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95 | 2010
Mélanges
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https://doi.org/10.4000/caravelle.7302
Résumé | Index | Plan | Texte | Notes | Illustrations | Citation | Auteur
Résumés
PORTUGUÊSFRANÇAISENGLISH
La zone litigieuse à la frontière entre Brésil et la Guyane Française est restée hors de la
réglementation juridique des deux pays jusqu'en 1900. La découverte d'or a conduit
plusieurs entreprises à s’y installer. Cette concurrence a atteint son point culminant en
mai 1895 dans l'épisode connu au Brésil comme « Le Massacre de l’Amapá »: un
conflit militaire entre Français et paysans brésiliens ayant fait plus de 40 morts.
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Palabras claves:
Fronteira, Amapá, Guiana Francesa, Imperialismo, Garimpo
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Plan
Apresentação
A descoberta do ouro
Considerações finais
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Apresentação
1Uma extensa área litigiosa ao longo do rio Oiapoque, na fronteira entre o Brasil e a
Guiana Francesa, permaneceu fora da regulação jurídica institucional dos dois países até
dezembro de 1900 quando foi definitivamente incorporada ao Brasil. Desde o ano de
1884, várias missões científicas de origem francesa com apoio do estado nacional e
financiamento do capital privado incentivaram a prospecção e a exploração dos recursos
naturais nessa região. A descoberta de grandes jazidas auríferas no rio Calçoene no ano
de 1893 trouxe várias empresas para essa região seguida de uma intensa migração de
trabalhadores vindos do Caribe e da Amazônia. Esses fatos geraram uma explosão
demográfica que desestabilizou a vida cotidiana das populações nativas. O resultado
dessa febre do ouro atingiu seu clímax em maio de 1895 no episódio conhecido como o
« massacre do Amapá », um conflito armado entre militares franceses e paramilitares
brasileiros no qual pereceram entre 40 e 60 pessoas, dependendo das fontes consultadas,
um incidente nada diplomático que por pouco não levou os dois países à guerra.
A descoberta do ouro
2 « Além da zona encachoeirada do Calçoene, trinta e cinco quilômetros, ou
“vinte dias de jornada”, a (...)
4A lenda regional com base na tradição oral transformada em história oficial do estado
do Amapá nos diz que em outubro ou novembro de 1893, dois brasileiros de origem
paraense, Germano Ribeiro Pinheiro e Firmino de Tal, bateando nos igarapés do rio
Calçoene descobriram um grande veio de ouro, bem no centro da área litigiosa 2. Por
outro lado, a historiografia francesa trabalha com a versão abaixo narrada pelo agente
sanitário Georges Brousseau, designado no ano de 1896 pelo governo francês para
acompanhar os trabalhos da comissão de limites francobrasileira na área litigiosa:
Esta descoberta foi feita por Clément Tamba, um negro iletrado de Cayenne
[Caiena], mas grande comerciante de peles, em associação com o dono de
uma empresa de cabotagem Pierre Villiers, de Cayenne, no mês de janeiro
de 1894. Foi um habitante do Contestado chamado Germano, quem, de
passagem por Cayenne, convenceu esses dois garimpeiros a fazerem uma
expedição de prospecção nas nascentes do Carsewene [Calçoene]. Seu pai
que acabara de morrer declarou que um dia tinha visto em sonho Santo
Antônio. Esse bem aventurado lhe afirmou que havia 3 ricas minas de ouro
em direção às nascentes do Carsewene e que havia chegado o momento de
explorá-las3.
5Os rumores que se espalharam foram suficientes para atraírem milhares de homens em
busca da aventura do ouro a partir de maio de 1894 e nos anos seguintes. A área
compreendida entre o Calçoene, o Cassiporé e os afluentes de ambos os rios, registrou
um fluxo intenso de aventureiros provindos, em sua maioria, de terras mais ao norte das
Guianas e do Caribe, mas, também, de uma boa quantidade de brasileiros vindos,
principalmente, das províncias do Pará e do Ceará. Estima-se que aproximadamente
6.000 garimpeiros viviam na região do Contestado no auge da exploração aurífera. A
empresa Société Française de l’Amérique Equatoriale estabelecida em Calçoene no ano
de 1897, construiu 67 km de monorail ligando a vila à região dos placers4. No início,
praticamente todo o ouro extraído passava pelo porto de Caiena, o mais próximo e bem
aparelhado, onde era classificado e tributado em 10 francos por kg na entrada e em 8%
do valor bruto da mercadoria quando de sua saída para a Europa, o que fornecia uma
enorme arrecadação para a colônia francesa5. Contudo, para escapar à tributação
francesa, desde o ano de 1895, grande parte da exportação do ouro extraído permaneceu
sob controle das companhias mineradoras de origem inglesa que operavam com navios
fretados saindo diretamente do rio Cunani e do Calçoene. Passando ao largo de Caiena,
as embarcações navegavam em direção a Demerara, na Guiana, e a Port Spain, em
Trinidad. Desses portos, o carregamento seguia para Southampton, na Inglaterra, fato
que provocou um sentimento misto de revolta e inveja na burguesia comercial francesa
estabelecida na Guiana. Nesse momento reapareceu o discurso mais nacionalista que
havia sido abandonado com a expansão imperialista para esta porção da América. De
sua parte, o estado e os empreendedores brasileiros praticamente permaneceram à
margem de todo o processo de extração mineral realizado no Contestado. Quando se
deram conta das riquezas existentes, já era tarde. O boom aurífero ocorrido no Amapá
foi comparado pelo historiador paraense Manoel Buarque ao de uma nova Califórnia:
6Vilas que ficaram conhecidas com os nomes dos próprios garimpeiros como Firmino o
descobridor do ouro no rio Calçoene, e Lourenço o descobridor de ouro nas cabeceiras
do Cassiporé. Povoados que surgiam e anos após desapareciam. Mais perene que estes,
a vila de Amapá, bem abaixo da foz do rio Calçoene, transformou-se em um pequeno
aglomerado urbano (aproximadamente um milhar de pessoas o habitava nessa época)
centro dos negócios brasileiros da região. Cunani, Uaçá e Aruacá, lugares onde nunca
antes havia vivido mais do que uma centena de pessoas, sofreram o inchaço
demográfico. Povoados tomados por garimpeiros numa zona onde não havia cobrança
de impostos e a influência dos estados nacionais, tanto o francês como o brasileiro, era
praticamente inexistente, fez com que a população flutuante se organizasse em cada vila
escolhendo suas lideranças locais em função dos interesses comerciais mais imediatos,
geralmente seguindo as determinações do dono de filão mais poderoso.
