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quais é que já estão publicados em Portugal.

Parece um
passo dispensável mas não é — já me aconteceu ler e
decidir lançar um autor para depois descobrir que já estava
Por vezes os leitores não percebem a razão de uma série publicado por cá. (O que revela duas coisas: primeiro,
ser cancelada (isso já foi explicado no editorial da Bang! 26), que não é por sermos editores que sabemos tudo o que
a razão de uma obra ser dividida em dois volumes (idem), chega ao mercado; segundo, que há livros que passam
ou a razão de publicarmos um autor em detrimento de despercebidos, seja por mau trabalho das editoras, seja pelo
outro. Vamos fazer desta última questão a espinha dorsal famoso «azar sem explicação».) (Este «azar sem explicação»
deste editorial: porquê publicar o autor A e não o B.
dá, por si só, um editorial inteiro.)
A primeira coisa a ter em conta, na hora de escolher um
Depois de excluirmos todos os que já estão publicados
autor, é que há milhares em todo o mundo. Só na literatura
cá — e no fantástico devem ser apenas 0,1% do que é
fantástica, por exemplo, temos centenas de sagas. As
lançado em todo o mundo —, o passo seguinte é ver
mais famosas chegam-nos dos EUA e do Reino Unido,
quais são os que vendem mais no estrangeiro. A lista
onde o género é muito maduro e profissional — com
capacidade de chegar ao cinema e à TV — mas também dos famosos bestsellers é longa e contém muitas dezenas
mais formulaico; mas a verdade é que há excelentes autores de autores. As editoras sem experiência em literatura
de fantástico em todo o mundo, da Austrália ao Canadá, fantástica, e em que os editores não conhecem o género, se
da Ásia a África, e um pouco por toda a Europa: Espanha, um dia decidirem publicar fantasia porque está novamente
Alemanha, França e até Polónia (nunca é demais fazer na moda (é assim, as modas vão e vêm), provavelmente
referência a Andrzej Sapkowski acabadinho de chegar vão basear-se apenas no top de vendas americano para
à Netflix — o que prova que, nos dias de hoje, já nem montar o seu catálogo (com uma ajudinha do scout). Mas
é necessário escrever em inglês para vingar em outros quando se conhece bem o género, como é o caso da SdE,
média). o top não pode ser o único fator quando montamos um
Depois de termos a noção exata (e a surpresa inevitável) da catálogo. Dentro da literatura fantástica há géneros com
enormidade de autores disponíveis, do imenso celeiro onde dificuldade em se impor em Portugal: o horror é um deles.
temos de encontrar a nossa agulha, levanta-se a pergunta: As edições limitadas de H. P. Lovecraft vão-se vendendo,
qual escolher para publicar? mas é um clássico que se insere num nicho que aprecia
as nossas edições cuidadas feitas por fãs para fãs. Mas
porque é que o gigante Stephen King vende tão pouco em
O primeiro passo é simples: caso estejamos à procura Portugal quando comparado com os outros mercados?
de um autor para a Coleção Bang! começamos por ver E porque é que dos 10 autores de horror mais vendidos

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em todo o mundo, a maioria nem está publicada cá ou, evitar aprendizes de mestres que não fizeram escola
estando, tem vendas desprezíveis? A ficção científica no nosso mercado, e ainda os gatos que os agentes
é outro género amaldiçoado em Portugal. A SdE tem procuram fazer passar por lebres, ainda sobram imensos
publicado clássicos e autores contemporâneos de FC livros interessantes. Mas o que fazer quando a saga que
(Asimov, Herbert, Heinlein, Le Guin, Gibson, Bradbury, acreditamos ter mais potencial para o nosso mercado
Vandermeer, etc.), mas o público nacional que gosta do já tem meia dúzia de volumes? Se os leitores nacionais
género compra fundamentalmente em inglês, e o que não receberem de braços abertos o primeiro volume, é ótimo
gosta não compra em língua nenhuma. É pena mas é a haver mais volumes para dar continuidade ao sucesso do
realidade. Resumindo: mesmo que o top americano tenha primeiro. Mas e se as vendas do primeiro volume forem
alguns livros de horror e FC, um editor que conheça o um desastre? Significa deixar a série pendurada e alguns
género sabe que isso não significa nada na hora de vender leitores zangados. Esta situação leva a que muitas séries
os livros em Portugal. Por isso é que as editoras que maravilhosas, que li e levaram o selo de aprovação editorial,
baseiam o seu catálogo apenas em tops de vendas publicam, chumbem quando pensamos melhor nos riscos. Noutras
com muita expetativa, livros que estão inevitavelmente situações o risco é menor, porque se trata apenas de uma
destinados ao fracasso. Acontece a todos, até a nós. trilogia e não de uma saga sem fim à vista, mas o problema
pode ser semelhante se cada volume tiver 800, 600 ou até
mesmo 500 páginas!
Então em que é que nos baseamos para escolher um Perdi a conta ao número de livros que li cujo mundo,
título? Claro que o top é importante, mas depois de trama e personagens me conquistaram (e que considerei
desvalorizarmos os géneros que, tradicionalmente, não uma tremenda mais-valia para a Coleção Bang!), mas que
vendem cá, é preciso estudar com atenção o que sobra. depois de fazermos um orçamento ao projeto concluímos
Se estiver interessado em uma saga de fantasia épica, será não serem viáveis. São livros tão grandes que os custos
que vale a pena publicar um autor que é apresentado de tradução e impressão só são suportáveis com vendas,
como «o próximo Steven Erikson»? Ser comparado a um por exemplo, acima dos 5000 exemplares. E é muito raro
dos mestres da fantasia que mais vende nos EUA é um um livro de literatura fantástica chegar a esses números.
tremendo elogio. Mas faz sentido publicar «o próximo E porque na SdE também publicamos thrillers, romance
Steven Erikson» quando o próprio Erikson, que temos o histórico, literatura romântica, não ficção, etc., estou à
orgulho de publicar na Coleção Bang!, tem vendas baixas? vontade para vos dizer que é muito raro qualquer livro, de
E isto aplica-se a outros elogios como «quem gosta de qualquer género, chegar a esses números.
Robin Hobb vai gostar desta saga», ou «perfeito para Por vezes abrimos exceções pois há autores que têm
os leitores de Brandon Sanderson», ou ainda «os fãs de mesmo de ser publicados: George R. R. Martin, Robin
Guy Gavriel Kay vão adorar». Resumindo: o aprendiz Hobb, Brandon Sanderson ou Steven Erikson são alguns
dificilmente vai vender tanto quanto o mestre, e se o deles. Todos tiveram livros divididos em dois, mas as
próprio mestre não tem vendas satisfatórias, em princípio, críticas constantes de leitores menos informados sobre o
devemos evitar publicar o aprendiz. mercado (exemplo clássico: «vocês dividem porque querem
Depois de filtrar bem os géneros que não têm um bom dinheiro») fazem-nos evitar reproduzir essa fórmula
histórico de vendas em Portugal, bem como os aprendizes quando os autores são menos conhecidos. O mercado
de mestres que também se deram mal no nosso mercado, nacional fica mais pobre pois nem é publicada a edição
o que sobra? Ainda sobra muita coisa, nomeadamente integral num volume, nem a edição dividida em dois, mas
armadilhas vendidas com sofreguidão pelos agentes evitamos uma série de problemas — até porque, e esta é
literários, como por exemplo: «o próximo George R. R. a parte mais triste, desses quatro autores só um se revelou
Martin». Se eu tivesse um euro por cada autor que já me comercialmente viável.
tentaram vender com essa frase, podia fazer uma ponte
de moedinhas para atravessar o Atlântico e ir visitar
o mestre a Santa Fé. Muitos anos a ler fantasia, tanto Então já temos mais dois cuidados a ter quando
coisas boas como coisas más, ajudam a perceber qual é escolhemos um livro para a Coleção Bang!: evitar
o segredo de uma saga como A Guerra dos Tronos. Mas séries longas que não sabemos quando acabam e livros
esse conhecimento, por incrível que pareça, não é assim excessivamente grandes. (Não é fácil evitar este último
tão vulgar. Por isso é que há tantas editoras lá fora, mas ponto pois se Tolkien deixou imensas heranças boas à
também cá, surpreendidas pelas vendas fraquinhas dos fantasia, também deixou duas que são tóxicas: a obsessão
autores que lhes venderam como «o próximo George R. por trilogias e calhamaços.)
R. Martin». O segredo de A Guerra dos Tronos não está nos Outra coisa fundamental a ter em conta são as modas
dragões, na magia que os deuses oferecem aos seus eleitos, literárias. Houve a moda dos jovens feiticeiros com Harry
ou nos mortos do outro lado da muralha. Cada um terá a Potter; a da fantasia épica com os filmes de Peter Jackson
sua opinião, sendo a arte tão subjetiva e pessoal, mas uma baseados em O Senhor dos Anéis; a dos vampiros depois
explanação sobre o segredo desta saga, que conquistou os do Crepúsculo de Stephenie Meyer; a da fantasia cinzenta
fãs clássicos da fantasia mas também os que costumavam e crua com A Guerra dos Tronos de George R. R. Martin -
ter desprezo pelo género, daria um ótimo editorial no principalmente depois de chegar à HBO, etc.. Estas modas,
futuro. tal como um pastor, encaminham os leitores para caminhos
predefinidos. Ninguém consegue prever a próxima moda,
mas é mais fácil, depois da moda estar identificada, saber
Voltamos então à questão inicial: publicar o quê? Depois o que se publicar para tirar partido dela. (A saga A Casa da
de relativizar o top, peneirar os géneros amaldiçoados, Noite de P.C. Cast e Kristin Cast é um bom exemplo disso

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— vendeu que nem pãezinhos quentes quando os leitores as regras que vos descrevi neste texto não estão escritas
de Crepúsculo foram à procura de mais do mesmo.) Mas, em pedra — já dei grandes trambolhões por as levar à
regra geral, não há qualquer moda a influenciar o mercado, letra, e já me dei muito bem por as ignorar de todo. Mas
ou até há, mas noutros géneros literários que nada têm a são aquela parte certinha, previsível e chata que temos de
ver com o fantástico: todos nos lembramos da moda dos fazer antes de podermos ser impulsivos e seguir os nossos
thrillers à la Dan Brown; dos livros de colorir para adultos; instintos.
da literatura erótica depois de As Cinquenta Sombras de Grey E o meu instinto (leia-se, o fã de fantasia que tenho
terem deixado tantas senhoras (e senhores) cheios de calor; dentro de mim) decidiu ignorar as regras todas de que
e, mais recentemente, para grande alegria da SdE e do falei anteriormente e avançar com a publicação de um
nosso Mark Manson, os livros de autoajuda com asteriscos autor fabuloso que dá pelo nome de Joe Abercrombie. O
nos títulos. departamento comercial desaconselhou avançar com o
E o que mais pode influenciar a visibilidade e as vendas projeto — porque o autor já foi publicado em Portugal
de um livro? Será que devemos ter em grande conta os e não teve vendas famosas; porque o livro é GIGANTE;
livros que vão ser adaptados ao cinema ou à televisão? Os porque autores semelhantes no nosso catálogo não se
agentes fazem disso uma grande coisa, e sem dúvida que deram bem; etc. —, mas mesmo assim insisti e vamos em
há imensos exemplos, muitos deles no nosso catálogo, frente. Porquê? Porque este é um livro brutal, com trama
onde os novos média deram um empurrão inegável às e personagens marcantes, e é de livros como este que a
vendas. Mas na maior parte das vezes essa adaptação Coleção Bang! precisa. É certo que é muito volumoso,
só serve para inflacionar o custo dos direitos e não traz mas dividimo-lo em dois. Em contrapartida é um standalone
retorno ao editor, seja porque a adaptação foi má, seja e não o primeiro de uma saga que ninguém sabe (por
porque nesta Golden Age da TV se adapta tudo e mais vezes nem os autores) quando vai acabar. Para ajudar
alguma coisa, numa cavalgada em que são poucos os na divulgação, convidámos o autor a vir a Portugal e ele
autores que conseguem beneficiar de ver a sua obra aceitou estar presente no Festival Bang! E agora?
adaptada. Agora precisamos da vossa ajuda e acho que a merecemos:
ajudem-nos a provar que os livros de qualidade, apenas
e só por causa disso, têm público em Portugal. E, se
Como veem, o processo de seleção editorial é um labirinto. estiverem no Festival Bang!, até o levam para casa
Queremos um bom livro, mas temos de ter cuidado para autografado.
que não seja grande demais. Nem o primeiro de uma série
que não sabemos quando termina. É preciso relativizar os
tops estrangeiros, compreendendo o comportamento do
nosso mercado. É preciso evitar as armadilhas dos mestres
e dos aprendizes. É preciso estar atento a modas que Depois de um ano de hiato, o vosso Festival Bang! está
canibalizam as vendas durante um período que pode durar de volta. A terceira edição vai ser dia 28 de março de
meses ou anos. É preciso identificar os livros que vão ter 2020 (anotem já na vossa agenda) no Fórum Lisboa. Para
adaptações ao cinema e TV. Mas isto tudo sem esquecer além de Joe Abercrombie vai ter a presença de Sherrilyn
o inicial, queremos um bom livro, que satisfaça os nossos Kenyon. E muitas palestras animadas sobre literatura,
leitores e onde seja um orgulho colocar o selo da Coleção TV, BD e os restantes temas que costumam encontrar na
Bang! Conseguimo-lo sempre? Claro que não. Até porque revista Bang!. Contamos convosco!

Iniciamos neste número uma colaboração com a GFK que audita o mercado
editorial. Sabiam que no ano de 2018 se lançaram 63 novidades de literatura
fantástica (fantasia + FC + horror)? E destes, 27 foram da Coleção Bang!? Ou
seja, temos aproximadamente 43% do mercado nacional. No ano anterior (2017)
tinham sido 73 novidades, ou seja, o género tem vindo a cair. Curiosamente,
o preço médio dessas novidades subiu de 18,24 € em 2017 para 19,23 € em
2018, o que significa que os livros mais recentes são maiores ou que as tiragens
diminuíram e as editoras foram forçadas a aumentar o PVP. Mais: 905 títulos
catalogados como literatura fantástica tiveram vendas em 2018. Em 2017 foram
944. Alguns destes títulos podem ter vendido apenas meia dúzia de exemplares
e outros vários milhares.
E como está a BD? Lançaram-se 662 novidades em 2018 e 486
em 2017, concluindo-se que o mercado cresceu imenso. No ano
passado, 4870 títulos de BD tiveram pelo menos uma venda,
em 2017 tinham sido apenas 3925. Ao contrário da literatura
fantástica, a BD teve uma redução no PVP médio, de 13,42 € em
2017 para 12,99 € em 2018. Os números mostram-nos que a BD
está mais saudável e ativa do que o fantástico. Até ver! BANG!

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Com a partida do irmão, Kevin, para o
Outro Mundo, Zoey isola-se cada vez
mais. Os amigos estão preocupados,
mas Stark desconfia que há mais
alguma coisa a atormentar Z. No
mundo paralelo da Casa da Noite é
necessário restabelecer o equilíbrio
entre luz e escuridão, mas será que
Zoey conseguirá fazer a escolha certa?

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Na última parte do tão aguardado Depois de ter estado presente no
Já imaginaram um enorme complexo desfecho desta série, a guerra Festival Bang! de 2017, Anne Bishop
onde se pode viver e trabalhar? Um aproxima-se e tudo aquilo por que está de volta ao mundo dos Outros
lugar onde se pode encontrar tudo Mare lutou está em suspenso. Os com mais uma aventura que nos
o que é necessário a uma vida sem inimigos tornam-se aliados, e as faz regressar à época temporal de
contacto com o exterior? É esta a obsessões podem ser mortais. Qual Cartas de Profecia. A cidade Intuit de
premissa deste thriller distópico que o poder que vencerá depois de a Bennett ficou devastada depois do
pode não estar assim tão distante da tempestade de guerra passar? massacre perpetrado pelos Anciães
realidade. contra os humanos. Procurando
A Cloud é a gigante da reconstruir o frágil equilíbrio que
tecnologia que domina foi alcançado, a cidade começa a ser
a economia americana repovoada, por humanos e Outros,
depois do desaparecimento que procuram assim recuperar uma
do comércio tradicional. relação harmoniosa, ou pelo menos
As instalações oferecem pacífica, que se vive noutras regiões.
um número infinito de Mas Bennett começa a atrair as
comodidades que permitem atenções de outros humanos que
viver e trabalhar no procuram o lucro, e a chegada de um
mesmo local. Até aqueles novo clã, constituído por foras da
que anteriormente se lhe lei e jogadores, vai revelar segredos
opunham se rendem aos seus há muito escondidos. Mais uma
encantos, como Paxton, que fantástica aventura!
se vê obrigado a trabalhar
como segurança para a Cloud
depois de a empresa lhe ter

Em 2020, os grandes clássicos de


ficção científica estão de regresso à
Coleção Bang! com dois títulos de
Isaac Asimov há muito
aguardados pelo público.
Em Fundação e Império,
o Império Galáctico
está à beira do colapso.
Quando um general
imperial decide atacar
a Fundação, a única
esperança para o pequeno
planeta encontra-se na
profecia de Hari Seldon.
Tudo se torna ainda
mais alarmante quando
as próprias profecias da
psico-história, ciência
revolucionária criada
por Hari Seldon, são
postas em causa devido à
aparição de um mutante
destruído a vida. Mas a Cloud não é com poderes paranormais
vista com bons olhos por toda a gente. capazes de converter
E as tentativas de destruição deste um humano com uma
enorme complexo começam. vontade férrea em um
Um livro que nos faz questionar a escravo.
realidade em que vivemos, quando A trilogia Fundação foi
são megaempresas que controlam o a vencedora do prémio
destino dos países, e não os próprios Hugo como a melhor
governos. série de FC de todos os
tempos.

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alterar o rumo do conflito para em troca de um grande pagamento
sempre. que possa transformar as suas vidas.
Responsável pela transformação Mas como as Hospedeiras se vão
da fantasia, com a introdução de apercebendo, nove meses fechadas e
Se pensava que os grandes livros de personagens realistas e desprezando monitorizadas permanentemente pode
fantasia se faziam apenas de elfos, os estereótipos de Bem e Mal, Glen ser muito tempo. A história alterna
príncipes, grandes palácios e mundos Cook é um aclamado autor que vê entre o idílico Hudson Valley, a Quinta
de sonho, as obras de Glen Cook as suas obras terem continuidade no Avenida e um dormitório em Queens.
provam o contrário. Num ambiente catálogo da Coleção Bang! O romance explora as tensões entre
muito mais próximo da realidade, um ambição e sacrifício, sorte e mérito, e
grupo de mercenários vê-se envolvido dinheiro e maternidade.
em todo o tipo de sarilhos, batalhas
e episódios fantásticos para ganhar Imagine um resort cujo único objetivo
o seu sustento, tendo como única é albergar mulheres que se preparam
ferramenta a espada. durante nove meses para dar à luz
Esta nova aventura da Companhia filhos encomendados. Demasiado
Negra promete ser ainda mais sombria familiar? É este o ponto de partida Em 2020, a SdE tem uma
do que a primeira. Depois de ajudar de The Farm, o romance distópico de surpresa para os fãs que esperam
a Senhora a massacrar o movimento Joanne Ramos que aborda as questões impacientemente pelo próximo
rebelde, o grupo de mercenários deve da fertilidade, da maternidade e do volume de As Crónicas de Gelo e
eliminar um castelo misterioso na capitalismo ao serviço da reprodução. Fogo: uma edição especial dos dez
cidade de Zimbro. O que eles não Em Golden Oaks Farm, os livros desta tão aclamada série. Nas
imaginam é que naquele lugar também super-ricos começam a vida no útero próximas páginas podem encontrar
moram dois antigos membros do com o melhor que o dinheiro pode um artigo com mais informações
grupo com um importante segredo. comprar, incluindo dietas orgânicas sobre esta edição especial e alguns
Agora é necessário proteger os antigos em úteros jovens e escolhidos detalhes da conceção das capas.
amigos e decidir a quem devotar a através de uma rigorosa seleção. As BANG!
lealdade — uma escolha que pode Hospedeiras oferecem os seus úteros

A Senhora, feiticeira com


poderes de semideusa.
Uma mistura improvável
com ambição de Sauron e
moral de Jaime Lannister.
Ilustração de QR-Art.

Milformas, Aberração e Coxo, antigos feitiçeiros a


quem o Dominador e a Senhora tomaram as almas e
transformaram em Tomados, abominações invencíveis
e sem vontade própria. Ilustrações de Irontree.

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oão Florêncio (1988) é um pertencente ao concelho de curso de artes. Recorda-se que,
criativo que desenvolve Almeirim, distrito de Santarém. para muitos, a sua escolha era
trabalho a nível nacional E é sobre a calmaria desta aldeia uma mudança arriscada, mas a
e internacional no campo da que desenvolve o seu trabalho médio e longo prazo trouxe-lhe
ilustração, arte de conceito e e juntamente com a sua esposa paz e sanidade mental.
publicidade. É também fundador gere o estúdio. Quanto a clientes, João
da Brandman Digital, um estúdio João Florêncio sempre gos- Florêncio ilustra para públicos
de design e publicidade. tou de desenhar, mas só encarou nacionais e internacionais, sendo
Natural das Fazendas de Al- a ilustração seriamente aos 22 que a maior fatia está sediada
meirim, de momento vive numa anos – altura em que decidiu nos EUA. Colabora com agên-
aldeia bastante pacata, Raposa, trocar o curso de marketing pelo cias de comunicação, consultoras

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e produtores de jogos tradicionais, que vão Nas ilustrações digitais utiliza o Adobe
desde os jogos de tabuleiro a jogos de cartas Photoshop como ferramenta predominante e
e RPG. essencial do seu trabalho, possui conhecimento
No seu portefólio podemos encontrar em outras áreas como fotografia e modela-
maioritariamente criaturas, zombies e persona- ção 3D – que muitas vezes integra nas suas
gens «malucas», como o próprio as denomina. criações.
Muitas delas inspiradas em animais que sem- Para João Florêncio ilustrar é algo que
pre fizeram parte da sua vida e da influência adora e de onde obtém uma grande
que viveu durante a infância do mestre dos gratificação, o que o faz querer
documentários da Vida Selvagem: David Atten- atualizar-se e evoluir constante-
borough. mente.

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o já longínquo ano de 1966, a Radiotelevisão nossas melhores actrizes de teatro, a incomparável Palmira
Portuguesa (RTP), então jovem de não mais de Bastos (1875-1967). Há mesmo quem afirme que essa foi a
uma dezena de anos, transmitiu certa noite um melhor interpretação da longa e brilhante carreira da actriz,
programa que alcançou um êxito assinalável. então à beira dos 91 anos. Com ela contracenaram nomes
Refiro-me à peça teatral As Árvores Morrem de Pé, importantes dos nossos palcos, como Lurdes Norberto,
ainda hoje recordada, certamente com alguma Varela Silva, Luís Filipe, Josefina Silva, etc.
saudade, pelos que, hoje com sessenta e tal anos ou mais, Perguntarão os nossos leitores, e bem, a que propósito
tiveram oportunidade de assistir à transmissão televisiva virá tudo isto, numa crónica que se espera estar relacionada
da gravação previamente efectuada no Teatro Avenida, com a literatura ou o cinema fantástico em geral e, mais
destruído por pavoroso incêndio no ano seguinte. especialmente, com a área do terror, de que costumamos
A peça, estreada em Buenos Aires em 1949 e da autoria ocupar-nos nestas páginas. Perguntarão bem e a resposta
do dramaturgo espanhol Alejandro Casona (1903-1965), não tardará.
conta a história de um homem, já de bastante idade, O caso é que, a dado passo, durante a peça, é referida
que contrata os serviços de uma empresa preparada uma outra missão da mesma empresa que fornecera o
para trabalhos de certo modo insólitos, para que um seu falso neto, destinado a consolar a saudosa avó, durante
funcionário se faça passar pelo seu neto partido há muito a qual determinada pessoa teria imitado o canto de um
por maus caminhos, a fim de confortar a sua esposa, avó pássaro, provavelmente um rouxinol, que é, de entre as
desolada e igualmente muito idosa. O enredo complica-se aves canoras, uma das mais famosas pela excelência das
quando o tal neto, que se tornara, ao longo dos anos, um melodias que consegue produzir. Ora quem se referiu a essa
autêntico rufia, regressa imprevistamente. difícil imitação afirmava que ela não só era perfeita como
Para além da qualidade do enredo da peça, o êxito ultrapassava, em qualidade e valor, a do próprio passarinho,
obtido aquando da transmissão pela televisão fundou-se, atendendo a que este era um pobre ser irracional, que
em grande medida, na excepcional interpretação de uma das apenas por instinto produzia os sons maviosos que tanto

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agradam ao ouvido humano, ao passo ao retorno ao meio dos humanos de
que o seu imitador era um verdadeiro mais ou menos recentes defuntos será,
artista, cuja habilidade e talento tudo à partida, mais aterrador, dado o selo
transcendiam. de verdade com que a narrativa vem
Vem isto a propósito das autenticada.
diferenças entre três tipos distintos Não obstante a lógica subjacente
em que, de modo geral, podemos a este raciocínio, a verdade é que as
subdividir as histórias de fantasmas: coisas não se passam exactamente
os relatos de supostamente autênticos assim.
casos de aparições espectrais, as lendas Com efeito, muitas das narrativas
e as peças de ficção literária. de «autênticas» aparições acabam por
Se deixarmos de lado as narrativas ser mais ou menos desprovidas de
lendárias, em que o nosso folclore, verdadeiro interesse, restringindo-se,
como o de quase todos os países do frequentemente, a uma insípida
Mundo, é fértil, nele abundando as descrição de «factos», as mais das
criaturas sobrenaturais, as bruxas, vezes sem qualquer explicação ou
os ogres, as Moiras encantadas, interpretação. Essas descrições
os lobisomens e, naturalmente, os tendem a ser curtas, do género «um
fantasmas, sobram-nos pois dois casal pernoitava num quarto de hotel
subgéneros, dentro do género mas o seu sono foi interrompido
abrangente das histórias de aparições: pelo barulho de passos no piso
o das histórias «verdadeiras» e o das superior; de manhã, foram reclamar
criações literárias. junto da recepção, mas o funcionário
A distinção a que aqui se faz assegurou-lhes que o andar por cima
referência era já sublinhada, com a do quarto que ocupavam estava vazio
sua habitual precisão, por Montague e não era utilizado havia já muitos
Rhode James, que, além de escritor anos». A história pode ser contada
brilhante, foi distintíssimo erudito com mais ou menos pormenores,
medievalista: «Quase todas as histórias com ou sem a indicação do sítio
de fantasmas de tempos antigos exacto em que a casa assombrada
pretendem ser narrativas verdadeiras se situava, com ou sem a atribuição
de acontecimentos notáveis. Tenho de nomes aos diversos actores da
de deixar claro desde o início que história; eventualmente, haverá
com essas histórias — sejam elas referências a um qualquer crime que
arcaicas, medievais ou pós-medievais tenha ensombrado o local da suposta
— nada tenho que ver, assim como aparição.
nada tenho que ver com aquelas Não faltam, nas livrarias, volumes
que são narradas nos nossos dias. A reunindo tais descrições de casos
mim interessa um ramo da ficção; dados como verídicos, por vezes até
não se trata de um ramo de grandes reunidos por categorias: histórias
dimensões, quando se olha para verdadeiras de fantasmas contadas
o resto da árvore, mas tem sido por polícias, por bombeiros ou por
espantosamente fértil ao longo dos taxistas, histórias autênticas passadas
últimos trinta anos. O meu tema é a em navios, hospitais, cemitérios,
história de fantasmas assumidamente castelos, etc., por vezes histórias
fictícia e uma vez compreendido isso, referentes a um ou mais países, ou a
posso prosseguir». uma ou mais regiões de um país; no
Alguém desprevenido a quem limite, alguns volumes ocupam-se
se perguntasse qual das duas coisas de um único caso, enquanto outros
deveria ser mais aterradora, se as tratam de situações variadas e
avantesmas reais, cujas aparições são dispersas, às vezes juntando aos
por vezes testemunhadas por mais fantasmas propriamente ditos uma
de uma pessoa, se as que irrompem grande variedade de fenómenos
da imaginação de mais ou menos inexplicados, ou inexplicáveis,
talentosos escritores, é natural que se desde a possessão demoníaca e os
inclinasse para as primeiras. Afinal, avistamentos de discos voadores,
ficção é ficção e quando se lê uma ao reino da Criptozoologia, ou a
história assim rotulada, sabemos de misteriosos exemplos que parecem
antemão que os factos descritos não envolver viagens no espaço ou no
existiram na realidade; pelo contrário, tempo, quando não são uns célebres
haver testemunhas fidedignas que universos paralelos que muita coisa
afirmem ter assistido a fenómenos estranha permitem interpretar e
que a Ciência não consegue explicar e «explicar».

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uem para tanto possua os meios e a inclinação, fogueira moribunda, madrugada fora, o meu objectivo ao
decerto não terá grande dificuldade em reunir uma escrevê-las terá sido atingido».
biblioteca especializada de várias centenas de títulos Continuando a seguir M. R. James, naquilo que
nessa área. respeita à estruturação ideal de um conto de terror, ou,
Esses fantasmas apresentados como verdadeiros mais particularmente, de uma história fantasmagórica,
costumam interagir pouco com o nosso universo assinalemos dois aspectos, um referente à situação
quotidiano, para além de nele se intrometerem através temporal, outro ao ritmo a utilizar.
de luzes, imagens mais ou menos difusas, ruídos vários Quanto ao primeiro, dizia o famoso professor da
— que podem incluir gritos, choro, gargalhadas, arrastar Universidade de Cambridge: «Nunca é demais insistir em
de correntes ou muitas outras variedades — e mais que quanto mais remoto no tempo for o fantasma, mais
manifestações semelhantes, incluindo a telecinesia. difícil é torná-lo eficaz, supondo-se, naturalmente, que
A descrição de tais fenómenos não pretende, em regra, se trate do fantasma de uma pessoa morta. […] Grosso
ser literariamente brilhante, antes pelo contrário, uma certa modo, o fantasma deve ser contemporâneo daquele
lhaneza na exposição parece pretender e eventualmente que o encontra.» Esta proximidade temporal confere à
poder contribuir para que o que é descrito seja mais fácil história um carácter de realidade, de autenticidade, ou,
de aceitar por parte de quem lê. ao menos, de plausibilidade, que se perde quando os
O panorama muda radicalmente quando se passa para acontecimentos narrados são esquecidos no nevoeiro dos
o campo da literatura, aquele em que as histórias contadas tempos, precisamente porque, como acima ficou expresso,
são assumidamente inventadas pelos seus autores e têm essas antigas assombrações acabam por se confundir
objectivos precisos: em primeiro lugar, o de entreter o com lendas, ou podem ser vistas como distorções e
leitor, em segundo, o de o aterrorizar (se possível, tendo más interpretações do que, à época, tenha sido de facto
em conta as características pessoais de cada um, a sua observado. Reforçando estas ideias, sempre pela pena
fortaleza de carácter, o estado mais ou menos fortificado de M. R. James: «Uma história de fantasmas cuja acção
do seu sistema nervoso e outras circunstâncias similares), decorra no século doze ou no século treze pode conseguir
em terceiro, o de marcar alguma determinada posição ser romântica ou poética [considere-se, a propósito, o
filosófica, podendo então a narrativa sobrenatural servir célebre conto “A Dama Pé de Cabra”, do nosso Alexandre
de parábola que a tal propósito conduza. Que o objectivo Herculano], mas nunca conseguirá colocar o leitor na
das histórias de fantasmas na ficção envolve a criação no posição de dizer para consigo: “Se não tomo cuidado, uma
leitor de um sentimento de medo, é absolutamente claro coisa assim poderia acontecer-me a mim.”»
e indispensável ao seu êxito. Referindo-se a um conto de No que se refere ao ritmo, continua James: «Um
George Borrow, dizia M. R James: «[…] aqui está uma outro aspecto essencial é que o nosso fantasma deve
história escrita com o único objectivo de inspirar no leitor fazer-se sentir gradualmente, difundindo uma atmosfera
um agradável terror; e, tal como eu vejo as coisas, é esse de inquietude antes do relâmpago final ou golpe
o verdadeiro propósito das histórias de fantasmas». Tal de horror.» Por outras palavras: «Dois ingredientes
como o imitador do rouxinol ultrapassava em qualidade o extremamente valiosos na composição de uma história de
modesto pássaro que espontaneamente emite o seu canto, fantasmas são a atmosfera e um crescendo devidamente
o escritor que compõe uma obra de ficção em que faz conduzido… Sejamos, então, apresentados aos actores
intervir o sobrenatural vai para além do narrador de um num modo plácido; vejamo-los tratar das suas vidas como
caso apresentado como autêntico, porque à crueza muitas habitualmente, sem serem perturbados por presságios,
vezes inconsequente dos factos acrescenta uma estrutura, agradados com o que os rodeia; e neste ambiente
empresta o seu talento literário e demanda um efeito junto calmo, permita-se que a coisa aziaga assome, primeiro
do seu leitor que vai para lá do que, no primeiro caso, pode discretamente, depois de modo mais insistente, até
não passar de mera curiosidade. dominar o palco.»
Aí está, pois, o segredo a perseguir, composto por duas Destaca-se aqui a necessidade de construção de um
partes: um agradável terror. Terror, porque as situações ambiente propiciador do sentimento final de terror,
e os acontecimentos descritos bulem com conceitos objectivo de toda a história. É isso que muitas vezes
como o da Morte e o do Além, que desde sempre falta nas histórias de «verdadeiras» aparições, um clímax
fascinaram os seres humanos, assustando-o como tudo o que complete de forma adequada todo o edifício
que é desconhecido, desde a escuridão de um aposento, meticulosamente construído até lá. É o facto de o autor
mesmo numa casa familiar, aos confins dos oceanos, conseguir ou não esse momento final de arrepio, causador
antes de serem desbravados pelos intrépidos navegadores do tal agradável terror, que determina o êxito ou o fracasso
de outrora, muitos deles nossos compatriotas, ou dos de uma história. M. R. James sublinhou-o: «Tem de haver
espaços siderais sem fim, no dealbar tímido ainda da sua terror? [Numa história de fantasmas] perguntam-me.
exploração. Mas um terror agradável, um terror a que se Penso que sim.» E noutra ocasião: «Uma outra condição
pode pôr cobro mal se fecha o livro — ou, talvez, após indispensável, em minha opinião, é que o fantasma
uma breve ronda pela casa, para garantir que as portas e as deve ser malévolo ou odioso: as aparições amigáveis e
janelas se encontram fechadas e que não há olhos a brilhar prestativas ficam muito bem nas histórias de fadas ou em
na penumbra por debaixo de uma cama. lendas locais, mas não lhes encontro qualquer utilidade
O nosso autor ia mesmo um passo mais adiante: «Se numa história de fantasmas fictícia.»
qualquer [das minhas histórias] conseguir fazer com que Naturalmente, o que fica dito refere-se e aplica-se à
os meus leitores se sintam agradavelmente desconfortáveis experiência daquele que foi, provavelmente, o expoente
ao caminharem ao longo de uma estrada solitária, à máximo da literatura do género dos fantasmas, já que
noitinha, ou quando estejam sentados diante de uma outros dos gigantes da literatura sobrenatural, como

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Joseph Sheridan Le Fanu, Arthur modo insignificantes os respectivos
Machen, Algernon Blackwood, enredos e tão curtas e sintéticas
Howard Phillips Lovecraft, Jean as narrativas, que a sua leitura se
Ray e tantos outros, estenderam termina sem qualquer sentimento
a sua prosa a campos mais de perturbação, nem, na realidade,
diversificados, concentrando-se qualquer emoção. O gentil autor
menos num tema específico. A será sem dúvida esquecido em
memória humana, incapaz de breve, oculto à sombra dos seus
absorver e reter toda a informação maiores.
que repetidamente a assalta, vê-se
obrigada a seleccionar apenas
uma parte dela, o que significa
que, no campo da literatura, or fim, uma questão um tanto
mesmo quando restrito a uma área à margem desta discussão
muito limitada, só os nomes mais dos aspectos estruturais das
sonantes perduram ao longo das histórias fantasmagóricas,
décadas e dos séculos, perdendo-se mas que é frequentemente
os demais na obscuridade das suas colocada, é a de saber se um
limitações, salvo para um muito ou outro, ou a generalidade dos
reduzido número de especialistas autores de histórias de fantasmas
na matéria. Assim, se a estrutura acreditam de facto na veracidade da
descrita é facilmente identificável existência dos seres sobrenaturais
nos contos de James, como nos de que utilizam nos seus contos.
outros desses celebrados autores, Certamente a resposta variará de
ela está muitas vezes ausente dos uns para outros, mas, a fim de
esforços de autores menores. não se alongar a abordagem de
Casos há em que as peças de um assunto acerca do qual, há,
ficção acabam por enfermar dos na realidade, uma informação
mesmos males que as das histórias comparativamente escassa,
«verdadeiras». Podemos, a título limitemo-nos, uma vez mais, a citar
de exemplo, referir um livrinho da o Prof. Montague R. James: «Se
autoria de John Barnes e intitulado acredito em fantasmas?... Estou
Ghost Stories of a Norfolk Parson. pronto para considerar as provas e
Não se põe em dúvida que os para as aceitar se me satisfizerem.»
contos nele incluídos são de facto Esta abertura de espírito é,
contos fantasmagóricos, nem que evidentemente, própria de um
estejam escritos de forma elegante investigador eminente como ele foi.
e agradável; são, porém, de tal
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ulto maior da cultura poemas. Já As Aventuras de Fernando tinham encontrado em A Conspiração
mundial, o mais Pessoa, Escritor Universal…, de Miguel dos Antepassados, de David Soares,
conhecido e traduzido Moreira e Catarina Verdier, traça a um escritor que cultiva o género
dos poetas portugueses, vida do poeta, do nascimento à morte, fantástico, com uma carreira
Fernando Pessoa foi por diversas num registo gráfico entre a linha clara importante também na banda
vezes transformado em personagem e o trabalho do norte-americano desenhada.
de banda desenhada. Experiências e Chris Ware, em que o peso do texto, Uma das mais populares séries
homenagens de interesse e sucesso na sua maioria do próprio poeta, não da editora Bonelli, a mesma que
variáveis, mas que demonstram bem deixa grande espaço na página para a publica Dylan Dog, a série Dampyr,
a extraordinária popularidade da imagem e a tal aventura, de que fala criada por Mauro Boselli e Maurizio
obra e do homem que Neil Gaiman o título, é sobretudo uma aventura Colombo, conta as aventuras de
descreveu, no prefácio à primeira intelectual e imóvel… Harlan Draka, um Dampyr, caçador
edição portuguesa de Sandman, como Algo nos antípodas de A Vida de vampiros com origem no folclore
«o homem que era muitos poetas». Oculta de Fernando Pessoa, de André eslavo, nascido de uma relação entre
Uma das primeiras e também das Morgado e do brasileiro Alexandre um vampiro e uma mulher humana,
belas dessas homenagens sucedeu Leoni, que transforma o poeta num o que lhe confere poderes especiais.
no Brasil, num episódio da série caçador de zombies, membro de uma Como acontece geralmente nas séries
Os Piratas do Tietê. Verdadeira obra sociedade secreta que defende a da Bonelli, cuja acção raramente
de culto de um dos mais populares humanidade das forças sobrenaturais decorre em Itália, Boselli e Colombo
cartoonistas brasileiros, Laerte, que e os seus heterónimos são pessoas escolheram como cenário inicial
cria uma obra-prima do humor surreal reais que o poeta teve de matar e para a aparição do mal simbólico (os
ao transpor um grupo de piratas posteriormente encarnar através da vampiros) um espaço martirizado
sanguinários como havia nos séculos sua voz poética. pela guerra, onde o mal é bem
XVII e XVIII, para a cidade de São Paulo Um encontro entre a poesia e real: os Balcãs, de onde a lenda do
contemporânea, onde vivia o autor o sobrenatural que está presente Dampyr é originária. Mas os países
(o Tietê do título é o poluidíssimo também em O Suicídio de Aleister que formavam a antiga Jugoslávia
rio que banha a cidade de São Paulo). Crowley, o episódio da série Dampyr, são apenas a primeira etapa no
Um dos melhores episódios da série é que deverá chegar às livrarias ao eterno combate entre o Dampyr e os
precisamente «O Poeta», uma história mesmo tempo que este número vampiros. Um combate que vai levar
que conta com a participação especial da revista Bang! chegará às lojas Harlan Draka a percorrer o mundo
e diálogos (extraídos dos seus poemas) FNAC. Uma história em que as e visitar diversos países, incluindo
de Fernando Pessoa, em que se prova duas personagens reais, o poeta Portugal, cenário das duas aventuras
que a poesia pode ter mais força do português Fernando Pessoa e o mago já publicadas em Portugal no livro
que as armas dos piratas, que tentam, inglês Aleister Crowley, se associam Aventuras em Portugal, segundo volume
sem sucesso, abater Pessoa. para combater uma ameaça saída da colecção que a Levoir dedicou aos
Mas se «O Poeta» é apenas uma da imaginação de H. P. Lovecraft, heróis da Sergio Bonelli Editore, em
história curta, já a espanhola Laura embora convenha referir que, se 2018.
Pérez Vernetti dedicou um livro Pessoa e Crowley se encontram pela A primeira, «O Esposo da
inteiro ao poeta em Pessoa & Cia, primeira vez na banda desenhada Vampira», assinada por Mauro
que compreende as biografias de neste O Suicídio de Alesteir Crowley, Boselli e Alessandro Bocci,
Fernando Pessoa e dos seus principais este não foi o seu primeiro encontro publicada originalmente em Itália
heterónimos, bem como a adaptação numa obra de ficção. Os dois já se no n.º 75 da série mensal, leva
gráfica de alguns dos seus principais

