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95 | 2010
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O « Massacre de Amapá »: a guerra imperialista


que não houve
Carlo Romani
p. 85-118

https://doi.org/10.4000/caravelle.7302

Résumé | Index | Plan | Texte | Notes | Illustrations | Citation | Auteur

Résumés

PORTUGUÊSFRANÇAISENGLISH

La zone litigieuse à la frontière entre Brésil et la Guyane Française est restée hors de la
réglementation juridique des deux pays jusqu'en 1900. La découverte d'or a conduit
plusieurs entreprises à s’y installer. Cette concurrence a atteint son point culminant en
mai 1895 dans l'épisode connu au Brésil comme « Le Massacre de l’Amapá »: un
conflit militaire entre Français et paysans brésiliens ayant fait plus de 40 morts.
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Entrées d’index

Palabras claves: 
Fronteira, Amapá, Guiana Francesa, Imperialismo, Garimpo

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Plan

Apresentação

A descoberta do ouro

A disputa pelo controle do território

O conflito armado de Amapá

Considerações finais

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Texte intégral
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Apresentação
1Uma extensa área litigiosa ao longo do rio Oiapoque, na fronteira entre o Brasil e a
Guiana Francesa, permaneceu fora da regulação jurídica institucional dos dois países até
dezembro de 1900 quando foi definitivamente incorporada ao Brasil. Desde o ano de
1884, várias missões científicas de origem francesa com apoio do estado nacional e
financiamento do capital privado incentivaram a prospecção e a exploração dos recursos
naturais nessa região. A descoberta de grandes jazidas auríferas no rio Calçoene no ano
de 1893 trouxe várias empresas para essa região seguida de uma intensa migração de
trabalhadores vindos do Caribe e da Amazônia. Esses fatos geraram uma explosão
demográfica que desestabilizou a vida cotidiana das populações nativas. O resultado
dessa febre do ouro atingiu seu clímax em maio de 1895 no episódio conhecido como o
« massacre do Amapá », um conflito armado entre militares franceses e paramilitares
brasileiros no qual pereceram entre 40 e 60 pessoas, dependendo das fontes consultadas,
um incidente nada diplomático que por pouco não levou os dois países à guerra.

2O lugar de que falamos recebeu o nome de território contestado franco-brasileiro, uma


extensa porção de terras ocupadas sem soberania definida por mais de duzentos anos.
Durante essa fase da expansão imperialista européia ao final do século XIX, o
«Contestado» tornou-se espaço privilegiado para se observar os contatos entre os
pesquisadoresexploradores, empreendedores industriais e comerciantes e a população
habitante desse lugar. Espaço privilegiado, pois, com a ausência do poder coercitivo do
Estado, na ausência de um governo nacional formalmente estabelecido, os habitantes
constituíram seu próprio governo. Desta forma, foi confrontando uma população
habitante livre de coerções que se deu a ocupação econômica intensiva da região
motivada pela extração do ouro.

 1 Em relação à toponímia utiliza-se o seguinte critério: a) no texto do artigo


escrito diretamente pe (...)

3Para a elaboração deste artigo foram utilizadas, principalmente, as fontes encontradas


no Centre des Archives D’Outre-Mer, CAOM, em Aix-en-Provence. Esse arquivo
guarda grande parte dos documentos do período colonial francês, especialmente aqueles
relativos às colônias mantidas nos séculos XIX e XX. Essa documentação foi
confrontada com fontes anteriormente pesquisadas no Arquivo Público do Estado do
Pará e nos arquivos da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites, ambos sediados
em Belém, e, em menor grau, com as fontes disponibilizadas para consulta no Arquivo
Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro1.

A descoberta do ouro
 2 « Além da zona encachoeirada do Calçoene, trinta e cinco quilômetros, ou
“vinte dias de jornada”, a (...)

4A lenda regional com base na tradição oral transformada em história oficial do estado
do Amapá nos diz que em outubro ou novembro de 1893, dois brasileiros de origem
paraense, Germano Ribeiro Pinheiro e Firmino de Tal, bateando nos igarapés do rio
Calçoene descobriram um grande veio de ouro, bem no centro da área litigiosa 2. Por
outro lado, a historiografia francesa trabalha com a versão abaixo narrada pelo agente
sanitário Georges Brousseau, designado no ano de 1896 pelo governo francês para
acompanhar os trabalhos da comissão de limites francobrasileira na área litigiosa:

 3 Conference du 26 mars 1899 par M. Georges Brousseau. Bulletin de la


Société de Géographie de Lyon e (...)

Esta descoberta foi feita por Clément Tamba, um negro iletrado de Cayenne
[Caiena], mas grande comerciante de peles, em associação com o dono de
uma empresa de cabotagem Pierre Villiers, de Cayenne, no mês de janeiro
de 1894. Foi um habitante do Contestado chamado Germano, quem, de
passagem por Cayenne, convenceu esses dois garimpeiros a fazerem uma
expedição de prospecção nas nascentes do Carsewene [Calçoene]. Seu pai
que acabara de morrer declarou que um dia tinha visto em sonho Santo
Antônio. Esse bem aventurado lhe afirmou que havia 3 ricas minas de ouro
em direção às nascentes do Carsewene e que havia chegado o momento de
explorá-las3.

 4 Brousseau, Georges, Les richesses de la Guyane Française, Paris, Société


D’Éditions Scientifiques, (...)

 5 Ofício de 01/12/1894, de Caiena. Carton 46 E10 (37). Centre des Archives


D’OutreMer, CAOM.

5Os rumores que se espalharam foram suficientes para atraírem milhares de homens em
busca da aventura do ouro a partir de maio de 1894 e nos anos seguintes. A área
compreendida entre o Calçoene, o Cassiporé e os afluentes de ambos os rios, registrou
um fluxo intenso de aventureiros provindos, em sua maioria, de terras mais ao norte das
Guianas e do Caribe, mas, também, de uma boa quantidade de brasileiros vindos,
principalmente, das províncias do Pará e do Ceará. Estima-se que aproximadamente
6.000 garimpeiros viviam na região do Contestado no auge da exploração aurífera. A
empresa Société Française de l’Amérique Equatoriale estabelecida em Calçoene no ano
de 1897, construiu 67 km de monorail ligando a vila à região dos placers4. No início,
praticamente todo o ouro extraído passava pelo porto de Caiena, o mais próximo e bem
aparelhado, onde era classificado e tributado em 10 francos por kg na entrada e em 8%
do valor bruto da mercadoria quando de sua saída para a Europa, o que fornecia uma
enorme arrecadação para a colônia francesa5. Contudo, para escapar à tributação
francesa, desde o ano de 1895, grande parte da exportação do ouro extraído permaneceu
sob controle das companhias mineradoras de origem inglesa que operavam com navios
fretados saindo diretamente do rio Cunani e do Calçoene. Passando ao largo de Caiena,
as embarcações navegavam em direção a Demerara, na Guiana, e a Port Spain, em
Trinidad. Desses portos, o carregamento seguia para Southampton, na Inglaterra, fato
que provocou um sentimento misto de revolta e inveja na burguesia comercial francesa
estabelecida na Guiana. Nesse momento reapareceu o discurso mais nacionalista que
havia sido abandonado com a expansão imperialista para esta porção da América. De
sua parte, o estado e os empreendedores brasileiros praticamente permaneceram à
margem de todo o processo de extração mineral realizado no Contestado. Quando se
deram conta das riquezas existentes, já era tarde. O boom aurífero ocorrido no Amapá
foi comparado pelo historiador paraense Manoel Buarque ao de uma nova Califórnia:

 6 Buarque, Manoel, O Amapá, Belém, Papelaria Suisso, 1925, p.


35. Plateau era o nome com se designava (...)

Súbito, naquelas regiões, até então desertas, fundaram-se numerosas


habitações, que ainda existiam em 1900, quando foi decidido o litígio que
tínhamos com a França. Daniel, povoação cosmopolita, à margem direita e
a 12 milhas da foz de Calsoene [Calçoene], chegou a contar 80 casas
comerciais, sendo algumas delas importantíssimas. Em frente a essa
povoação, havia uma outra de nome Firmino, onde estabeleceu-se a Anglo-
Franco Gold Mining Company, que seguiu depois para o Plateau 6.

6Vilas que ficaram conhecidas com os nomes dos próprios garimpeiros como Firmino o
descobridor do ouro no rio Calçoene, e Lourenço o descobridor de ouro nas cabeceiras
do Cassiporé. Povoados que surgiam e anos após desapareciam. Mais perene que estes,
a vila de Amapá, bem abaixo da foz do rio Calçoene, transformou-se em um pequeno
aglomerado urbano (aproximadamente um milhar de pessoas o habitava nessa época)
centro dos negócios brasileiros da região. Cunani, Uaçá e Aruacá, lugares onde nunca
antes havia vivido mais do que uma centena de pessoas, sofreram o inchaço
demográfico. Povoados tomados por garimpeiros numa zona onde não havia cobrança
de impostos e a influência dos estados nacionais, tanto o francês como o brasileiro, era
praticamente inexistente, fez com que a população flutuante se organizasse em cada vila
escolhendo suas lideranças locais em função dos interesses comerciais mais imediatos,
geralmente seguindo as determinações do dono de filão mais poderoso.

7Cunani era o maior atracadouro de barcos na parte setentrional do Contestado.


Calçoene, parada intermediária, servia como apoio e acesso aos degrades do alto
Calçoene e do Cassiporé. Amapá, vila protegida ao sul do Contestado ligada à atividade
pecuária, fundada e habitada por brasileiros de assumida nacionalidade, servia de acesso
às minas de Tartarugalzinho. A povoação de Calçoene, minúscula até a descoberta do
ouro, viu assistir, não pacificamente, a uma invasão de créoles vindos das Guianas.
A disputa pelo controle do território
8Se tomarmos como referência a exposição sumária feita pelo naturalista Emilio Goeldi
ao Ministro do Interior sobre sua viagem ao território contestado no ano de 1895, a
região mais ao norte seria o foco de uma ocupação francesa intensa:

 7 Ofício reservado de Emilio Goeldi ao Ministro Carlos de Carvalho,


21/11/1895. Arquivo Histórico do (...)

O único ponto do Território Contestado, onde de fato há uma completa


inversão é o Rio Calçoene, formando os crioulos de Cayenne, de Martinique
e Guadeloupe, enfim súditos franceses, decidida preponderância numérica.
Com este rio a França entretêm constantes relações, diretas e via Cayenne
e Martinique.7

9Acompanhando o mapa do Amapá, podemos perceber uma ocupação agropecuária


feita por caboclos com um mínimo de amparo do Estado brasileiro, entre o rio Araguari
e a vila de Amapá, onde se encontrava presente um forte sentimento da brasilidade de
sua população. Ao norte, entre o Calçoene e o Cassiporé, passando pelo Cunani, uma
região rica em minérios, encontrava-se uma expressiva ocupação humana mais recente,
formada por garimpeiros de fala créole e assistida por alguns empresários e funcionários
a serviço do governo francês. Essa nova população convivia com uma outra população
anterior, já minoritária, descendente de escravos fujões do Pará, estabelecida em
pequenas propriedades agrícolas e que passou a se sentir acuada ante a invasão
demográfica e econômica em curso. Ao retornar a Belém de sua viagem oficial ao
Amapá, a conclusão de Goeldi sobre qual a posição a ser tomada pelo governo
brasileiro em função da disputa em curso, foi clara:

 8 Id., p. 98.

Se o Território Contestado se limitasse ao Amapá, Senhor Ministro, não


valeria a pena o tempo de brigar. Um limite mais natural e estratégico não
poderia haver e eu aconselharia tanto ao Brasil, como à França, de dar esta
zona de presente; seria uma espécie de cavalo Troiano! Mas como o norte
do Contestado é tão bom, como o sul é ruim o litígio é plenamente
justificado e o Brasil deve cuidar de seus legítimos direitos8.

