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A EXCLUSÃO DOS INCLUÍDOS: A TEORIA DO LABELING APROACH

REVELANDO MÉTODOS PARA NÃO ETIQUETAR DETERMINADA


CLASSE SOCIAL PELO SISTEMA PENAL. 

THE THEORY OF THE LABELING APROACH

Vanessa Maria Feletti

RESUMO

O crime não existe. Ele é uma construção social para determinada classe social. A
criminalização de condutas será em dois momentos: no âmbito primário e no âmbito
secundário. Tal seleção criminal será realizada pelas agências de poder que compõem o
sistema penal nas camadas sociais mais vulneráveis. Porém, ocorrerá falhas no sistema e
algum agente detentor de status social será captado indesejavelmente pelo sistema
penal. Assim, será no segundo âmbito que o intérprete utilizar-se-á da hermenêutica
para manipular o código tecnológico, a fim de tornar juridicamente válida a decisão
tomada pelo código ideológico.

PALAVRAS-CHAVES: CRIMINOLOGIA, HERMENÊUTICA, LABELING


APROACH

ABSTRACT

The crime doesn't exist. It is a social construction for a determinated class. The
criminalization will be given at two moments: in the primary scope and in the secondary
scope. This criminal selection will be realized by the agency that compose the penal
system in the social class vulnerable. However, will happen mistakes in the criminal
selection and some agent who has social status will be attract by the penal system.
Therefore, in the secondary scope that the interpreter will use the hermeneutics to
manipulate the technological code, to make juridically valid the decision taken by the
ideological code.

KEYWORDS: CRIMINOLOGY, HERMENEUTICS , LABELING APROACH


Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF
nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo busca expor, sumariamente, alguns pontos de contato entre a


hermenêutica e o controle social feito pelo Estado instituído, principalmente através de
suas instâncias de criminalização.

O recorte teórico-criminológico será iluminado pela teoria do labeling aproach, a partir


das seguintes obras: Além da lei: a face obscura da sentença penal, do autor Alessandro
Nepomoceno, e Criminologia crítica e crítica do Direito Penal, do autor Alessandro
Baratta. No que tange à teoria hermenêutica, utilizar-se-á a crítica aos métodos
interpretativos feita por Luis Alberto Warat em sua obra Introdução Geral ao Direito.

Através desses filtros teóricos, visa-se demonstrar, pelo método dedutivo, como o
operador do Direito usará a interpretação das normas jurídicas de acordo com o
resultado jurídico que deseja alcançar.

Neste momento, fica claro como o discurso adotado pelo intérprete, seja o da voluntas
legis ou da voluntas legislatoris, é manipulado como meio para legitimar, peço venia
para o neologismo, a 'voluntas dominantis', isto é, a vontade da classe dominante, esteja
ou não o intérprete consciente de seu papel de instrumento perpetuador dessa ideologia.

Contudo, nem tudo sai como o esperado. E é neste ponto que procurar-se-á demonstrar
como as técnicas de interpretação, seja na Dogmática Penal, Processual Penal ou nos
Princípios, serão utilizadas para excluir das esferas de criminalização aqueles que não
são o público-alvo da etiqueta de criminoso. Assim, se houver 'falhas' na seleção penal,
tais erros serão expurgados pela criminalização secundária através de um julgamento
fundamentado dentro do Ordenamento Jurídico; porém, fruto de uma decisão dada pelo
código ideológico. Pode-se pensar, então, que diante de condutas idênticas alguns
receberão a pecha, a etiqueta de criminoso e outros não, o que demonstra que o sistema
penal é seletivo. Vê-se com Ela Volkmer de Castilho (apud NEPOMOCENO, 2004, p.
31) que tal seleção “é feita nas camadas mais vulneráveis ao sistema”, visto que elas não
são detentoras de poder político, econômico, acadêmico ou social (a clientela do sistema
penal é em sua ampla maioria formada por pobres), garantindo, por outro lado, a
imunização ou impunidade2 das outras camadas da sociedade (criminalidade oculta),
excluindo do sistema penal os ‘incluídos’ na sociedade, os quais são considerados
cidadãos, pertencentes ao pacto social, detentores de alguma das citadas formas de
poder.