8 Id., p. 98.
13O que talvez nem o governo de Caiena nem os empresários franceses esperassem,
fosse o fato de que os moradores de origem brasileira residentes há mais tempo no
Território Contestado se sentissem incomodados ou, melhor dizendo, literalmente
invadidos, com a exploração comercial em curso e que não se interessassem pelo tipo de
desenvolvimento, discutível, que isso pudesse trazer. Nas estimativas do próprio
governador da Guiana Francesa, quase metade da população livre masculina da colônia
migrou para o Cunani e o Calçoene, e muitos começavam a alcançar a vila de Amapá.
Terras antes praticamente desertas tornaram-se palco de verdadeiras cidades de faroeste
construídas da noite para o dia. Esse trânsito de pessoas causou uma série de problemas
para as antigas famílias moradoras, a começar pela chegada da prostituição e da
violência provocada pelo álcool e pela cobiça, que geralmente acompanha a vida
mundana nos garimpos13.
14A primeira reação oficial brasileira a essa corrida ao ouro, segundo o Governo de
Caiena, teria sido patrocinada por funcionários públicos vindos de Belém e
estabelecidos em Amapá. Ela ocorreu através do aviso de interdição do acesso na
entrada dos principais rios do Contestado: os rios Amapá Grande, Cunani e Calçoene.
Em setembro de 1894, o capitão Daniel instituiu um pedágio de 150 francos para todas
as embarcações que subissem o rio Calçoene. Acusado de ser um bandido insolente pelo
engenheiro Fernand Sursin, retrucou ser ele o proprietário das terras e como tal fazia o
que bem entendesse. Sursin registrou as imagens e as levou até o conhecimento do
governador da Guiana Francesa.
15No mesmo mês, dois empreendedores de Caiena, Nazard e Coillari, alegaram terem
sido impedidos de entrar na vila de Amapá14. Em Cunani, um negociante de Caiena
afirmou que a população brasileira, muito numerosa, impediu a resistência de uma dúzia
de franceses, expulsando-os do vilarejo. Os brasileiros lhe teriam dito, que agora seria o
próprio Presidente da República, o Marechal Floriano Peixoto, a estimular o
nacionalismo. Pouco depois, ao final desse ano de 1894, Trajano, o capitão do Cunani
simpático da causa francesa, sentiu-se ameaçado com a interdição de acesso e, com a
ajuda de seu amigo Henri Coudreau, retirou-se para Caiena, onde pediu a criação de
uma polícia para a proteção dos franceses moradores da região do Contestado.
16A questão da interdição do acesso aos garimpeiros franceses e das denúncias feitas
por alguns deles em Caiena assumiu contornos de confronto entre estados e populações
nacionais. Mas, na perspectiva francesa esta não seria somente uma questão de disputa
territorial em uma região sem soberania definida. O que passou a ser discursado nas
tribunas de Caiena era um hipotético confronto da civilização contra a barbárie. A
população brasileira, segundo Charvein, deveria ser tratada como se tratam crianças
rebeldes e insolentes que desafiam a autoridade paterna. E como o seu pai, o estado
brasileiro, comportava-se como um pai ausente, incapaz de educar seus próprios filhos,
caberia à França levar as noções mínimas de civilidade a esses filhos rebeldes órfãos da
civilização. Para isso, a disciplina deveria ser ministrada como o exemplo que faltaria a
esses brasileiros: « com toda a moderação da força, mas com toda a firmeza da lei »15,
da lei francesa, subentenda-se. Este, em resumo, o teor das reuniões tidas durante o mês
de março de 1895 pelo governador Charvein com o empresário Daniel Casey, com o
Diretor do Ministério do Interior e com o comandante da Marinha, em Caiena16. O
objetivo seria o de intimidar a resistência brasileira à exploração comercial na região
litigiosa, fato que infringia a liberdade de circulação garantida pela convenção de 1862.
Essa resistência civil com 60 homens armados de fuzis a tiro rápido estaria sendo
organizada a partir da vila de Amapá por Francisco da Veiga Cabral, alcunhado
Cabralzinho, tido pelos franceses como um típico caudilho sul-americano, testa de ferro
do governo de Belém. Iniciava-se assim a arquitetura de um plano secreto e extra-oficial
de intervenção militar no Contestado que ficaria conhecido pelo nome de Missão Casey.
