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NIETZSCHE E SUA CRÍTICA À UNIDADE METAFÍSICA DO

SUJEITO

Autor 11:
Autor 22:
RESUMO

Trata-se de discutir como se processa a crítica nietzschiana à concepção do sujeito


metafísico. Para Nietzsche é necessário desconstruir a produção clássica do sujeito,
segundo a qual essa entidade é produzida por um a priori. Desse modo, mostra-se,
sinteticamente, como esse conceito é produzido na história da filosofia, privilegiando
pensadores como Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes e Kant,
considerados, aqui, como os principais filósofos que pensaram o sujeito, até o momento em
que a obra do Nietzsche, potencializará novas perspectivas para se pensar essa noção.
Finalmente, destaca-se que se há um sujeito, em Nietzsche, ele é relacional, produzido nas
relações conscientes e inconscientes do ser humano com o mundo.

Palavras-Chave: Sujeito; Metafisica; Crítica.

ABSTRACT

It is a question of discussing how the Nietzschean criticism is processed to the conception


of the metaphysical subject. For Nietzsche it is necessary to deconstruct the classical
production of the subject, according to which this entity is produced by an a priori. In this
way, it is shown, synthetically, how this concept is produced in the history of philosophy,
privileging thinkers like Plato, Aristotle, Augustine, Thomas Aquinas, Descartes and Kant,
considered here as the main philosophers who thought the subject, until the moment in
which the work of Nietzsche, will potentiate new perspectives to think this notion. Finally,
it is emphasized that if there is a subject, in Nietzsche, it is relational, produced in the
conscious and unconscious relations of the human being with the world.

Keywords: Subject; Metaphysics; Critical.

Prolegômenos

Não há como falar de sujeito sem se falar de conhecimento, pelo menos em termos
propedêuticos. Essas noções alimentam a discussão filosófica há muito tempo, desde, pelo
menos as tentativas de encontrar a phýsis e seu o conhecimento verdadeiro. Mas a relação
que nos toca, ainda hoje, é aquela que vemos surgir na aurora do pensamento grego. Na

