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O ESTATUTO CORPO - SUJEITO OBESO: POR UM OLHAR

PSICANALÍTICO

Thaís Mendes Pires da Silva

Roberta Augusta B. C. Paravidini

RESUMO

O tema do trabalho nasceu do percurso de formação em psicanálise, de uma


experiência pessoal, bem como de um olhar crítico para o significado do corpo na
contemporaneidade. A pesquisa teve como objetivo investigara relação do sujeito com a
obesidade, considerando o lugar que esta ocupa na economia psíquica do sujeito, bem como
situar o contexto contemporâneo e suas implicações no psiquismo, considerando o ideal de
corpo magro, manipulado pelo excesso técnico da indústria da beleza. Para tal estudo, o
referencial teórico utilizado foi a psicanálise, mais especificamenteconceitos psicanalíticos de
Sigmund Freud e Jacques Lacan.

Palavras chave: Corpo na psicanálise; Obesidade; Psicanálise; clínica contemporânea.

1
Artigo científico organizado pelo Núcleo de Normatização e Planejamento de Pesquisa da Faculdade Pitágoras.
2019.

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Thaís Mendes Pires Silva - Aluno(a) do Curso de Especialização em Psicanálise. Graduado(a) no curso de
Psicologia. Atua profissionalmente como psicóloga. E-mail:thais.mps@hotmail.com.
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Roberta Augusta B. C. Paravidini - Professor(a) Orientador. Psicanalista, graduada em Psicologia pela
Universidade Federal de Uberlândia, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas.. E-mail: roberta.c.paravidini@gmail.com.
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1. Introdução

A contemporaneidade tem investido uma grande parcela de responsabilidades ao corpo.


A evolução da medicina contribui de modo significativo para isso, ao oferecer diversos
procedimentos e intervenções como cirurgia bariátrica, implantes de silicone, inseminação
artificial, dentre outros, alterando a relação do sujeito com seu próprio o corpo. Nota-se que
há um descompassode como o sujeito se percebe e como percebe o próprio corpo, pois este
passa a ser tanto o lugar de sofrimento e frustrações bem como realizações, sendo assim, uma
fonte inesgotável de prazer e desprazer.

A forma de enxergar esse corpo e o próprio corpo torna-se assim frustrantes, pois, se o
corpo não representa o que se é, se o corpo não vive o prazer pleno e se o corpo não é o
padrão estabelecido pela cultura, isso pode causar sofrimento e adoecimento. Esses
sofrimentos são vivenciados no corpo de forma real através de modos de adoecimento físico e
psíquico, sendo elas: obesidade, bulimia, anorexia, depressão, fibromialgia, vigorexia,
toxicomania, dentre outras.

Os procedimentos estéticos e as demais intervenções cirúrgicas com vistas a alterações


corporais quase sempre são vistas como a fonte de mudança de vida, como se uma mudança
real no corpo tornasse possível uma mudança no psiquismo do sujeito, bem como uma
mudança no modo como o sujeito se organiza perante o seu corpo. O corpo é modelado,
moldado e mudado com a intenção de alterar aquilo que se sente, assim como a forma como o
sujeito se percebe. Por meio dos avanços da medicina e do discurso transmitido na cultura, se
vive uma ilusão de que é possível ter o corpo perfeito, ou seja, o corpo ideal/idealizado. Sendo
assim, há uma banalização do corpo, em que parece possível solucionar qualquer tipo de
sofrimento, sendo eles biológicos ou não, através de intervenções reais no corpo.

Partindo desse pressuposto, este artigo tem como objetivo investigar a relação do sujeito
como o estatuto corpo-sujeito obeso, partindo do referencial do que é corpo para psicanálise.
Todo o interesse em produzir um artigo com essa temática surgiu a partir de uma experiência
pessoal, bem como a partir da minha escuta clinica sobre as questões que envolvem o corpo e
suas intercorrências.

Trata-se, portanto, de uma pesquisa bibliográfica qualitativa, para a qual foi realizada
uma revisão da produção científica publicada em bases de dados (GOOGLE ACADÊMICO,
LILACS, SCIELO). Foram utilizadas as palavras chaves: Corpo na psicanálise; Obesidade;
Psicanálise; clínica contemporânea. Os achados foram discutidos à luz da psicanálise através
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das teorias clássicas, com foco no tema do estatuto corpo - sujeito obeso e seus
desdobramentos relacionados à obesidade e à cirurgia bariátrica.