17Além de todo o jogo de retórica sobre o que poderia ser considerado como
civilização, outro ponto mais importante, o desafio à autoridade francesa, era o que de
fato se colocava como elemento central do plano de intimidação em curso. A
insubordinação ao texto escrito da Convenção de 1862, fato citado por Charvein, foi um
ato declarado por um pequeno grupo da vila de Amapá, liderado por Veiga Cabral,
político profissional com aspirações a governante do território contestado. Cabral
instituiu em dezembro de 1894 um Governo Provisório do Amapá em forma de
Triunvirato republicano, que tratou de reger a circulação de pessoas e mercadorias. Esse
novo governo estabeleceu dois decretos principais, fundamentais para se entender a
dinâmica dos negócios no lugar:
19É nesse sentido que, em primeiro de abril de 1895, Daniel Casey seguiu à frente de
uma missão paramilitar e extra-oficial a bordo do navio de guerra Bengali em direção à
vila de Amapá. Segundo o relatório feito por Casey, eles aportaram na entrada do rio
Amapá Grande na tarde do dia seguinte e esperaram o amanhecer do dia três de abril
para desembarcarem com dois oficiais em duas pirogas até a vila de Amapá. As
instruções do comandante eram as de que ele « partiria no mesmo dia caso encontrasse
uma resistência bem caracterizada e, sobretudo, se a autoridade do capitão Cabral
estivesse apoiada pelo Brasil ». Ao avistarem os militares, a população da vila içou a
bandeira de quarentena. O comandante percebeu que estavam todos desarmados e
entendeu que aquele seria um truque para evitar a entrada da comitiva e desembarcaram
assim mesmo. Como sempre ocorre nessa época do ano desandou uma chuva torrencial
por volta do meio dia o que obrigou a comitiva francesa, encharcada, a se abrigar em
um bar. De lá, acompanhados por um grupo de doze moradores, foram levados ao
senhor Lopez Pereira, o professor primário funcionário público do Pará que, na ausência
de Cabralzinho, cumpria a função de autoridade civil. Questionado sobre o
impedimento do acesso ao Amapá, Pereira respondeu-lhes que « os franceses não
podem navegar nos rios nem desembarcar nas margens porque as terras pertencem aos
primeiros ocupantes e que todos se opõem ».18 E continuou dizendo que essa lei fora
feita por eles mesmos, sancionada pelo governo brasileiro e promulgada no Jornal do
Pará. Casey solicitou um documento confirmando a oficialidade da lei, mas nenhum lhe
foi apresentado. Mesmo assim, os visitantes foram convidados a se retirarem de Amapá,
o que o comandante, prudentemente, resolveu fazer, retornando a Caiena no dia
seguinte.
20A presença militar francesa no Amapá causou desconforto entre a população. Quando
do retorno de Cabral vindo de Belém poucos dias depois, seu grupo resolveu retaliar a
ação, investindo contra os brasileiros defensores do interesse francês no Contestado.
Arthur Reis, o primeiro historiador brasileiro a se dedicar ao nascimento do Amapá
enquanto unidade territorial autônoma analisou um conjunto de documentos
manuscritos sobre o Contestado e seus conflitos, guardados no Instituto Histórico e
Geográfico de Belém e concluiu:
21Para a historiografia brasileira que inaugurou os estudos sobre esse tema, o conflito
entre a França e o Brasil resumiu-se à vingança contra um velho preto, um escravo
fujão, que merecia, ainda que com atraso, ser justiçado. Em 28 de abril, uma dezena de
homens armados comandados pelo tenente Luiz Bento desembarcou numa goleta em
Cunani, dando voz de prisão a Benito Trajano, a sua mulher e a Christino João Ferreira,
que seria outro amigo da França, conduzindo-os até Amapá. Na falta de uma cadeia, os
prisioneiros foram postos a ferros na rua e soltos dias depois por ordem de Cabral, sob a
condição de que não deixassem mais a vila de Amapá. Trajano teria sido detido por ser
um traidor da causa brasileira em favor da França20.
22Difícil dar um veredicto de traição pátria como sentença para Benito Trajano. A vila
de Cunani desenvolveu-se desde meados do século XIX como um quilombo de escravos
fugitivos de fazendas dos municípios paraenses de Salgado e de Cametá, segundo a
versão do próprio governo paraense21. Os trabalhos desenvolvidos por Flávio Gomes e
José Maia Neto, apontam para uma série de quilombos existentes e reconhecidos no
Amapá. O quilombo de Cunani, que inicialmente era apenas um ponto de passagem na
rota de fuga em direção à Guiana, cresceu demograficamente a partir de 1860 com a
diminuição das idas para a colônia francesa22. O recenseamento da população da vila
de Cunani organizado pelo morador Demetrio Nunes de Souza em dezembro de 1895,
permitiu ao cientista Emilio Goeldi escrever o seguinte informe:
23Mas quais teriam sido então, os desconcertos do negro Trajano a que se referiu
Arthur Reis na exposição anterior? Içar a bandeira tricolor em sua casa e uma suposta
queima da bandeira brasileira são os fatos assinalados. Plagiando Arnaldo Antunes,
Trajano não era brasileiro, não era estrangeiro, não era de lugar nenhum; nenhuma
pátria o pariu24. Trajano sempre foi um mísero recurso humano, um instrumento de
trabalho sob o domínio de capatazes e feitores. Porém, ali naquela terra de ninguém, ele
ousou inverter as relações de poder. Ali ele se constituiu em um indivíduo livre com
poder. Era reconhecido e respeitado até por um geógrafo do porte de Henri Coudreau.
Percebe-se um forte preconceito de ordem social e racial na ordem de prisão contra
Trajano e no desdém com que a população de Amapá tratou o caso.
24Esse fato seria a gota de água no longo processo de acirramento de tensões que
culminará no confronto armado de Amapá. A opinião pública em Caiena, insuflada
pelos empresários locais com negócios no Contestado e pelo grande número de
garimpeiros em atividade no Cunani, cobrou uma atitude enérgica do governo. A prisão
de um aliado da causa francesa por um grupo paramilitar brasileiro em uma região de
litígio e ainda sem soberania definida, era uma afronta que não poderia ser deixada em
brancas nuvens sob o risco da repetição de situações similares a essa no futuro. Assim, o
mesmo grupo que montou a operação Casey, começou a organizar outra missão secreta.
26A estratégia da burguesia nessa fase avançada da expansão comercial após a década
de 1880 não era caracterizada por uma política patriótica, uma vez que seus objetivos
eram e são individualistas, não coincidindo com o nacionalismo do Estado. Nesse
pequeno rincão do universo amazônico, por exemplo, Henri Coudreau preferia ver um
Cunani independente, mais fácil para ter seus recursos explorados, a um Cunani francês.
As grandes mineradoras lá instaladas eram, de fato, sociedades abertas, consórcios
anglo-franceses, cujo capital provinha de ações lançadas na Bolsa de Londres, o
mercado que não reconhece nenhuma bandeira. Há uma clara desvinculação entre o
interesse do estado nacional e do povo enquanto súdito, que se explicita
necessariamente na questão da defesa do território ou da pátria, do jogo de conquista
material ilimitado promovido pela burguesia como o do próprio objetivo da existência.