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medida em que não se procura na natureza o ser o fundamento único das coisas, procurará
outro fundamento. Emerge, portanto, o conceito de psique, como sendo o elemento em si
mesmo da existência humana. Aí se constituiu o solo inicial para se pensar em um sujeito
que se sagrará como agente.
Desde Sócrates, falando pela boca de Platão, a história do sujeito se traduz na
história de um ser que por natureza, ou por sua natureza racional, se encontra como
essência da verdade no mundo das ideias, refutando assim a doxa. Em Platão, o
conhecimento apresenta-se como característica do filósofo, pois o coloca em oposição à
ignorância e a opinião. O conhecimento só é possível em sua plenitude, em sua
imutabilidade. Logo, seguindo a noção platônica explicitada na República, não há
conhecimento verdadeiro ou falso. Se determinada posição não se estabelece na plenitude,
não é conhecimento, apenas opinião e, em alguns casos, ignorância (PLATÃO, 2006, V,
479a-480d). Aristóteles na Metafísica, por sua vez, entende o ser enquanto substância
imutável, isto é, pode até se modificar externamente, mas sua substância não é alterada,
ainda que sejam muitas substâncias. Como bem lembra o estagirita a substância não é o
predicado, ao contrário, “[...] é evidente que cada um daqueles predicados é ser em virtude
da categoria da substância. Assim, [...] o ser por excelência é a substância”
(ARISTÓTELES, 2002, p. 289). Do mesmo modo apresenta o conhecimento, em certa
medida, como um ato de experimentação das coisas, fato que permitiria a familiaridade
com suas leis gerais. Essa impressão apresenta características próprias ao pensamento
aristotélico, uma vez que é somente por meio do conhecimento das leis gerais das coisas,
que é possível conhecer sua substância, bem como obter o conhecimento válido (cf.
HADOT, 2004, p. 136). Paradoxalmente, essa essência não se traduz nas relações
concretas entre homens e mulheres, mas sim na pronta necessidade de se pensar na verdade
ou em conceitos absolutos. Toda essa tradição socrática e metafísica, circunscreve-se nessa
perspectiva ontológica, universal e imutável do sujeito.
Tal composição se expande por toda a Europa, ganhando forma e sistematização
não só com a reflexão filosófica, mas fundamentalmente com o cristianismo. Conforme
destaca Pierre Hadot (2014) o cristianismo, no seu início, era uma expressão de exercícios
espirituais e não se desvinculava efetivamente da vida. Todavia, com o forte vínculo com
as filosofias platônica e aristotélica, “[...] pouco a pouco [...], efetivou-se, no seio do
cristianismo, especialmente na Idade Média, um divórcio entre o modo de vida e o discurso
filosófico” (HADOT, 2014, p. 355-356).
Nessa perspectiva, Agostinho apresenta o conhecimento preconizando certa
dualidade, isto é, aquilo que é conhecimento verdadeiro, divino e o que é humano, bem
como vaticina, em seus termos, a ideia do cogito cartesiano3. A perspectiva tomasiana
também se articula em prol do conhecimento ligado à Deus, embora seguindo os preceitos
aristotélicos mais sistematizados. Até aqui, ainda há apenas juízos acerca do conhecimento
verdadeiro ou não e de um sujeito que, se conhece, é o conhecimento já pronto, universal,
vinculada à uma profunda circunscrição metafísica. Toda essa história da tradição
filosófica em torno de um sujeito metafísico, universal e soberano é, paradoxalmente,
sistematizada no período emergência da razão4, a Idade Moderna.
A questão do sujeito não é nova na tradição filosófica ocidental. Ela certamente é
problematizada desde as origens da filosofia. Todavia, por questão didáticas e de recorte,
deteremos nossa análise a partir de Descartes, quem inaugura o pensamento desse sujeito
que pensa, no mundo moderno. O pensamento cartesiano se constitui partindo do
questionamento metódico sobre o conhecimento ao mesmo tempo em que provoca a
reflexão acerca do sujeito pensante, aquele que exerce o ato de conhecer. Ele opera pela
via racional, pelo intermédio dos preceitos matemáticos, sua doutrina é fundada pelo
cogito, ergo sum5. O pensamento cartesiano apresenta o cogito como estrutura que leva à
existência. Tal condição se estabelece em função da dúvida, pois o ser que pensa,
necessariamente, duvida (DESCARTES, 1996, p. 91-93). Kant, por sua vez, não se
satisfazendo em aceitar a oposição entre os racionalistas e os empiristas, argumenta em
direção a uma síntese entre os conhecimentos empíricos e os conhecimentos puros. Sendo
assim todo conhecimento é possível pela via da experiência, ao mesmo tempo em que há a
priori. Portanto, se um juízo é pensado com universalidade rigorosa “[...] então não é
derivado da experiência, mas vale absolutamente a priori” (KANT, 1983, p. 24).