 9 « A América para os americanos », A República, Belém, 15/07/1894.

 10 Carta de 28/09/1894. SG Carton 46 E10 (37). CAOM.

10Esse era o panorama da divisão territorial do Contestado, tanto em função da


ocupação econômica como da simpatia demonstrada pelos habitantes por cada uma das
nações em litígio. Desde o fim do ano de 1893, portanto, logo após os boatos de
descoberta de ouro, ambos os países enviaram missões oficiais, religiosas e comerciais
também com o objetivo de convencer a população local das vantagens em optar por um
ou outro país. Os ares nacionalistas reclamando por uma atitude do governo federal
também tomaram conta da imprensa brasileira. O jornal A República, de Belém,
resolveu apelar para a doutrina Monroe ao fazer um histórico da região do Contestado e
denunciar o que julgava ser a cobiça de estrangeiros roubando as riquezas nacionais9.
Em 24 de setembro de 1894 aportou na vila de Amapá um paquete trazendo uma missão
do governo brasileiro composta por um engenheiro, um médico, um padre e um
professor primário, atendendo a uma demanda antiga da população local10.

11Essa informação causou reação no governador da Guiana Francesa, M. Camille


Charvein, que enviou em dezembro desse mesmo ano um ofício ao Ministro das
Colônias na França. Nele, alertava para o risco de que essas comissões brasileiras
enviadas desde o Pará até o Contestado estivessem recenseando toda a população do
território com o objetivo de fazê-la pronunciar-se a favor do Brasil no momento de uma
disputa judiciária. O parecer dado por Charvein sobre a população de origem brasileira
habitante das terras litigiosas não foi nada favorável e apontou para as diferenças
essenciais existentes entre franceses e brasileiros na compreensão que ambos os povos
teriam sobre o significado da idéia de cidadania e lealdade aos interesses da pátria.

 11 Ofício de 12/12/1894. SG Carton 36 D2 (28). CAOM.

Essa população, exclusivamente brasilófona e proveniente de refugiados da


pior espécie, não poderá hesitar em se declarar pela república vizinha sob o
governo de uma disciplina social mais relaxada, ela manterá ainda por
muito tempo sua independência selvagem e sua liberdade desregrada 11.

 12 Foucault, Michel, Naissance de la biopolitique, Paris, Seuil, 2004.

12A submissão ao interesse do estado nacional que já estaria internalizado no conjunto


da população francesa através de uma progressiva mecânica disciplinar imposta desde o
século XVIII, era o parâmetro utilizado por Charvein para avaliar o grau de patriotismo
e cidadania de um povo. Essa era uma forma retórica recorrentemente encontrada nos
relatos das missões de origem francesa, tanto nas religiosas, como nas comerciais, ou
ainda, nas militares. A população brasileira seria frouxa, indisciplinada, desregrada. E o
seria devido à falta de vontade e à incapacidade congênita do estado nacional em
promover o exercício da disciplina e da civilização de seu proletariado nos moldes
entendidos como sendo os da civilização moderna. Sistema do qual a França,
precursora, orgulhosamente se colocava como parâmetro mundial a ser seguido para a
constituição da cidadania. Entende-se aqui esse discurso sobre a civilidade como sendo
o conjunto de disciplinas, relações instituídas e internalizadas socialmente na sociedade
capitalista, da forma como ele foi explicitado por Michel Foucault em sua conceituação
sobre a biopolítica12. A civilização moderna, voltada para o trabalho como um fim em
si mesmo, onde estado e sociedade constituíram-se numa ampla rede de relações de
poder marcadas por uma reciprocidade de interesses. A sujeição da maioria da
população enraizou-se com as contrapartidas oferecidas, tanto pelo Estado como pelo
Capital, na forma de benefícios privados e direitos sociais, alicerçados na crença de que
sua manutenção depende do comprometimento com o ideal da grandeza da pátria
através da grandeza do cidadão. A partir dessa compreensão, um estado como o
brasileiro, funcionaria como o não estado, à margem da civilização moderna, parâmetro
do país anedótico, « ce n’est pas un pays sérieux », nas palavras posteriormente ditas
por Charles de Gaulle. Um estado que nem ao menos se mostrava capaz de impedir que
os seus súditos fizessem, à revelia do poder soberano, o que bem entendessem de sua
vida, não poderia ser, na concepção dos vizinhos franceses, um estado fadado a
governar terras percebidas como donas de recursos naturais tão ricos.
 13 Strobel, Michele-Baj, Les gens de l’or, Petit-Bourge, Guadalupe, Ibis
Rouge, 1998.

13O que talvez nem o governo de Caiena nem os empresários franceses esperassem,
fosse o fato de que os moradores de origem brasileira residentes há mais tempo no
Território Contestado se sentissem incomodados ou, melhor dizendo, literalmente
invadidos, com a exploração comercial em curso e que não se interessassem pelo tipo de
desenvolvimento, discutível, que isso pudesse trazer. Nas estimativas do próprio
governador da Guiana Francesa, quase metade da população livre masculina da colônia
migrou para o Cunani e o Calçoene, e muitos começavam a alcançar a vila de Amapá.
Terras antes praticamente desertas tornaram-se palco de verdadeiras cidades de faroeste
construídas da noite para o dia. Esse trânsito de pessoas causou uma série de problemas
para as antigas famílias moradoras, a começar pela chegada da prostituição e da
violência provocada pelo álcool e pela cobiça, que geralmente acompanha a vida
mundana nos garimpos13.

14A primeira reação oficial brasileira a essa corrida ao ouro, segundo o Governo de
Caiena, teria sido patrocinada por funcionários públicos vindos de Belém e
estabelecidos em Amapá. Ela ocorreu através do aviso de interdição do acesso na
entrada dos principais rios do Contestado: os rios Amapá Grande, Cunani e Calçoene.
Em setembro de 1894, o capitão Daniel instituiu um pedágio de 150 francos para todas
as embarcações que subissem o rio Calçoene. Acusado de ser um bandido insolente pelo
engenheiro Fernand Sursin, retrucou ser ele o proprietário das terras e como tal fazia o
que bem entendesse. Sursin registrou as imagens e as levou até o conhecimento do
governador da Guiana Francesa.

Fotografia de Fernand Sursin (engenheiro explorador).

Agrandir Original (jpeg, 158k)

Rapport succint sur le Contesté Franco-Brésilien, 1887-1900. SG Carton 38


D2 (41), CAOM.

 14 Carta de 28/09/1894, SG Carton 37 E10 (41), CAOM.

15No mesmo mês, dois empreendedores de Caiena, Nazard e Coillari, alegaram terem
sido impedidos de entrar na vila de Amapá14. Em Cunani, um negociante de Caiena
afirmou que a população brasileira, muito numerosa, impediu a resistência de uma dúzia
de franceses, expulsando-os do vilarejo. Os brasileiros lhe teriam dito, que agora seria o
próprio Presidente da República, o Marechal Floriano Peixoto, a estimular o
nacionalismo. Pouco depois, ao final desse ano de 1894, Trajano, o capitão do Cunani
simpático da causa francesa, sentiu-se ameaçado com a interdição de acesso e, com a
ajuda de seu amigo Henri Coudreau, retirou-se para Caiena, onde pediu a criação de
uma polícia para a proteção dos franceses moradores da região do Contestado.

 15 Ofício de 27/03/1895, SG Carton 37 E10 (41), CAOM.

 16 Ofícios de 14/03/1895 e de 27/03/1895, SG Carton 37 E10 (41), CAOM.

16A questão da interdição do acesso aos garimpeiros franceses e das denúncias feitas
por alguns deles em Caiena assumiu contornos de confronto entre estados e populações
nacionais. Mas, na perspectiva francesa esta não seria somente uma questão de disputa
territorial em uma região sem soberania definida. O que passou a ser discursado nas
tribunas de Caiena era um hipotético confronto da civilização contra a barbárie. A
população brasileira, segundo Charvein, deveria ser tratada como se tratam crianças
rebeldes e insolentes que desafiam a autoridade paterna. E como o seu pai, o estado
brasileiro, comportava-se como um pai ausente, incapaz de educar seus próprios filhos,
caberia à França levar as noções mínimas de civilidade a esses filhos rebeldes órfãos da
civilização. Para isso, a disciplina deveria ser ministrada como o exemplo que faltaria a
esses brasileiros: « com toda a moderação da força, mas com toda a firmeza da lei »15,
da lei francesa, subentenda-se. Este, em resumo, o teor das reuniões tidas durante o mês
de março de 1895 pelo governador Charvein com o empresário Daniel Casey, com o
Diretor do Ministério do Interior e com o comandante da Marinha, em Caiena16. O
objetivo seria o de intimidar a resistência brasileira à exploração comercial na região
litigiosa, fato que infringia a liberdade de circulação garantida pela convenção de 1862.
Essa resistência civil com 60 homens armados de fuzis a tiro rápido estaria sendo
organizada a partir da vila de Amapá por Francisco da Veiga Cabral, alcunhado
Cabralzinho, tido pelos franceses como um típico caudilho sul-americano, testa de ferro
do governo de Belém. Iniciava-se assim a arquitetura de um plano secreto e extra-oficial
de intervenção militar no Contestado que ficaria conhecido pelo nome de Missão Casey.

17Além de todo o jogo de retórica sobre o que poderia ser considerado como
civilização, outro ponto mais importante, o desafio à autoridade francesa, era o que de
fato se colocava como elemento central do plano de intimidação em curso. A
insubordinação ao texto escrito da Convenção de 1862, fato citado por Charvein, foi um
ato declarado por um pequeno grupo da vila de Amapá, liderado por Veiga Cabral,
político profissional com aspirações a governante do território contestado. Cabral
instituiu em dezembro de 1894 um Governo Provisório do Amapá em forma de
Triunvirato republicano, que tratou de reger a circulação de pessoas e mercadorias. Esse
novo governo estabeleceu dois decretos principais, fundamentais para se entender a
dinâmica dos negócios no lugar:

DECRETO N º. 1 – Da Exploração de Minas no Amapá:


Art. 1º. Fica desde já franca a entrada dos Rios do Amapá a todo e qualquer
brasileiro que organize qualquer expedição para a exploração de Minas
neste Território [...]
Art. 4 º. Todos os produtos tirados serão apresentados ao Triunvirato para
serem conferidos a fim de pagar o competente direito [..]
Art. 5 º. Será expressamente proibido vender-se os produtos tirados neste
Território em Cayenna ou qualquer país estrangeiro [...]
Art. 6 º. É expressamente proibido a entrada de todo e qualquer estrangeiro
que vier de Cayenna [Caiena] ou dos países do norte do Cabo Orange [...]

 17 Cópia de manuscritos atualmente indisponíveis do Instituto Geográfico e


Histórico do Pará, IGHP, in (...)

DECRETO N º. 2 – Do Triunvirato do Amapá eleito pelo povo:


Art. 1 º. Fica criado um Exército de Infantaria Defensor do Amapá,
composto de quatro Bm.s tendo cada Batalhão quatro companhias.
Art. 2 º. É nomeado General comandante Geral do Exército o Sr. Francisco
X. da Veiga Cabral.17

18Os decretos acima praticamente ensejavam uma declaração de anexação da área


litigiosa do Amapá sob a bandeira da soberania brasileira. Os limites estavam muito
bem demarcados seguindo o pleito brasileiro sobre o Contestado até a foz do rio
Oiapoque, o cabo Orange. O Triunvirato se colocava com atributos de estado nacional
para o exercício dos poderes de fisco – a tributação de impostos geralmente vem à
frente dos interesses do estado – e de polícia, com a constituição de uma Guarda oficial
armada. A questão para Caiena era saber de onde partira tal iniciativa. Se ela fora
efetivamente uma atribuição do governo federal ou do governo do Pará, então, a
estratégia de ação deveria ser tratada através do Quai D’Orsay. Mas, se como
suspeitavam os franceses, fosse uma situação extra-oficial criada pelo próprio tenente
Cabral, então ela deveria ser tratada como tal.

