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Jean-Luc Godard

por
José Carlos Avellar

(Jornal do Brasil 1964-1970)


2
Índice

Duas ou Três Coisas Sobre Godard 5


A Tela Branca 7

Os Filmes:
Viver a Vida 10
Alphaville 12
O Demônio das Onze Horas 12
O Cinema da Idade de Picasso (Alphaville) 14
Tempo de Guerra 17
Tempo de Guerra 19
A Chinesa 20
3 Masculino Feminino 22
Made in USA 25
Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela 26
One Plus One 27
O Desprezo 29
Week-End à Francesa 31

Apêndice ‒ Listas de melhores do ano 1964-1969 33

Posfácio 37
4
Duas ou Três Coisas Sobre Godard
(27 de junho de 1967)

Stop. A vida parou ou foi o automóvel? É fácil observar a semelhança


de O Pequeno Soldado com os poemas-pilhérias dos modernistas. Não
exatamente um esboço ou uma obra inacabada, mas um filme feito
para definir uma atitude, para atender à necessidade de criar uma nova
linguagem, onde o artista se possa expressar livremente.
Esta semelhança não é simples coincidência. O problema da comuni-
cação entre as pessoas não existe apenas nos primeiros filmes de
Godard ou nas primeiras poesias dos poetas modernos, trata-se de uma
das grandes preocupações da sociedade. E O Pequeno Soldado, como,
por exemplo, “Cota Zero”, de Drummond, reflete a preocupação da arte
atual (seja o cinema, a pintura, a poesia, o teatro) em revolucionar os
meios de expressão, em descobrir uma nova linguagem.
Vivemos no tempo do jornal, no tempo da comunicação de massas. O
jornal, ou para ser mais exato, o jornalismo através da fotografia, o es-
5 tilo de informação concisa e direta, tem sido o ponto de partida para a
procura desta nova forma de expressão. Todas as pessoas vivem bom-
bardeadas hoje em dia, na rua e em suas próprias casas, por uma série
de imagens e frases de um enorme poder de comunicação: trata-se de
resumir uma guerra numa manchete ou numa fotografia. O jornal, o
rádio, a televisão tornaram familiar este estilo de comunicação rápida,
que pouco a pouco vai-se transformando na linguagem ideal de nosso
tempo, porque estamos todos mais interessados na reportagem que na
ficção.
A criação de uma nova linguagem a partir do jornalismo. Esta é exa-
tamente a preocupação central dos quatro primeiros filmes de Jean-Luc
Godard, Acossado, O Pequeno Soldado, Uma Mulher É uma Mulher e
Viver a Vida. “Meus primeiros filmes eram filmes de cinéfilo, isto é, o
esforço de uma pessoa entusiasmada com o cinema. Quero dizer com
isto que não via as coisas em relação com o mundo, mas em relação
com o cinema.” Esta declaração de Godard à revista inglesa Sight and
Sound e a repetida afirmação de que sua “ambição secreta” era ser
colocado na direção das Atualidades Francesas demonstram a sua
preocupação em criar uma linguagem a partir do jornalismo, que o
tardio lançamento de O Pequeno Soldado e a reexibição de Uma Mulher
É uma Mulher, na semana passada, confirmam.
Filmagem sem roteiro prévio, com improvisação quase total, fotografia
realizada a partir de película de alta sensibilidade em cenários naturais
e com luz ambiente. Os métodos de trabalho de Godard são frequente-
mente catalogados no anedotário do diretor e raramente se encara o
verdadeiro significado que possuem. Trata-se de um processo determi-
nado pela preocupação de obter um estilo jornalístico. Trabalha-se co-
mo na preparação de um filme cinema-verdade, como para um jornal
cinematográfico. Não é importante que um intérprete atue como um a-
tor de teatro no palco, mas que se deixe surpreender com naturalidade
pela câmara que deve ter a mobilidade necessária para tomar a imagem
no momento exato. Nenhuma história a ser contada, nenhum diálogo
cuidadosamente preparado, porque a imagem de cinema precisa falar
por ela própria, não estar a serviço de um argumento literário.
Enquanto todos os meios de expressão se sentiam influenciados pelo
cinema (a imagem de cinema é a que melhor pode atender à neces- 6
sidade de comunicação imediata do jornalismo), este se acorrentava a
uma estrutura teatral e subordinava os seus recursos expressivos à
função de ilustrador de um texto. Os quatro primeiros filmes de Go-
dard representam uma violenta reação contra este estado de coisas. A
preocupação deles pode ser comparada à preocupação de Nana em
Viver a Vida, quando ela repete quatro vezes a mesma frase procurando
o melhor modo de pronunciá-la ou a de Bruno Forrestier em O Peque-
no Soldado: “quando olho meu rosto num espelho, tenho a impressão
de que ele não corresponde à ideia que faço de mim no interior”.
Godard compreendeu que o cinema ao “fotografar um rosto fotografa
também a alma que existe por trás deste rosto”, e todo seu esforço foi
feito no sentido de libertar o cinema de uma estrutura que lhe era
alheia para conseguir apresentar a mais fiel imagem exterior.
É sem dúvida uma experiência curiosa rever Uma Mulher É uma Mu-
lher, conhecer sete anos depois O Pequeno Soldado quando os dois últi-
mos filmes de Jean-Luc Godard apresentados no Brasil, Alphaville e O
Demônio das Onze Horas, refletem, depois de dominado o meio de
expressão, uma nova preocupação: “Vejo agora que em meus primeiros
filmes fazia as coisas porque já as tinha visto no cinema. Se mostrasse
um inspetor de polícia tirando um revólver do bolso, não o fazia
porque a lógica da situação que eu descrevia o exigisse, mas porque eu
tinha visto inspetores de polícia em outros filmes tirando seus revól-
veres neste preciso momento e deste preciso modo. Estou agora no
meu décimo terceiro filme, Deux ou trois choses que je sais d'elIe, e
começo a sentir que realmente inicio a olhar o mundo.”

A Tela Branca
(“Melhores de 1968”, 1º de janeiro de 1969)

