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CONSUMIR BEM PARA CONSUMIR SEMPRE: UMA PRÁTICA PROPOSTA

PELO CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ENSINO MÉDIO

Camila Aparecida Lopes Coradetti Manoel


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Marcio Antonio Silva
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Alan Pereira Manoel
Secretaria Municipal de Educação Campo Grande -MS

Resumo: O presente texto trata-se de um recorte de uma investigação de doutorado em


andamento, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – PPGEdumat/UFMS. Tal investigação
também está sendo desenvolvida no âmbito de discussão do GPCEM- Grupo de
Pesquisa em Currículo e Educação Matemática, que tem buscado problematizar o
currículo de matemática e suas formas de constituição do sujeito moderno. A
investigação tem por objetivo: descrever e analisar os discursos econômicos que
atravessam documentos curriculares e livros didáticos de matemática do ensino médio
aprovados pelo PNLD de 2018 (BRASIL, 2017). O presente artigo visa mostrar uma
parte dessa investigação, se dedicando a, descrever e analisar os discursos sobre
consumo presente nos livros didáticos de matemática do ensino médio aprovados pelo
Programa nacional do livro didático - PNLD de 2018”. Para isso, o trabalho fez uso de
algumas ferramentas da análise do discurso proposta por Foucault, em que as
enunciações presentes nos livros didáticos de matemática do ensino médio aprovados
pelo PNLD de 2018, contribuem para constituição do enunciado “consumir bem para
consumir sempre”. Para problematizar esse enunciado e buscar suas relações com
outros campos do saber que atravessam o currículo de matemática, compondo o que
deve ser o ensino de matemática, e quais os tipos de sujeitos devem ser constituídos por
esses, e nesses discursos, fez se necessário alguns estudos sobre a Educação e o
consumo. Tais estudos motivaram uma análise direcionada para evidências de um
currículo de matemática atuando em consonância com práticas de biopolítica, ou seja, o
currículo de matemática atuando como uma política sobre a vida, sobre os modos de
existir no mundo moderno, mais especificamente, com práticas de governamentalidade
neoliberal. Foi possível observar essas evidencias, pois, os livros didáticos de
matemática do ensino médio aprovados pelo PNLD de 2018, abordam vários exemplos
de como melhor consumir, qual melhor opção de consumo, exemplos que utilizam
panfletos relacionados ao fato de que quanto mais consumir, mais terá descontos.
Observando essas evidências, e relacionando as mesmas com o atual modelo econômico
de Estado, que no caso é o neoliberalismo, foi observado a necessidade de educar e
instruir economicamente como as pessoas devem se comportar como consumidores,
pois o neoliberalismo não se sustenta fora das relações de consumo. É nesse ponto que
foi possível observar proximidades com aquilo que Foucault chamou de
governamentalidade neoliberal, uma maneira sutil de conduzir e regular o
comportamento das pessoas, responsabilizando as mesmas pelo seu bem estar e sucesso,
mas também, pelo desenvolvimento e conservação do Estado.