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e filosofias orientais, e conhecido
também pela sua utilização de
drogas para gerar estados alterados
de consciência. Mas
desenganem-se os que
pensam que Crowley
era um mero intelectual,
ele foi praticante
de yoga, e também
alpinista (escalou o
K2 e foi o primeiro a
tentar a escalada do pico
Kanchenjunga, o que o
torna muito diferente
da imagem do drogado
perdido nos fumos do
Harlan Draka e o seu ópio que é por vezes a
amigo Kurjak até que se tem dele).
Trás-os-Montes, » Crowley cultivou de si próprio
investigar a lenda do Castelo de texto, publicada em Itália em 2018, no uma imagem controversa, libertina
Monforte da Estrela, que dizem estar n.º 222 da série mensal, o cenário é e escandalosa e chegou a intitular-se
assombrado por uma vampira. Lisboa e as zonas de Sintra e Cascais, a si mesmo “a Grande Besta 666”,
Harlan regressa a Portugal em numa história que tem como ponto e a imprensa denunciou-o como
«Tributo de Sangue», história de de partida um acontecimento real: o Satanista e chamava-lhe “the wickedest
Giovanni Eccher e Maurizio Dotti, suicídio simulado de Aleister Crowley man on Earth”, o homem mais
publicada em Itália no Dampyr 147, em na Boca do Inferno, em Setembro de malvado da Terra. É difícil imaginar
2012, desta vez para fazer a rota do 1930. dois ocultistas tão diferentes um do
Vinho do Porto. Como refere Eccher: Se a obra literária de Pessoa é outro. E se ainda hoje o lugar das
«A história começa no Porto mas bem conhecida, o mesmo já não práticas ocultistas na obra poética de
depois desloca-se para todo o vale se pode dizer das suas actividades Fernando Pessoa é tema de grandes
do Douro: parte das construções de esotéricas, mas como vem referido controvérsias e discussões, podemos
Vila Nova de Gaia e chega a Miranda no prefácio à edição portuguesa de pelo menos afirmar que ele pertence
do Douro, para depois voltar para os O Suicídio de Aleister Crowley, assinado a uma tradição mais racional, menos
vinhedos dos produtores do Porto por Mário João Marques e José de excessiva, ligada a um misticismo mais
no meio dos quais se imagina que há Freitas, «também ele foi um esoterista Cristão e ao gnosticismo.
um mosteiro que, embora inventado, de alto grau, conhecedor profundo » É por isso muito estranha e
é graficamente inspirado em vários de astrologia, e das novas tradições surpreendente a ligação que uniu
conventos e mosteiros portugueses, neo-herméticas que pelos finais estes dois homens, primeiro sob a
como o Convento de Cristo em do século 19 foram nascendo pela forma de correspondência (Pessoa
Tomar e o Mosteiro de Santa Maria Europa fora, tradições nas quais escreveu pela primeira vez a Crowley
em Alcobaça.» também Crowley mergulhou a sua porque descobriu um erro de cálculo
Finalmente, na terceira aventura de iniciação ao saber oculto. Mas de certa no horóscopo que Crowley tinha
Dampyr em Portugal, que motiva este maneira, estavam em pólos opostos calculado para si próprio, e essa carta
do saber iniciou uma verdadeira amizade à
esotérico. distância), e depois sob a forma de
Crowley um estranho e rocambolesco episódio,
era mágico em que Pessoa parece ter-se prestado
e cultor a uma encenação bizarra do suicídio
de vários de Crowley na Boca do Inferno, por
tipos de motivos ainda hoje por esclarecer.
rituais que Crowley terá aqui interpretado um
iam desde a dos seus papéis preferidos, o de
magia sexual um trickster cujas motivações são
à invocação incompreensíveis, e Pessoa a do seu
de espíritos, facilitador ou psicopompo, ou seja,
foi fundador um episódio em que ambos vestiram a
de uma pele das suas personagens preferidas:
religião, a o mago louco e trapaceiro, o místico
Thelema, e sábio e iluminado (Pessoa interpretou
era também esse papel muito bem, tendo afirmado
profundo no dia seguinte ao aparente suicídio
conhecedor que tinha visto Crowley em espírito, já
das práticas no além!).»

19
Foi tendo como ponto de A dar vida ao engenhoso
partida estes factos reais que, através argumento de Boselli está o
de um aturado trabalho de pesquisa, excelente desenho de Michele
Mauro Boselli cria uma aventura Cropera que se revela tão à
de Dampyr, em que o caçador de vontade na reprodução rigorosa
vampiros cede o protagonismo aos dos cenários portugueses, como
seus parceiros Ann Jurging, uma nas cenas sobrenaturais, cheias de
vidente com poderes paranormais, elementos lovecraftianos, a que
e Caleb Lost, membro de uma o desenhador dá vida de forma
misteriosa raça de imortais, os espectacular. O resultado é uma
Amesha, com quem Crowley movimentada e fantástica (em mais
colaborou, mas também a Fernando do que um sentido) história de
Pessoa, Aleister Crowley e até Ofélia ficção, com a qualidade habitual
Queiroz, que irá assumir um papel das edições da Bonelli, que tem
fundamental na intriga, cuja acção tudo para agradar tanto aos fãs de
decorre entre Lisboa, Sintra, Cascais Lovecraft, como aos leitores de
e a cidade maldita de R’Lyeh, onde Fernando Pessoa.
o Cthulhu aguarda.
Uma história que explora o
papel determinante do Cthulhu
no terramoto de 1755, que quase
destruiu Lisboa, na linha da
presença regular de elementos
lovecraftianos na série, em que o
próprio Crowley já soma diversas
aparições. Com todos estes
ingredientes tão diferentes e que,
nas mãos de um escritor menos
experiente se podiam revelar
indigestos, Boselli «cozinha» uma
fantástica iguaria, que tem como
cenário espaços bem conhecidos
do leitor português, como o
Bairro Alto, o Largo do Carmo e,
sobretudo, a Quinta da Regaleira,
em Sintra, cujas extraordinárias
capacidades cenográficas do seu
poço iniciático, já tinham sido
aproveitadas por Filipe Melo e
Juan Cavia no volume final da
trilogia de Dog Mendonça e
Pizzaboy.
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1

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22
no após ano, o Vaticano entre Espanha e Portugal, rodado em
recebe e analisa relatos Fátima e nos arredores de Madrid.
de aparições que vão Estreou em 1951 e foi um êxito de
ocorrendo um pouco por bilheteira, tornando-se inclusive um
toda a parte, mas oficialmente apenas dos títulos mais celebrados de Gil.
reconheceu 16. As aparições marianas Seria ainda votado como o melhor
de Fátima são as mais importantes filme desse ano pelo Sindicato
e famosas ocorridas no século XX. Nacional de Espetáculos e até o Papa
Deram-se num período político muito Pio XII concedeu uma audiência
específico que coincidiu com a génese privada a Rafael Gil, considerando
do Estado Novo, acérrimo defensor que esta obra havia feito mais pela fé
do fenómeno. Não admira que as católica que muitas missas.
primeiras representações fílmicas do Por esta altura, a imprensa dedicada
milagre tenham ocorrido por meio de à 7.ª arte em Portugal começa a dar
encomendas estatais, tal é o caso de conta das filmagens em Hollywood de
Fátima Milagrosa de 1928, realizado pelo um filme «que muito interessa a todos
italiano Rino Lupo (com a participação nós portugueses». Não se conhecem
em pequenos papéis de Beatriz Costa as razões para esta produção, mas a
ou Manoel de Oliveira), e Fátima, Terra Warner parecia ter posto em marcha
de Fé produzido 20 anos depois, com um remake do filme espanhol, mas
realização de Jorge Brum do Canto. desta vez a cores. The Miracle of
Ambos relatam histórias de conversão Our Lady of Fatima começou a ser
religiosa, tema recorrente do cinema de rodado logo a seguir ao sucesso em
propaganda do regime de Salazar. Espanha do filme de Rafael Gil, e
Curiosamente, o milagre foi pôs as autoridades nacionais muito
recebido muito entusiasticamente apreensivas pelo tratamento que estava
pela Espanha de Franco, que via a ser dado ao assunto. Escrevia-se na
neste fenómeno um instrumento de altura: «Veremos até que ponto os
luta anticomunista. É neste país que americanos souberam compreender
surge o primeiro filme sobre Fátima e “sentir” assunto de espiritualidade
além-fronteiras, pela mão de um dos tão transcendente, não só sob o ponto
mais populares cineastas franquistas, de vista católico, como pelo que nele
Rafael Gil. O filme chama-se La Señora se refletirá do nosso país e da nossa
de Fatima, fruto de uma coprodução gente.»

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Cena do filme La Señora de Fátima, 1951 © CinePT-Cinema Portugues

O filme obedece também a uma agenda


política, neste caso, antissoviética. Isso
reflete-se logo no início do filme que mais
parece uma cena da revolução mexicana.
A pacata vila de Fátima assiste impotente à
ascensão do socialismo e à perseguição aos
dignitários da Igreja. Os administradores
«marxistas» do território são retratados
como gangsters, quase uma PIDE comunista,
que tortura psicologicamente crianças para
que estas confessem o verdadeiro autor dos
boatos acerca das aparições. A estrutura
narrativa é muito semelhante ao filme
espanhol, e ambos terminam na apoteose do
chamado «milagre do Sol» presenciado por
milhares de pessoas todas rendidas à prova
definitiva do relato das crianças. Apesar de
não ser uma superprodução, a inclusão da
«Warner-Color» permite uma experiência
pré-psicadélica durante a qual cegos passam a
ver e aleijados a andar. O filme encerra com
imagens reais da peregrinação ao santuário,
filmadas em finais da década de 40 ou
início de 50, como acontecia no cinema de
propaganda português - A Revolução de Maio de
Lopes Ribeiro é concluído com um discurso
de Salazar em Braga.
Seria interessante falar um pouco do
realizador deste filme, o desconhecido John
Brahm. Nascido na Alemanha e emigrado
para os EUA aquando a subida ao poder
dos nazis, iria especializar-se em filmes de
temática macabra advindos talvez de uma
influência expressionista e da sua experiência
de combate na 1.ª Guerra Mundial. Até à
realização de The Miracle of Our Lady of Fatima,
da filmografia de Brahm salientavam-se
The Mad Magician com Vincent Price,

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The Lodger sobre Jack, o Estripador ou provocado pelo padrasto e que acredita
Hangover Square que costumava ser exibido poder ser curada por Nossa Senhora de
na RTP nos anos 80 sob o título Concerto Fátima. Macedo usa as imagens documentais
Fantástico, onde um reputado pianista após desta vez num tom mais perscrutante,
ouvir um determinado acorde dissonante se focando a pobreza e o sacrifício do povo em
transforma num serial killer amnésico. Pouco prol desses milagres salvadores.
depois do filme sobre os acontecimentos Filmado em 1976, o filme só viria a
em Fátima, Brahm passaria a trabalhar estrear comercialmente em 1979, numa altura
exclusivamente em TV até se reformar, em que o fervor revolucionário amainara
realizando alguns dos melhores episódios um pouco, o que permitiu uma acão
de Hitchcock Apresenta e, principalmente, da concertada entre Igreja, CDS e imprensa
Quinta Dimensão. conservadora, que visava reinstaurar a
Esta terá sido a versão oficial e definitiva censura. A estreia do filme teve direito a
do milagre porque em Portugal o assunto só vigílias e a confrontos físicos, tendo sido
voltou ao grande ecrã durante o PREC, e em proibida a sua exibição praticamente em todo
formato documental. António de Macedo, o país à exceção de Lisboa. O resultado foi
um dos rostos do movimento Cinema Novo, um tremendo êxito de bilheteira. Convém
juntamente com a cooperativa Cinequanon, mencionar que o milagre de Fátima viria
nascida do Centro Português do Cinema, a ser mencionado novamente na obra de
andava em périplo pelo país a registar Macedo, mais precisamente, num curioso
imagens do Portugal que o regime fascista documentário televisivo chamado Encontros
havia escondido durante décadas. E é neste Imediatos do Nosso Grau sobre avistamentos
contexto que surge Fatima Story, filmado de OVNI em Portugal. Há um capítulo
in loco em 1976. É, sem dúvida, o primeiro dedicado às aparições marianas que conclui
olhar independente sobre a mecânica do que o avistamento da Virgem Maria em
santuário, analisando com alguma distância Fátima poderá ter-se tratado de um evento
o advento da construção do espaço, das suas extraterrestre.
infraestruturas e um possível retrato dos seus Mas, se As Horas de Maria foi considerado
peregrinos. O material filmado que não foi o filme mais blasfemo do cinema português,
usado no documentário, iria ser reutilizado o milagre iria dar azo também a um filme
no filme mais polémico do cinema português maldito, muito raramente exibido e por isso
moderno, As Horas de Maria, em que totalmente desconhecido, que dá pelo nome
Macedo tenta descontruir a versão oficial de Fatucha Superstar. Com produção do grupo
dos evangelhos tendo por base a descoberta Cineground e filmado em formato Super
dos manuscritos do Mar Morto, ou seja, dos 8, caracteriza-se no genérico como uma
«outros» evangelhos. A Maria do título é «Ópera-Rock-Bufa» inspirada em Jesus Christ
uma jovem que cegou devido a um trauma Superstar. Do autor das canções e realizador,

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João Paulo Ferreira, sabe-se que tentou anos para se assistir a outro filme que No entanto, o filme estrearia a 13 de
comercializar filmes em Super 8 «para destoe das versões religiosas. Trata-se Maio.
a divulgação de uma cinematografia de da adaptação do romance de José Mais recentemente, João Canijo
carácter underground». É, provavelmente, Rodrigues Miguéis O Milagre Segundo realizou Fátima, um filme que segue a
o primeiro cineasta queer português e Salomé, com a estreia na realização de peregrinação de um grupo de mulheres,
alguém com profundo conhecimento Mário Barroso, um dos diretores de sem intenções de crítica ou denúncia
do cinema underground queer que se fazia fotografia mais importantes do nosso do milagre, mas antes de sondagem
à altura, pois é difícil não ver neste cinema. Miguéis, que levou cerca de dos mistérios da fé individual. De vez
filme a influência dos dois maiores 30 anos a publicar o livro devido em quando, vão surgindo minisséries
gurus do género: Jack Smith e John ao seu forte pendor anticlerical, — principalmente em efemérides,
Waters. O filme, que data de 1976, tem criou uma parábola para analisar a como aconteceu no caso do centenário
um carácter muito informal e lúdico e, solidificação do regime salazarista das aparições — mas que, apesar
embora pareça um «filme de amigos», através do aproveitamento político do de se focarem ou em Jacinta ou em
tem um lado subversivo totalmente fenómeno. Salomé é uma prostituta personagens secundárias, não tem
radical patente na forma como parodia «com alma de santa» que surge aos havido muita vontade em causar algum
o milagre. Como descrever então três pastorinhos, não em Fátima mas tipo de celeuma com a fé cristã no
Fatucha Superstar? que toca a aparições marianas.
O filme inicia-se com os Podemos então concluir que o
acordes de Jesus Christ Superstar cinema em torno das aparições
como banda sonora para uma constitui um território ainda
série de imagens do santuário. muito virgem, dividido entre
Passamos para os pastorinhos filmes que tentam capitalizar
a cantar e a pular pelos campos financeiramente a popularidade
fora, todos desempenhados do milagre, constituindo-se
por homens, que se cruzam nada mais do que variações
com a virgem numa árvore da mesma história, e outros
a dançar, interpretada por que, no calor do momento
um drag queen identificado no sociopolítico, o criticaram e/ou
genérico final como «Fefa ridicularizaram tentando abanar
Putollini». Devido à dificuldade o tabu do dogma religioso.
em visionar o filme, a cópia a Mas a verdade é que, quer se
que tive acesso tinha o áudio acredite ou não no fenómeno,
em mau estado, sendo difícil tem sido daqueles assuntos da
distinguir a totalidade das letras portugalidade moderna que
das canções, principalmente têm escapado a um profundo
aquelas cantadas em falsete. escrutínio artístico, neste caso
Mas Nossa Senhora canta assentando naquela máxima
versos como «Algo nos vai de O Homem Que Matou Liberty
acontecer ou será um matulão Valance de John Ford: «Quando
que o cu nos vem comer?», a lenda se transforma em facto,
ou o pastor Joaquim, que não publique-se a lenda.»
conseguindo apagar a aparição
da cabeça, desabafa: «Não
posso esquecer aquela gaja, que
é boa como o milho.» Fatucha ascende numa aldeia fictícia chamada Meca.
aos céus para uma aparição especial O argumento de Carlos Saboga
de «Deus Pai» que precede um baile condensa 600 páginas em 90 minutos
divino com anjos e santos a dançarem de filme e Barroso usa o ambiente
ao som do disco sound, numa festa político, assim como o milagre,
que se vai, aos poucos, convertendo como pano de fundo inusitado
numa orgia. Depois desta visão do para centrar o filme em Salomé e
paraíso, desce então aos infernos para nos seus amantes. Apesar de filmar
se redimir por intermédio de uns sumptuosamente a sequência em que
açoitamentos - inferno representado Salomé surge aos pastorinhos, o olhar
por filtros vermelhos, monstros e de Barroso está claramente fascinado
até um plano de alguém a defecar. O pelo mistério da personagem, que
filme termina com Nossa Senhora a nos vai surgindo através dos olhares
desempenhar uma série de truques dos vários pretendentes, todos eles
de magia perante o olhar atónito dos compondo um retrato das esferas de
pastorinhos. Fatucha Superstar é o filme poder da época. A Igreja não criticou
de culto por excelência do cinema o filme, muito pelo contrário, achou
português. que o tema era abordado de uma
E serão precisos esperar quase 30 forma sóbria e pouco provocatória.

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ivem nas sociedades
uma multiplicidade de
narrativas constantes,
algumas declaradas,
imediatamente perceptíveis, outras
discretas, incrustadas nos quotidianos
com uma agilidade sub-reptícia.
Palpitam em conversas, ideias, em
histórias e discursos e raciocínios de
diversos formatos, de variados tipos.
Interpretações com um certo cunho
de verdade e uma vasta afinidade
tanto por generalizações como por
preconceitos, capazes de resistirem e
durarem graças a um uso ubíquo que
no mesmo fôlego as valida, propaga,
sustem. Ficções sociais. casos. Ocasionalmente também uns e duas maneiras. A seguir, sempre
Mitos. mitos mais apegados às transcendências: depois, a individualidade, a precisar de
Cheios de falsas universalidades oráculos, sacerdotisas, representantes encontrar modos de se dizer e mostrar
destinadas a aprisionar, dizia Angela da imaginação, falando da criatividade, distante, ou pelo menos diferente, das
Carter, uns do oculto e do características que lhe predeterminam.
disparates onírico. No Negociares difíceis.
consolatórios. E fundo, gargantas Lutas amiúde caídas em derrota.
abundantes. Aliás, dadas apenas Talvez Carter tenha intuído
todo um sortido aos domínios do toda a problemática desde cedo.
sobre mulheres irracional. Entendeu-a decerto durante a década
e o feminino Semelhantes de sessenta. O casamento com Paul
como ela própria símbolos e Carter, dissolvido para efeitos legais
explicou em The invenções, em 1972 e abandonado anos antes,
Sadeian Woman tão fáceis de dotou-a de experiências que lhe deram
— An Exercise in evocar, tão lestos sufocos e afincaram perspectivas.
Cultural History a surgirem, Além disso, vivia-se a segunda vaga
(1979)1. Mitos transferem-se do feminismo, bem disseminada,
de virgens, depressa para a repercutente, utilizando várias frontes e
mães, deusas, de omnipresença. estratégias para denunciar o implantar
gente sem voz Passam a de consciências falsas nas mulheres e
consequente. imposição. a socialização que lhes designava uma
Um ideal de Por muito que suposta natureza dependente, quer em
passividade definam em termos económicos quer afectivos,
e pureza linhas toscas onde a submissão se convertia em
redentora, figuras e obtusas, até sumo epítome do feminil.
conciliadoras erradas, os seus Ademais havia associações e
com uma estereótipos movimentos e sucessivos debates.
paciência permanecem. Malgrado uns advogares tendentes
infinda, perpetuamente receptivas. Ali a criarem expectativas, formando ao drástico e algumas filosofias mais
Belas pejadas de suaves docilidades. Ou modelos, ditando o que esperar, místicas, ou de facto absurdas no
então armadilhas lúbricas, demónios. como avaliar, enquadrar. Primeiro pleno, dentro e fora das questões de
Receptoras de desejo em qualquer dos as construções, redutoras de mil género, a época fez-se de indagares

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tão importantes quanto fartos em acutilância em vários. E
ramificações. contudo Carter viu-se inscrita
Carter reporta ao ambiente de nos altos patamares e panteões
então, e ao Verão específico de 1968, dos contos de fadas urdidos
o aperceber-se da existência de ficções na contemporaneidade ou em
externas a moldarem as assumpções qualquer era.
sobre a realidade das mulheres. Conto The Bloody Chamber and Other
a conto, romance a romance e ensaios Stories 4 (1979), que juntamente
fora, foi elaborando uma obra inteira com The Sadeian Woman celebra
a explorar e contrariar as mentiras agora quarenta anos de edição,
propagadas pelas narrativas que ganhou o prémio do Festival
permeiam as comunidades. Por vezes, de Literatura de Cheltenham e
inclusive, as instaladas nos grupos instaurou a fama e reputação da
feministas e em aspectos particulares do autora. Listagens ou referências
movimento de libertação das mulheres. nunca a escamoteiam. Uma
Carter estava sem dúvida «no ramo da vastidão de autores cita-a como
desmitologização».2 influência. O livro figura ainda
E porém acabou amiúde tida e hoje nos dez mais vendidos
falada pelo prisma retorcido desses de sempre da Vintage Classics.
empecilhos. Sai publicado por diversas
Chamaram-lhe fada madrinha. casas, em volumes práticos ou
Associaram-na à Mãe Terra, edições requintadas. O novo
pediram-lhe contribuições nessa verve. milénio deu-lhe traduções
Ela desmontou o possível. Mas quando em Espanha, França, Itália,
morreu, os epitáfios atolaram-se da na Bulgária e na Estónia, na
conversa do amigo Salman Rushdie Rússia, Sérvia, Croácia, Grécia
sobre a literatura inglesa ter perdido a
sua grã-sacerdotisa e de uma panóplia
de adjectivos conectados com a magia.
Transformaram-na em Rainha das
Fadas, oráculo, bruxa branca.3
Frases feitas e termos comuns
saltam com facilidade, sobretudo se o
tempo não sobeja e se tenta apresentar
algo reverberante. Assomam muito
em elogios fúnebres. Idem para outras
ocasiões solenes de ocorrência súbita.
Afinal tais vocábulos estabelecem-se
no pressuposto de condensarem
uma especial perspicácia. De resto,
a prontidão integra-lhes a essência.
Expectável portanto que pelo menos
em parte viessem com tamanho
voluntarismo perante a morte da
autora. Carter ficou deveras conectada
com os mundos do maravilhoso, com
os fantásticos meandros dos contos
populares e contos de fadas. e até na Coreia e no Brasil. Continua de outros e de si mesmas. Pulsam-lhes
A segunda vaga do feminismo a surtir análises em variegados textos negrumes. Carter manuseia as
gerou uma série de contos de fadas académicos, de artigos a dissertações e velhas histórias com uma destreza
pós-modernos — em verso, assaz em teses provenientes de uma pluralidade fluída, ferrando-se nas narrativas e
prosa, postos em formatos curtos ou a de instituições. Fomenta ilustrações, no que estas implicam, dando-lhes
espaços nas formas longas do romance origina espectáculos. Os leitores uma linguagem luxuriante em níveis
—, assinados por escritoras como somam-se, renovam-se, multiplicados a consecutivos. Semeia interrogares.
Anne Sexton, Olga Broumas, Carol cada ano. Criam-se diálogos. Quem lê voga
Ann Duffy, Margaret Atwood, Tanith Entende-se o porquê. num jogo constante entre encantos e
Lee ou Barbara Comyns. Corria-lhes a Enquanto se escavam os espartilhos confrontos.
vontade de evidenciar doutrinações e impostos às mulheres, as personagens São dez contos. Um longo, próximo
munir de voz personagens constritas femininas afirmam-se bem além da novela ou já mesmo no campo da
décadas a fio por abafos e olhares ora de meras sofredoras e bondades noveleta, os restantes ou médios ou
gordos de ignorância e enviesamentos agrilhoadas por terceiros. Há uma ironia bastante breves. Primeiro um «O Barba
ora decididos a deturpar e aprisionar. transversal, aplicada ao passado, aos Azul», logo no encalço dois enredos
Descobria-se elevada qualidade e mitos, às próprias protagonistas críticas nas terras de «A Bela e o Monstro», um

29
casar com um marquês reminiscente dos domínios de Sade
e apreciador das volúpias sadomasoquistas, a recém-noiva
confessa-se mais disponível para esses gáudios do que ela
própria suporia ou gostaria de admitir. Até, claro, perceber
que o marido os leva ao mais absoluto e definitivo extremo.
Um amplo reportório de alusões culturais envolve este
conto inicial, à semelhança do que sucede nos seguintes
conquanto aqui de forma mais afincada. Após tantas
opulências, as riquezas descritas em «The Courtship of Mr
Lyon» assemelham-se quase banais. Parece mesmo estar-se
numa simples recriação moderna de «A Bela e o Monstro».
Puro engano. O pendor jocoso da narração denuncia-a,
obrigando a reavaliar o exposto. Já «The Tiger’s Bride»
revela-se disruptor desde a linha de abertura, cavalgante
por surrealismos e libertações para um sublime triunfo
final. Parente indirecto do culminar de «Puss-in-Boots»,
uma comédia narrada por um gato tão mundano quanto
requintado e poliglota. «The Erl-King» alicerça-se em cenas
florestais e certas perdições passíveis
de caírem sobre mulheres apaixonadas,
«The Snow Child» em paisagens
nevadas, em choques e horrores.
Ternura e salvação desenrolam-se
com tragicidade por «The Lady of the
House of Love». Ao passo que «The
Werewolf» traz uma Capuchinho de
desenvoltura algo oportunista, muito
bem adaptada ao seu meio, contrastante
pulo às espertezas de «O Gato das Botas», à independência airosa da jovem
entra-se nos domínios de «O Rei dos Elfos», em «The Company of Wolves» e às
vai-se às alvuras de «A Branca de Neve», humanidades quer limítrofes quer aptas
chega-se a uma vampira aparentada com «A a resgatar de «Wolf-Alice».
Bela Adormecida», e por último três meninas Por uns, por outros, um narrar
nas vestes de «O Capuchinho Vermelho», entre o coloquial e o ornado profuso.
a derradeira traçando umas relações com A oralidade típica dos contos populares
«Cinderela» e Alice’s Adventures in Wonderland harmoniza-se com um rolar literato,
(1865) de Lewis Carroll. frases plenas de musicalidades,
«Se há um monstro no homem, encontra evocações, comportando em si
o seu par também na mulher» — declara-se tempos e lugares, a conjurar cenários,
no guião que Carter coescreveu5 para sensações, inesperadas tactilidades e mil
The Company of Wolves (Neil Jordan, 1984), a adaptação histórias ou vindas da individualidade dos mundos artísticos
cinematográfica do conto homónimo mosqueada por ou já generalizadas e engrenadas nas memórias.
fragmentos de outros enredos da colecção. O filme, um Percorrem-nos elementos repetidos, aspectos
turbilhão onírico embebido em imagética sugestiva, vai recorrentes. Verificam-se sempre transformações de
replicando o material primário até colapsar num fim sem algum tipo. Depois, polvilhados pelas narrativas, aparecem
a assertividade nem o desafio ou erotismo do original. Para ventriloquistas, bonecas às vezes mecânicas, feridas
mais conclui-se com a heroína a berrar aterrada e os créditos lambidas e novas naturezas ocultas sob uma epiderme
vindos ao som de música aristocrática enquanto a jovem inicial, existências na fronteira, monstruosidades, uns
sussurra a moral do conto de Perrault. Carter detestou a viajantes incautos, feras e gatos e pássaros e gaiolas e casas
opção. Queria que se terminasse com a rapariga a mergulhar palladianas, Invernos profundos, ambiências matizadas
para outras aventuras, não com pavor e destruição coroados pelo gótico, rosas e vestidos brancos, pentáculos, câmaras
pelo reiterar de mitos serôdios. O realizador pediu-lhe sangrentas, libidinagens, meninas quase mulheres a quem
desculpa; limitações do meio naquela altura, justificou numa surge a menarca e risos desarmantes, servindo em parte
entrevista recente,6 embora com certeza os entraves técnicos de espada em parte de armadura, a virgindade dita em
não obrigassem a enveredar pelo perfeito oposto do intento simultâneo como estado de protecção, desconhecimento,
desejado. potencialidade. Um caleidoscópico de imagens, de
Ficam todavia uns bons momentos, uns quadros felizes. expressões e ideias ressoantes pelas histórias, a interligá-las.
E aquela fala a condensar muito do espírito da autora, Motivos recuperados, expandidos, ajudando exactamente a
aplicável a qualquer das tramas que compõem The Bloody montar os ecos e reflexos que Carter pretendia.
Chamber and Other Stories. O plano foi-lhe nascendo quando em 1976 lhe
A começar de imediato pelas inocências corruptíveis encomendaram uma tradução da obra de Charles
da protagonista de «The Bloody Chamber». Acabada de Perrault Histoires ou Contes du Temps Passé avec des

30
Moralités (1697). Carter fez de Perrault mais o que a avó evidenciando discursos de igual validade em luta por
lhe contara na infância e o que ela interpretava do que domínio. Pelo meio, criam não variações, mas verdadeiros
os escritos dele. Trabalho questionável, mas em todo contos de fadas novos.
o caso levou-a a bibliografia sobre as velhas histórias, As velhas histórias levaram hoje um milhar de
deixou-a fervilhante, a congeminar uma colectânea «sobre reviravoltas. Dois. Porventura três. Onde Carter pensou
as metarrelações entre humanos e animais», onde «o apenas em relações heterossexuais, há teceduras a vocalizar
animal é sexualidade reprimida»7 e esse vasto conteúdo o extenso colorido da sexualidade humana e a voltear o
latente assoma e se exibe repleto de esplendor e potencial enredo de todas as maneiras. Umas perspicazes, várias só
desassossego. momentaneamente engenhosas.
Outros motes acrescentam-se às correntezas do Apesar da insistência de certos sectores, alguns
livro. Belas e monstros, e monstras beldades e belos mitos esbateram-se. Surgiram outros. Mitos de mulheres
monstruosos. Metamorfoses. Convivências entre carnívoros guerreiras, de deusas furiosas, rainhas em eterna actividade
e herbívoros dramatizadas em diferentes combinações no consequente, seres superlativos. Parecem pouco nefastos.
decorrer das tramas. Instâncias em que um dos parceiros Não são. Carecemos ainda e sempre de desmitologizações.
sai aniquilado, natural quando no fundo se delineiam
opressores e vítimas. Amiúde revelam-se afinal da mesma
espécie, aptos portanto a comungarem. E por vezes o
carneiro — não mais sacrificial, de modo nenhum passivo
—, deita-se em serena coabitação com o predador, torna-se
como que messias de um reino de animais a descobrirem-se
de condição mista, mudando-se para saudáveis omnívoros.
Aprendendo e indiciando novas canções.
Se não tivermos essa capacidade, argumentava Carter,
mais vale pararmos.8
Cada conto termina a intuí-lo ou concretizá-lo. Apenas
nas circunstâncias restritas das suas personagens, sem
dúvida, no entanto pelo menos nessas. Uma conquista
individual com a esperança de um dia, quem sabe, se
estender à sociedade. No mínimo a uma parte crescente
dela, mais e mais consciente do que lhe tentam inventar.
Contos de fadas tanto absorvem mitos como facilitam
subjectividades, permitem expressar numerosas verdades,
versões, variantes. Imaginam mudanças pontuais. Procuram
uma melhoria das suas comunidades, ligeira contudo
efectiva. E englobam os pontos de vista dos seus imensos
contadores, da miríade de receptores e críticos que
opinam sobre eles. Carter compreendia-o e manuseou
esses interstícios com apurada perícia. Os seus contos
plurifacetados usam as melodias antigas, menos ou muito
conhecidas, e reavivam temáticas, espicaçam significados,

1
Consideração dos papéis adstritos às mulheres e de como a pornografia pode reiterá-los ou pelo contrário expô-los. Carter lê nos escritos do
Marquis de Sade a cristalização dos dois grandes pólos em que se fixam as mulheres: virgens submissas e deferentes, existindo na forma pas-
siva, fáceis de aniquilar, ou criaturas promíscuas, monstruosas na sua independência e voracidade. A violência das obras de Sade viveria assim
infundida de princípios não adversos às mulheres e configuraria uma avaliação crítica da sociedade.
2
Angela Carter, «Notes from the Front Line», Gender and Writing, ed. Michelene Wanda, 1983. Carter traça o percurso geral da sua carreira,
considerando temas e preocupações fulcrais e tecendo ainda algumas considerações sociopolíticas sobre a produção literária. O texto foi pos-
teriormente incorporado em Shaking a Leg: Collected Writings (1997) onde se agrega a não-ficção da autora.
3
Reúne-se um apanhado destes classificativos em The Invention of Angela Carter: A Biography (2016) de Edmund Gordon.
4 Publicado em 1991 pela Caminho com o título O Quarto dos Horrores e tradução de Maria Adélia Silva Melo, saiu entretanto dos circuitos co-
merciais. De momento apenas alguns dos textos possuem edição portuguesa, estando dispersos pela colecção Contos Maravilhosos Europeus
(2011-2013), organizada por Francisco Vaz da Silva.
5
Presente na obra de Carter The Curious Room: Plays, Film Scripts and an Opera (1996), editado postumamente. Vaz da Silva integrou excertos do
argumento em Capuchinho Vermelho — Ontem e Hoje (2011), segundo tomo dos Contos Maravilhosos Europeus.
6
Neil Jordan, citado em Edmund Gordon, The Invention of Angela Carter: A Biography.
7
Angela Carter, citada em Edmund Gordon, The Invention of Angela Carter: A Biography. Gordon explica também um pouco como
Carter adulterou a obra de Perrault; o assunto aparece melhor detalhado em Jack Zipes, «Introduction: the remaking of Charles
Perrault and his fairy tales», The Fairy Tales of Charles Perrault, trad. Angela Carter, Londres: Penguin Books, 2008.
8
Anna Katsavos, «A Conversation with Angela Carter», The Review of Contemporary Fiction, 14.3 (Outono), 1994.
32
az este ano quinze anos saúde e alimentação faz cada vez mais
que a Saída de Emergência vítimas; onde os antivax e os negacio-
nasceu. E, de tudo o que nistas das alterações climáticas têm
fizemos nesse período, uma cada vez mais voz, é preciso reagir.
das coisas que mais me or- Com informação credível. Com di-
gulha é a Coleção Bang! O mercado vulgação científica acessível ao grande
nacional precisava de uma coleção público. É preciso amar a ciência. E
que oferecesse literatura fantástica de este é o nosso manifesto:
forma regular, dos clássicos aos novos
talentos, que trouxesse a Portugal au-
tores que não estávamos habituados
a ver em pessoa, que lançasse uma
revista como esta que têm nas vossas
mãos, que organizasse um festival
para comemorarmos em conjunto a
nossa paixão nerd. Todos os leitores
que acompanham a coleção há muito
perceberam que esta é fruto do amor
ao género.
Passados todos estes anos, sinto
que o mercado precisa de outra cole-
ção. Uma de divulgação científica. É
certo que já existem outras coleções
com o mesmo objetivo, mas, infeliz-
mente, passam tão despercebidas nas
livrarias e nos media que o seu objetivo
dificilmente é cumprido.
Com o selo da Desassossego, a
chancela de não ficção da Saída de
Emergência, tenho o prazer de apre-
sentar a coleção EU AMO CIÊNCIA,
que pretende agitar a forma como se
divulga ciência junto do grande públi-
co em Portugal, conquistando espaço
e visibilidade para a ciência nas livra-
rias. Prevemos publicar quatro a seis
títulos por ano, sobre vários ramos da
ciência, desde a genética à astrofísica,
da saúde à alimentação, passando pela
biologia do cérebro à origem da vida
na Terra.
A coleção EU AMO CIÊNCIA
pretende divulgar a ciência e o método Nas páginas seguintes, damos a
científico. Não pretende confron- conhecer um pouco dos autores e
tar nem antagonizar, mas sim dar a do catálogo para os próximos meses,
conhecer. Queremos criar céticos bem como um excerto de Uma Breve
que usam a razão para fazer as suas História de Todas as Pessoas Que já
opções. Num país onde as teorias da Viveram de Adam Rutherford, e de
conspiração e as fake news estão em Origens de Neil deGrasse Tyson e
crescimento; onde a pseudociência na Donald Goldsmith.