O lançamento de Édipo Rei e Persona ao lado dos cinco filmes de


Godard fez de 1968 um ano bastante singular: foi um ano em que o
cinema se pôs em questão, um ano de filmes que se voltaram para a
discussão da função e da responsabilidade da arte em nosso tempo. Ao
mesmo tempo em que os homens do cinema aceitam a sensibilidade da
7 linguagem artística como uma das mais precisas formas de conheci-
mento do mundo, reconhecem que os problemas levantados pela
sociedade contemporânea modificaram as relações entre o artista o o
espectador. E modificaram de tal modo que somente uma revisão
critica da linguagem artística pode levar à descoberta de um lugar
verdadeiramente atuante dentro de nossa sociedade.
A arte não tem importância, como afirma Ingmar Bergman, num
tempo em que as pessoas “vivem no meio de um gigantesco drama que
não cessa de explodir em pequenas tragédias locais”. A arte não tem
importância se não conseguir transformar o seu conhecimento em
ação, isto é, se não conseguir comunicar-se verdadeiramente com o
espectador e ajudá-lo a transformar o mundo em que vive. Em Édipo
Rei Pasolini transforma Édipo num novo Tirésias quando ao final ele
conhece toda a sua tragédia. Em Persona Bergman circula uma atriz
que se recusa a falar como uma solução marga para o problema da
sinceridade e expressividade total. Nos dois casos o conhecimento não
leva a nenhuma ação. O único discurso possivel é o silêncio. As pessoas
tagarelam uma língua estranha apenas por medo da sinceridade do
silêncio. Como indaga Tirésias em Édipo Rei: de que vale o saber
quando o saber não ajuda em nada a quem sabe? Bergman e Pasolini
levantam com extrema clareza a questão: se o conhecimento não se
transforma em ação é porque a linguagem através da qual se transmite
o conhecimento não está certa. É preciso recomeçar do zero, do
silêncio, é preciso aproximar-se novamente das coisas.
Mas em realidade quem melhor vem discutindo este problema de
todos as artes é Jean-Luc Godard, que tem procurado incansavelmente,
no menor dos planos de qualquer de seus filmes, não apenas levantar a
questão como se aproximar tanto quanto possível de uma solução. Em
particular dois de seus filmes. A Chinesa e Duas ou Três Coisas Que Eu
Sei Dela, representam os avanços mais significativos em direção a um
novo cinema. E é exatamente como o início de um caminho novo que o
diretor nos mostra estes filmes. Em Duas ou Três Coisas que Eu Sei
Dela, o próprio diretor interfere comentando os planos, os movimentos
de câmara, montagem, colocando em questão a ordem do cinema. A
Chinesa não se apresenta sequer como um filme terminado, mas como
um filme que está sendo feito (un film en train de se faire) e como o fim 8
de um princípio. Como em Persona na tela em A Chinesa aparecem o
fotógrafo, a câmara, os técnicos, tudo o que fica por trás da imagem.
Novamente a voz do diretor se faz ouvir interrogando os intérpretes.
O filme que se faz à medida que está sendo projetado diante do
espectador: A Chinesa se propõe radicalmente a ser o que todo o cine-
ma moderno procura. Filmes onde o espectador seja parte ativa, filmes
de um tipo de linguagem muito bem definido por Pier Paolo Pasolini
quando comparou o estilo dos filmes modernos à linguagem de poesia
em contraposição à linguagem de prosa dos filmes clássicos. A foto-
grafia, a montagem, a interpretação, a música, o roteiro, não estão mais
a serviço de uma narração, são usados poeticamente. Isto é, a lingua-
gem cinematográfica deixa de ser o veículo de um pensamento e passa
a ser o próprio pensamento. O significado de um filme, o conhecimen-
to que ele fornece se desloca de uma história contada em imagens para
as próprias imagens cinematográficas. Como na poesia os planos, a
arrumação dos planos, são uma ideia, e não uma disposição deter-
minada pela necessidade de expor claramente uma ideia. É a partir daí
que em A Chinesa e em Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela Godard
coloca lado a lado primeiros planos de Marina Vlady, Anne
Wiazemsky, Jean-Pierre Léaud, e recortes de jornais a um cigarro ace-
so, ao café numa xícara. É a partir daí que ele se afasta de uma história,
de um personagem central e se abre sobre diversos acontecimentos,
sobre diversos personagens. É igualmente a partir da eleição de uma
linguagem poética que Bergman coloca na abertura de seu filme a
imagem do carvão do projetor sendo aceso, ou mais adiante faz com
que o filme se parta na tela, à vista do espectador. Ou ainda que Paso-
lini transporta Édipo para os dias de hoje, transformando-o num novo
Tirésias. É fínalmente a partir de eleição de uma linguagem poética que
o cinema pode verdadeiramente se transformar numa forma de conhe-
cimento nova do homem, ampla e suficiente para permitir que este
conhecimento seja transformado em ação.
A Chinesa, Duas ou Três Coisas, Édipo Rei e Persona propõem uma
nova forma de se aproximar das coisas, se propõem a ver o homem
como uma forma dinâmica, como um ser em movimento e em cons-
tante transformação. Procuram este caminho, procuram aproximar-se
9 mais intimamente com as plateias, mesmo entrando em oposição com
os hábitos tão solidamente contraídos pelos espectadores em filmes
que procuravam afastá-los de seus problemas ou que se aproximavam
das questões numa linguagem inadequada. São quatro filmes que
rompem de maneira decisiva com as formas tradicionais de expressão
cinematográfica e com o hábito passivo do espectador. O velho filme
partiu-se no projetor. Como em Persona. O novo filme está sendo feito.
Como em A Chinesa. A tela ficou branca, vai começar tudo de novo.
Viver a Vida
(13 de setembro de 1964)

Agrada-me, especialmente, na construção de Viver a Vida a sua


marcada característica antiliterária. Godard, através do roteiro e da
condução dos intérpretes, dá a seu filme uma unidade e uma con-
tinuidade que não são literárias. Não há uma história a ser contada, e
até mesmo a simples anedota de que se vale o diretor é fragmentada
em doze quadros arrumados sem uma continuidade dramática. Dei-
xando os atores muito à vontade, como sem ter o que fazer, Godard
cria ele mesmo o personagem, em lugar do intérprete. Exige o mínimo
do ator, impede mesmo que ele represente, que atue, que dê uma
característica romântica ao personagem ou mesmo a todo o filme.
Tal construção, aparentemente desordenada e confusa para o especta-
dor que procura no cinema uma história bem contada, valoriza a ima-
gem, dá importância enorme à fotografia de Coutard e faz com que o
autor se comunique com o espectador de um modo puramente cine-
matográfico. 10
O roteiro de Vivre sa vie compõe-se de doze partes de tamanhos
variáveis, dispostas sem uma ordenação dramática, e sem uma ligação
imediata entre si. Godard faz uma montagem de momentos que ele
seleciona da vida de Nana. E estes doze quadros têm uma marcação
mais jornalística que dramática.
Esta marcação é obtida através da interpretação e da fotografia. A
interpretação é inteiramente natural, sem uma direção teatral; os in-
térpretes parecem estar sempre a ter uma conversa absolutamente
natural entre si quando são surpreendidos pela câmara. E este ar
natural se explica pela ausência de uma construção literária. Ele existe
porque os personagens não vivem nenhum acontecimento dramático.
Os quadros do filme não possuem, isoladamente, uma ordem dramá-
tica, como também não emprestam ao filme uma ordem dramática
quando vistos em conjunto.
Passo a passo com o roteiro e com a maneira de conduzir os intérpre-
tes, a fotografia de Raoul Coutard colabora para a construção jorna-
lística de Viver a Vida. Ela tem a mesma atmosfera da interpreteção, a
naturalidade. Despreza as construções dramáticas, evita efeitos cons-
truídos de iluminação artificial e, como a fotografia de jornal, serve-se
da luz ambiente e de um negativo de grande sensibilidade. Daí este ar
de leveza, a imensa beleza da fotografia de Coutard, quer no primeiro
longa-metragem de Godard, À bout de souffle (Acossado) quer em Vivre
sa vie. Surpreendendo uma realidade cotidiana, ela se veste do mesmo
espírito com que o roteiro construiu os quadros, com que o diretor
conduz a interpretação.
O cuidado com que é elaborada toda a aparentemente desordenada
linguagem de Viver a Vida não se limita ao roteiro, interpretação e
fotografia. Facilmente são reconhecidos na música ‒ uma frase musical
muito breve e bonita, como que inacabada, que se repete em poucos
instantes ‒ e na montagem, igualmente nada dramática. Toda a desor-
dem é, em realidade, uma ordem precisa e cuidadosamente elaborada.
Toda a aparência de obra inacabada, de improviso, obedece a uma
linha de criação prévia e precisamente traçada.
Por duas razões fiquei tanto tempo a analisar as características for-
11 mais do filme de Godard. Primeiro porque agrada-me bastante a visão
que ele tem de cinema e as soluções que ele apresenta para falar atra-
vés do cinema. A pureza cinematográfica de Viver a Vida é tanto mais
importante quando ainda hoje com frequência o cinema recorre à li-
teratura e ao teatro para buscar uma estrutura artística e uma visão
do mundo.
Em segundo lugar porque Godard parece-me diante do cinema como
Nana diante do filósofo que encontra num bar: cheio de perguntas a
fazer, sem saber o que dizer. Porque o seu estilo desordenado e irre-
verente parece atender ao que ele tem a dizer. Muito mais que um
maneirismo Vivre sa vie reflete um estilo.
O que Nana diz ao filósofo parece-me definir bem a situação: “É engra-
çado ‒ diz ela, ‒ de repente eu não sei o que dizer. Isto me acontece
muito frequentemente. Eu sei o que quero dizer, eu reflito antes de di-
zer... piff! eu não sou capaz de dizer.” Por isto tantas citações durante
todo o filme e todo quadro 11, tão longo e tão acumulado de conceitos.
Em realidade esta construção sincopada e esta desarrumação tão cui-
dadosamente arrumada parecem obedecer a uma desordem interna de
Godard.
Viver a Vida nos coloca em frente a questões de seu autor. Coloca-nos
em frente, é bem certo, a um estado de inquietação. A ordem dos fil-
mes de Godard é dominantemente uma ordem formal, muito refletida
antes de ser dita, mas ele é ainda incapaz de dizê-la inteira e clara-
mente.