 18 Carta de M. Casey de 08/04/1895 ao Presidente do Conselho Geral da


Guiana Francesa. SG Carton 37 E1 (...)

19É nesse sentido que, em primeiro de abril de 1895, Daniel Casey seguiu à frente de
uma missão paramilitar e extra-oficial a bordo do navio de guerra Bengali em direção à
vila de Amapá. Segundo o relatório feito por Casey, eles aportaram na entrada do rio
Amapá Grande na tarde do dia seguinte e esperaram o amanhecer do dia três de abril
para desembarcarem com dois oficiais em duas pirogas até a vila de Amapá. As
instruções do comandante eram as de que ele « partiria no mesmo dia caso encontrasse
uma resistência bem caracterizada e, sobretudo, se a autoridade do capitão Cabral
estivesse apoiada pelo Brasil ». Ao avistarem os militares, a população da vila içou a
bandeira de quarentena. O comandante percebeu que estavam todos desarmados e
entendeu que aquele seria um truque para evitar a entrada da comitiva e desembarcaram
assim mesmo. Como sempre ocorre nessa época do ano desandou uma chuva torrencial
por volta do meio dia o que obrigou a comitiva francesa, encharcada, a se abrigar em
um bar. De lá, acompanhados por um grupo de doze moradores, foram levados ao
senhor Lopez Pereira, o professor primário funcionário público do Pará que, na ausência
de Cabralzinho, cumpria a função de autoridade civil. Questionado sobre o
impedimento do acesso ao Amapá, Pereira respondeu-lhes que « os franceses não
podem navegar nos rios nem desembarcar nas margens porque as terras pertencem aos
primeiros ocupantes e que todos se opõem ».18 E continuou dizendo que essa lei fora
feita por eles mesmos, sancionada pelo governo brasileiro e promulgada no Jornal do
Pará. Casey solicitou um documento confirmando a oficialidade da lei, mas nenhum lhe
foi apresentado. Mesmo assim, os visitantes foram convidados a se retirarem de Amapá,
o que o comandante, prudentemente, resolveu fazer, retornando a Caiena no dia
seguinte.

20A presença militar francesa no Amapá causou desconforto entre a população. Quando
do retorno de Cabral vindo de Belém poucos dias depois, seu grupo resolveu retaliar a
ação, investindo contra os brasileiros defensores do interesse francês no Contestado.
Arthur Reis, o primeiro historiador brasileiro a se dedicar ao nascimento do Amapá
enquanto unidade territorial autônoma analisou um conjunto de documentos
manuscritos sobre o Contestado e seus conflitos, guardados no Instituto Histórico e
Geográfico de Belém e concluiu:

O Triunvirato autorizou a reação armada dos brasileiros que se sentissem


prejudicados na exploração das minas pelos crioulos da Guiana Francesa. E
deliberou que todo e qualquer indivíduo que perturbasse a paz, criando
dificuldades à ação do Governo ou fomentando o desrespeito à legislação
que ia sendo decretada fosse deportado por três anos [...]

 19 Reis, A. op. cit., p. 98-102.

Em Calçoene, o preto Trajano continuava nos desconcertos [...] O


Triunvirato, informado do que ocorria, decretou a expulsão do traidor,
mandando capturá-lo por uma força do exército amapaense 19.

 20 Tribunal de 1è Instance de Cayenne année 1895, parquet 369, cabinet de


instructions 40. Carton 37 D (...)

21Para a historiografia brasileira que inaugurou os estudos sobre esse tema, o conflito
entre a França e o Brasil resumiu-se à vingança contra um velho preto, um escravo
fujão, que merecia, ainda que com atraso, ser justiçado. Em 28 de abril, uma dezena de
homens armados comandados pelo tenente Luiz Bento desembarcou numa goleta em
Cunani, dando voz de prisão a Benito Trajano, a sua mulher e a Christino João Ferreira,
que seria outro amigo da França, conduzindo-os até Amapá. Na falta de uma cadeia, os
prisioneiros foram postos a ferros na rua e soltos dias depois por ordem de Cabral, sob a
condição de que não deixassem mais a vila de Amapá. Trajano teria sido detido por ser
um traidor da causa brasileira em favor da França20.

 21 « Cunany foi a princípio simples mocambo de escravos fugidos, a maior


parte da região de Salgado: a (...)

 22 Ver: Gomes, Flávio, A Hidra e os pântanos, São Paulo, Companhia das


Letras, 2007 e Bezerra Neto, Jo (...)

22Difícil dar um veredicto de traição pátria como sentença para Benito Trajano. A vila
de Cunani desenvolveu-se desde meados do século XIX como um quilombo de escravos
fugitivos de fazendas dos municípios paraenses de Salgado e de Cametá, segundo a
versão do próprio governo paraense21. Os trabalhos desenvolvidos por Flávio Gomes e
José Maia Neto, apontam para uma série de quilombos existentes e reconhecidos no
Amapá. O quilombo de Cunani, que inicialmente era apenas um ponto de passagem na
rota de fuga em direção à Guiana, cresceu demograficamente a partir de 1860 com a
diminuição das idas para a colônia francesa22. O recenseamento da população da vila
de Cunani organizado pelo morador Demetrio Nunes de Souza em dezembro de 1895,
permitiu ao cientista Emilio Goeldi escrever o seguinte informe:

 23 Exposição sumária da viagem de Emilio Goeldi realizada para o Museu


Paraense de História Natural e (...)

A população da Vila de Santa Maria, em Counany [Cunani] consiste de 284


pessoas. São brasileiros sem exceção alguma: a maioria é de diversas
localidades do Estado do Pará (Curuá, Macapá, Cintra, Vigia, Curuçá, Pará,
São Caetano, Gurujuba), bem 95% do total. De crioulos de Cayenna
[Caiena] não encontrei senão uma mulher velha, viúva de um brasileiro, e
um rapaz (Adolfo Gimino) criado em Counany, que me disse não ter
saudades de Cayenna, estrangeiros encontrei um único – Jeronymo Xavier,
de nacionalidade portuguesa. São, com poucas exceções, pretos e mulatos,
os mais velhos evidentemente « mocambistas » (escravos fugidos), do
tempo do Império, antes da abolição da escravidão; a geração nova
consiste de paraense, que livremente vieram das localidades
supramencionadas.23

 24 « Lugar nenhum », Arnaldo Antunes/Charles Gavin/Marcelo Fromer/


Sérgio Britto/ Toni Belloto, Titãs (...)

23Mas quais teriam sido então, os desconcertos do negro Trajano a que se referiu
Arthur Reis na exposição anterior? Içar a bandeira tricolor em sua casa e uma suposta
queima da bandeira brasileira são os fatos assinalados. Plagiando Arnaldo Antunes,
Trajano não era brasileiro, não era estrangeiro, não era de lugar nenhum; nenhuma
pátria o pariu24. Trajano sempre foi um mísero recurso humano, um instrumento de
trabalho sob o domínio de capatazes e feitores. Porém, ali naquela terra de ninguém, ele
ousou inverter as relações de poder. Ali ele se constituiu em um indivíduo livre com
poder. Era reconhecido e respeitado até por um geógrafo do porte de Henri Coudreau.
Percebe-se um forte preconceito de ordem social e racial na ordem de prisão contra
Trajano e no desdém com que a população de Amapá tratou o caso.

24Esse fato seria a gota de água no longo processo de acirramento de tensões que
culminará no confronto armado de Amapá. A opinião pública em Caiena, insuflada
pelos empresários locais com negócios no Contestado e pelo grande número de
garimpeiros em atividade no Cunani, cobrou uma atitude enérgica do governo. A prisão
de um aliado da causa francesa por um grupo paramilitar brasileiro em uma região de
litígio e ainda sem soberania definida, era uma afronta que não poderia ser deixada em
brancas nuvens sob o risco da repetição de situações similares a essa no futuro. Assim, o
mesmo grupo que montou a operação Casey, começou a organizar outra missão secreta.

O conflito armado de Amapá


25Em 10 de maio de 1895, após a reunião do Conselho Consultivo ocorrida no dia
anterior, o governador Charvein enviou uma longa carta ao comandante da Marinha
narrando-lhe a versão dos fatos que lhe fora passada por Julien, um minerador recém-
chegado do Calçoene:
 25 Carta de 10/05/1895. SG Carton 36 D2 (28). CAOM. « Mapa » era o
modo como o atual Amapá era escrito (...)

O território contestado foi invadido por um bando de delinquentes, parece


que vindos do Pará seguindo um tal Cabral. Em vossa última viagem a Mapa
[Mapa], esse Cabral encontrava-se ausente e havia ido ao Amazonas a fim
de recrutar o contingente de 100 ou 150 homens com os quais ele opera
atualmente na região do Contestado... Trajano foi pego por ele, atacado e
jogado em uma canoa brasileira e depois dirigido a Mapa. Ainda mais, a
bandeira francesa que tremulava na casa de Trajano, foi arrancada, rasgada
e queimada no chão. Você viu por você mesmo esta manhã a delegação da
Câmara do Comércio, composta do Presidente e do vice-presidente desta
Assembléia, vir me pedir ajuda e proteção contra os serviços executados
por nossos co-nacionais, que na embocadura dos rios são apreendidos por
grupos de aventureiros brasileiros e despossuídos do ouro que eles
acabaram de recolher.25

26A estratégia da burguesia nessa fase avançada da expansão comercial após a década
de 1880 não era caracterizada por uma política patriótica, uma vez que seus objetivos
eram e são individualistas, não coincidindo com o nacionalismo do Estado. Nesse
pequeno rincão do universo amazônico, por exemplo, Henri Coudreau preferia ver um
Cunani independente, mais fácil para ter seus recursos explorados, a um Cunani francês.
As grandes mineradoras lá instaladas eram, de fato, sociedades abertas, consórcios
anglo-franceses, cujo capital provinha de ações lançadas na Bolsa de Londres, o
mercado que não reconhece nenhuma bandeira. Há uma clara desvinculação entre o
interesse do estado nacional e do povo enquanto súdito, que se explicita
necessariamente na questão da defesa do território ou da pátria, do jogo de conquista
material ilimitado promovido pela burguesia como o do próprio objetivo da existência.

27Nas colônias, onde a maioria da população pouco compartilhava a idéia patriótica da


cidadania, a opinião pública mostrou-se frágil em relação às questões envolvendo esses
sentimentos de nacionalidade; sentidos que soam de modo muito artificial. O próprio
governo estabelecido na colônia funcionava como um facilitador dos negócios da
burguesia local, a elite criolla sul-americana, com o capitalista de fora, seja ele
metropolitano ou não. O homem de colônia investido de poder público trabalhava como
um atravessador dentro do mercado, enriquecendo-se com as comissões. Não que isto
não ocorresse também nos países protagonistas do capitalismo, porém, dada a maior
pressão exercida pelo conjunto da população sujeitada à intersecção dos interesses
individuais burgueses com os coletivos do Estado, se fazia necessário, pelo menos
enquanto aparência, um distanciamento maior entre o interesse do Estado e o do
Capital. Nas colônias a relação davase de forma um tanto quanto diferente. A opinião
pública, devido à sua própria fragilidade, torna-se a expressão do grupo burguês
dominante, e, portanto, reagia fortemente quando um interesse individual ou coletivo de
seu grupo era atacado. Nesse momento, na Guiana Francesa, o interesse econômico em
questão era o da exploração mineral na região do Contestado e ele precisava ser
defendido a qualquer custo.

