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A EUROPA INEXISTENTE
Mil anos atrás, a Europa não existia. Uma década antes da passagem do
Milênio, os quase trinta milhões de pessoas que viviam na extremidade oeste da
massa de terra chamada Eurásia não tinham qualquer razão peremptória para achar
que constituíam um conjunto isolado de pessoas, ligadas pela história e pelo destino
comum. Tampouco o fizeram. É verdade que a desagregação do Império Romano
havia deixado uma parte significativa do que hoje conhecemos por Europa ligada
por estradas, comércio, religião e memória coletiva. Mas o mundo romano negli
genciou uma grande parcela da região situada a leste do Reno e ao norte do mar
Negro. Também o Império não era, no final, exclusivamente europeu; havia-se es
tendido em torno do Mediterrâneo até a Ásia e a África.
Do ponto de vista do comércio e do contato cultural, a “Europa” do milênio
fragmentou-se em três ou quatro aglomerados ligados bastante frouxamente: uma
faixa oriental correspondente mais ou menos à Rússia européia de hoje e que
mantinha fortes vínculos com Bizâncio e com as principais rotas de comércio que
atravessavam a Ásia; um Mediterrâneo compartilhado por muçulmanos, cristãos e
judeus e com vinculações muito mais fortes com as grandes metrópoles do Oriente
Médio e da Ásia; um sistema pós-romano de cidades, aldeias, estradas e rios, mais
denso numa curva que se estendia da Itália central aFlandres, masque se irradiava
pela Alemanha e pela França; talvez um aglomerado setentrional distinto que
compreendia a Escandinávia e as Ilhas Britânicas. (Na verdade, muitos desses
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CHARLES TILLY
rótulos pecara por anacronismo; mas a nós, que precisamos adotar um conjunto
enfadonho de convenções geográficas, não nos resta outra alternativa senão usar
designações como “Alemanha” e “Ilhas Britânicas” sem que se precise advertir alto
e bom som que não implicam vinculação política ou cultural.)
Figura 2.1 A Europa em 406 d.C. (adaptado de Colin McEvedy, The Penguin Atlas o f Medieval History,
Penguin Boolcs, 1961. Corpyright © 1961 Colin M cEvedy).
Figura 2.2 A Europa em 998 (adaptado de Colin McEvedy, The Penguin Atlas o f Medieval History,
Penguin Books, 1961. Copyright © 1961 Colin McEvedy).
da península italiana, mas, na verdade, quase toda cidade importante e seu interior
adjacente operava como se fosse um agente político livre. (Em 1200 d.C., somente
a península italiana compreendia duzentas ou trezentas cidades-estado distintas
[Waley 1969: 11].) Salvo pela relativa urbanização das terras muçulmanas, a corre
lação entre o tamanho dos estados e a densidade das cidades era negativa: onde as
cidades pulularam, a soberania se esmigalhou.
Adiante começará a ser estabelecida uma cronologia grosseira sobre as
mudanças nas cidades e estados no decurso dos últimos mil anos. Entrementes, no
entanto, façamos um comparação arbitrária a intervalos de 500 anos, apenas para
termos uma idéia do quanto a coisa mudou. Por volta de 1490, o mapa e a realidade
haviam-se alterado enormemente. Os cristãos armados estavam expulsando os
soberanos muçulmanos de Granada, seu último território importante na metade
ocidental do continente. Um Império Otomano islâmico havia desalojado os
bizantinos cristãos da região situada entre o Adriático e a Pérsia. Os otomanos
estavam triturando o poder veneziano no Mediterrâneo oriental e avançando para
os Bálcãs. (Aliando-se com a ameaçada Granada, também efetuavam as suas
primeiras incursões ao Mediterrâneo ocidental.) Além disso, depois de muitos
Figura 2.3 A Europa cm 1478 d.C. (adaptado de Colin McEvedy, The Penguin Atlas o f Medieval His
tory', Penguin Books, 1961. Copyright © 1961 Colin McEvedy).
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ÁS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS
JAPÃO
MANCHUS
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Figura 2.4 O Mundo em 1490 d.C. (adaptado de Colin McEvedy, The Penguiri Atlas o f Modem fíisto-
ry to 1815, Penguin Books, 1972. Copyright © 1972 Colin McEvedy).
entanto, fora de suas próprias regiões, administravam com dificuldade os seus pre
tensos domínios e tinham a sua autoridade continuamente contestada por potentados
rivais, inclusive por seus próprios agentes e vassalos putativos.
Consideremos a Hungria, um estado que se desenvolveu a partir da área con
quistada pelos magiares, um dos muitos povos nômades armados que, vindos da
estepe eurasiática, invadiram a Europa. No decurso do século X, a maioria dos ma
giares migraram do Volga e dominaram os eslavos, que eram em menor número,
lavradores e habitantes das florestas da Bacia dos Cárpatos, região que hoje deno
minamos Hungria (Pamlenyi 1975: 21-5). Quando se mudaram para o oeste dos
Cárpatos, a escassez da pastagem natural fez com que alguns nômades predadores
se retirassem, ou tivessem reduzida a sua população, ou se extinguissem (Lindner
1981). Depois de um século de pilhagem, os húngaros, agora cristianizados, volta
ram-se cada vez mais para a agricultura num território quase desprovido de cidades.
Sua base agrícola não impediu que a nobreza húngara fizesse guerra com seus
vizinhos, lutasse pela sucessão real ou participasse do jogo europeu de casamentos
e alianças. Além do mais, o seu controle da força armada proporcionou-lhes o poder
de jogar escravos e homens livres indistintamente numa servidão comum. As
cidades cresceram no momento em que a agricultura feudal prosperou, as minas
passaram a exportar metais para o restante da Europa e as rotas de comércio da
região se ligaram às da Europa Central e Ocidental. O capital alemão acabou por
dominar o comércio e a indústria húngaros. No entanto, as cidades da Hungria
continuaram estritamente subordinadas a seus senhores nobres até que, no século
XV, a coroa começou a controlá-los.
