos
agropecuários, madeireiros e de mineração.
Essa implantação de grandes e médios empreendimentos agropecuários
no Estado só foi possível, pela institucionalização do mercado de terras,
propiciado pela Lei Estadual de Terras. Dessa maneira, as fronteiras do
Maranhão se abrem para “homens de empresa”, segundo denominação dada
por José Sarney, e se fecham para os pequenos produtores (GONÇALVES,
2000, p.176). Nos anos seguintes à promulgação da Lei de terras, gesta-se no
estado, uma proposta de “construção de um futuro novo para o Maranhão”,
através da formulação de um documento chamado de I Programa de Governo
do Estado do Maranhão, que previa como fator de desenvolvimento o
investimento no chamado setor primário, entendido como sinônimo de
pecuarização.
A opção por investimentos no setor primário foi precedida por uma
polêmica quanto aos investimentos do Estado com vistas ao seu
desenvolvimento. De um lado, estavam os chamados industrialistas, que
apontavam como solução aplicar investimentos no setor industrial, por julgarem
o setor agrário como responsável pelo atraso do Estado. Do outro, estavam
aqueles que defendiam o setor primário como o grande motor de
desenvolvimento, via investimentos no setor agropecuário. (ALMEIDA &
MOURÂO; 1976) e (GONÇALVES; 2000). Nesse mesmo cenário, o modelo de
desenvolvimento adotado no Estado, toma por base os princípios da
denominada modernização agrícola, fundamentada nas atividades
agropecuárias, que no Brasil Segundo (JARA, 1998, p.71), atingem cerca de
375 milhões de hectares, ou seja, 44% do território nacional, e no Maranhão,
368.191 estabelecimentos ocupando uma área de 12.560.639 hectares
(MESQUITA, 2000, p.66).
Por um lado, o governo entende a produção agropecuária como
responsável pelo desenvolvimento do setor primário, concedendo fartos
incentivos fiscais para os pecuaristas, o que provocou um acirramento das
tensões entre os pretensos proprietários e aqueles que se dedicavam à
atividade agrícola. Do lado oposto, as famílias dos pequenos agricultores se
vêem impedidas de implantar suas lavouras, pelo menos nas mesmas
condições em que produziam anteriormente, onde havia disponibilidade de
terras para trabalhar. Privatizadas essas terras, as áreas destinadas ao plantio
das famílias de pequenos agricultores vão sofrendo diminuições e a sua
utilização passa a ser através de arrendamento, o que provoca mudanças nas
práticas e nas estratégias de sobrevivência, como é o caso dos deslocamentos
para áreas de garimpo 4 , assim como das mobilizações em torno da luta pela
terra, principalmente na década de 80, culminando na desapropriação de várias
áreas para implantação dos chamados assentamentos rurais de reforma
agrária 5 , resultado de uma nova intervenção do Estado, diante dos sérios
conflitos de terra envolvendo trabalhadores rurais e pecuaristas.
4
cf. (MARTINS, 2000).
5
É uma categoria social que surgiu e se firmou nas últimas décadas, sendo no entanto, categoria datada e
formulada pelo Estado. Andrade; (1992)
No estado do Tocantins os conflitos sociais em torno da questão dos
babaçuais, deram-se principalmente na região do Bico do Papagaio, marcada
por confrontos entre fazendeiros e pequenos posseiros pelo controle da terra e
dos recursos naturais durantes as décadas de 1970, 1980 e 1990, acentuada
com a morte do Padre Josino em 1986, religioso católico que atuava naquela
região, cujo assassinato teve repercussão a nível internacional através dos
meios de comunicação.
Com esses acontecimentos as mulheres quebradeiras de coco do Bico
do papagaio tiveram oportunidade de travar conhecimento com outras
realidades e, a partir daí, passaram a desenvolver um processo contínuo de
formação e organização, segundo depoimento da Sra. Raimunda Gomes da
Silva dado ao pesquisador Miguel Henrique P. da Silva, que diz:
“Aí logo em 1986, aí foi quando mataram o padre Josino e nós
tivemos a possibilidade de sair rodando no mundo,
denunciando, fazendo várias denuncias, cobrando os direitos
da gente em Brasília...”