1. Introdução
O consumo é visto como uma ocupação das pessoas, ou seja, uma atividade
econômica que busca satisfazer algumas necessidades. Inspirados em Lipovetsky
(2007), podemos mencionar que há várias e incessantes formas de consumo, que variam
de acordo com o acúmulo de capital das sociedades. Dessa maneira, podemos
considerar que os modos de consumo estariam presentes em todas as camadas da
sociedade, sendo elas mais ou menos ricas.
Compreendendo o consumo como uma atividade econômica que afeta toda
sociedade, Costa (2009, p. 35) menciona que o consumo é o “[...] centro organizador da
ordem social, política, econômica e cultural do presente e todos nós somos educados
para e por ele”. Sendo o consumo algo tão presente nas sociedades, podemos observar
que consumo não é algo tão ingênuo e deixado ao acaso, ou seja, o consumo é algo de
grande interesse para Estado, pois afeta continuamente os sistemas econômicos.
Lemke (2018, p. 148), menciona que há uma importância de controle sobre a
vida, e esse controle é visto ou é dado como uma atuação política, principalmente nos
processos econômicos. Ou seja, esse tipo de política “[...] atribui aos mecanismos
econômicos de coordenadas e de condução uma tarefa de servir à vida, de modo que
esses mecanismos são meios para um fim, e não um fim em si mesmos”. Articulando
essas ideias, e também, aquela que mencionamos, a de Costa (2009), em que somos
educados para e pelo consumo, podemos compreender que o mesmo também é um
objeto de controle da sociedade contemporânea, ou seja, um objeto político do Estado.
Veiga Neto e Saraiva (2011), mencionam o quanto em uma sociedade
contemporânea a Educação tem se tornado uma importante ferramenta para o controle
das condutas. Pensando nessa direção, temos a Educação, o currículo como uma
ferramenta que pode colocar em prática esse controle exigido pela sociedade
contemporânea. Nesse sentido, vislumbramos qual seria o papel da matemática presente
nos currículos escolares, ou para sermos mais específicos, quais discursos sobre o
consumo compõem o currículo de matemática do ensino médio?
Para discorrer um pouco mais sobre essa temática, apresentaremos a seguir, um
recorte de uma investigação que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-
Graduação em Educação Matemática, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Esse recorte tem como objetivo “descrever e analisar os discursos sobre consumo
presente nos livros didáticos de matemática do ensino médio aprovados pelo Programa
nacional do livro didático - PNLD de 2018 (BRASIL, 2017) ”.
Essa investigação também vem sendo desenvolvida junto ao GPCEM – Grupo
de Pesquisa em Currículo Educação Matemática. O GPCEM tem desenvolvido
investigações no campo da Educação Matemática e Currículo de Matemática.
Atualmente desenvolve o projeto “Redes discursivas construídas em livros didáticos de
Matemática do ensino médio1”. Os estudos realizados têm buscado as contribuições de
Foucault e outros interlocutores. Com isso, tem vislumbrado o currículo como um
campo que endereça e contribui para constituição de um tipo desejável de sujeito2.
Nesse artigo apresentaremos como o currículo de matemática, os livros didáticos
de matemática do ensino médio, tem se referido ao consumo, em quais condições de
possibilidades a matemática apresenta essa temática. Para isso utilizamos as
contribuições de Foucault, ou seja, um ‘“[...] pensar com ele’ a Educação Matemática”,
assim como propõem Valero (2018, p. 47), pois o mesmo não pensou nessa área de
investigação, mas podemos deslocar alguns de seus problemas para pensar “[...] como
as pessoas se tornam sujeitos como efeitos do poder e como o conhecimento, em tempos
modernos, fazem partes das tecnologias de governo e poder”. Ou seja, como o currículo
tem contribuído para essa dinâmica. Nesse sentido, nos inspiramos em sua caixa de
ferramenta.
Em seguida apresentaremos como a pesquisa se desenvolve, em quais processos
constituímos esse método. Pois, observamos que as contribuições de Foucault, nos
inspira na constituição de um método singular de cada pesquisa, e que em cada um,
1
Atendendo à Chamada Universal MCTI/CNPQ Nº 14/2014.
2
Cf. Foucault (1995, p. 235), “há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle
e dependência, e preso a sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento, ambos
sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a”, ou seja, essa constituição se instaura, pelos
processos de “subjetivação” (LARROSA, 2011).
compõem-se com os materiais que lhes são disponíveis em sua caixa de ferramentas. A
seguir das análises e problematização do enunciado.

2. Referencial teórico
Como já foi mencionado anteriormente, a Educação seria de grande importância
para o controle da conduta das pessoas, e estando inseridas nessa esfera econômica, faz
com que haja essa necessidade de controle. Nesse sentido, seria o currículo que estaria
ditando como deve ser esse controle, levando em consideração o currículo como “[...]
práticas de ensino e aprendizagem, bem como o conteúdo da matemática escolar tem
um significado específico ao direcionar as novas gerações para se tornarem
determinados tipos e pessoas. (VALERO, 2018, p. 44). Ou seja, o currículo enquanto
documento de identidade.
Dessa maneira, o currículo escolar pode ser visto como discurso, impondo como
e o que deve ser ensinado, como deve ser moldado esse sujeito desejável, tornando
como estatuto de verdade o que deve ou não fazer parte do currículo de matemática. Ou
seja, os conteúdos matemáticos não pensados de maneira intencional, como se tivesse
algo idealizado, mas sim, como os conteúdos matemáticos e os contextos que são
apresentados entram nessa ordem dos discursos da sociedade contemporânea
atravessando o currículo escolar.
Podemos observar isso na seguinte fala de Morgan (2016, p. 1):
o discurso é levado a envolver não apenas o uso do idioma, mas também suas
funções dentro das práticas sociais da Educação matemática. Essas práticas
envolvem formas distintas de ver o mundo e atuar nela, formas de identidade
e relações entre os participantes, e conjuntos de valores e expectativas, todos
os quais formam e são moldados pelo uso da linguagem. O componente
discursivo de uma prática envolve os padrões distintivos de linguagem e
outras formas de comunicação que os participantes usam para interpretar sua
experiência do mundo. Considerar a Educação matemática como uma
questão de discurso, portanto, implica estudar os padrões de uso da
linguagem: os objetos e ações que são falados, as relações entre eles e os
valores que lhes são atribuídos; as posições sujeitas que estão disponíveis e as
formas em que podem ser aceitas ou contestadas; e quais tipos de coisas
podem ser ditas e quais os participantes no discurso são capazes de dizer o
que. (MORGAN, 2016, p. 1, tradução nossa 3).

