Você está na página 1de 8
CARMEN ZINK BOLOGNINI (ORG.) DISCURSOE ENSINO 0 CINEMA Re nA Ke ESCOLA” na iS : ‘DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAAO MA PUBLICAGKO (CP) [BRASILEIRA DO LIVRO, 5, BRASIL) Discurso ensino: o cinema na escola / Corman Zink Bolognin. (oro) “Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007 (Série Discurso # Enso) Visios autores. Bidlograi 'SBN 978-85-7501-061-0, 1. Andlise do discurso 2. Portugubs -Estudo eensino 3, Sela de ala Diregdo 4. Semintics | Bologini, Carmen Zink. coo-a014t indices para cathlogo sistemitico: 1. Andis de eiscurso : Comunieagio: Linguager 401.41 2. Discurso: Anise : Comunicaglo:Linguagem 40141 capa e geréncie editor: Vande Rota Goride _preparagvo dos originas: Loci Helena Looe More ‘conversboautomatiade para 8 nove ortogrefa: -MathTech Servos em Tecnologias Matemétcas Lia, (contato@mathtech.com be) st obra tem a partipagio do Programa Ciencia & Arte nas Féras, da Pro Restoria de Pesquisa da Universidade Estadual de Compinos. DIREITOS RESERVADOS PARA A LINGUA PORTUGUESA: {© MERCADO DE LETRAS® EDICOES E LVRARIA LTDA ua oso da Cruze Souza, 53 “oletax:(19)3241-7514 (CEP 13070116 ‘Campinas SP Brasil wen mercado deltas com br tvroet@mercado-deetras.com br 1 REMPRESSAO texto adaptado para as novos norma de ortograia d3 lingua portuguesa 2010 Impressio Digital sia obra est protgida pla Ls 96108. £ proibida sua reprodugdo parcial ou total om aaroicagio prvi do sor. Oinator estar sujeto&s penatdedes prevstas na Lek 3 Oqueéa escola? Como pensar a esco- a? Em geral, no nos colocamos tais quest6- MAS... 0 QUE NAO E POSSIVEL? cs. nas elas adguirem um cater importante FFEITOS DAS POSICOES Dos quando passamos a refletir sobre as relagdes SUJEITOS EM A VIDA BELA que se constroem na (e pela) escola, pelos discursos que af circulam, Pensamos, entéo, a escola YAY Vanes reomar os cl les ‘como um lugar de confrontos e ne- ~' conciosjéobordados Citar Mie Nogid ‘gociagBes, como um espaco politico apis nrres on Poa Les Copel cemquealinguagem atua como campoe meio Aas Mame para uma disputa por leituras, por interpreta Snes ue sete Ges, pelo que pode se tornar (im)possivel exposes a seq, i a ES diner Pensamos a esol como ua init Go, como espaco de estabilizagaio, homoge- neizagao ¢ reprodugao dos efeitos de sentido, atravessado pela relagiio entre linguagem, ijeito. E com base nesses pressupostos que refletiremos sobre o papel da escola em meio a essas relagées. idcologia ¢ sujeito — ou melhor, posigée Primeiramente, faz-se necessério estabelecermos a relagio entre linguagem e eel aa ideologia. As palayras nao podem ser tomadas como etiquetas a serem coladas aos ‘presen rups, objetos e aos fatos, nomeando-os, pois seu sentido no é colado a eles, nao é ‘epee: pois pao predcterminado. Entretanto, temos sempre a sensagio de evidéncia dos sentidos de delocamenie ds sends. uma palavra. O que gera em nés essa sensacio € o trabalho da ideologia, que é um Heclogia trabalho da meméria ¢ do esquecimento. Da meméria, porque todo dizer deve esta Higado fel eaee ‘algo que foi dito antes para fazer sentido, Do esquecimento, porque 0 efcito de evidéncia ingagen somone. do sentido precisa se dar para que o dizer se torne possivel. Assim, 0 processo ideolégico 9 prépria conde para apaga o processo de constituigio dos sentidos, construindo evidéncias e dando dirego aos ®*#iagvogem passa efeitos de sentido, — Os efeitos de sentido so produzidos a partir de gestos de interpretag3o que so compulsérios, mas nao aleat6rios. Somos impelidos a interpretar a todo 0 momento, mas nem toda leitura/interpretagao é possfvel. Ela deve estar inscrita a uma mem6ria —interdis- ‘curso —que a torne dizivel, possivel ¢ passivel de fazer sentido. Segundo a autora Eni Orlandi (1999), para quea lingua faca sentido é necessério que a hist6riaintervenha, Para determinar jo das palavras de um sujeito € necessério estabelecer uma relagio entre elas, 0 contexto histérico em que esse sujeito esté inserido © suas posigdes ideol6gicas nessa conjuntura. Assim, as palavras podem ter diferentes sentidos, de acordo com as posigdes ideolégicas de quem as emprega. © que representa no discurso as posigdes