Você está na página 1de 5

Maior perigo não é o vírus: é ódio, ganância

e ignorância"
Anna Carthaus av
26/04/202026 de abril de 2020
Em entrevista à DW, historiador israelense Yuval Noah Harari afirma que
resposta à crise do coronavírus deve ser mais solidariedade. E o mundo
aprendeu a confiar mais na ciência.
https://www.dw.com/pt-br/yuval-noah-harari-maior-perigo-n%C3%A3o-%C3%A9-o-v
%C3%ADrus-mas-%C3%B3dio-gan%C3%A2ncia-e-ignor%C3%A2ncia/a-53232884
AN ÚN CI O
Num século que prima pela quase ausência de pensadores como figuras
públicas, há alguns anos um historiador israelense se destaca tanto nos
círculos intelectuais como nas listas mundiais de best-sellers: Yuval Noah
Harari, de 44 anos, é o autor aclamado de Sapiens: Uma breve história da
humanidade, Homo Deus: Uma breve história do amanhã e 21 lições para o
século 21, lançados a partir de 2014.

Um de seus interesses centrais é como o homo sapiens, tão distinto das


demais espécies animais, alcançou sua condição atual, e qual seu futuro. A
história tem uma direção? Há justiça nela? Qual sua relação com a biologia?
Os seres humanos se tornaram mais felizes com o desenrolar da história? 
Essas são algumas das questões macro-históricas de que se ocupa Harari em
sua obra.

Celebridade global também graças a suas palestras online, Harari mora com o
cônjuge e agente Itzik Yahav em Jerusalém, e tem também se destacado por
adotar posições políticas na contramão do status quo. Sua companhia de
impacto social Sapienship doou 1 milhão de dólares à Organização Mundial da
Saúde (OMS) em seguida à decisão do presidente Donald Trump de retirar o
financiamento dos EUA.

A DW o entrevistou sobre a situação da humanidade em meio às mudanças


sociais e políticas em andamento, na esteira da pandemia de covid-19. O
historiador acredita que seus futuros colegas verão no atual momento um ponto
de mutação na história do século 21, embora "a forma que dermos a ele
dependerá de nossas decisões, não é inevitável".

"Mas para tal, temos que tomar consciência do perigo e tomar cuidado com o
que permitimos nesta emergência."

DW: Estamos em plena pandemia global. O que o preocupa mais, na


forma como o mundo está mudando?

Yuval Noah Harari: Acho que o maior perigo não é o vírus em si. A
humanidade tem todo o conhecimento e as ferramentas tecnológicas para
vencê-lo. O problema realmente grande são nossos demônios interiores, nosso
próprio ódio, ganância e ignorância. Temo que não se esteja reagindo a esta
crise com solidariedade global, mas com ódio, colocando a culpa em outros
países, em minorias étnicas e religiosas.

Mas espero que consigamos desenvolver nossa compaixão, e não nosso ódio,
e reagir com solidariedade global, desenvolvendo nossa generosidade de
ajudar os necessitados. E que desenvolvamos nossa capacidade de discernir a
verdade, em vez de acreditar em todas essas teorias da conspiração. Se
fizermos isso, não tenho dúvida que conseguiremos superar facilmente a crise.

Estamos encarando, como o senhor já disse, a opção entre a vigilância


totalitária e a potencialização da cidadania. Se não tomarmos cuidado, a
pandemia pode ser um marco na história da vigilância pública. Mas como
ser cuidadoso com algo que está fora do nosso controle?

Não está completamente fora de seu controle, pelo menos numa democracia.
Você vota em determinados políticos e partidos, que determinam as políticas,
portanto tem algum controle sobre o sistema político. Mesmo que não haja
eleições agora, os políticos ainda reagem à pressão pública.

Se o público está aterrorizado e quer que um líder forte assuma, isso torna
muito mais fácil um ditador fazer exatamente isso: assumir o poder. Se, ao
contrário, houver reação do público quando um político for longe demais,
podemos evitar que os desdobramentos mais perigosos aconteçam.

Como saber em quem confiar, ou em quê?

Primeiro, há a experiência. Se há políticos que têm mentido para você nos


últimos anos, há menos razões para confiar neles nesta emergência. Em
segundo lugar, você pode fazer perguntas sobre as teorias que estão lhe
contando: se alguém vem com uma teoria da conspiração sobre a origem e o
alastramento do coronavírus, peça-lhe para explicar o que é um vírus e como
causa doenças.

Se a pessoa não tem a menor ideia, quer dizer que não dispõe de
conhecimento científico básico, portanto não acredite em mais nada do que ela
está lhe contando sobre a pandemia. Não se precisa de um PhD em biologia,
mas se precisa de alguma compreensão científica básica de todas essas
coisas.

Nos últimos anos, temos visto diversos políticos populistas atacarem a ciência,
dizerem que os cientistas são uma elite remota, desconectada do povo; que
coisas como a mudança climática não passam de uma farsa, que não se deve
acreditar nelas. Mas neste momento de crise por todo o mundo, vemos que as
pessoas confiam mais na ciência do que em qualquer outra coisa.

Espero que lembremos disso, não só durante esta crise, mas também quando
ela tiver passado; que cuidemos para dar uma boa educação científica nas
escolas sobre o que são os vírus e a teoria da evolução. E também que,
quando cientistas nos alertam sobre outras coisas, além de epidemias – como
mudança climática e colapso ambiental – ouçamos as advertências deles com
a mesma seriedade que temos agora com o que dizem sobre a pandemia do
coronavírus.

