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RESUMO
O crime não existe. Ele é uma construção social para determinada classe social. A
criminalização de condutas será em dois momentos: no âmbito primário e no âmbito
secundário. Tal seleção criminal será realizada pelas agências de poder que compõem o
sistema penal nas camadas sociais mais vulneráveis. Porém, ocorrerá falhas no sistema e
algum agente detentor de status social será captado indesejavelmente pelo sistema
penal. Assim, será no segundo âmbito que o intérprete utilizar-se-á da hermenêutica
para manipular o código tecnológico, a fim de tornar juridicamente válida a decisão
tomada pelo código ideológico.
ABSTRACT
The crime doesn't exist. It is a social construction for a determinated class. The
criminalization will be given at two moments: in the primary scope and in the secondary
scope. This criminal selection will be realized by the agency that compose the penal
system in the social class vulnerable. However, will happen mistakes in the criminal
selection and some agent who has social status will be attract by the penal system.
Therefore, in the secondary scope that the interpreter will use the hermeneutics to
manipulate the technological code, to make juridically valid the decision taken by the
ideological code.
Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF
nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Através desses filtros teóricos, visa-se demonstrar, pelo método dedutivo, como o
operador do Direito usará a interpretação das normas jurídicas de acordo com o
resultado jurídico que deseja alcançar.
Neste momento, fica claro como o discurso adotado pelo intérprete, seja o da voluntas
legis ou da voluntas legislatoris, é manipulado como meio para legitimar, peço venia
para o neologismo, a 'voluntas dominantis', isto é, a vontade da classe dominante, esteja
ou não o intérprete consciente de seu papel de instrumento perpetuador dessa ideologia.
Contudo, nem tudo sai como o esperado. E é neste ponto que procurar-se-á demonstrar
como as técnicas de interpretação, seja na Dogmática Penal, Processual Penal ou nos
Princípios, serão utilizadas para excluir das esferas de criminalização aqueles que não
são o público-alvo da etiqueta de criminoso. Assim, se houver 'falhas' na seleção penal,
tais erros serão expurgados pela criminalização secundária através de um julgamento
fundamentado dentro do Ordenamento Jurídico; porém, fruto de uma decisão dada pelo
código ideológico. Pode-se pensar, então, que diante de condutas idênticas alguns
receberão a pecha, a etiqueta de criminoso e outros não, o que demonstra que o sistema
penal é seletivo. Vê-se com Ela Volkmer de Castilho (apud NEPOMOCENO, 2004, p.
31) que tal seleção “é feita nas camadas mais vulneráveis ao sistema”, visto que elas não
são detentoras de poder político, econômico, acadêmico ou social (a clientela do sistema
penal é em sua ampla maioria formada por pobres), garantindo, por outro lado, a
imunização ou impunidade2 das outras camadas da sociedade (criminalidade oculta),
excluindo do sistema penal os ‘incluídos’ na sociedade, os quais são considerados
cidadãos, pertencentes ao pacto social, detentores de alguma das citadas formas de
poder.
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Ao final, analisar-se-á dois Habeas Corpus pesquisados na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal. Um para demonstrar a atividade do intérprete visando excluir do
sistema penal os incluídos na sociedade. Outro, em contrapartida, o qual foi julgado
pelo mesmo Ministro do Supremo Tribunal Federal, para mostrar que, diante da mesma
conduta3, porém, praticada pela camada vulnerável da sociedade, o intérprete chegará a
um resultado bem diferente. Ver-se-á, então, como os débeis são etiquetados como
criminosos pelas agências de poder.
Desde o século XIX o paradigma adotado pela Criminologia era o etiológico. Segundo
este paradigma, o crime é ontológico; ou seja: existe por si só, sendo praticado por
pessoas com tendências naturais a delinqüir, uma vez que o ato delitivo é oriundo de
fatores de ordem causal, tais como os hereditários, psicológicos, ambientais e sociais.
Becker (apud CASTILHO, 2001, p. 27) formulou sua tese central nos seguintes termos:
os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e
aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificá-las de marginais
(estranhos). Desde este ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido
pela pessoa, senão uma conseqüência da aplicação que os outros fazem das regras e
sanções para um “ofensor”. O desviado é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito
dita qualificação (etiqueta): a conduta desviada é a conduta assim chamada pelas
pessoas.
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Dentro da teoria do labeling aproach, a criminalização primária ocorre quando o
Legislativo aprova uma lei que incrimina uma conduta. As normas penais, assim,
traduzem uma anterior seleção dos bens a serem tutelados e dos comportamentos
ofensivos a estes bens. Castilho (2001, p. 49) entende que
o Código Penal brasileiro, por exemplo, reflete sobretudo o universo moral próprio da
cultura burguês-individualista, que privilegia a proteção do patrimônio privado e a
repressão das condutas desviadas típicas dos grupos socialmente mais débeis e
marginalizados.