3
discourse is taken to involve not only use of language but also its functions within the social practices
of mathematics education. These practices involve distinctive ways of seeing the world and acting in it,
forms of identity and relationships among participants, and sets of values and expectations, all of which
shape and are shaped by language use. The discursive component of a practice involves the distinctive
patterns of language and other forms of communication that participants use to construe their
E nesse sentido que Foucault tem nos inspirando, mostrando que o discurso não
se reduz a estreita relação entre a realidade e língua, mas sim “[...] que, analisando os
próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as
palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva”
(FOUCAULT, 1987, p. 56). Essas regras seriam as regras de um tempo histórico de
uma sociedade, verdades inabaláveis que controlam as condutas dos sujeitos que
habitam esses discursos.
O discurso é um conjunto de enunciados que se apoiam na mesma formação
discursiva, ou seja, que se apoiam no mesmo campo do saber (FOUCAULT, 1987). De
acordo com Fischer (2012, p. 77), os enunciados são “raros”, isto é, não são óbvios, e
estão além das “coisas dadas”, “[...] pois ele se encontra na transversalidade de frases,
proposições e atos de linguagem: ele é sempre um acontecimento, que nem a língua
nem o sentido podem esgotar inteiramente” (Foucault,1987, p.32).
Os enunciados são formados pelas enunciações e visibilidades, ou seja, aquilo
que está escrito, que foi narrado, ou o que está ilustrado, como por exemplo imagens.
Para análise, descrevemos as imagens, tornando-as textos, assim como propõem de
Collange, Almeida e Amorim (2014),
[...] submissão da imagem à sua descrição e transformação em texto escrito,
tratando-a, analiticamente, de forma equivalente à palavra escrita, à narrativa,
à expressão do conceito e/ou às teorias das concepções mentais, sociais muito
presentes nos estudos de aprendizagem em ensino de ciências”.
(COLLANGE; ALMEIDA; AMORIM, 2014, p.826).

Ainda por enunciações Foucault (1987, p. 114) menciona que “[...]há enunciação
cada vez que um conjunto de signos for emitido. Cada uma dessas articulações tem sua
individualidade espaço-temporal”. E que a “[...]enunciação é um acontecimento que
não se repete; tem uma singularidade situada e datada que não se pode reduzir”.

experience of the world. Considering mathematics education as a matter of discourse, therefore, entails
studying the patterns of language use: the objects and actions that are spoken of, the relationships
between them, and the values attached to them; the subject positions that are available and the ways
these may be taken up or contested; and what kinds of things can be said and which participants in the
discourse are able to say what. (MORGAN, 2016, p. 1).
Esses elementos, ou melhor, essas ferramentas, nos possibilitou pensar discursos
sobre o consumo, discurso que regulam condutas, que constituem sujeitos desejáveis
pelos currículos de matemática. E como reguladores, exercem verdades e
consequentemente atuam com relações de poder e saber, ou seja, práticas sociais por
definição permanentemente presas, amarradas às relações de poder, que as supõem e as
atualizam.
Articulando essas ideias juntamente com currículo, temos que:
a escolaridade é uma prática que visa não só transmitir o conhecimento
acadêmico, mas também formar estudantes em tipos específicos de assuntos
sociais, Bernstein argumenta que o discurso da sala de aula consiste em um
discurso instrucional (o discurso recontextualizado da matemática) que está
sempre inserido dentro de um discurso regulador que molda os tipos de
comportamentos, identidades e relacionamentos disponíveis para estudantes e
professores. O tipo de conhecimento matemático que os alunos adquirem é
uma função não só do discurso instrucional matemático que eles encontram,
mas também das oportunidades de adquirir isso que são oferecidas pelo
discurso regulador. (MORGAN, 2016, p. 4, tradução nossa) 4.

