Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
SUJEITO
Autor 11:
Autor 22:
RESUMO
ABSTRACT
Prolegômenos
Não há como falar de sujeito sem se falar de conhecimento, pelo menos em termos
propedêuticos. Essas noções alimentam a discussão filosófica há muito tempo, desde, pelo
menos as tentativas de encontrar a phýsis e seu o conhecimento verdadeiro. Mas a relação
que nos toca, ainda hoje, é aquela que vemos surgir na aurora do pensamento grego. Na
2
medida em que não se procura na natureza o ser o fundamento único das coisas, procurará
outro fundamento. Emerge, portanto, o conceito de psique, como sendo o elemento em si
mesmo da existência humana. Aí se constituiu o solo inicial para se pensar em um sujeito
que se sagrará como agente.
Desde Sócrates, falando pela boca de Platão, a história do sujeito se traduz na
história de um ser que por natureza, ou por sua natureza racional, se encontra como
essência da verdade no mundo das ideias, refutando assim a doxa. Em Platão, o
conhecimento apresenta-se como característica do filósofo, pois o coloca em oposição à
ignorância e a opinião. O conhecimento só é possível em sua plenitude, em sua
imutabilidade. Logo, seguindo a noção platônica explicitada na República, não há
conhecimento verdadeiro ou falso. Se determinada posição não se estabelece na plenitude,
não é conhecimento, apenas opinião e, em alguns casos, ignorância (PLATÃO, 2006, V,
479a-480d). Aristóteles na Metafísica, por sua vez, entende o ser enquanto substância
imutável, isto é, pode até se modificar externamente, mas sua substância não é alterada,
ainda que sejam muitas substâncias. Como bem lembra o estagirita a substância não é o
predicado, ao contrário, “[...] é evidente que cada um daqueles predicados é ser em virtude
da categoria da substância. Assim, [...] o ser por excelência é a substância”
(ARISTÓTELES, 2002, p. 289). Do mesmo modo apresenta o conhecimento, em certa
medida, como um ato de experimentação das coisas, fato que permitiria a familiaridade
com suas leis gerais. Essa impressão apresenta características próprias ao pensamento
aristotélico, uma vez que é somente por meio do conhecimento das leis gerais das coisas,
que é possível conhecer sua substância, bem como obter o conhecimento válido (cf.
HADOT, 2004, p. 136). Paradoxalmente, essa essência não se traduz nas relações
concretas entre homens e mulheres, mas sim na pronta necessidade de se pensar na verdade
ou em conceitos absolutos. Toda essa tradição socrática e metafísica, circunscreve-se nessa
perspectiva ontológica, universal e imutável do sujeito.
Tal composição se expande por toda a Europa, ganhando forma e sistematização
não só com a reflexão filosófica, mas fundamentalmente com o cristianismo. Conforme
destaca Pierre Hadot (2014) o cristianismo, no seu início, era uma expressão de exercícios
espirituais e não se desvinculava efetivamente da vida. Todavia, com o forte vínculo com
as filosofias platônica e aristotélica, “[...] pouco a pouco [...], efetivou-se, no seio do
cristianismo, especialmente na Idade Média, um divórcio entre o modo de vida e o discurso
filosófico” (HADOT, 2014, p. 355-356).
Nessa perspectiva, Agostinho apresenta o conhecimento preconizando certa
dualidade, isto é, aquilo que é conhecimento verdadeiro, divino e o que é humano, bem
como vaticina, em seus termos, a ideia do cogito cartesiano3. A perspectiva tomasiana
também se articula em prol do conhecimento ligado à Deus, embora seguindo os preceitos
aristotélicos mais sistematizados. Até aqui, ainda há apenas juízos acerca do conhecimento
verdadeiro ou não e de um sujeito que, se conhece, é o conhecimento já pronto, universal,
vinculada à uma profunda circunscrição metafísica. Toda essa história da tradição
filosófica em torno de um sujeito metafísico, universal e soberano é, paradoxalmente,
sistematizada no período emergência da razão4, a Idade Moderna.