Você deverá muito bem sair do mar sábado 11 de maio corrente, para
ingressar no território contestado. Um destacamento de 60 homens da
Infantaria da Marinha, comandados pelo Capitão Lunier, embarcará a bordo.
Você deverá, em primeiro lugar, ingressar no Carsewene [Calçoene] onde
parece que se encontra o posto mais importante... Vossa missão será
descobrir esse posto dos bandidos e assegurar a segurança de nossos co-
nacionais além de liberar a passagem do rio com todos os meios postos à
vossa disposição. Bem entendido que não se faça recorrer à violência a não
ser em último caso. Aqueles que forem reconhecidos por terem molestado e
pilhado nossos co-nacionais serão conduzidos a Cayenne [Caiena] e
conforme a Convenção de 1862 remetidos à justiça local. De Carsewene
você se dirigirá a Mapa [Amapá] onde se encontra prisioneiro o capitão
Trajano. Você tentará com todos os meios pacíficos obter sua liberação. Mas
se você sentir uma recusa obstinada e uma má vontade absoluta, você
poderá usar a força no ponto onde ele se encontra detido e se necessário
você toma alguns reféns distintos como garantia de sua vida e de seus
interesses lesados. Nós fomos igualmente avisados que dois vapores
brasileiros deverão vir no dia 15 de maio bloquear o baixo Carsewene e
Counani [Cunani]. Eu não posso crer que o Governo do Pará possa se
comprometer a autorizar uma violação tão flagrante das convenções... Eu
lhe recomendo senhor comandante todo o tato e prudência no cumprimento
dessa missão que é uma missão de polícia e não de guerra. Qualquer ato de
repressão somente deverá ocorrer em seguida a fatos delituosos bem
constatados e de uma resistência material que vos será impossível vencer
pela persuasão.
29Essa era a estratégia de intervenção militar arquitetada, uma questão de polícia, não
de guerra, um plano que seria viável enquanto não houvesse fatores externos ao
planejamento efetuado. A operação militar, como não se preparou para uma guerra, não
se mostrou capaz de lidar com o imprevisto que fatalmente tende a ocorrer. A chegada
do vapor Bengali em Calçoene no dia 13 de maio foi tranquila. O navio aportou antes
dos saltos e após uma hora de viagem em canoa, um grupo de militares chegou
ao dégrad26. Conversaram com três garimpeiros de Caiena que lhes disseram que
estava tudo calmo, mas que havia receio nas vilas de ataques de brasileiros vindos de
Amapá. Segundo eles, os brasileiros estabelecidos no degrade estariam armados com
fuzis de guerra americanos. A maioria dos garimpeiros lá instalados no decorrer do
último ano, entre 300 e 400, era provinda da Guiana e mantinha forte rivalidade contra
um grupo de apenas 30 brasileiros. Estes últimos seriam liderados pelo capitão Daniel,
que após seu retorno da viagem feita ao Amapá, teria determinado, sob ordens expressas
de Cabral, a expulsão de todos os franceses em busca de ouro em detrimento dos
primeiros habitantes ocupantes do território. Em seguida, o destacamento militar saiu
em perseguição a Daniel, que foi encontrado em frente à sua própria casa e levado a
bordo do Bengali para ser conduzido a julgamento em Caiena, como previa o plano
inicial. Seus companheiros Faustino e Germano, também procurados, os outros
brasileiros armados citados pelos garimpeiros e os fuzis americanos, nunca foram
encontrados27.
31Para não demonstrar suspeita, o Bengali ancorou aproximadamente 500 metros antes
de chegar ao vilarejo, permanecendo com o comandante a bordo e alguns
marinheiros28. Uma comitiva chefiada pelo capitão Lunier com uma dúzia de soldados
da infantaria naval e mais 60 marines seguiu em canoas até Amapá. Estes últimos
desembarcaram antes, na altura onde se localiza o cemitério, e como mostra o mapa
seguiram a trilha que contorna a vila para surpreenderem os habitantes pelo costado.
Lunier desembarcou pelo cais principal assinalado como ponto D; estava convencido de
que não apresentando todo seu aparato militar dissuadiria os habitantes da vila de uma
resistência, podendo chegar mais facilmente ao encontro de Cabral. Contudo, a casa
onde deveria estar Trajano encontrava-se deserta, nenhuma alma se fazia viva e um
silêncio sepulcral reinava em todo o vilarejo. Lunier, então, seguiu com seus doze
homens pelo caminho da beira-rio até pouco antes de chegar à igreja, de onde teria sido
interpelado por Cabral e seu bando. Todo o planejamento efetuado caiu por terra quando
a vantagem da surpresa mudou de lado. Em certo momento, do nada, desembestou um
forte tiroteio de ambos os lados em disputa que prosseguiu durante mais de duas horas.
O confronto teria se iniciado no ponto A e, enquanto a armada francesa retornava para
seu posto de desembarque Cabral seguia com seu grupo para a mata atrás da igreja. Ao
final, o trágico resultado imprevisto. O tenente Lunier estava morto, algumas dezenas de
moradores brasileiros e de soldados franceses também, além de um grande número de
civis e militares feridos. Cabral escapou da prisão e fugiu para o manguezal. Nesse
momento tenso da história a versão dos acontecimentos sucedidos muda conforme o
lado que faz a narrativa.
32A armada francesa conseguiu alcançar uma das metas do plano. Três reféns foram
feitos prisioneiros: Manoel Gomes Branco, Juan Lopez Perreira e Marcilio Wilson
Bevilacqua. Esses três, junto a Daniel Ferro, foram acusados de « associação de
malfeitores », um termo muito em voga no final do século XIX na França, Itália e
Espanha. Originalmente cunhado para incriminar os revolucionários socialistas e
anarquistas, particularmente, essa acusação tornou-se o grande motivo de confinamento
e deportação de anarquistas para os bagnes coloniais da Guiana e da Nova Caledônia,
na época dos grandes atentados29. Além dessa acusação padrão o procurador Paul
Artaud também promoveu no inquérito aberto o crime de prisão de homem notável
(Trajano) e homicídio voluntário premeditado (contra o tenente Lunier). Para essa
última acusação, valeu-se do relatório do comandante das tropas na Guiana Francesa
baseado na narrativa de marines que participaram da ação.