Além da proibição da quebra do coco, outro fator que contribuiu para
esse processo de luta pela libertação do coco preso e da terra, foi à diminuição
das áreas destinadas à pequena agricultura, visto que a prioridade dos
fazendeiros era o plantio do capim, ocupando grandes extensões de terra.
Aliadas a esses fatores, as ameaças constantes e as práticas violentas de
impedimento do trabalho das mulheres fez com que essas iniciassem um
processo de reação, que gerou uma série de conflitos 6 , iniciados em função da
libertação do coco preso.
No relato que se segue, uma informante do Estado do Maranhão, que
participou ativamente da luta nos conta como tiveram início os conflitos:
P - Como teve início o conflito?
R - O conflito começou quando eles começaram a cortar as alças de nossos
jacás e derramar o coco juntado, ameaçar nós de peia, proibir a gente de fazer
o carvão, a gente não agüentava mais tanta humilhação. O coco era privado,
pior do que a própria terra, mulher ia quebrar coco a 6 km, o preço era deles, a
6
Para maior aprofundamento vide levantamentos de conflitos realizados pelo Ministério da Reforma e do
desenvolvimento Agrário – MIRAD, Brasília:1986 e pela Sociedade de Direitos Humanos do Maranhão –
1975)SMDDH. São Luís:1989.
gente quebrava 15 kg de coco pra comprar um pacote de café. Ai nos
decidimos que ia quebrar o coco de qualquer jeito, com ou sem a permissão
deles.
Nesse depoimento observa-se, que a luta pelo acesso aos babaçuais,
antecede a própria luta pela terra. Isso porque, na lógica dessas mulheres o
coco é considerado um recurso natural que deve estar disponível ao usufruto
comum. Essa concepção é indicada pelo termo privado, que seria a antítese do
usufruto comum, ou seja, preso, contrário de solto. Segundo essas concepções
camponesas, o coco deveria ser liberto, visto que o extrativismo do babaçu é
um meio de vida. As mulheres entrevistadas são unânimes em afirmar que o
babaçu é quem sustenta suas famílias. Elas dizem: é o coco que garante nosso
sustento ou, ... quando nos estamos aperriada, é o coco que nos salva.
A principal fonte de renda monetária dessas famílias advém da venda da
amêndoa do coco, visto que somente parte dos produtos agrícolas oriundos de
suas lavouras é comercializada. O coco privado é uma categoria fundamental
nesse contexto. Ela move a luta dessas mulheres. É no sentido da libertação
do coco preso, que a luta se inicia, primeiro com as mulheres, seguida do apoio
dos homens. A situação de coco preso fere a lógica camponesa, visto que para
as famílias camponesas os recursos naturais não podem ser privatizados já
que não são mercadorias. Ao contrário, são valores de uso, bem como valores
de troca, de bem comum, que podem ser apropriados por quantos o
desejarem, ou quantos deles necessitem, via trabalho familiar.
O que está em jogo nessa categoria, é a sobrevivência da própria
família. A expressão coco privado remeteria a uma situação na qual o trabalho
dessas mulheres tem sido dificultado ou impedido, além de lhes impor uma
sobrecarga de trabalho. Percebe-se que essa privatização dificulta o trabalho
extrativo aumentando a penosidade do trabalho, pois serão obrigadas a
percorrer longas distâncias para coletar, gastando mais energia física para
garantir o sustento de suas famílias. Dessa maneira, a sobrevivência ficará
comprometida, pois, ao terem menos acesso a esse recurso vegetal
estratégico para a economia familiar, submeter-se-ão aos baixos preços
praticados pelos compradores dos produtos. A título de exemplo, cita-se a
comparação da quantidade de quilos de amêndoa (15 kg) necessária para
comprar um pacote de café. Essa quantidade corresponde em média a dois
dias e meio de trabalho de uma quebradeira de coco 7 .