O corpo na Psicanálise

2.1 CORPO PARA FREUD

A noção de corpo para Freud é distinta daquela apresentada por outros campos de saber
como a ciência e a filosofia, no qual mente e corpo são versus. Em Freud podemos encontrar
uma distinção entre corpo e organismo, sendo o corpo fonte e finalidade de satisfação. O
corpo passa a ser lugar para as manifestações dos desejos inconscientes ao mesmo tempo em
que a satisfação é fundamentalmente de ordem pulsional.

Os sintomas apresentados no corpo são descritos como traumas psíquicos, e Freud


demonstra que só é possível agir sobre tais sintomas a partir do momento que se fala sobre o
que o corpo sente e sobre o que este manifesta. Sendo assim, o corpo é atravessado pelo que
sente, fala e se faz com ele.

As experiências iniciais de Freud com a histeria o levaram a criar o conceito de pulsão


como uma urgência, que tem origem no organismo que não cessa, mesmo com a reação de
fuga.

“...imaginemo-nos agora no lugar de um ser vivo vulnerável e desamparado, e ainda


desorientado no mundo, mas que já comece a receber estímulos captados por sua substancia
nervosa. Esse ser em breve poderá efetuar uma primeira diferenciação e obter uma primeira
orientação. Por um lado, perceberá que existem estímulos de cujo campo de influência ele
pode se afastar por meio de uma ação muscular (fuga), estímulos esses que atribui então a
um mundo externo. Por outro lado, perceberá que também existem estímulos contra os
quais uma ação como essa resultará inútil, pois , apesar da fuga, eles continuam a exercer
uma pressão constante. Esses outros estímulos são o sinal característico da existência de um
mundo interno, são a evidencia das necessidades pulsionais. A substancia perceptiva do ser
vivo terá assim obtido, a partir da eficácia de sua atividade muscular, um ponto de
referência para diferenciar entre um externo e um interno. (FREUD,S. 2004, p.140).

A partir de então é possível entender a pulsão como conceito limite entre o psíquico e o
somático. A pulsão representa os estímulos que advém do interior do corpo e se manifestam
na relação com o corpo. Os estímulos internos e externos só podem ser identificados a partir
da pulsão. Sendo assim, o que cada sujeito constrói sobre si e sobre o outro é único e
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singular.Dessa forma o corpo passa a ser o que sustenta o sujeito, o corpo sustenta o
fisiológico, o psiquismo o inconsciente. E por isso sofre todos os seus efeitos.

“A clínica da histeria revelou desde o início que não se trata de um suporte neutro. Pelo
contrário, ele é profundamente afetado pelo inconsciente que é suposto a suportar. Significa
que não só causa efeitos no inconsciente como é afetado pelas significações inconscientes.
Por isso é um corpo que além de funcionar conforme os princípios da fisiologia
anatômica... fala. Faz-se porta-voz das significações inconscientes. Acrescente-se a isso a
incidência da pulsão que o força a procurar uma satisfação muito específica uma satisfação
sem palavras e ficará fácil entender o desdobramento que o afeta. É um corpo cuja
fisiologia se faz histeriforme. Por quê? Porque sofre uma refração que o decompõe em
vários planos. Por um lado, a função fisiológica é alterada pela exigência pulsional, e
ambas, por sua vez, sofrem a inflexão que lhes impõe a função simbólica- vide o
inconsciente. (FREUD,S. 2004, p.146).

A partir dessa citação pode-se compreender a complexa relação entre pulsão e


linguagem, entre corpo-organismo e o corpo pulsional, que portam as bases para a formulação
do conceito de corpo erógeno. Com esse conceito, Freud sustentou o fundamento para a
clínica da histeria ao propor que uma dor ou sofrimento não ocorrem exclusivamente por
causas orgânicas, sendo muitas vezes originadas por um sofrimento psíquico advindo das
pulsões sexuais. Devido ao fato de a pulsão proporcionar ao corpo a se inscrever na vida
psíquica, há sempre um investimento libidinal que não cessa, desta forma, todo o excesso é
sentido como desprazer ou sofrimento.

O conceito de narcisismo desenvolvido por Freud também nos oferece uma importante
contribuição para a compreensão da relação entre o corpo e as pulsões. Para Freud, o
narcisismo consiste em uma etapa fundamental da constituição subjetiva que indica um novo
modo de funcionamento pulsional.