No final do século XV, o rei Janos Hunyadi e seu filho, o rei Mateus Corvino,
construíram uma máquina de guerra relativamente centralizada e eficiente,
combatendo tanto os turcos belicosos a sudeste quanto os famintos Habsburgos a
oeste. Todavia, com a morte de Mateus, a nobreza contra-atacou e privou o seu
sucessor Ladislau dos meios de sustentar o seu próprio exército. Em 1514, o esforço
para organizar uma nova cruzada contra os turcos provocou uma imensa revolta
camponesa, cuja repressão reduziu definitivamente o campesinato à servidão e
aboliu os seus direitos de mudar de senhor. Na luta entre os magnatas que se seguiu
aos acordos de paz que puseram fim à guerra camponesa, o advogado Istvan
Verbõczi acolheu a opinião dos nobres em relação aos costumes húngaros, inclusive
as leis de compensação contra os camponeses e os provimentos pelos quais
os nobres gozavam de imunidade contra a prisão sem um prévio julgam ento legal, estavam
sujeitos som ente a um rei legitimamente coroado, não pagavam qualquer espécie de tributos
e só podiam ser recrutados para prestar serviço militar em caso de defesa do reino. Finalm en
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ÁS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS
te, era garantido o direito de rebelião contra qualquer rei que infringisse de algum modo os
direitos da nobreza.
(McNeill 1975 [1964]: 17.)
OS ESTADOS E A COERÇÃO
AS CIDADES E O CAPITAL
Para perceber com mais clareza o padrão geográfico, deveríamos estabelecer
uma distinção entre sistemas de cidades e sistemas de estados. Os sistemas de ci
dades da Europa representavam as relações indefinidas entre as concentrações de
capital; os seus sistemas de estados, as relações variáveis entre as concentrações de
coerção. As cidades européias formavam uma hierarquia frouxa de precedência comer
cial e industrial dentro da qual, em qualquer instante, uns poucos aglomerados de
cidades (agrupadas comumente em torno de um centro hegemônico único) domina
vam claramente o resto. (Na verdade, a hierarquia européia constituía apenas uma
parte de uma rede urbana mais vasta que ia até a Ásia no começo do período e que,
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CHARLES TILLY
De qualquer modo, a proporção que vivia nas cidades não aumentou significati
vamente antes do século XIX. Segundo as melhores estimativas de que dispomos, a
porção de lugares com 10 mil habitantes ou mais girava em torno de 5% em 990,
6% em 1490, 10% em 1790 e 30% em 1890, em comparação com os quase 60% de
hoje (Bairoch 1985: 182, 282; de Vries 1984: 29-48).
A escala da urbanização refletiu a história do capital europeu. Durante sécu
los, a maior parte do capital líquido da Europa esteve nas mãos de pequenos co
merciantes que trabalhavam dispersos por todo o continente, ou comerciando bens
produzidos em outro local ou orientando a manufatura de produtores formalmente
independentes em aldeias, distritos e pequenas cidades. Os grandes capitalistas,
como os de Gênova, Augsburgo e Antuérpia, desempenharam um papel importante
na ligação de toda a Europa entre si e com o resto do mundo, mas detinham uma
pequena parcela de todo o capital em movimento.
Antes de 1490, a dispersão dos testemunhos torna difícil oferecer alguns in
formes quantitativos mais detalhados. No entanto, as estimativas de Paul Bairoch e
a recente compilação de evidências relativas à urbanização européia a partir de
1500, feita por Jan de Vries, possibilitaram alguns cálculos simples mas surpreen
dentes. A Tabela 2.1 mostra a taxa comum prolongada de crescimento urbano antes
de 1490, a aceleração no século XVI e a excepcional urbanização depois de 1790.
Por volta de 1980, a barreira dos 10 mii habitantes havia perdido o seu sentido (daí
os números especulativos da tabela), e um total de 390 cidades tinham 100 mil
habitantes ou mais. Com efeito, as estatísticas de 1980 colocam 34,6% da população
em cidades de no mínimo 100 mil habitantes. A grande aceleração do crescimento
urbano ocorreu depois de 1790, com a concentração de capital no século XIX, o
aumento escalar dos empregos e a criação do transporte de massa. No entanto, na
maior parte do período posterior a 1490, as zonas interioranas exclusivas de que
dispunham a maioria das cidades estavam diminuindo de tamanho.
de suas tropas entre os seus próprios cidadãos. A partir da metade do século XIX,
numa fase de especialização, os estados europeus consolidaram o sistema de
soldados cidadãos financiados por vastas burocracias civis, e separaram as forças
de polícia especializadas no uso da coerção fora da guerra.
Por volta do século XIX, a maioria dos estados europeus haviam internalizado
tanto a força armada quanto os mecanismos fiscais; reduziram, assim, as funções
governamentais dos arrematantes de impostos, dos contratantes militares e de outros
agentes independentes. Seus governantes, então, continuaram a negociar com os
capitalistas e outras classes o crédito, as rendas, a mão-de-obra e os meios de guerra.
A negociação, por seu turno, criou novas exigências ao estado: pensões, pagamentos
aos pobres, educação pública, planejamento urbano e muito mais. No processo, os
estados, em vez de ampliar as máquinas de guerra, passaram a criar organizações
de múltiplas finalidades. Seus esforços para controlar a coerção e o capital pros
seguiram, mas juntamente com uma ampla variedade de atividades de regulamen
tação, compensação, distribuição e proteção.
Antes do século XIX, os estados diferiam acentuadamente no tocante à
sincronização e intensidade relativas dos dois principais processos de mudança.