33
33
simples e tradicional ou, como é o meu caso, poderá
Introdução essa estrutura ser adoravelmente desorganizada, com
tentáculos emaranhados como velhos cordéis numa
gaveta. Seja qual for o caso, mais cedo ou mais tarde, o
passado de toda a gente torna-se indistinto.
Todos temos dois progenitores, que tiveram dois
progenitores, que também tiveram dois progenitores, e
assim sucessivamente. Se continuarmos neste processo até
às últimas invasões na Inglaterra, constataremos que, ao
duplicarmos cada geração, o resultado são mais pessoas
do que as que já viveram, em largos milhares de milhões.
A verdade é que os nossos pedigrees se desdobram sobre si

E sta é a sua história. Conta a história da pessoa


que é e de como aqui chegou. É a sua história
individual, porque a viagem de vida que dá
origem à sua existência é única, tal como a de todas
as pessoas que alguma vez respiraram. É igualmente a
mesmos, as ramificações enrolam-se para trás e formam
redes, e todos aqueles que já viveram fizeram-no enredados
numa teia de descendência. Basta recuar algumas dezenas de
séculos para constatar que a maioria das sete mil milhões de
pessoas que estão hoje vivas descendem de um minúsculo
nossa história coletiva porque, enquanto embaixador de punhado de indivíduos, a população de uma aldeia.
toda a nossa espécie, você é distintivo e excecional. Não A história consiste naquilo de que foram criados
obstante as nossas diferenças, todos os humanos são registos. Durante milhares de anos, pintámos, entalhámos,
parentes extraordinariamente próximos e a nossa árvore escrevemos e contámos as histórias dos nossos passados
genealógica é podada, e sinuosa, e em nada se parece com e presentes, numa tentativa de compreendermos quem
uma árvore. Porém, nós somos o seu fruto. somos e como aqui chegámos. É consensual que a história
Existiram cerca de 107 mil milhões de humanos começa com o aparecimento da escrita. Antes disso,
modernos, embora este número dependa do ponto exato temos a pré-história, as coisas que aconteceram antes de
em que se começar a contagem. Todos eles, todos nós, inventarmos a escrita. Para pôr as coisas em perspetiva, a
somos familiares próximos, uma vez que a nossa espécie vida existe na Terra há cerca de 3,9 mil milhões de anos.
tem uma origem única em África. Não dispomos de A espécie Homo sapiens, à qual pertencemos, apareceu há
uma linguagem para descrever o significado exato disto. apenas 200.000 anos no leste de África. A escrita surgiu há
Por exemplo, tal não significa que tenha existido um só cerca de 6000 anos na Mesopotâmia, algures no ponto a
casal, uns hipotéticos Adão e Eva. Pensamos em famílias, que designamos atualmente de Médio Oriente.
pedigrees, genealogias e linhagem, e tentamos pensar no Em termos de comparação, o livro que tem na mão
passado longínquo do mesmo modo. Quem foram os tem cerca de 111.000 palavras, ou 660.000 caracteres,
meus antepassados? Poderá haver uma estrutura familiar incluindo espaços. Se o período de tempo em que a vida

34
existiu na Terra fosse representado como este livro, cada única. Há cerca de uma década, cinquenta anos após a
caracter, incluindo espaços, teria cerca de 5909 anos. O descoberta da dupla hélice, a nossa capacidade para ler o
tempo de vida na Terra dos humanos anatomicamente ADN melhorara ao ponto de este ser transformado numa
modernos equivale à extensão precisa desta frase. fonte histórica, um texto sobre o qual meditar. Os nossos
O tempo em que temos registado a história consiste genomas, genes e ADN acolhem um registo da viagem da
num bater de asas evolutivo equivalente a um único vida na Terra — quatro mil milhões de anos de tentativa
caracter, com a extensão deste ponto parágrafo<.> e erro que resultaram em si. O seu genoma consiste na
E como essa história é parca! Os documentos totalidade do seu ADN, três mil milhões de letras no
perdem-se, dissolvem-se, decompõem-se. São levados mesmo, e graças ao modo como se conjuga — através do
pelas intempéries, ou consumidos por insetos e bactérias, misterioso negócio do sexo (do ponto de vista biológico)
ou destruídos, escondidos, obscurecidos ou revistos. — é um exclusivo seu. Além de esta impressão digital
Isto antes de nos dedicarmos à subjetividade do registo genética ser apenas sua, é diferente de todas as outras 107
histórico. Decididamente, não é possível chegar-se a mil milhões de pessoas que alguma vez viveram. Mesmo
acordo quanto ao que aconteceu na última década. Os que tenha um gémeo idêntico, cujos genomas começam
jornais registam as histórias com parcialidades irredutíveis. a sua existência indistinguíveis, mas que começam a
As câmaras captam imagens selecionadas por pessoas diferenciar-se após a conceção. Nas palavras do Dr. Seuss:
e apenas veem o que passa pela objetiva, muitas vezes
descontextualizado. O próprio ser humano é uma «Hoje tu és Tu, isto é mais verdadeiro do que a verdade.
testemunha muito duvidosa da realidade objetiva. Somos Não existe ninguém vivo que seja mais Tu do que Tu.»
desajeitados.
Os detalhes precisos dos acontecimentos de 11 de O esperma que o criou iniciou a sua vida nos
Setembro de 2001, quando as torres do World Trade testículos do seu pai alguns dias antes da sua conceção.
Center foram destruídas, continuam envoltos em dúvida Um único espermatozoide de entre um jato de milhares
devido a relatos inconsistentes e ao caos do horror que de milhões enterrou a cabeça no óvulo da sua mãe, um
se viveu. As alegações das testemunhas em tribunal são de entre apenas algumas centenas. Como uma matriosca,
inquestionavelmente imperfeitas e sempre tendenciosas. esse óvulo crescera dentro dela quando ela estava a
Se recuarmos alguns séculos, verificamos que não existem crescer dentro da sua própria mãe, mas aperfeiçoou-se
evidências contemporâneas da existência de Jesus Cristo, durante o último ciclo menstrual e, aproveitando a sua
possivelmente o homem mais influente da História. A vez entre ovários alternados, abriu caminho desde o
maioria dos relatos sobre a sua vida foram redigidos nas conforto da sua procedência. Ao entrar em contacto,
décadas que se seguiram à sua morte por pessoas que aquele espermatozoide vencedor libertou um químico que
nunca o conheceram. Hoje em dia, se esses relatos fossem dissolveu a relutante membrana do óvulo, deixou para
apresentados como evidências históricas, seriam postos trás a cauda chicoteante e fez a toca. Uma vez lá dentro,
seriamente em causa. Até os relatos em que os cristãos o óvulo criou uma barreira impenetrável que impediu a
se baseiam, os Evangelhos, são inconsistentes e sofreram entrada de outros. O espermatozoide foi único, tal como
modificações irreversíveis ao longo do tempo. o óvulo, e a conjugação dos dois, bem, também foi única,
Não é minha intenção denegrir o estudo da história e deu origem a si. Até mesmo o ponto de entrada foi
(nem do cristianismo). Pretendo apenas demonstrar que único. Como o óvulo da sua mãe tem uma forma esférica,
o passado é indistinto. Até recentemente era registado aquele espermatozoide poderia ter aberto caminho em
sobretudo em textos religiosos, documentos de transações qualquer ponto e, às ordens da coincidência cósmica,
comerciais e nos documentos de linhagens reais. Nos penetrou o seu alvo num ponto específico, um ponto
tempos modernos, deparamo-nos com o problema que lançou vagas de químico e iniciou efetivamente o
contrário: informação excessiva e quase nenhuma maneira processo de definir o plano do seu corpo — cabeça numa
de a selecionar. Em todas as compras que fazemos online, extremidade, cauda na outra. Noutros organismos, sabe-se
em cada pesquisa na internet, fornecemos informações que se o espermatozoide vencedor tivesse entrado pelo
sobre nós mesmos, as quais serão capturadas no éter pelas outro lado, o embrião que se transformou em si teria
empresas. Livros, sagas, histórias contadas oralmente, começado a crescer numa orientação diferente, podendo
inscrições, arqueologia, a internet, bases de dados, filmes, bem passar-se o mesmo connosco.
rádio, discos rígidos, fitas magnéticas. Reunimos estes O material genético dos seus pais, o seu genoma,
bits e bytes de informação para reconstruir o passado. fora baralhado na formação do espermatozoide e do
E agora, a biologia tornou-se parte dessa formidável óvulo, e reduzido a metade. Os pais deles, os seus avós,
enxurrada de informação. haviam-lhe fornecido dois conjuntos de cromossomas,
O epigrama do início desta introdução é a única e o baralhamento misturou-os, produzindo um baralho
referência de Darwin ao ser humano na obra A Origem que nunca existira antes, e nunca voltará a existir.
das Espécies, mesmo na parte final, como que para nos Também lhe atribuíram apenas um pouco de ADN não
tranquilizar, afirmando que haverá uma sequela. Com a baralhado. No caso dos homens, têm um cromossoma Y
sua proposta teoria da descendência com modificações no que sofreu poucas modificações desde ele, e o pai dele,
futuro longínquo, será lançada luz sobre a nossa própria e assim sucessivamente ao longo dos tempos. Trata-se
história, que terá continuação. de um fragmento de ADN mirrado com apenas alguns
Chegou o momento. Atualmente, existe outra maneira genes e muitos resíduos. O óvulo também incluía alguns
de ler o nosso passado, e está a ser lançada luz sobre as circuitos de ADN escondidos no seu interior, na sua
nossas origens. Carregamos um poema épico nas nossas mitocôndria, uma minúscula central que fornece energia
células. Uma saga incomparável, abrangente, sinuosa e a todas as células. Possui o seu próprio minigenoma, e

35
como se localiza no interior do óvulo, apenas existe nas E tal não se limita ao rigor da ciência formal ou da política
mães. Juntos, constituem uma minúscula proporção do governamental para a medicina: basta cuspir para um
seu ADN total, mas as suas estirpes inequívocas são úteis tubo de ensaio para receber informações sobre partes
para recuar através de genealogias e a história antiga. fundamentais do seu próprio genoma num manancial de
Todavia, a grande maioria do seu ADN foi modelada no empresas que lhe revelarão todos os tipos de coisas sobre
embaralhamento dos seus pais, e o deles no dos seus. Esse as suas características, história e risco de algumas doenças,
processo ocorreu sempre que um ser humano viveu; a em troca de umas centenas de libras.
cadeia que o antecede é ininterrupta. Atualmente, dispomos também dos genomas de
centenas de pessoas há muito falecidas para contribuir
«Os teus pais lixam-te a vida. para esta grandiosa narrativa. Em 2014, foram
Pode não ser de propósito, mas lixam. identificadas as ossadas de um rei inglês, Ricardo III,
Enchem-te com as suas próprias falhas com um cúmulo de evidências arqueológicas (Capítulo 3),
e ainda juntam outras, só para ti.» mas a certeza foi firmada com o seu ADN. Conhecemos
os reis e as rainhas do passado graças ao seu estatuto
Não comento os aspetos psicológicos ou parentais e também porque a história nos contou repetidamente os
do poema de Philip Larkin, mas de um ponto de vista seus feitos. Enquanto a genética enriqueceu o estudo dos
biológico, ele acertou em cheio. Sempre que é criado um monarcas, o ADN é o verdadeiro uniformizador,
óvulo ou um espermatozoide, o embaralhamento produz e a nossa recente capacidade para extrair os mais ínfimos
uma nova variação, diferenças únicas no indivíduo que as detalhes do passado vivo tornou-o uma apreciação das
alberga. Herdará o ADN dos seus pais em conjugações pessoas, dos países, da migração, de toda a gente. Estamos
exclusivas e nesse processo — denominado meiose aptos a testar e a comprovar a veracidade ou não, além
— também terá inventado variações genéticas novas, de que conhecemos as histórias do povo, não apenas dos
exclusivamente para si. Algumas serão transmitidas se tiver poderosos e das celebridades dos seus tempos. Ilustres
filhos, e eles também adquirirão as suas próprias. desconhecidos do passado estão agora a ser promovidos
A evolução processa-se com base nestas diferenças, a algumas das personalidades mais importantes de
e é graças a elas que conseguimos seguir o percurso da sempre. O ADN é universal e, conforme perceberemos,
humanidade, conforme vagueámos por terras e oceanos, pertencer a uma linhagem real pode conceder-nos direitos
e oceanos de tempo, até todos os cantos do planeta. de divindade sobre os cidadãos, e os despojos que
Subitamente, os geneticistas transformaram-se em acompanham o poder herdado, mas a evolução, a genética
historiadores. e o sexo não distinguem nacionalidades, fronteiras e todo
Um único genoma contém um enorme volume de o poder inebriante.
dados incomparáveis, suficientes para traçar os planos E podemos ir mais além. No passado, o estudo dos
para um ser humano. Mas a genómica é uma ciência humanos antigos limitava-se aos velhos dentes e ossos
comparativa. Dois conjuntos de ADN de indivíduos e aos espectrais vestígios das suas vidas deixados na terra,
diferentes contêm muito mais do que o dobro dessa mas agora estamos aptos a reunir a informação genética
informação. Todos os genomas humanos acolhem os de humanos deveras antigos, de homens de Neandertal e
mesmos genes, mas poderão todos apresentar ligeiras outros membros extintos da nossa família alargada,
diferenças, o que contribui para o facto de sermos todos e estas pessoas estão a revelar um novo trajeto até
extraordinariamente semelhantes, mas completamente ao ponto onde nos encontramos hoje. Podemos colher
únicos. Através da comparação dessas diferenças, o seu ADN, que nos revelará coisas que não poderiam
podemos fazer deduções sobre o grau de parentesco ser reveladas de qualquer outra maneira — por exemplo,
desses indivíduos e sobre quando essas diferenças se podemos saber como um homem de Neandertal
desenvolveram. Atualmente, podemos estender essas experienciava o olfato.
comparações a toda a humanidade, desde que consigamos Obtido ao fim de eras, o ADN corrigiu profundamente
extrair ADN das suas células. a nossa história evolutiva. O passado pode ser como um
Quando, em 2001, foi publicado o primeiro genoma país estrangeiro, mas os mapas estiveram sempre dentro
humano com grande pompa, na realidade não passou de de nós.
um esboço do material genético de poucos de nós. Para O volume de dados que esta nova ciência está a gerar
chegar a esse ponto, centenas de cientistas trabalharam é colossal, fenomenal, irresistível. Todas as semanas
durante quase uma década, com um investimento na casa são publicados estudos que contradizem as convicções
dos três mil milhões de dólares, cerca de um dólar por anteriores. Nas penúltimas fases da redação deste livro,
letra de ADN. Apenas quinze anos mais tarde, as coisas a data do grande êxodo de África poderá ter recuado
são vincadamente mais fáceis e o volume de dados de mais de 10.000 anos em relação ao que se pensava, após a
genomas individuais é atualmente incalculável. Conforme descoberta de quarenta e sete dentes modernos na China.
escrevo estas palavras, temos cerca de 150.000 genomas Depois, nas últimas fases, poderá ter recuado mais 20.000
humanos totalmente sequenciados, bem como úteis anos, com a identificação de ADN Homo sapiens numa
amostras de literalmente milhões de pessoas oriundas de rapariga Neandertal morta há milénios. Estes números
todo o mundo. Importantes projetos médicos com nomes não são muito em termos de evolução, não passam de
rigorosos como o «Projeto 1000 Genomas» evidenciam pequenas ondulações no tempo geológico. Mas isso
como agora é fácil extrair os dados que todos guardamos é muito mais do que a totalidade da história humana
nas nossas células vivas. Aqui no Reino Unido, estamos escrita, fazendo com que a Terra nos fuja constante e
a equacionar seriamente a possibilidade de sequenciar os drasticamente de debaixo dos pés.
genomas de toda a gente aquando do nascimento. …

36
A primeira metade deste livro versa sobre a reescrita do com a qual abordamos naturalmente estas características
passado com recurso à genética, com base numa era em perfeitamente humanas não tem comparação. É abismal
que existiam pelo menos quatro espécies humanas no a diferença entre o que a ciência revelou e o modo como
planeta, até aos reis da Europa no século XVIII. A segunda falamos sobre família e raça, porque, conforme veremos,
metade versa sobre quem somos na atualidade, e o que as coisas não são conforme pensávamos.
o estudo do ADN no século XXI nos revela sobre as Além disso, o ADN está envolto em muitas mentiras
famílias, saúde, psicologia, raça e o nosso destino. As duas e mitos. A genética pode dizer-nos com certeza quem
partes são criadas com base na utilização do ADN como são efetivamente os nossos familiares mais próximos e
um texto que acompanha as fontes históricas nas quais consegue lançar luz sobre imensos mistérios do nosso
nos baseamos durante séculos: arqueologia, pedras, ossos passado longínquo. Porém, tem muito menos em comum
antigos, lendas, crónicas e histórias de família. com os seus antepassados do que possa imaginar, e há
Apesar de o estudo dos antepassados e do legado ser pessoas da sua família de quem não herdou quaisquer
tão antigo como a humanidade, a genética é um campo genes e que, por conseguinte, não têm uma ligação
científico jovem, com uma breve e difícil história. genética significativa consigo, ainda que num sentido
A genética humana nasceu como um meio para analisar genealógico descenda decididamente delas. Demonstrarei
as pessoas, comparativamente, de maneira que as que, não obstante o que possa ter lido, a genética não
diferenças entre elas possa ser formalizada como ciência, pode revelar se os seus filhos serão muito inteligentes,
e utilizada para justificar a segregação e a subjugação. O nem que desportos devem praticar, nem quais serão
aparecimento da genética é sinónimo do aparecimento da as suas inclinações sexuais, nem como irão morrer, ou
eugenia, embora em finais do século XIX essa palavra não porque algumas pessoas cometem atos de violência atroz
tivesse o mesmo significado pejorativo de agora. Em toda e assassínio. Tão importante como o que a genética pode
a ciência, não existe tema mais controverso do que a raça revelar-nos, é aquilo que não pode.
— as pessoas são todas diferentes e a magnitude dessas O nosso ADN é precisamente aquilo que tornou
diferenças é algo que causou algumas das maiores divisões os nossos cérebros suficientemente sofisticados para
e dos atos mais cruéis e sangrentos da história. Conforme conseguirem fazer perguntas sobre as nossas próprias
veremos, a genética moderna revelou como continuamos origens e criar as ferramentas que permitem perceber
a perceber tão erradamente todo o conceito de raça. como a nossa evolução se processou. As modificações
Os humanos adoram contar histórias. Somos uma nesta estranha molécula acumularam-se e foram registadas
espécie que anseia por narrativa e, mais especificamente, com o passar do tempo, aguardando pacientemente
satisfação narrativa — explicação, uma maneira durante milénios para descobrirmos como as interpretar.
de perceber o sentido das coisas e das inefáveis E agora podemos. Cada capítulo deste livro dá conta de
complexidades do ser humano — o começo, o meio e um evento diferente sobre a história e sobre genética, de
o fim. Quando começámos a ler o genoma, aquilo que batalhas vencidas e perdidas, de invasores, saqueadores,
pretendíamos descobrir eram as narrativas que ordenavam assassínio, migração, agricultura, doença, reis e rainhas,
os mistérios da história, da cultura e da identidade peste e muito sexo aberrante.
individual; que nos explicavam exatamente quem éramos, Acima de tudo, tem nas mãos um livro de história.
e porquê. Algumas destas narrativas versam sobre a história da
Os nossos desejos não foram satisfeitos. O genoma genética — com todos os seus intrincados meandros
humano revelou-se muito mais interessante e complicado e passado sombrio — e foram incluídas para que
do que alguém poderia imaginar, incluindo todos os compreenda como sabemos aquilo que estamos agora
geneticistas que continuam a trabalhar muito mais a descobrir. Muitas das narrativas são histórias sobre
lucrativamente uma década após a conclusão do nações, populações, algumas conhecidas graças à sua
designado Projeto do Genoma Humano. A verdade desta notoriedade ou legado de poder, mas na sua maioria
complexidade e da nossa falta de compreensão debate-se referem-se às multidões anónimas. Podemos vasculhar
para filtrar aquilo de que falamos quando comentamos os ossos de homens, mulheres e crianças que, por um
sobre genética. Em tempos, falou-se de sangue e mero acaso, perderam a vida em circunstâncias invulgares
genealogia como um meio para estabelecer a ligação entre e acabaram por ser as pessoas cujas vidas analisaríamos
nós e os nossos antepassados e descrever o nosso passado forensicamente porque, na preservação da sua morte,
familiar. Já não se trata de sangue, mas antes de genes. O inadvertidamente nos legaram o seu ADN.
ADN tornou-se um aforismo de destino, ou uma sutura A biologia consiste no estudo daquilo que vive e que,
que nos percorre e sela a nossa sorte. Mas não é. Todos consequentemente, morre. É caótico — de um modo
os cientistas estão convictos de que o seu campo é aquele maravilhoso e frustrante — e impreciso, e desafia as
que é menos bem representado na comunicação social, definições. Se quiser começar pelo princípio, que pode
mas eu sou cientista e escritor, e acredito que a genética parecer o melhor sítio por onde começar, é aqui que
humana se destaca das demais como a que está fadada a começam os nossos problemas…
ser incompreendida, creio que por estarmos culturalmente
programados para a não compreender.
A ciência está apta a revelar que muito do mundo não
é conforme o percebíamos, quer seja ao nível cósmico,
molecular, atómico ou subatómico. Estes campos são
distantes ou abstratos em comparação com o modo
como falamos sobre famílias, legado, raça, inteligência
e história. A bagagem que carregamos, a subjetividade

37
O egocentrismo que a evolução e a experiência na Terra
inculcaram em nós conduziu-nos, naturalmente, a contar a
maioria das histórias acerca da origem, concentrando-nos
em episódios e fenómenos locais. Não obstante, cada
avanço no conhecimento do cosmos revelou que vivemos
numa partícula de poeira cósmica, que gira em torno de
uma estrela medíocre nos subúrbios distantes de um tipo
banal de galáxia, entre 100 milhões de galáxias que povoam

S urgiu e continua a florescer, uma nova síntese de


conhecimento científico. Ao longo dos últimos anos,
as respostas a perguntas acerca das nossas origens
cósmicas não chegaram apenas do domínio da astrofísica.
Trabalhando no âmbito de campos emergentes com nomes
o universo. O conhecimento da nossa irrelevância cósmica
desencadeia na mente humana mecanismos de defesa
impressionantes. Muitos de nós parecemo-nos, sem disso
termos consciência, com o homem do cartoon que contempla
o céu estrelado e diz ao seu companheiro: «Quando olho
como astroquímica, astrobiologia ou física das astropartículas, para todas estas estrelas, espanta-me o insignificantes que
os astrofísicos admitiram que podem retirar um grande são».
proveito dos avanços de outras ciências. Recorrer a múltiplos Ao longo da história, as diferentes culturas elaboraram
ramos da ciência para dar resposta à pergunta: «De onde mitos relativos à criação segundo os quais as nossas origens
viemos?» proporciona aos investigadores uma amplitude e são o resultado de forças cósmicas que moldam o nosso
uma profundidade de perceções até aqui nunca imaginadas destino. Estas histórias ajudaram-nos a manter à distância
acerca do funcionamento do universo. a sensação de insignificância. Embora, normalmente, os
Em Origens: Catorze Mil Milhões de Anos de Evolução Cósmica, relatos acerca das origens comecem com um quadro geral,
apresentamos ao leitor esta nova síntese de conhecimento, chegam à Terra a uma velocidade espantosa; passando como
que nos permite abordar não só a origem do universo, mas uma flecha pela criação do universo, de tudo o que este
também a origem das maiores estruturas a que a matéria contém e da vida no planeta Terra para chegar a explicações
deu forma, a origem das estrelas que iluminam o cosmos, longas acerca de inúmeros pormenores da história humana
a origem dos planetas que oferecem os lugares mais e dos seus conflitos sociais, como se fôssemos, de algum
adequados para a vida e a origem da vida, propriamente dita, modo, o centro da criação.
em um ou mais desses planetas. Quase todas as respostas díspares para a pergunta relativa
Os seres humanos continuam fascinados com a temática às origens, aceitam como premissa subjacente que o cosmos
das suas origens por muitas razões, tanto lógicas como se comporta em conformidade com normas gerais que se
emocionais. Dificilmente podemos compreender a essência revelam a si mesmas, pelo menos em princípio, para que
de algo se não soubermos de onde vem esse algo. E todas possamos analisar atentamente o mundo que nos rodeia. Os
as histórias que ouvimos acerca das origens geram no nosso filósofos da Grécia antiga levaram esta premissa até níveis
interior ressonâncias profundas. mais elevados ao insistir que os seres humanos são capazes

38
de compreender o funcionamento da natureza para além quando corroboram as suas tentativas esforçadas por
da realidade subjacente ao observado, ou seja, as verdades fomentar o conhecimento humano. Deste modo, a ciência
fundamentais que regem tudo o resto. Compreensivelmente, acaba por se transformar numa atividade coletiva; em todo
afirmam que descobrir essas verdades seria difícil. Há o caso, não é uma sociedade de admiração mútua, nem o
2300 anos, na sua reflexão mais famosa acerca da nossa pretende ser.
ignorância, o filósofo grego Platão comparou aqueles que Como acontece com todas as tentativas de progresso
se esforçam por alcançar o conhecimento a prisioneiros humano, a abordagem científica funciona melhor na teoria
encarcerados numa caverna, incapazes de ver os objetos do que na prática. Nem todos os cientistas duvidam uns dos
localizados nas suas costas e que, portanto, partindo das outros como realmente deveriam duvidar. A necessidade
sombras de tais objetos, devem tentar deduzir uma descrição de impressionar colegas que ocupam posições de poder e
precisa da realidade. o facto de, por vezes, serem influenciados por fatores que
Com esta analogia, Platão não só resumiu os esforços da escapam ao seu conhecimento consciente, pode prejudicar a
humanidade por entender o cosmos, como também realçou capacidade autocorretora da ciência. Não obstante, a longo
o facto de termos uma tendência natural para acreditar que prazo, os erros científicos não podem perdurar, pois outros
determinadas entidades misteriosas, vagamente sentidas, cientistas descobri-los-ão e promoverão as suas próprias
governam o universo e estão a par de conhecimentos que carreiras apregoando a novidade aos quatro ventos. Em
nós, na melhor das hipóteses, apenas podemos entrever. última análise, as conclusões que sobrevivam aos ataques de
De Platão a Buda, de Moisés a Maomé, de um hipotético outros investigadores, alcançarão o estatuto de «leis», aceites
criador cósmico aos filmes modernos acerca da «matriz», os como descrições válidas da realidade, embora os cientistas
seres humanos de todas as culturas chegaram à conclusão de saibam muito bem que, um dia, cada uma dessas leis se
que o cosmos é regido por poderes superiores dotados de poderá ver integrada numa verdade mais ampla e profunda.
conhecimento acerca do fosso existente entre a realidade e a Contudo, os cientistas dificilmente dedicam todo o
aparência superficial. seu tempo a tentar revelar os erros dos outros. Quase
Há meio milénio, foi-se consolidando, pouco a pouco, todos os seus esforços consistem em analisar hipóteses
uma nova abordagem à compreensão da natureza. Essa imperfeitamente estabelecidas face a resultados com base
atitude, a que chamamos atualmente «ciência», surgiu na observação ligeiramente melhorados. No entanto, de
da confluência das novas tecnologias e das descobertas vez em quando, surge uma abordagem significativamente
propiciadas por esta. A proliferação de livros impressos em nova acerca de uma teoria importante ou (mais
toda a Europa, juntamente com as melhorias nas viagens frequentemente numa época de avanços tecnológicos) um
por terra e mar, permitiram aos indivíduos comunicar leque de observações totalmente novo que abre a porta
entre si com maior rapidez e eficácia, de modo a poderem a um novo conjunto de hipóteses que expliquem esses
tomar conhecimento do que outros tinham a dizer e resultados. Os grandes momentos da história científica
poderem responder-lhes muito mais rapidamente do que ocorreram, e ocorrerão sempre, quando uma explicação
no passado. Ao longo dos séculos XVI e XVII, isto acelerou nova, talvez conjugada com resultados com base em
o debate contínuo e desembocou num novo modo de uma nova observação, produz uma mudança sísmica nas
adquirir conhecimento, cimentado no princípio geral de que nossas conclusões acerca do funcionamento da natureza.
o meio mais eficaz para entender o cosmos se baseia em O progresso científico depende de indivíduos em ambos
observações pormenorizadas do mesmo conjugadas com os lados: os que recolhem melhores dados e extrapolam
esforços para estabelecer princípios amplos e fundamentais cuidadosamente a partir desses mesmos dados; e os que
que expliquem essas observações. arriscam muito — e têm muito a ganhar se lhes correr bem
Um outro conceito esteve igualmente envolvido no — desafiando conclusões geralmente aceites.
nascimento da ciência. A ciência depende do ceticismo O núcleo cético da ciência constitui um fraco
organizado, ou seja, das dúvidas contínuas e metódicas. adversário à mente e ao coração humanos, que se afastam
Poucos de nós duvidamos das nossas conclusões pelo que a das controvérsias em curso e preferem a segurança de
ciência adota uma abordagem cética que recompensa quem verdades aparentemente eternas. Se a abordagem científica
duvidar das conclusões de outros. Poderíamos considerar fosse apenas mais uma interpretação do cosmos, nunca
acertadamente que esta abordagem é pouco natural; não teria acabado por significar tanto; o grande sucesso da
tanto por exigir a desconfiança dos pensamentos de alguém, ciência baseia-se no facto de que funciona. Se entrarmos
quanto por a ciência estimular e premiar todos os que a bordo de um avião construído conforme os princípios
conseguirem demonstrar que as conclusões de outro cientista da ciência — princípios que sobreviveram às diversas
estão erradas. Para os outros cientistas, o cientista que corrige tentativas de demonstrar a sua falsidade —, teremos maiores
o erro de um colega ou que contribui com boas razões para probabilidades de chegar ao nosso destino do que se
que duvidem seriamente das suas conclusões realiza uma embarcarmos num avião construído segundo a astrologia
ação nobre, como um mestre zen ao dar uma pancada a um védica.
aprendiz que se afasta do caminho da meditação, embora os Ao longo da história relativamente recente, as pessoas
cientistas que se corrigem uns aos outros sejam mais iguais confrontadas com o sucesso da ciência na hora de explicar
do que mestre e aluno. Ao recompensar um cientista que os fenómenos naturais reagiram de quatro modos diferentes.
descobre os erros de outro — tarefa que, para a natureza Primeiro, uma pequena minoria adota o método científico
humana, é muito mais fácil do que ver os próprios erros como esperança máxima para entender a natureza sem
—, os cientistas, enquanto grupo, criaram um sistema inato procurar outros meios de interpretação do universo.
de autocorreção. Os cientistas elaboraram, coletivamente, a Segundo, um número muito maior ignora a ciência, que
ferramenta mais eficaz e eficiente para analisar a natureza, considera pouco interessante, opaca ou contrária ao espírito
pois procuram refutar as teorias de outros cientistas, mesmo humano. (Os que veem televisão avidamente,

39
sem pararem para pensar de onde vêm as imagens e o som,
relembram-nos que as palavras magia e máquina partilham
raízes etimológicas profundas.) Terceiro, outra minoria,
consciente do aparente ataque da ciência sobre as suas
preciosas crenças, procura ativamente refutar resultados
H á uns 14 mil milhões de anos, na origem dos tempos,
todo o espaço e toda a matéria e toda a energia do
universo conhecido cabiam numa cabeça de alfinete.
O universo estava, então, tão quente que as forças básicas da
natureza, as quais, no seu conjunto, descrevem o universo, se
científicos que a irritam ou enfurecem. De qualquer modo, encontravam fundidas numa única força uniforme. Quando
fazem-no fora do enquadramento cético da ciência, como o universo era um inferno a 1030 graus e tinha apenas 10-43
podemos confirmar facilmente se lhes fizermos a seguinte segundos de vida — tempo antes do qual todas as teorias
pergunta: «Que prova vos convenceria de que estão da matéria e do espaço perdem sentido —, os buracos
enganados?». Estes anticientistas sentem ainda o choque negros formavam-se, desapareciam e voltavam a formar-se
descrito por John Donne no seu poema «The Anatomy of espontaneamente a partir da energia contida no campo de
the World: The First Anniversary», escrito em 1611, quando forças unificado. Sob estas condições extremas — no que se
surgiram os primeiros frutos da ciência moderna: tem de admitir ser física especulativa —, a estrutura do espaço
e do tempo tornou-se consideravelmente curva enquanto
E com a nova filosofia tudo é questionado, borbulhava, dando origem a uma estrutura esponjosa,
O elemento fogo é completamente apagado, semelhante a espuma. Durante essa era, os fenómenos
O Sol está perdido, e assim a Terra, e não há mente descritos pela teoria geral da relatividade de Einstein (a teoria
humana moderna da gravidade) e a mecânica quântica (a descrição da
Que bem o possa direcionar nesta sua demanda. matéria nas suas escalas mais pequenas) eram indistinguíveis.
E que este mundo se esgotou livremente os ho- À medida que o universo se expandia e arrefecia,
mens confessam, a gravidade separou-se das outras forças. Pouco depois,
Quando nos Planetas e no Firmamento professam a força nuclear forte e a força eletrofraca separaram-se,
Procurar a novidade, bem veem que se esboroou num episódio que foi acompanhado por uma enorme
Este [mundo] e aos átomos voltou libertação de energia acumulada, o que provocou o aumento
Está feito em pedaços, toda a coerência perdida… da dimensão do universo em 1050. A rápida expansão,
conhecida como a «era da inflação», estendeu e alisou a
Quarto, outro grande setor do público aceita a abordagem matéria e a energia de modo a que qualquer variação de
científica da natureza, ao mesmo tempo que continua a densidade de uma parte do universo para a seguinte chegou
acreditar que o cosmos é regido por entidades sobrenaturais a ser inferior a um centésimo de milésimo.
localizadas para além do nosso alcance intelectual. Baruch De acordo com o que é atualmente física confirmada
Espinoza, o filósofo que criou a ponte mais sólida entre o em laboratório, o universo estava suficientemente quente
natural e o sobrenatural, rejeitava qualquer distinção entre para que os fotões transformassem espontaneamente a sua
a natureza e Deus e insistia no facto de que o cosmos é, energia em pares de partículas de matéria-antimatéria, as
simultaneamente, Deus e natureza. Os seguidores das religiões quais se aniquilavam de imediato umas às outras, devolvendo
mais convencionais que, geralmente, se empenham em a sua energia aos fotões. Devido a causas desconhecidas,
salientar esta diferença, costumam reconciliar as duas óticas esta simetria entre matéria e antimatéria tinha-se «quebrado»
separando mentalmente as esferas em que agem o natural e na divisão de forças prévia, o que se traduziu num ligeiro
o sobrenatural. excesso da matéria relativamente à antimatéria. A assimetria
Independentemente do campo em que se encontre, era pequena, mas verificou-se essencial para a futura
não restam dúvidas de que vivemos tempos auspiciosos evolução do universo: por cada mil milhões de partículas de
para aprender o que há de novo no cosmos. Comecemos, antimatéria, nasceram mil milhões + 1 partículas de matéria.
portanto, a nossa aventura em busca das origens cósmicas; Enquanto o universo continuava a arrefecer, a força
nela, agiremos enquanto detetives que deduzem os factos eletrofraca dividiu-se em força eletromagnética e força
do crime, partindo das provas e indícios deixados para trás. nuclear fraca, completando as quatro forças conhecidas
Convidamos o leitor a juntar-se a nós nesta demanda pelas e distintas da natureza. Enquanto a energia do banho
pistas cósmicas — e pelos meios para as interpretar — para de fotões continuava a diminuir, os pares de partículas
que juntos possamos descobrir a história de como uma parte de matéria-antimatéria já não podiam ser criados
do universo se transformou em nós. espontaneamente a partir dos fotões disponíveis. Os
restantes pares de partículas de matéria-antimatéria foram
rapidamente aniquilados, deixando atrás de si um universo
com uma partícula de matéria comum por cada mil milhões
de fotões — e nada de antimatéria. Se não tivesse surgido
esta assimetria entre matéria e antimatéria, o universo em
expansão teria sido eternamente composto por luz e nada
mais, nem mesmo astrofísicos. Durante um período de
aproximadamente três minutos, a matéria transformou-se
em protões e neutrões, muitos dos quais se combinaram
Este mundo persistiu durante muitos anos depois de ter para construir os núcleos atómicos mais simples. Entretanto,
sido posto em marcha com os movimentos adequados. eletrões errantes disseminaram fotões por todo o lado,
A partir deles, seguiu-se tudo o resto. criando uma sopa opaca de matéria e energia.
— LUCRÉCIO Quando o universo arrefeceu uns quantos milhares de
graus Kelvin — um pouco mais quente do que um forno
de altas temperaturas —, os eletrões libertos deslocavam-se