ideol6gicas sio as formagées discursivas —as possibilidades do dizer definidas por um contexto s6cio-historico dado. ‘Todos esses sio efeitos também do trabalho ideolégico. O sujeito do discurso também € constituido ideologicamente. E é pensado como uma posigo entre outras, em relagéo a outras. Assim, podemos falar da posigao de professor, de aluno, de diretor da escola etc. E 6 essa posigio relativa a outras que garante identidade a essas posigdes. tes de catia, no com base nesse quadro que pretendemos desenvolver reflexes sobre oy bee ei de ler es eosdorasies papel da escola como instituidora de posigdes-sujeito e espaco de estabilizagioe ~| sobre peso set 02 difusdo de sentidos. presen ds, Desde podemos der 412 formato de Do se dere do ds ue se five oo dso acess do go or vez eases 10 papel da linquagem nio- vera ncn de om diana, Vamos ao filme A anélise ¢ as reflexdes que propomos neste capitulo tém como ponto de partida 0 filme A vida é bela, produzido na Itélia, em 1997, por Roberto Benigni, cuja caracteristica marcante € a forma inovadora com a qual retrata a vida de uma familia italiana que sofre com as imposigdes do nazismo. Para ambientarmos as andlises a seguir, faremos um breve comentario a respeito do enredo. A hist6ria do filme tem inicio na cidade de Arezzo, em 1939. A primeira parte & marcada por uma roméntica e divertida hist6ria vivida por Guido, um homem de origem judaica, que conquista Dora, sua futura esposa, professora, filha de uma familia tradicional da cidade. Dora e Guido tiveram um filho, Giosué Esse é um perfodo conturbado da Hist6ria, como se sabe. O discurso fascista dominava a Itélia, estabelecendo didlogos e afinidades com o discurso nazista, no momento em que se dé 0 inicio da Segunda Guerra Mundial, Aborda-se principalmente a questiio da supe- rioridade da raga ariana difundida pela propaganda hitlerista, um dos fortes argumentos para aestabilizagao e a expansao da discursividade nazista. A segunda parte se passa em 1945, durante a fase final da guerra. Os judeus sio obrigados a deixar suas casas ¢ so levados para campos de concentragio. Guido, seu tio ¢ Giosué tém origem judaica e, portanto, trilharam esse destino. Dora, apesar de nio ser judia, pede para ser levada com sua famflia. vie ‘Um ponto interessante a ser ressaltado antes de analisarmos esse filme diz. a respeito aos nomes dos personagens. O nome Guido é conhecido como referente Aquele que guia, que conduz os outros em seguranga. Dora é um nome que remete a moga “de ouro”. Rodolfo, nome do namorado de Dora antes de ela conhecer Guido, assemelha-se a Adolfo — ou Adolf (Hitler) ~, se pensarmos no som e na escrita das palavras. E Giosué, ou Josué, é um nome biblico: Josué escreveu 0 sexto livro do Antigo Testamento, ‘que narra a entrada do povo judeu em Canai, a terra prometida, assim como Giosué, que, no filme, narra a hist6ria de sua familia, que tem origem no povo hebreu. Os nomes dos personagens no foram, portanto, escolhidos ao acaso. les também significam. Enno contexto da primeira metade do filme que acontece a cena que selecionamos para ceste capitulo e sobre a qual falaremos no préximo item. “eu Devs, no épossvel” Analisaremos especificamente a cena de um jantar do qual Dora participa, presumi- damente 0 jantar de seu noivado com Rodolfo, seu namorado no inicio do filme. Guido participa também do evento, mas como garcom. E ao final dessa noite que os dois comegarao seu relacionamento. Antes disso, porém, a cena que sclecionamos enfoca, em uma mesa grande, a me de Dora, Rodolfo e a diretora da escola priméria onde a protagonista trabalha. ve Contrapdem-se de forma significativa as caracteristicas fisicas de Dora e Y = da diretora (as quais, como veremos, possuem discursos também diferentes). A diretora, figura mais enfocada na cena, é uma mulher de pele bem clara e olhos azuis e grandes; ja Dora tem os olhos escuros e uma pele nio tao clara quanto a da diretora, ‘Também suas expressdes se distinguem: nesse momento, a diretora se mostra mais viva, mais falante do que Dora, que esté quieta ¢ reservada. Ainda sobre a linguagem nao-verbal que compée a cena, destacamosa posigiio dos personagens: Dora senta-se frente dadiretora, tendo sua mae a direita e Rodolfo a esquerda. A diretora conta, entdo, para os outros personagens, um problema de matemitica sugerido a criangas de sete anos na Alemanha. Segue a transcrigao da cena: Diretora — E no falo de Berlim, Até no campo, em Greveneck. 