Durante um século ou mais, o estado neerlandês alugou grandes exércitos e frotas
de navios, adotou precocemente a administração estatal das finanças, mas continuou
devendo aos capitalistas de Amsterdam e de outras cidades mercantis. Na verdade,
em alguns momentos o estado neerlandês se decompôs em suas principais munici
palidades. Por outro lado, em Castela, as forças terrestres - muitas vezes alugadas
fora da Espanha - predominaram; lá a monarquia conquistou o crédito dos merca
dores ao convertê-los em arrendatários de impostos e passou a depender das rendas
coloniais para reembolsá-los. Portugal, Polônia, as cidades-estado italianas e os es
tados do Sacro Império Romano adotaram outras combinações das duas curvas e,
desse modo, criaram estruturas de estado claramente diferentes
suas principais atividades. No que se refere à maior parte da história que nos
interessa aqui, os meios importantes eram sobretudo de coerção, os recursos para a
guerra. Os meios de coerção tinham uma função na guerra (atacando os rivais
externos), na formação do estado (atacando os inimigos internos) e na proteção
(atacando os inimigos dos clientes do estado). Os meios coercivos também faziam
parte do exercício de extração (tirando da população submetida os meios de
atividade do estado) e de justiça (resolvendo as disputas entre os membros dessa
população). Somente quando surgiram a produção e a distribuição é que os meios
de coerção deixaram de ser os principais suportes da atividade do estado - e mesmo
nesse momento o grau de coerção variou de estado para estado. Nas regiões em
que os estados instituíram seus próprios monopólios sobre a produção de sal, armas
e artigos de fumo, por exemplo, eles o fizeram caracteristicamente com a força das
armas; comumente o contrabando se torna contrabando quando os governantes
decidem monopolizar a distribuição da mercadoria em questão.
Os meios de coerção combinam armas com homens que saibam usá-las.
(Quero dizer mesmo homens; na experiência ocidental, as mulheres tiveram uma
importância surpreendentemente pequena na construção e uso da organização
coerciva, fato que certamente ajuda a explicar a sua posição subordinada dentro dos
estados.) Os agentes dos estados têm mais disponibilidade para concentrar a coerção
e para impedir que outros o façam, na medida em que (a) a produção de armas
implica um conhecimento esotérico, materiais raros e capital abundante, (b) poucos
grupos dispõem da capacidade independente de mobilizar grandes quantidades de
homens e (c) poucas pessoas conhecem o segredo de combinar armas com homens.
Com o decurso do tempo, os governantes dos estados europeus aproveitaram-se de
todas essas condições para instaurar monopólios das maiores concentrações de
meios de coerção dentro de seus territórios: exércitos, forças de polícia, armas,
prisões e tribunais.
Os estados usaram a concentração da coerção de muitas maneiras diferentes.
Nos primeiros séculos após 990 d.C., os reis raramente dispunham de maior
contingente de força armada sob seu controle do que os principais soberanos que
vieram depois. A logística da alimentação e manutenção de homens armados tornou
proibitivamente cara a instituição de exércitos permanentes. Normalmente, um
exército real era constituído da pequena força permanente do rei e das tropas que
deixavam temporariamente a vida civil a chamado dos partidários do rei. A
presença deste reforçava os vínculos pessoais entre os guerreiros: “A regra geral
era que o rei comandasse pessoalmente toda campanha importante. A idade não
importava; Oto III tinha 11 anos quando chefiou seu exército contra os saxões (991)
e Henrique IV tinha 13 quando foi à guerra contra os húngaros em 1063”
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AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS
Concentração de capital
Baixa Alta
Figura 2.6 Caminhos alternativos de mudança em caso de concentrações de capital e de poder coerci
vo na Europa, 1000-1800.
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AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS
LIAISONS DANGEREUSES
Durante a maior parte do último milênio, as cidades e estados europeus
estabeleceram uma série de liaisons dangereuses*, questões de amor-ódio em que
cada um se tornou ao mesmo tempo indispensável e intolerável ao outro. As cidades
e seus capitalistas buscaram junto àqueles especialistas em coerção que percorriam
os estados a indispensável proteção para sua atividade comercial e industrial, mas
certamente temeram a interferência na sua aquisição de riqueza e o desvio dos
recursos para a guerra, para os preparativos da guerra ou para o pagamento de
guerras passadas. Os estados e os militares passaram a depender dos capitalistas
baseados na cidade para assegurar os meios financeiros de recrutar e manter a força
armada, embora se preocupassem particularmente com a resistência ao poder do
estado engendrada pelas cidades, por seus interesses comerciais e por suas classes
trabalhadoras. Na troca de proteção por acesso ao capital, as cidades e os estados
encontraram as bases para incômodas negociações, mas até o século XIX tais
negociações continuaram frágeis.
É difícil imaginar hoje em dia as conspirações que Messina, a cidade mais
mercantil da Sicília, intentou no século XVII. A Sicília tornou-se de tal forma um
símbolo do atraso que esquecemos facilmente os muitos séculos de glória siciliana
quando foi sede de reinados brilhantes, celeiro do Mediterrâneo e objeto de
competição entre as grandes potências. A Sicília - antes muçulmana e depois
normanda - caíra sob o domínio de Aragão em 1282, e no século XVI, com a
formação de uma monarquia espanhola unificada, se convertera numa propriedade
da Espanha. Os oligarcas-mercadores de Messina se exasperaram com o domínio
espanhol, que, em favor de interesses dinásticos, reprimiu o seu acesso aos mercados
estrangeiros e sobretudo o seu controle sobre a exportação da seda siciliana. Em
1674, a Espanha (frouxamente aliada à Holanda) estava em guerra com a França
(naquele momento com frouxas alianças com a Inglaterra). Os líderes de Messina
fecharam os seus portões às tropas espanholas, pediram ajuda à França, à Inglaterra
* Em francês no texto, “ ligações perigosas”. (N. do T.)