A problemática do sujeito metafísico em Nietzsche

3
O estatuto do conhecimento em Agostinho só é possível pensando-o sob a perspectiva de Deus. Sendo Deus
criador de tudo e de todos, e sendo Este o supremo bem, o conhecimento também dever algo bom, que ligue
o homem a Deus. Logo, todo o resto representa a ignorância, inclusive o mal. Ver: AGOSTINHO, 2004. A
proximidade com Descartes se estabelece justamente nesse ponto, pois, para este o que possibilita a premissa
da dúvida é a razão; e esta somente é possível por meio da existência de Deus (cf. DESCARTES, 1996).
4
Talvez nem seja tão paradoxal assim, uma vez que, se se está falando de razão, não podemos esquecer que a
racionalidade parece estar sempre vinculada a uma certa transcendência.
5
Sobre a tradução de Cogito, ergo sum é possível dizer que a melhor forma é “penso, logo sou”. Esta se faz
respeitando a língua latina, uma vez que sum é conjugação do ver ser e significa sou. A comumente utilizada
“penso, logo existo”, não nos parece, portanto, a melhor.
Mas qual o problema de Nietzsche em relação a este projeto-promessa de sujeito?
Quando se fala do instituto de um sujeito racional, discursivo, abstrato, logo emergem
fortes críticas tanto em relação ao ser que conhece quanto à coisa conhecida. Nietzsche é
um destes argutos críticos. Sobre essa questão, já em O nascimento da tragédia há toda
uma trama provocativa sobre o ser que se tornou, em certa medida, desde Eurípedes, um
negador das potencialidades criadoras. Critica a negação da relação entre o apolíneo e o
dionisíaco, em prol do prolongamento da forma e a negação da criatividade. Começa-se a
criar, portanto, uma ilusão autossuficiente e absoluta. Deve-se observar ainda que a
questão vai além do equilíbrio criação-destruição-criação daqueles dois princípios
artísticos. O problema está no desenvolvimento paulatino de uma vontade de buscar
alguma origem, isto é, em vez de aceitação da dialética criativa e da originalidade do nada
e do caos enquanto criadores, se estabelece a noção de conceito ou de ser, para quem se
possa delegar a origem do mundo6. Mais ainda, com isso, traça-se o limiar de uma
sociedade que terá na negação deste mundo o esgotamento da vida. O próprio princípio
subjetivo-criador transmutou-se em objetivação. Mas Eurípedes é muito mais um ajudante
do que o arquiteto dessa negação da história enquanto dialética criativa.
De certo, o precursor máximo dos ideais racionais, para Nietzsche, é figura de
Sócrates. Sim, “o homem teórico” (NIETZSCHE, NT, §15) por excelência, aquele sem o
qual uma ciência otimista não existiria. “Se a tragédia antiga foi obrigada a sair do trilho
pelo impulso dialético para o saber [...]” (NIETZSCHE, NT, § 17) foi em função da
emergência do confronto entre a tragédia e a crença na ciência, “[...] surgida à luz pela
primeira vez na pessoa de Sócrates” (NIETZSCHE, NT, § 17). Trata-se, ao mesmo tempo
da crítica ao precursor da ideia de um conceito universal bem como do reconhecimento do
caráter criador dessas premissas.
Sobre os princípios da ciência e do sujeito moderno em O Nascimento da tragédia,
Roberto Machado (2005, p. 10-11) diz, acertadamente que

[...] o ‘socratismo estético’ ou ‘tendência socrática’, foi para Nietzsche, o


principal responsável pela morte do trágico ou pelo desaparecimento de
seu saber trágico. Pois enquanto a metafísica do artista trágico, em que a
experiência da verdade dionisíaca se faz indissoluvelmente ligada à bela
aparência apolínea é capaz, com sua música e seu mito, de justificar a
existência do ‘pior dos mundos’, transfigurando-o, a metafísica racional

6
Hyeden White, em sua Meta-história, argumenta no sentido de que no período trágico não se tratava ou não
se importava com uma criação seja dos valores seja dos fenômenos seja dos sujeitos, que estivesse situada
além do espaço e do tempo.
socrática, criadora do espírito científico, é incapaz de expressar o mundo
em sua tragicidade, pela prevalência que dá à verdade em detrimento da
ilusão e pela crença de que é capaz de curar a ferida da existência.