Nesse sentido, o currículo quando prioriza determinados conteúdos,


determinados contextos sociais idealizam o que deve ser ensinado para alunos, propõem
tipos específicos de sujeitos, sujeitos esses idealizados. E dessa maneira exerce práticas
sociais mergulhadas em relações de poder. De acordo com Osório (2010, p. 128), o
poder é “[...] uma relação de forças, não algo que se toma ou se dá, se ganha ou perde.
Circula em rede e perpassa por todos os indivíduos [...]. Trata-se de um jogo de forças,
lutas transversais presentes em toda sociedade e em todas as instituições”.
E esse poder, assim como o exercido pelo currículo de matemática, pode ter o
poder de normalizar discursos, e consequentemente de conduzir condutas, ou gerar uma
consciência de se auto conduzir. Pois as “[...] práticas educativas são consideradas
como um conjunto de dispositivos orientados à produção dos sujeitos mediante a certas
tecnologias de classificação e divisão tanto entre indivíduos quanto no interior dos

4
is a practice that aims not only to transmit academic knowledge but also to form students into
particular kinds of social subjects, Bernstein argues that the discourse of the classroom consists of an
instructional discourse (the recontextualized discourse of mathematics) that is always embedded within
a regulative discourse that shapes the kinds of behaviors, identities, and relationships available to
students and teachers. The kind of mathematical knowledge that students acquire is a function not only
of the mathematical instructional discourse they encounter but also of the opportunities. to acquire this
that are afforded by the regulative discourse (MORGAN, 2016, p. 4, tradução nossa).
indivíduos” (LARROSA, 2011, p. 52). Tecnologias orientadas ao próprio trabalho do
sujeito sobre si mesmo.
Sobre essa tecnologia Foucault (1984, p. 297-298, apud, LARROSA, 2011,
p.55) a chamou de “subjetividade”, trata-se de: “[...] estudar a constituição do sujeito
como objeto para si mesmo: a formação dos procedimentos pelos quais o sujeito é
induzido a observar-se a si mesmo, analisar-se, decifrar-se, reconhecer-se como um
domínio de saber possível”. Nesse sentido acreditamos que o currículo não busca
apenas por um processo de formação, mas também, propõem práticas que contribuem
para que sujeito se auto conduza.
Até aqui apresentamos alguns conceitos de nossa caixa de ferramenta, passamos
a seguir para os processos analíticos.

3. Movimento analítico

Antes de iniciar sobre os movimentos analíticos comentaremos a seguir um


pouco de como constituímos, ou melhor, engendramos nosso olhar. Um olhar que tem
se voltado para processos investigativos que
[...]tentam superar as limitações impostas pelo formalismo metodológico
instaurado pela ciência moderna, já são familiares procedimentos de pesquisa
em que a produção de conhecimentos é concebida como prática social, como
construção coletiva, como processo histórico, em oposição a uma visão de
ciência em que o rigor é assegurado por supostos e interessados atributos de
neutralidade, objetividade e assepsia conceitual. (COSTA, 2007, p. 14).