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CHARLES TILLY
Concentração de capital
Baixa Alta
* Em inglês, libré. Qualquer das companhias de Londres que se desenvolveram a partir das guildas co
merciais mais antigas, que se caracterizavam por um uniforme distintivo. (N. do T.)
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/IS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS
semi-autônoma nas questões reais. Nesses aspectos, a Inglaterra se assemelhou mais
aos Países-Baixos que à Escandinávia. Do século XVII em diante, finalmente, o
estado que emergiu assistiu à crescente limitação do poder real pelos representantes
conjuntos dos proprietários de terra e da burguesia, o Parlamento. Assim, a
Inglaterra tentou percorrer uma certa distância nas duas principais trajetórias de
formação do estado.
variou com o tipo predominante de guerra: foi historicamente forte na guerra naval,
menos na de artilharia e cavalaria, e bastante atrasado em táticas que usavam um
exército numeroso.
As forças militares permanentes reduziram (mas não eliminaram) as insur
reições por ocasião das exigências de recursos militares e, desse modo, aumentaram
a vantagem dos estados que dispunham de crédito a longo prazo e de bases amplas
de tributação. Estados como a Prússia, a França e a Grã-Bretanha - considerados
muitas vezes modelos de formação eficiente de estado - combinaram a cooptação
dos proprietários de terras e dos comerciantes, criaram exército (e marinha) per
manente na época das táticas de formação militar cerrada, da Guerra dosTrinta Anos
às Guerras Napoleônicas, e, conseqüentemente, criaram vastas burocracias centrais.
Contrastes entre esses exemplos de compêndios escolares, no entanto, ocuparam
apenas uma faixa estreita no espectro total da formação do estado europeu.
Quando se mobilizaram para as guerras da Revolução Francesa e as Napo
leônicas, a maioria dos estados europeus se expandiram e centralizaram. No final
da guerra, todos eles se contraíram um pouco - nem que seja apenas por causa da
desmobilização dos milhões de homens em armas por volta de 1815 - mas seus
orçamentos, seu pessoal e os níveis de sua atividade continuaram muito mais
elevados do que em 1790. A guerra na Europa e fora dela continuou a fornecer os
maiores incentivos para aumentos nos gastos do estado. Não obstante, no século
XIX, ocorreram diversas mudanças decisivas na formação de estado. A grande
implosão do capital e do trabalho nas cidades e vilas criou para os governantes
ameaças e oportunidades que não haviam enfrentado anteriormente: ameaças de
ação coletiva decorrente da concentração da classe trabalhadora, oportunidades de
extração e controle como nunca haviam tido antes. O campo de atividade do estado
ampliou-se imensamente em toda a Europa; melhorar a navegação, construir
estradas e ferrovias, policiar, criar escolas, instituir serviços de correio, estabelecer
regras para as relações entre o capital e o trabalho, tudo isso passou a ser atividade
regular dos estados, e ensejos de agregar especialistas do serviço estatal. Serviços
civis profissionais se formaram e se multiplicaram.
Ao mesmo tempo, quando os governantes negociaram com as suas populações
impostos maciços, serviço militar e cooperação em programas estatais, a maioria
dos estados deu dois passos à frente de profunda importância: o avanço para o
governo direto que reduziu o papel dos patronos locais e regionais e colocou
representantes do estado nacional em cada comunidade, e a expansão da consulta
popular sob a forma de eleições, plebiscitos e legislaturas. Juntos, eles favoreceram
o nacionalismo tanto no sentido da identificação popular com os objetivos doestado
(para a maioria) quanto (para as minorias) no sentido da resistência às exigências
IIX
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS
empréstimos vultosos, tributar com eficiência e contar com seu próprio poder ul
tramarino para manter à distância os grandes estados limitados territorialmente. Em
segundo lugar, a guerra acabou tomando um rumo que fez da sua soberania frag
mentada e de pequena escala uma clara desvantagem, e foi vencida pelos estados
maiores. As repúblicas de Milão e de Florença esboroaram-se sob o peso das requi
sições militares dos séculos XV e XVI. Na verdade, um organizador profissional de
exércitos mercenários, Francesco Sforza, tornou-se duque de Milão em 1450 antes
Vjue os seus descendentes perdessem o ducado para a França (1499) e depois para a
Espanha (1535).
Em Florença, um república renovada persistiu até 1530, mas então as forças
combinadas do papa e do imperador Carlos V ocuparam o seu contado, forçaram
uma rendição da cidade (apesar das fortificações recomendadas por uma comissão
chefiada por Niccolò Macchiavelli e construídas sob a direção de Michelangelo
Buonarrotti) e instalaram os Medieis como duques. Com as exceções parciais de
Veneza e Gênova, que se mantiveram de algum modo como potências marítimas,
essa época de grandes exércitos, artilharia pesada e extensas fortificações levou
todas as cidades italianas à extinção, subordinação ou sobrevivência perigosa nos
interstícios das grandes potências.
Por que a guerra derivou da conquista por tributo e da luta entre extorqui-
dores de tributos armados para as batalhas sustentadas entre extensos exércitos e
marinhas? Em essência, por dois motivos: com as inovações organizacionais è téc
nicas da guerra nos séculos XV e XVI, os estados que tinham acesso a grande quan
tidade de homens e a grande volume de capital adquiriram uma vantagem manifesta,
e repeliram os cobradores de tributos ou obrigaram-nos a adotar outros padrões de
extração que geraram uma estrutura de estado mais duradoura. Nos séculos XV e
XVI, o estado russo fez essa transição quando Ivan III e Ivan IV usaram concessões
de terras para amarrar os burocratas e soldados ao serviço do estado por longo
tempo. No decurso do século XVIH, a capacidade dos estados populosos, como a
Grã-Bretanha e a França, de recrutar entre seus próprios cidadãos exércitos maciços
lhes proporcionou os meios de subjugar os pequenos estados.