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Ao final, analisar-se-á dois Habeas Corpus pesquisados na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal. Um para demonstrar a atividade do intérprete visando excluir do
sistema penal os incluídos na sociedade. Outro, em contrapartida, o qual foi julgado
pelo mesmo Ministro do Supremo Tribunal Federal, para mostrar que, diante da mesma
conduta3, porém, praticada pela camada vulnerável da sociedade, o intérprete chegará a
um resultado bem diferente. Ver-se-á, então, como os débeis são etiquetados como
criminosos pelas agências de poder.

1 A TEORIA DO LABELING APROACH

Desde o século XIX o paradigma adotado pela Criminologia era o etiológico. Segundo
este paradigma, o crime é ontológico; ou seja: existe por si só, sendo praticado por
pessoas com tendências naturais a delinqüir, uma vez que o ato delitivo é oriundo de
fatores de ordem causal, tais como os hereditários, psicológicos, ambientais e sociais.

A partir da década de 60 do século XX, surge o paradigma da reação social (labeling


aproach)4. Este paradigma, por sua vez, pontua que a criminalidade é um status
atribuído a determinados indivíduos em dois momentos: através da definição legal do
que é crime, estabelecendo algumas condutas como criminosas e outras não, e da
seleção que etiqueta e estigmatiza o autor de uma conduta como criminoso.

Becker (apud CASTILHO, 2001, p. 27) formulou sua tese central nos seguintes termos:

os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e
aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificá-las de marginais
(estranhos). Desde este ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido
pela pessoa, senão uma conseqüência da aplicação que os outros fazem das regras e
sanções para um “ofensor”. O desviado é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito
dita qualificação (etiqueta): a conduta desviada é a conduta assim chamada pelas
pessoas.

Então, pode-se entender que “a criminalidade em si não existe” (CASTILHO, 2001,


p.13), que ela é uma construção social para determinada classe social.

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Dentro da teoria do labeling aproach, a criminalização primária ocorre quando o
Legislativo aprova uma lei que incrimina uma conduta. As normas penais, assim,
traduzem uma anterior seleção dos bens a serem tutelados e dos comportamentos
ofensivos a estes bens. Castilho (2001, p. 49) entende que

o Código Penal brasileiro, por exemplo, reflete sobretudo o universo moral próprio da
cultura burguês-individualista, que privilegia a proteção do patrimônio privado e a
repressão das condutas desviadas típicas dos grupos socialmente mais débeis e
marginalizados.

Já a criminalização secundária, será produzida pelas agências de poder que compõem o


sistema penal. A seleção criminal das camadas sociais mais vulneráveis começará pela
polícia, passará pela denúncia do Ministério Público e culminará em uma sentença penal
condenatória pelo Judiciário. Essas mesmas agências de poder que selecionam os mais
débeis, atuarão como ‘filtros’ para não permitir que os incluídos na sociedade, caso
tenham sido capitados pelo sistema penal, sejam etiquetados, excluindo-os do processo
de rotulação.

Veja-se os dados referentes ao mês de julho de 2007 sobre a população carcerária no


Brasil5:

Ensino fundamental incompleto 2.251 presos


Ensino superior completo 10 presos
Crimes de roubo e furto 2.437 presos
Espírito Santo
Crimes contra a Administração Pública 36 presos
Ensino fundamental incompleto 147.443 presos
Ensino superior completo 1.463 presos
Crimes de roubo e furto 175.824 presos
Brasil
Crimes contra a Administração Pública 2.195 presos

O ‘funil’ que define o que é crime e depois quem será considerado criminoso não
permite que a população etiquetada como criminosa seja um reflexo da criminalidade
real. A criminalidade oculta fica imune ou impune. Pelos dados acima, um intérprete
induzido pelo paradigma etiológico poderia chegar à conclusão que pessoas que têm o
ensino fundamental incompleto tendem a delinqüir mais do que as que têm o ensino
superior completo, estabelecendo um faixa da população como honesta e outra como
criminosa (princípio do bem e do mal próprio do paradigma etiológico). Porém, uma

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vez consciente dos processos de criminalização primária e secundária (desnudados pela
teoria do labeling aproach), vê-se que a etiqueta de criminoso recairá sobre os mais
débeis, enquanto que os detentores de alguma forma de poder, seja político, econômico
ou intelectual, não serão criminalizados; o que não significa que não delinqüem.