34Quando foi publicada pelos jornais da colônia, essa versão oficial do Exército
provocou comoção no enterro do capitão Lunier e dos soldados realizado no dia 17 de
maio. Além dos mortos, houve outras 18 baixas de feridos entre os soldados, três deles
em estado grave. A declaração do chefe do Batalhão de Infantaria da Marinha atribuía
completa responsabilidade ao Brasil nos fatos ocorridos em Amapá e reclamava ordens
de Paris para uma ocupação militar imediata de todo o território contestado. Nesse
relatório apresentava uma lista dos principais nomes seguidores de Cabral, encabeçados
pelo professor João Pereira, já detido em Caiena. Alegava como prova da
responsabilidade do governo brasileiro a remessa de dinheiro de Macapá para a
fundação da escola, ação promovida pelo Dr. Tocantins, funcionário do governo do
Pará. Insinuava que as freqüentes idas de Cabral a Belém seriam para receber instruções
e verbas do governo brasileiro para estabelecer o Governo Provisório do Amapá. E
concluía seu relatório afirmando que o governo do Pará tinha leis, ordens, inteligência,
serviço de informação e homens à disposição para ocupar o território, e que a França
não poderia permanecer patética, paralisada ante essa afronta. O conteúdo do texto do
comandante militar na Guiana era quase um pedido de declaração de guerra ao
Brasil30.
35Nos autos do processo contra os prisioneiros brasileiros levados até Caiena, consta a
versão deles sobre o conflito. Segundo João Pereira, no encontro entre os dois grupos
rivais, Cabral recebeu voz de prisão sem que houvesse nenhum diálogo anterior entre as
partes, tendo sido logo capturado pelos soldados da infantaria francesa. Mas, com um
golpe, uma cotovelada, conseguiu se desvencilhar, pegando o revolver do capitão
Lunier e atirando contra ele para escapar da prisão. Depois, embrenhou-se com seus
homens na floresta de mangue levando Trajano consigo enquanto começava o tiroteio
pela cidade. Alguns poucos civis brasileiros armados enfrentando um destacamento da
infantaria da marinha francesa31.
37Em Paris, desde 1880 circulava um semanário intitulado Le Brésil, porta voz da
comunidade brasileira residente na França. A edição de 18 de junho de 1895 teve como
tema « Le Conflit de Mapa ». Valendo-se das notícias chegadas do Brasil, a edição foi
bastante detalhista quanto aos danos materiais provocados pela intervenção militar no
Amapá. Seu objetivo era o de se opor ao discurso oficial propagado pela opinião púbica
francesa. Segundo o jornal, praticamente todas as casas comerciais haviam sido
incendiadas ou saqueadas, provocando enormes prejuízos financeiros para a população
local. A casa comercial do português Manoel Branco, a maior de Amapá fora
completamente destruída. Ele foi levado preso para Caiena e sua mulher, assassinada,
deixando quatro crianças órfãs. Outras duas casas foram parcialmente incendiadas e
tiveram suas mercadorias saqueadas. Várias canoas da vila foram roubadas ou
simplesmente quebradas para impedir qualquer reação dos moradores. A casa de
comércio « Lopes, etc. e Irmão » fora completamente destruída, sendo que oito pessoas
pereceram em seu interior. A escola e a casa onde residia o professor João Pereira
também foram incendiadas. E a residência de Francisco da Veiga Cabral, como não
poderia deixar de ser, fora completamente saqueada tendo sido roubado o ouro e a prata
que ele ali guardava: um prejuízo de 30.000 francos. Em resumo, o jornal apresentava
uma lista de 21 casas incendiadas e outras 16 que estariam em situação precária. Para
concluir questionou: quem fora a vítima e quem fora o agressor no conflito em Amapá?
39Do outro lado, no dia 9 de junho, Madame Coudreau dirigiu-se até Belém do Pará
para reclamar a soltura de Evaristo Raimundo, o encarregado da mina de ouro de sua
propriedade no Cunani. Ele fora capturado por sete homens armados enquanto pescava
na goleta de um chinês, que conseguiu escapar com seu barco. A família Coudreau
sempre gozou de muito prestígio no Brasil e o governo paraense alegou um equívoco. O
alvo seria o marujo chinês, esse sim o piloto que acompanhara o Bengali na missão ao
Amapá. A retaliação contra o massacre em Amapá havia começado. Evaristo fora
levado para a vila de Amapá, porém não há notícias sobre sua futura libertação.
41Nos jornais de Belém surgiram seguidas notícias reclamando uma atitude do governo
do Pará em relação aos fatos ocorridos. O Diário de Notícias continuou reclamando
uma resposta sobre os três homens detidos em Caiena: um português com quatro filhos
abandonados à própria sorte; o professor de Amapá e seu ajudante. O jornal perguntava
pelo paradeiro, qual a situação em que se encontrariam e se pelo menos teria havido
providências do governo brasileiro exigindo sua soltura. Em julho, o jornal Província
do Pará exaltava no trecho transcrito abaixo, a heróica resistência oferecida por Cabral
na defesa de um Amapá brasileiro enquanto se ridicularizava Trajano, o « preto por
quem um oficial francês morreu ».
35 Província do Pará, Belém, 24/07/1895.
42Em oito de agosto de 1895, Cabral já estava de volta a Amapá levando seus dois
prisioneiros consigo, Trajano e Christino. Isso soou como uma ofensa para os franceses
de Caiena, cuja missão militar fora justamente a de libertar Trajano e deter Cabral, uma
missão em vão, com forte revés humano e diplomático. E agora? Estava de volta o
bandido em pele de herói nacional brasileiro com os dois prisioneiros a tiracolo como se
nada houvesse ocorrido. Para o nacionalista francês era uma clara afronta à pátria, para
a burguesia um risco aos seus empreendimentos. O Cônsul da França em Belém alertou
para o clima nada amistoso contra a França que se formara no Pará 36. Reclamava a
necessidade de solução imediata do caso antes que houvesse um novo conflito.