O ‘funil’ que define o que é crime e depois quem será considerado criminoso não
permite que a população etiquetada como criminosa seja um reflexo da criminalidade
real. A criminalidade oculta fica imune ou impune. Pelos dados acima, um intérprete
induzido pelo paradigma etiológico poderia chegar à conclusão que pessoas que têm o
ensino fundamental incompleto tendem a delinqüir mais do que as que têm o ensino
superior completo, estabelecendo um faixa da população como honesta e outra como
criminosa (princípio do bem e do mal próprio do paradigma etiológico). Porém, uma
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vez consciente dos processos de criminalização primária e secundária (desnudados pela
teoria do labeling aproach), vê-se que a etiqueta de criminoso recairá sobre os mais
débeis, enquanto que os detentores de alguma forma de poder, seja político, econômico
ou intelectual, não serão criminalizados; o que não significa que não delinqüem.
2 A ILUSÃO DE IGUALDADE
O princípio da igualdade6 prega que não deve haver distinção legal, por parte da lei,
entre as pessoas, seja devido à cor, à raça, ao sexo, à condição social ou qualquer outro
motivo ensejador de diferenciações. De acordo com esse princípio, a lei penal atingirá a
todos, salvo os casos de imunidade formal prevista na legislação. Neste diapasão, a
criminalidade significa a violação do Direito Penal, o qual será aplicado a todos aqueles
que realizarem a conduta tipificada.
Mas isso é apenas o que está escrito, explícito, declarado pelas instâncias oficiais de
poder.
O intérprete, antes de fundamentar, já decidiu. Ele irá violentar o signo9 para adequar a
norma a sua vontade. WARAT (1994, p. 70) nos ensina que
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entre as diretrizes retóricas utilizadas pela escola exegética [pode-se pegar o exemplo
para qualquer modelo interpretativo] para determinar a vontade do legislador e manter a
neutralidade do juiz, é dado destacar os tradicionalmente chamados princípios gerais do
direito [...] com os quais se aparenta uma interpretação da lei dentro do direito positivo,
sem se sair de suas fronteiras, mas cujos moldes internos se completam com valores
ambientais, externos ao sistema jurídico estabelecido e sempre consoante com o
imaginário dos novos donos do poder.
3 CÓDIGO TECNOLÓGICO
4 CÓDIGO IDEOLÓGICO
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O intérprete decidirá com base no seu10 código ideológico. Será a partir de suas
convicções pessoais que olhará para o caso concreto e pinçará, conscientemente ou não,
dentro do material normativo e dogmático, a norma que tornará juridicamente legítimo
o que em sua mente é ‘justo’ para a sociedade.
Para WARAT (1994, p.88), os métodos de interpretação (do código tecnológico) podem
ser considerados o ‘álibe teórico’ para emergência das crenças que orientam a aplicação
do Direito (que é chamado de código ideológico no âmbito da Criminologia). Assim,
Assim, para o intérprete excluir os incluídos da etiqueta de criminoso dada pelo sistema
penal terá que criar escapes, brechas jurídicas para tornar sua decisão ideológica
juridicamente válida e não arbitrária. O ato interpretativo dar-se-á em três possíveis
momentos.
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Primeiro, dentro da Dogmática Penal (Teoria do Delito), tentará excluir o fato típico, a
antijuridicidade ou a culpabilidade.
Segundo, caso o intérprete ainda não tenha identificado a norma que tornará sua decisão
ideológica juridicamente válida, analisará a Dogmática Processual Penal e tentará
excluir a materialidade ou a autoria.
Por fim, como último recurso, valer-se-á dos princípios para alcançar a absolvição, e
assim o agente da conduta típica, antijurídica, culpável, com autoria e materialidade
comprovadas sairá incólume de sua inusitada ‘captura nas teias do sistema penal’. E,
caso haja outro ‘furo’ do sistema, não estará marcado pela pecha de criminoso
condenado, não será reincidente, o que garantirá a continuidade do gozo dos benefícios
processuais de um réu primário.
6 ANÁLISE DE EXEMPLOS
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O fato é típico.12 É antijurídico, pois não está abarcado por nenhuma excludente de
ilicitude.13 É culpável, pois o militar estava no perfeito gozo de suas faculdades mentais.
Neste caso, não há como o Ministro absolvê-lo fundamentando sua decisão na
Dogmática Penal.
Como último recurso, 'lançará mão' dos princípios e, assim, a decisão ideológica estará
dentro do Império do Direito. O princípio utilizado será o da insignificância ou bagatela.
Para excluir do sistema penal o agente cuja conduta se adequa perfeitamente à norma
penal, o Ministro dá relevo ao fato de ser pequeno o valor do objeto subtraído e de a
pecúnia correspondente já ter sido devolvida aos cofres públicos via depósito bancário,
fato que entende como “significativo”. Ademais, o réu era um militar (esse é o ponto
principal, pois é aqui que está o status do agente) que deveria (para o bem de quem?)
progredir na carreira, e para isso manter sua primariedade era fundamental.