Alphaville
(“O Filme em Questão: Alphaville”, 12 de julho de 1966)

De Alphaville pode-se dizer o mesmo que Alfa 60 diz da realidade: é


muito complexo para ser explicado apenas por palavras. É a crítica aos
tempos modernos das fórmulas, dos cérebros eletrônicos, dos
símbolos. A ordem fria e desumana das máquinas combatida pela or-
dem romântica de Godard. Alphaville é principalmente uma imagem: a
câmara colocada dentro de Alfa 60 no momento em que Lemmy
Caution dá a resposta ao enigma. É o momento da morte do cérebro
eletrônico, apenas uma máquina para sua própria desgraça, incapaz de 12
resolver um problema humano. Alphaville é apenas uma palavra: a
Consciência (ou O Consciência, segundo a vaga recordação de Natacha
von Braun) que está fora dos dicionários-bíblias das capitais da dor
dominadas por máquinas. A consciência de que a técnica do mundo
moderno mais e mais se afasta do homem e a consciência de que a
técnica do cinema deve mais e mais estar no lado do homem. Alpha-
ville é a consciência do mundo e as duas mãos do poeta.

O Demônio das Onze Horas


(“O Filme em Questão: O Demônio das Onze Horas”, 8 de novembro de
1966)

“Velázquez, depois dos cinquenta anos, não pintava nunca uma coisa
definida. Errava à volta dos objetos com o ar e o crepúsculo, surpre-
endia na sombra e na transparência dos fundos as palpitações coloridas
de que fazia o centro invisível de sua sinfonia silenciosa”. Já como
em Vivre sa vie e Alphaville Godard, como um jornalista, faz na pri-
meira cena de seu filme uma espécie de lead da matéria. Nana adianta
o que Vivre sa vie vai ser ao repetir com entonações diferentes “Qu'est
que ça peut te faire?”: tratava-se de repetir uma frase de doze modos
diferentes para procurar o melhor meio de expressá-la. Em Alphaville é
Alpha 60 que nos anuncia que se trata de uma realidade muito
complexa para ser expressa em palavras, e que tudo nos será mostrado
em símbolos, em fórmulas, em quantos sinais luminosos, positivos ou
negativos, possam ser feitos.
Em Pierrot, a citação extraída de Élie Faure sobre Velázquez “É o argu-
mento” ‒ diz Godard ‒ “sua definição. Velázquez ao fim da vida não
pintava mais as coisas definidas, ele pintava o que havia entre as coisas
definidas, e isto é novamente dito por Belmondo enquanto ele imita
Michel Simon: não é preciso descrever as pessoas, mas descrever o que
há entre elas”.
Com Pierrot le fou Godard parece ter atingido o último elo de uma
cadeia iniciada com À bout de souffle e que marca também o começo
13 da libertação do cinema de uma estrutura e uma narração dramática
que somente era prejudicial à sua maneira própria de narrar. Embora
no Brasil apenas cinco (Acossado, Uma Mulher É uma Mulher, Viver a
Vida e Alphaville, além de Pierrot), dos 10 elos que compõem a cadeia
sejam conhecidos, é fácil perceber que Pierrot não é mais a procura da
liberdade como À bout de souffle, ou a de dar ritmo a esta liberdade,
como Uma Mulher É uma Mulher, ou a procura da forma ideal e mais
significativa de uma frase, como Viver a Vida, ou finalmente uma
tomada de consciência, como em Alphaville.
Depois de Pierrot, estes quatro filmes surgem como esboços para um
quadro maior feito pelo Velázquez de nosso tempo. O argumento não
é mais reduzido a uma linha sem importância ou fragmentado em epi-
sódios. Aqui a história não existe mesmo, pinta-se o que há fora dela, e
toda a força significativa de Pierrot le fou vem dos recursos expressivos
exclusivos do cinema, das suas imagens, das relações entre elas.
Se o homem de hoje está diante de si mesmo, como diz Pierrot ou
Ferdinand, é sem duvida o cinema que o coloca assim, e melhor que
nenhum outro certamente o cinema de Godard, feito sempre de
inquietude, de intranquilidade, e principalmente de perguntas. De
perguntas formais, de perguntas sobre a vida que ele tirou dos estú-
dios, das luzes artificiais, dos gestos e das histórias artificiais, para dar-
lhes aqui as cores naturais, e para fazer a pergunta fundamental:
“Ainda que eu me faça menos e menos perguntas, uma só permanece:
não mais se perguntar não será um ponto grave?”

O Cinema da Idade de Picasso


(a propósito de exibição de Alphaville no “Festival dos Melhores do
Jornal do Brasil”, no Cine Paissandu, 3 de janeiro de 1967)

A pintura de Picasso é tipicamente a pintura da idade do cinema. A


afirmação é de Roger Garaudy num ensaio sobre Pablo Picasso que faz
parte do livro Um Realismo Sem Fronteiras. “Tudo se passa ‒ continua
Garaudy ‒ como se o pintor tivesse apontado e justaposto, por uma
espécie de desdobramento ou estilhaçamento do espaço, os pontos-de-
vista sucessivamente tomados de uma figura em redor da qual nos
vamos deslocando. Com o cinema, o tempo perdeu suas características 14
tradicionais principais: a continuidade e a irreversibilidade. O cinema,
de qualquer modo, espacializou o tempo introduzindo-lhe simultanei-
dade. No cinema o tempo já não é uma linha contínua e orientada num
só sentido. Nele o homem pode mover-se em todos os sentidos. Picasso
fez, em relação à noção de espaço da Renascença o mesmo que o cine-
ma à noção clássica do tempo.”
Se Picasso foi ao cinema em sua pintura, ao iniciar a revolução plástica
que hoje conhecemos como o cubismo, agora é o cinema que vai a
Picasso, através dos filmes de Jean-Luc Godard, para começar a ser
uma arte verdadeiramente moderna, para aprender a lição do mestre
que ainda Garaudy é que define com exatidão, quando fala de Guer-
nica: “o sentido não é exterior ao quadro, resumível numa descrição. O
sentido identifica-se com a forma. É necessário que a cor seja dor, que
a linha seja terror ou cólera”.
Não é por acaso que reproduções de Picasso aparecem no quarto de
Patricia Franchini em Acossado (À bout de souffle): o filme tem a
estrutura estilhaçada de um quadro cubista. tem o próprio nervosismo
de seu personagem central, Michel Poiccard. Uma Mulher É uma
Mulher (Une femme est une femme) traz a inquietude de Karina
transmitida no ritmo da movimentação da câmara. Viver a Vida (Vivre
sa vie) tem na divisão em quadros, na interrupção brusca e constante
da ação (e até mesmo da música de Michel Legrand) o próprio modo
de existir de Naná. Godard libertou o filme do vício de contador de
histórias, e como num quadro moderno não se tem “necessidade de
discernir os contornos nem o sentido literário do assunto para com ele
experimentar o choque ou o apelo”. Mesmo em Alphaville, onde a
presença de “contorno ou do sentido literário” é mais reconhecível, o
verdadeiro sentido está na forma de expressão, no tom da fotografia,
na condução de atores, na montagem.
O caminho de ida a Picasso começou com a recusa de uma linguagem
dramática em favor de um estilo documental ou jornalístico. O
primeiro aliado foi a fotografia de Raoul Coutard (repórter fotográfico
antes de fazer cinema), foi a ausência dos efeitos dramáticos da luz
artificial. e dos ângulos inclinados da câmara. A imagem colocou-se à
15 altura do homem e debaixo da luz a que todos os homens estão acos-
tumados a ver, a luz do dia.
Com os atores o mesmo foi feito. Godard não exige deles uma atuação
dramática. Limita seu roteiro a poucas linhas, improvisa o texto e a
construção das cenas no local de filmagem, dá aos intérpretes indi-
cações mais ou menos ligeiras sobre o diálogo. Seus filmes não existem
antes de serem filmados num planejamento de ferro, que leva, na mai-
oria dos casos, a um resultado acadêmico. Eles se realizam verdadeira-
mente durante as filmagens e o resultado de alguns dias de trabalho
pode modificar o seguimento da narrativa anteriormente previsto, co-
mo aconteceu aliás em Viver a Vida, onde só no último dia de trabalho,
depois de ver tudo o que fora filmado, concluiu que Naná deveria
morrer.
Alphaville (e mais ainda O Demônio das Onze Horas, realizado logo a
seguir) apresenta-se como o amadurecimento do que parece ter sido
estudado nos seus oito filmes anteriores (apenas Acossado, Uma Mu-
lher É uma Mulher e Viver a Vida, seu primeiro, terceiro e sexto filme,
foram exibidos no Brasil). É como se Godard tivesse tomado a inteira
consciência de seus filmes até então.
Alphaville é principalmente um filme sobre a consciência, ou O cons-
ciência, na vaga recordação de Natacha von Braun, palavra desapare-
cida dos dicionários-bíblias da cidade dominada pelo cérebro eletrô-
nico Alfa 60.
A consciência de nossa exata época, e não uma visão do futuro; o mun-
do atual onde a técnica cada vez mais se afasta do homem para ter um
fim em si mesma: onde a ordem caminha para ter a frieza da ordem de
um cérebro eletrônico. Contra Alfa 60 aparece um anti-herói, Lemmy
Caution, o agente secreto dos países exteriores sob a identidade de Ivã
Johnson, repórter do Figaro-Pravda, é o protesto romântico de Godard
contra a ordem não humana de Alfa 60. O homem é superior mesmo
quando despido de qualquer sensibilidade, mesmo quando encarna o
modelo contrário do ideal de todos, quando mata com sadismo e
indiferença, quando tem como grandes metas na vida ter ouro e mu-
lheres, porque Alfa 60 para sua desgraça é apenas uma máquina,
incapaz de solucionar um problema humano.
Mas a ordem romântica que Godard defende não está exposta princi-
palmente no comportamento de Lemmy Caution, e sim na própria 16
maneira de dirigir Alphaville. Mais ainda ‒ na maneira com que tem
dirigido seus filmes.
Alphaville é uma organização de recortes, fotografias, desenhos, símbo-
los, extraídos de nosso mundo de hoje (todas as cenas foram realizadas
em Paris, à noite ou em interiores com a luz do ambiente), colagem
esta que depois de realizada toma o ar fantástico de uma visão sombria
do futuro. No entanto apenas se explora a construção superorganizada,
funcional, do mundo de hoje. Luzes, setas, as curvas e retas dos
edifícios firmemente traçadas, e o poder da iluminação artificial (nasce
o dia ‒ le jour se Iève ‒ diz alguém quando as luzes de um corredor se
acendem) são a denúncia de uma época onde todas as coisas estão tão
corretamente conduzidas que o comportamento normal das pessoas
caminha para a aceitação tranquila e a recusa das perguntas (por quê?
desapareceu também dos dicionários-bíblias). É um filme que exige
exatamente o contrário: não comporta uma visão passiva, é preciso que
se interrogue sem cessar com os olhos para apreender uma realidade
muito complexa para ser expressa por palavras.
Tempo de Guerra
(“Primeira crítica”, 15 de abril de 1967)