Em consonância a isso e ao que já mencionamos sobre a construção dessa


investigação como algumas ferramentas inspiradas na análise do discurso, constituímos
nosso olhar a partir das enunciações sobre consumo. Ou seja, em quais contextos o tema
“consumo” era apresentado nas obras didáticas de matemática aprovadas pelo PNLD de
2018. Vale ressaltar que consideramos enunciações textos e imagens.
Foram analisadas as vinte quatro obras subdividida em oito coleções com três
volume cada. Para esse artigo apresentaremos apenas alguns excertos sobre a temática
“consumo”, somente aqueles que nos proporciona a construção de um processo analítico
para investigar em que condições de possibilidade que essa temática está inserida nos
livros didáticos, e dessa maneira, como se relaciona com outros discursos podendo
produzir processos de subjetividade. A partir de então, iniciamos nossa construção
analítica.
O primeiro exemplo que apresentamos é de como a obra didática, utilizando a
matemática como ferramenta tem ensinado a consumir. Podemos notar tal fato, quando
observamos as diversas atividades sobre informações ao consumidor, como podemos
notar no exemplo a seguir:
Figura 1: Ensinando sobre inflação
(Paiva, 2017, v. 1 p. 42)
Figura 2: Ensinando sobre inflação
(Paiva, 2017, v. 1 p.43)
Assim como o exemplo das Figuras 1 e 2, outras obras também mencionam
sobre inflação, como é o caso de Dante (2018, v.3, p. 17), Balestri (2016, v. 2 p. 201) e
Souza (2018, v.3, p. 20), não será possível mostrar todas aqui devido a extensão do
trabalho. Mas, o que gostaríamos de mencionar com essa regularidade de surgimentos
sobre o tema “inflação” é que como um conceito econômico, ou seja, um conceito do
campo da economia é articulado e mencionado no livro de matemática para abordar a
temática de porcentagens.
Tal fato nos leva a pensar que a matemática estaria funcionando a serviço de
ensinar conceitos econômicos, e que nesse caso, seria ligado a ideia de consumo.
Podemos notar isso em uma descrição da imagem, que consiste em várias informações.
Primeiramente em como a inflação é calculada; ilustra pessoas comprando alimentos e
outros bens de consumo; menciona qual a despesa de uma família com renda até 5
salários mínimos; que a inflação é calculada pela variação de cada grupo e sua
relevância de consumo. Tais informações podem proporcionar identificar qual o melhor
momento para consumir, instruir a população de como consumir.
Esse fato não é notado apenas nos exemplos sobre inflação, eles também podem
ser percebidos em outros exemplos da obra didática, como o da imagem a seguir:
Figura 3: Parcelar ou não?
(Dante, 2018, v.3, p. 21 - 22)

A Figura 3 trata-se de um exemplo resolvido sobre a compra de um berço, esse


exemplo discuti sobre a compra à vista ou parcelado, após a resolução chegou a
conclusão que a taxa de juros cobrados ao mês é de 50%. Não há uma discussão sobre a
taxa de juros executada pela loja vendedora, deixando essa discussão para os alunos e o
professor. Mas, o que nos interessa em atividades como essa é fato de como a
matemática tem servido ao interesse de educar e abordar como se deve consumir.
Mesmo não ocorrendo essa discussão sobre a diferença entre comprar a vista ou
parcelar, o aluno é instruido como deve se comportar ao consumir algo, que deve fazer
uma análise no momento da compra, não descartando a compra. A aquisição do produto
é sempre a atitude desejada nos exemplos abordados, podemos confirmar tal fato no
próximo exemplo, vejamos:
Figura 4: Tomando decisões nas liquidações

(Dante, 2018, v. 3, p. 16)

Na Figura 4 é mencionado um exemplo sobre a tomada de decisões nas


liquidações, a imagem é apresentada de forma ilustrativa por um planfleto de
propaganda, a atividade proposta pela obra didática propõem escolher a opção mais
vantajosa, e novamente a única opção é o consumo. Ou seja, de todas a opções
propostas o consumo está presente em todas.
As imagens acima e suas enunciações nos levou a produzir um enunciado
composto por dois campos de saber, um relacionado a economia, e outro relacionado a
matemática, que no caso seria conceitos de porcentagem e juros. Esses campos se
correlacionam nas obras didáticas, ou seja, para mencionar conceitos matemáticos o
currículo de matemática recorre à abordagens do campo econômico, ou seja,
enunciações do campo econômico também atravessam o currículo de matemática. Essas
enunciações nos levam a produzir o enunciado “consumir bem para consumir sempre”.
A problematização desse enunciado, a maneira de observar como o mesmo entra
no jogo do falso e verdadeiro e se constitue como objeto do pensamento no currículo de
matemática, nos levou a pensar o currículo enquanto uma instância política. Por esse
fator, passamos a observar o contexto político e econômico vigente, que no caso tem
inspirações no neoliberalismo. O neoliberalismo se caracteriza por uma corrente política
e econômica em que o Estado se desvincula de algumas obrigações passando a
responsabilização para o sujeito, e dessa maneira, propõe que o mesmo busque
constantemente se adaptar as mudanças, ser flexível, se auto empreender na sociedade
atual. Mas, além disso está baseado nas raízes do capitalismo e só se sustenta dentro das
relações de consumo, o consumo seria força motriz para esse tipo de modelo.
Articulando essas ideias com a Educação e com a argumentação inícial,
podemos notar que a mesma tem uma função muito importante nesse processo, pois
para que essa engrenagem neoliberal funcione é preciso educar e conduzir os sujeitos
envolvidos. Dessa maneira, faz todo o sentido se ensinar a consumir, para que o
consumo se mantenha e consequentemente mantenha o Estado. Nesse sentido, o
currículo de matemática seria uma esteira para propagação desse tipo de política.
Observando essas ideias e buscando uma relação com os estudos realizados por
Foucault, podemos notar que o currículo de matemática estaria atuando com práticas de
biopolítica. Ou seja, práticas que insidem sobre a vida da população, sobre suas
condutas, exercendo relações de poder sobre os modos de ser e estar no mundo. Sobre
isso, Gadelha (2013, p. 123-124) afirma que:
uma vez anexado a nova economia de poder que rege as sociedades
disciplinares, de normalização e de regulamentação, essa modalidade de
governo dos homens já não pode ser entendida como se referindo apenas ao
domínio espiritual e moral da vida destes. [...] o que essa crise deixa antever,
segundo Foucault, é um questionamento geral sobre como se deve governar e
conduzir os indivíduos, mas também sobre como os próprios indivíduos
podem tomar a si a tarefa de se autogovernarem e de se autoconduzirem em
suas vidas.