Mas por quê esse fato não aparece?

É aqui que entra a idéia de segurança jurídica (principalmente através da ‘máscara’ do


princípio da igualdade), de código tecnológico e de código ideológico.

2 A ILUSÃO DE IGUALDADE

O princípio da igualdade6 prega que não deve haver distinção legal, por parte da lei,
entre as pessoas, seja devido à cor, à raça, ao sexo, à condição social ou qualquer outro
motivo ensejador de diferenciações. De acordo com esse princípio, a lei penal atingirá a
todos, salvo os casos de imunidade formal prevista na legislação. Neste diapasão, a
criminalidade significa a violação do Direito Penal, o qual será aplicado a todos aqueles
que realizarem a conduta tipificada.

O discurso da Dogmática Jurídico-Penal, cunhado pela ideologia7 liberal, servirá como


fator legitimador do Estado para controlar a 'criminalidade'. O intérprete, na hora de
decidir, terá em seu discurso o senso-comum teórico sobre o fenômeno criminal, um
verdadeiro código tecnológico forjado pela dogmática jurídico-penal-liberal para
legitimar sua decisão. Ele estará rigorosamente dentro do Império do Direito, acima de
qualquer suspeita, amparado por decisões juridicamente válidas.8 O limite ao jus
puniendi do Estado, a segurança jurídica, está garantido.

Mas isso é apenas o que está escrito, explícito, declarado pelas instâncias oficiais de
poder.

O intérprete, antes de fundamentar, já decidiu. Ele irá violentar o signo9 para adequar a
norma a sua vontade. WARAT (1994, p. 70) nos ensina que

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entre as diretrizes retóricas utilizadas pela escola exegética [pode-se pegar o exemplo
para qualquer modelo interpretativo] para determinar a vontade do legislador e manter a
neutralidade do juiz, é dado destacar os tradicionalmente chamados princípios gerais do
direito [...] com os quais se aparenta uma interpretação da lei dentro do direito positivo,
sem se sair de suas fronteiras, mas cujos moldes internos se completam com valores
ambientais, externos ao sistema jurídico estabelecido e sempre consoante com o
imaginário dos novos donos do poder.

3 CÓDIGO TECNOLÓGICO

O código tecnológico é composto pela Dogmática Jurídico Penal, Processual Penal e


Princípios. O julgador fará a subsunção do fato concreto à norma através do código
tecnológico. Assim, legitimará, fundamentará a absolvição ou condenação, dependendo
da decisão previamente tomada.

O código tecnológico dará a roupagem técnica fundamental para a decisão do


magistrado. Uma sentença fundamentada em percepções pessoais, preconceitos,
vingança social não é juridicamente válida. Então o intérprete de uma das agências de
criminalização terá que valer-se desse aparato técnico-científico para fundamentar sua
decisão pessoal sobre o caso concreto, ou melhor, sobre o autor da conduta,
condenando-o ou absolvendo-o.

4 CÓDIGO IDEOLÓGICO

Também chamado de second code, “o código ideológico é composto pelos esteriótipos e


pelo senso comum (every day theories).” (NEPOMOCENO, 2004, p. 63)

Esteriótipos são as “construções mentais, parcialmente inconscientes que, nas


representações coletivas ou individuais, ligam determinados fenômenos entre si e
orientam as pessoas na sua atividade cotidiana, influenciando também a conduta dos
juízes”. (NEPOMOCENO, 2004, p. 63)

Já o senso comum sobre a criminalidade reproduz a ideologia da defesa social,


separando a sociedade em honestos e desonestos, maus e bons, entre outras dicotomias
que a mente humana pode construir com o intuito de justificar a desigualdade social.