O mérito principal de Tempo de Guerra (Les Carabiniers) está em apre-


sentar a guerra como uma atividade absolutamente normal. Não há
nenhuma condenação explícita de sua insensatez, nenhuma situação
excepcional onde se possa encontrar qualquer espécie de justificativa.
Combate-se em nome de nada contra nada. O verdadeiro absurdo que
se demonstra em Les Carabiniers é que a guerra tornou-se uma parte
integrante de nossa vida e que, ao contrário, é a sua ausência que se
afigura como absurda.
A guerra aparece com toda a sua injustificável estupidez. Não há uma
batalha, não há um soldado inimigo, não há vitórias, só há bandeiras e
homens que caem. A guerra é feita só de derrotas, e o verdadeiro ini-
migo do Rei, seu comandante, é a vida. É preciso exterminá-la tal como
os carabineiros matam a jovem loura na floresta: é preciso atirar e
atirar e atirar ainda uma vez para eliminar o menor dos movimentos,
17 até que a imobilidade seja total.
A citação de Jorge Luis Borges (à medida que os anos passam eu me
encaminho para a simplicidade), que antecede aos letreiros, é uma
espécie de anúncio da simplicidade com que será contada uma
pequena fábula: Num lugar e época não determinados os carabineiros
chegam à casa de Ulisses e Miguel Angel para entregar-lhes uma carta
do Rei que os convoca para a guerra. E explicam o que significa a
guerra: pode-se matar, pilhar à vontade e tomar posse praticamente de
tudo, uma espécie de diversão (“nos tempos de hoje, com todas as
dificuldades que atravessamos, a Polícia deve levar em consideração a
distração do povo”, diz um dos carabineiros). Ulisses e Miguel Angelo
partem para a guerra e, na volta, ao fim da guerra, ao reclamarem a
posse das riquezas conquistadas, são informados de que o Rei perdeu a
guerra e que as condições impostas para a paz são muito duras.
Ao lado de Alphaville, Tempo de Guerra é o único filme de Jean-Luc
Godard (entre os sete exibidos no Brasil) em que existe uma história
com alguma importância a ser contada. E ainda como em Alphaville
Godard renuncia à luminosidade habitual da fotografia de seus filmes,
obtida graças à utilização de filmes de alta sensibilidade usados em
exteriores à luz do dia. Em Alphaville é a imagem noturna, aqui é o alto
contraste.
“O que há de insatisfatório nos filmes de guerra ‒ explicou Godard a
seu fotógrafo Raoul Coutard ‒ é que os cinzas são muito suaves. Em
Les Carabiniers quero o modo tal que eu tenha brancos e pretos, e no
máximo três ou quatro cinzas atirados aqui e ali. De outro modo es-
taremos perdendo tempo e não filmando a guerra.” É através de uma
imagem irreal, de grande contraste como velhas fotos tomadas com
filmes ortocromáticos, que Godard caracteriza o absurdo da guerra. Há
uma recusa instintiva em reconhecer nestas imagens duras uma
fotografia (ou a verdade) do nosso mundo, apesar da inclusão de cenas
retiradas diretamente e sem alterações de documentários cinematográ-
ficos (ou a verdade 24 vezes por segundo) da segunda guerra mundial.
A fotografia foi simplesmente reduzida às dificuldades normais que
qualquer cinegrafista encontra ao filmar uma batalha. Foi usado um
revelador de guerra para melhor revelar o que é a guerra, a fotografia
foi embrutecida para melhor apresentar a brutalidade, como o som foi 18
distorcido para obter a estranha música da guerra, “grosseira, ao inver-
so, das cavernas”, daí o exagero dos ruídos e a marcha militar composta
por Philippe Arthuys para órgão.
Dedicado a Jean Vigo, escrito em colaboração com Roberto Rossellini,
Tempo de Guerra é o quinto filme de Jean-Luc Godard, realizado em
1963, um ano após Viver a Vida (Vivre sa vie). É um filme que dupla-
mente nos remete aos primeiros tempos do cinema. Primeiro, pelo
estilo da fotografia. Depois, pela citação a Chegada do Trem à Estação
de Ciotat, de Louis Lumière, quando Miguel Angelo vai pela primeira
vez ao cinema. O susto de Miguel Angelo (que foi também o susto dos
espectadores que viram a primeira sessão pública de cinema no Bou-
levard des Capucines em 28 de dezembro de 1895) diante do trem que
parte do fundo da tela para cima da plateia, é em muito semelhante à
inquietação provocada no espectador de hoje que descobre o seu
próprio mundo na absurda realidade de Les Carabiniers.
Tempo de Guerra
(“O Filme em Questão: Tempo de Guerra”, 6 de abril de 1968)