A questão do sujeito não é nova na tradição filosófica ocidental. Ela certamente é
problematizada desde as origens da filosofia. Todavia, por questão didáticas e de recorte,
deteremos nossa análise a partir de Descartes, quem inaugura o pensamento desse sujeito
que pensa, no mundo moderno. O pensamento cartesiano se constitui partindo do
questionamento metódico sobre o conhecimento ao mesmo tempo em que provoca a
reflexão acerca do sujeito pensante, aquele que exerce o ato de conhecer. Ele opera pela
via racional, pelo intermédio dos preceitos matemáticos, sua doutrina é fundada pelo
cogito, ergo sum5. O pensamento cartesiano apresenta o cogito como estrutura que leva à
existência. Tal condição se estabelece em função da dúvida, pois o ser que pensa,
necessariamente, duvida (DESCARTES, 1996, p. 91-93). Kant, por sua vez, não se
satisfazendo em aceitar a oposição entre os racionalistas e os empiristas, argumenta em
direção a uma síntese entre os conhecimentos empíricos e os conhecimentos puros. Sendo
assim todo conhecimento é possível pela via da experiência, ao mesmo tempo em que há a
priori. Portanto, se um juízo é pensado com universalidade rigorosa “[...] então não é
derivado da experiência, mas vale absolutamente a priori” (KANT, 1983, p. 24).
3
O estatuto do conhecimento em Agostinho só é possível pensando-o sob a perspectiva de Deus. Sendo Deus
criador de tudo e de todos, e sendo Este o supremo bem, o conhecimento também dever algo bom, que ligue
o homem a Deus. Logo, todo o resto representa a ignorância, inclusive o mal. Ver: AGOSTINHO, 2004. A
proximidade com Descartes se estabelece justamente nesse ponto, pois, para este o que possibilita a premissa
da dúvida é a razão; e esta somente é possível por meio da existência de Deus (cf. DESCARTES, 1996).
4
Talvez nem seja tão paradoxal assim, uma vez que, se se está falando de razão, não podemos esquecer que a
racionalidade parece estar sempre vinculada a uma certa transcendência.
5
Sobre a tradução de Cogito, ergo sum é possível dizer que a melhor forma é “penso, logo sou”. Esta se faz
respeitando a língua latina, uma vez que sum é conjugação do ver ser e significa sou. A comumente utilizada
“penso, logo existo”, não nos parece, portanto, a melhor.
Mas qual o problema de Nietzsche em relação a este projeto-promessa de sujeito?
Quando se fala do instituto de um sujeito racional, discursivo, abstrato, logo emergem
fortes críticas tanto em relação ao ser que conhece quanto à coisa conhecida. Nietzsche é
um destes argutos críticos. Sobre essa questão, já em O nascimento da tragédia há toda
uma trama provocativa sobre o ser que se tornou, em certa medida, desde Eurípedes, um
negador das potencialidades criadoras. Critica a negação da relação entre o apolíneo e o
dionisíaco, em prol do prolongamento da forma e a negação da criatividade. Começa-se a
criar, portanto, uma ilusão autossuficiente e absoluta. Deve-se observar ainda que a
questão vai além do equilíbrio criação-destruição-criação daqueles dois princípios
artísticos. O problema está no desenvolvimento paulatino de uma vontade de buscar
alguma origem, isto é, em vez de aceitação da dialética criativa e da originalidade do nada
e do caos enquanto criadores, se estabelece a noção de conceito ou de ser, para quem se
possa delegar a origem do mundo6. Mais ainda, com isso, traça-se o limiar de uma
sociedade que terá na negação deste mundo o esgotamento da vida. O próprio princípio
subjetivo-criador transmutou-se em objetivação. Mas Eurípedes é muito mais um ajudante
do que o arquiteto dessa negação da história enquanto dialética criativa.