28Foi com o surgimento dessas circunstâncias conflituosas nas relações de exploração


internacionais em que o imperialismo do século XIX esbarrou nas limitações de poder
político de sua burguesia. O monopólio da força e da violência legitimada se encontrava
nas mãos do estado nacional, na figura de suas forças armadas. E o Estado não pode agir
militarmente a não ser em defesa de sua própria segurança, por razão de estado,
portanto, agir de forma patriótica. Assim, é nesse conjunto de interesses distintos e
contraditórios que deve ser entendida a carta de Charvein ao comandante das forças
francesas na Guiana, apontando para a existência de um ataque à soberania francesa na
imagem da bandeira da fraternidade, da igualdade e da liberdade ardendo em chamas. A
agressão à pátria consumada por um bando estrangeiro armado, bandidos! Isso sim,
tornava-se um ato merecedor de retaliação com o sentido de recolocar a ordem
subvertida em seu devido lugar. Com base nisso, em defesa dos interesses econômicos
do grupo que representava, Charvein pôde, mais do que pedir, praticamente, ordenar
ao Enseigne de Vaisseau do Bengali uma intervenção armada na zona litigiosa:

Você deverá muito bem sair do mar sábado 11 de maio corrente, para
ingressar no território contestado. Um destacamento de 60 homens da
Infantaria da Marinha, comandados pelo Capitão Lunier, embarcará a bordo.
Você deverá, em primeiro lugar, ingressar no Carsewene [Calçoene] onde
parece que se encontra o posto mais importante... Vossa missão será
descobrir esse posto dos bandidos e assegurar a segurança de nossos co-
nacionais além de liberar a passagem do rio com todos os meios postos à
vossa disposição. Bem entendido que não se faça recorrer à violência a não
ser em último caso. Aqueles que forem reconhecidos por terem molestado e
pilhado nossos co-nacionais serão conduzidos a Cayenne [Caiena] e
conforme a Convenção de 1862 remetidos à justiça local. De Carsewene
você se dirigirá a Mapa [Amapá] onde se encontra prisioneiro o capitão
Trajano. Você tentará com todos os meios pacíficos obter sua liberação. Mas
se você sentir uma recusa obstinada e uma má vontade absoluta, você
poderá usar a força no ponto onde ele se encontra detido e se necessário
você toma alguns reféns distintos como garantia de sua vida e de seus
interesses lesados. Nós fomos igualmente avisados que dois vapores
brasileiros deverão vir no dia 15 de maio bloquear o baixo Carsewene e
Counani [Cunani]. Eu não posso crer que o Governo do Pará possa se
comprometer a autorizar uma violação tão flagrante das convenções... Eu
lhe recomendo senhor comandante todo o tato e prudência no cumprimento
dessa missão que é uma missão de polícia e não de guerra. Qualquer ato de
repressão somente deverá ocorrer em seguida a fatos delituosos bem
constatados e de uma resistência material que vos será impossível vencer
pela persuasão.

 26 Dégrad era o nome usado em língua créole para designar os


atracadouros fluviais, lugares de encontr (...)

 27 Interrogatório e prisão de Daniel. Operações da gendarmerie no


Calçoene 19/05/1895. SG Carton 37 D2 (...)

29Essa era a estratégia de intervenção militar arquitetada, uma questão de polícia, não
de guerra, um plano que seria viável enquanto não houvesse fatores externos ao
planejamento efetuado. A operação militar, como não se preparou para uma guerra, não
se mostrou capaz de lidar com o imprevisto que fatalmente tende a ocorrer. A chegada
do vapor Bengali em Calçoene no dia 13 de maio foi tranquila. O navio aportou antes
dos saltos e após uma hora de viagem em canoa, um grupo de militares chegou
ao dégrad26.  Conversaram com três garimpeiros de Caiena que lhes disseram que
estava tudo calmo, mas que havia receio nas vilas de ataques de brasileiros vindos de
Amapá. Segundo eles, os brasileiros estabelecidos no degrade estariam armados com
fuzis de guerra americanos. A maioria dos garimpeiros lá instalados no decorrer do
último ano, entre 300 e 400, era provinda da Guiana e mantinha forte rivalidade contra
um grupo de apenas 30 brasileiros. Estes últimos seriam liderados pelo capitão Daniel,
que após seu retorno da viagem feita ao Amapá, teria determinado, sob ordens expressas
de Cabral, a expulsão de todos os franceses em busca de ouro em detrimento dos
primeiros habitantes ocupantes do território. Em seguida, o destacamento militar saiu
em perseguição a Daniel, que foi encontrado em frente à sua própria casa e levado a
bordo do Bengali para ser conduzido a julgamento em Caiena, como previa o plano
inicial. Seus companheiros Faustino e Germano, também procurados, os outros
brasileiros armados citados pelos garimpeiros e os fuzis americanos, nunca foram
encontrados27.

30Feita essa primeira intervenção conforme o planejamento realizado, o comandante


seguiu com o Bengali destino Amapá. Havia uma estratégia montada: descer de
surpresa com os soldados e fazer com que todos os homens com capacidade de
resistência na vila (haveria em torno de 200 homens nessas condições), saíssem de suas
residências com as mãos levantadas. No papel tudo se torna possível, mas na hora da
ação, se requer uma tática para colocar a estratégia pensada em prática. O problema:
como chegar de surpresa com um navio do porte do Bengali? Pelo croqui da vila de
Amapá feito antes do desembarque aparentemente a Infantaria da Marinha sabia, ou
imaginava que sabia, o paradeiro de Trajano e de Cabral, localizados nas casas
indicadas com as letras B e E, e traçou uma estratégia para alcançar esse propósito.

M. Herard. Croqui da vila de Amapá, 15/05/1895.

Agrandir Original (jpeg, 273k)

SG DFC Supplément Guyane. CAOM.


Tradução da legenda no desenho: Escala de 0:001 para 2 metros
A. Ponto onde foi atingido o Capitão Lunier
B. Casa inacabada onde foi colocado o capitão
C. Lugar de parada dos marinheiros desembarcados
D. Lugar de desembarque
E. Casa do antigo capitão (Cabral)

 28 Tribunal de 1è Instance de Caiena, ano 1895. parquet 369, cabinet de


instructions 40. Carton 37 Dos (...)

31Para não demonstrar suspeita, o Bengali ancorou aproximadamente 500 metros antes
de chegar ao vilarejo, permanecendo com o comandante a bordo e alguns
marinheiros28. Uma comitiva chefiada pelo capitão Lunier com uma dúzia de soldados
da infantaria naval e mais 60 marines seguiu em canoas até Amapá. Estes últimos
desembarcaram antes, na altura onde se localiza o cemitério, e como mostra o mapa
seguiram a trilha que contorna a vila para surpreenderem os habitantes pelo costado.
Lunier desembarcou pelo cais principal assinalado como ponto D; estava convencido de
que não apresentando todo seu aparato militar dissuadiria os habitantes da vila de uma
resistência, podendo chegar mais facilmente ao encontro de Cabral. Contudo, a casa
onde deveria estar Trajano encontrava-se deserta, nenhuma alma se fazia viva e um
silêncio sepulcral reinava em todo o vilarejo. Lunier, então, seguiu com seus doze
homens pelo caminho da beira-rio até pouco antes de chegar à igreja, de onde teria sido
interpelado por Cabral e seu bando. Todo o planejamento efetuado caiu por terra quando
a vantagem da surpresa mudou de lado. Em certo momento, do nada, desembestou um
forte tiroteio de ambos os lados em disputa que prosseguiu durante mais de duas horas.
O confronto teria se iniciado no ponto A e, enquanto a armada francesa retornava para
seu posto de desembarque Cabral seguia com seu grupo para a mata atrás da igreja. Ao
final, o trágico resultado imprevisto. O tenente Lunier estava morto, algumas dezenas de
moradores brasileiros e de soldados franceses também, além de um grande número de
civis e militares feridos. Cabral escapou da prisão e fugiu para o manguezal. Nesse
momento tenso da história a versão dos acontecimentos sucedidos muda conforme o
lado que faz a narrativa.

 29 Ver o caso do anarquista Eugéne Dieudonné, da banda Bonnot, que


evadiu da prisão na Guiana e refugi (...)

32A armada francesa conseguiu alcançar uma das metas do plano. Três reféns foram
feitos prisioneiros: Manoel Gomes Branco, Juan Lopez Perreira e Marcilio Wilson
Bevilacqua. Esses três, junto a Daniel Ferro, foram acusados de « associação de
malfeitores », um termo muito em voga no final do século XIX na França, Itália e
Espanha. Originalmente cunhado para incriminar os revolucionários socialistas e
anarquistas, particularmente, essa acusação tornou-se o grande motivo de confinamento
e deportação de anarquistas para os bagnes coloniais da Guiana e da Nova Caledônia,
na época dos grandes atentados29. Além dessa acusação padrão o procurador Paul
Artaud também promoveu no inquérito aberto o crime de prisão de homem notável
(Trajano) e homicídio voluntário premeditado (contra o tenente Lunier). Para essa
última acusação, valeu-se do relatório do comandante das tropas na Guiana Francesa
baseado na narrativa de marines que participaram da ação.

33Segundo o relatório do comandante, Cabral apareceu a uma distância de uns vinte


metros do capitão Lunier acompanhado de uma tropa de uns sessenta homens. Quando
ambos se encontraram frente a frente, Lunier ordenou-lhe que soltasse imediatamente
Trajano, ao que ouviu como resposta de improviso –« fogo! » Os homens de Cabral
dispararam. Lunier foi o primeiro a tombar sem vida, e todos rapidamente se
dispersaram em retirada, à espera do reforço dos demais soldados, enquanto começaram
disparos vindos das casas. Cabral deu meia volta e fugiu com seus homens para dentro
do mangue deixando a vila com a forte resistência dos paisanos comandados por velhos
oficiais brasileiros que atiravam indiscriminadamente nos marines por detrás das janelas
das casas. O combate durou das 10 e meia às 13 horas até que a última casa foi tomada e
seu último defensor morto. O comandante vangloriou-se no relatório de ter tido apenas
seis baixas enquanto contabilizaram sessenta mortes do lado do inimigo além dos
covardes que fugiram para o pântano.

 30 Relatório do Comandante das Tropas na Guiana Francesa. Dossiê Cabral.


SG Carton 36 D2 (28). CAOM.

34Quando foi publicada pelos jornais da colônia, essa versão oficial do Exército
provocou comoção no enterro do capitão Lunier e dos soldados realizado no dia 17 de
maio. Além dos mortos, houve outras 18 baixas de feridos entre os soldados, três deles
em estado grave. A declaração do chefe do Batalhão de Infantaria da Marinha atribuía
completa responsabilidade ao Brasil nos fatos ocorridos em Amapá e reclamava ordens
de Paris para uma ocupação militar imediata de todo o território contestado. Nesse
relatório apresentava uma lista dos principais nomes seguidores de Cabral, encabeçados
pelo professor João Pereira, já detido em Caiena. Alegava como prova da
responsabilidade do governo brasileiro a remessa de dinheiro de Macapá para a
fundação da escola, ação promovida pelo Dr. Tocantins, funcionário do governo do
Pará. Insinuava que as freqüentes idas de Cabral a Belém seriam para receber instruções
e verbas do governo brasileiro para estabelecer o Governo Provisório do Amapá. E
concluía seu relatório afirmando que o governo do Pará tinha leis, ordens, inteligência,
serviço de informação e homens à disposição para ocupar o território, e que a França
não poderia permanecer patética, paralisada ante essa afronta. O conteúdo do texto do
comandante militar na Guiana era quase um pedido de declaração de guerra ao
Brasil30.

 31 Tribunal de 1è Instance de Caiena ano 1895, parquet 369, cabinet de


instructions 40. Carton 37 Doss (...)