3° ano primério. Ougam este problema. Ainda me lembro porque me impressionou. Problema jado, 4 marcos e meio, Um epiléptico, 3 marcos e meio. A média € de 4 marcos ao dia, e os pacientes so 300 mil. Quanto economizarfamos se essa gente fosse eliminada, suprimida?”. Dora—Meu Deus, ndo é possivel! Diretora — Eu tive a mesma reagiio, Dora. Meu Deus, ndo é possivel para uma crianga de sete anos resolver isso. O célculo é complexo. Fragdes, porcentuais. E preciso conhecer um minimo de Algebra. Um problema de colégio, SeX= para nés. ~ Rodolfo - Nao, ¢ s6 uma multiplicagio. Quantos aleijados so? 300 mil? Diretora — Sim. Rodolfo - 300 mil vezes 4. Matando todos, economizaremos um milhio € 200 mil marcos ao dia. Fécil, niio? Diretora ~ Exato. Muito bem. Mas vocé jé é grande, Na Alemanha, perguntam isso a criangas de sete anos. E outra raga, mesmo. Observemos os enunciados grifados, que nos parecem iguais: eles significaram a ‘mesma coisa para as duas professoras? De forma alguma. Apesar de terem sido construidos ‘com as mesmas palavras, os sentidos produzidos por Dora e pela diretora so contririos. So cesses sentidos que analisaremos no préximo item. ‘Meu Deus, 0 que ni 6 posivel? E possivel uma mesma frase ter significados diferentes? Nossa resposta a essa Pergunta é “sim, com toda a certeza”. Na verdade, & apenas na estrutura que consideramos, a igualdade dos enunciados. Em seu funcionamento no discurso eles sao opostos. ‘Como jé vimos anteriormente, os sentidos nao esto colados as palavrascomo ay nos parece no dia-a-dia. Os sentidos sfio construfdos a cada nova formulagio, Y relacionados as condigdes de produgio, as formagdes discursivas em que os sujeitos ‘enunciam. Entretanto, esse processo é apagado, é silenciado no momento em que se estabelece uma relagio discursiva, fazendo-nos crer que os sentidos so evidentes, Gbvios Esses tiltimos sentidos so efeitos que também fazem parte do proprio processo discursivo. E dessa forma, pela possibilidade desse efeito de evidéncia e transparéncia da linguagem, que a diretora pode dizer que sua impressao diante do problema foi a mesma de Dora, quando, na verdade, nao foi o que ocorreu. Além disso, outra caracteristica desse discurso precisa ser ressaltada. O uso da linguagem matemdtica reforga 0 efeito de verdade, de evidéncia das palayras, ou melhor, dos ntimeros. Isso porque a linguagem numérica é tida como transparente, como légica. Sua interpretagao € apenas uma, isenta de ideologia; € uma linguagem universal. Entretanto, Dora detore zon 0 meses poles, s..es ‘to, mes, iguais? soe ur remade atest too er com elges de inguogen idea? posi — fica scars — Dor cera por sedes ‘ven fare pre de suo fornogio discs, Eniéo, 0 que née esté dito em um ‘enunciodo também partpa do consogi des fos de seta ‘como veremos, isso também éum efeito: a linguagem matemitica deve estar necess te inserida em uma formacao discursiva, em uma ideologia, para produzir sentidos. Para que uma palavra, uma frase, uma imagem, um niimero faga sentido, € necessirio perceber seu vinculo com a Histéria, A enunciagao esté ligada as suas condigies de producio. Siio essas condiges de produgdo que fazem os acontecimentos terem um significado na Histéria e produzirem uma meméria que permite reconhecé-los e interpreté-los. E 0 que chamamos meméria discursiva ou interdiscurso. As condigdes de produgo que possibilitam os sentidos que esto em funcionamento na cena que analisamos so préprias do discurso nazista, da historia vivida na Europa durante primeira metade no século XX e sobre as quais jé falamos rapidamente. Sao essas condigdes «que permitem que as pessoas & mesa nfo estranhem a fala da diretora, com excegao de Dora. ‘Suas feigdes mostram que esses sentidos eram naturalizados na época. iamen- Notamos que, no momento em que o problema ¢ descrito, nenhuma reacdo adversa é manifestada, além da de Dora. Isso fica claro também