Trata-se de um ‘Zé Ninguém’ (não há, nos documentos colocados para consulta na
Internet, menção a fator de poder algum atribuído ao autor da conduta tipificada, seja a
profissão, seja o nível de saber acadêmico, seja alguma atividade política ou social) que
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se apropriou de um punhal, sete cadeados e um condicionador de cabelos em um
supermercado, totalizando o valor de R$ 86,00 (oitenta e seis reais).
Importante ressaltar que no primeiro caso o HC visava trancar a ação penal, evitando-se
assim a condenação. Neste caso, o autor já foi condenado a dez meses e quinze dias de
reclusão, sendo mantida a decisão no Superior Tribunal de ‘Justiça’ pelo Ministro do
STF. O HC em comento visava reformar a decisão condenatória pois, argumenta a
defensoria pública ao pedir a suspensão da pena, todos os requisitos para a configuração
da insignificância estão presentes – valor ínfimo da coisa furtada, a primariedade do
agente e a boa conduta do réu, o qual devolveu os bens furtados.
Em ambas as situações o valor era de pequena monta, sendo que o valor referente ao
furto que teve o HC denegado era consideravelmente menor que do HC concedido (R$
86,00 e R$ 445,00, respectivamente). A lesão patrimonial em ambos os casos foi
reparada, seja com o depósito do valor correspondente, seja com a devolução dos bens
furtados. Os dois réus eram primários. Um sequer continuou a ser processado; o outro
foi condenado a dez meses e quinze dias em regime inicial de reclusão. Um 'absolvido' e
outro com a condenação mantida pelo mesmo princípio. Um é militar, devendo o
magistrado manter sua ‘ficha’ imaculada para assegurar sua progressão na carreira; o
outro é um ‘Zé Ninguém’, o qual por um pequeno crime foi recolhido a um presídio por
quase um ano. A estigmatização foi completada, a etiqueta de criminoso foi-lhe
atribuída (neste caso o magistrado também assegurou a progressão na carreira do ‘Zé
Ninguém’ ao recolhê-lo a um presídio. O diferencial é que enquanto a um foi
assegurada a possibilidade de progressão em uma carreira de status social, a de militar,
ao outro foi assegurada a possibilidade de desenvolvimento em uma carreira pouco
prestigiada, a de criminoso).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Então, a decisão do código ideológico tem duas funções: a) a exclusão do Sistema Penal
dos incluídos na sociedade (criando-se a ilusão de que rico não rouba) e, ao mesmo
tempo, por incluir no Sistema Penal os excluídos da sociedade, b) a reprodução,
amplificação, em uma instância oficial, dos próprios pressupostos, quais sejam: os
esteriótipos e o senso comum (criando-se a ilusão de que pobre é potencialmente um
ladrão).
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 87478. Disponível em:
<http://www.stf.gov.br/portal/processo/verProcessoDetalhe.asp?numero=87478&classe
=HC&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&atipoJulgamento=M>. Acesso em:
20 out. 2007.
CASTILHO, Ela Wiecko V. de. O Controle Penal nos Crimes Contra o Sistema
Financeiro Nacional. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. 1. ed. Porto Alegre: Sergio
Antônio Fabris Editor, 1994.
Ela Wiecko Volkmer de Castilho (2001, p. 42) entende que não há um sistema e sim
uma compartimentalização, já que Sistema Penal é a soma dos exercícios de poder das
agências de criminalização, as quais operam independentemente.
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técnica, visando, creio, que não seja entendível pela massa. Qualquer um do povo sabe o
que é furto, mas será que todos sabem o que é peculato?
7O termo ideologia está sendo empregado no seu sentido negativo, qual seja: um falsa
consciência ocultadora da realidade, inclusive invertendo a realidade.
8A validade jurídica de uma decisão será quando ela estiver fundamentada dentro do
ordenamento jurídico. Do contrário, será arbitrária, nula.
9NEPOMOCENO (2004, p. 88) nos explica que os signos são símbolos que carregam
em si o significante e o significado. O significante é o veículo transportador do
significado, o qual é o conteúdo do signo. Cada signo pode possuir vários significados.
Para o autor, o significado pode ser claro, quando só há uma possibilidade; escuro,
quando jamais pode significar determinada coisa; e cinzento, quando pode significar
uma coisa ou outra. É nesta zona cinzenta que o intérprete encontrará casos de vagueza
e ambigüidade para manipular o código ideológico e chegar à decisão desejada.
10Que não é tão 'seu' assim, pois há uma certa uniformidade, já que nas instâncias de
socialização a ideologia da classe dominante é transmitida a todos pelos mecanismos de
programação humana: família, escola, Igreja, mídia...
12Conduta tipificada no artigo 303 da Lei nº 1.001/69 (código penal militar), in verbis:
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Art. 303. Apropriar-se de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou
particular, de que tem a posse ou detenção, em razão do cargo ou comissão, ou desviá-
lo em proveito próprio ou alheio:
Peculato-furto
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