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suficientemente devagar para serem arrancados da sopa variedades de moléculas à base de carbono do que todas as
pelos núcleos errantes e constituírem átomos completos restantes moléculas juntas. Mas a vida é frágil. Os encontros
de hidrogénio, hélio e lítio, os três elementos mais leves. O da Terra com objetos de grandes dimensões, resquícios da
universo tinha-se tornado (pela primeira vez) transparente formação do sistema solar, que noutra era foram episódios
à luz visível; e estes fotões de movimento livre são, hoje, habituais, provocam ainda assim estragos intermitentes no
observáveis enquanto radiação cósmica de micro-ondas. ecossistema. Há apenas 65 milhões de anos (menos de dois
Durante os seus primeiros mil milhões de anos, o universo por cento do passado da Terra), um asteroide de 10 mil
continuou a expandir-se e a arrefecer enquanto a matéria milhões de toneladas caiu sobre o que é agora a península do
gravitava em direção às concentrações gigantescas a que Iucatão e destruiu mais de 70 por cento da flora e da fauna
chamamos de «galáxias». Só no volume do cosmos que do planeta — incluindo todos os dinossauros, os animais
podemos ver, formaram-se cem mil milhões destas galáxias, terrestres então dominantes. Esta tragédia ecológica ofereceu
cada uma delas com centenas de milhares de milhões de aos pequenos mamíferos sobreviventes a oportunidade de
estrelas que sofrem fusões termonucleares no seu núcleo. ocupar nichos recém-criados. Um ramo de grandes cérebros
Estas estrelas, com uma massa mais de 10 vezes superior destes mamíferos, o dos chamados «primatas», fez evoluir
à do Sol, atingiram no seu núcleo uma pressão e uma um género e uma espécie — o Homo sapiens — para um
temperatura suficientes para produzirem uma enorme nível de inteligência que permitiu aos seus membros criarem
quantidade de elementos mais pesados do que o hidrogénio, ferramentas e métodos científicos; inventar a astrofísica; e
entre eles os que compõem os planetas e a vida nesses deduzir a origem e a evolução do universo.
mesmos planetas. Tais elementos seriam lamentavelmente Sim, o universo teve um início. Sim, o universo continua
inúteis se tivessem permanecido fechados no interior da a evoluir. E sim, poderia seguir-se o rasto de cada um dos
estrela. No entanto, diversas estrelas de massa elevada átomos do nosso corpo até ao Big Bang e às fornalhas
estalaram e disseminaram por toda a galáxia a riqueza termonucleares no interior das estrelas de massa elevada.
química das suas entranhas. Não estamos tão-só no universo, pertencemos ao universo.
Ao fim de sete ou oito mil milhões de anos de Nascemos do universo. Poderia, inclusivamente, dizer-se
enriquecimento químico, nasceu uma estrela normal e que o universo nos deu o poder, aqui no nosso recanto do
comum (o Sol) numa região normal e comum (braço de cosmos, para o chegarmos a compreender. E isto ainda
Orion) de uma galáxia normal e comum (a Via Láctea) agora começou.
localizada numa parte normal e comum do universo (nos
arredores do supergrupo de Virgem). A nuvem de gás a
partir da qual se formou o Sol continha um fornecimento
suficiente de elementos pesados para gerar uns quantos
planetas, milhares de asteroides e milhares de milhões de
cometas. Durante a formação deste sistema estelar,
a matéria condensou-se e foi-se acumulando a partir
da nuvem progenitora de gás enquanto dava voltas em
torno do Sol. Ao longo de várias centenas de milhões
de anos, os impactos persistentes de cometas e outros
escombros a grande velocidade fundiram a superfície dos
planetas rochosos, o que impediu a formação de moléculas
complexas. À medida que, no sistema solar, restava cada vez
menos matéria acumulada, a superfície dos planetas começou
a arrefecer. O planeta a que chamamos Terra formou-se
numa órbita tal que a sua atmosfera permite a existência de
oceanos, sobretudo, na forma líquida. Se a Terra se tivesse
formado muito mais perto do Sol, os oceanos ter-se-iam
evaporado. Se se tivesse formado muito mais longe, os
oceanos teriam gelado. Em qualquer dos casos, a vida não
teria evoluído tal como a conhecemos.
Através de um mecanismo desconhecido, nos mares
líquidos quimicamente férteis, surgiram bactérias anaeróbias
que, inadvertidamente, transformaram a atmosfera do
planeta rica em dióxido de carbono, concedendo-lhe
oxigénio suficiente para permitir que os organismos
aeróbicos se formassem, evoluíssem e dominassem os
oceanos e a terra. Estes mesmos átomos de oxigénio,
normalmente presentes por pares (O2), também se
combinaram em trios para formarem ozono (O3) na
atmosfera superior, protegendo a superfície da Terra da
maioria dos fotões ultravioleta do Sol, hostis às moléculas.
A diversidade extraordinária da vida na Terra e (pode
presumir-se) noutras partes do universo, surge da abundância
cósmica de carbono e do número infinito de moléculas
(simples e complexas) formadas a partir dele; existem mais

41
Toy Story é um autêntico manual de -os mal como um autêntico serial dos impossíveis de reaproveitar por
gestão de recursos humanos para killer que habita num matadouro de pessoas engenhosas como o Sid. O
crianças. Não é por acaso que o brinquedos. Se fosse um filme de pior que podiam fazer ao Dr. Steve
Dr. Steve Jobs esteve envolvido directa- esquerda, o Sid seria o herói. Era Jobs era abrir um iPhone para tirar
mente no desenvolvimento deste filme. uma criança pobre, a quem não peças.
Não é fácil ser brinquedo e deve ser ofereciam brinquedos novos como No primeiro Toy Story é retrata-
extremamente cansativo. No entanto, os ao Dr. Andy e, por isso, usava a do um conflito clássico em qualquer
brinquedos adoram o que fazem e não sua criatividade para aproveitar ambiente de trabalho. Aparece
há um único a sugerir que se faça uma peças diferentes de vários brinque- um colaborador novo, o Dr. Buzz
greve ou a dizer que se sente explorado. dos para ter sempre coisas novas Lightyear, com um doutoramen-
Ou se calhar há, mas está guardado com que brincar. Afinal, desconhe- to em engenharia aeroespacial
numa caixa no sótão, que é o lugar ce que os brinquedos estão vivos e e cheio de competências que os
dos brinquedos incompetentes. «mutilar brinquedos» não é crime. outros brinquedos não conseguem
O Dr. Andy dorme rodeado de brin- No entanto, o Sid é retratado acompanhar. Quem já passou por
quedos, sem saber que eles têm vida. Se como se fosse um psicopata, que uma empresa sabe que a resistência
esses brinquedos fossem comunistas, viola a integridade dos brinque- à mudança revelada pelo Dr. Woody
não seria difícil para eles organizar uma dos e cria autênticas aberrações é perfeitamente normal. Viu o seu
revolução, expulsar os humanos de casa genéticas no seu matadouro de posto de trabalho de brinquedo
e montar a sua utopia socialista. Aliás, brinquedos. Por isso é castigado preferido do CEO ameaçado por
estão a um Chucky, o boneco diabólico, e atacado pelos brinquedos puros alguém melhor do que ele. Foi por
de distância de o fazerem. e intactos do Dr. Andy. Nota-se isso que tentou assassinar o Dr.
Não o fazem porque são colabo- que há um dedo do Dr. Steve Jobs Buzz Lightyear. Tem medo de ser
radores exemplares e o Dr. Andy é na criação desta personagem. Ele substituído, ir parar a um caixote no
um excelente CEO que os trata bem. também não gostava que se fizesse sótão ou vendido no OLX. Afinal,
Eles sabem disso porque vêem o que esse tipo de experiências com os é mais fácil eliminar a concorrência
o vizinho do lado, o Sid, faz aos seus equipamentos da Apple e esfor- do que superá-la. O Dr. Woody
amigos brinquedos. Mutila-os e trata- çou-se sempre por criar brinque- percebe isso e arrepende-se do seu

42
comportamento. Acaba por salvar o para procurarem um novo emprego. No fundo, o desejo do Dr. Steve
Dr. Buzz e ficam amigos, para seu Depois de algumas peripécias, acabam Jobs seria ter brinquedos como o Dr.
próprio bem e da empresa. Este filme por conseguir. Como qualquer pessoa Woody e uma companhia a produzir
revela uma preciosa lição de gestão: há competente, vêem o seu esforço re- os seus telemóveis. Colaboradores
lugar para todos numa empresa, desde compensado. Ganham mais uns anos profissionais, dedicados, empenhados
que sejam competentes e o CEO assim de vida, pelo menos até à sua actual e silenciosos. Por isso, decidiu fazer
o entenda. Não devemos assassinar CEO crescer e os deitar fora. este filme, para ensinar às crianças
os nossos rivais, mas sim aproveitar No Toy Story 4, o principal prota- uma mensagem muito importante: o
a presença deles para nos tornarmos gonista é o Dr. Forky. Um garfo de propósito delas é serem úteis, se o fo-
melhores. Se não o conseguirmos, de- plástico no qual a criança colocou uns rem, serão amadas por quem interessa.
vemos encarar o nosso despedimento olhos e ele ganhou vida. Esse garfo
como natural. não estava preparado para o desa-
Os brinquedos têm consciência fio profissional colocado pela CEO,
de que eventualmente vão tornar-se porque sentia que era lixo. É o que se
obsoletos, o Dr. Andy vai crescer e chama de burnout. Nem toda a gente
deixar de brincar com eles. Tal como está preparada para o competitivo
acontece numa economia normal, a mundo empresarial. O Dr. Woody,
evolução vai deixando para trás quem como colaborador experiente, decide
não se actualiza. É precisamente essa ministrar-lhe um MBA sobre como ser
a premissa do Toy Story 3. Só que em brinquedo para ele poder estar à altura
vez de fazerem como os taxistas que das responsabilidades que a CEO
ignoram o progresso e combatem a depositou sobre ele. Será que conse-
UBER, os brinquedos percebem que gue? Não vou fazer spoilers, até porque
o que têm de fazer é procurar alterna- não vi o filme. Mas o próprio Dr.
tivas. Não fazem manifestações a exi- Steve Jobs passou por uma fase da sua
gir ao Dr. Andy que brinque com eles vida em que era literalmente lixo: era
a vida inteira, nem ficam à espera de um hippie vegetariano que não tomava
um subsídio do Estado que compense banho. E, mesmo assim, conseguiu
a extinção do seu posto de trabalho. tornar-se CEO de uma das maiores
Sabem que o CEO já não precisa deles empresas de todos os tempos. O Dr.
e tomam a iniciativa de sair de casa Steve Jobs é o Dr. Forky.

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seleccionados, entre mais de 200 candidaturas, para
ir então à Dinamarca «prestar provas». Durante dois
dias, num ambiente relativamente descontraído,
com muitas peças LEGO à mistura, dei então a
Tinha 18 anos, estava prestes a iniciar a minha jorna- conhecer a um grupo de designers mais experientes
da académica mais exigente – a entrada na faculdade da empresa as minhas competências enquanto de-
– quando redescobri a paixão pela construção com senhador, conceptualizador, construtor e comuni-
peças LEGO. Já não pegava nas minhas peças há cador, através de exercícios bastante ligados àquilo
anos, convencido pelo «mundo» à minha volta que que é hoje o meu trabalho e numa entrevista indivi-
brincar com LEGO já não era para a minha idade. dual de 15 minutos. Vim-me embora feliz, na altura,
Mas um dia deparei-me com um catálogo da marca com imensas peças LEGO como recompensa, uma
e a inspiração ganhou nova vida. Comecei por me experiência fenomenal e a esperança de que pudes-
envolver com a Comunidade 0937, uma das comuni- se ser um dos escolhidos. De entre os 40 vindos
dades de fãs de LEGO oficiais em Portugal. Participei um pouco de todo o mundo - mais de metade com
em vários dos seus eventos, fiz novos amigos com anos de experiência na área do design, uma série de
uma paixão em comum, evoluí enquanto construtor estudantes de design acabados de formar e um gru-
e depois quando surgiu uma oportunidade para me pinho de oito ou nove aficionados como eu - acabei
candidatar a um cargo na LEGO: não hesitei! Correu então por ser um dos 11 contratados para vir então
tão bem que com 21 anos fui convidado a mudar-me trabalhar na LEGO e realizar assim o meu sonho
para a Dinamarca para começar a trabalhar como de miúdo.
junior designer.

Uma vez que era já um membro activo da comu- Na altura – a 3 de Outubro de 2010 - o êxtase e
nidade mundial de fãs havia uns anos, interagindo quase euforia que sentia por estar a realizar um
com muitos outros aficionados como eu através de sonho do tamanho de uma vida não me permitiram
fóruns online, fui conhecendo alguns casos em que sentir muito mais do que isso mesmo. Obviamente
«AFOL» (Adult Fan Of LEGO) foram contratados que vim com uma certa tristeza e saudade – que ra-
como designers pela empresa. Por volta de Maio pidamente foram crescendo desmedidas, embaladas
ou Junho de 2010, fiquei a saber que estavam a re- nas malas onde carregava roupas, livros, memórias
crutar novamente, através de um anúncio que vi na e uma espécie de enxoval que a minha mãe prepara-
internet. Como estava em fase de preparação para ra – mas não me apercebi desde logo do preço que
os exames finais da minha licenciatura, inicialmente estava a pagar.
pensei deixar passar a oportunidade naquele mo- Em termos de sociedade, clima e forma geral de
mento, simplesmente porque não tinha a certeza se ser dos dinamarqueses, enquadrei-me relativamente
teria tempo suficiente para preparar o meu porte- bem. Temos um sentido de humor semelhante,
fólio. Mas à bom português, lá acabei por enviá-lo valorizamos os pequenos prazeres da vida que a
nos últimos dias, tendo a LEGO acusado a recepção longo prazo são o que nos faz realmente felizes,
do mesmo no último dia possível. Fui um dos 40 damos prioridade ao conforto de um lar e ao tempo

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em família e sabemos viver com pouco sol. Mas tenho
saudades de viver na minha pequena vila, onde via os meus
primos, tios e avós diariamente. Sinto falta de ser pequeno
e de ter a minha mãe a chamar-me para jantar ou de ver
o meu pai a chegar a casa com um desenho novo de um
móvel que estava a criar. Mas tenho consciência que estas
saudades são de algo que não teria mais, ainda que tivesse
ficado em Portugal. Os anos passam, os primos crescem
e formam novas famílias, os tios ganham netos que lhes tante específicas e independentes – as design briefs, como
roubam toda a atenção e os avós tornam-se anjos da lhes chamamos – do líder criativo da equipa. Por exemplo,
guarda. E por isso é uma saudade com a qual se aprende um dos primeiros conjuntos que desenhei aqui foi o 6863
a viver, usando as redes sociais, mensagens, telefonemas e Batwing Battle Over Gotham City, onde a tarefa consistia em
até cartas tradicionais de papel, escritas à mão, para manter criar um conjunto direccionado para os miúdos interessa-
contacto e apaziguar o coração. dos em role-play e «brinquedos de acção», com pelo menos
Hoje, quase uma década depois – e um terço da minha sete anos de idade (o que influencia directamente o nível
vida! – vejo a Dinamarca como a minha casa: o país onde de dificuldade da construção!), com foco no Batman e o
me tornei adulto de verdade, onde me encontrei enquan- seu rival principal – o Joker; este brinquedo devia incluir
to cidadão do mundo em busca de um lugar para criar as a minha interpretação clássica da Batwing e um outro
minhas próprias raízes e onde «brincar» se transformou na veículo voador nas cores do vilão – que acabou por ser
minha profissão. um helicóptero. Depois de uns dois meses a trabalhar no
modelo, até chegar à construção final, o meu trabalho
principal ficou terminado e o «testemunho» foi passado às
equipas seguintes que tratam do design da embalagem, da
produção das peças, da criação das instruções e do embala-
mento de tudo na produção. Todo este processo leva quase
Como eu não tinha qualquer experiência de trabalho, fui um ano desde que eu termino a minha criação e o produto
contratado como junior designer, uma espécie de aprendiz. E final chega às prateleiras de brinquedos em todo o mundo.
embora o percurso seja diferente para cada designer, de- Os meus primeiros conjuntos, incluindo o 6863, foram
pendendo da sua formação e experiência, todos passamos lançados a 1 de Janeiro de 2012. Por essa altura também,
mais ou menos pelo mesmo. Nos primeiros meses tive uma fui promovido a designer, ou seja, deixei de ser «aprendiz»
série de formações em grupo com outros funcionários e as tarefas que fui recebendo foram-se tornando mais exi-
novos, de diferentes áreas, para ficar a conhecer a empre- gentes e de maior responsabilidade. Hoje, sou líder criativo
sa, os seus processos e métodos de trabalho e inteirar-me de diferentes projectos, como o LEGO BrickHeadz, LEGO
das ferramentas que viria a usar no meu dia-a-dia. Integrei Harry Potter e LEGO Jurassic World.
desde o primeiro dia uma equipa de sete ou oito designers,
cada um de uma nacionalidade diferente, e a um dos mais
experientes foi-lhe incumbida a tarefa de ser meu mentor.
Basicamente ele foi acompanhando o meu trabalho mais
de perto, aconselhando, clarificando qualquer dúvida que Ao longo dos anos, muitos projectos foram particular-
eu tivesse, mas comecei desde logo a receber tarefas bas- mente aliciantes – por diferentes razões. Lembro-me de

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sentir um «formigueirozinho» bom na barriga quando tive se destacam e aos quais vou voltando esporadicamente. A
a oportunidade de criar o 10937 Arkham Asylum, por ser o música é talvez a paixão à qual tenho dedicado mais tem-
primeiro conjunto em que trabalhei cujo público-alvo era po nos últimos anos e considero esse tempo uma espécie
mais crescido: estava a criar para aqueles construtores que de terapia que faço para me ajudar a processar emoções e
como eu, já adultos, encontravam nas peças LEGO uma sentimentos. Escrevo, componho e canto e tenho vários
forma única de expressar a sua criatividade. Mais tarde, trabalhos publicados de forma independente nas plata-
outras oportunidades como essa foram surgindo: com o formas digitais. Além da música, sonho um dia tornar-me
71006 The Simpsons House, em que dei comigo a revisitar num verdadeiro contador de histórias e continuar o per-
inúmeros episódios de uma das séries de desenhos ani- curso que iniciei quando aos 16 publiquei um romance em
mados com que cresci; o 10236 Ewok Village, que me fez Portugal, intitulado O Outro Lado da Verdade. Tenho outros
ver um filme do Star Wars pela primeira vez; ou mesmo o livros começados – um outro acabado até! – e anseio pelo
75827 Ghostbusters Firehouse HQ, que acordou em mim um dia em que terei a oportunidade de retornar à escrita mais
novo amor pelos dois clássicos de Ivan Reitman. Mas até a sério. Agora acho que estou a passar por uma fase im-
hoje, um dos meus favoritos é mesmo o 71040 Disney portante na minha vida de amadurecimento a vários níveis,
Castle, não só pela responsabilidade de ter nas minhas que acredito que virá a ser bastante benéfica quando voltar
mãos a tarefa de recriar em peças LEGO um dos maiores então a escrever.
ícones do cinema de animação, mas também pelo facto de
ter sido um projecto que me deu imenso prazer pelos de-
talhes que tive oportunidade de incluir e todas as pequenas
referências aos diferentes clássicos da Disney.
Se tens vontade de um dia vir a trabalhar como designer na
LEGO, o melhor conselho que te posso dar é que nunca
deixes de exercitar o músculo da criatividade e não pares
Hoje tenho o título de design manager e desempenho a de construir com peças LEGO. Em termos de formação
função de líder criativo numa equipa, sendo responsá- académica, aconselho uma educação na área do design
vel pelo design de diferentes linhas de produtos, como (industrial, gráfico ou de produto), embora este não seja
LEGO Harry Potter, LEGO Jurassic World e LEGO Bri- o critério mais importante. Afinal de contas, eu estudei
ckHeadz. Enquanto líder criativo – ou creative lead – guio Engenharia Informática e já cá estou há nove anos! Investe
e supervisiono todo o trabalho dos diferentes designers tempo em adquirir um bom nível de inglês, já que é essa a
que integram a equipa – desde designers de produto, que língua oficial da empresa e com a qual trabalhamos diaria-
constroem os modelos, designers de elementos, que escul- mente.
pem e desenham novas peças quando necessário, e desig-
ners gráficos, que criam todas as ilustrações que decoram
minifiguras e adicionam detalhe às construções. Além
disso, juntamente com o/a líder de marketing e o/a líder
de projecto, formamos a core team (equipa núcleo), que em
conjunto definem o que a linha de produtos pela qual são
responsáveis vai ser antes de esta ser concretizada (ideias,
gamas de preços, tamanho dos conjuntos, público-alvo,
etc.). Este cargo veio no correr de uma evolução orgânica
e natural na empresa. À medida que fui adquirindo expe-
riência e conhecimento de como as diferentes partes da
organização funcionam, fui desenvolvendo um interesse
e curiosidade por me envolver mais nas decisões e tentar
assim influenciar mais directamente o futuro dos produtos
LEGO. Em paralelo, vou fazendo por encontrar tempo
para continuar também a desenhar conjuntos, mantendo
as mãos bem próximas das peças de LEGO o mais que
posso. E imagino-me a fazer isto por muitos e muitos
anos. Dificilmente encontraria noutra profissão algo que
me satisfizesse a tantos níveis, ao mesmo tempo que me
permite «brincar» todos os dias.

Certamente. Desde miúdo que tenho a necessidade de me


envolver ou começar diferentes projectos a toda a hora. Há
uma quase que insaciável vontade de criar que me leva a ter
uma lista infindável de coisas que ainda quero fazer um dia.
Depois, dentro dos meus vários interesses, há alguns que

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heróis da Marvel, como Nick Fury e
Dr. Strange.
No entanto, o factor decisivo deste
período foi a falta de recursos
financeiros para suportar um de-
omo sempre, o padrão e a partamento artístico profissional. A
medida de comparação para a maioria das ilustrações assentava num
análise da maioria dos aspec- amadorismo que oscilava entre os
tos de jogos de personagem começa, registos naïf, autodidacta e infantil,
forçosamente, em Dungeons & Dragons apesar do público-alvo predominante-
(D&D). Nesse sentido, também do mente adulto – veja-se, por exemplo,
ponto de vista artístico vale a pena o trabalho de Greg Bell ou Dave
acompanhar o percurso do decano Sutherland. O estado da arte, assim
antes de considerar outros temas e por dizer, acompanhava a realidade
títulos. (e maturidade) da nascente indústria
Muito à semelhança das inspirações de jogos. De facto, até as vendas per-
literárias dos primeiros RPG, a prin- mitirem um salto de escala, o inves-
cipal fonte das ilustrações iniciais foi timento na componente artística foi
o imaginário da espada & feitiçaria residual, apesar de ser evidente a sua
(sword & sorcery) e da ficção científica importância relativa, aliás na conquis-
(ver «Espada & Feitiçaria & Dados», ta de públicos mais alargados.
Bang! n.º 18), nomeadamente as capas Até ao início dos anos oitenta, para
das revistas e romances daqueles além de Sutherland, que ilustrou várias
géneros, publicados ao longo das dé- capas, destacam-se ainda Dave
cadas anteriores. Em 1974, quando se Trampier e Erol Otus, cujo melhor tra-
publicou a primeira edição de D&D, balho remete para o mundo dos comics
havia relativamente pouco mais que independentes, em profundo contraste
pudesse servir de referência – um es- com a direcção à vez hiper-realista e
tado de escassez difícil de imaginar no (super) heróica que se seguiu e que
mundo de hoje, saturado de alusões perdura. Otus, em especial, apresenta
ao fantástico. por vezes um cunho quase surrealista
Nesse sentido, talvez o artista mais de- que marcou, apesar de não ter feito
terminante na formação da vaga inicial escola. A este trio acrescenta-se ainda
de artistas de RPG tenha sido Frank o registo intencionalmente cómico
Frazetta, cuja obra pioneira continua, e ligeiro de Tom Wham, repleto de
aliás, a ecoar nas ilustrações actuais. piadas para conhecedores, em estilo
O seu alcance ultrapassa largamente, cartoon de jornal de domingo.
como se sabe, o universo dos jogos, Em 1982, depois de uma reformulação
mas também aí deixou a sua marca. organizacional profunda, a passagem
Outro meio que contribuiu para o do jogo para o mainstream comercial
visual dos jogos inaugurais foi o da arrastou consigo o departamento artís-
banda desenhada, que, apesar da relati- tico, que passou definitivamente a ser
va distância temática, já então repre- composto por desenhadores profis-
sentava referência cultural obrigatória sionais, com educação formal na área,
tanto para criadores como para joga- sob a orientação de um dos poucos
dores. Aliás, a edição original de D&D veteranos sobreviventes, Jim Roslof.
chegou mesmo a flirtar com o plágio, A este processo não foi alheia a aposta
ao incluir algumas ilustrações – entre cada vez maior da editora TSR em
as quais a da própria caixa – imedia- tipos diferentes de produtos. A quanti-
tamente reconhecíveis de histórias de dade e variedade de novos

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suplementos – sobretudo a profusão é utilizado como a representação mundos e linhas de suplementos, foi
de módulos – alargaram consideravel- pictórica definitiva do jogo. tomada a decisão editorial de di-
mente a procura por ilustradores com- Ainda assim, e apesar da inegável vidir em parcelas a direcção artística,
petentes que fossem capazes de comu- mestria destas ilustrações, o preço distribuindo responsabilidades por ar-
nicar de modo uniforme e consistente a pagar pelo profissionalismo foi tistas diversos. Ao passo que algumas
com uma comunidade crescente, mas um certo empobrecimento geral do destas iniciativas foram menos bem
dispersa, de jogadores. vocabulário visual e o consequente conseguidas (Birthright, por exemplo),
A estética do universo D&D entrou, afunilamento de estilos – todos estes outras fundiram-se inteiramente com
assim, na era ascendente do traço artistas trabalham em registos relativa- os universos de jogo, ao ponto de se
realista de Keith Parkinson (Forgotten mente próximos. Ainda que reduzido, tornarem indissociáveis. Os ambientes
Realms Campaign Set), das heroínas cur- o espaço para alguma experimentação de Planescape e de Dark Sun foram, em
vilíneas e seminuas de Clyde Caldwell manteve-se apenas nas ilustrações inte- grande medida, criados pela mão de
(Ravenloft), da alta fantasia dinâmica riores e em periódicos, como a revista Tony DiTerlizzi e Brom, respectiva-
de Jeff Easley (praticamente todos os Dragon. mente, que com eles cimentaram o
muitos livros de capa dura da década É portanto algo surpreendente que seu lugar de luminárias da ilustração,
de oitenta, incluindo o Player’s Hand- a fase final da TSR, o período turbu- apesar – ou talvez em função – dos
book e o Dungeon Master’s Guide) e Larry lento da década de noventa, em que a estilos idiossincráticos.
Elmore («Set 1: Basic Rules», a famosa indústria de RPG se viu a braços com O início do século XXI relevou,
caixa vermelha). Não será exagero a crise provocada pelo aparecimento sobretudo, uma ilustração funcional,
dizer que, em conjunto, estes dois últi- dos jogos de cartas coleccionáveis, muito influenciada pelos jogos de vídeo
mos artistas foram os que largamente tenha sido terreno fértil para um e de cartas (ou não tivesse a TSR sido
mais contribuíram para o portefólio último e memorável surto de inovação. comprada pela Wizards of the Coast).
de imagens icónicas de D&D, desde Com a proliferação desordenada de Esta tendência, da arte dinâmica,
logo com o dragão vermelho exagerada e formular de, por exemplo,
de Elmore, que ainda hoje Todd
Lockwood e

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sempre a falta de orçamento para a
produção artística, pelo que, como
seria de esperar, as excepções mais
notáveis ocorreram nos casos em
que se apostou intencionalmente na
qualidade – creio aliás que é aí, num
espaço algo improvável de risco e
vontade criativa, que se inscrevem
algumas das melhores obras de ilus-
tração de RPG. Refiro apenas títulos
anglófonos já que, pese embora o no-
tável trabalho
de artistas de
outras esferas

Wayne Reynolds
mantém-se
até hoje, e não
produziu, ainda,
referências do
calibre das que
lhe antecederam.
É interessante
constatar que,
à semelhança
do que sucedeu
no passado, a
representação
épica do universo
de jogo é um reflexo do próprio linguísticas
sistema. Hoje, com a quinta edição, as (veja-se, por ex-
personagens dispõem de poderes quase emplo, a revista
divinos; as ilustrações limitam-se a Casus Belli), o
acompanhar esta opção de design. seu alcance internacional foi limitado.
Ainda na década de oitenta, com an-
tecedentes na equipa que produziu as
Aventuras Fantásticas (Fighting Fantasy) e
os primeiros números da revista White
Dwarf, a maior pedrada no charco,
pesar da projecção de in- cujas ondas de expansão perduraram
fluência bruta de D&D, durante muito tempo, teve origem na
decorrente da dimensão e visão artística de John Blanche, direc-
popularidade históricas, o elenco de tor de arte da editora inglesa Games
ilustradores marcantes estende-se Workshop. Orientada sobretudo para
muito além do seu catálogo. A prin- os wargames de miniaturas, que reque-
cipal limitação dos concorrentes foi rem, por força dos materiais de jogo,

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uma elevada atenção aos aspectos visu- definir. A diluição da fronteira entre géneros ao longo da carreira longeva,
ais, as suas incursões no mundo dos herói e monstro, central ao próprio com destaque para Paranoia.
RPG, em particular Warhammer Fantasy jogo, transpôs-se para o traço intimista Mesmo num meio relativamente
Roleplay, beneficiaram das talentosas e torturado da ilustração. pequeno como o dos jogos de per-
colaborações de artistas excepcionais Do mesmo período e vaga de design sonagem, a diversidade de artistas e
como Russ Nicholson, Jes Goodwin – muitos dos artistas foram, aliás, os estilos, sobretudo até à viragem do
(também responsável pelo desenho da mesmos que ilustraram a série World século, é considerável, ainda que a
linha de miniaturas) e Ian Miller (Death of Darkness – o outro título a ter em qualidade geral deixasse com frequên-
on the Reik). A orientação de Blanche conta é Shadowrun, cuja abordagem cia algo a desejar. Daí em diante,
materializou um imaginário sombrio, visual inovadora ao ambiente cyberpunk o estreitamento artístico a que já
demoníaco, apocalíptico, por vezes representa um marco editorial. Com a aludi fez com que passasse a ser mais
quase onírico, muito distante dos gos- indicação de rumo do director artístico difícil encontrar trabalhos igualmente
tos assépticos do público americano, Jeff Laubenstein, dezenas de artistas memoráveis ou influentes – mas há
cuja preferência geralmente recaía habilidosos, de entre os quais sobres- excepções.
sobre o conforto da alta fantasia mais saem Janet Aulisio e John Zeleznik,
ou menos anódina. Apesar de não se além do próprio Laubenstein,
tratar de um feito puramente rolístico, fundiram com mestria imaginários
a craveira é elevada e o reconhecimento aparentemente difíceis de conciliar,
devido. como a fantasia, a ficção científica e unca como nos últimos anos
Quanto a jogos que não só impres- o noir (na mesma linha ecléctica, e da se produziram tão consistente-
sionaram quando chegaram às bancas mesma editora, Earthdawn também mente e em tanta quantidade
mas mantiveram, pelo menos durante merece consideração). jogos de personagem com investi-
algum tempo, a originalidade e quali- De forma mais dispersa, encontramos mento material e gráfico avultado.
dade gráficas, podemos destacar, em também artistas com estilos particu- Enfrentando a necessidade de com-
primeiro lugar, Vampire: The Masque- lares que, por um ou outro motivo, se petir com um quotidiano «gameificado»
rade. Publicado em 1991, contou com notabilizaram. É o caso, por exemplo, – um monstro de Frankenstein para o
a colaboração de vários desenhadores de Angus McBride, ilustrador de Mid- qual o próprio D&D muito con-
experientes, mas foi o conhecido dle-Earth Role Playing, cuja formação tribuiu – e outras formas de entreten-
ilustrador norte-americano Tim Brad- como ilustrador de história militar imento passivo mas cada vez mais
street que mais contribui para o tom e preferência por guache deram espectaculares, os líderes da indústria
de horror gótico urbano que o veio a vida a uma Terra Média detalhada e de RPG passaram a tomar como
profunda, com singela atenção dado adquirido a obrigatoriedade de
ao pormenor arquitectónico, colocar nas mãos dos jogadores livros
técnico e histórico-mítico. As visualmente apelativos e impressio-
composições e o tratamento nantes – capa dura, papel couché,
técnico de Miles Teves em interiores a cores, etc. – um processo
Skyrealms of Jorune, por sua vez, ao qual não é alheio o crescimento de
fazem lembrar gravuras renas- um público-alvo coleccionista e com
centistas em versão science-fantasy, poder de compra.
para as quais, pelo carácter origi- No que diz respeito à ilustração, os
nal e insólito, é difícil encontrar departamentos artísticos consolidaram
termo de comparação. O mesmo a profissionalização e, em muitos casos,
se pode dizer de Jim Holloway, industrializaram-se, em parte devido à
que, apesar de não alcançar o voragem do modelo de financiamento
virtuosismo de outros, triunfa colectivo de novos títulos. Encontra-se
no registo humorístico, desdo- com facilidade muita competência e
brado em inúmeros títulos e consistência técnicas, assentes sobretudo

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nas ferramentas digitais, mas comparativa- cia histórica e a subjectividade do gosto
mente pouco rasgo criativo. limitam o discernimento objectivo,
Nesta confluência de novas condições, creio que há relativamente poucos
relevam alguns jogos saídos da chamada motivos para entusiasmo no que diz re-
Old School Renaissance (OSR), já que speito à originalidade da ilustração nos
tanto recorrem à ilustração a granel jogos de personagem recentes, sobretu-
como procuram recuperar artistas do se tivermos em conta o alargamento
antigos – o «renascimento» é expressão dos públicos e o aumento da qualidade
de nostalgia –, como ainda encontram es- de produção. A tendência geral parece
paço para uma estética punk de subversão ser a da uniformização, repetitiva e pro-
das normas e expectativas estilísticas. ficiente, que emula em grande medida
Vejam-se os exemplos de publicações os ditames estéticos dos videojogos,
como Lamentations of the Flame Princess ou mesmo quando não se dá conta disso.
Dungeon Crawl Classics, onde Peter Mul- A arte nos RPG não perdeu importân-
len faz uma interessante síntese entre o cia, pelo contrário, mas é mais difícil
antigo e o novo. encontrar, por agora, o fulgor criativo
Outro caso estimável é o de Jon Hodg- de outros tempos.
son, um prolífico ilustrador britânico
que, juntamente com o conhecido tolk-
ienista John Howe, tem sido responsável
pela incisiva e particular reinterpretação
visual do clássico em The One Ring. Fica a
curiosa coincidência – que talvez não seja publicação nacional de jogos de
assim tão fortuita pela força evocativa personagem é, como se sabe,
da obra – de O Senhor dos Anéis inspirar, praticamente inexistente (apesar
mais uma vez, ilustrações memoráveis, na de alguns sinais positivos recentes). No
senda de McBride. entanto, por razões fortuitas do destino,
Merece ainda uma menção Tales From the há pelo menos dois ilustradores por-
Loop, um jogo desenhado de raiz sobre tugueses de RPG que partilham, entre
o imaginário visual retro-futurista criado si, contribuições para várias dezenas de
por Simon Stålenhag, que ocupa o mes- títulos publicados. O primeiro, «refor-
mo espaço cultural da série Stranger Things mado», é nem mais nem menos que
(com o acrescento de robôs gigantes). Luís Corte Real, editor desta revista;
Da mesma editora sueca, aliás, destaca-se o segundo, Miguel Santos, continua a
ainda Symbaroum, um RPG de fantasia trabalhar regularmente com editoras de
envolto numa permanente e misteriosa renome como Sine Nomine Publishing
névoa conjurada pelo toque sombrio de e Pelgrane Press, entre outras.
Martin Grip. É deles a palavra.
Sem perder de vista que a falta de distân-

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«Esqueci quase tudo sobre a minha curta experiên- «Jogo RPG desde criança. Comecei pelas
cia como ilustrador. Para começar, porque os meus Aventuras Fantásticas. As ilustrações a preto
trabalhos publicados têm mais de 15 anos. Depois, e branco sempre me atraíram muito. Gostava
porque não me orgulho particularmente deles. E e ainda gosto daqueles ilustradores britânicos
não é de agora, mesmo na altura tinha noção das dos anos setenta e oitenta, a começar pelo
limitações das ferramentas que usava para ilustrar: grande John Blanche. Depois, na adolescência,
programas de modelismo e 3D. conheci os RPG a sério e o Warhammer. Mais
Para escrever este texto, que fui adiando por achar uma vez foram as ilustrações que me atraíram.
que nada de importante teria para dizer (e esta- Na faculdade, decidi enviar uns emails a edito-
va certo), fui buscar os volumes onde colaborei. ras de RPG e mostrar o meu portefólio. Como
Curioso para saber se estariam descontinuados, sempre desenhei, não tinha falta de material
pesquisei por um deles. E realmente a Internet pode para mostrar. Recebi logo um monte de rejei-
ser uma coisa fantástica. Descobri um site (www. ções ou propostas de trabalho não pago (que
rpggeek.com) onde alguém se dera ao trabalho recusei... com a Internet, a desculpa da “expo-
de listar todas as minhas ilustrações, tanto para sição” já não cola). Mas continuei a desenhar e
capas como interiores. E afinal fiz muito mais do a insistir.
que pensava. Para revistas desaparecidas como Aos poucos foram aceitando os meus traba-
The Black Seal (dedicada a Delta Green e Cthulhu lhos. Acabei por criar uma relação de confian-
Now) e a Gaming Frontiers (d20), mas também ça com os clientes e eles recomendaram-me a
para nomes que continuam por aí, como a Mon- outros clientes, etc. Basicamente foi assim que
goose Publishing ou o Monte Cook, criador da 3ª começou... há 10 anos.
edição de D&D. Hoje, espero conseguir provocar as mesmas
O que me deu mais orgulho, no entanto, foi ilus- sensações de fantástico e terror que senti
trar o miolo de H. P. Lovecraft’s Arkham, de 2003. quando era miúdo.»
Ofereci as ilustrações a custo zero a Lynn Willis,
pois queria retribuir à Chaosium, que passava
dificuldades, as muitas horas de prazer que os seus
produtos me proporcionavam.
A minha breve e discreta carreira como ilustrador
está esquecida e hoje, na Bang!, procuro dar visibi-
lidade aos verdadeiros profissionais que temos em
Portugal.»