É justamente com os prolegômenos da ciência socrática que o estatuto do sujeito


metafisico se constitui. Ela precisa, portanto, ser a medicina e a cura dessa profunda chaga
existencial. Logo, sua saída era a negação do mundo trágico, real. Seria um corolário criar
conceitos unos. Mas o problema do sujeito não se esgota no primeiro livro de Nietzsche; se
alastra por toda sua obra, de modo a problematizá-la, quase que como um imperativo.
Em A Gaia ciência, ao propor a desconstrução dos valores metafísicos, Nietzsche
sugere caminhos para diferentes possibilidades, outras perspectivas, inclusive de pensar a
ciência, agora, entre outros aspectos, sob o prisma da paixão 7. O que está em cheque é a
questão do Cogito, a pretensão gramatical que se convencionou a procurar e estabelecer
uma unidade como causa sui e do mundo, viabilizando uma função agente, um sujeito que
faz, exerce uma ação, que pensa e conhece.
Ora, se a crítica de Nietzsche se situa, em certa medida, na forma em que a
humanidade nega a vida e o ser artista, a sua proposta de ciência jovial poderia ser a seta
para se pensar historicamente o indivíduo? Não seria a crítica nietzschiana do sujeito,
considerada aqui uma provocação à recusa ao mundo e a vida, também uma pretensa
vontade de criar outro mundo? Trata-se apenas um dizer sim ao mundo, à vida, e à
dialética caos e forma, à possibilidade de destruir e criar a si mesmo, não a partir de uma
entidade, mas de si mesmo. Criar suas próprias ilusões, alienar-se a elas, mas virar o rosto
quando quiserem lhes impor uma doutrina ou uma ilusão que não é sua. “Que minha única
negação seja desviar o olhar. E, tudo somando e em suma: quero ser, algum dia, apenas
quem diz sim” (NIETZSCHE, GC, § 276). Um indivíduo que diz sim, que aceita o destino,
que ame o seu destino (amor fati) de vir-a-ser, e não que seja conduzido pela vontade
estática de ser.
Em tom mais poético, e porque não dizer profético, Assim Falou Zaratustra
elenca provocações acerca desse Eu, sujeito que pratica determinada ação, ou melhor, que
pratica ação de negar a si mesmo, ao lado da vontade de negar o mundo. Desprezam o
corpo, fazem-no de mero receptáculo da alma. Essa tábula de valores transmundana nada

7
Sobre isso em GC, § 123 Nietzsche traça elementos interessantes para se pensar a questão. Nietzsche
argumenta em favor de uma nova postura científica, segundo a qual não fossem descartadas as pulsões e
sentimentos inerentes ao ser humano. Em Nietzsche’s “Gay” Science Babett E. Babich, além de discutir
questões pertinentes ao desenvolvimento da obra, também fala da paixão e da música como necessárias a
ciência, pelo menos como propõe Nietzsche.
mais é que a negação da terra, da vida e de si mesmo. “Imaginaram-se então arrebatados do
seu corpo e a essa terra, os ingratos! Mas a quem deviam os espasmos e a volúpia desse
arrebatamento? A seu corpo e a essa terra” (NIETZSCHE, ZA, I, Os transmundanos).
Os valores metafísicos apenas consolidaram, como se pode apreender, certas
vontades decadentes. Indivíduos e grupos totalmente suprimidos pela forma apolínea,
absolutizando ideias, criando e difundindo a sua ilusão para o mundo. Ainda assim, não
passa de mais uma vontade do corpo e da terra. Não há cisão entre corpo e alma, entre ser
humano e o mundo, esta é uma dicotomia criada pelo próprio homem, afinal, “[...] o ventre
do ser não fala absolutamente ao homem, exceto como homem” (NIETZSCHE, Za, I, Os
transmundanos). O desprezo de si nada mais é, como se pode ver, que um impulso causado
por condições espaço-temporais específicas que acometem os indivíduos. Essas condições,
se se quiser, não são outra coisa senão ações humanas desenvolvidas na história; são a
história e as formas de interpretá-la. Logo, se há algo na terra, se há sujeito, se há as ilusões
são criações do humano. Diz Nietzsche (Za, I, Dos desprezadores do corpo)

O que o sentido sente, o que o espírito conhece, jamais tem fim em si


mesmo. Mas o sentido e o espírito querem te convencer de que são o fim
de todas as coisas: tão vaidosos são eles. [...] Por trás dos teus
pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio
desconhecido – ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo habita ele, teu
corpo é ele.