Defendia intransigentemente uma tomada de posição enérgica do governo francês, com
uma ação militar e policial na região do Contestado, pois lhe era inadmissível a
presença e circulação livre de um assassino de um oficial francês. Com o retorno de
Emílio Goeldi de sua viagem ao Amapá, a partir de dezembro de 1895 a impressão que
o governo paraense e a imprensa passaram a ter sobre Cabral mudou. Goeldi, um
cientista acima de qualquer suspeita, após ter passado alguns dias na vila de Amapá, não
foi nada condescendente com as atitudes do tenente e de seus capangas,
presumivelmente pistoleiros provindos em sua maioria do estado do Ceará:
43Goeldi transmitiu uma péssima imagem da roda de jagunços que circundava Cabral,
mas se omitiu na avaliação pessoal do líder. E concluiu recomendando que se
empregassem no Amapá somente as verbas estritamente necessárias, pois temia pelo
desvio desse dinheiro para os interesses pessoais do bando seguidor de Cabral, enquanto
não se definisse a arbitragem sobre o território. Em contrapartida, Goeldi fez muitos
elogios ao que chamou de governador do Cunani, José da Luz Sereja. Em Cunani,
apesar da proximidade da vila com a área de garimpagem, a população local brasileira
demonstraria um desenvolvimento econômico e « moral » não encontrado na vila de
Amapá. Segundo Francinete Cardoso, o diretor do Museu Paraense fez uma distinção
entre os interesses nacionais, em prol da grandeza da pátria, que movimentariam as
ações de Sereja no Cunani, daqueles meramente oportunistas e individualistas que
seriam os objetivos imediatos de exploração das riquezas minerais do grupo de pessoas
envolvidas com Cabral38.
43 Id. ib.
44Durante todo o ano de 1896, houve uma ampla troca de correspondência entre os
adidos do Ministério dos Negócios Estrangeiros da França com a Embaixada da França
em Petrópolis e desta com o Ministério das Relações Exteriores, personalizado na figura
de Dionísio de Castro Cerqueira. Contudo, quase não se encontram correspondências
entre este ministro com o Governador do Pará. Segundo o agente sanitário francês
Georges Brousseau em missão ambígua no Calçoene (ao mesmo tempo agente de saúde
e enviado do governo francês no Contestado), foragidos do bagne de Caiena estariam
associados ao bando de Cabral. Um deles, Guilherm, um ex-oficial da Legião
Estrangeira, funcionaria como intérprete e liderança intimidadora junto à população de
fala francesa. Ainda segundo Brousseau, a vila de Cunani estaria dividida em duas
partes, uma ocupada por brasileiros e outra por franceses e mesmo durante o dia se
ouviriam disparos de fuzil39. Cabral foi visto novamente em Cunani em outubro de
1896, o que gerou protestos vindos de Paris e dirigidos à embaixada francesa no Rio de
Janeiro. Junto a José Pires, seu engenheiro de minas, Cabral teria ido com armas e
munições para construir rotas de acesso aos garimpos do Calçoene. O caso somente foi
solucionado com a intervenção do governo federal. Segundo Brousseau, em 23 de
novembro desse ano, Cabral voltou a Belém por ordem do governador e os « bandidos »
sob sua direção teriam sido « repatriados » para o Cassiporé40. Novamente, desta feita
em abril de 1897, continuavam circulando as notícias sobre as atividades do grupo de
Cabral com o recrutamento de baianos para a garimpagem do ouro no alto Cassiporé: 60
homens num primeiro momento e 180 homens ainda por vir. O cônsul francês em
Belém interpelou o governo do estado do Pará para uma atitude enérgica contra Cabral,
pedido ao que parece ter sido em vão41. Em fevereiro de 1898, um novo caso de
polícia agitou a Administração da Justiça em Caiena. O comissário Cazenave relatou o
roubo de cinco bois praticado pelo que seria o comandante brasileiro oficial do
Calçoene, Sr. Vasconcellos. O assunto foi levado para a embaixada francesa em
Petrópolis que o comunicou ao governo brasileiro. A resposta imediata dada pelas
autoridades merece destaque pelo seu teor, novamente de caráter racista e
preconceituoso: « O governo brasileiro informa que o Sr. Vasconcellos não passa de um
aventureiro sem título, nem mandato, um NEGRO – provavelmente, que se intitula
governador ou prefeito como Cabral já disse ser42. » Contudo, o fato é que se
encontrava em curso em Calçoene a organização de um governo brasileiro pelo
Secretário de Estado do Pará, Leão Salles, atribuindo a Vasconcellos autoridade de
prefeito com o concurso de quatro franceses que seriam adeptos da causa brasileira.
Esse grupo faria propaganda ativa para atrair os créoles da Martinica e de Guadalupe a
pedir a proteção das autoridades do Brasil. A prova maior dessa incursão estatal teria
sido a instalação de uma alfândega brasileira em Calçoene para os pagamentos dos
direitos de entrada43.
Considerações finais
47Duas diferentes questões nos parecem cruciais para elucidar o clímax dos eventos
ocorridos. A primeira, fundamental, diz respeito às diferentes estratégias adotadas por
ambos os países, Brasil e França, e por suas respectivas burguesias em relação às
práticas imperialistas do século XIX, fator desencadeador dos conflitos. A burguesia
francesa, empreendedora, usou de capitais disponíveis em seu país e em outros,
abundantes principalmente na Inglaterra, para dar curso à estratégia de expansão
capitalista em áreas fora do controle político dos modernos estados nacionais. O
território contestado, com recursos minerais riquíssimos, sem dono nem lei, permanecia,
em tese, abandonado ao lado de uma colônia francesa já existente, atendendo facilmente
os objetivos burgueses do laissez faire.