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O intérprete decidirá com base no seu10 código ideológico. Será a partir de suas
convicções pessoais que olhará para o caso concreto e pinçará, conscientemente ou não,
dentro do material normativo e dogmático, a norma que tornará juridicamente legítimo
o que em sua mente é ‘justo’ para a sociedade.

Para WARAT (1994, p.88), os métodos de interpretação (do código tecnológico) podem
ser considerados o ‘álibe teórico’ para emergência das crenças que orientam a aplicação
do Direito (que é chamado de código ideológico no âmbito da Criminologia). Assim,

sob a aparência de uma reflexão científica criam-se fórmulas interpretativas que


permitem: 1) veicular uma representação imaginária sobre o papel do direito na
sociedade; 2) ocultar as relações entre as decisões jurisprudenciais e a problemática
dominante; 3) apresentar como verdades derivadas dos fatos, ou das normas, as
diretrizes éticas que condicionam o pensamento jurídico; 4) legitimar a neutralidade dos
juristas e conferir-lhes um estatuto de cientistas.

Assim, independentemente de qual método interpretativo o intérprete ‘lançar mão’


(gramatical, exegético, teleológico, positivista sociológico...) a função do método será
apenas a de manipular o código tecnológico para fornecer uma ilusão de garantia contra
a arbitrariedade, validando, assim, a decisão do código ideológico e perpetuando o
poder de dominação.

5 A ATIVIDADE DO INTÉRPRETE: o momento de excluir os incluídos

Pelo exposto, o intérprete usará do código tecnológico para fundamentar a decisão


previamente tomada pelo código ideológico, garantindo a ilusão de segurança jurídica.

Assim, para o intérprete excluir os incluídos da etiqueta de criminoso dada pelo sistema
penal terá que criar escapes, brechas jurídicas para tornar sua decisão ideológica
juridicamente válida e não arbitrária. O ato interpretativo dar-se-á em três possíveis
momentos.

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Primeiro, dentro da Dogmática Penal (Teoria do Delito), tentará excluir o fato típico, a
antijuridicidade ou a culpabilidade.

Segundo, caso o intérprete ainda não tenha identificado a norma que tornará sua decisão
ideológica juridicamente válida, analisará a Dogmática Processual Penal e tentará
excluir a materialidade ou a autoria.

Por fim, como último recurso, valer-se-á dos princípios para alcançar a absolvição, e
assim o agente da conduta típica, antijurídica, culpável, com autoria e materialidade
comprovadas sairá incólume de sua inusitada ‘captura nas teias do sistema penal’. E,
caso haja outro ‘furo’ do sistema, não estará marcado pela pecha de criminoso
condenado, não será reincidente, o que garantirá a continuidade do gozo dos benefícios
processuais de um réu primário.

Diante disso, pode-se definir a lógica da fundamentação de um julgamento como um


‘navegar’ entre a Dogmática Penal, a Dogmática Processual Penal e os Princípios
Jurídicos, almejando encontrar as ‘terras da absolvição ou da condenação’, o que
dependerá do ‘freguês’, claro.

Para NEPOMOCENO (2004, p. 86) “condenar ou absolver é um mero exercício de


querer, o que depende tanto da vontade quanto da ideologia do julgador.”

6 ANÁLISE DE EXEMPLOS

Como corolário das idéias apresentadas, comparar-se-ão os resultados obtidos com o


julgamento dos Habeas Corpus (HC) nº 92744 e nº 87478, ambos de relatoria do
Ministro Eros Grau do Supremo Tribunal Federal (STF), para demonstrar o exercício de
querer do intérprete. Observar-se-á como o mesmo intérprete, diante de dois casos,
absolverá e condenará com base no mesmo princípio.

O HC nº 8747811 trata do caso de um militar que se apropriou de um fogão da unidade


em que servia, avaliado em R$ 445,00 (quatrocentos e quarenta e cinco reais).

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O fato é típico.12 É antijurídico, pois não está abarcado por nenhuma excludente de
ilicitude.13 É culpável, pois o militar estava no perfeito gozo de suas faculdades mentais.
Neste caso, não há como o Ministro absolvê-lo fundamentando sua decisão na
Dogmática Penal.