Mesmo antes da publicação de seu artigo “Narcisismo: uma introdução”de 1914, Freud
já nos fornecia elementos para considerar que o corpo não é dado desde o início e, assim
como o eu, são constituídos em uma operação dialética. Em sua discussão a respeito do
presidente Schreber (1911), Freud nos fornece importantes contribuições para a compreensão
dessa operação. Ele afirma:
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“O que acontece é o seguinte: chega uma ocasião, no desenvolvimento do indivíduo, em


que ele reúne suas pulsões sexuais (que até aqui haviam estado empenhados em atividades
auto-eróticas), a fim de conseguir um objeto amoroso; e começa por tomar a si próprio, seu
próprio corpo, como objeto amoroso, sendo apenas subsequentemente que passa daí para a
escolha de alguma outra pessoa que não ele mesmo, como objeto”. (FREUD,
1911/1996, p. 68).

Na tentativa de compreender as afecções narcísicas, como a esquizofrenia e a paranóia


de Schreber, Freud elabora, em seu artigo de 1914, a importância do papel do narcisismo no
desenvolvimento sexual normal do ser humano. Do auto-erotismo para o narcisismo primário
e deste para as relações objetais, o eu se constitui como objeto de investimento libidinal.
Destacamos, para o propósito desse artigo, a seguinte passagem:

“É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao Eu não esteja presente
no indivíduo desde o início; o Eu precisa ser desenvolvido. Todavia, as pulsões auto-
eróticas estão presentes desde o início, e é necessário supor que algo tem de ser
acrescentado ao auto-erotismo, uma nova ação psíquica, para que se constitua o
narcisismo” (FREUD, 1914, p. 99).

Deste modo, é possível acompanhar como a noção de um eu se desenvolve, na medida


em que o corpo passa a ser fonte de investimento libidinal. Os estímulos internos e externos
são o que dão contorno e permitem o sujeito a se identificar como sendo um corpo.

“O Eu é, sobretudo corporal, não é apenas uma entidade superficial, mas ele mesmo a
projeção de uma superfície, ou seja, o Eu deriva em uúltima instância, das sensações
corporais, principalmente daquelas oriundas da superfície do corpo. Pode ser visto, assim,
como uma projeção mental da superfície do corpo” (FREUD, S. 1923, p.32).

Diante disso, pode-se perceber que o corpo é uma construção e precisar se inscrever no
aparelho psíquico. A partir disso forma-se a instância do Eu, no qual o sujeito se reconhece
como sendo um corpo. O corpo será a base para a formação dafunção do Eu, que é investida
de libido o tempo todo e, por não cessar nunca, há sempre algo que sobra. Esse algo „que
sobra‟ é o que podemos notar nas condições clínicas que pretendemos discutir no presente
artigo.

2.2 CORPO PARA LACAN

Em seu trabalho de retorno à Freud, o psicanalista Jacques Lacan dá ênfase à dimensão


da pulsão como efeito de linguagem, ou seja, é partir da relação com o Outro, responsável
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porintroduzir o sujeito no campo da linguagem, que se constitui um sujeito. Desse modo,


também podemos compreender que o corpo é uma construção que se dá a partir da operação
da entrada do sujeito na linguagem, o que nos faz considerar que cada construção será única e
singular. (SOUZA, A. 2000)

Ao longo de seus ensinos, Jacques Lacan formulou diversas teorias a respeito da


constituição do sujeito e do modo como se dá essa relação entre corpo e organismo, mediados
pela linguagem. Em um de seus textos, “O estádio do Espelho como formador da função do
Eu” (Lacan, 1949), podemos encontrar o modo como Lacan concebe a emergência do Eu na
medida em que o sujeito passa a ver o outro diferente dele, por meio das operações psíquicas
inerentes ao estádio do espelho. O estádio do espelho é importante para que o sujeito se
reconheça no outro e assim se reconheça nessa imagem, constituindo um eu que terá como
função a sustentação da subjetividade. Nessa operação dialética, constituem-se um eu como
imagem ao mesmo tempo em que se produz um sujeito.