48Isso se mostra visível quando, por exemplo, Octavie Coudreau 44 veio a público
denunciar o rapto de seu funcionário e declarou indignada: « Quem sabe nós retornemos
aos heróicos tempos da conquista da América e da descoberta de minas de ouro: alguém
descobre uma mina de ouro e o primeiro delinqüente aparece a sua frente à mão armada
e te mata45. » O que o empreendedor moderno queria era um ambiente onde ele tivesse
legalmente garantidos seus direitos de livre comércio, de livre empresa, sem a
intervenção do Estado, a não ser, evidentemente, para fazer valer a lei, ou melhor, a
garantia da segurança de seus negócios. Portanto, no modelo em que o capitalismo dos
países economicamente mais desenvolvidos se organizou, em torno da questão jurídica,
da regulação normativa em todas as instâncias da vida social, que por coincidência são
permeadas pelas relações de capital/trabalho, o direito torna-se o instrumento
fundamental para o desenvolvimento das forças produtivas. E era esta a grita francesa:
pela convenção de 1862, nós temos o direito de circular; pelas leis do mercado, nós
temos o direito de empreender; pelas leis da França, nos temos o direito da assistência
do Estado à nossa livre iniciativa.
49E que resultado pode ocorrer quando esse tipo de mentalidade encontra uma
população cuja forma de existência não está regulada pelo modelo que Michel Foucault
definiu como sendo o da biopolítica46; uma população cujo poder econômico para
empreender encontra-se ainda bastante limitado, e que, simultaneamente, está submetida
à tutela de um estado nacional independente como o brasileiro cuja governabilidade não
se caracteriza pelo uso normativo da lei como instrumento regulador das relações
sociais, a não ser para aquela pequena parcela da população socialmente incorporada à
dimensão maior daquilo que se chama cidadania? Um conflito de interesses locais que,
mascaradamente, logo se transformam em interesses nacionais. Na impossibilidade da
população brasileira (neste caso os moradores locais do Amapá e das áreas vizinhas do
Pará) competir com os franceses numa corrida capitalista pelo ouro, ela defendeu a
única coisa que para ela valia a pena lutar: a sua terra. Ou, pelo menos, a posse sobre
ela, porque nem ao menos a propriedade, juridicamente falando, ela detinha. Mesmo
porque, a questão da propriedade em um estado aristocrático como o brasileiro era algo
que nem podia nem devia ser motivo de reclamo de seus súditos.
50Num dos primeiros decretos republicanos lê-se: « deve ser empenho do governo da
República [...] a exploração de seus produtos naturais e proletariado agrícola nacional,
em sua maioria sem meios de empregar, [...] a atividade com que tem até aqui provido a
fortuna pública e a riqueza do Estado47 ». O povo não é cidadão, é peão. Por isso
aparecerá uma clivagem clara entre o discurso falando sobre a liberdade de circulação
presente na burguesia francesa empreendedora da mineração, e o discurso dos que
chegaram antes, do direito de pedágio pelo acesso cobrado por um povo que se
estabeleceu na única terra onde o seu país de nascimento não o enxotou, justamente por
ser uma terra sem Estado. E agora, chegavam esses estrangeiros causando confusão?
49 Idem, p. 91.
52É com base nessa característica específica do imperialismo brasileiro que deve ser
vista a diferença de atitude do estado nacional na área em litígio. O governo do Pará, no
limite de suas possibilidades, financiou e incentivou a ocupação do território, que,
ambiguamente, nem foi o palco de uma colonização permanente, nem se prestou a uma
empresa econômica de exploração de seus recursos naturais, característica principal do
interesse burguês europeu na região. É assim que deve ser percebido o mito criado em
torno de Cabral. Exaltado como herói nacional pelos paraenses de Belém, simbolizava o
retorno do velho bandeirante destemido com sua espingarda e seus capangas caboclos
avançando pelo território, enfrentando índios, créoles e franceses. O bando armado de
Cabral cumpriu uma dupla missão. Na impossibilidade do Estado fazer valer
militarmente sua soberania num território em conflito, seja por uma questão
diplomática, seja porque a França era uma nação muito mais bem armada, Cabral agiu
como se fosse o guerrilheiro defensor dos legítimos interesses pátrios ameaçados pela
potência estrangeira, por isso visto como caudilho pelos vizinhos do norte. Por outro
lado, ao se apresentar como o único aventureiro brasileiro capaz de ingressar na área do
Contestado para empreender economicamente sem ter que se associar a uma companhia
mineradora estrangeira, Cabral protagonizou o recorrente caráter individualista da
aventura expansionista brasileira, caráter esse criticado pelo disciplinado suíço Emílio
Goeldi.
55Já, no caso brasileiro, seja nos artigos em jornais, nas charges, nas reclamações
diplomáticas, ou, mais ainda, nas análises feitas pelos primeiros historiadores, o
problema colocado partiu de um discurso com forte conteúdo racista. A pequena
burguesia caienense que intermediava, via política, os negócios da mineração, e a
grande maioria da população mineradora era composta de negros e créoles. Os capitães
das vilas que seguiam o interesse francês eram negros ou pretos. A população favorável
à França era constituída de mocambistas (escravos fujões). O primeiro garimpeiro a
ficar milionário, Clément Tamba, um negro ignorante. E até o governador Camille
Charvein era o protótipo do homem que na linguagem popular é chamado de « crioulo
doido ». Como é possível então que sejam esses « pretos » a estarem a tomar conta do
Amapá e enriquecer com o ouro de seu subsolo? E os brasileiros, os seus antigos donos
e senhores? Poderiam consentir com uma afronta como essa? A questão racial no
Contestado, até agora, não foi trabalhada pela historiografia. Os bodes expiatórios do
massacre de Amapá acabaram sendo todos eles negros. Charvein foi deposto de seu
cargo, Trajano nunca mais voltou ao Cunani. E o governo francês, sob o olhar da
imprensa e do governo brasileiro no Pará, como ficou? Pelos ditos, a poderosa e
invejada França, nem sabia ao certo o que estava acontecendo, ela se tornara, para a
imprensa paraense da época, apenas um joguete nas mãos de alguns poucos crioulos.
57Assim, finalmente o Brasil pode estabelecer sua jurisdição legal do Oiapoque ao Chuí
e fazer valer a pena o tempo perdido na briga. Desde dezembro de 1900 a fronteira
franco-brasileira passou a ter como divisor o curso do rio Oiapoque. Na prática, porém,
não mudou muita coisa e durante as duas primeiras décadas do século XX, foi
o patois francês falado pelos crioulos da Guiana, a língua mais utilizada pelas
populações habitantes daquelas selvas, desde os montes Tumucumaque até o cabo
Orange.