na materialidade da linguagem ‘no-verbal da cena (no caso, a disposi¢ao dos personagens): Dora esta rodeada por pessoas que partitham dos sentidos postos em circulagio pela diretora, que esto de acordo com o discurso nazi-fascista. Essa é uma marca discursiva da dominancia desse discurso naquele momento ¢ da resisténcia que o estranhamento de Dora significava naquele espago. ‘Assim, 0 discurso nazi-fascista instaura um acontecimento na época que abre lugar para novos sentidos ~ 0s sentidos que levam & construgdo da “raga pura”, Entretanto, esses novos sentidos nao silenciam outros que Ihes sejam contrérios. Por outro lado, Dora ~ reconhece a possibilidade de o enunciado da diretora fazer sentido de acordo com © discurso nazista, segundo o qual seria necesséria a instauragio da “raga ariana” pela selegdo daqueles que tivessem melhores condigdes fisicas. Entretanto, esse sentido nao condiz com a formago discursiva da protagonista, o que a faz. produzir um ‘enunciado com efeitos de sentido contrérios aos da formagio discursiva prépria do nazismo. ‘Ao mesmo tempo, os sentidos produzidos pelo discurso de resisténcia de Dora no sido possiveis para as outras pessoas presentes. Os sentidos de Dora nao se inscrevem na formagio discursiva delas, que 6 a predominante naquele momento e naquele espago. Essa impossibilidade de interpretagao (lembrando que nem todos os sentidos sio possfveis para todos os sujeitos e todos os enunciados) 6 marcada pela segunda fala da diretora, na qual ela acredita estar produzindo um enunciado idéntico ao de Dora, ao repetir as palavras desta Retomando 0 enunciado que intitula este item do nosso capitulo, fagamos a anélise de sua construgiio: Meus Deus, ndo é possivel! A construgio “é possivel”, se analisada sintaticamente, necessita de um complemento: 0 que € possivel? E nesse espago enunciativo (do que falta) que se coloca a distingZo entre as posigdes de Dora e da diretora. Tradicionalmente, chamarfamos essa “falta” de elipse; o que complementaria essa falta, de implicito; ea “confusfio” que o enunciado causa, de “ambiguidade”, Para a gramética tradicional, a elipse “consiste na omissio de um termo que facilmente pode ser subentendido através do contexto” (Terra ¢ Nicola 1993, p. 247). Porém, na perspectiva que propomos, nao se trata de uma simples omissio que poderia ser “obviamen- te” completada. E. necessério pensarmos na forma como a elipse funciona no texto, nas condiges propostas pelo momento em que se dé a enunciag: 32 A obviedade do sentido nao existe, como vemos na prépria tentativa de complemen- dio da exclamaco de Dora. Para ela, possivelmente o sentido que completaria o enunciado seria: “nao € possivel a sugestio de um problema que proponha a disseminagio de pessoas consideradas incapazes ou inferiores por serem de alguma forma diferentes”. Esto em cena 6s sentidos de discursos sobre a preservagdo da vida, o respeito as diferengas, a igualdade entre os seres humanos, os préprios direitos humanos. Da mesma forma, 0 discurso de Dora no aceita que se trate com naturalidade a disseminagdo de pessoas diferentes, como props © nazismo. Entretanto, essa formulag3o que propusemos no pardgrafo anterior no 6 posstvel ao discurso da diretora e dos outros presentes na cena. Como ela mesma coloca na sequéncia de sua fala, 0 complemento possivel a sua formagio discursiva € outro: “nao é possivel para ‘uma crianga de sete anos resolver isso”, por Ihe faltarem os conhecimentos mateméticos necessérios. Trata-se, entio, de uma outra ideologia, de outra formagao discursiva: 0 que predomina so os sentidos do discurso que prega a supremacia da raga ariana e a extingio de grande parcela da populagio mundial em nome dessa supremacia. Portanto, nio é uma mera ambiguidade ou um implicito que podem ser desfeitos por qualquer sujeito. Os sujeitos no so unos. Duas professoras podem no ocupar a mesma posigio discursiva. & 0 que vemos no filme: Dora, contréria ao discurso nazista, no ocupa ‘4 mesma posigio discursiva da diretora que é a favor do nazismo. ‘A posigdio que cada sujeito ocupa faz com que os sentidos possiveis sejam 6 Michel Foocou 1969. sempre outros para cada um deles. E