Se existe um soberano, ele constitui-se nas malhas históricas às quais os


indivíduos de se submetem. Esse si-mesmo não passa do resultado de conflitos que as
pessoas têm consigo mesmas. Quem habita o eu não é ninguém menos que uma espécie de
si-mesmo, uma representação histórica que se tem acerca de si. Ainda assim, a capacidade
criadora humana é tão impressionante que essas criações chegam a se tornar deuses,
passam a conduzir os humanos, tentam convencê-los de que são o sentido e o fim das
coisas. Nietzsche reconhece, portanto, capacidade e em certo sentido, ainda, um projeto
criativo na humanidade. O outro problema é que esse projeto de um ser e de um sujeito
vinculado a uma entidade e a um mundo metafísico se tornou subterfúgio à vida. Para essas
vontades claudicantes não há futuro nesta vida, nem neste mundo. Quer-se muito mais um
outro mundo que um outro si-mesmo, “Pois não mais sois capazes de criar além de vós”
(NIETZSCHE, Za, I, Dos desprezadores do corpo).
Mas não é o indivíduo, ainda, uma criação recente? “[...] em verdade o indivíduo
é ainda a mais nova criação [...]. Mais antigo é o prazer no rebanho que o prazer no Eu”
(NIETZSCHE, Za, I, Das mil metas e uma só seta). Aqui Nietzsche parece sugerir que o
nascedouro do Eu, enquanto contraposição ao rebanho, é um fato positivo, haja vista a má
consciência causada nas tábuas de valores dos rebanhos. Esse eu livre seria, portanto, não
“a origem do rebanho, mas seu declínio” (NIETZSCHE, Za, I, Das mil metas e uma só
seta). Todavia esses grupos enfraqueceram os indivíduos, suprimiram essas liberdades que
se constituíam e se destruíam em um movimento artístico. Suprime-se o fazer e o pensar
artísticos, para que hoje possamos colher o fruto da unanimidade seja da ciência, seja da
religião, metafisicas de nosso tempo.
Não seria Zaratustra também um metafísico? Aqueles que criaram determinadas
tábuas de valores também não viam uma espécie de doença na humanidade precisando ser
curada? Tal questão pode ser discutida nos seguintes termos: não poderia ser Zaratustra um
metafísico simplesmente por que vê a humanidade claudicante e propõe uma humanidade
além de si-mesma. Superação não se faz em um outro mundo, em um plano ideal, mas sim
nas esquinas e vielas perigosas que a vida e a história constituem. O que se questiona e se
problematiza é um Eu-cativo, um sujeito que é agente só na gramática, mas que em termos
práticos continua sendo um sujeito sujeitado e objetivado. Mais ainda, tal condição só é
possível na medida em que se propõe um olhar histórico, que compreenda os processos de
submissão dos indivíduos. Nesses termos Zaratustra/Nietzsche apenas fez o
reconhecimento histórico das transformações do Eu, do sujeito e do si-mesmo.
Seguindo as trilhas de Zaratustra, uma questão premente é entender em quais
jogos de verdade o sujeito está situado, ou pelo menos entender em que perspectiva esses
mecanismos se estruturam nessas vontades e jogos de verdade. Pensando com Nietzsche,
por que mesmo a verdade? Deveria mesmo a verdade do ser se originar na genealogia
imutável de um ser suprassensível? Seria preciso, tal como disse Kant (1983, p. 17), “[...]
suprimir o saber para obter um lugar para a fé[?]”. Ou seria preciso suprimir seres ativos
para dar lugar ao rebanho, a indivíduos sujeitos a outros? Nietzsche problematiza essas e
outras questões, também, no § 16 de Além do bem e do mal. Transitando de Descartes a
Kant, passando por Schopenhauer, é possível perceber novamente a tenacidade dos
argumentos. Não por acaso refuta as relações sujeito-objeto, ao lado do “eu penso” e do
“eu quero”, bem como a noção de “coisa em si”. Para Nietzsche há sempre relações
recíprocas e intervenções mútuas. Por isso, assevera: “Repetirei mil vezes, porém, que
‘certeza imediata’, assim como ‘conhecimento absoluto’ e ‘coisa em si’, envolve uma
contradictio in adjecto: deveríamos nos livrar, de uma vez por todas, da sedução das
palavras” (NIETZSCHE, ABM, Dos preconceitos filosóficos, § 16). Além dessa negação,
ele ainda fala de qual deveria ser a postura do filósofo perante uma situação de tal monta.