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Notes
1 Em relação à toponímia utiliza-se o seguinte critério: a) no texto do artigo escrito diretamente
pelo autor os nomes são grafados de acordo com a língua portuguesa atual, por exemplo,
Calçoene; b) nos documentos de época em língua portuguesa manteve-se a grafia original,
exemplo, Calsoene; c) nos documentos de época em língua francesa transcritos para o
português, manteve-se a grafia original em francês, Carswene. Para facilitar o leitor colocamos
o nome atual entre colchetes após o nome original. A pesquisa no Centre des Archives D’Outre-
Mer foi realizada como estágio de pósdoutorado financiado pela CAPES. A pesquisa inicial
sobre o tema foi concluída na tese de doutorado em História Cultural: Romani,
Carlo, Clevelândia – Oiapoque. Aqui começa o Brasil! Trânsitos e confinamentos na fronteira
com a Guiana Francesa (1900-1927), IFCH/UNICAMP, Universidade Estadual de Campinas,
2003.
2 « Além da zona encachoeirada do Calçoene, trinta e cinco quilômetros, ou “vinte dias de
jornada”, a oeste de “Grand Dégrad”, em um igarapé que corria à margem de uma montanha
(batizada de monte Esperança). Os dois exploradores, bateando no pequeno curso fluvial, viram
na baeta algumas pintas de ouro (la couleur). Prosseguindo nas buscas, os dois atingiram outro
igarapé onde bateias de 10 a 150 gramas de ouro foram obtidas ». Narrativa encontrada em
Vieira Jr., Antônio Rodrigues, Ouro no Amapá, Rio de Janeiro, 1934, p. 6. Reproduzida
também por Meira, Silvio, Fronteiras setentrionais, Belo Horizonte, Itatiaia, 1989.
5 Ofício de 01/12/1894, de Caiena. Carton 46 E10 (37). Centre des Archives D’OutreMer,
CAOM.
6 Buarque, Manoel, O Amapá, Belém, Papelaria Suisso, 1925, p. 35. Plateau era o nome com se
designava a área interior em cota mais elevada, passando os primeiros saltos encachoeirados dos
rios.
8 Id., p. 98.
20 Tribunal de 1è Instance de Cayenne année 1895, parquet 369, cabinet de instructions 40.
Carton 37 Dossier D2 (31). CAOM.
21 « Cunany foi a princípio simples mocambo de escravos fugidos, a maior parte da região de
Salgado: alguns anos antes da abolição da escravatura no Brasil, por lá aparece Mr. Chaton, e
por conta própria dá liberdade a todos os escravos e a todos promete a proteção da França;
funda com eles a povoação de Cunany [Cunani], estabelece o comércio e fornece mesmo a
alguns, dinheiro para esse fim ». Carta-ofício de Egídio Leão de Sales ao Governador do Estado
do Pará, 31/12/1900, in Reis, A. op. cit.
22 Ver: Gomes, Flávio, A Hidra e os pântanos, São Paulo, Companhia das Letras, 2007 e
Bezerra Neto, José Maia, Fugindo sempre fugindo, Dissertação de Mestrado em História.
Social, FFLCH/USP, 2000.
23 Exposição sumária da viagem de Emilio Goeldi realizada para o Museu Paraense de História
Natural e Etnografia ao Território Contestado Franco-Brasileiro. AHI – Fundo: Documentação
Rio Branco – parte III, códice 340 – 2 13, in F. Gomes e outros (org.), op. cit., p. 99-100.
24 « Lugar nenhum », Arnaldo Antunes/Charles Gavin/Marcelo Fromer/ Sérgio Britto/ Toni
Belloto, Titãs Vol. 2, Warner Music Brasil, 1998.
25 Carta de 10/05/1895. SG Carton 36 D2 (28). CAOM. « Mapa » era o modo como o atual
Amapá era escrito em francês no século XIX.
28 Tribunal de 1è Instance de Caiena, ano 1895. parquet 369, cabinet de instructions 40. Carton
37 Dossiê D2 (31). CAOM.
29 Ver o caso do anarquista Eugéne Dieudonné, da banda Bonnot, que evadiu da prisão na
Guiana e refugiou-se no Brasil. Dieudonné, Eugene, La vie des forçats, Paris, Gallimard, 1932.
43 Id. ib.
44 Usamos aqui o nome Octavie, conforme o estudo feito pelo biógrafo de Henri Coudreau:
Benoit, Sébastien, Henri Anatole Coudreau (1859-1899). Dernier explorateur français en
Amazonie, Paris, L’Harmattan, 2000. Na maioria dos livros, artigos e inclusive textos de jornal
encontra-se a grafia do nome como sendo Othile, ou Otile, contudo, optamos por fazer esta
atualização da naturalista e exploradora francesa com base na ampla pesquisa realizada pelo
historiador do IHEAL/Paris III.
45 « Le Conflit de Mapa », Le Brésil, Paris, junho de 1895. Semanário publicado desde 1880;
nessa edição reproduz uma notícia extraída do Diário de Notícias, de Belém.
49 Idem, p. 91.
URL http://journals.openedition.org/caravelle/docannexe/image/7302/i
mg-1.jpg
URL http://journals.openedition.org/caravelle/docannexe/image/7302/i
mg-3.jpg
URL http://journals.openedition.org/caravelle/docannexe/image/7302/i
mg-4.jpg
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Référence papier
Carlo Romani, « O « Massacre de Amapá »: a guerra imperialista que não houve », Caravelle,
95 | 2010, 85-118.
Référence électronique
Carlo Romani, « O « Massacre de Amapá »: a guerra imperialista que não houve
», Caravelle [En ligne], 95 | 2010, mis en ligne le 01 décembre 2010, consulté le 22 novembre
2021. URL : http://journals.openedition.org/caravelle/7302 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/caravelle.7302
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Auteur
Carlo Romani
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO
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