Uma citação de Jorge Luis Borges (à medida que os anos passam eu me


encaminho para a simplicidade) antecede os letreiros em Les Cara-
biniers e anuncia a clareza com que será contada uma pequena fábula:
num lugar e época não determinados os carabineiros vão a uma casa
isolada, onde moram dois jovens, Ulisses e Miguel Angelo, entregar-
lhes uma carta do Rei que os convoca para a guerra. O que é a guerra?
A guerra, esclarece um dos carabineiros, consiste em poder matar,
pilhar, se apossar praticamente de tudo. “Nos tempos de hoje ‒ explica
um dos carabineiros ‒ com todas as difìculdades que atravessamos, a
polícia deve levar em consideração a distração do povo”. A guerra é
uma espécie de distração, assim a apresenta Les Carabiniers.
Não há batalhas, não há soldado inimigo, não há vitórias. A guerra em
Les Carabiniers é feita só de derrotas, são só bandeiras e homens que
caem. Não se luta em nome de coisa alguma, nada se defende, nada se
19 ataca. O inimigo do Rei é a vida em si mesma. É preciso exterminá-la,
acabar com ela tal como os carabineiros matam a mulher loura na
floresta: atirar, atirar, atirar novamente até que o menor dos movi-
mentos, o menor sinal de vida, desapareça. Ao final, quando Ulisses e
Miguel Angelo retornam da guerra e vão reclamar a posse das riquezas
conquistadas, são informados de que o Rei fora derrotado e as condi-
ções impostas para a paz são duras: Ulisses e Miguel são mortos pelos
carabineiros.
Verdadeiramente um tempo de guerra, uma época onde a guerra
tornou-se uma parte integrante da existência (uma distração para o
povo), onde sua ausência é que, ao contrário, não se explica. Assim
Godard retrata a guerra. Distorce a sua imagem e o som, distorce o
exterior para mostrar a verdadeira face interior. A mais alta estupidez
do homem é tratada hoje realmente como uma diversão. A guerra é
verdadeiramente esta estupidez que Les Carabiniers apresenta, a
fotografia em alto contraste, o som grosseiro, a música das cavernas.
“O que existe de insatisfatório nos filmes sobre a guerra ‒ é Godard que
explica ao seu fotógrafo Raoul Coutard ‒ é que os cinzas são muito
suaves. Para Les Carabiniers quero o negativo revelado num verdadeiro
revelador de guerra, revelado de um modo tal que eu tenha brancos e
pretos, e no máximo três ou quatro cinzas atirados aqui e ali. De outro
modo estaremos perdendo tempo e não filmando a guerra”. Uma ima-
gem irreal, altamente contrastada, como velhas fotos obtidas em filmes
ortocromáticos, eis como se apresenta a fotografia em Tempo de Guer-
ra. Há uma recusa instintiva em reconhecer nestas imagens duras, de-
sumanas, uma fotografia de nosso mundo, apesar da inclusão de cenas
retiradas, diretamente, e sem nenhuma alteração, de documentários
cinematográficos da Segunda Guerra Mundial. A fotografia foi aqui
tratada com as dificuldades normais que qualquer cinegrafista encon-
traria para filmar a guerra.
E, como a fotografia, também o som de Les Carabiniers foi embru-
tecido para melhor apresentar a brutalidade. Uma marcha militar in-
terpretada por um órgão (“encomendei a Philippe Arthuys uma música
grosseira, ao inverso, uma música das cavernas”, declarou o diretor), e
toda uma série de ruídos ampliados desordenadamente.
Les Carabiniers é o quinto longa-metragem de Godard, realizado em 20
1962, entre Viver a Vida e Le Mépris (este ainda inédito no Brasil). Mais
tarde, através de um dos personagens de Made in USA (Typhus,
interpretado por Ernest Menzer), Godard voltaria a se referir ao nosso
tempo de guerra: “A guerra não acabou, Trafalgar, Sedan, Berlim,
Hanói, ela muda de nome mas é sempre a mesma”.

A Chinesa
(“O Filme em Questão: A Chinesa”, 27 de abril de 1968)

O plano de abertura de La Chinoise, Henri sozinho lendo um texto,


mais o pequeno discurso do estudante Omar Diop para os componen-
tes da célula Aden Arabie e o diálogo entre Francis Jeanson e Véro-
nique, são de especial importância para a compreensão do filme de
Jean-Luc Godard. Um filme político, uma abertura de inúmeros pro-
blemas, uma discussão franca, uma discussão aberta que não se fecha
em mensagens ou soluções apressadas, e se propõe a ser “apenas os
primeiros passos tímidos de um longo caminho”: como levar a revolu-
ção aos trabalhadores na França? A morte de Stalin pôs fim aos proble-
mas do marxismo? Qual a ação revolucionária realmente válida?
Mas ao mesmo tempo em que A Chinesa abre questões políticas preo-
cupa-se em discutir problemas da comunicação entre as pessoas, pro-
blemas de expressão artística, problemas dos condicionamentos a que
cada indivíduo está submetido hoje. Nem poderia ser de outra forma,
ou a política, enfim, nada tem a ver com tudo isto? É preciso lutar em
dois fronts, é preciso confrontar ideias vagas com imagens claras, nos diz
A Chinesa. É preciso, diz ainda, através de Kirilov, chegar ao conteúdo
revolucionário através de uma forma artística a mais perfeita possível.
Lutar em dois fronts: ideias vagas e imagens claras, ficção e realidade,
em A Chinesa estão lado a lado, não apenas na presença de dois
personagens reais (o estudante Omar Diop, o professor de filosofia
Francis Jeanson), dialogando com personagens de ficção, os compo-
nentes da célula Aden Arabie, mas também na presença de diálogos
reais ditos por personagens de ficção, na apresentação lado a lado de
21 fotos de Mao e Guevara, desenhos de Batman, do Capitão América, ou
do tigre, tanques e aviões de brinquedo.
Objetos e pessoas colocados num mesmo plano, prosseguindo uma
exposição iniciada em seu filme anterior: “Os objetos mortos estão
sempre vivos, as pessoas vivas estão frequentemente já mortas” ‒ diz
um dos comentários de Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela. E pros-
segue: “O surgimento no mundo humano de coisas mais simples, a to-
mada do poder pelo espírito do homem, um mundo novo onde os
homens e as coisas conhecerão ligações harmoniosas, eis a minha
meta. É, afinal, tão politica quanto poética. Explica, em todo caso, a
raiva com que procuro a expressão, eu, escritor e pintor.”
“A história da arte ‒ diz KiriIov, o pintor ‒ é a história do caminho da
arte em direção à sua própria ciência”. O artista contemporâneo age
verdadeiramente como um crítico de sua própria forma de expressão,
procura reinventar a arte, toma como base a reflexão sobre o seu meio
de expressão, sobre as finalidades da arte, movido pela necessidade de
encontrar uma nova forma capaz de conter os problemas de hoje.
Várias vezes já se disse que Picasso parece procurar inventar a pintura
a cada quadro. Em busca da “forma artística mais perfeita possível” Go-
dard continua em seu décimo terceiro filme a ser o mesmo homem in-
quieto e intranquilo que mudou o cinema depois de À bout de souffle.
Os problemas políticos abertos em A Chinesa são o veículo ideal para
que ele discuta os problemas de expressão contemporâneos. Numa so-
ciedade onde as relações entre os indivíduos estão cada vez mais con-
dicionadas pelos dados fornecidos pelos veículos de comunicação com
a massa, por uma subcultura popular distribuída em troca de alguns
níqueis, onde os homens são cada vez mais transformados em objetos,
em meros consumidores, talvez seja necessário ser cego, como queria
Guillaume, para poder conversar melhor. Conversar numa linguagem
“diferente, mais séria, onde o sentido é que mudaria as palavras”.
Por isto, numa das primeiras cenas do filme, Guillaume responde a
Véronique que “uma palavra é o que se cala”. Por isto, durante todo o
filme uma longa frase vai-se formando lentamente, a partir do artigo
definido (les) que surge sozinho na tela, para só se completar ao final,
num permanente contraponto às discussões dos componentes da cé-
lula Aden Arabie. “Os imperialistas continuam vivos com suas guerras
injustas...”, assim começa o texto que comenta as discussões sobre os 22
atentados de terrorismo para fechar as universidades, ou as afirmações
de que os imperialistas são tigres de papel.
Uma frase que se vai formando aos poucos, “un film en train de se
faire”, assim A Chinesa se apresenta ao espectador. Uma discussão polí-
tica e ao mesmo tempo uma discussão sobre a expressão artística, uma
apresentação de um filme que se vai fazendo, aos olhos do espectador,
que vê a câmara, o gravador, a claquette. Uma luta em dois fronts, rea-
lidade e ficção, Méliès e Lumìère, uma espécie de atualidades recons-
tituídas, uma ficção sim, mas que nos aproxima mais da realidade.