A materialidade é inconteste, pois o fogão que desapareceu da unidade militar estava na


posse do réu. A autoria é confessa, tanto que a acusação de apropriação do fogão pelo
militar não é questionada por ele, o qual, inclusive, devolve, através de um depósito
bancário, o valor correspondente nas contas do erário público. Neste caso, não há como
o Ministro absolvê-lo fundamentando sua decisão na Dogmática Processual Penal.

Como último recurso, 'lançará mão' dos princípios e, assim, a decisão ideológica estará
dentro do Império do Direito. O princípio utilizado será o da insignificância ou bagatela.

No caso do HC em análise, é clara a decisão ideológica do Ministro quando justifica o


ato de obstar o seguimento da ação penal pelo princípio da insignificância. Na Ementa
do HC concedido o Ministro declara que

a manutenção da ação penal gerará graves conseqüências ao paciente, entre elas a


impossibilidade de ser promovido, traduzindo, no particular, desproporcionalidade entre
a pretensão acusatória e os gravames dela decorrentes. [grifo nosso]

Para excluir do sistema penal o agente cuja conduta se adequa perfeitamente à norma
penal, o Ministro dá relevo ao fato de ser pequeno o valor do objeto subtraído e de a
pecúnia correspondente já ter sido devolvida aos cofres públicos via depósito bancário,
fato que entende como “significativo”. Ademais, o réu era um militar (esse é o ponto
principal, pois é aqui que está o status do agente) que deveria (para o bem de quem?)
progredir na carreira, e para isso manter sua primariedade era fundamental.

Já no HC nº 92744,14 o Ministro Eros Grau terá um peso diferente para a mesma


medida.

Trata-se de um ‘Zé Ninguém’ (não há, nos documentos colocados para consulta na
Internet, menção a fator de poder algum atribuído ao autor da conduta tipificada, seja a
profissão, seja o nível de saber acadêmico, seja alguma atividade política ou social) que

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se apropriou de um punhal, sete cadeados e um condicionador de cabelos em um
supermercado, totalizando o valor de R$ 86,00 (oitenta e seis reais).

Importante ressaltar que no primeiro caso o HC visava trancar a ação penal, evitando-se
assim a condenação. Neste caso, o autor já foi condenado a dez meses e quinze dias de
reclusão, sendo mantida a decisão no Superior Tribunal de ‘Justiça’ pelo Ministro do
STF. O HC em comento visava reformar a decisão condenatória pois, argumenta a
defensoria pública ao pedir a suspensão da pena, todos os requisitos para a configuração
da insignificância estão presentes – valor ínfimo da coisa furtada, a primariedade do
agente e a boa conduta do réu, o qual devolveu os bens furtados.

O Ministro indeferiu a liminar por entender que os requisitos para a impetração do HC


não se configuram no caso.

Qual será o requisito que faltou para o segundo HC?

Em ambas as situações o valor era de pequena monta, sendo que o valor referente ao
furto que teve o HC denegado era consideravelmente menor que do HC concedido (R$
86,00 e R$ 445,00, respectivamente). A lesão patrimonial em ambos os casos foi
reparada, seja com o depósito do valor correspondente, seja com a devolução dos bens
furtados. Os dois réus eram primários. Um sequer continuou a ser processado; o outro
foi condenado a dez meses e quinze dias em regime inicial de reclusão. Um 'absolvido' e
outro com a condenação mantida pelo mesmo princípio. Um é militar, devendo o
magistrado manter sua ‘ficha’ imaculada para assegurar sua progressão na carreira; o
outro é um ‘Zé Ninguém’, o qual por um pequeno crime foi recolhido a um presídio por
quase um ano. A estigmatização foi completada, a etiqueta de criminoso foi-lhe
atribuída (neste caso o magistrado também assegurou a progressão na carreira do ‘Zé
Ninguém’ ao recolhê-lo a um presídio. O diferencial é que enquanto a um foi
assegurada a possibilidade de progressão em uma carreira de status social, a de militar,
ao outro foi assegurada a possibilidade de desenvolvimento em uma carreira pouco
prestigiada, a de criminoso).