De certo, o precursor máximo dos ideais racionais, para Nietzsche, é figura de
Sócrates. Sim, “o homem teórico” (NIETZSCHE, NT, §15) por excelência, aquele sem o
qual uma ciência otimista não existiria. “Se a tragédia antiga foi obrigada a sair do trilho
pelo impulso dialético para o saber [...]” (NIETZSCHE, NT, § 17) foi em função da
emergência do confronto entre a tragédia e a crença na ciência, “[...] surgida à luz pela
primeira vez na pessoa de Sócrates” (NIETZSCHE, NT, § 17). Trata-se, ao mesmo tempo
da crítica ao precursor da ideia de um conceito universal bem como do reconhecimento do
caráter criador dessas premissas.
Sobre os princípios da ciência e do sujeito moderno em O Nascimento da tragédia,
Roberto Machado (2005, p. 10-11) diz, acertadamente que
6
Hyeden White, em sua Meta-história, argumenta no sentido de que no período trágico não se tratava ou não
se importava com uma criação seja dos valores seja dos fenômenos seja dos sujeitos, que estivesse situada
além do espaço e do tempo.
socrática, criadora do espírito científico, é incapaz de expressar o mundo
em sua tragicidade, pela prevalência que dá à verdade em detrimento da
ilusão e pela crença de que é capaz de curar a ferida da existência.
7
Sobre isso em GC, § 123 Nietzsche traça elementos interessantes para se pensar a questão. Nietzsche
argumenta em favor de uma nova postura científica, segundo a qual não fossem descartadas as pulsões e
sentimentos inerentes ao ser humano. Em Nietzsche’s “Gay” Science Babett E. Babich, além de discutir
questões pertinentes ao desenvolvimento da obra, também fala da paixão e da música como necessárias a
ciência, pelo menos como propõe Nietzsche.
mais é que a negação da terra, da vida e de si mesmo. “Imaginaram-se então arrebatados do
seu corpo e a essa terra, os ingratos! Mas a quem deviam os espasmos e a volúpia desse
arrebatamento? A seu corpo e a essa terra” (NIETZSCHE, ZA, I, Os transmundanos).
Os valores metafísicos apenas consolidaram, como se pode apreender, certas
vontades decadentes. Indivíduos e grupos totalmente suprimidos pela forma apolínea,
absolutizando ideias, criando e difundindo a sua ilusão para o mundo. Ainda assim, não
passa de mais uma vontade do corpo e da terra. Não há cisão entre corpo e alma, entre ser
humano e o mundo, esta é uma dicotomia criada pelo próprio homem, afinal, “[...] o ventre
do ser não fala absolutamente ao homem, exceto como homem” (NIETZSCHE, Za, I, Os
transmundanos). O desprezo de si nada mais é, como se pode ver, que um impulso causado
por condições espaço-temporais específicas que acometem os indivíduos. Essas condições,
se se quiser, não são outra coisa senão ações humanas desenvolvidas na história; são a
história e as formas de interpretá-la. Logo, se há algo na terra, se há sujeito, se há as ilusões
são criações do humano. Diz Nietzsche (Za, I, Dos desprezadores do corpo)
Que o povo acredite que conhecer é conhecer até o fim; o filósofo tem
que dizer a si mesmo: se decomponho o processo que está expresso na
posição “eu penso”, obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja
fundamentação é difícil, talvez impossível – por exemplo, que sou eu que
pensa, que tem de haver necessariamente um algo que pensa, que pensar
é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa, que existe um
“Eu”, e finalmente que já está estabelecido o que designar como pensar –
que eu sei o que é pensar (NIETZSCHE, ABM, Dos preconceitos
filosóficos, § 16).
Nietzsche acrescenta que essa pretensão de querer saber o que é pensar, bem como
de estabelecer uma causa para todo o pensamento e até para esse suposto eu que pensa,
nada mais é que uma aventura metafísica, uma aventura em busca da verdade absoluta.