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difusão das mitologias através do papel
transformou-as num prelúdio para o que seria
o fantástico na literatura. Os povos guiavam o
seu comportamento através dos cânones sagra-
dos, como ainda acontece nos dias de hoje com
os seguidores mais afetos a qualquer tipo de
fé. Compreendo assim que estamos, portanto,
diante de um género literário que nasceu muito antes de
nos apaixonarmos por ele enquanto objeto de entreteni-
mento, muito antes do advento de autores que entusiastas
como eu elencamos com os nossos role models no mundo
da escrita. Como tal, dizer que a divindade é uma criação
humana é afirmar que ela resulta do sucesso da literatura
fantástica enquanto forma de expressão.
O conto, na sua tradição oral, decorre da própria
origem do Homem, enquanto o livro enquanto objeto
nasceu na Antiguidade, dos papiros egípcios aos códices
romanos. Eram esses mesmos livros que, para além de
tratarem de assuntos triviais como a astrologia, a medicina
e a construção civil, falavam também de deuses e tratavam
de espalhar a sua palavra, encontrasse ela fonte na crença
ou na imaginação, mas também de criaturas sobrenaturais
e contos fantásticos, que haviam já ganhado expressão
antes do advento do papel. Podemos afirmar que foi aí que
nasceu a literatura fantástica, ainda que fossem interpreta-
dos, à época, com tanta seriedade e crença quanto pode-
mos imaginar.
Obras de vulto foram permeadas por elementos fan-
tásticos ao longo dos séculos, embora a literatura fantástica
enquanto género estivesse longe de se afirmar como tal. A
Antiguidade foi prolífica em obras que olhavam a fantasia
como uma face oculta da realidade, ou não fosse forte a
crença nas suas mitologias. Falo por exemplo de clássicos
como a Ilíada de Homero ou a Eneida de Virgílio.
A primeira vez que um conto mágico ganhou impor-
tância em termos escritos ocorreu
apenas no século VII, com
a transcrição

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em todo o mundo. Fausto só viria a ser
publicado no século XIX, mas a sua
influência replicar-se-ia pelos séculos
seguintes na premissa do comum mor-
tal que vende a sua alma ao diabo.
O século XVIII marcou o ápice da
literatura fantástica enquanto género,
mais propriamente com o apareci-
mento do horror gótico como uma
extensão de si mesmo. O gótico veio
aproveitar os efeitos decorrentes do
fim da célebre caça às bruxas, com o
medo generalizado e as crendices po-
pulares, quando a Europa medieval se
tornou o cenário propício para todo o
tipo de aventuras com vampiros e ou-
tros terrores. A literatura de horror e o
gótico ganharam dimensão, na senda
para papel do poema anglo-saxão do trabalho de poetas famosos como
«Beowulf», a que se seguiu o trabalho Samuel Taylor Coleridge ou Lord
de registo de várias epopeias escandi- Byron. Horace Walpole é considerado
navas que serviram de preview para os o percursor da novela gótica, com o
contos de fadas vindouros, que apenas seu romance O Castelo de Otranto.
conheceriam as suas versões escritas De resto, o século XIX veio cimen-
no século IX. No século XII explodiram tar a literatura fantástica em todas as
as canções de gesta, que revelavam vertentes. O horror viria a assumir-se
vários elementos fantásticos, como é o cada vez mais como um género inde-
caso das que tratam do Ciclo Arturia- pendente. Conheceu clássicos como
no e da Matéria Bretã, que tão bem Frankenstein de Mary Shelley (1817), Os
acolhemos na nossa cultura moderna. Crimes da Rua Morgue de Edgar Allan
Vários foram os autores que Poe (1841), O Fantasma de Canterville
incluíram material fantástico nas suas de Oscar Wilde (1887) e Drácula de
obras, frequentemente como metáfora Bram Stoker (1897). Já os contos de
para criticar as sociedades vigentes, fadas conheceram os seus maiores
mas poucos se notabilizaram como disseminadores: os Irmãos Grimm. O
William Shakespeare, entre os finais fantástico, no seu sentido mais lato,
do século XVI e inícios do século XVII. viria a destacar-se com o surgimento
A vertigem dos demónios interiores, de novos autores como Júlio Verne
que permeava a monarquia europeia (Viagem ao Centro da Terra, 1864) ou
de então, deu azo a que o poeta inglês Lewis Carroll (Alice no País das Maravi-
incluísse a sugestão de vários elemen- lhas, 1865).
tos fantásticos na sua obra. Por estes O século XX ofereceu à literatura
anos, também os contos de fadas se fantástica alguns dos seus autores mais
potenciaram, através de nomes como célebres da atualidade, mas também
o de Charles Perrault. a fusão daquilo que hoje assumimos
como subgéneros. Edgar Rice Bur-
fantástico só conheceu real im- roughs notabilizou-se com John Carter,
portância, porém, no século XVIII,
quando brotaram autores como
Jonathan Swift e Johann Wolfgang von
Goethe. Swift foi um autor irlandês
de renome que fez sucesso com o seu
romance satírico As Viagens de Gulliver,
publicado pela primeira vez em 1726 e
que se tornou um clássico da literatura
inglesa. Carregado de personagens
minúsculas, gigantes e até unicórnios,
o romance pegou em criaturas dos
contos de fadas para satirizar a Ingla-
terra de então. Já nos finais do século,
o alemão Goethe escreveu um poema
trágico em duas partes que viria a ins-
pirar gerações de autores de fantástico

58
George Lucas, cujo sucesso dispensa
referências.
A explosão de O Senhor dos Anéis
ocorreu em vários media, sobretudo
no dealbar do século XXI com a sua
adaptação cinematográfica em nome
próprio, mas não pensem que os anos
que seguiram à publicação do livro se
basearam em copiar o seu trabalho.
A originalidade marcou a segunda
metade do século xx na literatura
fantástica, com o despontar de nomes
uma fantasia científica, em 1917. H. P. sucesso tardio, ainda assim sem prece- como Michael Moorcock, Fritz Leiber
Lovecraft popularizou-se com a difu- dentes, que viria a revolucionar tudo ou Ursula K. Le Guin. Moorcock apai-
são do horror cósmico, uma mescla da o que conhecemos como literatura xonou o mundo com a sua série Elric
literatura de terror com a ficção cientí- fantástica. Por essa altura, o seu amigo de Melniboné, uma história trágica e
fica. O autor de Providence publicou o C. S. Lewis publicaria As Crónicas de apaixonante de um governante albino
seu conto mais célebre, O Despertar de Nárnia, que também conheceria o seu acossado pela inveja alheia e pelas suas
Cthulhu, em 1928, mas nunca escreveu sucesso depois. próprias fraquezas. Leiber influen-
mais do que contos e com nenhum Doravante, elfos, anões e orcs ha- ciou milhares com a dupla Fafhrd e
deles obteve sucesso em vida. Foi após bitariam em muito do que se rotulou Rateiro Cinzento. Le Guin deu voz às
a sua morte que tanto a sua obra mulheres na literatura fantástica com
como o subgénero que desenvolveu a encantadora saga Terramar, embora
viriam a ganhar reconhecimento e se viesse a afirmar sobretudo como
ser referência para inúmeros autores autora de ficção científica.
de fantasia. O final da década de 70 trouxe
Quem correspondeu com os primeiros livros da saga Shannara
Lovecraft em vida foi Robert E. de Terry Brooks, que apresentou um
Howard, o percursor do subgénero mundo pós-apocalíptico, ainda assim
«espada & feitiçaria», que viria a bem similar ao de O Senhor dos Anéis.
conquistar leitores por décadas e Nos anos 80 estrearam as sagas O
décadas com as suas personagens Mago de Raymond E. Feist, As Cró-
Conan, o Bárbaro, Red Sonja ou nicas da Companhia Negra de Glen
Solomon Kane. O autor faleceu Cook, Memory, Sorrow and Thorn de
com apenas 30 anos em 1936, Tad Williams e a famosa Discworld,
suicidando-se pouco depois de uma conhecida sátira a fantasias
saber que a sua mãe não poderia antecedentes pelas mãos de Terry
sair do estado de coma. Foi, nos como género fantástico, principal- Pratchett, série com 41 livros apenas
seus poucos anos de trabalho, um mente nos anos que se seguiram ao finalizada em 2015. Também a famosa
dos autores mais prolíficos de então, surgimento da indústria dos RPG, nos saga A Torre Negra de Stephen King
numa época pontuada pela publica- anos 70, também muito inspirado pelo foi iniciada em 82. King notabilizou-se
ção de contos em revistas pulp, e viria trabalho de Burroughs e pela criativi- então no horror e no thriller sobrena-
a ser um dos nomes mais conhecidos dade do seu precursor, Gray Gygax. tural, como continuaria a fazer nas
do género fantástico no século XX. Sobretudo no cinema, o fantástico décadas seguintes, não obstante a sua
Resta-nos imaginar o que seria a obra sempre foi bastante impulsionado pelo incursão na fantasia mais tradicional
deste escritor se tivesse vivido outros trabalho de Tolkien, como é exem- com Os Olhos do Dragão em 84.
tantos anos como aqueles que viveu. plo a fantasia científica Star Wars, de Desde os finais da década de 80,

literatura fantástica, porém,


ainda não havia chegado ao seu
apogeu. Um ano após a morte
de Howard, foi publicado um livro de
fantasia juvenil intitulado O Hobbit,
pelo filólogo e professor britânico
J. R. R. Tolkien, que servira no Exér-
cito Britânico durante a 1.ª Guerra
Mundial. E não foi preciso esperar
vinte anos para o género fantástico so-
frer um significativo abanão. Em 1954,
o mesmo Tolkien publicou O Senhor
dos Anéis. A trilogia fora escrita entre
os anos 37 e 49 como uma continua-
ção para o livro O Hobbit, e obteve um

59
R. A. Salvatore notibilizou-se pela nomes como Ursula K. Le Guin, C. S. sigo uma nova tendência: a abundância
frequência das suas obras passadas no Lewis e do próprio Tolkien, revolucio- de ficção fantástica para o público
cenário de RPG «Forgotten Realms» nando à época a literatura para jovens. juvenil. Com o público adolescente
e pelas aventuras de Drizzt, o elfo ne- Mas se todo o mundo ficou ren- a consumir mais literatura, muito
gro, e o início dos anos 90 trouxe uma dido com as aventuras do pequeno graças ao efeito Harry Potter, a ficção
crescente adição de público ao género. feiticeiro, os fãs de nicho da literatura fantástica parecia cada vez mais virada
Tal resultou da originalidade de obras fantástica viviam então grande entu- para os jovens adultos. Eragon (2002)
como Outlander de Diana Gabaldon, siasmo com uma saga menos mains- de Christopher Paolini é um dos
uma fusão entre o romance histórico, tream. 1990 fora também o ano de maiores sucessos de então, muito às
a fantasia e a ficção científica, tendo lançamento de uma das séries que se custas da pouca variedade do género à
as jovens senhoras como público tornaria referencial para as gerações época, que veio a enriquecer graças ao
preferencial. de escritores que ali despontaram. A trabalho de autores como Naomi No-
Roda do Tempo de Robert Jordan foi vik, Victoria Aveyard ou Sabaa Tahir,
o final do século XX nasceram ainda uma empreitada de catorze volumes, entre outros nomes fortes da literatura
algumas das obras mais proeminen- concluída apenas depois da morte juvenil atual.
tes da literatura fantástica atual e os do autor em 2007 por amiloidose
livros inaugurais de sagas que ainda hoje cardíaca. ns mais prolíficos do que outros,
estão a ser publicadas. Falo sobretudo No início dos anos 2000 surgiram todos eles são a cara da literatu-
de O Terceiro Desejo (1993) de Andrzej então nomes como Brandon Sander- ra fantástica do novo milénio e
Sapkowski, Os Reinos do Norte (1995) de son, um verdadeiro fenómeno entre espero que os anos vindouros sejam
Philip Pullman, Aprendiz de Assassino o fandom. O autor foi escolhido pela tão produtivos como os que se passa-
(1995) de Robin Hobb, A Guerra dos esposa de Jordan para concluir A Roda ram, oferecendo à literatura de género
Tronos (1996) de George R. R. Martin e do Tempo, depois de ter apreciado o fantástico nomes tão vinculativos
Jardins da Lua (1999) de Steven Erikson, seu romance de estreia Elantris (2005), quanto os que aqui vos trouxe. Porque,
figuras de proa da literatura fantástica mas notabilizou-se sobretudo pela como diria Stephen King, «há outros
moderna. divisão da literatura fantástica em mundos além deste». E eles gravitam
1990 foi o ano em que Terry termos de leis de magia, bem como na nossa imaginação. BANG!
Pratchett colaborou com o então des- pelos seus sistemas de magia originais
que podem ser
vistos em sagas
como Mist-
born e The
Stomlight Ar-
chive, passadas
no universo da
Cosmere.
O novo
século trouxe
também Scott
Lynch e a sua
muito elogia-
da saga dos
Cavalheiros
Bastardos, que
começa com
conhecido Neil Gaiman no livro Bons o genial As Mentiras de Locke Lamora
Augúrios, uma fantasia urbana recheada (2006), Joe Abercrombie e A Primeira
de sátira que serviria de trampolim Lei (2006), David Anthony Durham
para o trabalho de Gaiman nesse e a trilogia Acacia (2007), Patrick
subgénero fantástico, tornando-o um Rothfuss com a famosa A Crónica
dos nomes mais amados pelo público do Regicida (2007), Peter V. Brett e o
nos dias de hoje. seu Ciclo dos Demónios (2008), Mark
Tigana (1990) e Os Leões de Lawrence e a Trilogia dos Espinhos
Al-Rassan (1995) de Guy Gavriel Kay (2011), bem como a vencedora de
foram romances de fantasia stand-alone inúmeros prémios N. K. Jemisin com
que também saíram nesta década Terra Fraturada (2015). Junto-lhes
com grande mérito. Mas poucas nomes ainda não publicados em
foram as obras que obtiveram suces- Portugal, como Paolo Bacigalupi, Sam
so semelhante à série Harry Potter, Sykes, Brent Weeks, Daniel Abraham
cujo primeiro livro, A Pedra Filosofal, ou Brian McClellan, que se assumem
foi publicado em 97. A obra de J. K. já como o futuro no género.
Rowling bebeu grande influência de O século XXI trouxe também con-

60
verdadeira intenção dos autores de literatura transformará na infame manta de retalhos. Apertada por
é tão obscura quanto a medida mais profunda fios que se desvanecem neurologicamente, unidos por
do mar. Submergir ao nível do desígnio de células que deixarão de vibrar, alimentados por químicas
uma obra é uma curiosidade exigente, sem que já não podem acontecer.
perspetiva de sucesso na procura daquela peça que Ler é como amar. Uma coisa feita de lembrança, mas
achamos (nós) essencial para lermos um texto. Nem também de esquecimento. Pura e verdadeira emoção. Um
sabemos mesmo se o é. A intensidade da ficção depende bom livro acaba sempre com um baque no coração, com
da capacidade de mentir. Um escritor não tem outra um frio oco no estômago, com uma garganta seca. Nunca
hipótese do que enganar quem o lê. E quem gosta de desemboca numa teoria literária. Tal como o amor, não se
ler não se pode importar com isso. Tem de entender a explica. Ler vampiriza-nos, enche-nos de ideias absurdas.
falsidade, a verosimilhança, como aquela oferta que não se Adoça-nos de sonhos à espera do martelo para os desfazer.
pode recusar. Ler é **dido. As páginas estão sujas de tinta. E mais **dido
São, aliás, os autores quem mais nos avisa para as ainda é que não o conseguimos deixar de o fazer. É nicotina.
armadilhas da linguagem. São eles que se revoltam contra Não conseguimos deixar de espreitar para aquela confusão
ela. Que a despedaçam nas suas estruturas livres e nas suas de abismos e de nos mandarmos lá para dentro apenas por
narrativas quebradas. São eles que humilham as palavras curiosidade, mesmo sabendo que ela mata.
certas, ao criarem novo palavreado como fez Orwell ou
Faulkner. Não é por falta de aviso que nos metemos a ler,
à mesma, sem noção das consequências, este ou aquele
escritor.
Não conseguimos entender as complicações em que
nos vamos meter, quando abrimos um livro. Sócrates,
o filósofo e não o ladrão, bem avisava que só sabia que
nada sabia. Mas nem nessa certeza podemos hoje confiar.
Depois de tantas traduções, de tantas traições e de tanta Fernando Ribeiro
manipulação, desconhecemos até o que é ser ignorante. Na É vocalista e letrista da banda Moonspell, com a
atualidade será, talvez, uma coisa bastante má, a ignorância. qual já lançou vários discos, e em 2009 participou
Na Grécia Antiga talvez fosse como despir as roupas sujas no projecto Amália. Tem três livros de poesia
e entrar nas águas límpidas de um lago. publicados e, no universo lovecraftiano, traduziu
Ler não é um ato intelectual. Só os intelectuais, ou para português a biografia em banda desenhada
melhor, os colecionadores de letras podem definir a leitura intitulada Lovecraft, assinou as introduções das
como algo de racional. Não o é. Ler é selvagem. É despir antologias Os Melhores Contos de H. P. Lovecraft
a nossa cultura e sermos ignorantes a sério. Preencher, e participou nas antologias As Sombras Sobre
baralhar e voltar a dar as cartas dos castelos, dos amores, Lisboa e Contos de Terror do Homem-Peixe. Em
das mortes, dos monstros, das mulheres, dos homens, 2011, publicou ficção na colecção Mitos Urbanos
dos reis, dos plebeus, que nos calharam em mão. Misturar da editora Gailivro.
tudo sem entender que no futuro a leitura afastada se

61
62
u posso ajudá-lo – disse ela. como ela, e tirou uma garrafa de litro, de vidro transparente,
Tinha-me seguido desde o comboio bem rolhada, sem rótulo. Tinha água lá dentro.
subterrâneo. Topei-a logo, mas ela tam- – Eu posso – disse ela. – Tudo o que tem de fazer por
bém não se escondia. Eu deixara-me des- mim é guardar esta garrafa.
lizar pelas ruas escuras do Cais do Sodré e Que pescoço magnífico…
não foi preciso o foco de luz do dirigível – Uma garrafa de água?
para que toda a gente estivesse a olhar para ela. Esperei a E ela pareceu sorrir.
um canto. – Sim. Uma garrafa de água.
– O que tens na bolsa, bela senhora? – disse o Caroço, Esticou-se e colocou a garrafa sobre a mesa. Os dedos
numa ameaça. Ela pareceu empalidecer ligeiramente. enluvados empurraram o vidro pelo tampo, para mais perto
– Caroço – disse eu. – Queres que te parta o nariz outra de mim. Para junto do Peacemaker. Expirei fumo. Ela tirou um
vez? papelinho dobrado da bolsa e colocou-o junto à garrafa.
O Caroço encolheu-se e desapareceu, e ela ficou a olhar – Se alguém vier à procura da garrafa, telefone-me para
para mim e eu a olhar para ela. O foco do dirigível encadeou-a esse número. Deixe mensagem. Chamo-me Maria.
de novo, e ela levantou a mão até ao chapéu para proteger a Ela estava a mentir. Abri o papelinho. «N.210 383». Cam-
vista. Olhei para cima. As luzinhas cintilantes percorriam o po de Ourique. Ela devia chamar-se Amélia, ou Constança.
dorso da baleia. «Bom Natal nos Armazéns do Chiado». Mal- Porque é que viria a este antro deixar-me uma garrafa de água
ditas modernices. Ela também tinha luzinhas cintilantes. Nos e falar-me do meu problema? Cheirava a podre por todos os
olhos. Lá bem no fundo do negro dos olhos fundos. Fiz-lhe lados.
sinal para que me seguisse. Desta vez de perto. Mas a mão dela voltou à bolsa e regressou com várias
Descemos as escadinhas para a minha cave. Abri, entrei notas. Colocou-as ao lado do papel, da garrafa e do revólver.
e deixei a porta aberta. Liguei a luz. Ela entrou. Peguei na pá Em cima da mesa.
e atirei com duas camadas de carvão para o fogão antes de o – Para o caso de ter problemas de despesas.
acender. Limpei as mãos no trapo e vi que ela fazia uma ca- É claro que eu tinha problemas de despesas. Bastava olhar
reta. Carvão negro. Sujo. Ela estava habituada a aquecedores em volta.
elétricos, claro. Alta sociedade. – Senhora – disse eu. – Não tenho problemas nenhuns de
– Sente-se – disse-lhe. Ela acalmou as saias, sentou-se na despesas ou outros quaisquer.
ponta do sofá e desenfiou o alfinete para tirar o chapéu. Eu Peguei no dinheiro.
sentei-me no banco. Senti o metal a incomodar-me as costas e – Mas não lhe vou fazer nenhum favor de borla – resmun-
tirei o Peacemaker do cós das calças e coloquei-o em cima da guei. – É contra os meus princípios.
mesa. Ela olhou para o revólver e pareceu estremecer. Ela pareceu levantar-se. Pareceu pôr o chapéu. Pareceu
Pareceu estremecer… Ela parecia coisas. Como se nunca dirigir-se à saída. Pareceu virar-se para mim e sorrir.
fosse verdadeiramente. E isso incomodava-me. – Um conselho: não deixe a garrafa por aí à vista.
– Eu posso ajudá-lo – disse ela. Inspirei fumo e olhei para a garrafa. Por favor… Era uma
Eu já enrolava o cigarro. garrafa de água… Se tivesse sede até a bebia.
– Eu preciso de ajuda? – Veja lá por onde anda, por aí sozinha… – Não fiz men-
Ela pareceu fazer um movimento com a mão em direção ção de me levantar.
ao meu peito. Ela pareceu sorrir enquanto saía.
– Com o seu problema. – Não se preocupe comigo – disse ainda.
Desta vez fui eu quem quase estremeceu. O que é que ela Eu? Claro que não. O Caroço que fizesse o que entendesse.
sabia do meu problema? O que é que alguém poderia saber A porta fechou-se. Pareceu fechar-se.
do meu problema? Aqui, no peito, a consumir-me todos os O maldito comboio passou por perto e eu agarrei a mal-
dias. Fingi-me imperturbável e coloquei o cigarro na boca e dita garrafa para que não caísse. Levantei-me. Fui até ao cesto
levei-lhe o fósforo aceso. da roupa. Tirei para fora uma camisa, umas calças e umas cue-
– Ninguém pode ajudar-me – sacudi o fósforo e atirei-o cas. Pus a garrafa lá no fundo e tirei a de aguardente. Voltei a
ainda fumegante para o monte de carvão. Não incendiou. pôr a roupa no cesto. Sentei-me no sofá.
Nunca incendeia. O meu problema. O que é que alguém sabia do meu pro-
Ela pegou na bolsa, demasiado grande para uma mulher blema?

63
P esado. Constante. Negro. O meu coração não batia. Pu-
xava-me para dentro. De forma violenta e dolorosa. Um
buraco revolvente e estranho. Que comia a carne lentamen-
na esquina. Tinha de jantar, porra.
Finalmente decidi-me. Entrei, passei por alguns bêba-
dos e dirigi-me ao balcão de mármore. Chamei o Capão.
te. Destruindo-me a cada instante. Tinham-no tapado com – Aguardente, ó Lemos? – perguntou-me.
uma placa de metal numa cirurgia peculiar e indescritível no Assenti com a cabeça e enquanto ele me servia, mos-
coração de África. Num hospital de campanha. Um médi- trei-lhe o punhal. Apontei para o símbolo estranho no
co inglês. Excêntrico. Tinha-me salvado a vida. E agora eu cabo: uma foice cruzada com um martelo.
sonhava com aquele dia todas as noites. E com as caras dos – Sabes o que é isto, Capão?
africanos. Com as caras destruídas dos terroristas africanos. Ele fez uma careta. Franziu a testa. Se alguém sabia
E com o sangue e com as entranhas e com o medo e com era ele.
o nojo… – Russo, parece-me.
E depois acordava… Engoli a aguardente de um gole. Russos? Em que é que
eu me tinha metido?
Apontei para o telefone, e o Capão respondeu:

A cordei no momento em que me matavam. Um tipo loiro


com cara de fuinha. Maçãs do rosto duras. Olhos frios.
– Onde está a garrafa? – disse, com um sotaque estranho,
– Claro. Tens moedas?
E eu tinha e lá fui. Peguei no auscultador, meti moedas,
rodei a manivela e falaram do outro lado:
enquanto se empoleirava no sofá sobre mim, com um joelho – O número, faxavor.
bem instalado no meu peito e uma lâmina gelada a tocar-me – 210 383.
o pescoço. – 210 383. Faxavor aguarde.
O Peacemaker? Ainda estava sobre a mesa. Ouvi outro tipo, Esperei uns segundos e atenderam do outro lado.
junto à porta, a dizer qualquer coisa numa língua estranha. – Sim? – ouvi finalmente.
Eram dois. E eu meio bêbado. Entalado no sofá. – Queria deixar uma mensagem para a Maria, faxavor.
Tive sorte. Muita sorte. Porque houve um apagão. A luz Click! Desligaram logo. Aquilo não me soou nada bem.
foi-se. Assim, por nada. No momento certo. Claro que nem tentei outra vez. Gastar mais uns centavos
Parti o pulso armado do tipo em cima de mim e esma- é que não. E porque não me estava a soar nada bem. Deixei
guei-lhe o crânio de encontro à esquina da mesa. O Colt o auscultador no descanso, virei-me para sair e quando dei
caiu ao chão e tocou-me no pé no momento em que o tipo por mim estavam a apontar-me outra pistolinha.
da entrada começou a disparar a pistolinha. E eu disparei – É você que é o Lemos?
de volta. Ninguém acertou em nada, claro, porque estava Era um homenzinho pequeno, bem vestido, com um
escuro como breu e mesmo a porta aberta para a rua não bigodinho a enrolar para cima, um chapéu de coco bem
trazia muita luz por causa do apagão. Mas então ouvi a voz enfiado na cabeça, sobretudo preto, cabelo a querer ficar
do meu vizinho. branco e voz de estudante de Coimbra.
O meu vizinho é um tipo às direitas. Chamamos-lhe «Pei- – Não, pá. Sou o Costa – disse-lhe. Mas ele não acre-
dorrento» porque adora mão-de-vaca com feijoca e deixa o ditou e fez-me sinal com a arma em direção à saída. Dei-
cheiro em todo o lado. E também porque está sempre a dizer xámos «A Tetita» e ele fez-nos parar junto às sombras
asneiras. Mas ninguém lho chama na cara, claro. Ou fica sem da cidade adormecida. Pegou numa espécie de relógio
ela. despertador só com um ponteiro e apontou-mo enquanto
– Estás bem, Lemos? – ouvi eu. Mas não podia responder eu ponderava a ideia de lhe dar um murro logo ali.
para não mostrar onde estava. O palerma do outro tipo é que – Não gosto de pistolinhas, pá.
disparou a pistolinha pela porta da rua. Mas ele não ligou. O relógio despertador começou a
– Cabrão! – ouvi eu do Peidorrento. – ‘Pera aí que já te fazer estalidos como um grilo histérico e os olhinhos do
digo! homem brilharam.
O assaltante que ainda vivia tentou aproximar-se da saída, – És tu que tens a garrafa!
mas assim que a claridade da noite lhe mostrou os bigodes Outro à procura da maldita garrafa.
dei-lhe um tiro que por pouco não o apanhou. O homem dis- – Não gosto de pistolinhas, pá! – resmunguei eu outra
parou mais dois tirinhos para o escuro e não acertou em nada, vez, já a perder as estribeiras.
e a próxima coisa que aconteceu foi o estrondo das descargas – Ouve – disse-me ele. – Eu posso ajudar-te. Com o
da caçadeira do Peidorrento e o clarão foi tal que deu para ver teu problema…
o outro tipo a voar para aí uns três metros e a ser atirado de – Problema? Mas qual problema?
encontro à parede antes de cair no chão. E eu estava prestes a esmagar-lhe as fuças quando de
– Estás bem, Lemos? – disse o Peidorrento, que ainda repente, vindos sabe-se lá donde, saíram dois outros ho-
não me via. mens vestidos de negro que nos apontaram a nós os dois
– Perfeito – respondi-lhe, do escuro. mais pistolinhas e um terceiro saiu das sombras e bom-
– Precisas de alguma coisa? beou duas vezes num fumigador na direção das nossas ca-
– Umas balas 45 davam jeito. Tens? ras. Uma nuvem malcheirosa encheu o ar e… eu caí para
– Vamos ver o que se arranja. o lado.

O lhei para «A Tetita». Ainda era cedo mas já se via


que estava a abarrotar, com malta cá fora a comer
tremoços e emborcar água-pé. Não fiquei convencido e
A inda antes de abrir os olhos cheirei e senti os montes
de carvão, e ouvi o estrondo do canhão n.º 32, das 8 da
manhã, a enviar as mercadorias para Porto Brandão. Devía-
resolvi dar uma volta. Comprei umas castanhas ao Vasco, mos estar em Belém, ou Algés. Abri os olhos e na penumbra

64
percebi que estava num armazém industrial de carvão. Com mos dominá-lo numa cápsula de metal. Com ele, abrimos um
as mãos e pés atados. portal para outro universo.
– Estás bem? – O que é que queres dizer com isso, outro universo? Era
Era o homenzinho dos bigodes que me perguntava e, uma droga?
apesar de ainda estar grogue, irritou-me logo o facto de ele Os olhos dele brilhavam quando ele abanou vigorosa-
ter voltado à consciência antes de mim. Provavelmente, a mente a cabeça.
aguardente tinha-me feito mal. Também me irritou o facto – Não, não estás a perceber. Outra dimensão. Literalmen-
de não sentir o metal frio do Peacemaker junto à pele das te outro universo. Eu estive noutro universo. Muito parecido
costas. com este, mas muito diferente ao mesmo tempo.
– Lemos, estás bem? Desta vez quem fez a careta fui eu.
Olhei para ele e percebi que também ele estava atado de – Troca-me lá isso por miúdos. O que é que isso tem a
pés e mãos, e tinha perdido o chapéu. ver comigo?
– À bardamerda – respondi-lhe. – Espera! Ouve! – fungou ele. – Estou a falar de outro
O dos bigodes arrastou-se o que pôde pelo chão e che- universo. Muito parecido com este. Mas nesse universo os
gou-se ao pé de mim. Pensei que me ia beijar e por pouco Estados Unidos da América são o maior império do mundo,
não lhe arranquei o nariz à dentada. o homem já foi até à Lua…
– Ouve – disse ele, baixinho. – Temos de sair daqui. Eu – Os americanos? – desconfiei. – Até à Lua?
posso ajudar-te com o teu problema. – As máquinas pensam, os ingleses construíram uma ove-
– Mas qual problema? lha…
Ele sorriu o pouco que conseguiu. – Uma ovelha? Isso também o meu primo Joaquim na
– Acordas todos os dias cansado. Pesado. Deprimido. quinta… Ouve, não sei quem tu és, mas…
Com a sensação de que estás a afundar na lama. Como se – Não, não estás a perceber. Construíram, num laborató-
o teu coração te puxasse para dentro. Como se fosse um rio, sem pai nem mãe. Chama-se Holly, ou algo parecido.
buraco. A imaginação deste tipo! Quem é que havia de querer
Como diabos sabia ele aquilo? construir uma ovelha, quando já se faziam centenas todos os
– Não – menti. – Às vezes acordo de ressaca. Mas é um dias nas quintas?
problema de aguardente. – E as pessoas voam a grandes velocidades em máquinas
Ele aproximou mais um pouco os bigodes da minha cara enormes, de aço, mais pesadas do que casas. Garanto-te. Vi
e baixou ainda mais a voz. tudo isto com os meus próprios olhos.
– Ficaste assim depois de vires de África, não foi? Olhei em volta. Não havia aqui mais nada do que eu, este
Sim, tinha sido, mas aquilo já me estava a irritar. maluco e uma porrada de carvão. Não conseguia ver grande
– Quem és tu, ó palhaço? E se não queres levar já uma coisa, tinha as mãos bem amarradas, mas tinha de haver uma
cabeçada na testa, afasta-te um bocadinho. Tenho cara de saída. Se ao menos o palhaço se calasse… O que eu não dava
paneleiro, ou quê? para lhe espetar dois dedos nos benditos olhos…
Ele afastou-se um pouco, assustado, mas continuou a – Sabes ao menos quem nos amarrou aqui, ou não, pa-
falar baixo. lhaço?
– O meu nome é Bartolomeu Pinto. – Não, não sei. Mas sei o que eles procuram.
– Ouve, palhaço. Estou a começar a ficar farto. Em que – E é o quê?
é que eu estou metido? Estamos aqui atados que nem chou- Ele olhou bem para mim. Não tardava nada, dava-lhe
riços porquê? mesmo uma cabeçada.
– Sou um físico. Um cientista. Eu e o meu mentor, o – A ti.
Professor Conrad Heart, estudámos juntos os fenómenos – A mim?
naturais da geologia, da biologia e da física durante mais de Ele assentiu com a cabeça.
20 anos. – Ou a ti e a mim juntos – sugeriu ele ainda. – Deixa-me
Aquele nome fez-me gelar. explicar. Quando eu e o Professor Conrad sentimos que a
– Conrad Heart? – repeti. guerra em África em breve chegaria ao nosso laboratório, de-
– Sim – confirmou o homenzinho. – Reconheces o cidimos voltar para a Europa. Eu parti primeiro. Mas o Pro-
nome, não reconheces? fessor Conrad ficou preso no meio das hostilidades. Foi nessa
Claro que reconhecia. Ele continuou: altura que tu lhe chegaste, muito ferido. Ele salvou-te com a
– Há dez anos atrás, eu e o Professor Heart fomos ao sua cirurgia, mas, como não sabia como esconder e transpor-
coração de África em perseguição de um fenómeno estra- tar a cápsula de metal com o buraco de verme antes da chega-
nho que descobrimos com a ajuda de um ireliógrafo, um da do inimigo, o que é que ele fez? Esterilizou-a e escondeu-a
instrumento que demorámos anos a desenvolver. Com ele, junto ao teu coração, fechando a ferida em seguida.
descobrimos um vácuo estranho, minúsculo, na magnetos- Aquilo atingiu-me como um martelo na cabeça.
fera da Terra. – O inglês pôs-me um verme no peito!?!?!
– Ouve, palhaço, não sei o que é que os mosquitos da sa- – Um buraco de verme. Não é a mesma coisa.
vana te fizeram ao cérebro, mas é melhor começares a falar – O CABRÃO!!!
português se não queres que te arranque o nariz à dentada. – Sshshssssshhh!! Fala baixo!
O homenzinho fez uma careta parva, mas depois conti- Mas era tarde demais. Ouvimos uma porta a abrir e en-
nuou a história. trou luz, e pouco depois alguém nos dizia «Bom Dia» em
– Pois, muito bem. Nesse caso vou encurtar a narrativa. estrangeiro.
Encontrámos um minúsculo buraco de verme, que tu não – Guten Morgen, meine Herren.
sabes o que é, mas é uma coisa muito importante, e consegui-

65
H avia três lacaios vestidos de negro, com pistolinhas nas
mãos, mas quem falava era um homem médio, com um
monóculo, um chapéu negro de abas largas e uma capa pre-
de tiros estúpida e pareceu-me que o Bartolomeu berrava
de terror, enquanto eu não perdia de vista o meu Peacemaker.
Ao fim de uns segundos, o Colt estabilizou junto a um pilar
ta que lhe chegava aos pés. Sorria de forma nauseabunda e de madeira, em cima de uma pá ali deixada, e os estrangei-
apeteceu-me logo vomitar-lhe nos sapatos. ros estavam todos no chão varados de balas. Apenas o Fritz
– Meus senhorres. Muito prrazerr, senhorr Barrtolomeu. estava ainda de pé. O sangue saía-lhe de vários pontos. Mas
Muito prrazerr, senhorr Lemos. Eu sou, vejamos, Frritzz. ainda empunhava a sua pistolinha. E apontou-a para nós.
Sim, sou Frritzz. Gosto muito de estarr em Porrtugal. Admir- E acho que ia mesmo disparar. Força, que me fizesse esse
ro muito Porrtugal. E os porrtugueses. Os descobrridorres. favor, ao menos.
Os aventurreirros. Que vão parra além das frronteirras. Parra Ouviu-se um tiro. Percebi logo que não tinha vindo da
além do conhecimento. Muito estimulante, yah? pistolinha do alemão. Tinha vindo de outra pistolinha. Procu-
Desejei logo meter-lhe o «yah» pelo cu adentro. rei-a, em volta. E lá estava ela. Na mão da Maria. Que entrara
– O Univerrso necessita de porrtugueses. A Humanidade não se sabe como, com as saias a balouçar, o chapéu sobre os
necessita de porrtugueses. Que prrocurrem mais além, yah? olhos e quase pálida.
Mas também necessita de pessoas como nós. Como os gerr- Olhei para o Fritz. Um orifício de luz cruzava-lhe a aba
mânicos, yah? Com forrça e inteligência parra ficarr com os negra do chapéu. E por baixo estava um orifício vermelho
tesoirros no final, yah? Ah, ah, ah, ah! Os pinoneirros des- que lhe enfeitava a testa. O alemão caiu.
cobrrem, yah?, mas os colonos lavrram a terra e prroduzem Maria aproximou-se. Leve. Quase sem tocar no chão. Evi-
riqueza, yah? E os pioneirros são pobrres e os colonos são tando de raspão os cadáveres e as poças de sangue. Tirou
ricos, yah? Ah, ah, ah, ah! uma grande tesoura da bolsa e cortou-me as amarras dos pés
E ele ria-se com os dentes muito brancos. Mal ele sabia e das mãos.
o perto que estava de poder ficar sem eles. Comecei a sentir A primeira coisa que eu fiz foi ir recuperar o meu Colt.
que as cordas afrouxavam. Mais uns minutos e o sacana do Mas estava quase a tocar-lhe quando ela falou.
alemão ia ver o que os portugueses eram capazes de lhe fazer – Não toque nessa arma, por favor – disse ela, apontan-
às fuças. do-me a pistolinha.
– Tenho apenas uma perrgunta parra vós. Onde estarr a Eu virei-me para ela, um bocado irritado.
garrafa? Hmm? Senhorr Lemos? Hmm? – Ah, não?
– Estás a falar comigo? – perguntei. – De que garrafa é Ela abanou a bela cabeça.
que estás a falar? Não sei de garrafa nenhuma. – Como lhe disse antes, eu posso ajudá-lo com o seu pro-
– Ah, ah, ah, ah! – fez o Fritz, contente. – Que piada, blema.
yah? «Que garrafa»? Muito diverrtido. Nós revistarrmos a Estive quase para lhe dar uma estalada com as costas da
sua casa e não encontrrarrmos a garrafa. Dizerr-nos e nós mão. Mas ela estava um pouco longe demais e eu já a vira a
liberrtamos vocês. Talvez prrecisarr de um incentivo, yah? disparar.
E então ele fez uma coisa que me irritou a sério: tirou de – Qual problema? Não tenho problema nenhum.
dentro da capa o meu Colt Peacemaker de calibre 45! O cabrão Ela continuou:
atrevia-se a acenar-me com o meu Peacemaker ponto 45! Qua- – O Professor Bartolomeu Pinto é a única pessoa que
se que rebentei com as cordas logo ali. Mas então ouviu-se lhe pode tirar a cápsula que está junto ao seu coração. Que
uma voz a sair das sombras. lhe suga a energia. Eu posso fornecer as condições clínicas
– Don’t move! Stay exactly where you are! Ficar onde es- para isso. Só precisa de me devolver a garrafa de água e
tar!! ajudar-me a trazer o Professor em segurança para a Embai-
Entraram na sala três homens vestidos à soldados da In- xada de França. Só quero a cápsula, o Professor e a garrafa.
fantaria 15. Mas não eram, que eu conhecia bem o Regimen- Olhei para Bartolomeu e para o meu Colt, em cima da pá
to. Estavam armados de espingardas Kropatschek e o 15 usava junto ao meu pé, e outra vez para ela.
Mausers-Verdigueiro. E eles tinham ar de estrangeiros. E revól- – Então e a minha arma?
veres de guerra, e cheios de vontade de os usar. Ela olhou para o Colt.
– Collins – reconheceu Fritz. – Como está? Os ingleses – Vai ter de ficar aí, que eu não confio em si.
gostam mesmo de estrragarr as festas, não é verrdade? Aquele foi o erro dela. O último. Já não bastava estar sem-
Collins era o que estava vestido à oficial e acenava com o pre a falar de um problema que não era dela e a meter-se
revólver Webley. onde não era chamada, agora queria que eu deixasse ali o meu
– Quem estragar festas ser vocês – disse ele. – Bartolomeu Peacemaker? Não estava boa da cabeça.
Pinto e senhor Lemos serem nossos. – Está bem – disse eu. Mas no momento seguinte o meu
– Collins, meu querrido – disse Fritz. – Não há prroble- pé fez levantar a pá, e o Colt saltou para a minha mão e a
ma. Nós só querremos a garrafa. palma da mão esquerda bateu duas vezes no cão enquanto o
O inglês apertou os lábios, com desdém. indicador direito dava duas vezes ao gatilho.
– Isso ser ridículo. Claro que não ficar com garrafa. Largar BANG! BANG!
arma imediatamente. Ou nós disparar. Ela quase que conseguiu disparar. Quase… Acabou a des-
Eu estremeci ao ouvir a ordem. E não é que o cabrão do lizar para o chão como uma pena. E adormeceu em cima do
alemão deixou mesmo cair o meu Colt em cima do carvão, carvão. Com o sangue a escorrer e a ficar quase negro.
para se riscar e sujar? Eu soprei o fumo do cano e girei o revólver sobre o dedo.
A questão é que o idiota não acabou ali. E enquanto eu E, finalmente, o Colt Peacemaker voltou para o seu lugar no
via com horror o meu Colt aos trambolhões no meio das pe- meu cinto junto às costas.
dras negras, Fritz teve a feliz ideia de sacar de uma pistolinha Dei uma última olhadela à bela mulher, que se tornava um
do bolso e disparar sobre os bifes. Houve uma quantidade belo cadáver. Ela achava que me conhecia, mas…

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– Não gosto de pistolinhas… – Comeste? Queres castanhas?
– Hei… – Olhei e vi o Professor ainda amarrado. – Le- – Só uma dúzia que estou de dieta.
mos… – chamou ele. – Saíste-me cá um forreta…
Suspirei e fui libertá-lo. Os meus princípios, os meus prin- E eu procurei nos bolsos e encontrei o tabaco. Comecei a
cípios… enrolar e percebi o que me faltava.
– Porreiro, porreiro, sabes o que era? Um bom copinho
de aguardente.