Que o povo acredite que conhecer é conhecer até o fim; o filósofo tem
que dizer a si mesmo: se decomponho o processo que está expresso na
posição “eu penso”, obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja
fundamentação é difícil, talvez impossível – por exemplo, que sou eu que
pensa, que tem de haver necessariamente um algo que pensa, que pensar
é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa, que existe um
“Eu”, e finalmente que já está estabelecido o que designar como pensar –
que eu sei o que é pensar (NIETZSCHE, ABM, Dos preconceitos
filosóficos, § 16).

Nietzsche acrescenta que essa pretensão de querer saber o que é pensar, bem como
de estabelecer uma causa para todo o pensamento e até para esse suposto eu que pensa,
nada mais é que uma aventura metafísica, uma aventura em busca da verdade absoluta.
Ainda assim, e talvez por isso, sua pergunta ao final do parágrafo: “por que sempre a
verdade?” (NIETZSCHE, ABM, Dos preconceitos filosóficos, § 16). Aqui a condição
apresenta-se para além do que é certo ou errado, mas nas entranhas das vontades que
determinam e criam determinados jogos de verdades. Nesse sentido, Nietzsche é muito
mais um historiador, um genealogista que um filósofo, pelos menos nos moldes
tradicionais.
Os argumentos são muitos e variados, mas é nos textos póstumos que a potência da
crítica de Nietzsche ao sujeito de fato se faz explícita. Notadamente a crítica gira em torno
dos mesmos problemas, embora em tom mais trágico

“Pensa-se: logo, existe algo pensante”: aqui desemboca a argumentação


cartesiana. Isso significa, porém, estabelecer previamente nossa crença no
conceito de substância como “verdadeiro a priori”: que tenha algo que
existir “algo que pense”, quando se pensa, é, porém, simplesmente uma
formulação de nosso hábito gramatical, que estabelece um agente para
fazer (NIETZSCHE, 1990, p. 145).

Em um mesmo texto a crítica à ideia da substância enquanto verdade e a


gramática, ilusões criadas pelos humanos para se vincularem a determinados pensamentos
ou efeitos do pensar. Essa perspectiva é endossada em outro póstumo: “O pensar não é
para nós um meio para ‘conhecer’, porém para designar o acontecer, para ordená-lo e
torná-lo manipulável para nosso uso [...]” (NIETZSCHE, 1990, p. 141). Não se trata de
outra coisa senão a adequação e o desenvolvimento do pensar em prol de interesses,
desembocando-se, assim, nas próprias representações dos sujeitos. As marteladas
continuam fortes, por exemplo, quando Nietzsche trata das perspectivas do sujeito como
uma espécie de fé:

Tudo o que ocorre nesta relação predicativa com algum sujeito. Em cada
juízo está incluída a completa, plena e profunda fé no sujeito e no
predicado ou em causa e efeito; e esta ultimas fé (como afirmação de que
todo efeito é atividade e que toda atividade pressupõem um autor) é
muito mais um caso particular da primeira, de maneira que a fé que está
como fé básica é: existem sujeitos (NIETZSCHE apud PARMEGGIANI,
2005, p. 194).

Não seria prepotência atribuir, arbitraria e estritamente, ao sujeito as condições de