“Basta compreender o Estádio do Espelho como uma identificação, no sentido pleno que a
análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele
assume uma imagem (...). A assunção jubilatória de sua imagem especular, por esse ser
ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote
do homem no estágio de infans, parecer-nos-á, pois, manifestar, numa situação exemplar, a
matriz simbólica em que o eu [je] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar
na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal,
sua função de sujeito (...) o Estádio do Espelho é um drama cujo impulso interno precipita-
se da insuficiência para a antecipação - e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da
identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do
corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica - e para a armadura
enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o
seu desenvolvimento mental. (LACAN, J. 1949 p. 100).

O sujeito existe antes mesmo de seu nascimento através do discurso do Outro e, após o
seu nascimento, precisa ocupar esse lugar. Dessa forma, o corpo é atravessado pela linguagem
e pelo simbólico que, assim, fabrica um corpo. Essa construção feita a partir do outro é apenas
uma capa que encobre aquilo que permanece sendo estranho para o sujeito, ou seja, o seu
interior, que é acessado apenas parcialmente pelas zonas erógenas gerando um gozo. O corpo
é, portanto, efeito de linguagem.

Nos anos 70, Lacan avança na elaboração da noção de corpo. Em seu seminário 22
“Real, Simbólico e Imaginário” afirma que “um corpo não tem outro aspecto senão o de ser
isto que resiste que consiste, antes de se dissolver” (SOUZA, A. 2000, p.37). Dessa forma, o
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que o corpo vive ultrapassa o imaginário e se torna real. Sendo assim, o corpo é tanto objeto
de dar a ordem como pôr em ordem, pois o sujeito se ouve, bem como ouve o outro.

Desse modo, podemos apreender o corpo por meio dos três registros, Real, Simbólico e
Imaginário, conforme sintetizado por Souza (2000).

O CORPO DO REAL

O corpo do real é o mais próximo da noção de somático, pois o real do corpo é a noção
do corpo para a biologia. O corpo do real que sustenta toda existência do sujeito, diz respeito
aos tecidos que constituem o organismo, como corpo real se oferece ao olhar. A partir da
linguagem, nasce a noção de fenômeno somático, no qual desconstrói a noção de sujeito
dividido entre corpo e mente para o corte divisório entre consciente e inconsciente. Dessa
forma não são todas as partes unificadas, mas sim partes do real que se resignificam e que são
um tipo de desconhecimento para o sujeito. O corpo do real é o corpo da linguagem.
(SOUZA, A. 2000)

O CORPO DO SIMBÓLICO

O corpo do simbólico se incorpora a partir do primeiro corpo que é o corpo da


linguagem. O sujeito se incorpora pela fala do outro de forma repetida para dar continuidade a
sua existência e inscrever as primeiras marcas simbólicas. O Outro como significante passa a
exercer o papel de representar este sujeito para outro significante, e esses vários significantes
são o desenvolvimento de toda a existência. O sujeito só emerge no intervalo entre dois
significantes ao mesmo tempo em que ocorre a queda do objeto a. Se esse intervalo entre dois
significantes não se faz, tudo isso é então impossível. (SOUZA, A. 2000)

O CORPO DO IMAGINÁRIO

A relação do sujeito com o corpo começa diante do olhar do outro e da presença de seu
semelhante, na qual a imagem se constrói a partir de pequenos outros. Essa condição foi
denominada por Lacan como estádio do espelho. E através da apresentação da imagem do
espelho, do seu invólucro que se constitui a própria imagem, por meio desse simbolismo não
só de imagem, mas também de representações e linguagem que se fixa a imagem de si. A
partir desse reconhecimento, da junção de imagens, linguagens e símbolos, ou seja, do corpo
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do real e do corpo do simbólico é que se forma o corpo do imaginário. A partir do estádio do


espelho que o sujeito toma forma e passa a ser outro. (SOUZA, A. 2000)Não consegui tirar
este espaço

2.3 CORPO OBESO - OBESIDADE

A cultura brasileira vem passando por uma série de mudanças e de transição


epidemiológica e com isso doenças crônicas têm sido consideradas crescentes nos últimos
tempos. A obesidade é uma delas, pois é um fator de risco de adoecimento que tem acometido
crianças e principalmente os adultos. A obesidade tem chamado a atenção tanto pelas
questões de adoecimento do sujeito de forma física bem como o adoecimento mental, esta
última devido às implicações na forma como o sujeito se enxerga e se aceita socialmente.