35Nos autos do processo contra os prisioneiros brasileiros levados até Caiena, consta a
versão deles sobre o conflito. Segundo João Pereira, no encontro entre os dois grupos
rivais, Cabral recebeu voz de prisão sem que houvesse nenhum diálogo anterior entre as
partes, tendo sido logo capturado pelos soldados da infantaria francesa. Mas, com um
golpe, uma cotovelada, conseguiu se desvencilhar, pegando o revolver do capitão
Lunier e atirando contra ele para escapar da prisão. Depois, embrenhou-se com seus
homens na floresta de mangue levando Trajano consigo enquanto começava o tiroteio
pela cidade. Alguns poucos civis brasileiros armados enfrentando um destacamento da
infantaria da marinha francesa31.

 32 Diário de Notícias, Belém, 27/05/1895.

 33 Província do Pará, Belém, 20/07/1895.


36Já, a notícia veiculada pelo Diário de Notícias quando da chegada de Cabral em
Belém trazendo Trajano como prisioneiro de guerra, não fala de conflito, mas de um
verdadeiro massacre32. Afirma que um navio de guerra francês aportou em Amapá
com cerca de 300 a 400 soldados a bordo e que uma centena deles desembarcou. Com
Cabral, havia apenas 14 ou 15 homens armados na defesa da vila. Foi dada a ordem de
prisão contra Cabral que obviamente não a aceitou. Houve resistência, Cabral atracou-se
com o capitão francês e na luta foi disparado um tiro de pistola. Conseguindo se livrar
dos invasores, Cabral se refugiou numa residência de onde comandou a resistência civil
à invasão armada estrangeira. Após a inesperada reação os soldados franceses revidaram
de modo desproporcional a alguns tiros que teriam partido de dentro das casas, uma
atitude de legítima defesa da parte de quem fora invadido. Essa reação, que durou mais
de duas horas, atingiu todas as residências da vila de Amapá. Durante o combate,
acuados ante a superioridade numérica e militar, Cabral e seus homens escaparam para a
selva. Ao final do confronto, contabilizaram-se 35 mortos sendo: dez mulheres
assassinadas dentro de suas casas, duas delas segurando seus filhos pequenos no colo;
três velhos septuagenários e um velho enfermo de oitenta anos; 17 homens com idades
variando entre 16 e 65 anos; mais quatro crianças entre sete e 13 anos de idade; além de
32 feridos durante o combate. Quando de sua chegada a Belém, Cabral foi saudado com
vivas e tiros de foguete pela população33.

37Em Paris, desde 1880 circulava um semanário intitulado Le Brésil, porta voz da
comunidade brasileira residente na França. A edição de 18 de junho de 1895 teve como
tema « Le Conflit de Mapa ». Valendo-se das notícias chegadas do Brasil, a edição foi
bastante detalhista quanto aos danos materiais provocados pela intervenção militar no
Amapá. Seu objetivo era o de se opor ao discurso oficial propagado pela opinião púbica
francesa. Segundo o jornal, praticamente todas as casas comerciais haviam sido
incendiadas ou saqueadas, provocando enormes prejuízos financeiros para a população
local. A casa comercial do português Manoel Branco, a maior de Amapá fora
completamente destruída. Ele foi levado preso para Caiena e sua mulher, assassinada,
deixando quatro crianças órfãs. Outras duas casas foram parcialmente incendiadas e
tiveram suas mercadorias saqueadas. Várias canoas da vila foram roubadas ou
simplesmente quebradas para impedir qualquer reação dos moradores. A casa de
comércio « Lopes, etc. e Irmão » fora completamente destruída, sendo que oito pessoas
pereceram em seu interior. A escola e a casa onde residia o professor João Pereira
também foram incendiadas. E a residência de Francisco da Veiga Cabral, como não
poderia deixar de ser, fora completamente saqueada tendo sido roubado o ouro e a prata
que ele ali guardava: um prejuízo de 30.000 francos. Em resumo, o jornal apresentava
uma lista de 21 casas incendiadas e outras 16 que estariam em situação precária. Para
concluir questionou: quem fora a vítima e quem fora o agressor no conflito em Amapá?

38Na medida em que os danos humanos e materiais começaram a ser contabilizados, a


reação patriótica à morte de Lunier começou a ser reavaliada. Peréz, o chefe das tropas
na Guiana, contestou as notícias publicadas nos jornais brasileiros, afirmando serem
caluniosas. A possibilidade de uma intervenção militar no Amapá foi descartada, mas a
França não admitiu outra versão que não a oficial para os fatos ocorridos. O governo
francês procurou diminuir a acusação do massacre, reclamando a morte de um oficial do
Exército em combate. Do lado brasileiro, o Barão de Marajó acusou o governador
Charvein de ser um testa de ferro de um sindicato corporativo formado na França para a
exploração do ouro no Amapá. Para contornar essa situação, em busca de uma solução
diplomática para o caso, Charvein foi destituído do cargo e em seu lugar foi empossado
outro governador, M. Henri Danel. O Tribunal de Caiena considerou improcedente a
acusação contra Daniel Ferro por ele não ter agido de vontade própria – estaria sob as
ordens de Cabral – e logo lhe concedeu alvará de soltura. Em junho já se tem notícias de
Daniel em sua casa no Calçoene. Os outros três prisioneiros continuaram detidos e
permaneceram sob julgamento pelo envolvimento na morte de franceses em Amapá.

39Do outro lado, no dia 9 de junho, Madame Coudreau dirigiu-se até Belém do Pará
para reclamar a soltura de Evaristo Raimundo, o encarregado da mina de ouro de sua
propriedade no Cunani. Ele fora capturado por sete homens armados enquanto pescava
na goleta de um chinês, que conseguiu escapar com seu barco. A família Coudreau
sempre gozou de muito prestígio no Brasil e o governo paraense alegou um equívoco. O
alvo seria o marujo chinês, esse sim o piloto que acompanhara o Bengali na missão ao
Amapá. A retaliação contra o massacre em Amapá havia começado. Evaristo fora
levado para a vila de Amapá, porém não há notícias sobre sua futura libertação.

40Em Cunani, contudo, eram os habitantes brasileiros do Contestado que se mostravam


receosos em relação a possíveis represálias dos garimpeiros da Guiana. Daniel, por
exemplo, em meados de julho fora preso em sua residência a mando de Lourenço
Gomes, alcunhado Baixamar, o homem do ouro no Cassiporé, que o libertou após ver o
alvará de soltura da justiça francesa. Pouco depois, Daniel foi emboscado a tiros e viu-
se obrigado a fugir para Belém. De seis a sete mil homens estariam circulando entre
Cunani e Amapá em busca de ouro e, após ter sido aberto um acesso por terra, estariam
trazendo medo e incerteza a todos os agricultores e pescadores brasileiros habitantes da
região. Reunidos, enviaram a seguinte petição ao Governador do Pará solicitando
providências urgentes:

 34 Diário de Notícias, Belém, 03/08/1895.

Desesperados (os crioulos) pelo revés de 15 de Maio, que fechou-lhes as


portas do Amapá, sonho el-dorado, vingam-se covardemente nos
brasileiros, pescadores que procuram no rio Calsoene [Calçoene] abrigo
para suas canoas de pesca. É preciso que o governo brasileiro tome
providencias para garantir os brasileiros, maltratados pelos pretos de
Cayenna [Caiena] impunemente; e não vemos motivo nenhum para tanto
escrúpulo, quando ainda em 15 de Maio uma força militar francesa
massacrou a população indefesa do Amapá, saqueou-lhe as fazendas,
incendiou-lhes as casas e conduziu prisioneiros para a cadeia de Cayenna,
onde ainda sofrem todos os rigores de um governo despótico. Se o governo
brasileiro mostrar-se indiferente pela sorte de seus concidadãos residentes
no contestado, esses crioulos confiados na impunidade, levarão mais longe
os seus ataques, e talvez brevemente tenhamos de lamentar hecatombe
mais horrorosa que a de 15 de Maio.34

41Nos jornais de Belém surgiram seguidas notícias reclamando uma atitude do governo
do Pará em relação aos fatos ocorridos. O Diário de Notícias continuou reclamando
uma resposta sobre os três homens detidos em Caiena: um português com quatro filhos
abandonados à própria sorte; o professor de Amapá e seu ajudante. O jornal perguntava
pelo paradeiro, qual a situação em que se encontrariam e se pelo menos teria havido
providências do governo brasileiro exigindo sua soltura. Em julho, o jornal Província
do Pará exaltava no trecho transcrito abaixo, a heróica resistência oferecida por Cabral
na defesa de um Amapá brasileiro enquanto se ridicularizava Trajano, o « preto por
quem um oficial francês morreu ».
 35 Província do Pará, Belém, 24/07/1895.

Pois este é que é o Trajano? O célebre membro da comissão de limites


francesa? Dirá o leitor. É por este preto mal encarado, de pé descalço que a
gente do Bengali trucidou tantos brasileiros?! Parece incrível! Crédula e
iludida França! Mas é exato. Eis aí o Trajano, por quem metade da França,
por intermédio de seus jornais, geme de dor e de saudade. Mal sabe assinar
o nome, e quanto à fidelidade do croqui podemos garantir que foi
tirado d’après nature, em casa de nosso conterrâneo Cabral, à travessa da
Queimada, onde Trajano acha-se aboletado com a família... Trajano nunca
foi francês; nasceu em Curaçá, e de lá fugiu, como escravo, vai para trinta
e cinco anos. É um velhaco refinadíssimo. Depois que apanhou-se em
Counani [Cunani], fez-se homem livre e ajuntou ao nome de batismo,
conforme se vê do facsimile, o sobrenome Cypriano, ou Superiano como ele
escreve, Bentes. À força de ameaças casou-se em 1893 com uma rapariga
counaniense, de 18 anos de idade, de nome Victoria. Quem o vê falar não o
leva preso. É de uma lábia espantosa.35

Caricatura de Trajano publicada no jornal Província do Pará,  Belém,


24/07/1895.

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 36 SG. Dossiê Cabral. Carton 36 D2 (28). CAOM.

42Em oito de agosto de 1895, Cabral já estava de volta a Amapá levando seus dois
prisioneiros consigo, Trajano e Christino. Isso soou como uma ofensa para os franceses
de Caiena, cuja missão militar fora justamente a de libertar Trajano e deter Cabral, uma
missão em vão, com forte revés humano e diplomático. E agora? Estava de volta o
bandido em pele de herói nacional brasileiro com os dois prisioneiros a tiracolo como se
nada houvesse ocorrido. Para o nacionalista francês era uma clara afronta à pátria, para
a burguesia um risco aos seus empreendimentos. O Cônsul da França em Belém alertou
para o clima nada amistoso contra a França que se formara no Pará 36. Reclamava a
necessidade de solução imediata do caso antes que houvesse um novo conflito.
Defendia intransigentemente uma tomada de posição enérgica do governo francês, com
uma ação militar e policial na região do Contestado, pois lhe era inadmissível a
presença e circulação livre de um assassino de um oficial francês. Com o retorno de
Emílio Goeldi de sua viagem ao Amapá, a partir de dezembro de 1895 a impressão que
o governo paraense e a imprensa passaram a ter sobre Cabral mudou. Goeldi, um
cientista acima de qualquer suspeita, após ter passado alguns dias na vila de Amapá, não
foi nada condescendente com as atitudes do tenente e de seus capangas,
presumivelmente pistoleiros provindos em sua maioria do estado do Ceará:

 37 Exposição sumária..., op. cit. p. 103.

Os abusos, opressões, vinganças pessoais e represálias cometidas por esta


gente são sem número. A população vive debaixo de uma tirania nojenta e
percebi desde as primeiras horas sintomas sérios de descontentamento, de
oposição. Não há uma pessoa, fora do círculo da família e da roda de
Cabral, que vive satisfeita e não se queixe das duras contribuições de
guerra, que a toda hora são exigidas em forma de serviços manuais
gratuitos, expedição em canoa, rezes do campo37?

 38 Cardoso, Francinete, O poder das autoridades e representações sobre o


território Contestado Franco- (...)