Mesmo que essa análise esteja correta, ela cria os seus próprios paradoxos:
por que, por exemplo, o fragmentado Sacro Império Romano perdurou por tanto
tempo em meio a monarquias belicosas e em consolidação? Por que não foi engolido
pelos estados grandes e poderosos? Outrossim, que lógica teria previsto que a
comercial Novgorod, uma cidade mercantil cujos patrícios controlavam todo o seu
grande interior, daria origem à Moscou principesca? Certamente, a posição
geopolítica e as retrações com respeito às principais potências desempenharam um
papel mais importante do que insinua a minha formulação simples. Isso se evidencia
121
CHARLES TILLY
de forma mais patente nos últimos capítulos. Não obstante, a linha de raciocínio
resumida no diagrama capital-coerção convida-nos a repensar a formação do estado
europeu em termos da interação entre cidades e estados, e desse modo apreende
algumas normalidades amplas na formação do estado. Supera claramente a
explanação da formação do estado inglês, francês ou prussiano enquanto processo
essencial e todas as outras tentativas atenuadas ou mal-sucedidas de seguir a mesma
trajetória. 3
Contudo, no decurso dos séculos anteriores ao XIX, os estados haviam diver
gido bastante quando criaram forças militares em situações em que as relações entre
o capital e a coerção eram muito diferentes. Trajetórias alternativas de formação do
estado, por sua vez, conduziram a formas diferentes de resistência e rebelião, a es
truturas de estado diferentes e a sistemas fiscais diversos. Se assim for, debates pa
dronizados sobre a transição do feudalismo para o capitalismo e o surgimento de
estados nacionais se concentraram demais nas experiências da França, da Inglaterra
e de alguns outros estados extensos, ao passo que negligenciaram um determinante
importante do caráter real dos estados. Na Polônia, os grandes proprietários de terras
subjugaram tanto os capitalistas quanto os reis, mas praticamente não existiram na
Holanda. O “feudalismo” de Florença e de seu contado diferiram tanto do “feuda
lismo” da Hungria que dificilmente se pode denominar os dois com o mesmo termo.
Mais do que qualquer outra coisa, a importância relativa das cidades, dos
financistas e do capital numa zona de formação do estado afetou consideravelmente
os tipos de estado que se formaram nessa região. A mobilização para a guerra teve
efeitos bastante diferentes de acordo com a presença ou ausência de capital vultoso
e de capitalistas. Uma olhadela mais atenta à verdadeira atuação dos estados
europeus - o tema do capítulo seguinte - esclarecerá como a disponibilidade e a
forma do capital tornaram tão diferentes a preparação para a guerra, e como a guerra,
por sua vez, moldou a estrutura organizacional duradoura dos estados.
Os capítulos 3 e 4 deixarão de lado a variação geográfica dentro da Europa
para examinar decididamente as principais mudanças na guerra, a estrutura política
e a luta doméstica. Em compensação, os capítulos 5 e 6 (sobre as trajetórias
alternativas de formação do estado e a evolução do sistema internacional dos
estados) atentarão firmemente para a variação entre os diferentes tipos de estado,
antes que o capítulo 7 confronte a experiência histórica da Europa com o caráter da
formação do estado no mundo contemporâneo.
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3
AS GUERRAS
Por que aconteceram as guerras? O fato central e trágico é simples: a coerção
funciona; aqueles que aplicam força substancial sobre seus camaradas obtêm con
descendência, e dessa condescendência tiram múltiplas vantagens, como dinheiro,
bens, deferência, acesso a prazeres negados aos indivíduos menos poderosos. Os
europeus seguiram urna lógica padronizada de provocação da guerra: todo aquele
que controlava meios substanciais de coerção tentava garantir uma área segura
dentro da qual poderia desfrutar dos lucros da coerção, e mais uma zona-tampão
fortificada, talvez conseguida aleatoriamente, para proteger a área segura. A polícia
ou o seu equivalente exercia a força na área segura, enquanto o exército patrulhava
a zona-tampão e se aventurava fora dela; os príncipes mais agressivos, como Luís
XIV, reduziram a zona-tampão a uma fronteira estreita mas fortemente armada, ao
passo que seus vizinhos mais fracos ou mais pacíficos tinham zonas-tampão e cursos
d’água maiores. Quando essa operação era assegurada por algum tempo, a zona-
tampão se transformava em área segura, que encorajava o aplicador de coerção a
adquirir uma nova zona-tampão em volta da antiga. Quando as potências adjacentes
estavam perseguindo a mesma lógica, o resultado era a guerra.
No entanto, algumas condições prévias da guerra variaram. A marca particular
de cada estado na guerra dependia de três fatores estreitamente relacionados: a
natureza de seus principais antagonistas, os interesses externos de suas classes
dominantes e a lógica da atividade de proteção que os governantes adotavam em
m
CHARLES TILLY
nome de seus próprios interesses e dos das classes dominantes. Naquelas regiões
em que os antagonistas eram marinheiros mercadores, a pirataria e o corso simples
mente persistiram, independentemente do estado formal de guerra e paz, ao passo
que, naquelas em que as potências agrárias dominadas pelos senhores de terra
viviam ombro a ombro, as disputas pelo controle da terra e do trabalho - principal
mente nos momentos das brigas de sucessão - precipitaram com muito mais
freqüência o apelo às armas. Quando as pequenas potências marítimas dispunham
de grandes impérios ultramarinos, a proteção dos interesses levou-os a patrulhar as
linhas costeiras e, desse modo, a travar inevitáveis batalhas contra aqueles que
cobiçavam o mesmo negócio. Com a mudança básica, no decurso dos mil anos que
estamos estudando, da composição de rivalidades, da natureza das classes
dominantes e das solicitações de proteção, mudaram também as causas carac
terísticas da guerra.