Nesse período de impedimento de seu trabalho nas áreas de babaçuais,
podemos demarcar uma nova forma de agir daquelas mulheres, diferente das
representações como dependentes, pacientes, tímidas, mulheres do lar. Elas
saem da sua privacidade, do seu anonimato, para lutar pela sobrevivência da
família e ganham visibilidade. Durante todo o processo de luta, as mulheres
assumem papéis normalmente caracterizados como masculinos, como
participar de reuniões com autoridades e enfrentar pistoleiros. O que distingue
a situação das quebradeiras é que, neste caso, o móvel da luta é o seu espaço
de trabalho, é o recurso vegetal estratégico que coletam, dentro de uma divisão
sexual do trabalho vivida historicamente pelas famílias de pequenos
agricultores maranhenses.
Na seqüência da entrevista que virá a seguir, temos o relato da luta pela
terra que, segundo as informantes, seguiu-se à luta pelo que chamam de
libertação do coco, como já referido.
P - E quando começou a luta pela terra?
R - Foi logo em seguida. A gente não queria mais só ter direito de quebrar o
coco, a gente queria a terra pra plantar, aí nós decidimos, que queria a terra
também, a gente não queria só o coco não, a gente queria a terra também.
Essa é que é difícil porque elas consideram beneficiadas, e terra beneficiada
não pode.
Aqui se torna clara a distinção que a informante faz do seu ponto de
vista e daquele dos vários segmentos camponeses que é o de pensar a terra
mediatizada pelo trabalho familiar daquela dos aparelhos de Estado, que
consideram-na como mercadoria para fins de implantação da atividade
pecuária. Com o tempo, diz a informante, o trabalho familiar investido na terra,
essa voltaria ao seu estado de normalidade. Deste ponto de vista, o normal
seria a produção agrícola, a produção de alimentos, por meio do trabalho
familiar.
Em seqüência ao início da luta pelo livre acesso aos babaçuais, segundo
as entrevistadas, segue-se a luta pela posse da terra, visto que, para as
7
Em média uma quebradeira de coco quebra entre 6 a 8 quilos de coco por dia.
famílias que se dedicavam às atividades agrícolas, o direito ao acesso aos
babaçuais, apenas, não era suficiente para resolver seus problemas. Essas
terras que estavam sendo devastadas pelos pecuaristas para plantarem capim
tornavam-se inadequadas ao estabelecimento das lavouras, sendo necessário
um longo período de trabalho na terra para que ela voltasse a produzir arroz,
feijão, mandioca e milho,nas quais são as principais culturas tradicionais.
A privatização e cercamento dos babaçuais e suas conseqüências,
significaram um despertar para aquelas mulheres, levando-as a acionar
estratégias coletivas de resistência para enfrentar a situação. As entrevistadas
relatam que iniciaram juntando-se para efetuar a quebra do coco a despeito da
proibição dos fazendeiros. Para isso, cortavam o arame das cercas e
adentravam nas fazendas para quebrar o coco no próprio cocal, para
transportar os cocos nos animais ou na cabeça até suas casas, onde também
realizavam (e ainda realizam) as atividades de quebra e beneficiamento do
babaçu.
Observa-se que a luta pelo acesso livre aos babaçuais ou pelo babaçu
livre, palavra de ordem utilizada pelo movimento das quebradeiras de coco,
está intimamente ligada à defesa e preservação dos babaçuais, que representa
muito mais do que um simples meio de sobrevivência da família. Ao falar sobre
a importância da preservação dos babaçuais, estas, referem-se à palmeira
como uma mãe... “A palmeira é nossa mãe” , ....“Quem mata uma palmeira é
mesmo que ta matando uma mãe de família” . A relação aqui, não é apenas
uma relação econômica, é também uma relação simbólica, a palmeira é como
mãe que sustenta os filhos através da alimentação, da moradia, que está
presente em todos os momentos, e principalmente esta presente na hora da
necessidade, portanto, deve ser respeitada, não pode ser cortada, não pode
ficar presa, não pode morrer.