43Goeldi transmitiu uma péssima imagem da roda de jagunços que circundava Cabral,
mas se omitiu na avaliação pessoal do líder. E concluiu recomendando que se
empregassem no Amapá somente as verbas estritamente necessárias, pois temia pelo
desvio desse dinheiro para os interesses pessoais do bando seguidor de Cabral, enquanto
não se definisse a arbitragem sobre o território. Em contrapartida, Goeldi fez muitos
elogios ao que chamou de governador do Cunani, José da Luz Sereja. Em Cunani,
apesar da proximidade da vila com a área de garimpagem, a população local brasileira
demonstraria um desenvolvimento econômico e « moral » não encontrado na vila de
Amapá. Segundo Francinete Cardoso, o diretor do Museu Paraense fez uma distinção
entre os interesses nacionais, em prol da grandeza da pátria, que movimentariam as
ações de Sereja no Cunani, daqueles meramente oportunistas e individualistas que
seriam os objetivos imediatos de exploração das riquezas minerais do grupo de pessoas
envolvidas com Cabral38.

Desenho de Cabral publicado no jornal Província do Pará,  Belém,


24/07/1895.
Agrandir Original (jpeg, 191k)

 39 SG Carton 6 E10 (43). CAOM.


 40 SG Carton 37 D2 (33). CAOM.

 41 SG, Carton 38 Série D2 (36). CAOM.

 42 SG Carton 37 D2 (32). Administration de la Justice 01/02/1898. CAOM.

 43 Id. ib.

44Durante todo o ano de 1896, houve uma ampla troca de correspondência entre os
adidos do Ministério dos Negócios Estrangeiros da França com a Embaixada da França
em Petrópolis e desta com o Ministério das Relações Exteriores, personalizado na figura
de Dionísio de Castro Cerqueira. Contudo, quase não se encontram correspondências
entre este ministro com o Governador do Pará. Segundo o agente sanitário francês
Georges Brousseau em missão ambígua no Calçoene (ao mesmo tempo agente de saúde
e enviado do governo francês no Contestado), foragidos do bagne de Caiena estariam
associados ao bando de Cabral. Um deles, Guilherm, um ex-oficial da Legião
Estrangeira, funcionaria como intérprete e liderança intimidadora junto à população de
fala francesa. Ainda segundo Brousseau, a vila de Cunani estaria dividida em duas
partes, uma ocupada por brasileiros e outra por franceses e mesmo durante o dia se
ouviriam disparos de fuzil39. Cabral foi visto novamente em Cunani em outubro de
1896, o que gerou protestos vindos de Paris e dirigidos à embaixada francesa no Rio de
Janeiro. Junto a José Pires, seu engenheiro de minas, Cabral teria ido com armas e
munições para construir rotas de acesso aos garimpos do Calçoene. O caso somente foi
solucionado com a intervenção do governo federal. Segundo Brousseau, em 23 de
novembro desse ano, Cabral voltou a Belém por ordem do governador e os « bandidos »
sob sua direção teriam sido « repatriados » para o Cassiporé40. Novamente, desta feita
em abril de 1897, continuavam circulando as notícias sobre as atividades do grupo de
Cabral com o recrutamento de baianos para a garimpagem do ouro no alto Cassiporé: 60
homens num primeiro momento e 180 homens ainda por vir. O cônsul francês em
Belém interpelou o governo do estado do Pará para uma atitude enérgica contra Cabral,
pedido ao que parece ter sido em vão41. Em fevereiro de 1898, um novo caso de
polícia agitou a Administração da Justiça em Caiena. O comissário Cazenave relatou o
roubo de cinco bois praticado pelo que seria o comandante brasileiro oficial do
Calçoene, Sr. Vasconcellos. O assunto foi levado para a embaixada francesa em
Petrópolis que o comunicou ao governo brasileiro. A resposta imediata dada pelas
autoridades merece destaque pelo seu teor, novamente de caráter racista e
preconceituoso: « O governo brasileiro informa que o Sr. Vasconcellos não passa de um
aventureiro sem título, nem mandato, um NEGRO – provavelmente, que se intitula
governador ou prefeito como Cabral já disse ser42. » Contudo, o fato é que se
encontrava em curso em Calçoene a organização de um governo brasileiro pelo
Secretário de Estado do Pará, Leão Salles, atribuindo a Vasconcellos autoridade de
prefeito com o concurso de quatro franceses que seriam adeptos da causa brasileira.
Esse grupo faria propaganda ativa para atrair os créoles da Martinica e de Guadalupe a
pedir a proteção das autoridades do Brasil. A prova maior dessa incursão estatal teria
sido a instalação de uma alfândega brasileira em Calçoene para os pagamentos dos
direitos de entrada43.

45Enquanto isso, Paris e Rio de Janeiro faziam os preparativos necessários para a


criação de uma comissão mista de gerenciamento do território enquanto não fosse
instalado um tribunal arbitral neutro para a solução definitiva do litígio. Na perspectiva
das capitais, do governo central, os conflitos regionais eram minimizados como disputas
locais de aventureiros insanos e bandidos armados, evitando assim, que pequenas rusgas
nas disputas pelo poder local provocassem outro incidente de porte que obrigasse a uma
intervenção armada. Brasil e França, enquanto nações amigas jogaram uma política
imperialista que se resolveu através de um entrevero diplomático; a guerra não fez parte
do repertório conflitante de nações de longa tradição em termos de troca intelectual, ou,
melhor seria dizer, de influência intelectual francesa sobre a elite brasileira.

46Porém, lá onde o território estava em jogo, onde o governo central encontrava-se


distante, potentados locais faziam sua articulação entre a milícia paramilitar armada e a
conivência dos governos locais: seja o do estado do Pará como o da colônia de Caiena.
O interesse do Estado, nesse caso, correspondeu aos interesses dos governantes
regionais que melhor articularam um auxílio público junto às populações nativas no
sentido de oferecer-lhes serviços e difundir a língua pátria numa terra cujo sentido da
palavra pátria era quase inexistente. E nessa relação com os habitantes já estabelecidos,
e não com os temporários, foi o estado brasileiro através das ações do governo paraense
que se fez mais presente, garantindo vantagens na arbitragem internacional que ainda
estaria por vir no ano de 1900.

Considerações finais
47Duas diferentes questões nos parecem cruciais para elucidar o clímax dos eventos
ocorridos. A primeira, fundamental, diz respeito às diferentes estratégias adotadas por
ambos os países, Brasil e França, e por suas respectivas burguesias em relação às
práticas imperialistas do século XIX, fator desencadeador dos conflitos. A burguesia
francesa, empreendedora, usou de capitais disponíveis em seu país e em outros,
abundantes principalmente na Inglaterra, para dar curso à estratégia de expansão
capitalista em áreas fora do controle político dos modernos estados nacionais. O
território contestado, com recursos minerais riquíssimos, sem dono nem lei, permanecia,
em tese, abandonado ao lado de uma colônia francesa já existente, atendendo facilmente
os objetivos burgueses do laissez faire.

 44 Usamos aqui o nome Octavie, conforme o estudo feito pelo biógrafo de


Henri Coudreau: Benoit, Sébast (...)

 45 « Le Conflit de Mapa », Le Brésil, Paris, junho de 1895. Semanário


publicado desde 1880; nessa ediç (...)

48Isso se mostra visível quando, por exemplo, Octavie Coudreau 44 veio a público
denunciar o rapto de seu funcionário e declarou indignada: « Quem sabe nós retornemos
aos heróicos tempos da conquista da América e da descoberta de minas de ouro: alguém
descobre uma mina de ouro e o primeiro delinqüente aparece a sua frente à mão armada
e te mata45. » O que o empreendedor moderno queria era um ambiente onde ele tivesse
legalmente garantidos seus direitos de livre comércio, de livre empresa, sem a
intervenção do Estado, a não ser, evidentemente, para fazer valer a lei, ou melhor, a
garantia da segurança de seus negócios. Portanto, no modelo em que o capitalismo dos
países economicamente mais desenvolvidos se organizou, em torno da questão jurídica,
da regulação normativa em todas as instâncias da vida social, que por coincidência são
permeadas pelas relações de capital/trabalho, o direito torna-se o instrumento
fundamental para o desenvolvimento das forças produtivas. E era esta a grita francesa:
pela convenção de 1862, nós temos o direito de circular; pelas leis do mercado, nós
temos o direito de empreender; pelas leis da França, nos temos o direito da assistência
do Estado à nossa livre iniciativa.

 46 Foucault, Michel, op. cit.

49E que resultado pode ocorrer quando esse tipo de mentalidade encontra uma
população cuja forma de existência não está regulada pelo modelo que Michel Foucault
definiu como sendo o da biopolítica46; uma população cujo poder econômico para
empreender encontra-se ainda bastante limitado, e que, simultaneamente, está submetida
à tutela de um estado nacional independente como o brasileiro cuja governabilidade não
se caracteriza pelo uso normativo da lei como instrumento regulador das relações
sociais, a não ser para aquela pequena parcela da população socialmente incorporada à
dimensão maior daquilo que se chama cidadania? Um conflito de interesses locais que,
mascaradamente, logo se transformam em interesses nacionais. Na impossibilidade da
população brasileira (neste caso os moradores locais do Amapá e das áreas vizinhas do
Pará) competir com os franceses numa corrida capitalista pelo ouro, ela defendeu a
única coisa que para ela valia a pena lutar: a sua terra. Ou, pelo menos, a posse sobre
ela, porque nem ao menos a propriedade, juridicamente falando, ela detinha. Mesmo
porque, a questão da propriedade em um estado aristocrático como o brasileiro era algo
que nem podia nem devia ser motivo de reclamo de seus súditos.

 47 Decreto 164 de janeiro de 1890, reproduzido no «Boletim da Sociedade


Central de Imigração», Imigraç (...)

50Num dos primeiros decretos republicanos lê-se: « deve ser empenho do governo da
República [...] a exploração de seus produtos naturais e proletariado agrícola nacional,
em sua maioria sem meios de empregar, [...] a atividade com que tem até aqui provido a
fortuna pública e a riqueza do Estado47 ». O povo não é cidadão, é peão. Por isso
aparecerá uma clivagem clara entre o discurso falando sobre a liberdade de circulação
presente na burguesia francesa empreendedora da mineração, e o discurso dos que
chegaram antes, do direito de pedágio pelo acesso cobrado por um povo que se
estabeleceu na única terra onde o seu país de nascimento não o enxotou, justamente por
ser uma terra sem Estado. E agora, chegavam esses estrangeiros causando confusão?

 48 Moraes, Antonio Carlos Robert de, Território e História no Brasil, São


Paulo, Hucitec, 2002, p. 88.