A absolvição não está baseada na conduta, está ideologicamente fundamentada em


quem é o autor da conduta. A decisão para os mesmos fatos, dependerá de quem é o
agente. A diferença nas decisões reside no código ideológico do Ministro.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O discurso jurídico-oficial, pautado, principalmente, no princípio da igualdade, não


corresponde aos reais motivos determinantes da tomada de decisão pelo intérprete.

O código tecnológico (Dogmática Penal, Dogmática Processual Penal e Princípios


Jurídicos) servirá de 'vestimenta teórica' para, através da manipulação dos métodos
interpretativos, tornar juridicamente válida a decisão tomada com base no código
ideológico do intérprete.

Assim, uma decisão formatada dentro do discurso jurídico-oficial (código tecnológico),


porém forjada pelos esteriótipos e senso comum (código ideológico), estará dentro do
Império do Direito e terá sua legalidade e legitimidade inatacáveis.

O código ideológico funcionará como 'filtro' para determinados indivíduos detentores de


alguma forma de poder, seja econômico, social, político ou acadêmico. Ao mesmo
tempo, por o senso comum reproduzir a ideologia da defesa social, principalmente o
princípio do bem e do mal, uma decisão do código ideológico, porém revestida pelo
código tecnológico, funcionará, também, como instância reprodutora dos seus próprios
esteriótipos e senso comum, perpetuando o poder de dominação.

Então, a decisão do código ideológico tem duas funções: a) a exclusão do Sistema Penal
dos incluídos na sociedade (criando-se a ilusão de que rico não rouba) e, ao mesmo
tempo, por incluir no Sistema Penal os excluídos da sociedade, b) a reprodução,
amplificação, em uma instância oficial, dos próprios pressupostos, quais sejam: os
esteriótipos e o senso comum (criando-se a ilusão de que pobre é potencialmente um
ladrão).

Portanto, os 'incluídos', detentores de alguma forma de poder, serão excluídos do


Sistema Penal e não receberão a pecha de criminoso, mantendo suas prerrogativas de
réu primário.

REFERÊNCIAS

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução


à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002.

3119
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 87478. Disponível em:
<http://www.stf.gov.br/portal/processo/verProcessoDetalhe.asp?numero=87478&classe
=HC&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&atipoJulgamento=M>. Acesso em:
20 out. 2007.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 92744. Disponível em:


<http://www.stf.gov.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=92744&cl
asse=HC&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 22 out. 2007.

CASTILHO, Ela Wiecko V. de. O Controle Penal nos Crimes Contra o Sistema
Financeiro Nacional. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

NEPOMOCENO, Alessandro. Além da Lei: a face obscura da sentença penal. 1. ed.


Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004.

WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. 1. ed. Porto Alegre: Sergio
Antônio Fabris Editor, 1994.

1A expressão Sistema Penal é entendida como as agências de criminalização do Estado,


quais sejam: Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário.

Ela Wiecko Volkmer de Castilho (2001, p. 42) entende que não há um sistema e sim
uma compartimentalização, já que Sistema Penal é a soma dos exercícios de poder das
agências de criminalização, as quais operam independentemente.

?* Funcionária pública federal, Bacharel em Comunicação Social pela Universidade


Federal do Espírito Santo (UFES) e aluna do curso de Direito das Faculdades Integradas
de Vitória (FDV). vfeletti@tre-es.gov.br

2Ela Wiecko Volkmer de Castilho diferencia imunização de impunidade. Imunização é


quando na criminalização primária (as leis, por exemplo) uma conduta não é
criminalizada. Impunidade é quando na criminalização secundária o autor da conduta
não é selecionado como criminoso pelas agências de criminalização, o intérprete
violentará o signo para excluir da seleção penal determinada classe social.