Considerações Finais:
8
O MIQCB, vem atuando nos estados do Piauí, Maranhão, Tocantins e Pará, desde o início da década de
90 junto a vários municípios destes estados onde há ocorrência de babaçuais. Para uma melhor
compreensão sobre esse movimento de mobilização das quebradeiras de coco babaçu, vide, ALMEIDA
(1995)
9
Uma das ações políticas do MIQCB, é a luta pelo reconhecimento da quebradeira de coco, enquanto
categoria profissional. Cf. relatório de Avaliação Institucional do MIQCB de agosto de 2001.
meio ambiente, particularmente com os babaçuais. A identidade é afirmada a
partir de uma concepção própria de natureza, de meio ambiente e de terra.
A identidade da quebradeira, se tomarmos como referência a concepção
das relações sociais de fundamento étnico em (WEBER 2000, p.267-277),
ganha novos significados no decorrer da luta pela libertação do chamado coco
preso. Este autor, desvincula o fenômeno étnico dos laços de sangue e define
a comunidade étnica a partir do sentimento de compartilhar uma característica
comum. O grupo étnico organiza, segundo o autor, sua identidade a partir
daquele elemento que está em perigo, como é o caso das mulheres citas que
untavam seu cabelo com manteiga, que logo exalava um cheiro rançoso,
impossibilitando a aproximação social com as helenas que untavam seus
cabelos com óleo perfumado. No caso das quebradeiras de coco, o elemento
em jogo, é essa atividade econômica fundamental, que garante sua reprodução
familiar.
Ainda segundo (WEBER, op.cit), as relações sociais de caráter étnico
têm fins políticos, sendo, portanto, uma construção social e não algo
naturalmente dado. Assim definido, as quebradeiras de coco, enquanto um
grupo étnico organizam-se, em decorrência de mobilização política, acionada
no processo de luta e, depois, de comunicação com os poderes instituídos.
Castells (2000, p.22-28) nos diz que a construção social da identidade
sempre ocorre em um contexto marcado por relações de poder, assumindo
distintas formas: a identidade legitimadora de uma situação de dominação; a
identidade de resistência por parte dos atores que se encontram em
posições/condições desvalorizadas; e a identidade de projeto, que é quando os
atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu
alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na
sociedade.
Se nos basearmos nessa idéia de Castells, no contexto específico da
situação social abordada, o que temos é a identidade de resistência e a
(re)construção de uma identidade de projeto coletivo, - anteriormente
estigmatizada pela inferioridade, e/ou negatividade-, marcada agora pela
construção de uma identidade política, que vem sendo reconhecida pelos
aparelhos de poder 10 , que “emprestam significado político a uma categoria
historicamente de uso cotidiano”, cf. (ALMEIDA, op. Cit. 1995, p.19). Ou seja,
estamos diante da passagem de uma existência atomizada, onde a
quebradeira aparece nas gravuras e pinturas, como se fizesse parte da
paisagem natural, para uma existência coletiva, que seria o advento do
indivíduo ciente de seus direitos políticos e agrupado segundo novas
identidades. Conforme esse autor, a quebradeira se “desnaturalizou”, saiu do
quadro, saiu da gravura, para sentar-se à mesa com as autoridades que não
têm mais como fingir que elas não existem. Nesse contexto, a quebradeira de
coco apresenta-se como atriz social com possibilidade estratégica de
intervenção em políticas públicas, particularmente aquelas direcionadas ao
acesso à infra-estrutura básica, à terra, e à aprovação da Lei do babaçu livre.
Tendo ainda como base o critério político-organizativo, essa categoria é
sempre acionada na defesa e manutenção do seu território, que diz respeito
não apenas à área geográfica ocupada pelo núcleo de moradia e de trabalho
dessas famílias, mas particularmente às áreas de babaçuais. Assim, o território
das quebradeiras de coco transcende os limites geográficos da região
delimitada a partir de uma dimensão espacial, descrita a partir de seus
aspectos físicos e demográficos. Vale lembrar, inclusive, que o MIQCB se
movimenta num espaço mais amplo do que aquele definido como Amazônia
Legal, já que o Estado do Piauí fica fora dessa divisão político-administrativa.
As divisões político administrativas promovem descontinuidades em um todo
contínuo, qual seja a extensão dessa formação florestal específica que são os
babaçuais. O Movimento existe onde existem palmeiras, estejam elas dentro
ou fora das classificações político-administrativas.