Muitos países estão implementando mecanismos de vigilância digital para


evitar o alastramento do vírus. Como se pode controlar esses
mecanismos?

Sempre que se intensifica a vigilância dos cidadãos, isso deve vir de mãos
dadas com uma maior vigilância do governo. Nesta crise, os governos estão
gastando dinheiro como água: nos Estados Unidos, 2 trilhões de dólares, na
Alemanha, centenas de bilhões de euros, e assim por diante. Como cidadão,
quero saber quem está tomando as decisões e para onde o dinheiro vai. Ele
está sendo usado para resgatar grandes corporações que já estavam em
apuros antes mesmo da pandemia, por causa das más decisões de sua chefia?
Ou ele está sendo usado para ajudar pequenas empresas, restaurantes, lojas e
similares?

Se um governo está tão ávido de ter mais vigilância, esta deve ir nas duas
direções. E se ele diz "hei, isso é complicado demais, não podemos
simplesmente abrir todas as transações financeiras", você diz: "Não é, não. Do
mesmo modo que você pode criar um gigantesco sistema de vigilância para ver
aonde eu vou a cada dia, deveria ser fácil criar um sistema que mostre o que
você está fazendo com o dinheiro dos impostos."

Isso funciona distribuindo o poder, e não deixando que ele se concentre


em uma pessoa ou autoridade?

Exatamente. Uma ideia com que se está experimentando é alertar quem esteve
perto de um paciente do coronavírus. Há duas maneiras de fazer isso: um é ter
uma autoridade central que coleta informações sobre todo mundo e aí
descobre que você esteve perto de alguém com covid-19 e alerta você.

Outro método é os celulares se comunicarem diretamente entre si, sem


nenhuma autoridade central que recolha toda a informação. Se passo por
alguém que tem covid-19, os dois telefones, o meu e o dele ou dela,
simplesmente falam um com o outro, e eu recebo o alerta. Mas nenhuma
autoridade central está coletando toda essa informação e seguindo todo
mundo.

Possíveis sistemas de vigilância para a crise atual vão um passo mais


adiante, no que se chamaria de "vigilância subcutânea". Portanto a pele,
como superfície intocável dos nossos corpos, está se rachando. Como
controlar isso?

Devemos ser muito, muito cuidadosos a esse respeito. Vigilância sobre a pele
é monitorar o que se faz no mundo exterior: aonde você vai, quem encontra, ao
que assiste na TV, que sites visita online. Ela não entra no seu corpo.
Vigilância subcutânea é monitorar o que está acontecendo dentro do seu
corpo. Começa com coisas como a temperatura, mas aí pode partir para a
pressão sanguínea, frequência cardíaca, atividade cerebral. E uma vez que se
faça isso, é possível saber muito mais sobre cada indivíduo do que em
qualquer outra época: você pode criar um regime totalitário como nunca se viu
antes.

Se você sabe o que estou lendo ou ao que assisto na televisão, isso lhe dá
alguma ideia sobre meus gostos artísticos, meus pontos de vista politicos,
minha personalidade, mas ainda é limitado. Agora, pense se você puder
realmente monitorar minha temperatura corporal, minha pressão e frequência
cardíaca enquanto leio o artigo ou assisto ao programa online ou na televisão:
aí você pode saber o que estou sentindo a cada momento! Isso poderia
facilmente resultar na criação de regimes totalitários distópicos.

Isso não é inevitável. Podemos impedir que aconteça. Mas para tal, temos que
primeiro tomar consciência do perigo, e em segundo lugar tomar cuidado com o
que permitimos acontecer nesta emergência.

Esta crise força o senhor reajustar sua imagem do homo sapiens no


século 21?

Não sabemos, porque depende das decisões que tomarmos agora. O perigo de
uma classe inútil está, na verdade, crescendo dramaticamente, por causa da
atual crise econômica. Vemos agora um aumento da automatização, robôs e
computadores substituindo seres humanos em cada vez mais empregos nesta
crise. Porque as pessoas estão confinadas em suas casas, e elas podem se
contaminar. Mas robôs, não.

Talvez vejamos os países decidirem trazer certas indústrias de volta para casa,
em vez de dependerem de fábricas em outras locações. Então pode ser que,
tanto devido à automatização quanto à desglobalização, especialmente os
países em desenvolvimento, que dependem de trabalho manual barato,
tenham de repente uma enorme classe inútil de cidadãos que perderam seus
empregos, porque estes foram automatizados ou transferidos para outro lugar.

E isso também pode acontecer nos países ricos. Esta crise está causando
mudanças tremendas no mercado de trabalho; as pessoas trabalham de casa,
trabalham online. Se não tomarmos cuidado, pode resultar no colapso do
trabalho organizado, pelo menos em alguns setores industriais.

Mas isso não é inevitável: é uma decisão política. Podemos tomar a decisão de
proteger os direitos trabalhistas em nosso país, ou em todo o mundo, nesta
situação. Os governos estão resgatando financeiramente indústrias e
corporações, eles podem condicionar a ajuda à proteção dos direitos dos
empregados. Então tudo depende das decisões que tomemos.

O que o futuro historiador dirá deste momento?


Acho que historiadores futuros verão este como um ponto de mutação na
história do século 21. Mas a forma que dermos a ele dependerá de nossas
decisões. Não é inevitável.

Você também pode gostar