A lguns minutos depois estávamos no comboio de volta


ao Cais do Sodré. Ele tinha-me perguntado outra vez
pela garrafa e eu dissera-lhe que lha dava.
– És sempre o mesmo, Lemos. Sempre agarrado à gar-
rafa.
Olhámos um para o outro com olhar maroto e começá-
– Aquilo é o quê, afinal? – perguntara eu. – Não é água, mos a rir outra vez.
com certeza.
Ele chegara-se bem perto de mim e falara baixinho.
– É água, sim. Água pesada. Tem um conteúdo atómico
diferente. Em boa quantidade, permitirá fazer uma arma nu-
clear. Algo como nunca se imaginou. Podemos voltar a do-
minar o mundo…
E eu, sem querer, dei-lhe uma cabeçada na testa.
– Afasta-te lá, ó paneleiro, que eu não sou surdo.

E u tinha deixado a garrafa com o Vasco das castanhas.


Fomos até à esquina dele, junto à Rua do Alecrim.
– Vasco. Tens aí a garrafa que te dei ontem?
– Claro, Lemos.
O Vasco vasculhou o carrinho e deu-me a garrafa. O Bar-
tolomeu sorriu-me com os olhinhos a brilhar e estendeu a
mão. Eu afastei-lhe a garrafa.
– Aguenta lá, ó palhaço. Não achas que ta vou dar de
borla, pois não?
O idiota foi apanhado de surpresa. Olhou para mim e bal-
buciou:
– Eu… eu faço-te a cirurgia, claro. Resolvo o teu proble-
ma.
Por pouco não lhe dei um sopapo.
– Ouve uma coisa, palhaço. Eu não tenho nenhum pro-
blema. O que eu tenho é uma garrafa de água de que toda a
gente anda atrás. Se a queres, vais ter de pagar.
Ele empalideceu, ficou mesmo branco, e eu percebi que
podia pedir o preço que quisesse. Já o tinha!
– Quanto? – perguntou ele.
E desta vez quem sorriu fui eu.
– 300 mil reis.
Ele fez outra cara de surpresa, por meio segundo, e eu
percebi que podia ter pedido mais dinheiro. Bartolomeu sa-
cou a carteira do bolso, tirou três notas de 100 mil reis e es-
tendeu-mas. Eu peguei nelas e dei-lhe a garrafa. O professor
virou-se e afastou-se, escondendo a garrafa dentro do casaco.
Fiquei a vê-lo a desaparecer na multidão da manhã. O Vasco,
a meu lado, abanou a cabeça enquanto trincava um palito.
– Pela cara dele – disse –, podias ter pedido para aí 500
ou 600 mil reis.
Fiz uma careta desolada.
– Pois podia.
– Devia ser boa pinga, aquilo. Era o quê?
Eu soltei uma gargalhada.
– Era água!
– Água? – repetiu ele. – Vendeste uma garrafa de água
por 300 mil reis? Ganda negócio, ó Lemos! És o maior! Ah,
ah, ah!
E rimo-nos os dois, agarrados à barriga.
Por fim, o Vasco limpou as lágrimas, mexeu no pote de
barro, abanou o lume e perguntou-me:

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s sagas nórdicas são pródigas em temáticas
que misturam na perfeição o mundo do
real terreno com o domínio do fantástico,
muitas vezes assente em estórias e lendas
seculares, personagens do imaginário popular e elementos
contemporâneos, do tempo presente ou daquele em que são
cozinhados os diversos livros, guiões ou peças dramáticas. É
o que acontece em Peer Gynt, um poema dramático em cinco
atos, da autoria de um dos principais nomes da literatura
norueguesa: Henrik Ibsen (1828-1906).
O enredo circula em torno do percurso de um
anti-herói (a própria personagem que dá nome à obra),
a partir de um conto tradicional da cultura nórdica. Peer
Gynt é um camponês ambicioso, egoísta, com um génio
abundantemente fantasioso, o que o levará ao exílio, numa
viagem até diversos países exóticos do Norte de África — o
interesse por culturas não ocidentais, consideradas exóticas
na época, foi um tónico muito aliciante neste período das
últimas décadas do século XIX em praticamente todas as
áreas da criação artística —, numa odisseia de episódios e
aventuras sucessivas, encontros de primeiro grau com trolls
Henrik Ibsen
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e outras criaturas, acabando por regressar à sua terra natal
na Noruega onde o esperava Solveig, a figura feminina
desta obra dramática, símbolo do amor e da reconciliação.
Esse regresso de Peer Gynt ao ponto de partida, depois
de uma jornada entre o real e o pano de fundo imaginário
e fantástico do conto popular, ou até, por vezes, entre a
coerência moral e a ambição desmedida de Peer Gynt,
assume uma dimensão moralista, com o retorno a simbolizar
o reconhecimento de um tempo perdido em devaneios e
a redenção para um novo estado de espírito para o qual o
amor de Solveig também tem uma palavra a dizer.
A obra foi inicialmente publicada em 1867, mas seria
apenas estreada em palco em 1876, com música da autoria
de Edvard Grieg (1843-1907), especialmente escrita para
a execução teatral, através de um convite endereçado pelo
próprio Henrik Ibsen dois anos antes.
Se Ibsen é, sem sombra de dúvidas, uma das figuras
mais destacadas no seio da literatura norueguesa, o mesmo
se verifica com Grieg no que diz respeito à música. Grieg
é o compositor norueguês de maior renome internacional
no plano da música erudita, sendo a sua obra de maior
popularidade precisamente a música que compôs para

Peer Gynt, inicialmente para a versão teatral e depois no


plano estritamente musical, com duas suítes orquestrais a
partir de uma seleção do mesmo material musical. Entre
os momentos de grande recorte criativo da música de Peer
Gynt, um dos mais famosos é «In the Hall of the Mountain
King» (Na gruta do rei da montanha), que há largas
décadas marca presença recorrente em bandas sonoras
cinematográficas, filmes de animação, anúncios publicitários,
entre outros, caracterizando-se pela grande densidade
de ritmos inspirados na música popular ostensivamente
evocados pela orquestra e vozes. «In the Hall of the
Mountain King» retrata o momento em que Peer Gynt está
encurralado por trolls sob a ameaça de morte iminente, e o
carácter intempestivo e obstinado da música de Grieg cai
que nem uma luva no conteúdo literário. A este momento
juntam-se, em contraposição, dois números que revelam
uma faceta mais sensível e romântica da música de Peer Gynt:
«O Amanhecer», quando
Peer Gynt se encontra
no Deserto do Saara; e a
«Canção de Solveig», um
dos momentos de maior
beleza lírica desta obra.
Apesar do sucesso
logo após a sua estreia, a
verdade é que até então
o próprio compositor
não tinha grandes
expectativas de êxito
no momento da sua
composição, que terá sido,
inclusivamente, entediante,
quase apenas para não
dizer «não» a Ibsen.
Grieg sentiu-se pouco
inspirado pela natureza
pouco musical do texto,
tendo mesmo optado

70
70
direção de Paavo Järvi, com uma excelente qualidade
musical, técnica e um trabalho sonoro soberbo!
Por último, entre as largas dezenas de edições
realizadas à escala internacional em torno das suítes
orquestrais, destacam-se as gravações de Herbert von
Karajan à frente da Orquestra Filarmónica de Berlim,
editadas pela Deutsche Grammophon em 1983. Aqui
sobressai a sonoridade coesa e dinâmica que marcou
durante décadas o sucesso da Filarmónica de Berlim, ao
mesmo tempo que o som destas gravações se destaca
por uma irresistível clareza, quase tridimensional, tal é
a profundidade, que parece que estamos no meio da
orquestra a interagir com os intérpretes. Esta é uma das
gravações que melhor consegue cumprir a clareza e o
contraste entre os momentos de grande exuberância e
tensão e outros de marcado lirismo que Peer Gynt concilia.
A saga de Peer Gynt é hoje difundida em grande
medida pela música que Grieg escreveu, em igual ou maior
por não comparecer na estreia, em Oslo, grau do que o texto original a que essa
em fevereiro de 1876. No entanto, a peça música serviu de suporte. No entanto, este
teatral e a sua música foram aclamadas, mesmo texto foi alvo de outras leituras
granjeando novas produções pelos musicais: outro compositor norueguês,
principais centros europeus, deixando Harald Særverud (1897-1992), também
Grieg igualmente rendido. escreveu música para Peer Gynt, em 1947;
Fruto das diferentes versões, as várias em 1938, Werner Egk (1901-1983),
gravações discográficas de Peer Gynt compositor alemão, compôs uma ópera
apresentam soluções e opções diversas, baseada no mesmo tema. É surpreendente,
seja através da gravação das suítes (em mas os factos não enganam. Peer Gynt
conjunto ou em separado), seja pela fusão assume uma marcada expressão no
de excertos da versão completa para teatro domínio musical que pode perfeitamente
a par com as partes musicais, ou ainda na rivalizar com a sua difusão na escala
versão original, com inclusão de alguns literária. Talvez Ibsen soubesse de antemão
diálogos. Esta última opção é o caso de a predisposição musical desta sua narrativa
uma das melhores gravações existentes, que Grieg, com pouca vontade, mas muito
sob a direção de Ole Kristian Ruud com a talento, soube potenciar com a sua música.
Orquestra Filarmónica de Bergen (cidade
natal de Grieg), em 2003, com um elenco
de cantores e atores, numa gravação que
se estende por quase duas horas (a peça
completa pode durar cinco), com diálogos
no norueguês original. Além desta versão
mais fiel ao registo musico-teatral, entre as
melhores gravações desta obra contam-se
três excelentes edições dedicadas à parte
musical original. A mais antiga remonta aos anos de 1955
a 1957, pela Royal Philharmonic Orchestra e a Beecham
Choral Society, sob a direção do histórico maestro inglês
Sir Thomas Beecham, editadas pela EMI/His Master’s
Voice e que se tornaram desde então uma referência,
ainda hoje de grande qualidade, através de sucessivas
remasterizações que trazem a lume a grande qualidade
dos intérpretes e da abordagem de Beecham. Outra
gravação da música na sua versão original (para orquestra,
voz solista e coro) que vale muito a pena ter em conta,
pertence também ao catálogo da EMI/His Master’s Voice,
desta feita com a soprano Lucia Popp e a Academy of
Saint Martin-in-the-Fields de Neville Marriner. Gravado
em 1983, este disco apresenta interpretações muito
interessantes na forma como Neville trata a textura musical
e o sentido dramático que lhe está associado ao longo de
toda a performance. Mais recentemente, em 2005, outra
gravação digna de referência, desta feita na Virgin Classics,
foi realizada pela Orquestra Nacional da Estónia, sob a

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Super-Homem ficientemente fixo para servir de norte-americana).
é uma figura pedra-de-toque moral idealizada Todos estes elemen-
tão familiar e adequadamente flexível para tos jogam um papel fulcral
de uma tão reflectir a evolução da própria no decorrer da longa vida
grande fatia sociedade americana (e, por da personagem, mas aquele
da população reflexo, global). Este contraste que certamente cumpre uma
terrestre que por vezes tende- entre ambas as dimensões da funcionalidade estruturante e é
mos a esquecer a fluidez da personagem esteve sempre responsável pela consistência da
personagem ao longo do tempo. presente, desde as suas aventu- sua dimensão simbólica é, sem
Apresentado ao público no já ras a lutar na Segunda Guerra dúvida, a dupla identidade Clark
lendário primeiro número da re- Mundial ao lado dos Aliados Kent/Super-Homem. A dupla
vista Action Comics, em Junho de à sua primeira polémica inter- identidade, ou melhor dizendo,
1938, a criação de Jerry Siegel e venção num estado estrangeiro a identidade secreta, não nasceu
Joe Shuster rapidamente assumiu do Médio Oriente, suspeito de com os super-heróis dos quais é
o estatuto simbólico de um mito fomentar actos terroristas nos tão característica, nem nas pulps
moderno. E, como é caracte- Estados Unidos (o fictício Qu- onde era predominante entre
rístico de todos os mitos desde rac) por mãos de Marv Wolfman os vigilantes mascarados que os
o começo dos tempos, possui e Jerry Ordway nos anos oitenta, precederam. Nem tão pouco
a capacidade de evoluir e de se até à ainda mais polémica renún- serviu sempre os mesmos fins.
adaptar às circunstâncias de cada cia à nacionalidade americana, Ulisses e Harum-al-Rashid, entre
época, de cada geração, assim em 2011, na historieta «The outros, recorreram também
renovando a sua carga simbólica. Incident», escrita por David S. a identidades falsas para se
Por vezes, o seu tremendo su- Goyer e com arte de Miguel manterem incógnitos entre os
cesso e popularidade, um pouco Sepulveda, na edição especial da meros figurantes da vida normal
por todo o mundo, é causa de Action Comics #900. de cada dia. Há no entanto duas
alguma confusão, sobretudo Por outro lado, o facto particularidades na identidade
entre aqueles que, com alguma de ser uma criação original secreta do Super-Homem que
razão, lhe procuram atribuir uma do período de nascimento e o distingue dos demais su-
dimensão crística que, no entan- consolidação dos comic books, leva per-heróis como Batman (Bruce
to, empobrece necessariamente frequentemente a que nos esque- Wayne) ou o Homem-Aranha
a força da personagem. No pro- çamos do quanto a personagem (Peter Parker). Ao contrário dos
cesso de transcendentalidade do tem ínsitos em si os elementos exemplos citados (típicos da es-
símbolo é inevitável que este se típicos (para não dizer arquetí- magadora maioria), a identidade
transforme numa abstracção, e picos) da Ficção Científica que secreta não surgiu apenas com
as abstracções – como qualquer preenchia as páginas das revistas a manifestação dos superpode-
escritor sabe – são a kryptonite da pulp da sua era: um alienígena res ou com a determinação em
tensão dramática. oriundo de outro planeta; um corrigir pessoalmente os males
Parece-me, por isso, bastan- herói sobre-humano; e a dupla da sociedade ou em vingar feitos
te mais útil recordar que, pese identidade, assim se inserindo anteriores, mas acompanhou a
embora a ambição (que não se sem sobressaltos na corrente da personagem desde o primeiro
encontrava no trabalho original cultura popular norte-americana momento. Na versão original,
de Siegel e Schuster, bastante que começava a ser moldada de Kal-El, ainda bebé e órfão dos
mais paroquial do que poste- forma indelével pelo crescente pais naturais Jor-L e Lora (todos
riores desenvolvimentos por fascínio da tecnologia, da in- estes elementos foram evoluindo
mãos diversas) de transformar venção e da Ciência1, e dos seus ao longo do tempo, de formas
o Super-Homem em um mito reflexos sombrios: os cientistas que não importa aqui precisar),
de relevância universal, este é loucos, as invasões extraterres- é acolhido num orfanato, onde,
essencialmente um símbolo dos tres e a destruição/perversão desconhecidos os seus poderes,
Estados Unidos da América, su- da sociedade humana (leia-se, lhe é atribuída a identidade de

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1

Clark Kent. Mais tarde, com a do Super-Homem, a identidade como uma necessidade do gé-
publicação do primeiro número de Clark Kent adquire uma nero, como algo habitual nesse
da revista Superman em 1940, função estruturante sobre a tipo de narrativa: em suma, um
são introduzidos os Kent, que personalidade do super-herói, clichê. Prova isso o facto de a
encontram o foguete em que assumindo-se como a verdadeira sua justificação inicial ser a pos-
o Super-Homem foi enviado identidade. A revelação de que sibilidade de o Super-Homem,
à Terra e resolvem adoptar a ele é na verdade um sobreviven- trabalhando como jornalista, ter
criança, a quem chamam Clark, te da destruição de Krypton é conhecimento imediato e poder
criando-a como se fosse filho encarada pelo Super-Homem acorrer rapidamente a qualquer
natural de ambos. como uma perda da sua identi- emergência (por que razão não
É esta dicotomia entre as dade, uma perda da sua huma- é um polícia ou um bombeiro, é
identidades da personagem nidade. Na verdade, a tensão algo que nunca é explicado, mas
que lhe confere uma inusitada é subtil, mas sempre presente, que pode ser compreendido por
ressonância mítica e ajuda a manifestando-se por vezes em mera idealização do papel dos
sustentar a leitura crística que inesperadas falas do persona- jornalistas como intelectuais,
dele por vezes é feita (sobre- gem, que se refere a Clark Kent perfilhada por Siegel e Schus-
tudo por aqueles que atribuem como «my true identity», no ter). No entanto, não é preciso
especial relevo ao facto de que a primeiro número do segundo vasculhar muito na memória das
primeira Sra. Kent, em 1940, se volume da revista Superman pulp para encontrar um exemplo
chamava Mary, antes de passar (Janeiro de 1987), e como «my do que digo: Doc Savage, um
por Sarah na novela de 1942 de civilian identity» no número oito dos mais populares personagens
George Lowther, até se fixar na da mesma publicação (Agosto de todos os tempos, apodado
mais familiar e predominante de 1987). The Man of Bronze, antes de o
Martha). E foi essa mesma dico- É também esta dinâmica Super-Homem ser o Homem
tomia que conferiu inesperada entre as duas identidades que de Aço, e claramente uma das
riqueza à versão da personagem realça a segunda particularida- fontes de inspiração de Siegel
apresentada por John Byrne na de da mesma: o facto de que o e Schuster, juntamente com
mini-série Superman: The Man Super-Homem não precisa de o John Carter de Edgar Rice
of Steel (1986), que influenciou uma identidade secreta. Nos Burroughs e o Popeye dos filmes
fortemente a evolução futura da primórdios da série, a identidade animados dos estúdios Max
personagem. Nessa nova visão secreta parece ser imposta quase Fleischer (que deixariam uma

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marca indelével na história das (um tema explorado por Elliot que os pais naturais o abraçam
adaptações de Super-Homem), S! Maggin em «Must There Be uma última vez antes da destrui-
também não necessitava de a Superman?», no n.º 247 da ção de Krypton.
uma identidade secreta, embora revista Superman, em Janeiro É no intervalo desses dois
não fosse raro recorrer a vários de 1972). Seja por que motivo momentos que Kal-El passa a
disfarces. for – e eles foram variando de ser Clark Kent, o alienígena pas-
O que o distinguia dos criador para criador – a dupla sa a ser humano, e as duas cultu-
outros vigilantes mascarados era identidade do Super-Homem ras (a cultura altamente científica
o facto de possuir uma força e sublinha um facto essencial: a e aristocrática de Krypton, e
uma inteligência sobre-humanas humanização do alienígena – os a simples cultura grassroots do
(bem como uma inesgotável for- superpoderes do Super-Ho- midwest americano) se unem num
tuna), que tornavam totalmente mem são fruto da sua origem símbolo prenhe de significado.
desnecessário proteger a sua kryptoniana, mas o facto de os O Super-Homem é um
real identidade de Clark Savage colocar ao serviço do Bem (por habitante do universo dos comics,
(o nome é também significati- muito meloso que o clichê soe) onde a sua evolução tem sido
vo). Se faço este breve detour, é e da Humanidade deve-se à sua mais rica e variável e em que
apenas para retomar o fio inicial, educação nos simples valores esta dualidade tem sido explo-
observando que, tal como Doc americanos (ou como nos infor- rada de forma quase exaustiva.
Savage, o Super-Homem não ca- ma o genérico da série de que Os leitores habituais dos vários
recia de ocultar a sua identidade. aqui cuidamos: «justice, freedom, títulos que registam a evolução
Poder-se-ia dizer que, se o faz, and the American way») propor- do Super-Homem conseguem
é apenas para se «sentir» mais cionada pelos Kent. É isso que, identificar claramente quais os
humano, mais parte do melting na minha opinião, reveste de períodos que mais os marcaram
pot de culturas que conforma os tanto significado a dualidade e que correspondem, de grosso
Estados Unidos, mas creio que da personagem e o momen- modo, à concreta interpretação
seria mais válido concluir que to – sempre repetido em cada do Super-Homem que têm por
o faz para poupar ao homem adaptação da personagem – em «verdadeira», seja pela influência
comum a presença constante de que o casal Kent, após resgatar dos sucessivos editores como
um ser superior, de um anjo da o infante alienígena do foguete Mort Weisinger, Julius Schwartz,
guarda, cuja omnipresença pode- que o trouxe à Terra, espelha o Jenette Kahn ou Eddie Ber-
ria ser verdadeiramente castrante prévio momento narrativo em ganza, seja pela influência dos

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respectivos autores e ilustra- luminoso, e resistindo à tentação, turalmente mais cínica e, como
dores, desde Siegel e Schuster, mesmo nos momentos mais tal, mais exigente em termos
passando por Dan Schwarz, sombrios, de se deixar arrastar de suspensão da descrença, o
Carmine Infantino, John Byrne, para um visual mais negro, como Super-Homem continua a ser
Geoff Johns, Alan Moore até o que Burton e Nolan dese- uma personagem sem grandes
à mais recente encarnação por nharam mais tarde – de forma dúvidas morais, o que confere
Grant Morrison nos New 52. adequada e brilhante – para os grande intensidade dramática à
No que toca ao audiovisual, po- seus respectivos Batman. Uma sua experiência de vida de um
rém, onde a personagem chega lição que Bryan Singer não in- humano comum ao perder os
a um público muito mais amplo tegrou no seu falhado Superman seus poderes em Superman II. De
e abrangente, alheio à intrinca- Returns (2006), tentando inserir o certa forma, é como se nunca
da evolução da personagem ao Super-Homem num universo de tivesse perdido a inocência ao
longo destes 81 anos, a situação «realismo quotidiano» seme- sair do Éden – ou, mais correc-
é distinta e apresenta dois picos lhante ao que inaugurara no seu tamente, do idealizado Kansas
de identificação que podemos díptico dos X-Men (2000-2003). rural.
considerar verdadeiramente Batman é uma criatura da noite, Ao criar essa visão edéni-
geracionais. tal como Super-Homem é uma ca do Kansas rural, saído das
Para todos aqueles nasci- criatura do sol (literalmente, pois ilustrações de Norman Rockwell
dos a partir de 1970, o único é ao sol que vai buscar os seus ou Andrew Wyeth, Donner,

Super-Homem que regista, e poderes), e é esse contraste que atribui um papel decisivo à
contra o qual são medidos todos gera uma oposição que se pode infância e adolescência de
os outros, é o Superman (1978) de considerar verdadeiramente Clark Kent, sublinhando a sua
Richard Donner, que podemos dialéctica entre ambos, uma opo- influência na humanização do
considerar verdadeiramente sição brilhantemente explorada homem de aço, e sublinhando
definitivo. No díptico que forma na série de comics Superman/ o quão terra-a-terra (ou o quão
com Superman II (1980), cujas Batman (2003-2011), particular- americano) é a figura crística
cenas de acção foram dirigidas mente nos números escritos por que muitos veem nele.2 Foi de
por Richard Lester, a quem foi Jeph Loeb. tal forma inspirada a realização
atribuído o crédito da realiza- Tal como Loeb, Donner deste segmento do filme, que
ção, Donner apresenta-nos uma percebeu que, por muito lame- nele encontramos as raízes da
interpretação do Super-Homem, chas que possa parecer, uma bem-sucedida série Smallville
encarnado na escolha inspirada das características essenciais (2002-2011), que estende aqueles
do actor Christopher Reeve, que do Super-Homem é a sua inata vinte minutos de filme até às
realmente faz jus ao potencial da bondade. O mesmo é dizer que dez temporadas. Ao dar vida
personagem e cristaliza a visão apesar de para todos os efeitos o de forma tão fiel a um símbolo
dela que venho expondo. Don- Super-Homem ser praticamente tão poderoso, os filmes da era
ner adopta as cores vivas do pulp, omnipotente, ainda assim não se Donner transcendem in essentia
compreendendo como poucos deixa corromper pelo poder que as incongruências do argumento
que o Super-Homem é um herói detém. Mesmo numa época na- ou os elementos mais difíceis

76
de engolir, como o final do primeiro nagem, sob o pseudónimo Richard a série. Apropriadamente, o primeiro
filme que, em qualquer outra adaptação, Fielding e realizado por Lee Sholem, episódio conta a origem do Super-Ho-
seria necessariamente considerado de estreou em 1951 com o título Superman mem, seguindo praticamente passo a
uma infantilidade absurda. Uma prova and the Mole Men, sendo posteriormente passo (para não dizer plano a plano) o
inelutável de que Donner não deixou integrado na série como o episódio primeiro episódio da série de 1948, «Su-
que o filme fosse dominado pelos em duas partes The Unknown People. perman Comes to Earth» e, com uma
(magníficos) efeitos especiais, centran- Por critérios actuais, o filme é tosco e duração de menos de 30 minutos, é de
do a narrativa, de dimensões épicas, na mal-amanhado, a mensagem simplista, um poder de concisão exemplar, acom-
relação entre as personagens. e a ideia pouco acima do nível pulpes- panhando Kal-El desde os últimos
Mas para aqueles que cresceram co que caracterizava o seriado típico dias do planeta Krypton até à primeira
antes de Christopher Reeve envergar a de matinée. A agravar o problema, os reportagem de Clark Kent no Daily
capa do Super-Homem, o ícone era ou- efeitos especiais eram pobres, recorren- Planet, na qual baptiza o misterioso
tro, e igualmente duradouro, pese em- do ao mesmo método que o reputado homem voador como «Super-Homem»
bora nunca tenha desfrutado dos meios forreta Sam Katzman utilizara nas (em quase todas as posteriores versões
técnicos ou financeiros que tornaram séries que produzira, ou seja, a intro- da personagem, seria Lois Lane a ter as
Superman um filme superlativo. dução de um tosco desenho animado honras de baptismo).
Quando George Reeves se es- para substituir o actor nas cenas em Para os espectadores que se re-
treou como um dos mais populares que o Super-Homem tem de voar. O cordassem de ver o seriado no cine-
Super-Homens de todos os tempos, in- que salvava o filme, sem dúvida, era o ma, certamente terá sido interessante

terpretando a personagem em 104 epi- actor que dava vida ao Super-Homem, apreciar a evolução do Krypton de
sódios da série Adventures of Superman, a e sobretudo a Clark Kent. George vestes clássicas, quase romanas de 1948,
personagem tinha já aparecido em dois Reeves não tinha a elegância de Kirk para a estética retrofuturista, invoca-
seriados de 15 episódios cada, Superman Alyn (que fora bailarino), mas tal como dora daqueloutros serials, Flash Gordon
(1948) e Atom Man vs. Superman (1950), Reeve três décadas depois era alguém (1938-1940) e Buck Rogers (1939) da mo-
onde fora interpretado por Kirk Alyn. talhado para encarnar a personagem, derna versão de 1953. Mas certamente
No entanto, a era dourada dos seriados tendo definido a forma como esta seria mais interessante, no seguimento do
estava nos estertores finais, suplantada vista e imaginada por uma geração. que venho dizendo, teria sido desfrutar
pelos novos formatos introduzidos A série, sem encontrar um pa- do ambiente na quinta dos Kent, que
pela televisão e pelas alterações do trocinador, apenas começou a ser aqui recebem um desenvolvimento que
mercado cinematográfico do pós-guer- transmitida em 1953, quase dois anos os leva bem além dos meros figurantes
ra. Foi por isso para a televisão que os depois de a primeira temporada de 26 que tinham sido cinco anos antes. O de-
decisores da DC Comics se voltaram, episódios ter sido produzida, e a sua senvolvimento do próprio Clark Kent,
apostando na criação de um episó- estreia, finalmente patrocinada pelos desde a infância até à idade adulta, pri-
dio-piloto, com a duração habitual de cereais Kellogs, deu-se com o episódio meiro queixoso de que não se insere no
um filme série-B (cerca de uma hora) «Superman on Earth», igualmente escri- grupo de amigos da escola por ser mais
passível de ser distribuído em salas de to por Richard Fielding e realizado por forte do que todos eles, depois confian-
cinema. O filme, escrito por Robert Thomas (Tommy) Carr, que realizara te nas suas capacidades antes de partir
Maxwell, que desde 1939 era o respon- já o seriado de 1948. Carr seria um para Metropolis, é telegrafado de forma
sável pela comercialização da perso- dos nomes habituais ao longo de toda eficaz e sempre através do reflexo do

77
incidente, bate Lois Lane nesta 1
Confesso que eu próprio tive de ser Bibliografia Sumária:
recordado do facto por Phil Hardy, na sua BYRNE, John &
corrida e, quando esta lhe per-
sempre relevante The Aurum Film Encyclo- GIORDANO, Dick
gunta como conseguiu lá chegar pedia: Science Fiction.
– Superman: The Man
primeiro que eles, responde com 2
Curiosamente, no terceiro número da
of Steel,l n.º 01-06, DC
a indisfarçável bonomia, «Maybe recente mini-série Flashpointt (Setembro
de 2011, argumento de Geoff Johns e Comics, Nova Iorque,
I am a superman, Miss Lane…» 1986.
arte de Andy Kubert), cuja trama decorre
Phyllis Coates, que reto- numa realidade alternativa ao normal- BYRNE, John –
ma o papel que desempenhara mente denominado DCU, Barry Allen, «Heart of Stone»,
em Superman and the Mole Men, o Flash, tranquiliza um desconfiado Bat- Superman – Vol. 2, 2 n.º
man/Thomas Wayne, quanto à natureza
substituindo Noel Neill (que 01, DC Comics, Nova
do herói de Krypton, que nessa realidade
por sua vez a viria a substituir alternativa se encontra confinado desde o Iorque, 1986.
a partir da segunda temporada nascimento numa cela sob a luz de um sol BYRNE, John – «Fu-
da série), compõe uma Lois vermelho: «And I can say with all confi- ture Shock», Superman
dence that no matter where he was raised, – Vol. 22, n.º 08, DC
Lane inteligente, inquisitiva e
he’s a good person» (ênfase no original), o Comics, Nova Iorque,
competitiva, um claro protótipo que manifestamente vai contra a tese que 1987.
da interpretação praticamente venho propondo. No entanto, não me
DANIELS, Les –
definitiva de Margot Kidder nos parece despropositado encarar este desvio
Superman: The Complete
como uma cedência à facilitação narrativa,
filmes de Donner/Lester. Ape- History, Chronicle Books,s
seu desenvolvimento no próprio pois no contexto Allen sempre conheceu
nas Teri Hatcher terá sido mais um Super-Homem de coração puro. San Francisco, 1998.
casal, desfeito pela morte de
popular do que Kidder no papel DELELÉE, Cedric
Eben Kent (Tom Fadden) de
de Lois, na série de culto Lois – «DC Lache ses
ataque cardíaco, no vigésimo
& Clark: The New Adventures Of Supermen», Mad
quinto aniversário do dia em que
Superman (1993-1997). Coates e Movies Hors-Serie #21:
encontraram Clark no foguete Le Guide Complet
Reeves funcionam perfeitamente
que o trouxe de Krypton. des Super-Heros au
em equipa, e Jack Larson, no
A realização não está isenta Cinema,a Julho de 2013,
papel de Jimmy Olsen, obteria 1
de falhas e opções de duvidosa pp. 24-31.
um inesperado sucesso (talvez já
eficácia: quando Clark final- FULTON, Roger –
previsível se atentarmos que o
mente chega a Metropolis, o The Encyclopedia of TV
segundo episódio da série, «The Science Fiction, Boxtree
choque provocado pela colossal
Haunted Lighthouse», é pratica- Limited,
d Londres, 1997.
metrópole e a sensação de desa-
mente uma aventura de Jimmy GOLDIN, James
dequação do agora duplamente
Olsen), influenciando de forma Grant & SMITH,
desenraizado Clark/Super-Ho-
determinante o rumo da perso- Steven (argumento)
mem é transmitida pela voz off
nagem nos próprios comics, onde & BURNS, Kevin
que acompanha a caminhada de (realizador) – Look, Up
viria a receber um título próprio,
Clark, que claramente não sai in the Sky! The Amazing
Superman’s Pal, Jimmy Olsen.
do mesmo sítio, por entre uma Story of Superman,
«Superman on Earth» é o
montagem em sobreposição Warner Home Video,
primeiro episódio das aventuras
de vários edifícios. No entanto, DVD-R2, 2006.
de um super-herói indestrutível
quando pousa a mala para colo- HARDY, Phill – The
que George Reeves soube tornar Aurum Film Encyclope-
car os óculos que o disfarçarão
surpreendentemente humano. A dia: Science Fiction, 1995.
aos olhos dos meros mortais, o
personagem sobreviveu ao actor, JOHNS, Geoff &
telespectador fica realmente con-
que viria a morrer em circuns- KUBERT, Andy –
vencido de que um par de ócu-
tâncias não totalmente explica- Flashpoint,t n.º 03, DC
los e um chapéu são realmente
das (oficialmente, suicídio), mas Comics, Nova Iorque,
bastantes para que o Homem de 2011.
o actor transcendeu momen-
Aço não seja reconhecido. TOULLEC, Marc –
taneamente a personagem, de
No entanto, apesar de neste «Baptemes de l’Air»,
uma forma que apenas Reeve
primeiro episódio o Super-Ho- Mad Movies Hors-Serie
logrou igualar três décadas mais
mem ter uma estreia modesta, li- #21: Le Guide Complet
tarde. Os títulos de jornal que
mitando-se a salvar um operário des Super-Heros au
anunciaram a sua morte esta- Cinema,a Julho de 2013,
dependurado de um blimp, Clark
vam revestidos de involuntária pp. 11-15.
Kent conquista rapidamente o
ironia ao proclamarem «TV’s TOULLEC, Marc
espectador na forma como em
Superman Kills Self». Sessenta – «Les Super-Heros
pouco menos de quatro minu-
anos depois da estreia da série, au Salon», Mad
tos interrompe uma reunião de
George Reeves continua a viver Movies Hors-Serie #21:
Perry White (John Hamilton) Le Guide Complet
na pele do Super-Homem, como
com Lois Lane e Jimmy Olsen des Super-Heros au
avatar momentâneo de um mito
(Jack Larson), após caminhar Cinema,a Julho de 2013,
moderno e, enquanto tal, é parte
calmamente pelo parapeito exte- pp. 16-21
integrante de todos nós.
rior do vigésimo oitavo andar do TYLEY, Jodie – «Sci-Fi
edifício, logrando que o editor se Icon: Superman»,
comprometesse a contratá-lo se SciFi Now, w n.º 58, 2011,
lhe trouxesse uma exclusiva do pp. 110-113.

78
Desde jogos de estratégia, jogos https://www.fnac.pt/O-Homem-que-Mor- Nível de dificuldade: fácil
de festa a jogos temáticos… a deu-o-Cao-Creative-Toys-Jogos-de-Socieda- Idade recomendada: + 17 anos
FNAC tem o jogo de tabuleiro de-Jogo-de-Tabuleiro/a6966630
ideal para cada grupo de amigos! https://www.fnac.pt/Emoji-Par-
ty-Player-Ten-Jogos-de-Sociedade-Jo-
go-de-Tabuleiro/a6841690

Emoji Party é um jogo


Para quem gosta da rubrica «O de festa bem-humorado
Homem que Mordeu o Cão» para amigos, que pode
de Nuno Markl, de certeza que ser aprendido em um
vai adorar o jogo que o próprio minuto e jogado em
criou! menos de vinte. Pick Your Poi-
Neste jogo de festa, os jogado- Combina cartões de son é um jogo em
res partem em busca de histórias Emoji e ganha a corrida, que se responde
bizarras para contar, à hora se ficares sem cartões anonimamente às
certa, e fazer rir os seus ouvin- perdes e tens de agarrar perguntas «prefe-
tes. Põe a criatividade à prova a beringela rapidamente rias….?» que são
e conta a melhor história — as para te manteres no definidas pelos
possibilidades são infinitas e jogo! teus amigos.
nunca mais vais precisar de um Quando todos revelarem qual o
desbloqueador de conversa! cenário que preferiam, vais ficarr
N.º de jogadores: 4 a 10 a descobrir quem concorda con--
Duração do jogo: 30 a 60 mi- tigo e quem preferia viver com
N.º de jogadores: 2 a 6 nutos os pais para o resto da vida ou
Duração do jogo: 30 a 120 mi- viver para sempre sem música!
nutos
Nível de dificuldade: fácil
Idade recomendada: + 16 anos N.º de jogadores: 4 a 10
Duração do jogo: 30 a 60 mi-
nutos
Nível de dificuldade: fácil
Idade recomendada: + 17 anos

https://www.fnac.pt/Pick-Your-Poison-Edi-
cao-Familia-Player-Ten-Jogos-de-Socieda-
de-Jogo-de-Tabuleiro/a6841521

79
ding kittens», que ao «explodir» faz
com que esse jogador perca o jogo — a
menos que ele tenha a carta «Defuse», N.º de jogadores:
podendo desarmar o «Exploding kit- 4 a 10
tens» com laser, cócegas, entre outras Duração do jogo: 30
coisas. Todas as outras cartas são usa- a 60 minutos
das para mover, mitigar ou evitar os de:
Nível de dificuldade:
«Exploding Kittens». fácil
Idade recomendada:da:
+ 17 anos
N.º de jogadores: 2 a 5
Duração do jogo: 15 minutos https://www.fnac.pt/
Nível de dificuldade: médio The-Voting-Game-Edi-
Idade recomendada: + 7 anos cao-Familia-Player-Ten-Jo-
gos-de-Sociedade-Jogo-de-Tabuleiro/a6841523
https://www.fnac.pt/Exploding-Kittens-Original-Edi-
tion-Divercentro-Jogos-de-Sociedade-Jogos-de-Cartas/
a1006703

És fã de Friends? Nesta edição de MO-


Cortex Challenge é um desafio de Party & Co Extreme 3.0 é composto NOPOLY, vais poder conviver com as
cartas que testa a memória, a cognição por quatro categorias temáticas — Art personagens de uma das mais aprecia-
e a perceção sensorial dos jogadores e & Co, Psycho & Co, Show & Co e das sitcoms de todos os tempos!
que dura apenas 15 minutos, aproxima- Quiz & Co. — cada uma delas subdi- Vai ser este «O Episódio em que»...
damente! vidida em três provas distintas, num ganhas o barco do Joey ou o desca-
Mas não fica por aqui: introduz tam- total de 12 provas que asseguram uma potável da Monica? Ou vais dar uma
bém cartas com texturas, adicionando enorme diversão! volta no emblemático táxi da Phoebe?
deste modo um elemento Joga-se em equipas e o Se isto tudo é novidade para ti, prepa-
novo, muitas vezes ne- objetivo é cumprir pro- ra-te para seres «bamboozled» quando
gligenciado e que vai dar vas, como fazer mímica mergulhares de cabeça no mundo
um toque muito especial ou cantar e desenhar, do MONOPOLY Friends!
à partida. que permitam ganhar os
Amendoins necessários
para completar a Carta
N.º de jogadores: 2 a 6 Objetivo.
Duração do jogo: 15 mi-
nutos
Nível de dificuldade: fácil N.º de jogadores: 2 a 4
Idade recomendada: + 8 Duração do jogo: 30 mi-
anos nutos
Nível de dificuldade: fácil
https://www.fnac.pt/Cortex-Challenge-Captain-Maca- Idade recomendada: + 8 anos
que-Jogos-de-Sociedade-Jogos-de-Cartas/a5437711
https://www.fnac.pt/Party-et-Company-Extre-
me-3-0-Jogos-de-Sociedade-Jogo-de-Tabuleiro/ N.º de jogadores: 2 a 6
a704229 Duração do jogo: 60 a 120 minutos
Nível de dificuldade: fácil
Exploding Kittens é um jogo de es- Idade recomendada: + 8 anos
tratégia e, essencialmente, uma roleta
russa. Os jogadores têm de tirar cartas,
até que saia a alguém a carta «Explo-

The Voting Game — Em quem vais


votar? — desvenda a verdade hilariante
por detrás das tuas amizades e até da-
queles que ainda não conheces bem —
mas vais passar a conhecer!
Vota anonimamente no jogador que é
descrito pela questão em cada rodada.
Conta os votos e ri-te à medida que
as personalidades dos teus amigos são
reveladas!