 49 Idem, p. 91.

51E os estados nacionais como se comportaram ante essa disputa? A metrópole


francesa, preocupada com seu grande avanço colonial na África, mais lucrativo e mais
próximo, procurou fazer de conta que nada tinha a ver com a história das brigas no
Contestado e do ato de guerra em Amapá, sendo essas atitudes isoladas do governo
colonial e de burgueses arrivistas. Já o estado brasileiro continuou adotando uma velha
estratégia imperialista que remonta ao período da América portuguesa. Trata-se de uma
forma de conquista territorial que de fato não é uma conquista na expressão de uma
dominação efetiva sobre o lugar e sobre seus habitantes como o termo conquista enseja.
É uma forma de expansão territorial, mas, também não pode ser confundida com a
expansão do imperialismo capitalista do século XIX, pois este tinha um claro sentido de
exploração comercial do território conquistado. Com o Brasil não foi bem assim. O
sentido da conquista, dada a pequena capacidade de gestão administrativa do estado
sobre um território tão vasto somada ao pequeno contingente populacional « civilizado
» e à debilidade da burguesia empreendedora nacional, da conquista do território
brasileiro e de seus imensos sertões se reveste na criação de « estoque de espaços de
apropriação futura, os lugares de realização da expansão da colônia ». As áreas de
estoque, ou de reserva, foram definidas por Antonio Carlos Robert de Moraes como
sendo os « fundos territoriais48 ». E essa característica da expansão colonial portuguesa
continuou repetindo-se pelo vasto território brasileiro após a independência, seja
durante o Império seja com a chegada da República. A estratégia seguiu semelhante.
Avança-se em direção aos sertões, primeiro o oeste próximo, depois o centro-oeste, a
fronteira amazônica, enfim, os últimos rincões da Amazônia. A marcha para o oeste, na
apologética obra de Cassiano Ricardo, ao contrário da conquista do faroeste norte-
americano, dos colonizadores com suas carroças enfileiradas levando a civilização
puritana para ser radicada nas terras ignotas dos índios, é apenas uma marcha, cujo
alcance é bastante passageiro, não traz consigo o desejo da erradicação permanente. A
formação histórica brasileira legitimada pelo discurso oficial da historiografia
inauguradora da grandeza da pátria no século XIX foi basicamente geográfica. Definiu-
se pela ampliação e apropriação contínua do espaço. A ação do estado brasileiro, desde
a independência, teve como « tarefa fundamental a defesa da soberania sobre os fundos
territoriais de seu espaço e por meta sua ocupação49 ».

52É com base nessa característica específica do imperialismo brasileiro que deve ser
vista a diferença de atitude do estado nacional na área em litígio. O governo do Pará, no
limite de suas possibilidades, financiou e incentivou a ocupação do território, que,
ambiguamente, nem foi o palco de uma colonização permanente, nem se prestou a uma
empresa econômica de exploração de seus recursos naturais, característica principal do
interesse burguês europeu na região. É assim que deve ser percebido o mito criado em
torno de Cabral. Exaltado como herói nacional pelos paraenses de Belém, simbolizava o
retorno do velho bandeirante destemido com sua espingarda e seus capangas caboclos
avançando pelo território, enfrentando índios, créoles e franceses. O bando armado de
Cabral cumpriu uma dupla missão. Na impossibilidade do Estado fazer valer
militarmente sua soberania num território em conflito, seja por uma questão
diplomática, seja porque a França era uma nação muito mais bem armada, Cabral agiu
como se fosse o guerrilheiro defensor dos legítimos interesses pátrios ameaçados pela
potência estrangeira, por isso visto como caudilho pelos vizinhos do norte. Por outro
lado, ao se apresentar como o único aventureiro brasileiro capaz de ingressar na área do
Contestado para empreender economicamente sem ter que se associar a uma companhia
mineradora estrangeira, Cabral protagonizou o recorrente caráter individualista da
aventura expansionista brasileira, caráter esse criticado pelo disciplinado suíço Emílio
Goeldi.

53Propaga-se então um imaginário heróico que cumpre a função de mascarar o próprio


fracasso. O Brasil pode não ter tido um capitalismo desenvolvido como o da França,
pode não ter tido uma burguesia empreendedora como as francesas e inglesas, mas, pelo
menos, teve bravos e corajosos homens que não se deixaram abater ante o desafio. E
esse corolário da bravura do brasileiro, desde outrora, persiste e sempre vem à tona
como forma de propaganda em todos os períodos de crise nacionais: « sou brasileiro e
não desisto nunca », « essa gente é de uma raça », « somos um povo de valor », etc., um
discurso de valorização do caráter de um povo, sempre surgindo em situações ou épocas
muito específicas, que nos faz questionar a quem de fato possa se prestar essa
propaganda. De qualquer forma, se esses valores notáveis da bravura seriam
rapidamente abraçados por um Nietzsche, infelizmente, eles se tornaram incompatíveis
com o pragmatismo requerido pelo mundo burguês em transformação desde fins do
XIX; um mundo que exigia menos valentia e emoção e mais cálculo e precisão de seus
cidadãos. Cabral projeta assim, um ideário patriótico, artificial, mas necessário nesses
momentos de exasperação das contendas. Apelar para uma hipotética defesa de seu
território e de suas gentes restou como única estratégia possível a uma nação ainda
incapaz de disputar comercialmente, na forma da moderna empresa capitalista, uma
fatia desse mercado nascente. Apesar de um tanto quanto anacrônica, essa aposta na
valentia de alguns poucos indivíduos, mostrou-se acertada durante a arbitragem
internacional de cinco anos mais tarde.

54Para encerrar o entendimento sobre os desdobramentos do conflito do Amapá, a


segunda questão apontada refere-se ao modo como esse trágico clímax foi tratado, como
seus efeitos foram diminuindo e como seus atores principais foram sendo expurgados.
Nas cartas, discursos e relatos vindos de Caiena, os termos usados para definir os
brasileiros responsáveis pelos acontecimentos foram os de: bandidos, malfeitores,
delinqüentes, marginais; e foi assim que foram tratados oficialmente pelos franceses.
Todos aqueles que foram presos e levados a Caiena, foram processados segundo as
acusações criminais e assim os jornais, os trataram, pelo « crime » de formação de
quadrilha, não por outro motivo. Novamente, o enfoque francês para a análise punitiva
de indivíduos agindo no Contestado foi o fato de eles estarem agindo de acordo ou em
desacordo com a lei. A perspectiva do Direito era a perspectiva do estado francês, da
regulação normativa sobre a vida, do modo moderno de se viver em sociedade. Isto não
significa dizer que o estado de Direito e o cumprimento da lei seja uma garantia de
justiça, geralmente ocorre o contrário. A lei é imposta de modo arbitrário e, em regra
atende a perpetuação dos interesses da burocracia do Estado ou, no caso das relações
trabalhistas, promove o interesse do Capital. Além disso, nas colônias, a possibilidade
de se burlar a lei criada na e para a metrópole, também é muito maior. Mas, do ponto de
vista legal, a questão central para a França, na distensão do conflito no Amapá era a de
poder julgar seus prisioneiros e a de não aceitar terminantemente a presença de
marginais, no sentido de viverem às margens do direito, dos não seguidores da lei,
infelizmente da lei que na ausência da soberania francesa não podia ser aplicada.

55Já, no caso brasileiro, seja nos artigos em jornais, nas charges, nas reclamações
diplomáticas, ou, mais ainda, nas análises feitas pelos primeiros historiadores, o
problema colocado partiu de um discurso com forte conteúdo racista. A pequena
burguesia caienense que intermediava, via política, os negócios da mineração, e a
grande maioria da população mineradora era composta de negros e créoles. Os capitães
das vilas que seguiam o interesse francês eram negros ou pretos. A população favorável
à França era constituída de mocambistas (escravos fujões). O primeiro garimpeiro a
ficar milionário, Clément Tamba, um negro ignorante. E até o governador Camille
Charvein era o protótipo do homem que na linguagem popular é chamado de « crioulo
doido ». Como é possível então que sejam esses « pretos » a estarem a tomar conta do
Amapá e enriquecer com o ouro de seu subsolo? E os brasileiros, os seus antigos donos
e senhores? Poderiam consentir com uma afronta como essa? A questão racial no
Contestado, até agora, não foi trabalhada pela historiografia. Os bodes expiatórios do
massacre de Amapá acabaram sendo todos eles negros. Charvein foi deposto de seu
cargo, Trajano nunca mais voltou ao Cunani. E o governo francês, sob o olhar da
imprensa e do governo brasileiro no Pará, como ficou? Pelos ditos, a poderosa e
invejada França, nem sabia ao certo o que estava acontecendo, ela se tornara, para a
imprensa paraense da época, apenas um joguete nas mãos de alguns poucos crioulos.

 50 Para um aprofundamento da questão de limites entre o Brasil e a França


na fronteira da Guiana, suge (...)

56Assim, com os brancos governantes de países civilizados retomando a condução do


poder, o derramamento de sangue não mais continuou. O Brasil desfez o exército no
Amapá e a França parou de apoiar negros insensatos como lideranças regionais. « Pretos
», « negros » e « crioulos » foram tidos como os culpados pelos « desconcertos ». Uma
Comissão Mista de Limites foi criada para solucionar de forma definitiva a contenda. A
disputa da área litigiosa iria agora para o campo diplomático numa batalha judicial a ser
travada no tribunal internacional de Berna. A objetividade científica do geógrafo Vidal
de La Blache contra a conversa hábil do gênio de Rio Branco. Diplomata astuto e
flexível, mestre em retórica, já ganhara uma causa anterior contra a Argentina. O Barão
pesquisou o assunto durante dois anos, montou seus argumentos, juntou os livros de
Joaquim Caetano e entregou tudo aos juízes. No Tribunal fugiu do caminho que levava
à geografia da região, terreno ardiloso para se enfrentar La Blache, ingressando no
mérito do povoamento anterior feito pelos portugueses, suas missões jesuíticas e
explorações militares. Percorreu o caminho das gentes da terra que o francês
desconhecia. O mediador suíço, Presidente Hauser, após ouvir os argumentos do Barão,
considerou aquelas terras mais brasileiras do que francesas e deu parecer favorável ao
Brasil.50

57Assim, finalmente o Brasil pode estabelecer sua jurisdição legal do Oiapoque ao Chuí
e fazer valer a pena o tempo perdido na briga. Desde dezembro de 1900 a fronteira
franco-brasileira passou a ter como divisor o curso do rio Oiapoque. Na prática, porém,
não mudou muita coisa e durante as duas primeiras décadas do século XX, foi
o patois francês falado pelos crioulos da Guiana, a língua mais utilizada pelas
populações habitantes daquelas selvas, desde os montes Tumucumaque até o cabo
Orange.

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Notes

1 Em relação à toponímia utiliza-se o seguinte critério: a) no texto do artigo escrito diretamente
pelo autor os nomes são grafados de acordo com a língua portuguesa atual, por exemplo,
Calçoene; b) nos documentos de época em língua portuguesa manteve-se a grafia original,
exemplo, Calsoene; c) nos documentos de época em língua francesa transcritos para o
português, manteve-se a grafia original em francês, Carswene. Para facilitar o leitor colocamos
o nome atual entre colchetes após o nome original. A pesquisa no Centre des Archives D’Outre-
Mer foi realizada como estágio de pósdoutorado financiado pela CAPES. A pesquisa inicial
sobre o tema foi concluída na tese de doutorado em História Cultural: Romani,
Carlo, Clevelândia – Oiapoque. Aqui começa o Brasil! Trânsitos e confinamentos na fronteira
com a Guiana Francesa (1900-1927), IFCH/UNICAMP, Universidade Estadual de Campinas,
2003.

2 « Além da zona encachoeirada do Calçoene, trinta e cinco quilômetros, ou “vinte dias de
jornada”, a oeste de “Grand Dégrad”, em um igarapé que corria à margem de uma montanha
(batizada de monte Esperança). Os dois exploradores, bateando no pequeno curso fluvial, viram
na baeta algumas pintas de ouro (la couleur). Prosseguindo nas buscas, os dois atingiram outro
igarapé onde bateias de 10 a 150 gramas de ouro foram obtidas ». Narrativa encontrada em
Vieira Jr., Antônio Rodrigues, Ouro no Amapá, Rio de Janeiro, 1934, p. 6. Reproduzida
também por Meira, Silvio, Fronteiras setentrionais, Belo Horizonte, Itatiaia, 1989.

3 Conference du 26 mars 1899 par M. Georges Brousseau. Bulletin de la Société de Géographie


de Lyon et de la région lyonnaise. Tome quinzième. Lyon, 1898.

4 Brousseau, Georges, Les richesses de la Guyane Française, Paris, Société D’Éditions


Scientifiques, 1901, p. 194. Computando-se somente os registros oficiais, passaram por Caiena
2.500 kg de ouro em 1894, 1921 kg em 1895, 1831 kg em 1896 e 1015 kg em 1897, ano em que
começa o refluxo da extração.