Masculino Feminino
(“O Filme em Questão: Maculino Feminino”, 11 de maio de 1968)

Paris, inverno de 1965. Dois jovens, Paul e Madeleine, conversam num


café. Ele toma notas num diário enquanto fala, ela folheia uma
revista. Numa mesa vizinha um casal acompanhado de uma criança
discute. A discussão se torna mais violenta, o homem abandona o bar
carregando o seu filho, a mulher o segue, tira da bolsa um revólver e
atira contra ele.
Este primeiro dos quinze fatos precisos reunidos por Godard em Mas-
culino Feminino define toda a construção do filme, uma espécie de
montagem de notícias à maneira de um jornal diário, uma espécie de
colagem, esta pesquisa levantada pelas artes visuais para colocar num
só espaço todas as pequenas e independentes realidades que formam
o mundo de hoje. Uma espécie, enfim, de viver a vida, pois os perso-
nagens, como qualquer um de nós, são com frequência agredidos por
fatos mais ou menos estranhos que acontecem à volta deles.
No primeiro dos quinze fatos precisos a câmara é dirigida como se
descobrisse, de repente, quase ao acaso, a discussão entre marido e
mulher numa mesa vizinha àquela onde Paul e Madeleine falavam do
trabalho, da guerra, de suas vidas. Como Paul, que tomado de surpre-
sa grita apenas para que se feche a porta sem perceber ao certo o que
se passa, a câmara volta-se também surpreendida para o casal no
23 exato tempo de fixar o final da discussão.
Quando esta primeira das quinze partes de Masculino Feminino se
iniciava, Paul escrevia em seu caderno ser incapaz de estar só, e que
ao mesmo tempo que fala de si partilha da vida dos outros. Por isso,
cada uma das descobertas feitas à margem dos acontecimentos cen-
trais tem grande importância. Em Masculino Feminino a linguagem
dos filmes de Godard se mostra mais uma vez de grande eficiência
para retratar a sociedade moderna. Esta linguagem parente próxima
de um jornal ou de uma colagem é o melhor espelho de um tempo
onde convivem James Bond e o Vietname, de um tempo marcado por
dois polos, a luta revolucionária socialista e a americanização. “Este
filme poderia chamar-se Os Filhos de Marx e Coca-Cola”, diz um dos
letreiros de Masculino Feminino, e é como um produto híbrido destes
dois polos que nos apresenta não exatamente um grupo de jovens
parisienses no inverno de 1965, e sim toda a Paris daquele inverno.
Se o filme se passa entre jovens é para que se torne possível indagar
constantemente sobre tudo. Os jovens personagens de Masculino
Feminino estão num constante jogo da verdade interrogando-se e
interrogando todas as coisas sobre tudo. No inconformismo da
juventude Godard encontra um perfeito paralelo para a sua inqui-
etude, para as constantes negações das formas e valores estabeleci-
dos; um perfeito paralelo para a necessidade de indagar sobre tudo,
partir novamente do zero. Em Masculino Feminino Godard inicia um
assunto que voltará a tratar mais adiante em Duas ou Três Coisas Que
Eu Sei Dela, ela, a Cidade de Paris. A cidade da Miss 19 anos, a cidade
definida com a superposição de um trecho de uma peça, Prodiges, de
Vauthier, lido por Brigitte Bardot sobre imagens das ruas de Paris:
“Uma estrutura da perversidade. Um deserto abandonado por ho-
mens que deixaram os seus rastros. Procuramos, mas não encontra-
mos nada, nada.”
“Faço um filme sempre em relação ao anterior”, declarou uma vez Go-
dard, e Masculino Feminino prossegue ao recusar, ainda mais niti-
damente, uma história de pessoas para filmar o que existe entre as
pessoas.
Nas suas quinze partes o filme não se preocupa em mostrar uma ação,
mas a reflexão sobre as ações que transcorrem todas fora da tela. Os
fatos precisos são filmados de maneira a documentar todos os 24
pequenos detalhes destas reflexões, por isto a preocupação dominan-
te de respeitar a sua duração real, com todas as pausas longas entre as
conversações (gravadas em som direto), o que dá ao estilo de inter-
pretação uma agradável atmosfera de espontaneidade. E hoje é pos-
sível dizer, já que o filme nos chega com algum atraso, que ele é sem
dúvida uma antecipação dos problemas e das soluções formais levan-
tadas em Duas ou Três Coisas e em A Chinesa.
A crítica à sociedade dos objetos de consumo, que toma corpo nestes
dois filmes, já se apresenta em Masculino Feminino na entrevista da
Miss 19 anos, no trecho lido por Brigitte Bardot, num comentário (à
maneira daqueles que o próprio Godard irá ler em Duas ou Três Coi-
sas) tambem colocado sobre imagens de movimentadas ruas da ci-
dade: “Hoje as pessoas preferem um carro e um aparelho de televisão
em lugar de liberdade. Dentro de vinte anos cada um terá enxertado
dentro de si mesmo um pequeno aparelho elétrico para lhe dar
prazer”.
Made in USA
(“O Filme em Questão: Made in USA”, 6 de julho de 1968)

Da revolução que os filmes de Godard fizeram no cinema, desta revo-


lução apoiada principalmente no desmembramento da continuidade
de narração e num estilo intencionalmente descontínuo, desta liberta-
ção dos meios de expressão do cinema de uma função menor de ilus-
trador de um argumento, gostaria de destacar a propósito de Made in
USA apenas um de seus aspectos, o uso da cor.
Acontece com a cor em Made in USA o mesmo que Alain Resnais fizera
com o som em O Ano Passado em Marienbad. No momento em que os
dois personagens centrais do filme de Resnais entram numa sala de
concertos para assistir a um recital de violino, ou quando num baile
eles dançam, a música que se ouve é sempre a bela composição para
órgão de Francis Seyrig, porque apenas aquela composição, aquele som
poderia fazer parte do filme, qualquer outro seria uma presença
estranha e indesejável, uma nota mal colocada.
25 É um tempo sem vida e sem amor (adieu la vie, adieu l'amour), é uma
noite (it is the evening of the day), a vida moderna nas grandes cidades,
a vida made in USA caminha a passos largos para a cidade desumani-
zada de Alpha 60, e para mostrar esta transformação Godard se utiliza
das mesmas cores quentes e dos contrastes agressivos usados pelos
meios de comunicação de massas, as revistas, os cartazes. A cor é que
comanda tudo em Made in USA, os interiores dos bares, o pequeno
quarto de hotel, o interior da garagem, as paredes, os cartazes de cores
gritantes, todo o cenário de Made in USA é escolhido em função da
possibilidade de uma combinação de cores de alto contraste com as
roupas dos personagens: azul-laranja, vermelho-verde, branco-verme-
lho, as cores pulam da tela. Não há sombras, não há meio tom, elas
estão saturadas. Do enorme número de filmes coloridos realizados até
hoje, a grande maioria não ultrapassou a mediocridade; um número
bastante reduzido conseguiu controlar a cor e fazer com que ela con-
tribuísse efetivamente para a atmosfera pretendida, mas não creio que
até hoje tenha sido exibido entre nós um filme onde a cor tenha uma
função tão expressiva, um filme que se realizasse principalmente atra-
vés da cor como Made in USA.
Trata-se verdadeiramente de um dos primeiros filmes em cores já reali-
zados, e é preciso não esquecer que se a cor pode finalmente ter uma
função dominante num filme, isto se deve a uma destruição progres-
siva da função menor a que a imagem cinematográfica estava presa.
Quando ela não tem mais que contar uma história, pode ser composta,
colorida e ordenada de modo a conter em si mesma uma força de ex-
pressão que não se encontra atualmente em nenhuma outra lingua-
gem. Espécie de ponte entre Masculino Feminino e A Chinesa, Made in
USA não esta entre os melhores filmes de Godard, mas é parte indisso-
lúvel de uma obra que reformulou o cinema. Uma reformulação impos-
ta pela necessidade de encontrar a linguagem ideal para discutir a
realidade de nossos dias. Acontece ‒ repetindo a frase de abertura de
Alphaville ‒ que a realidade é muito complexa para ser explicada. por
palavras.