A coerção é sempre relativa; quem quer que controle meios concentrados de
coerção corre o risco de perder vantagens quando um vizinho cria os seus próprios
meios. Na Europa anterior a 1400, o controle da maioria dos estados por grupos de
parentesco compôs a competição. Onde os governantes formavam um grupo de
parentesco, a tendência de grupos mais prósperos de parentesco se expandirem e
buscarem locais para seus herdeiros em números crescentes incitou-os à conquista
e, por conseguinte, aguçou as suas rivalidades. Além disso, o casamento entre
famílias governantes multiplicou as pretensões de dinastias poderosas aos tronos
vagos. Na soberania fragmentada da Europa, os antagonistas - parentes ou não -
sempre estavam à mão, mas do mesmo modo quase sempre uma coligação estava
pronta a impedir a expansão indefinida de qualquer centro particular.
Além disso, por muito tempo, estados maiores, como a Borgonha e a
Inglaterra, abrigaram antagonistas Internos do soberano vigente, grupos armados
que tinham alguma pretensão ao governo e que, às vezes, serviam de aliados
implícitos ou explícitos dos inimigos externos. Na China, quando se formou o vasto
aparelho imperial um império em desenvolvimento tinha uma série de inimigos,
mas nenhum antagonista real dentro ou fora de seus territórios. Os mongóis fizeram
constantes ameaças ao longo da fronteira setentrional da China e de vez em quando
realizaram incursões devastadoras dentro do império, mas só o tomaram realmente
uma única vez. Em geral, os mongóis eram melhores na extorsão de tributos do que
teriam sido na operação dos próprios aparelhos do estado. As dinastias chinesas
entraram em colapso quando a esfera administrativa do império fugiu ao seu
controle, quando os senhores da guerra se organizaram nos interstícios do império
e quando os invasores nômades (principalmente os manchus) assolaram o território
imperial e tomaram as rédeas do poder. A China se tornou o local de grandes
128
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA
rebeliões e guerras civis, mas não de guerra entre múltiplos estados. Nesse
particular, a Europa manteve o recorde.
Com o transcorrer do tempo, as guerras européias tornaram-se mais letais e
menos freqüentes. Apoiando-se na obra pioneira de Pitirim Sorokin, Jack Levy
compilou um catálogo das maiores guerras de que participaram as grandes potências
- na Europa ou em outras regiões - de 1495 até 1975 (ver tabela 3.1). O seu ca
tálogo, que requer um mínimo de mil mortos em combate por ano, é muito menor
que a listagem que Evan Luard tentou elaborar e que compreendia todas as guerras
de vulto num período comparável, mas Levy estabelece critérios mais claros.de
inclusão e fornece maiores detalhes sobre as guerras que relaciona (ver Levy 1983,
Luard 1987). No decurso dos séculos, o número de guerras entre as grandes
potências, a sua duração média e a proporção dos anos de duração dessas guerras
caíram de forma relevante (Levy 1983: 88-91, 139). A lista de todas as guerras
elaborada por William Eckhardt - guerras entre as grandes potências « outras,
internacionais e civis, combinadas - atribui 50 ao século XVIII, 208 ao século XIX
e 283 ao século XX até 1987 (Eckhardt 1988: 7; Sivard 1988: 28-31).
Figura 3.1 Magnitudes das guerras entre grandes potências por século, 1500-1975.
130
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA
Essa mudança no caráter da guerra depois de 1494 foi enfatizada por Machiavelii, com
o intuito de provar uma tese sobre os méritos relativos de milicianos a conclouicri, como o
foi igualmente por Guicciardini cuja intenção era revolver a faca na ferida da auto-estima da
135
CHAULES TILLY
Itália, mas certam ente houve uma m udança, e foi saudada com horror difuso. Contudo, esse
horror não era causado pela guerra em grande escala como tal, já que ela se opunha às guer
ras anteriores de pequena escala, nem mesmo pelo fato de essas guerras durarem demais; tam
pouco era provocado de alguma form a pela mudança no caráter da guerra - que se tornara
mais sangrenta, mais total, mais cara. Foi motivado pela evidência, fornecida por essas guer
ras, de um colapso da moral, de um fracasso do caráter italiano em enfrentar esse desafio.
(Hale 1983: 360.)
ções para as guerras do estado. Mais ou menos no meado do século XVI, as provín
cias holandesas e italianas da Espanha deixaram de concordar com aumentos subs
tanciais; Carlos V e Filipe II, necessitando de ajuda financeira, voltaram seus olhos
cada vez mais para Castela (onde seus antecessores haviam mostrado mais eficiência
na sujeição da nobreza, do clero e das cidades à vontade real) e para a América
(Elliott 1963: 192-3). Também tomaram empréstimos sob a garantia de antecipações
de renda de Castela e da América, resultando daí que, por volta de 1543, 65% das
rendas regulares da coroa se destinavam ao pagamento das anuidades (Elliott 1963:
198; para maiores detalhes, ver Fernandez Albaladejo 1989). Por conseguinte, não
deve causar surpresa que a coroa tenha ido à bancarrota quando não reconheceu as
suas dívidas em 1557.
Na mesma época, os suíços - ainda um povo conquistador nesse tempo -
desenvolveram novas táticas militares, que empregavam uma infantaria altamente
disciplinada e que logo provaram a sua superioridade. Os suíços já haviam
demonstrado seu valor militar quando, na década de 1470, derrotaram repetidas
vezes Carlos, o Calvo, da Borgonha. Em pouco tempo quase toda potência
necessitava dos soldados suíços, e a Suíça começou a substituir a condução de suas
próprias guerras pelo treinamento e exportação de mercenários (Fueter 1919: 10).