importante lembrar que a Andlise de Discurso propde uma distingdo entre 0 que se chama de “posigao” e “lugar”. Segundo o filésofo franc8s Michel Foucault, 0 sujeito discursivo é pensado como uma “posicdo” entre outras. Ele ocupa um -C)= “lugar” para ser sujeito do que diz, e 0 modo como o faz. néio the € acessivel. ~ ‘Quando a diretora conta o problema, ela ocupa o lugar de professora preocupada ‘com o ensino de matemética. Dora também ocupa esse lugar de professora. Mas a posigio de cada uma delas € diferente, possibilitando sentidos diferentes, como vimos. E isso que possibilita 0 equfvoco, ¢ no uma ambiguidade como formulado pela gramética tradicional: “a ambiguidade consiste em deixar a frase com mais de um sentido” (Terra e Nicola 1993, p. 253), sendo ela entendida como um vicio de linguagem. Quando falamos em “equivoco”, pensamos, sim, em “falhas” da lingua, mas ndo em um sentido pejorativo. Tais “falhas” so constitutivas de qualquer forma de discurso, da linguagem, da pr6pria possibilidade de enunciagdo. Se o equivoco nao fosse constitutive da lingua, teriamos a determinagio do dizer, ou seja, os sentidos seriam evidentes, como ‘concebem as perspectivas tradicionais de linguagem. Dadas as possibilidades do equivoco, sao possiveis diferentes sentidos para 0 que se conceberia como elipse. A tentativa de completar © enunciado nos mostra as diferentes posigdes discursivas dos sujeitos (Dora e diretora), bem como as diferentes possibilidades de determinar essa completude. Isso nos mostra como a linguagem nio € linear, os sentidos sio indeterminados e sua completude nao é possivel, apesar de incessantemente tentarmos fazer com que seja. Essa completude ¢ um efeito ideol6gico que funciona na cena analisada. Quando a diretora diz: “Eu tive a mesma reagiio, Dora”, ela coloca em funcionamento esse efeito de evidencia, como se 0 que ela propds como completude ao enunciado de Dora fosse a Ginica forma possfvel. Neste momento, vale repensarmos o discurso que circula na escola, de uma forma geral. O discurso pedagégico procura sempre a estabilizago dos sentidos, pressupondo que a linguagem ¢ transparente e os sentidos so evidentes. Quando, por exemplo, um professor reformula uma afirmagio do aluno acerca da matéria estudada, ele o faz. procurando estabilizar 0s sentidos. O papel do professor e da propria instituigao escola ¢ o de regular 0 que € possfvel ou nao ser dito. E 0 de direcionar os efeitos de sentido ¢ os gestos de interpretacio. Feitas essas consideragdes, € necessério enfatizarmos que a linguagem nao ¢ transpa- rente, como o faz parecer a semelhanga proposta pela diretora entre 0 seu discurso e o de Dora. O mesmo o faz. Rodolfo, quando procura resolver a questo matemética do problema, sem se ater ao estranhamento de Dora & fala da diretora. Poderfamos pensar que, para um problema de matemética, nao é importante atentar-se para 0 que ali esté formulado, Entretanto, so os pequenos indicios, as minimas marcas na materialidade lingufstica que participam da formagio discursiva dos sujeitos e dos discursos. Ressaltamos que essa formagio nao ¢ feita de forma consciente, mas inconsciente, tanto da parte de quem formula © discurso (no caso, 0 problema), quanto de quem 0 Ié (ou resolve). Hi um efeito ideoligico produzido em uma formago discursiva, circulando na formulacdo e na leitura, ao qual os sujeitos no podem escapar. ‘No sala de aula ‘Vamos continua refletindo sobre o que foi exposto no texto acerca de uma das cenas do filme A vida é bela, com uma atividade que pode ser realizada em aulas de diversas disciplinas. Dividindo os alunos em grupos, uma parte deles deve tentar construir um problema de ‘matemética no qual no haja ideologia envolvida, enquanto os outros tentam identificar a ideologia que inevitavelmente estaré posta nos problemas formulados pelo outro grupo. Lembramos que, para que haja sentido, é preciso haver uma filiagdo ideol6gica. Ou seja, a linguagem nio é transparente, isenta de ideologia. Mesmo um simples problema de matemitica niio é desprovido de ideologia, nao é neutro. Consequentemente, nao podemos também identificar a escola como um lugar de neutralidade.

Você também pode gostar