80
distintas como as de avós e netos. Outro exemplo disso
A MEBO Games nasceu em 2010 com o objectivo de ser são a nova geração dos chamados party games, jogos muito
uma editora de jogos de tabuleiro de referência nacional e interactivos e focados nos jogadores, como por exemplo o
internacional. E porque percebemos que havia uma opor- Passa o Desenho e o EKIPAS, onde a diversão e as garga-
tunidade no mercado português de criar em português lhadas entre amigos e família são o principal objectivo do
e com autores portugueses jogos de tabuleiro modernos jogo e não tanto a competição.
originais e de muita qualidade, acompanhando o que de Internacional - Mercados maduros onde a qualida-
melhor acontecia no estrangeiro. de é muita alta e a
concorrência é feroz.
Por exemplo, na Fei-
ra de Essen na Ale-
Portugal - Mercado ainda pouco maduro, onde parte manha, que é a maior
muito significativa do grande público pensa que os jogos feira do mundo de
são produtos de má qualidade, apenas para crianças e de jogos de tabuleiro
baixo custo. Não existe uma valorização da qualidade do onde marcamos pre-
produto. Mas essa percepção está a mudar rapidamente. sença, e que contou
Para isso contribui muito os jogos familiares, como por o ano passado com
exemplo Caravelas e A Nossa Casa, que criam novos fãs em 180.000 visitantes,
jogos de tabuleiro ao chegar à casa dos portugueses, pois são apresentados
são jogos rápidos (acabam em menos de uma hora) e com mais de 1000 jogos
regras simples, mas que surpreendem com os desafios de tabuleiro moder-
que colocam aos jogadores de idades que podem ser tão nos por ano.

81
Porque temos produtos originais de qualidade, tanto em
Na área do retalho é difícil entrar nas grandes superfícies
termos mecânicos e temáticos, mas também na qualidade
e nem sempre estas consideram os jogos de tabuleiro
de produção. Ser muito profissional a todos os níveis,
como sendo uma categoria especifica, tratando-o por
mas em especial nas relações que se estabelecem com os
vezes como um mero brinquedo.
parceiros internacionais é um factor fundamental.
No grande público: explicar o que são os jogos
Podemos dar o exemplo do nosso jogo Viral,
de tabuleiro modernos e o que mudou para
que já foi editado em sete idiomas diferentes,
melhor (desde os velhinhos Jogos da Glória e
isso é conseguido trabalhando com diversas
Monopólios).

Empresa portuguesa que cria e produz os seus


próprios jogos e os distribui no mundo inteiro.
Para isso ser possível temos de constantemente
fazer com que os nossos produtos sejam de
alta qualidade e originalidade.

82
82
editoras internacionais de referência, que para além da
tradução e adaptação do jogo a um dado país tratam da
distribuição do mesmo.

Pensar num tema original e desenvolver mecânicas ori-


ginais e adequadas ao público a que se destina. E depois
testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar,
testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, tes- Para mim não existe isso dos
tar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, melhores jogos de sempre. Existem
testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, jogos muito bem-feitos e outros mal-
testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, tes- feitos. Dentro dos bem-feitos, depende o
tar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, que me apetece jogar (jogo rápido, pesado,
testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, testar, leve, party game, etc). E existe uma gama enorme
testar, testar... de jogos brilhantes que não são simplesmente compará-
NUNCA ter medo de rasgar, fazer de novo, alterar. veis. Depende da sua categoria e se é pertinente usá-lo
O protótipo deve ser o mais simples possível, apenas em determinada altura.
o necessário para ser compreensível para jogar.

Crescer: vender mais e melhores jogos. Isso obriga-nos a


chegar a cada vez mais público e a ter sempre os melho-
res produtos.

Os próximos três que vamos lançar :-), só evoluímos se


pensarmos assim. O próximo tem de ser sempre melhor
que o último. Este ano com o lançamento de três jogos
de nossa criação: Carrossel, Porto e Estoril 1942 Super Box,
foi um ano muito exigente internamente, mas já estamos
a trabalhar há mais de um ano naqueles que vão ser os
lançamentos para o ano de 2020, de forma a continuar-
mos a surpreender quem já nos conhece, mas também a
criar novos públicos neste fantástico mundo dos jogos de
tabuleiro.

83
84
udo começou, em Julho expandiu, alterou, amassou e regou-o,
de 2012, com um pe- elevando algo que se lê em 5 minutos
queno texto escrito num a uma peça de teatro de 50 minutos. O
blogue escondido num Jardim Secreto da D. Jacinta, interpretado
recanto insignificante da pela Inês e por Pedro Vieira, tinha mais
internet. «O Sr. Jacinto era um homem personagens, uma narrativa diferente e
triste e cinzento que vivia numa cidade utilizava agora a amizade improvável
triste e cinzenta», era assim que abria. entre uma senhora idosa (D. Jacinta) e
Ninguém adivinhava que esta seria uma criança sua vizinha para abordar
apenas a primeira de várias encarnações alguns dos temas humanistas sugeridos
deste personagem e que o mesmo vi- no conto original. Apesar de todas as
ria a fazer parte da vida de tanta gente. diferenças, mantinha-se o contexto so-
Desde então, o Jacinto já foi Jacinta, já cial semi-distópico de uma cidade sem
deu origem a uma peça de teatro e ago- plantas e, subentendidamente, o tema
ra, depois de um longo mas persistente do desafio à autoridade.
processo, está prestes a ganhar vida no Com tempo e recursos muitíssimo
ecrã, na forma de animação de volumes. escassos, apercebemo-nos já durante
O conto original, «O Jardim Se- os ensaios finais que era preciso mais
creto do Sr. Jacinto», como é comum um elemento na equipa técnica. Qual
nestas coisas de escritores, surgiu como Super-Homem, a surgir no último mo-
uma reacção a eventos do mundo real. mento para salvar o dia, entra Bruno
Mais concretamente, foi escrito poucos Caetano, amigo recente e, sem nosso
dias depois de uma das inúmeras ma- conhecimento na altura, verdadeiro
nifestações populares durante o perío- portento da animação stop motion.
do conturbado da Troika. É um texto Durante dois dias integrou a equi-
reactivo (não confundir com reaccioná- pa da D. Jacinta e, no processo, apaixo-
rio) em que é retratada, de forma muito nou-se também pelo personagem e pe-
superficial, uma sociedade onde a eco- las ideias entrelaçadas no conto.
nomia está acima de tudo e em que, na O Bruno viu no universo do Sr. Ja-
implacável procura pelo crescimento, o cinto as raízes para o desenvolvimento
bom senso e a razão foram devorados de um projeto de animação no qual po-
pela ganância e pela autoridade des- deria também explorar algumas das suas
medida. Uma das consequências dessa próprias preocupações. «Gostei do lado
sofreguidão é a proibição de plantas na familiar e, ao mesmo tempo, da mensa-
cidade. gem ecológica por trás da história», re-
Neste cenário, o Sr. Jacinto repre- corda. «Gostei da ideia de ser um futuro
senta o cidadão comum, insatisfeito distópico em que a grande maioria das
com o estado das coisas, mas receoso pessoas se esqueceu do passado. Essa
de enfrentar abertamente a autorida- distopia interessou-me bastante porque
de. Em vez disso, fá-lo com discri- remete para a ficção científica. Além
ção, mantendo em sua casa uma sala disso, a história reflecte várias realidades
repleta de vasos de plantas que trata que estão cada vez mais presentes na
com carinho e reverência. Ora, natu- sociedade.»
ralmente, uma infracção destas não é
tolerada e as coisas não correm bem
para o Jacinto. No entanto, no final do
conto, uma revelação (o incontornável
twist) recompensa a sua rebeldia.
O conto foi escrito por impulso, uando o Bruno perguntou se po-
num ápice e sem grande reflexão in- dia usar o conto como base para
telectual prévia (pelo menos não de uma curta de animação, não hesitei. A
forma consciente). Escrevi-o, publi- experiência da D. Jacinta tinha sido uma
quei-o no blogue e não pensei mais experiência tão gratificante que não po-
no assunto. Inesperadamente, o con- dia deixar de ficar entusiasmado com a
to ganhou vida própria. ideia de ver outros frutos a brotar desta
Desafiada a criar um espectáculo semente.
infantil para apresentar no Natal desse A criação da primeira versão do
mesmo ano, Inês Tarouca, actriz, bai- argumento foi estranhamente rápida e
larina e encenadora na já extinta com- fluida (mas, convém dizer, até ao final
panhia Teatro Carbono (e, em nome da produção, passámos por 12 versões).
da transparência, minha companheira Com apenas um ou dois encontros em
de vida há 13 anos), pegou no texto e cafés em 2013, encontrámos os con-
levou-o ao teatro. No processo, cortou, ceitos principais do projecto, definimos

85
quais seriam as diferenças e semelhanças com as encarnações gundo de filme tem 24 frames, mas só é animado a cada duas
anteriores e estruturámos um enredo base sobre o qual iría- fotografias. É o que no ofício costumam chamar «animar
mos trabalhar de seguida. a dois». Portanto, o animador tem de manipular o objeto
Mais uma vez, o mundo do Sr. Jacinto era desconstruído, ou personagem na posição desejada, tirar duas fotografias,
amassado e esculpido com nova forma e, desta vez, quase manipular novamente, tirar duas fotografias, manipular, fo-
nada escapava. Nem as personagens secundárias, nem a na- tografar, manipular, etc., 12 vezes por cada segundo de ani-
tureza da infracção do Jacinto, nem a revelação final ficaram mação. Algumas produções animam «a uns», ou seja, todos
como estavam. Mantinha-se o Jacinto, a proibição das plantas, os 24 frames de cada segundo de filme são animados. Os re-
a representação da autoridade numa luz pouco lisonjeira e sultados são naturalmente diferentes (não necessariamente
um semblante da revelação final. Na visão do Bruno, o tema melhores ou piores), tal como são as horas de trabalho e os
central do filme seria o ambientalismo que estava tangencial- orçamentos necessários. Por exemplo, a Aardman Anima-
mente subjacente no conto original. tions (estúdio que produziu A Fuga das Galinhas, A Ovelha
«Queria que estivessem representados no filme o proble- Choné e Wallace & Gromit, entre muitos outros) anima sem-
ma ecológico, a falta de preocupação das pessoas em manter pre «a dois» e os Estúdios Laika (Coraline, Kubo e as Duas
o mundo saudável, o lado autoritário do estado (o controlo Cordas) anima habitualmente «a uns». Dois estilos muito di-
das pessoas e do que elas fazem) e também as diferenças so- ferentes, mas igualmente maravilhosos.
ciais entre ricos e pobres», explica o Bruno. «E queria também «A maior parte das pessoas não consegue consciente-
que a cidade onde se passa tivesse uma forte influência por- mente notar a diferença», explica o Bruno. «Animar “a uns”
tuguesa/lisboeta.» permite que certas animações sejam mais fluidas, sejam mais
Os detalhes mudaram de tal maneira que o título origi- pormenorizadas a nível de movimento. Mas isso não quer di-
nal já não se adequava, embora O Jardim Secreto do Sr. Jacinto zer que a animação “a dois” seja pouco fluida. Em grande
se tenha mantido como título de trabalho durante bastante parte, isso depende da qualidade do animador. Uma pessoa
tempo. Anos mais tarde, já em plena produção e depois de com pouca experiência vai com certeza fazer um pior traba-
muito tempo a puxar pela cabeça, o Bruno acordou a meio lho se animar “a uns” do que se animar “a dois”. Não é fácil

da noite com um momento Eureka!... em inglês. O filme iria animar “a uns”. Além disso, a animação “a dois” tem uma
chamar-se The Peculiar Crime of Oddball Mr. Jay. Logo, em por- cadência um pouco diferente. É um estilo que está bastante
tuguês seria O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto. associado ao stop motion mais antigo.»
Logo nas primeiras reuniões/lanches de trabalho, o Bru- Os bonecos são construídos em várias camadas. Na base,
no sublinhou que não queria diálogos. Apesar de um canto está um esqueleto com rótulas, arames e varões metálicos que
do meu cérebro lamentar não ter diálogos para escrever, com- é revestido com os mais diversos materiais. Segundo o Bruno,
preendia que esta era a decisão certa. A principal vantagem, «no caso deste filme, usámos silicone, esponja, tecidos (para
aquela que levou o Bruno a fazer esta escolha, é que desta a roupa) e alguns elementos de grés (como a cabeça dos bo-
forma o filme pode ser entendido em qualquer língua. Os necos, por exemplo). A nível de cenários e adereços foi tudo
temas são universais, logo a comunicação deve ser o mais uni- construído usando madeira como base, aplicando por cima
versal possível. materiais para dar textura, sempre tendo em atenção a escala
Indirectamente, uma segunda vantagem é que simplifica da construção, de forma a haver uma boa integração entre
bastante o processo de animação. todo o universo do filme: os personagens, os adereços, os
Esta será então uma boa altura para explicar àqueles que cenários, etc.»
não sabem (e para relembrar os que sabem), sucintamente, Ora, um dos desafios desta técnica (na verdade, de qual-
como funciona a animação stop motion, ou animação de vo- quer forma de animação) é a sincronização dos diálogos com
lumes. o movimento das personagens. Não só das suas bocas, mas
Este é um processo muito, muito, muito moroso, que também da expressão corporal. É necessário muito mais tem-
implica tirar uma fotografia para cada frame de um filme. po e dinheiro para fazer um filme com diálogos.
No caso de O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto, cada se- Mas é melhor não divagar muito.

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Terminado o guião (ou, pelo menos, uma versão com a devido a demoras no acesso aos fundos de financiamento e
qual estávamos ambos satisfeitos), e depois de passar pelo em parte porque o Bruno ainda tinha outras bolas no ar no
crivo crítico de outras mentes criativas que nos rodeavam, seu frenético acto de malabarismo (a conclusão dos telediscos
o Bruno assumiu as rédeas e (para concluir esta caravana de já referidos, o desenvolvimento do projecto «A cada dia que
termos do faroeste) cavalgou em direção ao pôr-do-sol com a passa…» e outros trabalhos comerciais).
nossa criação no alforge. Uma das primeiras etapas da produção foi a criação do
storyboard, para o qual o Bruno contou com o enorme talento
de Rui Lacas, ilustrador e autor de vários títulos de BD, como
Han Solo, A Ermida e Asteroid Fighters.
«Inicialmente, por questões financeiras, tínhamos feito
ara fazer um filme deste género em Portugal, pre- apenas três páginas de storyboard para incluir na candidatu-
cisamos obrigatoriamente de ter o apoio do ICA», ra ao ICA», recorda. «O resto só foi concluído depois de
sublinha o Bruno. «Esta era a minha primeira curta-metragem termos o financiamento e de revermos novamente o argu-
e tivemos de nos candidatar duas vezes.» De facto, a primeira mento. O storyboard (mais concretamente, a montagem do
candidatura não teve o resultado que desejávamos, embora animatic com base no storyboard) foi óptimo porque ajudou
o parecer do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) só a perceber o que estava a funcionar melhor e pior a nível
enunciasse qualidades no projecto. Nas mãos de outra pessoa, de duração de planos. Além disso, durante a produção, o
este poderia ter sido o fim da aventura, mas Bruno Caetano argumento, o storyboard e o animatic foram alterados imensas
não é pessoa para desistir. Nos anos seguintes, lançou-se ao vezes porque foi necessário fazer alguns compromissos, em
trabalho em várias vertentes. Na área da animação, reforçou especial por causa do cronograma de produção, das limi-
de forma brilhante o seu currículo de realizador, tendo ven- tações financeiras e da duração do filme.» Por exemplo, a
cido vários prémios por telediscos para Os Azeitonas («Cine- certo altura, o animatic estava com 12 minutos, o que era
girasol» e «Fundo da Garrafa», co-realizados com Rui Telmo demasiado longo. Dois planos que passaram pela guilho-
Romão) e Miguel Araújo («Axl Rose»). Paralelamente, lançou tina, com muita pena nossa, foram os planos de abertura e

um site de venda de arte original de Banda Desenhada que fecho que deveriam mostrar uma vista aérea da cidade. Era
viria depois a tornar-se numa editora de BD com provas da- um caso clássico de ambição desmedida. Mas, afinal, sem ela
das, a Comic Heart (Hanuram, Altemente, Filhos do Rato, Mar de nem sequer teríamos começado.
Aral, O Outro Lado de Z). No meio deste turbilhão de conquis- Felizmente, a criatividade superou a adversidade e o Bru-
tas, o Bruno submeteu o filme novamente ao ICA com nova no e a sua equipa encontraram rapidamente soluções que, em
gana e convicção e, desta vez com uma candidatura revista e muitos aspectos, tornaram o filme ainda melhor do que o
reforçada, o Sr. Jacinto saiu vitorioso! imaginado.
Seguiu-se o desafio de descobrir um espaço com con-
dições para montar estúdio, área de construção e escritório
de produção. Com a ajuda de João Rapaz, da Oldskull FX
(empresa de efeitos especiais e caracterização), encontrou-se
o local (quase) ideal, onde o único senão «era a qualidade da ara concretizar este sonho, o Bruno recrutou uma equi-
electricidade», recorda o Bruno. «Isso trouxe muitos proble- pa de talento, engenho e empenho impressionantes que
mas para o director de fotografia e afectou a qualidade das fariam a inveja de qualquer projeto. No núcleo duro da produ-
imagens captadas». O problema é que as flutuações de ener- ção, Ana Bossa (Direcção Artística), Vítor Estudante (Director
gia criavam variações na luz que podiam passar despercebidas de Fotografia, Construtor e Maquinista e «a pessoa que, sem
a olho nu, mas que se tornavam evidentes na animação. Mais sombra de dúvida, mais contribuiu para o projeto», segundo
tarde, isso viria a tornar-se em mais um desafio para a fase de o realizador) e Rita Sampaio (Animadora Principal) eram pes-
pós-produção. Mesmo resolvida a questão do espaço, a pro- soas com quem o Bruno já tinha trabalhado anteriormente. O
dução só arrancou cerca de um ano e meio depois, em parte compositor Filipe Raposo tem sido um apoiante entusiasta do

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trabalho desde que foi convidado logo na fase inicial e a música um pouco mais as temáticas do filme, em vez de se limitar a
que criou é ao mesmo tempo convidativa, acolhedora e melan- descrever o que se passa em cada cena.
cólica. Débora Gil da Costa foi seleccionada para a equipa de Embora, confesso, me tenha debatido internamente com
construção depois de terem sido entrevistados várias dezenas o acréscimo da narração, esse debate foi rapidamente resol-
de candidatos e, rapidamente, tornou-se num elemento impres- vido quando o Bruno anunciou quem seria o narrador: nada
cindível de toda a produção, assumindo uma lista crescente de mais nada menos do que o grande mestre Sérgio Godinho.
cargos: Construtora, Supervisora de Cenários e Adereços, Di- «Era importante para mim ter alguém na narração que re-
recção de Arte Adicional e Assistente de Produção. velasse alguma experiência na sua voz e que tivesse um tom
No que diz respeito aos animadores, revela o Bruno, «tive paternal», revela o Bruno. Para completar o ramalhete, a di-
muita sorte em ter connosco os dois animadores que queria recção de actores (para dirigir o Sérgio Godinho e as vozes
desde o início, a Rita Sampaio e o Emanuel Nevado. São duas sem diálogos dos personagens) estará a cargo de Quimbé,
pessoas com uma vasta experiência e que têm trabalhado conhecido actor de dobragens com um currículo impressio-
maioritariamente no mercado inglês. A certa altura, o Ema- nante em animação na televisão e no cinema.
nuel teve de voltar para o Reino Unido para trabalhar na Ove-
lha Choné e, para o substituir, tivemos o reforço espetacular do
Timon Dowdeswell, que é um veterano na indústria britânica.
Já quase no final, para completar alguns planos, contámos
com a ajuda do incrível Claudi Sorribas.» lhando para trás, recapitula o Bruno, «penso que os
Depois da animação segue-se ainda um longo processo maiores desafios que enfrentámos foram conseguir
de pós-produção que continua a decorrer neste momento. cumprir o cronograma e manter-nos dentro do orçamento.
Nesta importante fase contamos com Simon Griesser e João Outra dificuldade foi o facto de não existir muito pessoal
Faria do multi-premiado estúdio Salon Alpin e, mais uma vez, especializado em stop motion em Portugal. Isto porque o stop
Vítor Estudante (mais conhecido como «canivete suíço»). motion é a menos comum das técnicas de animação (em par-
Esta é a fase em que é feito o compositing (composição de ima- te por causa das exigências orçamentais que implica). Ainda
gens e efeitos digitais), a correcção de cor, a sonoplastia, a assim, conseguimos montar uma equipa forte, intercalando
banda sonora e a gravação da narração. pessoal mais experiente com novas promessas, que deu conta
Já durante a produção da curta, o Bruno chegou à con- do recado.»
clusão que gostaria de ter narração no filme. «Foi uma opção Agora, a esperança é estrear em Novembro deste ano
de natureza estética», explica. «Aprecio bastante a narração. É no Cinanima - Festival Internacional de Cinema de Anima-
uma forma clássica de contar histórias e, uma vez que o filme ção. A candidatura está feita e tudo indica que o filme estará
é quase um conto (aliás, surgiu de um conto), pareceu-me pronto a tempo de concorrer. «A seguir», explica o Bruno, «o
fazer sentido. Além disso, a presença de um narrador é uma plano é fazer o filme rodar tantos festivais quanto possível
referência que associo aos clássicos da minha infância.» durante cerca de um ano a ano e meio. Depois disso, gostaria
Tendo em conta toda a complexidade de uma produção de disponibilizar o filme gratuitamente online para que possa
desta natureza, já não havia muita flexibilidade para mexer ser visto por toda a gente. Visto que o filme é parcialmente
na estrutura do filme ou até na duração dos planos, o que financiado pelo estado português, é justo que o filme seja
nos limitou de certa forma, mas ao mesmo tempo ajudou a partilhado com todos.»
criar balizas claras e permitiu manter a universalidade do filme Quem sabe, talvez esta curta-metragem venha a
(mesmo sem se perceber a narração, a narrativa mantém-se ser uma semente de onde irão brotar novos frutos
clara). Algo que concordamos é que a narração deveria fun- e, no futuro, o Sr. Jacinto seja visto a passear por
cionar como uma camada extra que servisse para aprofundar novos jardins.

ma pessoa que gosta de falar com cidade deixa-o triste e sem ânimo, como
os seus próprios botões, tem sau- se lhe tivessem sugado a alegria por uma
dades do tempo em que o podia fazer ao palhinha.
ar livre enquanto passeava calmamente Cabisbaixo, viaja todas as manhãs
pelos jardins da cidade. para o seu posto de trabalho e ao final
Antes de trabalhar num parque de do dia regressa a casa onde se pode
estacionamento, é possível que tenha dedicar à única coisa que ainda lhe dá
sido (ou pelo menos gostaria de ter sido) algum alento: a construção de pequenas
jardineiro. esculturas automatizadas de plantas, que
Para ele, nada do que o governo constrói com lixo que vai encontrando
defende faz sentido. Não percebe nada na rua.
de finanças e «economia» parece-lhe um Mas o que realmente gostaria de
palavrão inventado por tipos gordos a fu- ter era um jardim a sério. Sente falta do
mar charuto num dia em que não tinham cheiro das flores, do som das folhas das
mais nada que fazer. Poderia (e sente árvores a dançar ao vento, da textura da
que deveria) estar revoltado, mas, em relva e do som dos pássaros a namorar
vez disso, a exterminação das plantas na na primavera.

Para consultar a ficha técnica completa do filme, e estar a par de tudo o que se
passa a seu respeito, basta visitar:
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udo isto acon- não precisavam de máquinas, nem de memórias, ou um livro sobre es-
teceu, mais ou químicos, nem teorias. Bastava ter me- crever literatura, ou um livro sobre
menos. Hou- mórias suficientemente fortes que o como lidar com a falta de sentido da
ve um jovem conseguissem empurrar para outros morte. E é assim.
americano que tempos da sua vida, passada, presen- Tudo isto acontece, mais ou
adorava ficção te ou futura, não necessariamente por menos, em Matadouro Cinco, de Kurt
científica e foi esta ordem, aliás, quase nunca por esta Vonnegut. Publicado em 1969, em
à guerra mun- ordem. Billy sabia o que tinha aconte- plena guerra do Vietname, Matadouro
dial: a segunda. cido, o que ia acontecer, o que estava Cinco era ao mesmo tempo uma obra
Por lá viu uns tiroteios, uns cadáveres, a acontecer, mas nada podia mudar, de ficção popular e pós-moderna,
uma cidade a ser arrasada a fogo e a nem decidir aquilo que iria viver ou- baseada em factos reais e muitos fac-
bombas, e ajudou a encontrar os mor- tra vez. Talvez a doença de Billy seja tos fictícios, era sobre a guerra do
tos carbonizados da cidade: milhares apenas um caso agudo de memórias, Vietname e a Segunda Guerra Mun-
e milhares de homens, mulheres e talvez seja algo pior, como o stresse dial, mas era também um livro sobre
crianças que lhe haviam dito serem os pós-traumático que se diagnostica aos a incapacidade de escrever sobre a
seus inimigos, agora reduzidos a car- antigos soldados. Talvez seja outra guerra, era sobre o passado e sobre
ne queimada. Como tantos soldados coisa que os tralfamadorianos possam o futuro, mas também sobre quão
da guerra, voltou para casa quando explicar. difícil é recordar os episódios mais
esta acabou, e sem dar um único tiro, Também houve um velho america- traumáticos da vida, sobre como a
e passou o resto da sua vida a escre- no que queria escrever um livro de me- vida humana é frágil e sem sentido,
ver, a ensinar escrita criativa, a tentar mórias. Não se chamava Billy. Talvez e como ainda menos sentido tem a
perceber como se escreve sobre a se chamasse Kurt, mas ninguém tem a morte, com a qual só podemos lidar
guerra. certeza. Este americano que talvez se através das frases mais banais como:
Também houve um jovem ame- chamasse Kurt não se lembrava assim «E é assim».
ricano chamado Billy. Billy foi rap- tão bem do que lhe tinha acontecido No livro acompanhamos a vida
tado por extraterrestres, chamados na vida. Por isso foi falar com um e os problemas de Billy Pilgrim – pe-
tralfamadorianos, e transformado em antigo camarada de armas, para que o regrino no nome e na vida – que vai
cobaia de jardim zoológico. Os tral- ajudasse a recordar, e assim escrever saltando entre as suas próprias me-
famadorianos queriam saber como é um livro de ficção científica, que fosse mórias (que talvez sejam apenas de-
que os seres humanos eram capazes também um livro de memórias, e que lírios, como acredita a sua filha), que
de acreditar que eram donos da sua fosse um sucesso, e fosse um livro vão desde antes da Segunda Guerra
própria vida e destino, e por alguma antiguerra, e fosse um livro divertido, Mundial até à sua morte, mas certa-
razão acharam que Billy era um hu- e fosse um livro trágico. O problema é mente não por esta ordem.
mano importante. No jardim zoológi- que o antigo camarada de talvez Kurt A Segunda Guerra Mundial, diz
co tralfamadoriano, Billy foi razoavel- não queria ter nada a ver com o livro, Vonnegut e dizem os especialistas,
mente feliz, mais do que na sua terra, pois suspeitava que as guerras são coi- foi o gatilho que desencadeou este
teve uma companheira humana e um sas que servem para torturar virgens livro. Mas a Segunda Guerra é para
filho. Aprendeu que os tralfamadoria- tolos e serem louvadas por velhos ta- Pilgrim um longo passeio alucinado,
nos viam o tempo como uma paisa- rados. entre psicopatas que se comprazem
gem eterna, que se pode admirar, mas O velho americano lá escreveu o em planear torturas, e adolescentes
não mudar, pelo que não vale a pena livro. Segundo o autor, saiu-lhe um armados e cansados a quem foi dito
atormentarmo-nos com aquilo que tanto desconchavado e sem grande que a guerra é o que faria deles ho-
virá ou acabou de ser. sentido, mas foi um sucesso comer- mens. Mas que experiência de vida se
Também houve um jovem ame- cial, fascinou críticos e académicos, e pode levar de uma guerra?, pergun-
ricano, chamado Billy, quase de cer- tornou-se um dos grandes romances ta-se incessantemente Vonnegut ao
teza o mesmo Billy do parágrafo an- de ficção científica do século XX, em- longo do livro. O que se aprende com
terior, que desenvolveu uma doença bora também possa ser lido como um a matança indiscriminada de pessoas
de viagens no tempo. Estas viagens livro de ficção histórica, ou um livro que valha a pena partilhar através da

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literatura? E quando tal experiência ganha dimensões de
hecatombe, como foram os bombardeamentos de Dres-
den, que o real Vonnegut assistiu e que o ficcional Pilgrim
vai testemunhar, o que é que sobra que se possa traduzir
em palavras e possa fazer sentido para quem as for ler?
No meio de tanto absurdo, aquilo que o livro parece
dizer-nos é que não é possível, nem importante, saber o
que é realidade e o que é ficção. Pois, no fim de contas,
talvez os tralfamadorianos tenham razão, e os humanos se-
jam apenas seres patéticos que se julgam donos do mundo,
mas ficcionalizam a guerra por não saberem lidar com ela,
que se acreditam deuses omnipotentes da destruição, mas
são quase sempre vítimas impotentes das suas circunstân-
cias.
No fim de contas, a vida de Billy Pilgrim talvez seja a
nossa própria vida, e não sejamos mais do que peregrinos
e testemunhas de um mundo louco, de uma paisagem caó-
tica de memórias e mistérios de que somos apenas mais
um habitante fugaz, e onde a ficção e o riso, sem nos sal-
varem, tornam pelo menos tolerável a vida e a morte. E é
assim.

ião em:
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vis
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.re
dest
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gostou

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or vezes os heróis ou heroínas surgem das for- vista determinada a lutar contra a indiferença dos governos
mas mais inesperadas. Nos livros de fantasia que e populações pelas alterações climáticas.
conhecemos, o autor cria um protagonista de ori- Hoje, mais de um ano depois, e já depois de a própria
gens humildes, um anónimo entre a multidão, que cidade de Lisboa ter organizado a sua própria greve estu-
é escolhido para enfrentar forças obscuras e des- dantil de ação pelo Clima com milhares de jovens, um even-
conhecidas que ameaçam o seu mundo. Nestas narrativas to que tive o privilégio de testemunhar, não há quem não
épicas, há sempre um salvador destinado a sacrificar-se por fale em alterações climáticas. O mundo finalmente desper-
todos. tou da sua letargia para a evidência de um planeta a morrer.
Mesmo nas narrativas apocalípticas, se há algo que é Sinais alarmantes de ruína são flagrantes. Glaciares de-
transversal em todas as religiões é a figura de um messias saparecem na Islândia, capitais afundam-se enquanto gover-
que irá confrontar-se com o seu arqui-inimigo e batalhar nos são forçados a fundar novas cidades a salvo da subida
pelas almas da Humanidade. Talvez devido à constante for- do nível do mar, como sucedeu na Indonésia, calor extremo
ma como estas narrativas alimentaram o nosso inconscien- e incêndios de vastas proporções têm-se tornado parte do
te desde sempre, somos incapazes de pensar em coletivos, nosso quotidiano. Finalmente, começámos a questionar a
dando preferência a indivíduos dignos de admiração que possibilidade de que o mundo está a mudar rapidamente e
carreguem pesos impossíveis aos ombros. que o pior não está reservado para um futuro muito distan-
Como descobrir os messias do séc. XXI? Anjos já não te, mas para o nosso tempo presente.
estão ao virar da esquina para descer dos céus e abençoar es- Os avisos de Greta podem, ainda assim, não ter chega-
colhidos com revelações e poderes milagrosos. Um messias do a tempo. Ela é continuamente exposta a críticas ferozes,
no séc. XXI está, na verdade, por sua conta e risco e tem de a humilhação e bullying dos seus detratores que não conse-
se desenrascar com os «superpoderes» que tem. guem compreender a sua forma especial de ver o mundo.
Quando a adolescente sueca Greta Thunberg tinha oito Diagnosticada com síndrome de Asperger, Greta descreveu
anos, ouviu pela primeira vez falar de alterações climáticas o seu autismo não como uma doença, mas como um «su-
e admirou-se com a apatia e indiferença da sociedade. Con- perpoder» que a torna diferente.
ta-se que, aos 11 anos, entrou num estado de depressão e É esta a estranha realidade em que vivemos e que bate
letargia, levando-a a confessar que «não tinha energia, ami- qualquer ficção. Foi preciso uma adolescente sueca com
gos e não falava com ninguém. Sentava-me sozinha em casa, «superpoderes» para nos abalar e abrir os olhos para a reali-
com um distúrbio alimentar». Em maio de 2018, escreveu dade de um planeta moribundo.
para um jornal sueco: «Quero sentir-me segura. Como pos-
so sentir-me segura sabendo que nos encontramos perante
a maior crise da História?»
No verão de 2018, Greta decidiu tomar uma ação e ini-
ciou uma greve estudantil. Sentou-se sozinha à frente do
Parlamento Sueco a exigir medidas do governo para a redu-
ção de emissões de carbono e o cumprimento dos Acordos
de Paris. Os seus protestos rapidamente se tornaram virais
nas redes sociais. Mas melhor do que isso, inspiraram outros
estudantes à volta do mundo a organizar as suas próprias
greves estudantis e a lutar pelo seu futuro. A bola de neve
transformou-se rapidamente numa avalanche. O protesto
solitário de Greta transformou-a num símbolo e numa ati-

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ambiente da clínica era relaxante, mas a minha mulher, – Em grande parte, eles são responsáveis por isso –
Laura, remexia-se na cadeira de rodas, ansiosa. disse o Dr. Plácido, olhando para o médico a seu lado, que
Era uma pena ter de proceder à substituição das estava visivelmente nervoso. – O que nos leva ao problema
suas novas pernas, pois eram realmente muito bonitas. da sua esposa.
O transplante correra bem, mas a adaptação fora um – Sim. Nós vínhamos aqui corrigir um erro da vossa
desastre, pois o médico não contara com o transplante parte – disse eu.
de cabelo que a Laura tinha feito uma semana antes, e – É um facto – concordou o administrador. – Mas o
o medicamento para evitar a rejeição (MER) das pernas problema é que não existem em stock nenhumas pernas
e o MER do transplante do cabelo anularam-se. Como compatíveis. Mas existe uma alternativa – acrescentou,
resultado, o cabelo caíra e as pernas novas foram rejeitadas. olhando para o médico, que tremia. – Esta situação
Mas tudo acabaria bem, pois uma subcidadã da parte deve-se ao MER mal receitado à sua mulher. E isso é da
baixa da cidade disponibilizara umas pernas compatíveis. exclusiva responsabilidade do médico. Portanto, é razoável
E, claro, a clínica pagaria um transplante de cabelo de que ele ajude a satisfazer o cliente com o que puder. – O
primeira qualidade. No final das contas, até ficaríamos a administrador esboçou o que devia ser o seu sorriso mais
ganhar. O médico veio ter connosco, acompanhado de um comercial, apontando para o médico ao seu lado. Este
sujeito engravatado. parecia prestes a desfalecer
– É o marido da senhora Laura, presumo – disse o – O que a sua mulher acha de ficar com as pernas do
tipo engravatado, com um sorriso que não escondia uma médico?
certa ansiedade. – Sou o Doutor Plácido, o administrador – Com as pernas do médico? – disse eu.
desta unidade. – Conhecer o administrador nunca era boa notícia, – Sem problemas, pois está enquadrado na lei da
pensei eu. – Creio que surgiu um problema adicional, retribuição a cidadãos.
caro senhor – continuou o Dr. Plácido. – Descobriu-se – Mas são as pernas de um homem.
que a subcidadã que vendeu as pernas que a sua mulher – Por mim não há problema, querido – interrompeu
iria receber consome drogas que são proibidas para a minha mulher. – Não me importo de experimentar as
fornecedores de membros. pernas de um homem. Até são mais fortes.
– Pensava que havia um controle para isso – disse eu. – Então está resolvido – disse o Dr. Plácido, satisfeito.
– E há – respondeu o administrador. – Mas existem – Pode-se fazer isso já de imediato. – E estalou os dedos,
novas drogas que escapam ao controle, e que os possibilita aparecendo de seguida dois seguranças, um de cada lado do
continuarem a vender membros. desgraçado do médico. Os seguranças eram enormes, uns
– Para possivelmente voltarem a comprar mais drogas autênticos rinocerontes. – Levem o médico para a sala um
– completei eu. – Pobres diabos. Nunca os subcidadãos da cirurgia, por favor.
estiveram tanto no fundo da sua existência. Não olhei para o médico, para não ficar com a cara

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do coitado gravada na minha consciência. Uma assistente levou
gentilmente a Laura.
– Sabe, estes médicos humanos são confiáveis… até o
deixarem de ser – disse o administrador, olhando para um
espelho na parede, ajeitando a gravata. Em vão, pois as gravatas
não ficavam bem nos pescoços das girafas.
Olhei-me ao espelho e observei os meus novos braços.
Eram de um subcidadão negro, um humano sem nenhuma
degeneração. Nós, os cavalos, ficávamos muito bem com braços
negros.
– A troca de membros deve ser um bom negócio – disse eu.
– Tem sido muito bom para a nossa economia – disse ele,
confiante. – E os subcidadãos da nossa cidade são da melhor
qualidade. Humanos de primeira, digo-lhe.
Abanei a cabeça, soltando a minha crina e olhei para o
quadro pendurado no átrio da clínica. Era uma pintura dos
nossos primitivos avós, com os seus corpos originais de animais.
Estava lá um cavalo original, a correr numa planície. Já nessa era
éramos belos e elegantes. Estava também retratada uma girafa
original, com o seu enorme pescoço. Das 666 espécies com
corpos humanizados, eram das que mais tinham beneficiado.
Os humanos tinham começado a implantar cabeças de
animais em corpos de humanos para terem trabalhadores
baratos e dóceis. Nunca adivinhariam que em poucas gerações
os papéis inverter-se-iam. E o planeta ficara a ganhar, pois o
respeito pelo ambiente era inerente à personalidade animal. Ao
darem aquele «empurrãozinho» na evolução animal, os humanos
finalmente tinham feito algo de bom para o planeta. E agora,
finalmente, eram úteis para nós. E com lucro.