A obesidade é uma doença multifatorial que ultimamente assume dimensões


epidêmicas, ocasionando implicações para a condição de vida das pessoas. Consiste em um
grupo de grande complexidade e, diante do fracasso dos múltiplos tipos de tratamentos
disponíveis, sobretudo no que descreve à manutenção da perda de peso, acarreta grande
sofrimento aos obesos mórbidos, induzindo muitos a eleger um método mais radical: a
redução de estômago, através da cirurgia bariátrica.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a obesidade considerando o Índice


de Massa Corpórea (IMC) e risco de mortalidade, independente do sexo e idade. O IMC é
calculado dividindo-se o peso do individuo por sua altura ao quadrado. De acordo com a
OMS, a obesidade mórbida é uma versão patológica da obesidade, classificada por um IMC
maior ou igual a 40 kg/m2. (REVISTA MÉDICA DE MINAS GERAIS, 2010).

2.4 PSICANÁLISE E OBESIDADE

Conforme o percurso teórico desse artigo, pode-se afirmar que o modocomo o sujeito
se estrutura no percurso da constituição de sua subjetividade é sempre multideterminada
emsua forma de estar no mundo e de estabelecer uma posição frente à falta do Outro. De
acordo com Lajónquière, o destino do sujeito desejante dependerá das possibilidades de ser
“arrancado da célula narcisismo/mãe fálica”ao mesmo tempo em que o corte não deve lhe
impossibilitar levar consigo a quantidade de energia necessária para investir nas coisas que o
rodeiam nos objetos(Lajonquière, 1992, apud Silva, 2006p. 42).Assim, podemos pensar a
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obesidade mórbida na atualidade como uma interseção entre a história do sujeito e as ofertas
da sociedade de consumo.

A psicanálise se interessa pelas doenças na medida em que se relacionam com a


subjetividade. Por essa perspectiva, a doença como sintoma, implica um corpo para o qual o
adoecer incida como função e não como disfunção, como pressupõe a lógica da medicina. No
entanto, não se trata de novos sintomas, já que sempre foram presentes na literatura
psicanalítica. O que tem de moderno equivale à sua dimensão na cultura, ou seja, seu caráter
quase epidêmico, como se adverte na obesidade.

De acordo com Recalcati (2002), a obesidade sugere uma passividade do sujeito em


relação à falta de condições de gerar um desmame do Outro, que oferece de forma ilimitada e
asfixiadora. Sugere ainda que isso ocorra devido a um Outro que abafa todo o desejo do
sujeito por meio da oferta insaciável de objetos. O autor comenta também que a obesidade
mostra-se como um protótipo clínico da civilização contemporânea, no qual a capacidade
simbólica assemelha-se a satisfazer a um aumento progressivo ao consumo do objeto, sem
nenhum adiamento do vazio.

“[...] o discurso social atual sustenta a necessidade de uma saturação do vazio ou, mais
exatamente, a saturação do vazio como modalidade de supressão da falta e do desejo. A
obesidade é o fenômeno psicopatológico que, talvez mais que todos, ilustram os efeitos
devastadores dessa saturação: o corpo é reduzido a um mero receptáculo de
objetos”.(RECALCATI, 2002, p. 63).

O autor ressalta que, ante às transformações da nossa cultura, o grande Outro deixou
desmoronar seu poder de interdição, favorecendo para que a lei perversa de gozo fique ao
alcance das mãos. Desta forma, o discurso capitalista, ao oferecer uma infinidade de objetos
com a promessa de tamponar a falta, nada mais faz do que reforçá-la, operando nessa lógica
perversa descrita por Recalcati. Esta se sustenta no fato de não preencher a falta e sempre
produzir novas formas de faltas, ou seja, outros objetos compensatórios que geram um ciclo
de consumo, suscitando assim o esquecimento do simbólico e uma impulsiva ambição por
objetos. Todo esse discurso sustenta e reforça a ideia da obesidade como fruto dessa
sociedade contemporânea na qual o sujeito obeso se coloca no lugar de não ter que lidar com
a falta, pois sempre há algum objeto ao alcance como forma de compensação.