sua existência? Em alguma medida não seria um fardo demasiado pesado, para um animal?
Na verdade, sugere-se que é muito mais um acontecer vinculado à vontade de verdade,
vontade esta permeada de vontade de poder. Como o próprio Nietzsche propunha, faz-se
mister entender quais vontades de verdade levaram o ser humano a criar um sujeito autor e
agente? Para que criamos a gramática? Em que sentido essas vontades e os jogos de
verdade contribuem para a formação de indivíduos-sujeitos e/ou apenas modelam corpos,
os tornam dóceis, “melhorados”?
No § 225 de Genealogia da Moral Nietzsche fala do cativo, indivíduo e rebanho,
constructo de relações históricas e sociais, que se convencionou a pensar que era livre, mas
que estava, por contraditório que pareça, atrelado a uma substância suprassensível, com
uma substância imutável e indivisível como um átomo. Contrapõe ao espírito cativo o
espírito livre, este último modelo é considerado a exceção, pois seus argumentos,
pensamentos e ações são fundamentados em uma razão que dança, enquanto aqueles se
fundamentam na fé ou até mesmo em uma razão dicotomia e binarista. Não seriam os
homens e mulheres de espírito livre os típicos indivíduos construtores e criadores de novas
formas de si? Tal pergunta não pode ser respondida, seguindo os preceitos do filósofo
alemão, sem que se reconheça o estatuto moral segundo o qual a noção de sujeito foi
estruturada. A perspectiva aqui apresentada é que esse mecanismo organiza-se seguindo os
passos da verdade, da vontade de verdade8, que limitou o indivíduo, tornou-o, um autor
8
Cf. BM, Dos preconceitos filosóficos, § 1e GM terceira dissertação § 24. Nos parágrafos mencionados o
filósofo alemão aponta para a necessidade de se reconhecer o que é a vontade de verdade, e quais impulsos
conduziram o homem a ser signatário de tal vontade.
sem autoria, que não quis mais enveredar-se pelo desconhecido. Ao mesmo tempo criou no
homem sua busca por outro mundo, negando este, por um novo caminho, a ciência,
substituta da religião ou até mesmo uma nova.
Embora Nietzsche mencione o termo sujeito poucas vezes em sua obra, sua
posição afasta-se de linearidade dos antigos e modernos, bem como propõe o movimento, a
transformação. A questão apresenta-se, em Nietzsche, como uma problematização histórica
acerca daquilo que se desenvolveu toda sociedade ocidental. Mais do que isso, trata-se de
uma crítica às vontades e às verdades solapadoras da vida e do mundo, bem como de todo
um sistema de pensamento sustentado por imutabilidade do ser e da vontade. O que
interessa, portanto, é o retorno ao espirito artístico capaz de transformar, destruir e criar,
ainda que a si mesmo. Onate (2000) atribui o caráter criador aos homens de espírito nobre,
ao forte e diz que:

[...] a criação de valores é seu apanágio, não dependendo de aprovações


ou louvores: ele estipula sua própria medida; diz sim à vida e a si mesmo
não se limitando a temer ou tolerar o fluxo implacável do vir a ser, mas o
aceitando integral e jubilosamente, a ponto de desejar seu retorno eterno,
numa prova de supremo amor (ONATE, 2000, p. 66).

Notadamente essa postura não comunga com a afirmação de um Nietzsche


metafísico. Não há, em Nietzsche, ao contrário do que diz a interpretação heideggeriana, a
consolidação e secularização do estatuto metafísico cartesiano, nem tão pouco apenas uma
“transformação da entidade em subjetividade” (HEIDEGGER, 2014, p. 627-28) como
resultado da imersão de Nietzsche nos mais obscuros campos metafísicos. A suposição
heideggeriana se sustenta em uma perspectiva valorativa, isto é, em conotação acerca do
valor. “Mas, como observa acertadamente Deleuze, se é certo que Nietzsche relaciona o ser
ao valor, também é certo que reinterpreta o conceito de valor de maneira toralmente nova a
respeito da tradição metafísica” (PARMEGGIANI, 2005, p. 179). Nietzsche perscruta tais
campos sombrios justamente para apontar uma nova postura em relação à existência, bem
como ao modus operandi do sujeito em relação ao conhecimento. Ao não se prender na
teia dos procedimentos consagrados no desenrolar da história da filosofia, o filósofo de
Sils Maria cria outro enredo para essa relação: não se pretende mais andar pelas trilhas
dicotômicas do corpo/alma, mundo ideal/mundo real, mas na profunda e profícua relação
Eu-conhecimento-vida-mundo. “A vida como meio de conhecimento’ – com este princípio
no coração pode-se não apenas viver valentemente, mas até viver e rir alegremente” (GC,
§ 324)9.
Por tudo isso, a questão do sujeito em Nietzsche perpassa as elucubrações
modernas, especialmente porque tenta superar a linearidade científica e propõem um
retorno aos ditames criativos dos gregos. Nessa medida, talvez seja quem tenha criticado,
de maneira mais contundente, a ideia de sujeito desenvolvida na história da filosofia,
especialmente em função do seu afastamento no que tange à vida, ou melhor, o humano
afastado da vida, da existência, solapado pelas veredas do unitarismo e substancialidade.
Crítica semelhante faz Patrik Wotling (2000 p. 17-18):