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BMS: Vou continuar a criar novas formas de vida e novas
civilizações, hehe. Como digo, os próximos anos já estão
BMS: A Saga de Alex 9 foi de facto um marco na minha vida. programados. Vou continuar a trabalhar em Laura and
Embora eu nunca tenha verdadeiramente parado de escrever, the Shadow King, que é uma das melhores coisas que já
durante anos tinha deixado a minha escrita ficar um pouco escrevi, embora o tema – uma espécie de pós-apocalipse
para trás e foi a Alex 9 que voltou a dar-lhe prioridade. Não zombie – não atraia tanta gente como a space opera de A
é qualquer escritor que consegue ser publicado na Colecção Batalha da Escuridão. Terminando o segundo volume (Laura
BANG!, por uma das mais proeminentes editoras de Fan- and the Shadow King é uma série cuja primeira parte só
tástico do país. Ganhei protagonismo no mercado interno, tem dois volumes), irei avançar para um pequeno stand-alone
claro, mas mais do que tudo passei a conhecer um espaço chamado Deep Inside, um romance de horror e FC baseado
de criação muito estimulante que ainda não conhecia, que num argumento cinematográfico que escrevi. Estou muito
é o espaço de criadores de FC/F em Portugal e do interes- entusiasmado com esse romance: como é meu apanágio já
sante público que habita esse espaço. E estes 10 anos (ou sete escrevi as primeiras vinte páginas e estão a sair muito bem.
desde a publicação do omnibus) foram extremamente produ- A seguir a esse, em princípio, trabalharei na segunda trilogia
tivos. Escrevi e produzi uma longa-metragem cinematográ- da saga de Byllard Iddo – que deverá chamar-se The Outer
fica, várias curtas-metragens, uma peça que foi produzida, Sea War Chronicles – uma espécie de Batalha do Pacífico
e escrevi vários romances, entre os quais a trilogia de ficção da Segunda Grande Guerra, mas no Espaço. Em princípio,
científica The Dark Sea War este é o plano. Claro que muitas vezes os planos não correm
Chronicles que foi publicada exactamente como previsto e é possível que outras coisas
em inglês na Amazon e agora interfiram, e acabe por não escrever o planeado exacta-
chegou ao mercado português mente assim por esta ordem. Tenho várias ideias na cabeça,
algumas das quais já venho a
trabalhar há bastante tempo,
que a qualquer momento
podem ganhar precedência.

como um omnibus chamado A


Batalha da Escuridão pelas mãos da
Editorial Divergência. O primeiro
volume da minha série seguinte,
Laura and the Shadow King, já saiu na Amazon e estou agora a
trabalhar no segundo volume, que, cruzemos os dedos, es- Mas o que eu chamo o meu
pero publicar ainda este ano. Por isso, uma década forte, em pipeline neste momento tem
termos de escrita, parece-me. E também lancei o meu blogue, este aspecto. É possível tam-
Hyperjumping, que tem sido uma experiência muito boa nos bém que reúna num volume
últimos anos e me tem dado «pano para mangas». A minha os meus textos sobre Escrita Criativa, tenho muita coisa já
vida mudou de muitas formas, mas esta determinação de escrita sobre este tema – mas nada está ainda decidido sobre
escrever e publicar com esta frequência foi um dos principais isto.
efeitos do excelente início que tive com Alex 9 e a BANG!

BMS: Uma última pergunta venenosa, já vi, hehe. Não tem


BMS: Sim. Tenho essa vontade. O projecto original era, de ser necessariamente uma coisa ou outra, pois não? Star
de facto, de sete livros, com duas trilogias e um stand-alone, Wars tem ambas as coisas, Duna também, suponho. Depende
e apenas a primeira trilogia ficou completa. Mas não sei se mais da escrita e da história, parece-me. Assim, grosso modo,
ou quando irá acontecer. Adorava, antes disso, de voltar a poderia dizer que gosto mais de escrever Ficção Científica e
publicar A Saga de Alex 9, que neste momento está esgo- provavelmente gosto mais de ler Fantasia. Mas nem tenho
tada, mas não sei se ou quando isso irá ser possível. Vamos realmente a certeza do que estou a dizer. Depende. Gosto de
ver… Para já tenho cerca de dois ou mesmo três anos de histórias bem contadas e bem escritas. Na verdade, ultimam-
escrita já planeados, de maneira que não julgo que volte a ente, ando a gostar mais de ler romances históricos do que
esse universo até 2022. outro género qualquer. Talvez também me aventure para
esses lados um destes dias. Quem sabe…?

101
que dão a sua opinião e apontam alguns erros ou algumas
mudanças que podem melhorar o texto. Eu tenho cinco ou
seis em quem confio. Este processo é muito importante: é
importante termos Betas que saibam comunicar connosco
e que nos façam pensar. Também é importante sabermos
ouvir com atenção e estarmos abertos às suas opiniões. Mas
não nos podemos esquecer que a decisão final é nossa, e não
temos de mudar isto ou aquilo se não o desejarmos. Mas os
Beta são o nosso primeiro contacto com o público e é muito
natural que o público final encontre ou se debata com as
mesmas questões que os nossos Beta se debatem – especial-
mente se escolhermos bem os nossos Beta.
Depois de termos as opiniões Beta, há que reescrever
o texto, melhorá-lo, refiná-lo, torná-lo mais forte. Agora já
temos uma ideia de como o público o vai sentir e se está
ou não a transmitir exactamente o que queríamos, por isso
vamos trabalhar nele de novo. Não se esqueçam: nós so-
mos os criadores, somos os escritores, por isso se queremos
mudar algo, podemos fazê-lo. Por vezes acontece-me sentir
que não gosto muito desta parte do texto, ou daquela, que
chatice!, mas tenho de fazer um esforço para me lembrar
que EU TENHO O PODER de mudar aquele texto, de
eliminar aquela parte ou melhorá-la.

A primeira coisa que temos de meter na cabeça, neste mo-


mento, é que de certeza que falhámos alguma coisa, que não
estamos a ver algo de importante que pode tornar a história
ainda melhor. Não somos perfeitos, a nossa escrita não é
perfeita e é quase fatal que o texto possa ainda ser melho-
rado. Que fazemos então? Em primeiro lugar é importante Por fim, passámos de um primeiro rascunho para um
seleccionarmos e termos à nossa volta leitores Alfa e Beta. rascunho mais final. E aqui entram duas figuras importan-
O que são? Leitores Alfa são leitores a quem permitimos tes: os revisores e os editores. Em inglês, temos três nomes
que leiam o nosso escrito, ou partes dele, à medida que ele diferentes: proofreaders, editors e publishers. Os proofreaders, ou
vai sendo construído. Podemos ter dúvidas relativamente a revisores, irão verificar se o nosso texto tem erros, se a gra-
este ou àquele momento da história ou ter a necessidade mática está correcta, a ortografia e formatação, etc. Os edi-
de encorajamento neste ou naquele ponto, e é bom termos tors, ou editores, irão verificar a congruência do texto, e dar
alguém próximo de nós que esteja disposto a olhar para o uma opinião mais final, mais específica e mais profissional
texto antes de este estar terminado. Eu tenho muito poucos do que os nossos Beta sobre toda a narrativa e cada parte do
leitores Alfa, talvez um ou dois, e são raros os momentos texto. E depois os publishers, que também se chamam edito-
em que lhes dou alguma coisa para ler, mas são muito úteis res em Portugal, irão publicar o livro – chamemos-lhes Edi-
– especialmente quando preciso de alento. tores com «E» grande. Cada vez mais dou importância aos
Por outro lado, os leitores Beta são absolutamente es- revisores (é um pesadelo corrigir todos os erros num escrito
senciais. Os Beta são leitores que vão receber o texto fi- grande), mas sobretudo aos editores. Durante muitos anos
nal em primeira mão. São uma espécie de críticos privados, não trabalhei com nenhum editor que me fosse útil ou que

102
CURSO

fizesse um bom trabalho. Mas recentemente tive a experiên- negócio depende de fazer com que os autores lhes paguem
cia de trabalhar com um editor que me compreendeu e que os serviços e na grande maioria dos casos o resultado é
tornou o meu manuscrito em algo bastante melhor, e isso desapontante.
tornou o meu papel tão mais fácil e deu-me imensa confian- Um terceiro caminho é o Self-Publishing. Este caminho
ça no resultado final. Uma boa experiência de edição é algo tornou-se possível com o advento dos ebooks, ou livros elec-
de fantástico para um escritor, garanto-vos. trónicos, e do POD – Print-On-Demand (em que a livraria
Ora, os revisores e os editores são profissionais que imprime o livro no momento em que este é encomendado
terão de ser pagos, já que o seu trabalho é sério e moroso pelo cliente final, poupando no stock e na impressão). Aqui
– e que não pode ser descurado. Quem irá pagar estes va- os próprios autores se responsabilizam pela revisão, edição
lores depende do modo como vamos (e se vamos) publicar e capa e os restantes custos iniciais (que podem ser menos
o livro. de um décimo do que pagariam a uma Editora Híbrida) e
colocam os seus livros à venda numa plataforma de venda,
como a Amazon, a Smashwords, a Barnes & Noble, ou ou-
tras. Esta é uma tendência que tem vindo a crescer conside-
ravelmente, à medida que os autores reconhecem que ga-
nham bastante controlo sobre a sua carreira por este meio,
ainda que seja um caminho difícil. Prevejo que as próximas
estrelas da literatura, os Bookers e os Nobel das próximas
gerações, surgirão em primeiro lugar como self-publishers. E
é basicamente inevitável que os escritores do futuro quei-
ram numa altura ou noutra publicar um ou outro livro em
Publicar não é um dado adquirido. Há pessoas que es- self-publishing.
crevem mas não querem publicar, preferem deixar na gaveta Este, o momento de publicar, é talvez o momento de
para lerem mais tarde ou só para mostrar aos amigos. Mas maior frustração para um escritor, pois tem de aprender
vamos partir do princípio que queremos comunicar e ligar- todo o tipo de actividades que não são, à partida, «escre-
-nos ao maior número de pessoas, que queremos partilhar o ver», mas que são actividades igualmente importantes para
nosso trabalho e o nosso «bebé» com o máximo de pessoas o nosso texto não «desaparecer» algures. E aqui o essencial
que seja possível. Nesse caso, temos de publicar. E existem é perceber uma pequena verdade: o importante não é pu-
basicamente três caminhos para o fazer. blicar… o importante é vender. E publicar não é o mesmo
O primeiro é a publicação tradicional. Tentamos cha- que vender.
mar a atenção de uma Editora e esperamos que esta goste Ora, ao contrário do que muita gente parece pensar,
o suficiente do nosso trabalho, que ache que teremos mer- longe vão os tempos em que «vender» era uma actividade
cado, que o nosso texto se enquadra na sua estratégia edito- da responsabilidade da Editora. Infelizmente, as Editoras
rial, e que nos convide a publicar. Não é um caminho fácil: de um modo geral parecem ignorar que a única vantagem
podemos enviar-lhes o nosso manuscrito e esperar que seja que de facto têm sobre o self-publishing é o marketing e a ca-
lido, podemos conseguir uma «cunha», podemos ganhar um pacidade de publicitar um autor – por isso têm a tendência
concurso que nos dê visibilidade, podemos tornar-nos uma em delegar para os autores aquilo que as pode salvar de um
celebridade num reality show, nenhuma destas vias é garantia futuro incerto. Ou seja, um escritor tem, nos dias de hoje, de
absoluta de que vamos ser aceites. Mas se formos, a Editora ser capaz de fazer o seu próprio marketing e a sua própria
irá investir no nosso livro: pagará aos revisores e editores, promoção e divulgação. Seja marcando presença em even-
pagará a capa, a impressão, a distribuição, todos os custos, e tos e concursos, seja ligando-se ao público nas redes sociais,
depois irá dar-nos uma percentagem das vendas. seja criando a sua própria base de contactos e explorando
Um segundo caminho, aparentemente mais fácil, é esse recurso, alguém que procura o sucesso dos seus textos
procurarmos uma Editora que nos cobra um determinado tem de saber projectar-se no mercado – os autores que se
valor para pagar os custos e depois nos publica e distribui. destacam nem sempre são os que escrevem melhor, mais
Este tipo de Editoras, por vezes chamadas Editoras Hí- frequentemente são os que conseguem ganhar espaço no
bridas ou Vanity Presses, não são verdadeiramente Editoras mercado.
e é preciso ter muito cuidado com elas: são empresas que E pronto, agora que publicámos e vendemos algumas
não precisam de vender um único livro – o seu modelo de centenas ou milhares de exemplares do nosso livro, é altura

103
de pegarmos no próximo em que já estamos a trabalhar e
recomeçar o processo. A carreira de um autor não está de-
pendente de um livro, mas sim da consistência: de escrever
livros cada vez melhores ao longo do tempo. De partilhar
histórias cada vez mais interessantes e bem contadas.

E isto é o essencial do que tenho verdadeiramente para di-


zer relativamente a «como» escrever uma história e criar um
livro de Ficção Científica e Fantasia. Gostava de terminar
este Breve Curso com algumas palavras sobre um assunto
paralelo: O que é ser-se um Escritor (e aqui vou passar a
escrevê-lo com «E» maiúsculo).
Um Escritor é alguém que escreve. Isso é óbvio. Mas
nem toda a gente que escreve é um Escritor. Durante anos
eu sentia apenas que «escrevia coisas», que não era Escritor.
E não foi quando fui publicado que me senti um Escritor –
há muita gente que escreveu livros que foram publicados e
nunca será, na minha opinião, um Escritor. Um Escritor é
alguém que escreve… e é lido. E um Escritor é alguém para
quem esta relação, esta actividade, este craft de escrever e ser
lido, é uma das funções mais importantes da sua vida. É isto
ser-se um Escritor. É um modo de vida. Uma determinação.
Um caminho.
Ora, dentro deste caminho é essencial estar-se sempre
pronto para aprender. E há muito que aprender e muitos
recursos que podemos usar para isso. Há cursos, livros, gru-
pos, vídeos, aplicações, gráficos, software, etc. Há coisas que
foram tentadas e testadas e resultam melhor ou pior. É um
absurdo ignorar esta realidade e algo totalmente diferente
e original não é necessariamente interessante. Por vezes é
boa ideia usar clichês, por exemplo, mas por vezes é uma
péssima ideia. Não há dúvida que há muita coisa que vale
a pena aprender, pois ajuda a evitar certas armadilhas. Mas
não há verdadeiramente regras. E nada é absoluto. Não há
substituto a escrever e escrever e escrever. E experimentar
e experimentar e experimentar. Por vezes perguntam-me
todo o tipo de questões básicas: como devo começar uma
história? É melhor escrever na primeira pessoa ou na ter-
ceira pessoa? Qual o tamanho que devem ter os capítulos?
Posso ter o ponto de vista de uma águia? Posso ter mais de
um protagonista? Ou mais de um antagonista? Etc… Não
há regras, meus amigos. Não há melhor professor do que o
confronto com a realidade, o confronto com o público. Por
isso, experimentem. Tentem. É o melhor conselho que vos
posso dar. Boa sorte! E bem-vindos à luta…

104
scolher um livro preferido, depois de mais de 300 liv- E que esse fim poderá estar a ser provocado por alguém
ros publicados na Coleção Bang!, é tarefa difícil, sobr- como ele, embora sem a mesma preocupação de não in-
etudo porque tive de deixar de fora uma mão-cheia de fluenciar o futuro, quebrando todas as regras do seu Clube.
obras que poderiam igualmente merecer lugar de destaque. Claire North leva-nos assim a viajar com Harry August
Mas perante o desafio, As Primeiras Quinze Vidas de Harry pelas suas primeiras quinze vidas ao longo do século XX,
August surgiu imediatamente no meu top of mind. Acabado numa escrita inteligente e abordando de forma original al-
de chegar à Saída de Emergência em 2016, Harry August guns temas clássicos da ficção científica. O livro é uma re-
foi um dos primeiros projetos que vi crescer até ser lan- flexão sobre a busca do sentido da vida, experimentado no
çado no mercado editorial em outubro desse ano. É um amor, na religião ou na ciência, e uma amostra do poder que
livro que li vorazmente numa mão-cheia de dias. nos pode dar o domínio sobre o conhecimento e a opor-
A premissa logo à partida é inquietante: para Harry Au- tunidade de corrigir as nossas vidas. A minha mudou um
gust, a morte não é um fim, mas simplesmente um reco- pouco depois deste livro.
meço. Depois da sua morte, regressa ao mesmo dia em que
tinha nascido, mas com toda a memória e conhecimento de
vidas anteriores. Nas primeiras vidas, sem conseguir com-
preender quem é verdadeiramente, a loucura apodera-se
da personagem e acaba por fazê-lo ter uma morte precoce.
Mas à medida que vai vivendo novas vidas, compreende e
aceita quem é, acabando por descobrir que existem muitos
mais como ele, organizados no Clube Cronus, uma socie-
dade secreta que protege os seus membros e os apoia nas
suas várias vidas. Os membros dessa sociedade comunicam
ao longo de vários séculos, enviando mensagens para o pas-
sado, e é através dessas mensagens, enquanto morria numa
cama em Berlim, que Harry August recebe uma notícia in-
quietante pela voz de uma criança: o mundo está a acabar.
É esta notícia que faz com que Harry August procure in-
cessantemente mudar o futuro, procurando a origem deste
cataclismo. À medida que Harry vai investigando, chegam as
notícias de que esse fim está a acontecer cada vez mais cedo.

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A postura e técnica de Burroughs
inspirou artistas ao longo de gerações
e de diferentes géneros a usar métodos
semelhantes para quebrar o status quo e a
eliminar o Controlo, tendo a obra mais
marcante do autor sido Naked Lunch.
Originalmente publicado em 1959, foi
um livro banido e o seu autor e editor
levados a tribunal por obscenidade,
tendo os seus tópicos bizarros, perso-
nagens singulares e a sua estrutura não
linear apelado ao imaginário de músicos mais ousados
igura cimeira da beat generation, e inovadores da década de 60 em diante, tendo essa
para Burroughs a linguagem é um influência se rejuvenescido em sucessivas gerações.
mecanismo daquilo a que apelidou Com a sua fotografia a figurar na capa lendária de Sgt.
de Controlo, com um C maiús- Pepper’s Lonely Hearts Club Band, Burroughs incorpo-
culo, que mais não é que uma rou o espírito rebelde do rock and roll como poucas
grande força hegemónica em jogo figuras, levando-o das suas origens nos anos 50, com
no mundo, que serve de obstáculo nomes como Elvis Presley ou Chuck Berry, para um
às pessoas no seu caminho de plano mais intelectual e artístico, e isso atraiu aqueles
libertação espiritual e psíquica. Porém, e em simul- para quem a rebelião era a única escolha concebível
tâneo, a linguagem pode também ser utilizada para que- na vida.
brar ideias e associações pré-concebidas. Pegando em Na música portuguesa também ouvimos a voz
fragmentos de palavras, sons e imagens reordenados, de Burroughs em «Humano», tema do álbum de 2001
Burroughs procurou desmantelar o Controlo e os seus dos Mão Morta, Primavera de Destroços, banda com
sistemas. No fundo, parecia antecipar o que viria a ser grande influência literária, como vimos na edição
a internet, que é composta por estes fragmentos, mas passada. O mesmo acontece com os Moonspell, e
que, ironicamente, acaba por ser agora a mais poderosa embora nele não se oiça o timbre inconfundível de
arma do Controlo, e através dela Burroughs é um autor Burroughs, em The Butterfly Effect, disco maldito dos
mais citado que propriamente lido. Este é o método de Moonspell, a sua voz está por todo o lado. Agora
cut-up, que lhe foi mostrado pelo amigo e colaborador que passam vinte anos da sua edição, The Butterfly
Brion Gysin em 1959, e que teve origem no movimen- Effect é um disco de uma banda a querer livrar-se do
to Dada nos anos 20. Foi o método utilizado numa tri- Controlo, de amarras próprias e de outras criadas por
logia de romances a que comummente se refere como expectativas, levando a que olhassem o abismo olhos
The Nova Trilogy, compostos por The Soft Machine (61), nos olhos. No ano anterior já teriam desafiado expec-
The Ticket That Exploded (62) e Nova Express (64). Curio- tativas, pois Sin/Pecado já não seria um sucessor lógico
samente, foi no primeiro destes romances que surgiu de Irreligious e foi totalmente incompreendido pelos
escrita a expressão «heavy metal». apreciadores do lado mais extremo que exploraram

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no início da carreira, mas na viragem do milénio, os ponto da banda ter dificuldades em marcar tournées, pois
Moonspell mandaram as regras às urtigas. The Butterfly os agentes não sabiam bem onde os encaixar, e o disco
Effect foi composto numa fase de transição e instabili- seguinte foi uma espécie de reacção, e acabou por sofrer
dade, durante a qual a banda perdeu a sala de ensaios, por isso também. Mas mais do que o seu espaço dentro
acabando por ser um trabalho composto quase da indústria musical em que se inserem, este é um álbum
totalmente por Pedro Paixão em sua casa, o que de uma banda fragmentada. Para Fernando Ribeiro, o
resultou num álbum atípico e algo inconsistente, mas próprio disco tem uma direcção fragmentada, mas assume
com muitos momentos de grande qualidade. Quando a sua responsabilidade nisso. «Estava a ler os beatniks e
questionado sobre este momento criativo em Lobos a comprar uma dreamachine, por isso quanto mais louco,
Que Foram Homens – A História dos Moonspell [Saída melhor. Fui grande instigador disso, mas o Butterfly não é
de Emergência, 2018], Fernando Ribeiro confirma um álbum orgânico e não é um álbum composto por uma
a sua inspiração lírica. «Andava obcecado por toda a banda, e percebemos que não podíamos ter um álbum
beat generation, pelo Burroughs em particular», conta o de uma pessoa», reflecte o vocalista sobre o momento
letrista. «Acho que aquele universo apocalíptico dos de viragem que este trabalho representa no percurso dos
beatniks, especialmente do Burroughs, tinha tudo a Moonspell. «Tínhamos de voltar a fazer um álbum mais
ver com aquela época e com o que estávamos a fazer
naquele disco.»
O seu título é inspirado no conceito com o mes-
mo nome, desenvolvido pelo matemático norte-ame-
ricano Edward Lorenz, um dos pioneiros da teoria
do caos. Pela teoria de Lorenz são estabelecidas
relações entre eventos aparentemente insignificantes
que podem ter consequências de grande dimensão,
sendo mais entendível pela metáfora utilizada para o
explicar, que o bater de asas de uma borboleta num
ponto do planeta poderá provocar um tufão no outro
lado da Terra. Embora este tenha sido o conceito que
lhe serviu de base, o espírito do álbum é a luta contra
(e, de certa forma, por) o Controlo, que tão bem
incorpora o zeitgeist do final do milénio e provém de
uma banda em busca de algo mais. «No Sin/Pecado
houve experimentação e procura, como a fase azul do
Picasso, e com The Butterfly Effect chegou ao extre-
mo», explica Ribeiro. «Loucos, suicidas…? Talvez.
Não estávamos em guerra com o nosso público, mas
estávamos em guerra com as convenções e o Butterfly
encarna o espírito da revolta, e o espírito de fim de
século, o Y2K. Já estávamos no “que se lixe”.»
Mesmo num contexto histórico dado à experi-
mentação e à audácia criativa, The Butterfly Effect não
foi propriamente um sucesso comercial e trouxe
dificuldades aos Moonspell. Foi incompreendido ao

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homogéneo, mais sólido, e que tivesse mais a persona- últimos anos da sua vida. Al Jourgensen, dos Ministry,
lidade da banda. Ao ouvir uma canção como a “Self tornou-se amigo do autor de Junky, com quem viria
Abuse”, e gosto dela, não é Moonspell. Somos nós, mas a consumir heroína, e aparece no vídeo de «Just One
ao mesmo tempo não somos. Se o Paixão tivesse um Fix», aconselhando: «never trust a junky». William Bur-
projecto dele naquela altura, seria assim. Isto foi sempre roughs faleceu na sua casa em Lawrence, no estado do
sendo gerido entre nós, nunca houve um conflito, mas Kansas, depois de complicações pós-enfarte. A última
pensámos que, depois do The Butterfly Effect, se quisésse- entrada no seu diário regista: «There is no final enough
mos ter uma carreira, teríamos de fazer um acto de con- of wisdom, experience—any fucking thing. No Holy
trição e compor um disco que fosse mais “nós”. Aquilo Grail, No Final Satori, no solution. Just conflict. Only
não somos nós, é um one-off. Assinar um álbum daqueles, thing that can resolve conflict is love, like I felt for Fle-
sem o nosso logotipo, foi uma inconsciência da nossa tch and Ruski, Spooner, and Calico. Pure love. What
parte. Houve pessoas que nos aplaudiram pela coragem, I feel for my cats past and present. Love? What is it?
outras que disseram que era uma grande merda, mas Most natural painkiller what there is. LOVE.»
o que houve foi uma grande inconsciência da nossa
parte. E é nesses momentos que se faz uma banda, não
é quando corre bem. Quando corre bem pode haver
desgaste, mas quando corre mal é que se vê a fibra. Esta
era de Moonspell foi a de mudança de paradigma.»
Também na literatura, William Burroughs dedi-
cou a fase mais tardia da sua carreira a romances mais
convencionais, considerando os seus próprios padrões,
através de Cities Of The Red Night (81), The Place of Dead
Roads (83) e The Western Lands (87). A sua influência
na cultura pop tornou-se ainda maior, a ponto que
conhecer William Burroughs, in person, ser como um
rito de passagem, de ter uma espécie de validação do
mestre e continuar o seu próprio caminho de explo-
ração de novas fronteiras. Tal aconteceu com David
Bowie (imperdível a entrevista que Burroughs lhe fez
para a Rolling Stone, disponível para leitura no site da
revista), mas também Keith Richards, Jimmy Page, Joe
Strummer, Bono Vox, Thurston Moore, Patti Smith
ou Kurt Cobain, com quem colaborou num disco de
spoken word (The Priest, They Called Him) e que o visitou
durante a tournée de In Utero, onde o autor viveu os

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á vendemos muitas dezenas de milhmilhar
har em capa ded cartol
cartolina,
l como as atuais, a que os agentes
de exemplares de As Crónicas de literários chamam de trade covers. E terá de ter o mesmo
Gelo e Fogo de George R. R. PVP (preço de vvenda ao público). Colocando de
Martin. São 10 volumosos volumess lado a hipótes
hipótese da capa dura, que na coleção Bang!
aos quais perdemos o rasto do é imediatam
imediatamente sinónimo de edição especial,
número de reimpressões e diferentes es resta-no
resta-nos criar um design novo para o
tipos de papel usados – o que explica que o tradicio
tradicional formato trade e acreditar que isso
mesmo volume possa ter uma lombada mais será su
suficiente para conquistar os fãs do
fina ou mais grossa consoante o ano em que foii autor. T
Tudo bem, gostamos de desafios.
impresso. Mas, com exceção das sobrecapas com ma
imagética da série da HBO, as edições continuam ma
ser as mesmas. O mesmo miolo, a mesma capa por baixo
da sobrecapa, o mesmo ISBN. Somos uma editora ora muito
xplica então
visual e que fervilha de criatividade, como se explica Comecei por fazer umuma pesquisa pelo mercado das edições
que nunca tenha havido uma edição especial da melhor especiais de As Cróni
Crónicas de Gelo e Fogo. Encontrei o que
série de fantasia dos últimos 70 anos? Fizemos edições esperava. Tudo em cacapa dura. Mas, adiante, como era o
especiais e limitadas para Poe, Lovecraft, Christopher design? Havia de tudo, entre o maravilhoso e o medíocre,
Priest, Frank Herbert e muitos outros autores, mas mas imperavam as mesmas ideias: as quase omnipresentes
onde andamos com a cabeça para nunca o ter feito com heráldicas das famílias de Westeros, com o lobo feroz
esta série? Este ano, em reunião com o departamento sobre fundo branco para o primeiro volume, o leão
comercial, ficou assente que chegara a altura de começar dourado sobre fundo vermelho para o segundo, o veado
a trabalhar naquilo que todas as outras editoras do autor sobre fundo amarelo para o terceiro, vocês conseguem
já fizeram um pouco por todo o mundo: uma edição adivinhar as restantes. Até nós já fizemos isso com as
especial, exclusiva (leia-se tiragem reduzida), a pensar nos edições de bolso, não seria certamente esse o caminho
fãs mais especiais, garantidamente elegante e que nos deixe para a edição especial que queremos. Encontrei capas que
orgulhosos. Para lançar ao longo do próximo ano. simulavam livros antigos, com costuras, cantos em couro,
Esta foi a parte fácil, depois veio a parte difícil. É que a apliques metálicos, verdadeiramente belas e que funcionam
edição especial não poderá ser em capa dura, pois isso bem em capa dura mas menos bem em cartolina. Pior:
seria custoso e complexo a nível de direitos, mas apenas deu-nos alguma sensação de déjà-vu pois já utilizámos

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essas ideias em outros projetos. Encontrei também edições lista havia dois que eu sabia que teriam de aparecer: Bran
com espadas, escudos, elmos, coroas e afins sobre fundos a ser empurrado da janela e a cabeça decepada de Ned
neutros... Também muito bonitas, mas não, não e não. Stark. O Paulo sugeriu-me muitos outros, como as crias de
Precisamos de algo diferente, esta é uma edição que terá de lobo gigante, a morte do rei Robert, o aparecimento dos
ser mesmo única. primeiros nightwalkers, a morte de Renly pela criatura de
sombra, o cometa vermelho, a batalha da Água Negra, etc.
O passo seguinte foi reunir o máximo de iluminuras
possível, seja retiradas da internet, seja de livros sobre o
tema. Floreados, armas, escudos, cavaleiros e donzelas,
Como sempre acontece nestes casos, quando estamos mais floreados, capitulares, cenas domésticas de bobos
decididos a fazer algo mas ainda não sabemos como, e e monges, animais mitológicos, chamas, edifícios, navios
permitindo o calendário, o melhor é aguardar que a ideia e ainda mais floreados. Depois foi escolher um tipo de
surja. Agora que o cérebro tem esse briefing adormecido em fonte antiga para todos os livros. Ainda namorei a ideia
background, algo (que pode ser qualquer coisa e a qualquer de usar um diferente para cada livro, mas as iluminuras já
momento) irá passar-nos diante dos olhos e criar um seriam tão distintas de volume para volume que a mesma
momento eureka! Esse momento surgiu-me quando estava fonte ajudaria a manter a ligação e a coerência. Foi preciso
a ver o último episódio da derradeira temporada da série escolher os tons dos papéis envelhecidos sob as iluminuras,
da HBO. Não estava à procura de ideias para as capas, assegurar que, lado a lado e lombada a lombada, tudo
pelo contrário, estava a desfrutar da minha série favorita, encaixaria com coerência. E procurar mais floreados,
mas, mesmo no final do episódio, quando o Conselho porque nunca são demais. No fundo, um trabalho de partir
presidido por Tyrion se reúne, Sam apresenta um grosso pedra, mas empolgante para mim, enquanto via nascer
volume com a história das guerras que se seguiram à morte um conjunto de capas originais pelas quais já me estava a
do rei Robert, escrita pelo Arquimaester Mester Ebrose. apaixonar.
Tyrion abre o livro e, eureka!, num lampejo, as capas para
a nossa edição especial passaram-me pela cabeça. Seriam
iluminuras medievais.

É com muita expetativa que vos apresento algumas


das capas da nossa edição especial. Não vou analisar
os elementos de cada uma delas, mas gostava de o
Depois foi mastigar a ideia nos dias seguintes e tomar fazer para a capa do primeiro volume: A Guerra dos
alguns apontamentos. Não bastaria colocar os títulos Tronos. Idealmente a capa falará por si e não precisarão
numa fonte medieval e espalhar floreados em redor. Seria da minha ajuda, mas, mesmo assim, vou fazer-vos uma
necessário personalizar os detalhes, idealmente ligando visita guiada ao design. Ora, temos a cena que eu queria
os elementos de cada capa ao conteúdo de cada livro. muito colocar: a mão de Jaime a empurrar Bran pela janela.
Foi aí que pedi ajuda ao nosso diretor comercial, Paulo Com a desproporção típica das ilustrações medievais, um
Batista, para me passar os momentos-chave de cada um braço roubado a um cristo crucificado, a frase inesquecível
dos nossos 10 livros. Eu já os li há muitos anos, mas o de Jaime numa espécie de bandeirola tão comum nas
Paulo ainda os tinha na cabeça e, depois de uma pequena iluminuras. E depois o lobo branco a lembrar-nos o
pesquisa, enviou-me uns dois ou três acontecimentos mais Fantasma de Jon Snow; a cruz ensanguentada pois o rei
marcantes de cada volume. Mesmo antes de receber a Robert vai à caça pela última vez; e o escudo dos Lannister,
já que a sua maldade e malícia enchem cada página deste
volume (ou apenas porque encontrei o escudo já assim,
prontinho a usar e não resisti).

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Todas as capas terão piscadelas de olho ao conteúdo e
desafio-vos a fazerem esse exercício de caça ao tesouro.
Quero acreditar que, lado a lado, as capas resultarão
numa mancha apelativa nas livrarias, e que vocês, fãs do
autor e da saga, tenham vontade de pegar nelas e levá-las
para casa. Termino esta pequena excursão pelo processo
criativo adiantando que prevemos publicar os livros dois
a dois, mês sim, mês não, ao longo de 2020.

O braço de Jaime
Precisava de um braço despido
para replicar a cena em que
Jaime empurra Bran pela janela.
Cristo apareceu e deu uma
mãozinha, literalmente.

Bran em queda
Não estava à espera, por mais
que procurasse, de encontrar
uma criança em queda livre.
Como tal, peguei neste
instrumentista e trabalhei-o um
pouco. Como ficou pequenino,
eventuais erros nem se veem.

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écada de 80. Um filme de teiras na década de 80, o filme acabou produção, com vários filmes e
ficção científica. Um ator por adquirir o estatuto de culto in- personagens que se destacaram no
holandês praticamente des- contornável na história do cinema. universo cinematográfico: o vilão
conhecido em Hollywood. Quando foi escolhido para inter- Cardinal Roark de Sin City – A
Uma personagem que se tornou pretar o icónico replicante, Hauer era Cidade do Pecado; o executivo das
num ícone da cultura pop. há muito tempo presença assídua no empresas Wayne em Batman – O
Quando falamos em Rutger mundo cinematográfico e televisivo, Início; e o Conde Drácula em Drá-
Hauer, a imagem que nos vem tendo iniciado a sua carreira em 1969 cula III – O Legado.
imediatamente à cabeça é a da na série holandesa Floris, passando Em 2013 protagonizou RPG,
cena final de Blade Runner, quando mais tarde para o cinema. Colabo- a longa-metragem portuguesa
o assustador replicante Roy Batty rou com Paul Verhoeven em Delícias de ficção científica, realizada por
se confronta com o seu caçador Turcas (1973) e O Soldado da Rainha David Rebordão e Tino Navarro,
humano (Harrison Ford), num (1977). e em 2015 participou em dois epi-
memorável discurso de despedida Outro dos papéis que o tornou sódios da série televisiva The Last
que o próprio Rutger ajudou a célebre foi o de capitão Navarre no Kingdom, interpretando a persona-
escrever. filme de ambiente fantástico medie- gem de Ravn.
O lendário Hauer teve uma val A Mulher Falcão (1985), ao lado Destacou-se como poucos no
longa carreira no cinema, embora de Michelle Pfeiffer e Matthew cinema pelo olhar intenso acom-
o seu papel mais marcante tenha Broderick. panhado de silêncio, violência e
sido o do vilão Roy Batty, no fil- O ano de 2005 foi de intensa crueldade em géneros como o
me de culto da ficção científica de terror, a ficção científica e a ação.
1982 realizado por Ridley Scott, Nascido em 1944 em Breu-
que apresenta uma versão distó- kelen, perto de Amesterdão,
pica de uma Los Angeles ocupada Rutger Hauer era filho de profes-
por perigosos replicantes. A cena sores de teatro, mas antes de se-
da morte de Batty é um dos mais guir a tradição familiar e ingressar
famosos monólogos da história na Academia de Teatro e Dança
do cinema, e sobre ela David de Amesterdão ainda fugiu de
Webb Peoples, o coargumentis- casa, aos 15 anos, e andou um
ta, referiu em 2017: «Rutger leu ano embarcado a limpar o convés
o texto e a seguir acrescentou de um navio de mercadorias.
algumas linhas sobre memó- Para além da sua carreira de
rias à chuva. Depois olhou para ator, Hauer foi um ativista de
mim como um rapazito maroto, causas ambientais (colaborou
como se estivesse a verificar se o com a Greenpeace) e criou ainda
escritor iria ficar chateado. Não o uma ONG dedicada ao combate
deixei perceber o que sentia, mas à sida, a Rutger Hauer Starfish
na altura fiquei aborrecido e sen- Association.
ti-me um pouco ameaçado. Mais Em 2007, o ator publicou a
tarde, ao ver o filme, verifiquei sua autobiografia, escrita em cola-
que aquela frase sobre as lágrimas boração com Patrick Quinlan, que
à chuva foi uma brilhante contri- intitulou All Those Moments: Stories
buição de Rutger. É simplesmente of Heroes, Villains, Replicants, and
maravilhosa.» Para Philip K. Dick, Blade Runners.
autor de Será que os Androides À semelhança da personagem
Sonham com Ovelhas Elétricas?, que que o tornou célebre, em julho
serviu de inspiração ao filme, o de 2019 chegou a hora de Rutger
ator era «o Batty perfeito – frio, Hauer morrer. Sem momentos
ariano e sem mácula». perdidos no tempo, como lágrimas
Apesar do fracasso de bilhe- na chuva.

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