“Na época do discurso capitalista o que mais conta não é a ligação com o Outro – a espera
do signo da sua fala – mas, antes, a inveja do gozo do Outro, o sofrimento do ser excluído
do gozo, não do signo.” (RECALCATI, 2002, p. 63).
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Partindo desse pressuposto a angústia do sujeito obeso é a angústia do demasiado cheio,


como podemos acompanhar no trecho a seguir:

“Sendo assim, a angustia da obesidade é uma angústia de sufocamento, produzida não só


pelo peso do próprio corpo, pois se trata de uma angústia decorrente de uma presença em
excesso do objeto, “é angustia do demasiado cheio, [...] uma vez que nesse excesso de
presença, nesse excesso de objeto, o sujeito acaba por se sentir engolido.”
(RECALCATI,2002, p. 64).

Partindo desse ponto de vista, o fator mais agravante é o modo como o sujeito que sofre
com a obesidade se identifica com o vazio do estômago a partir do vazio da sua vida, gerando
assim uma “maquina de gozo”. Desse modo, o excesso de fome presente na obesidade não se
diferencia e não há um limite entre fome animal e fome humana:

“Quando esse limite se escreve, ele nunca é um dado da natureza, mas um efeito da ação do
simbólico, da ordenação simbólica que barra o corpo animal e o apego do homem à matéria
originária do alimento-mãe.” (RECALCATI, 2002, p. 52).

O autor faz uma comparação a respeito da fome entre obesidade e bulimia e, de acordo
com o mesmo, as experiências pulsionais são semelhantes, mas se distinguem em relação ao
Outro, sendo um da alienação e o outro da separação do Outro.

“A bulimia é uma alienação que preserva, no momento do vômito, a possibilidade de uma


separação do outro. Na bulimia, de fato, alienação e separação convivem. Contrariamente,
na obesidade há somente alienação.” (RECALCATI, 2002, p. 59).

A invasão de gozo exagerado causa uma naturalidade da demonstração do que o corpo


vive devido à ausência de recursos simbólicos suficientes. Há uma solução defensiva nesses
casos, sendo ela a forma como o sujeito obeso se percebe, descrevendo o seu corpo como algo
de fora, ou seja, separado de si mesmo. Essa percepção de si, vivida como estranha, é
ressaltada e evidente devido à dificuldade do sujeito obeso sentir, tocar, mover e alcançar
algumas zonas do seu corpo.

“Essa separação pode produzir uma fantasia de um corpo virtual, narcisista, idealizado, uma
espécie de um eu ideal totalmente desencarnado no qual o sujeito obeso se refugia.”
(RECALCATI, 2002, p. 57).

De outro modo, também podemos notar um traço perverso na obesidade:


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“o sujeito obeso demanda não o desejo do Outro, mas exibe-se, capturando o olhar do outro
e lhe causando angústia. Nesse sentido, se revela um traço perverso: o sujeito se torna
objeto que causa angústia no Outro.” (RECALCATI, 2002, p. 54).

A obesidade por si só não pode ser definida como neurose, perversão e psicose, pois não
pode ser definida como estrutura. A obesidade, no caso da neurose, pode ser usada como uma
indagação histérica a respeito do desejo do outro. Pode se estabelecer também como uma
defesa a certos adoecimentos, sendo um deles, uma defesa contra a depressão.

“A sensação permanente do vazio”, típica da obesidade e de outros distúrbios de


alimentação deve ser reportada ao “caráter enigmático da perda do objeto, tal como Freud a
especifica: o sujeito melancólico vive dramaticamente a experiência da perda do objeto sem
saber qual objeto está verdadeiramente em jogo.” (RECALCATI, 2002, p. 67).

De tal modo, o objeto perdido encontralugar no objeto alimento, sendo consumido de


forma insaciável. O consumo dessa forma se dá como uma recusa ao objeto primordial
perdido no momento do desmame.

“O sujeito obeso evita a angústia relativa ao encontro com o desejo do Outro, construindo
um verdadeiro e próprio universo no qual todo o gozo fica concentrado no objeto
alimento.” (RECALCATI, 2002, p. 69).

Dessa forma, o corpo obeso passa a ser a própria recusa, pois a recusa ao indivíduo
obeso não foi possível. A obesidade significa então a não possibilidade de separação,
impossibilidade de recusa. Há uma impossibilidade de recusar o “objeto-alimento”, o dever de
dizer sempre „sim!‟, o que indica um caráter de passividade, no qual o sujeito obeso não
obtém um desmame “da oferta ilimitada e asfixiante do outro.” (RECALCATI, 2002).