26
Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela
(“O Filme em Questão: Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela”, 26 de
outubro de 1968)

Já em 1960, em O Pequeno Soldado, seu segundo filme de longa


metragem, Godard afirmava através de Bruno Forestier que “mais
importante que encontrar uma resposta é continuar a fazer perguntas”,
e em Duas ou Três Coisas faz um filme que é uma constante indagação
sobre os homens, sobre a vida, sobre o cinema. Não existe uma
história, nem mesmo diluída ou fracionada, como em seus primeiros
filmes. Não existe mesmo um personagem central onde o espectador
habituado a filmes narrados de um modo clássico possa se apoiar.
Em Duas ou Três Coisas, Ela é ao mesmo tempo Juliette, a cidade de
Paris, as histórias em quadrinhos, a propaganda, a relação entre as
pessoas e os objetos, a linguagem cinematográfica, a vida em conjunto,
a vida nos grandes conjuntos residenciais. “Deve-se colocar tudo num
filme”, diz Godard, e Duas ou Três Coisas se apresenta no conjunto
tumultuado e brilhante de seus filmes como um dos momentos mais
revolucionários, como uma das tentativas mais ricas de encontrar uma
forma de expressão cinematográfica capaz de espelhar com fidelidade
os problemas de nosso tempo. A renúncia de uma narração linear em
favor de uma construção fracionada, que pode ser comparada aos
resultados de uma colagem, foi iniciada em Masculino Feminino, e
aparece aqui como uma poderosa forma de definir um conjunto social
onde as pessoas existem menos que os objetos. Assim, os objetos são
filmados como pessoas vivas, eles existem tanto quanto as pessoas, e ao
lado de imagens de Marina Vlady, aparecem desenhos de histórias em
quadrinhos, cartazes, letreiros de livros, peças de um rádio, um grande
número de produtos comerciais, arrumados no chão como prédios de
uma cidade. De todos os objetos Godard se aproxima com o mesmo ca-
rinho que o cinema sempre dedicou às pessoas. Tanto quanto Juliette
ou Marianne, uma embalagem do sabão Pax, ou da goma de mascar
Hollywood, são personagens de Duas ou Três Coisas. Tanto quanto
Juliette e Marianne são pessoas vivas, ou como diz um dos comentá-
27 rios, “existem mais que as pessoas vivas”, exatamente porque estas pes-
soas estão escravizadas a um sistema de consumo destes objetos e pas-
sam a viver na dependência da relação com estes objetos. Para eles se
desloca toda a possibilidade de felicidade, de sonho: “Se não pode com-
prar LSD, compre uma televisão a cores”. E desta aproximação carinho-
sa das duas ou três coisas que determinam a vida das pessoas resultam
em dois primeiros planos dos mais lindos que já vi em cinema: o de
uma xícara de café, filmada tão de perto que só se vê o café, nem
mesmo a beira da xícara aparece, e a do cigarro filmado de frente, e do
qual só se vê a chama.

One Plus One


(II Festival Internacional do Filme, 30 de março de 1969)

Um dos diálogos de Le Gai savoir, filme que Godard realizou para a


televisão francesa, é talvez a melhor introdução para One Plus One:
“Para encontrar a solução seja de um problema químico, seja de um
problema político, é necessário dissolver: dissolver o hidrogênio, dis-
solver o parlamento. Aqui, vamos dissolver as imagens e os sons.”
Quem se recorda do Yojimbo, de Kurosawa, que destrói toda uma cida-
de para impedir que seus habitantes briguem entre si? Quem se re-
corda do Cristo de Pasolini em Il vangelo secondo Matteo afirmar: “Não
julgareis que vim trazer paz à Terra. Não vim trazer-lhe paz mas es-
pada”? Ou quem se recorda ainda da renúncia à linguagem de Eliza-
beth Vogler em Persona, de Bergman, de Guido em Oito e Meio ou ain-
da de Thomaz em Blow-Up? E quem não traz ainda na cabeça as belas
imagens de Teorema?
One Plus One é a mais radical e provocante discussão de um problema
que domina todo o artista contemporâneo, a criação de uma linguagem
capaz de comunicar-se efetivamente com a plateia; e ao mesmo tempo
a reafirmação de que se torna necessário destruir a linguagem e a
forma da apreensão de cultura, tal como existem hoje, para se conse-
guir chegar a um novo meio de expressão capaz de permitir uma verda-
deira comunicação com o espectador. Se o problema não é novo, se em
pintura, poesia, literatura ou teatro inúmeros artistas encontram-se no 28
mesmo caminho criando movimentos tipicamente de destruição da
linguagem, como o surrealismo, o concretismo, ou a pop-art, ele se co-
loca de modo muito especial no cinema, devido ao estrangulamento da
livre criação ditada pelos métodos de produção.
E assim, a reação de uma plateia que aguardava ansiosa um espetáculo
publicitário dos Rolling Stones (nos moldes do que Richard Lester fez
com os Beatles), diante de um filme que visa exatamente destruir este
tipo de espetáculo não poderia ser muito diferente da que lotava o
Metro Copacabana na primeira sessão de ontem, onde antes mesmo do
término da projeção os espectadores já discutiam. Como foi feito One
Plus One? Uma construção paralela, como A Chinesa. A frase que se
escreve na tela lentamente e só se completa ao final da Chinesa é
substituída aqui por um ensaio dos Rolling Stones, que experimentam
uma melodia em vários andamentos diferentes, interrompem e
retomam o ensaio, procuram o som exato tateando aqui e ali. E para-
lelamente ao ensaio são lidas ao acaso páginas de uma novela política,
alguns membros do Black Power e uma jovem chamada Eva Democra-
cia são entrevistados, numa livraria são lidos trechos de Mein Kampf, e
os fregueses pagam os livros que compram com a saudação nazista, e aí
chegamos ao centro do filme.
“A publicidade é uma forma de fascismo ‒ diz um dos personagens
de Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela ‒ e a base da nossa sociedade”,
e assim Godard se propõe a destruir uma linguagem simplificada e
mentirosa criada para a diversão em massa, a partir de suas próprias
imagens. A canção que os Rolling Stones ensaiam, as páginas lidas ao
acaso de uma novela política, ou as entrevistas giram em torno de uma
declaração de um dos homens do Poder Negro: “Usamos as mesmas
palavras, mas falamos linguagens completamente diferentes”.
A falta de uma ação a ser registrada pela câmara, o constante apelo à
discussão de ideias sugeridas pelas imagens que funcionam como uma
parábola, ou a aparentemente absurda mistura de nomes e fatos trans-
formam-se num estonteante desafio para a plateia, numa constante
proposta de uma posição crítica diante das questões levantadas.
Uma destruição da linguagem, “uma dissolução de sons e imagens”
para atender a uma preocupação antiga do diretor: “Para ser um
29 verdadeiro intelectual hoje é preciso deixar de ser intelectual, é preciso
começar pela criação de colégios de descultura”, como afirma um per-
sonagem de One Plus One. A inquietude e o caráter francamente pro-
vocante dos filmes de Godard são uma das contribuições mais impor-
tantes do cinema moderno, e sem a menor dúvida seus filmes é que
têm oferecido matéria e servido de ponto de partida para inúmeros
outros homens de cinema. One Plus One, Teorema, de Pasolini, Crôni-
ca de Ana Madalena Bach, de Straub e os filmes húngaros de Jancso,
Kovacs e Zolnay, foram sem dúvida os melhores programas do FIF.