Essa mentalidade de se autogovernar estaria em comum acordo tanto com a


política e economia vigente, que no caso seria o neoliberalismo, como também, com as
práticas exercidas pela Educação, pelo currículo de matemática, assim como podemos
observar nas enunciações. Estando o currículo de matemática nessa esteira de instruir os
sujeitos para que os mesmos se autogoverne, buscando desenvolver essa consciência, os
mesmo seria uma ferramenta daquilo que Foucault (2008) chamou de
governamentalidade neoliberal.
Sobre a govermentalidade Foucault (2008, p. 143-144) destaca a seguinte
tríplice perspectiva:
[...] o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e
reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bastante
específica, embora muito complexa de poder que tem por alvo principal a
população, por principal forma de saber a economia política e por
instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo
lugar, por “governamentalidade” entendo a tendência, a linha de força que,
em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a
preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de “governo” sobre
todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por uma lado, [e, por
outro lado], o desenvolvimento de toda um série de saberes. Enfim por
“governamentalidade”, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o
resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos
séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco
“governamentalizado”.

Em consonância a isso podemos notar que o currículo de matemática ao buscar


instruir sujeitos sobre os melhores modos de consumo, busca instruir de maneira sutil e
estratégica para que as pessoas se autogoverne, se conduza em seus modos de consumo.
Pois, dessa maneira estaria contribuindo para governamentalização do Estado e a
manutenção do mesmo, ou seja, colocando em funcionamento o enunciado de
“consumir bem para consumir sempre”.
Nesse sentido, podemos notar que a Educação seria de grande importância nesse
processo, e que não poderia ser deixada ao acaso, mas sim constantemente vigiada e
potencializada para que exerça essas práticas de poder. E o currículo de matemática
como algo tão fundamental desse meio, seria um dos endereçadores dessas práticas,
atravessado por contextos e veiculando esses contextos como algo naturalizado e
normalizador.

4. Para não finalizar...


Antes de concluir esse texto gostaríamos de mencionar que não temos a intenção
de dar juízo de valor a essas práticas exercidas pelo currículo de matemática, de dizer
que estão certas ou erradas. Mas, que assim como propõem Foucault, seria um exercício
do pensamento.
O pensamento não é o que se presentifica em uma conduta e lhe dá sentido; é,
sobretudo, aquilo que permite tomar uma distância em relação a essa maneira
de fazer ou reagir, e tomá-la como objeto de pensamento e interrogá-la sobre
seu sentido, suas condições e seus fins (FOUCAULT, 2014, p. 225)

Essa postura proposta por Foucault tem sido perturbadora e necessária, se


colocar a distância em nossas investigações é perturbador, mas necessário, para que
possamos observar, descrever e analisar como essas práticas de poder se constituem.
Talvez esse seja nosso movimento de resistência e luta do qual ainda de maneira tímida
tentamos exercitar no campo de pesquisa em Educação Matemática.
Ainda sobre a temática “consumo”, a pesquisa aqui mencionada e ainda em curso,
também observou que essa temática está correlacionada com outros campos nos livros
didáticos de matemática aprovados pelo PNLD de 2018, como por exemplo o consumo
de recursos naturais, de alimentos e máquinas operacionais. Acreditamos que esses
outros pontos dessas linhas podem ir desenhando a pesquisa em curso e, podem gerar
outros trabalhos como esse.

5. Referências

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