3O ato praticado selecionado para objeto de exemplo no presente artigo é o mesmo,


qual seja: apropriar-se de coisa alheia. Para alguns será tipificado como furto, para
outros como peculato. Essa diferenciação de denominação, penso, já faz parte da
diferenciação feita entre as pessoas na criminalização primária. Há uma linguagem mais

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técnica, visando, creio, que não seja entendível pela massa. Qualquer um do povo sabe o
que é furto, mas será que todos sabem o que é peculato?

4Howard Becker é considerado o pai da teoria do labeling aproach com o lançamento


de sua obra intitulada Outsiders na década de 60.

5BRASIL, Ministério da Justiça. Execução Penal: InfoPen - Estatísticas. Disponível


em: <http://
www.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D2840
7509CPTBRIE.htm>. Acesso em: 20 out. 2007.

6O princípio da igualdade, segundo Alessandro Baratta (2002, p. 41-43), é “um dos


princípios definidores da ideologia da defesa social, a qual nasceu contemporaneamente
à Revolução Francesa, e, enquanto a ciência e a codificação penal se empunham como
elemento essencial do sistema jurídico-burguês, aquela assumia o predomínio
ideológico dentro do específico setor penal [...] O conteúdo dessa ideologia, assim como
passou a fazer parte da filosofia dominante na ciência jurídica e das opiniões comuns,
não só dos representantes do aparato penal penitenciário, mas também do homem de rua
(ou seja, das every day theories), é sumariamente definido na seguinte série de
princípios: a) princípio de legitimidade; b) princípio do bem e do mal; c) princípio da
culpabilidade; d) princípio da finalidade ou da presunção; e) princípio da igualdade; f)
princípio do interesse social e do delito natural.”. Para maior aprofundamento no tema,
remeto o leitor (a) ao capítulo II – Ideologia da Defesa Social, da obra citada.

7O termo ideologia está sendo empregado no seu sentido negativo, qual seja: um falsa
consciência ocultadora da realidade, inclusive invertendo a realidade.

8A validade jurídica de uma decisão será quando ela estiver fundamentada dentro do
ordenamento jurídico. Do contrário, será arbitrária, nula.

9NEPOMOCENO (2004, p. 88) nos explica que os signos são símbolos que carregam
em si o significante e o significado. O significante é o veículo transportador do
significado, o qual é o conteúdo do signo. Cada signo pode possuir vários significados.
Para o autor, o significado pode ser claro, quando só há uma possibilidade; escuro,
quando jamais pode significar determinada coisa; e cinzento, quando pode significar
uma coisa ou outra. É nesta zona cinzenta que o intérprete encontrará casos de vagueza
e ambigüidade para manipular o código ideológico e chegar à decisão desejada.

10Que não é tão 'seu' assim, pois há uma certa uniformidade, já que nas instâncias de
socialização a ideologia da classe dominante é transmitida a todos pelos mecanismos de
programação humana: família, escola, Igreja, mídia...

11BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 87478. Disponível em:


<http://www.stf.gov.br/portal/
processo/verProcessoDetalhe.asp?numero=87478&classe=HC&codigoClasse=0&orige
m=JUR&recurso=0&atipoJulgamento=M>. Acesso em: 20 out. 2007.

12Conduta tipificada no artigo 303 da Lei nº 1.001/69 (código penal militar), in verbis:

3121
Art. 303. Apropriar-se de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou
particular, de que tem a posse ou detenção, em razão do cargo ou comissão, ou desviá-
lo em proveito próprio ou alheio:

Pena - reclusão, de três a quinze anos.

§ 1º A pena aumenta-se de um terço, se o objeto da apropriação ou desvio é de valor


superior a vinte vezes o salário mínimo.

Peculato-furto

§ 2º Aplica-se a mesma pena a quem, embora não tendo a posse ou detenção do


dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou contribui para que seja subtraído, em proveito
próprio ou alheio, valendo-se da facilidade que lhe proporciona a qualidade de militar
ou de funcionário.

13Legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular de direito ou estrito


cumprimento do dever legal.

14BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 92744. Disponível


em:<http://www.stf.gov.br/portal/
processo/verProcessoAndamento.asp?numero=92744&classe=HC&origem=AP&recurs
o=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 22 out. 2007.

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