2. Considerações finais

O estatuto do corpo - sujeito obeso pode ser pensado na atualidade como uma interseção
entre a história de vida do sujeito e a lógica da sociedade de consumo. A sociedade
contemporânea nos coloca frente a um novo estilo de vida, especialmente de uma
supervalorização da imagem, do corpo esbelto, do corpo reconstruído pelas plásticas, entre
outros, ofertando assim várias possiblidades a serem consumidas. Dessa forma, o sujeito está
sempre buscando o corpo da estética perfeita transformando assim a finalidade da sua
existência.
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A cirurgia bariátrica surge como uma forma quase obrigatória, um modo de submissão
em que o sujeito deve, por meio dessa intervenção, para o obeso, transformar o olhar sobre si
e o olhar dos outros para assim poder existir e ser amado. A expectativa é de que, mudando o
corpo, possa alterar a forma de se ver e se identificar. A cirurgia bariátrica opera no real do
corpo e também em seu estatuto imaginário, produzindo efeitos na relação do sujeito com o
mundo. Contudo, como ser de linguagem, é fundamental a articulação com o registro
simbólico para que o sujeito possa saber-fazer com esses efeitos.

Com isso, o sujeito obeso quando fracassa cirurgia bariátrica começa a buscar novas
respostas e formas para estar na lógica de consumo da sociedade contemporânea.

Apresento uma música a qual delineia a luta constante pela indústria da magreza, que
elucida a dor de viver um corpo que precisa ser moldado o tempo todo para se encaixar nos
padrões estabelecidos, isso sem pensar nas consequências e nas formas para obter esse corpo.
Beyoncè em sua música Pretty Hurts canta:

We shine the light on whatever's worst


You're try na fix something
But you can't fix what you can't see
It's the soul that needs a surgery

Ain’t got no doctor or pill that can take the pain away
The pain's inside and nobody frees you from your body
It's my soul, it's my soul that needs surgery
It's my soul that needs surgery
Plastic smiles and denia lcan only take you so far
Then you break when the fake faça deleaves you in the dark
You left with shattered mirror sand the shards of a beautiful past

Traduzindo o trecho acima:

“Mostramos o que temos de pior


Você tenta consertar algo
Mas você não pode consertar o que não pode ver
É a alma que precisa de cirurgia
Não há médico ou remédio que possa curar esta dor
A dor está dentro e ninguém te liberta de seu corpo
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É a minha alma, é minha alma que precisa de cirurgia


Sorrisos de plástico e negação só te carregam até certo ponto
Mas você quebrará quando a fachada de mentira te abandonar no escuro
Você é deixada com um espelho quebrado e os cacos de um belo passado”.
(Tradução livre).

Como se pode acompanhar no percurso desse artigo, o discurso contemporâneo produz


efeitos na subjetividade e, consequentemente, na constituição de um corpo. A clínica
psicanalítica nos auxilia na compreensão dessa dinâmica dos processos de subjetivação ao
apontar o modo como cada um pode operar com esses efeitos de discurso. Se por um lado,
pode-se apreender o corpo obeso como um sintoma do discurso contemporâneo, por outro
lado, é a partir da escuta clínica que se pode apreender como cada um consegue subjetivar a
dupla condição de falta, do sujeito e do Outro e se lançar numa posição desejante.
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REFERÊNCIAS

FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia.


Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XII. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XIV.

FREUD, S. (1915). As pulsões e suas vicissitudes. In: Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XIV.

RECALCATI, Massimo. O Demasiado cheio do corpo. Por uma clínica psicanalítica da


obesidade. Latusa, Rio de janeiro,2002.

SCHAKAROWSKI, Fabiana Brum; OLIVEIRA, Viviane Ziebell de. O corpo (im)possível


através da intervenção cirúrgica: uma revisão sobre imagem corporal, obesidade e cirurgia
bariátrica.Aletheia,Canoas, n. 45, p. 177-189, dez. 2014 .

SILVA, Adriana Aparecida de Andrade. Cirurgia bariátrica – como o psiquismo significa


esse corte no corpo? Universidade Católica de Brasília, 2006

SOUZA, Aurélio. O corpo da psicanálise e a falha epistemo-somática. O corpo da


psicanálise. Rio de Janeiro, n. 27, p. 33-39, 2000.

ZUCCHI, Márcia. Algumas observações sobre a clínica da obesidade em psicanálise.


Latusa, Rio de Janeiro. 2002.

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