No processo, até os cantões suíços entraram no negócio de fornecimento de
soldados em troca de pagamento (Corvisier 1976: 147). A exemplo dos outros
exportadores de mercenários, a Suíça contava um número extenso de montanheses
pobres, nômades, semiproletarizados, que casavam tarde, portanto excelentes
candidatos ao serviço militar longe da terra natal (Braun 1960). Os mercenários,
fossem suíços e outros, substituíram os exércitos de clientes e as milícias de
cidadãos.
Numa escala pequena, durante séculos os mercenários tiveram a sua
importância nas guerras européias. Desde o tempo das cruzadas, soldados
flibusteiros do norte dos Alpes vendiam os seus serviços aos príncipes, genuínos
ou aspirantes, por todo o Mediterrâneo. Quando não encontravam quem os
empregasse, extorquiam e pilhavam por conta própria (Contamine 1984: 158).
Durante o século XIV, as cidades-estado italianas começaram empregando pequenos
corpos de tropas alugadas. Quando se acelerou a sua anexação forçada do território
adjacente, na década de 1320, por exemplo, Florença passou a depender
regularmente da cavalaria mercenária. Nos anos 1380, a Florença democrática
empregou - ou subornou - o grande mercenário inglês sir John Hawkwood, que
vinha pilhando a Toscânia desde que o término de uma guerra entre Milão e o
papado deixara a sua companhia desempregada. Hawkwood havia servido
anteriormente à Inglaterra, a Sabóia, a Milão, a Pisa e ao papado. Para a infelicidade
I3H
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS. E VICE-VERSA
Ató a década dc 1660, uma proporção considerável da frota de galeras francesas era
equipada por empresários privados (m uitas vezes Cavaleiros de M alta) que eram os proprie
tários das galeras que comandavam e serviam ao rei sob contrato por um período fixo em tro
ca de uma soma especificada. Na Espanha, em 1616, a marinha estava em má situação e dos
setenta navios da frota cinco eram de propriedade privada, alugados apenas para o verão (a
estação dc campanhas marítimas e terrestres), enquanto que no ano seguinte outros seis ou
sete tiveram de ser alugados para fornecer um a escolta às frotas de prata da América ao por
to. Na Inglaterra, dos vinte e cinco navios que formaram a expedição de Drake às índias Oci
dentais em 1585, apenas dois foram equipados pela rainha; e, em bora viajasse na qualidade
de almirante da rainha e recebesse instruções oficiais, som ente cerca de um terço dos custos
da expedição foi pago pelo governo.
(Anderson 1988: 27;
ver tam bém Fontenay 1988a, 1988b.)
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COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA
recursos de venda fácil, por exemplo, tornam-na mais atraente para os credores, e
ocasionalmente fornece uma alternativa ao empréstimo. Enquanto o ouro e a prata
fluíam das Américas, os reis espanhóis encontraram emprestadores de boa vontade
em Augsburgo, Amsterdam e em outros locais. Na época da mobilização em massa
e dos imensos exércitos de cidadãos que tiveram início com a Revolução Francesa,
o simples tamanho da população de um estado passou a representar crescentemente
uma facilidade para a práticaxla guerra. Mesmo então, as relações entre a atividade
capitalista, a monetização, a disponibilidade de crédito e a facilidade na guerra eram
fonte de importante diferença entre os estados da Europa; proporcionaram aos
estados que tinham pronto acesso aos capitalistas vantagens extraordinárias em
mover-se rapidamente para uma base de operações.
PAGANDO AS DÍVIDAS
Fossem os empréstimos pesados ou não, todos os governantes enfrentaram o
problema de ter de pagar as suas guerras sem destruir a capacidade de suas fontes
para pagamentos futuros. E adotaram estratégias fiscais muito diferentes. As receitas
governamentais em geral (“impostos”, no sentido amplo do termo) se compõem de
cinco categorias amplas: tributos, rendas, impostos sobre a circulação, taxas sobre
os estoques e impostos sobre a renda. Os tributos compreendem os pagamentos
arbitrários cobrados de indivíduos, grupos ou localidades; os impostos individuais
que são iguais para toda a população ou para as suas principais categorias cons
tituem um tipo especial de tributo. As rendas consistem de pagamentos diretos por
terras, bens e serviços fornecidos contingentemente pelo estado aos usuários parti
culares. (Alguns estados - a Rússia, a Suécia e o Império Otomano, por exemplo -
deram uma característica especial às rendas ao concederem a alguns oficiais mili
tares e funcionáriosci vis as rendas das terras da coroa que eles mantinham enquanto
continuassem prestando serviço ao rei.)
Tanto as rendas quanto os tributos podem ser facilmente cobrados em espécie.
As taxas sobre a circulação e sobre os estoques não o podem. As taxas sobre a
circulação abrangem os impostos sobre o consumo, as taxas alfandegárias, as taxas
de pedágio e de transporte, os impostos sobre transação e outras taxas sobre
transferências e movimentações; os especialistas muitas vezes as denominam
impostos indiretos, porque refletem de forma bastante indireta a capacidade de
147
CHARLES TILLY
Monctização
Baixa Alta
Alta
+ +
+ Rendimentos +
+ +
+ +
+‘ Estoques +
+ +
o + •f
«" + +
Circulação +
1 + +
iS
+ 4-
+ Rendas +
+ +
+ +
+ +
Tributos +
Baixa + --------------------------------------------------------------------------------1-
lizadas e detentoras de capital abundante. Todavia, onde quer que ocorreram, mul
tiplicaram os servidores civis do estado. Um esforço de guerra mais intenso geral
mente produziu uma expansão contínua do aparelho central do estado - o número
de seus servidores em tempo integral, o alcance de suas instituições, o tamanho de
seu orçamento, a extensão de sua dívida. Quando a Holanda e a Espanha, ein 1609,
estabeleceram uma trégua na guerra esgotante pelas pretensões holandesas à
independência, muitos observadores de ambos os lados esperaram um alívio na
extraordinária tributação que os havia esmagado na década anterior. O que se viu
foi que o serviço da dívida, a construção de fortificações e outras atividades do es
tado absorveram facilmente as receitas liberadas pela desmobilização militar. Os
impostos não diminuíram significativamente em nenhum dos dois países (Israel
1982: 43-4).