Com a modificação que ele faz subir ao estatuto do conhecimento,


Nietzsche exprime sua refutação de toda divisão entre a teoria e a pratica,
o conhecimento teórico não é jamais outra coisa que um trabalho de mise
en forme, não mais gratuito é certo, mas, bem articulado as necessidades
praticas, às exigências fundamentais da vida para um determinado
vivente.

O conhecimento em Nietzsche não pode ser entendido somente sob a ótica da


divisão entre teoria e prática, mas também sobre o prisma daquilo que a própria vida exige
do sujeito que conhece, fabricando-o, transformando-o, enfim, tornando o indivíduo
sujeito, constituindo aquilo que Balen (1999) chamou de máscara, isto é, uma noção
produzida, “[...] uma espécie de simplificação, um jogo de palavras [...] (BALEN, 1999, p.
78) que é produzido, mas, que também produzem esses sujeitos.

À guisa de conclusão (ou nem isso?)

Se existe uma noção de sujeito em Nietzsche, ele está em constante transformação,


uma superação do “eu” estável e linear desenvolvido pelos modernos. Afinal, como diz
Nehamas (1985, p. 7) “O eu, segundo Nietzsche, não é uma entidade constante e estável.
Ao contrário, é algo que se torna, algo, como ele dizia, que se constrói [que se fabrica]”.
Rosa Maria Dias (2003, p. 68), no mesmo sentido diz que “(...) Nietzsche repudia a idéia
espúria de um ‘eu’ fixo e estável, a qual contribui, em muitos aspectos, para a vida

9
Há ainda diversas questões imbricadas aí apontando para outras percepções. Das mais marcantes destaca-se
aqui a própria de ideia de ciência preconizado por Nietzsche, isto é, uma ciência gaia, alegre, jubilosa e
jovial. Seria este projeto uma forma de pensar outros caminhos para relação sujeito-objeto? Esta proposição
apresenta-se por que a ideia extraída do próprio título do livro e os elementos inicias e finais (poemas e
músicas) que o compõem, dão um outro tom à canonizada ciência moderna, seus precursores e continuadores
gregária, pois, no fundo esse ‘eu’ é igual aos outros ‘eus’ gregários (...). O ‘eu’ a que
Nietzsche se refere é algo que se almeja e se supera (...)”.
Essa posição, além de explicitar a denúncia aos preceitos metafísicos feita por
Nietzsche, sua crítica àqueles que negam este mundo, aproxima-se da ideia de uma leitura
intensa (cf. FINK, 1985) do filósofo, justamente por atribuir importância aos elementos
provenientes do cotidiano da vida das pessoas, não somente as coisas abstratas. Nietzsche
“[...] consagra inteira e totalmente o homem à Terra” (FINK, 1985, p. 172), aponta para a
superação de um mundo da essência, como o modo de afirmação da vida. Logo nega o
platonismo e o cristianismo (acrescente-se a estes dois o cartersianismo), desvinculando-se
da ilusão e da cegueira racionalista e religiosa. Explicita perspectivas para uma nova forma
de se conhecer e de ser. Nega-se, portanto, as relações binárias que sustentam a nossa
modernidade, bem como repudia qualquer forma de silenciamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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