Sendo os babaçuais, onde quer que se encontrem, os locais onde se
objetiva o território das quebradeiras, nessa situação, a noção de território
torna-se muito mais complexa, visto que na maioria das vezes as atividades
realizadas por essas mulheres são realizadas em áreas privadas, já que,
segundo o Código Civil Brasileiro, a propriedade da terra é algo absoluto.
Segundo SHIRAISHI NETO (2000, p.47), nem o Direito Civil nem o Direito
10
Em nível Federal, foi criado o Grupo de Trabalho Babaçu, instituído em março de 1999 através da Lei
nº 9649 de 29 de maio de 1998, revalidada em 2 de abril de 2001, pela medida provisória de nº 2143/30,
sendo compostas por representantes do Ministério do Meio Ambiente, do MIQCB e por outras
organizações da sociedade civil, sendo este um espaço de discussão política
Agrário brasileiro e suas específicas legislações, atendem às necessidades dos
segmentos de trabalhadores extrativistas, para quem as árvores são recursos
mais importantes e estratégicos à reprodução social desses grupos que o
próprio solo.
Quando, a condição de quebradeira é ameaçada outros domínios de sua
existência social também o são. O território das quebradeiras nessa situação
fica ameaçado, e quando isto acontece, sua própria sobrevivência, suas
representações sociais e simbólicas, é colocada em risco. Daí sua necessidade
constante da luta pela libertação dos babaçuais.
Outra categoria utilizada pelo Movimento é a do babaçu livre, que
emerge no bojo dessas lutas pela libertação dos babaçuais e começa a ser
utilizada pelas quebradeiras de coco, desde 1991, ano em que foi realizado o I
Encontro Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, e diz respeito a
necessidade de acesso livre e de uso comum das áreas de ocorrências de
babaçuais. Tornar os babaçuais livres, ganha força e termina por se
transformar em lema do Movimento.
O termo uso comum 11 é entendido pelos informantes como aquele local
onde qualquer quebradeira possa ter acesso livre para trabalhar na atividade
extrativa do babaçu, mesmo em áreas consideradas privadas. As palmeiras do
babaçu representam o elemento de uso comum, sendo estas, o seu bem
principal, ou seja, as árvores são mais importantes do que a própria terra, do
que o solo.
Praticamente todas as mulheres que vivem nas áreas de ocorrência de
babaçuais, quebram coco para fazer face aos gastos cotidianos com gêneros
alimentícios como açúcar, café, sal, macarrão, dentre outros, como querosene,
velas, remédios.
11
ANDRADE (1996), em seus estudo sobre o grupo que mora e cultiva na chamada Terra dos Índios, em
Viana, analisa a categoria nativa comum em vários de seus aspectos, conforme acionada por seus
entrevistados no momento da luta contra a grilagem de seus território. A partir dos depoimentos de seus
informantes, tenta desvendar a jurisprudência camponesa, que distinguiria o que seria passível de
apropriação individual e o que, segundo as regras do grupo, seria interditado à apropriação privada. As
terras de uso comum representariam, então, para a autora, a articulação de sistemas de apropriação
familiar e de usufruto comum nao apenas do solo, mas de outros recursos da natureza.
No entanto, a maioria das famílias extrai o babaçu 12 , ainda trabalham
em áreas que não lhes pertencem, sob a condição de ocupantes, posseiros,
parceiros, arrendatários, conforme classificação adotada pelo Censo (IBGE),
sendo a aprovação da lei de livre acesso ao babaçu, o elemento que pode
eliminar ou diminuir a violência simbólica e econômica 13 a que essas mulheres
estão submetidas.
Alguns autores 14 têm realizado esforço no sentido de inventariar e
descrever as formas de acesso e uso comum dos recursos naturais, por
segmentos de trabalhadores extrativistas na Amazônia, com destaque para as
condições de “ocupação” e “posse”, dominantes na atividade extrativa na
Amazônia
No plano legal, algumas iniciativas, ainda que incipientes, já foram
tomadas, no sentido de garantir o acesso livre aos babaçuais 15 . Na
Constituição Estadual do Maranhão, a exploração dos babaçuais em regime de
economia familiar e comunitária é assegurada nas terras públicas e devolutas.