O Desprezo
(“O Filme em Questão: Desprezo”, 14 de novembro de 1969)

Seis anos depois de O Desprezo, através de um dos personagens de One


Plus One, Godard afirma que “para ser um intelectual revolucionário é
preciso deixar de ser um intelectual”. Le Mépris é um dos passos que
formam o caminho traçado por Godard desde Acossado em sentido
contrário à clássica posição reflexiva do intelectual, em sentido contrá-
rio à clássica relação entre a obra de arte e o espectador. Realizado em
63, imediatamente depois de Vivre sa vie e Les Carabiniers, um pouco
antes de Alphaville e Pierrot le fou, é um cuidadoso trabalho de destrui-
ção da narrativa cinematográfica acadêmica. Ou, mais exatamente, um
cuidadoso trabalho de construção de um estilo narrativo moderno e
aberto, livre de todos os vícios literários que condicionaram durante
largo tempo a linguagem de cinema.
A verdadeira importância da destruição da continuidade linear da
narrativa nos filmes de Godard está no fato de que isto significa a cons-
trução de um estilo de espetáculo que convide o espectador a uma par-
ticipação mais ativa. Ele não é mais convidado a esquecer a descon-
tinuidade que é a própria base da linguagem de cinema. O filme não
faz mais um apelo para que sejam esquecidas as passagens de uma ima-
gem a outra e para que se procure encontrar o fio de uma narrativa na
sucessão das imagens apresentadas. Desprezada a ordem linear aparen-
te, devolvida a autonomia a cada um dos instantes do filme, se instala
uma ordem mais sólida e profunda a partir da ligação de imagens mais 30
expressivas, mais significativas a partir do ritmo que surge desta liga-
ção. E se o espectador aceitar o convite e se desliga do conteúdo dra-
mático do plano para se fixar no próprio modo com que a imagem foi
composta, pode então participar ativamente de uma das mais comple-
tas matérias de investigação da vida moderna, o filme.
Le Mépris é um dos muitos ensaios que possibilitaram a chegada de
uma forma de expressão inteiramente liberta de preconceitos, mas sua
importância não se reduz ao fato de fazer parte de uma procura de
expressão. Com uma atividade incessante (em 10 anos, dirigiu 19 filmes
de longa-metragem, além de seis curtos para filmes de episódios),
Godard foi formando sua própria consciência à medida que realizava
seus filmes, isto é, pensava enquanto filmava, no momento mesmo de
filmar, com o filme. A novela de Moravia oferece apenas um pretexto
para que ele se volte para o assunto dominante de seus filmes até
Pierrot le fou, o cinema. O Desprezo é um filme sobre o cinema, mais
que pela simples presença de Fritz Lang, ou pela citação de Bazin, ou
pela oposição do mundo das aparências e do mundo da realidade.
É significativo que o primeiro plano do filme termine com a câmara de
filmar voltada para a plateia, como igualmente é significativa toda a
sorte de pequenas citações que pontuam Le Mépris. Várias das
discussões mostradas num instante serão retomadas filmes adiante, e
as preocupações constantes de Godard já estão aqui claramente deline-
adas, na oposição entre o mundo da Odisseia, onde as pessoas viviam
em harmonia com a natureza, e o mundo de hoje, onde as pessoas
revivem num mundo pré-fabricado, recebem ideias pré-fabricadas,
onde não existe qualquer harmonia entre o meio e o indivíduo. Onde a
única forma de existência permitida (vejam-se Duas ou Três Coisas) é
uma espécie de prostituição, onde se é forçado a não pensar ou a ven-
der o pensamento, onde o revólver que os nazistas puxavam contra a
cultura está substituído pelo talão de cheques. Le Mépris na oposição e
confrontação da situação de Ulisses e Penélope, Paul e Camille, o artis-
ta grego e o artista contemporâneo, constrói uma narrativa exemplar.
Exemplar porque despreza a facilidade de contar uma história para
manter o espetáculo num nível de discussão crítica, preocupado em
31 propor temas para um debate com o espectador.

Week-End à Francesa
(“O Filme em Questão: Week-End à Francesa”, 20 de março de 1970)

Weekend, assim como Viver a Vida ou Pierrot le fou, é um dos momen-


tos onde Godard consegue reunir toda a série de preocupações que
marcaram seus filmes anteriores. Para Godard, o cinema sempre se
apresentou como uma imagem em miniatura do mundo em que vive-
mos, e desta maneira falar de um problema social é o mesmo que falar
de um problema cinematográfico e vice-versa. Vivemos numa espécie
de imensa história em quadrinhos, e, então, discutir os problemas da
sociedade massificada pelo uso de uma linguagem fortemente apoiada
na imagem é ao mesmo tempo discutir os problemas desta linguagem.
A estrutura em que se baseia Weekend é muito simples, trabalhada pe-
lo diretor desde Acossado, discutida e exemplificada aqui e ali, e da
melhor maneira talvez na pequena anedota da composição infantil
sobre a galinha (em Viver a Vida): a galinha é um animal que se divide
em duas partes: o lado de dentro e o lado de fora. Filmando a socie-
dade dominada pela imagem, Godard esteve sempre preocupado em
mostrar o interior ao filmar o exterior, isto é, ir um pouco além dos
limites estabelecidos da imagem, definir as coisas até o interior onde
ela não pode chegar, encontrar a imagem exterior que verdadeiramen-
te corresponda ao interior.
Esta transformação de uma imagem no retrato interior de uma paisagem
ou acontecimento, perseguida numa luta sem tréguas, parece ter encon-
trado sua expressão mais feliz nesta saudação ao oceano: É o oceano, o
velho oceano, que Godard procura filmar em Weekend. Ou, mais exata-
mente, é como quem filma a agitação das ondas do oceano para procurar
descobrir a sua verdadeira profundidade que Godard filma os perso-
nagens e as paisagens de Weekend. O filme olha o nosso mundo como
quem olha a agitação das ondas do mar, filma a agitação da superfície, as
ondas mais altas e violentas, para estudar a profundeza das águas.
E ao filmar a superfície dos homens em momento algum encontra “a
doce humanidade que deveria ser a base de todo contrato social”, re- 32
conhece amargurado que o oceano humano se agita em sua superfície
de um modo tão violento que a profundeza do coração humano é im-
possível de medir.
Filmar as ondas mais violentas, porque “o horror da burguesia só pode
ser ultrapassado com mais horror”, por isto Weekend elimina todos os
detalhes e caracteriza as ações com fortes tintas: o marido quer matar a
mulher, a mulher quer matar o marido, os dois querem matar os pais
para ficar com a herança.
Os motoristas querem matar-se uns aos outros por causa de seus car-
ros, em nenhum lugar a doce humanidade, o horror, a violência, o ci-
nismo formam a base do contrato social de uma sociedade devorada
pela imagem, pela massificação. Nesta imensa história em quadrinhos
de um fim de semana pontilhada de desastres automobilísticos, de
mortes violentas, as pessoas se devoram entre si enquanto sonham
com um fim de semana com James Bond, um cabelo todo louro, um
esquadrão de Mirage.
Apêndice - Listas de melhores do ano 1964-1969

1964

33
1965

34

1966
1967

1968
35
1969

36
Posfácio

A presente coletânea foi concebida para suprir uma dupla ausência.


Primeiramente, a ausência de José Carlos Avellar na mesa de debates
do Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, por ocasião
da retrospectiva “Jean-Luc Cinema Godard”, em novembro de 2015.
Tendo sabido em cima da hora que ele não seria meu companheiro de
mesa no debate, por conta da já debilitada saúde, lembrei-me ime-
diatamente desses inflamados textos do Jornal do Brasil, que militavam
por uma nova linguagem cinematográfica, baseada no jornalismo, que
podasse os excessos de dramaturgia e focasse na clareza e na discussão
dos problemas contemporâneos. Mas, na impossibilidade de localizar
esses pequenos artigos num prazo tão curto, fiz apenas uma breve
menção a esse fervor modernista flagrante em cada um dos textos aqui
reproduzidos. Quando da segunda ausência, a notícia de seu fale-
cimento, o desejo de compilar esses artigos verteu-se em dever, com
ele, com a História, com a continuidade do pensamento godardiano no
37 Brasil. Pessoalmente, nunca fomos amigos, fomos eventualente co-
legas, e frequentemente estivemos em posições antagônicas. A trans-
missão e a aprendizagem se deram no texto e pelo texto, ainda que a
palavra impressa sempre levasse novamente à palavra e ao debate:
sempre foi assim que ele viu a crítica. Na ausência do homem, ao me-
nos o texto continua presente, vibrante, perguntador, instigante e
pronto a suscitar novas conversas.

Ruy Gardnier
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março 2016

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