Alguns historiadores referem-se a um “efeito catraca” pelo qual um orçamen
to inflado em tempo de guerra nunca retorna ao nível anterior ao conflito (Peacock
& Wiseman 1961; Rasler & Thompson 1983, 1985a). O efeito catraca não ocorre
universalmente, mas aparece com bastante freqüência, sobretudo naqueles estados
que não sofreram grandes perdas na guerra em questão. Ocorre por três motivos:
porque o aumento do poder do estado em tempo de guerra oferece aos funcionários
uma nova capacidade de extrair recursos, de empreender novas atividades e de
defender-se contra a redução de custos; porque as guerras ou suscitam ou revelam
novos problemas que exigem a atenção do estado; e porque a acumulação de dívida
em tempo de guerra impõe novos encargos ao estado.
As dívidas nacionais se originam em grande parte de empréstimos para e
durante as guerras. A possibilidade de tomar empréstimos para satisfazer os gastos
militares afetou fortemente a capacidade do estado de realizar campanhas militares
eficientes. As solicitações da República Holandesa, no século XVII, aos financistas
de Amsterdam e de outras cidades comerciais importantes permitiram que um
pequeno estado levantasse rapidamente enormes somas para seus exércitos e
marinhas e se tornasse por algum tempo a potência dominante da Europa. As
inovações decisivas haviam ocorrido entre 1515 e 1565, quando os Estados Gerais
dos Países-Baixos dos Habsburgos (cujas províncias setentrionais, após se
revoltarem em 1568, tornar-se-iam no final a República Holandesa) determinaram
a cobrança de anuidades garantidas pelo estado e asseguradas por novos impostos
específicos e que rendiam juros atraentes (Tracy 1985). Conseqüentemente, “numa
emergência, a República Holandesa poderia levantar em dois dias um empréstimo
de um milhão de florins ajuros de apenas 3%” (Parker 1976: 212-13). Os títulos de
crédito do estado tornaram-se um investimento favorito dos investidores holandeses,
cujos agentes taxaram toda a economia em seu próprio benefício. Na verdade, a
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COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS. E VICE-VERSA
palavra “capitalista” em seu uso moderno parece ter derivado do termo que desig
nava aqueles cidadãos holandeses que pagavam a taxa mais alta per capita de im-
- posto, apregoando desse modo a sua riqueza e sua capacidade de crédito.
Os banqueiros holandeses eram tão abundantes, competentes e independen
tes que, após 1580, enquanto prosseguia a guerra dos Países-Baixos setentrionais
contra os seus antigos senhores espanhóis, os banqueiros conseguiram ganhar di
nheiro embarcando para a Antuérpig a prata desviada da frota espanhola, que desse
modo pagava as despesas espanholas da guerra (Parker 1972: 154-5). Quando, em
1608, a Espanha propôs reconhecer a independência da Holanda se esta se retirasse
das índias Orientais e Ocidentais, o negociador holandês Oldenbarnevelt “retrucou
que muitas personagens proeminentes da República estavam envolvidas demais na
Companhia das índias Orientais para que ela fosse dissolvida” (Israel 1982: 9). To
davia, no conjunto, a profusão de comerciantes atuava em benefício do próprio es
tado holandês. Uma economia intensamente comercial permitiu que, no século XVII,
o estado holandês seguisse um caminho que os vizinhos prussianos acharam obs
truído e que os ingleses, recém-agraciados com um rei holandês, tomaram na década
de 1690. Ao adotar as técnicas fiscais holandesas, os ingleses conseguiram reduzir
a dependência em que se achavam anteriormente em relação aos banqueiros holan
deses e, no final, sobrepujaram os holandeses na guerra.
No século XVII, os holandeses ocuparam uma posição extrema no eixo da
comercialização. Outros estados ricos de capital, como as potências comerciais
italianas de Gênova e Veneza, adotaram técnicas semelhantes de criação da força
militar mediante crédito público e tributação sobre a circulação de mercadorias. Nas
regiões que aplicavam intensa coerção, os recursos que poderiam ser usados para a
guerra continuavam embutidos na agricultura, e nas mãos dos magnatas que
detinham uma força autônoma considerável; nesse caso, a extração de recursos
militares assumiu obviamente formas muito diferentes: diversas combinações de
expropriação, cooptação, clientelismo, conscrição e forte tributação. Entre os dois
extremos, em áreas de coerção capitalizada, o equilíbrio maior entre o capital e a
coerção permitiu que os governantes jogassem um contra o outro, usando força
alugada para impedir que os detentores de exércitos privados e de exércitos
nacionais persuadissem os possuidores de capital privado; com o tempo, enquanto
crescia o volume absoluto das requisições militares, a combinação deu aos
governantes dos estados de coerção capitalizada a vantagem decisiva na guerra; em
conseqüência, o seu tipo de estado - o estado nacional - predominou sobre as
cidades-estado, os impérios, as federações urbanas e outras formas de estado que
algumas vezes haviam prosperado na Europa.
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