Nos Municípios de Lago do Junco, Esperantinópolis, Lago dos Rodrigues, e
São Luís Gonzaga, localizados na região do Médio Mearim, existem leis
municipais que asseguram o livre acesso e uso comum às palmeiras de
babaçu, em áreas publicas e privadas.
No plano político-organizativo, as noções subjacentes à expressão que
se tornou o lema do Movimento - babaçu livre – têm lugar central no sistema de
representações 16 sobre os recursos naturais. È um termo utilizado pelas
mulheres como instrumento de luta e de mobilização, bem como de
identificação, como é o caso dos sabonetes produzidos pelas mulheres da
12
Estima-se que nos 30 municípios maranhenses de maior ocorrência de babaçuais, no Maranhão,
existem em média 135.120 mulheres envolvidas na atividade extrativa do babaçu, e cerca de 300 mil
mulheres envolvidas no extrativismo do coco babaçu, nos estados do Piauí, Maranhão, Tocantins e Pará.
Cf. MESQUITA. 2000:87
13
As mulheres são acusadas de invadirem propriedades privadas, roubarem coco babaçu, e no sentido
econômico, ainda são obrigadas a pagar foro ou meia, mesmo naqueles municípios aonde já foi aprovado
a lei do babaçu livre.
14
Dentre eles, citamos Shiraishi Neto, (2000, p. 44-51)
15
Cf. Shiraishi Neto, op. Cit. a preocupação em garantir o uso das palmeiras de babaçu ocorreu em
diversos momentos na história do Maranhão, como o Decreto-lei nº 573, de 4 de fevereiro de 1942...Ou o
mesmo projeto de Lei apresentado à Assembléia Legislativa do Maranhão em 1962.
16
Quando utilizo o conceito de representação, estou referida à literatura clássica:
DURKHEIM, E & MAUSS, M (.1970 p 15-47 –No âmbito da antropologia,
poderíamos também pensar nos termos de L. Strauss, quando trabalha, em O
Pensamento Selvagem, as formas de classificação dos recursos da natureza.
Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais - AMTR em Lago do Junco, que
trazem no rótulo o título de babaçu livre. No depoimento abaixo, as
representações sobre o babaçu percebido e vivido como recurso que deve
estar disponível ao usufruto coletivo, estão pautadas no entendimento de que
os babaçuais são resultados da criação da natureza e não do trabalho humano.
“...o babaçu não pode ter dono, ninguém
plantou nenhuma palmeira de babaçu, nenhum
fazendeiro plantou e nem cuidou de nenhuma
palmeira, elas nascem porque Deus quer, foi
Deus que fez nascer as palmeira...o babaçu
tem quer ser livre pra quem precisar fazer uso
dele”.
17
Para um aprofundamento sobre a questão do dominium (propriedade para o direito romano, que é o
que ficou na nossa legislação, leia-se: MOURA, (1984).
O babaçu livre, também se apresenta como uma nova concepção de
direito, em contraposição ao direito civil e agrário, conforme nos chama
atenção (SHIRAISHI NETO, 2002).
“ O babaçu livre representa, então, uma figura
essencial de uma “nova concepção” de direito
em oposição ao Direito civil, que privilegia a
propriedade privada, como também ao Direito
agrário, que impôs o caráter social da terra e
não estendeu à cobertura vegetal”. (grifos da
autora)
Considerações Finais:
MUSUMECI, Leonarda. O Mito da terra liberta. São Paulo: vértice, ed. Revista
dos Tribunais: ANPOCS, 1988
SILVA, José Gomes da. Caindo por terra: crises da Reforma Agrária na Nova
República. São Paulo: Busca vida, 1987
SHHIRAISHI NETO, Joaquim. A Reconceituação do extrativismo na
Amazônia: Práticas e uso comum dos recursos naturais e normas de direito
construídos pelas quebradeiras de coco. Núcleo de Altos Estudos Amazônicos
– Curso Internacional de mestrado em Planejamento do desenvolvimento.
Belém, 1997 (Dissertação de mestrado)