5 Ofício de 01/12/1894, de Caiena. Carton 46 E10 (37). Centre des Archives D’OutreMer,
CAOM.

6 Buarque, Manoel, O Amapá, Belém, Papelaria Suisso, 1925, p. 35. Plateau era o nome com se
designava a área interior em cota mais elevada, passando os primeiros saltos encachoeirados dos
rios.

7 Ofício reservado de Emilio Goeldi ao Ministro Carlos de Carvalho, 21/11/1895. Arquivo


Histórico do Itamaraty, AHI, Fundo: Documentação Rio Branco, Parte III, Códice 340 – 2 – 13.
Gomes, Flávio, e outros (org.), Relatos de Fronteiras, Belém, UFPA/NAEA, 1999, p. 99-100.

8 Id., p. 98.

9 « A América para os americanos », A República, Belém, 15/07/1894.

10 Carta de 28/09/1894. SG Carton 46 E10 (37). CAOM.

11 Ofício de 12/12/1894. SG Carton 36 D2 (28). CAOM.

12 Foucault, Michel, Naissance de la biopolitique, Paris, Seuil, 2004.

13 Strobel, Michele-Baj, Les gens de l’or, Petit-Bourge, Guadalupe, Ibis Rouge, 1998.

14 Carta de 28/09/1894, SG Carton 37 E10 (41), CAOM.

15 Ofício de 27/03/1895, SG Carton 37 E10 (41), CAOM.

16 Ofícios de 14/03/1895 e de 27/03/1895, SG Carton 37 E10 (41), CAOM.

17 Cópia de manuscritos atualmente indisponíveis do Instituto Geográfico e Histórico do Pará,


IGHP, in Reis, Arthur, Território do Amapá, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1949, p. 137-
41. Bm.s seriam os batalhões militares nos quais estaria dividida a Infantaria. O Decreto tinha
muito mais um caráter simbólico de afirmação da autoridade de Cabral no Amapá e de
intimidação aos garimpeiros e ao governo da Guiana Francesa do que capacidade de
efetivamente instituir na prática o que decretava.

18 Carta de M. Casey de 08/04/1895 ao Presidente do Conselho Geral da Guiana Francesa. SG


Carton 37 E10 (41). CAOM.

19 Reis, A. op. cit., p. 98-102.

20 Tribunal de 1è Instance de Cayenne année 1895, parquet 369, cabinet de instructions 40.
Carton 37 Dossier D2 (31). CAOM.

21 « Cunany foi a princípio simples mocambo de escravos fugidos, a maior parte da região de
Salgado: alguns anos antes da abolição da escravatura no Brasil, por lá aparece Mr. Chaton, e
por conta própria dá liberdade a todos os escravos e a todos promete a proteção da França;
funda com eles a povoação de Cunany [Cunani], estabelece o comércio e fornece mesmo a
alguns, dinheiro para esse fim ». Carta-ofício de Egídio Leão de Sales ao Governador do Estado
do Pará, 31/12/1900, in Reis, A. op. cit.

22 Ver: Gomes, Flávio, A Hidra e os pântanos, São Paulo, Companhia das Letras, 2007 e
Bezerra Neto, José Maia, Fugindo sempre fugindo, Dissertação de Mestrado em História.
Social, FFLCH/USP, 2000.

23 Exposição sumária da viagem de Emilio Goeldi realizada para o Museu Paraense de História
Natural e Etnografia ao Território Contestado Franco-Brasileiro. AHI – Fundo: Documentação
Rio Branco – parte III, códice 340 – 2 13, in F. Gomes e outros (org.), op. cit., p. 99-100.

24 « Lugar nenhum », Arnaldo Antunes/Charles Gavin/Marcelo Fromer/ Sérgio Britto/ Toni
Belloto, Titãs Vol. 2, Warner Music Brasil, 1998.

25 Carta de 10/05/1895. SG Carton 36 D2 (28). CAOM. « Mapa » era o modo como o atual
Amapá era escrito em francês no século XIX.

26 Dégrad era o nome usado em língua créole para designar os atracadouros fluviais, lugares de


encontro e residência, geralmente antes dos saltos encachoeirados, obstáculos naturais nos rios
do Amapá, que elevam o nível dos rios até cotas mais altas, o plateau, onde ficava localizada a
área de exploração aurífera. Definição encontrada em Strobel, Michèle-Baj, op. cit., p. 385.

27 Interrogatório e prisão de Daniel. Operações da gendarmerie no Calçoene 19/05/1895. SG


Carton 37 D2 (32). CAOM.

28 Tribunal de 1è Instance de Caiena, ano 1895. parquet 369, cabinet de instructions 40. Carton
37 Dossiê D2 (31). CAOM.

29 Ver o caso do anarquista Eugéne Dieudonné, da banda Bonnot, que evadiu da prisão na
Guiana e refugiou-se no Brasil. Dieudonné, Eugene, La vie des forçats, Paris, Gallimard, 1932.

30 Relatório do Comandante das Tropas na Guiana Francesa. Dossiê Cabral. SG Carton 36 D2


(28). CAOM.
31 Tribunal de 1è Instance de Caiena ano 1895, parquet 369, cabinet de instructions 40. Carton
37 Dossiê D2 (31). CAOM.

32 Diário de Notícias, Belém, 27/05/1895.

33 Província do Pará, Belém, 20/07/1895.

34 Diário de Notícias, Belém, 03/08/1895.

35 Província do Pará, Belém, 24/07/1895.

36 SG. Dossiê Cabral. Carton 36 D2 (28). CAOM.

37 Exposição sumária..., op. cit. p. 103.

38 Cardoso, Francinete, O poder das autoridades e representações sobre o território Contestado


Franco-Brasileiro, p. 298-9, in Mauro Coelho e outros (org.), Meandros da História, Belém,
UNAMAZ, 2005.

39 SG Carton 6 E10 (43). CAOM.

40 SG Carton 37 D2 (33). CAOM.

41 SG, Carton 38 Série D2 (36). CAOM.

42 SG Carton 37 D2 (32). Administration de la Justice 01/02/1898. CAOM.

43 Id. ib.

44 Usamos aqui o nome Octavie, conforme o estudo feito pelo biógrafo de Henri Coudreau:
Benoit, Sébastien, Henri Anatole Coudreau (1859-1899). Dernier explorateur français en
Amazonie, Paris, L’Harmattan, 2000. Na maioria dos livros, artigos e inclusive textos de jornal
encontra-se a grafia do nome como sendo Othile, ou Otile, contudo, optamos por fazer esta
atualização da naturalista e exploradora francesa com base na ampla pesquisa realizada pelo
historiador do IHEAL/Paris III.

45 « Le Conflit de Mapa », Le Brésil, Paris, junho de 1895. Semanário publicado desde 1880;
nessa edição reproduz uma notícia extraída do Diário de Notícias, de Belém.

46 Foucault, Michel, op. cit.

47 Decreto 164 de janeiro de 1890, reproduzido no «Boletim da Sociedade Central de


Imigração», Imigração n º. 74, Rio de Janeiro, dezembro, 1890.
48 Moraes, Antonio Carlos Robert de, Território e História no Brasil, São Paulo, Hucitec,
2002, p. 88.

49 Idem, p. 91.

50 Para um aprofundamento da questão de limites entre o Brasil e a França na fronteira da


Guiana, sugerimos consultar, entre outras, as seguintes obras: Rio Branco, Barão do, Questões
de limites. Guiana Francesa. 1 ª. Memória, Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exteriores,
1945; Rio Branco, Barão do, Frontiéres entre le Brésil et la Guyane Française. 5
Volumes, Paris, Imprimerie Lahure, 1899; Caetano Da Silva, Joaquim, L’Oiapoc et
l’Amazone, Paris, Hachette, 1861; Almeida, Tito de, "Limites do Brasil com a Guiana
Francesa", Revista Amazônica, Belém, 1884; Brousseau, op. cit.; Viana Filho, Luís, A vida do
Barão do Rio Branco, Rio de Janeiro, José Olympio, 1988; Viana, Hélio, História das
fronteiras do Brasil, Rio de Janeiro, Biblioteca Militar, 1948; Vidal De La Blache, Paul, La
rivière Vincent Pinzon. Étude sur la Cartographie de la Guyane. Paris, Félix Alcan, 1902.
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Table des illustrations

Titre Fotografia de Fernand Sursin (engenheiro explorador).

Légend Rapport succint sur le Contesté Franco-Brésilien, 1887-1900. SG


e Carton 38 D2 (41), CAOM.

URL http://journals.openedition.org/caravelle/docannexe/image/7302/i
mg-1.jpg

Fichier image/jpeg, 158k

Titre M. Herard. Croqui da vila de Amapá, 15/05/1895.

Légend SG DFC Supplément Guyane. CAOM. Tradução da legenda no


e desenho: Escala de 0:001 para 2 metros
URL http://journals.openedition.org/caravelle/docannexe/image/7302/i
mg-2.jpg

Fichier image/jpeg, 273k

Titre Caricatura de Trajano publicada no jornal Província do Pará,  Belém,


24/07/1895.

URL http://journals.openedition.org/caravelle/docannexe/image/7302/i
mg-3.jpg

Fichier image/jpeg, 217k

Titre Desenho de Cabral publicado no jornal Província do Pará,  Belém,


24/07/1895.

URL http://journals.openedition.org/caravelle/docannexe/image/7302/i
mg-4.jpg

Fichier image/jpeg, 191k

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Pour citer cet article

Référence papier
Carlo Romani, « O « Massacre de Amapá »: a guerra imperialista que não houve  », Caravelle,
95 | 2010, 85-118.

Référence électronique
Carlo Romani, « O « Massacre de Amapá »: a guerra imperialista que não houve
», Caravelle [En ligne], 95 | 2010, mis en ligne le 01 décembre 2010, consulté le 22 novembre
2021. URL : http://journals.openedition.org/caravelle/7302 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/caravelle.7302
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Auteur

Carlo Romani
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO

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Droits d’auteur

Caravelle – Cahiers du monde hispanique et luso-brésilien est mis à disposition selon les termes
de la licence Creative Commons Attribution - Pas d'Utilisation Commerciale - Pas de
Modification 4.0 International.
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Index
 Auteurs

 Mots-clés

 Langues

Numéros en texte intégral


 116 | 2021
La bande dessinée argentine : un espace d’engagement politique ?

 115 | 2020
L'Amérique latine face à la transition énergétique

 114 | 2020
Paraguay : une cartographie entre oubli et mémoire

 113 | 2019
Narcotrafic et productions culturelles mexicaines ; Les marchés de la littérature du XXIe siècle

 112 | 2019
Justice et infra-justice dans le Mexique indépendant

 111 | 2018
La mine hier et aujourd'hui en Amérique latine

 110 | 2018
Bêtes et plantes en Amérique latine

 109 | 2017
Canne à sucre en Caraïbe

 108 | 2017
Croire aujourd’hui en Amérique latine

 107 | 2016
Indiens, Noirs et marrons dans le Brésil septentrional : XVIIe-XIXe siècle
 106 | 2016
Construire l’État, moderniser le pays : Pérou (1821-1930)

 105 | 2015
Cuba, cultures contemporaines

 104 | 2015
Amérique latine : mémoires et histoires nationales

 103 | 2014
La Bolivie contemporaine et ses représentations

 102 | 2014
Citoyenneté et formes de violence

 101 | 2013
Sociabilités d'Amérique latine

 100 | 2013
Regards sur 50 ans de latino-américanisme

 99 | 2012
Le Brésil caipira. Une culture, ses représentations

 98 | 2012
Icônes d’Amérique latine

 97 | 2011
La Révolution mexicaine et ses représentations

 96 | 2011
Les Amazonies : unité et diversité

 95 | 2010
Mélanges

 94 | 2010
Les indépendances en Amérique latine

 93 | 2009
Hommage à Jacques Gilard

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