Ainda assim, e talvez por isso, sua pergunta ao final do parágrafo: “por que sempre a
verdade?” (NIETZSCHE, ABM, Dos preconceitos filosóficos, § 16). Aqui a condição
apresenta-se para além do que é certo ou errado, mas nas entranhas das vontades que
determinam e criam determinados jogos de verdades. Nesse sentido, Nietzsche é muito
mais um historiador, um genealogista que um filósofo, pelos menos nos moldes
tradicionais.
Os argumentos são muitos e variados, mas é nos textos póstumos que a potência da
crítica de Nietzsche ao sujeito de fato se faz explícita. Notadamente a crítica gira em torno
dos mesmos problemas, embora em tom mais trágico
Tudo o que ocorre nesta relação predicativa com algum sujeito. Em cada
juízo está incluída a completa, plena e profunda fé no sujeito e no
predicado ou em causa e efeito; e esta ultimas fé (como afirmação de que
todo efeito é atividade e que toda atividade pressupõem um autor) é
muito mais um caso particular da primeira, de maneira que a fé que está
como fé básica é: existem sujeitos (NIETZSCHE apud PARMEGGIANI,
2005, p. 194).
9
Há ainda diversas questões imbricadas aí apontando para outras percepções. Das mais marcantes destaca-se
aqui a própria de ideia de ciência preconizado por Nietzsche, isto é, uma ciência gaia, alegre, jubilosa e
jovial. Seria este projeto uma forma de pensar outros caminhos para relação sujeito-objeto? Esta proposição
apresenta-se por que a ideia extraída do próprio título do livro e os elementos inicias e finais (poemas e
músicas) que o compõem, dão um outro tom à canonizada ciência moderna, seus precursores e continuadores
gregária, pois, no fundo esse ‘eu’ é igual aos outros ‘eus’ gregários (...). O ‘eu’ a que
Nietzsche se refere é algo que se almeja e se supera (...)”.
Essa posição, além de explicitar a denúncia aos preceitos metafísicos feita por
Nietzsche, sua crítica àqueles que negam este mundo, aproxima-se da ideia de uma leitura
intensa (cf. FINK, 1985) do filósofo, justamente por atribuir importância aos elementos
provenientes do cotidiano da vida das pessoas, não somente as coisas abstratas. Nietzsche
“[...] consagra inteira e totalmente o homem à Terra” (FINK, 1985, p. 172), aponta para a
superação de um mundo da essência, como o modo de afirmação da vida. Logo nega o
platonismo e o cristianismo (acrescente-se a estes dois o cartersianismo), desvinculando-se
da ilusão e da cegueira racionalista e religiosa. Explicita perspectivas para uma nova forma
de se conhecer e de ser. Nega-se, portanto, as relações binárias que sustentam a nossa
modernidade, bem como repudia qualquer forma de silenciamento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BABICH, Babette. Nietzsche’s “Gay” Science. Articles and Chapters in Academic Book
Collections. Paper 18, 2006. Disponível em: http://fordham.bepress.com/phil_babich/18
Acesso: 30 de dezembro de 2017.
BALEN, Regina Maria Lopes van. Sujeito e identidade em Nietzsche. Rio de Janeiro:
UEPÊ, 1999.
FINK, Eugene. Nova experiência do mundo em Nietzsche. In: MARTON, Scarlett (Org.).
Nietzsche hoje?: Colóquio de Ceresy. São Paulo: Brasiliense, 1985.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras,
2012. (Companhia de Bolso).
______. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. (Companhia de bolso).
______. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. (Companhia de bolso).
______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005. (Companhia de bolso)
______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
______. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
(Companhia de bolso).
______. Fragmentos Póstumos. In.: Revista Trans/Form/Ação. São Paulo, v. 13. 1990,
139-145. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/trans/v13/v13a09.pdf . Acesso: 30 de
dezembro de 2017.
WITHE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1995.