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AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

A EUROPA INEXISTENTE
Mil anos atrás, a Europa não existia. Uma década antes da passagem do
Milênio, os quase trinta milhões de pessoas que viviam na extremidade oeste da
massa de terra chamada Eurásia não tinham qualquer razão peremptória para achar
que constituíam um conjunto isolado de pessoas, ligadas pela história e pelo destino
comum. Tampouco o fizeram. É verdade que a desagregação do Império Romano
havia deixado uma parte significativa do que hoje conhecemos por Europa ligada
por estradas, comércio, religião e memória coletiva. Mas o mundo romano negli­
genciou uma grande parcela da região situada a leste do Reno e ao norte do mar
Negro. Também o Império não era, no final, exclusivamente europeu; havia-se es­
tendido em torno do Mediterrâneo até a Ásia e a África.
Do ponto de vista do comércio e do contato cultural, a “Europa” do milênio
fragmentou-se em três ou quatro aglomerados ligados bastante frouxamente: uma
faixa oriental correspondente mais ou menos à Rússia européia de hoje e que
mantinha fortes vínculos com Bizâncio e com as principais rotas de comércio que
atravessavam a Ásia; um Mediterrâneo compartilhado por muçulmanos, cristãos e
judeus e com vinculações muito mais fortes com as grandes metrópoles do Oriente
Médio e da Ásia; um sistema pós-romano de cidades, aldeias, estradas e rios, mais
denso numa curva que se estendia da Itália central aFlandres, masque se irradiava
pela Alemanha e pela França; talvez um aglomerado setentrional distinto que
compreendia a Escandinávia e as Ilhas Britânicas. (Na verdade, muitos desses
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rótulos pecara por anacronismo; mas a nós, que precisamos adotar um conjunto
enfadonho de convenções geográficas, não nos resta outra alternativa senão usar
designações como “Alemanha” e “Ilhas Britânicas” sem que se precise advertir alto
e bom som que não implicam vinculação política ou cultural.)

Figura 2.1 A Europa em 406 d.C. (adaptado de Colin McEvedy, The Penguin Atlas o f Medieval History,
Penguin Boolcs, 1961. Corpyright © 1961 Colin M cEvedy).

No ano de 990, os domínios muçulmanos controlavam uma parcela im­


portante do antigo espaço do Império Romano: todas as costas meridionais do
Mediterrâneo e a maior parte da Península Ibérica, sem contar as inúmeras ilhas
mediterrânicas e uns poucos pontos ao longo de sua costa setentrional. Um Império
Bizantino com ligações bastante frouxas estendia-se do leste da Itália à extremidade
orientai do mar Negro, enquanto ao norte um estado russo um pouco mais definido
se alongava até o Báltico. Um reino dinamarquês exercia seu poder do oeste do
Báltico até as Ilhas Britânicas, enquanto os principados instáveis da Polônia,
Boêmia e Hungria controlavam o território ao sul do Báltico. Aoeste desses situava-
se o Império Saxão, que reclamava a herança de Carlos Magno, enquanto ainda mais
longe na mesma direção Hugo Capeto governava o reino da França.
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No entanto, nenhum desses nomes de lugar meio familiares poderia disfarçar


a enorme fragmentação de soberania que então predominava em todo o território
que mais tarde se tornaria a Europa. Os imperadores, reis, príncipes, duques, califas,
sultãos e outros potentados de 990 d.C. reinaram como conquistadores, extorqui-
dores de tributos e arrendatários de impostos, e não como chefes de estado que con­
trolavam duradoura e densamente a vida dentro de seus domínios. Além do mais,
dentro de suas jurisdições, antagonistas e pretensos subordinados usaram comu-
mente a força armada em seus próprios interesses e dispensaram pouca atenção aos
interesses de seus soberanos nominais. E os exércitos particulares proliferaram em
grande parte do continente. Em nenhum lugar da Europa existia algo que se
assemelhasse a uma nação centralizada.

Figura 2.2 A Europa em 998 (adaptado de Colin McEvedy, The Penguin Atlas o f Medieval History,
Penguin Books, 1961. Copyright © 1961 Colin McEvedy).

Dentro do anel formado por esses estados alastrados e efêmeros, a soberania


fragmentou-se mais ainda, ao mesmo tempo que centenas de principados, bispados,
cidades-estado e outras autoridades exerciam um controle superposto sobre as
pequenas áreas interioranas em volta de suas capitais. Na passagem do milênio, o
papa, o imperador bizantino e o sacro imperador romano reclamavam a maior parte
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da península italiana, mas, na verdade, quase toda cidade importante e seu interior
adjacente operava como se fosse um agente político livre. (Em 1200 d.C., somente
a península italiana compreendia duzentas ou trezentas cidades-estado distintas
[Waley 1969: 11].) Salvo pela relativa urbanização das terras muçulmanas, a corre­
lação entre o tamanho dos estados e a densidade das cidades era negativa: onde as
cidades pulularam, a soberania se esmigalhou.
Adiante começará a ser estabelecida uma cronologia grosseira sobre as
mudanças nas cidades e estados no decurso dos últimos mil anos. Entrementes, no
entanto, façamos um comparação arbitrária a intervalos de 500 anos, apenas para
termos uma idéia do quanto a coisa mudou. Por volta de 1490, o mapa e a realidade
haviam-se alterado enormemente. Os cristãos armados estavam expulsando os
soberanos muçulmanos de Granada, seu último território importante na metade
ocidental do continente. Um Império Otomano islâmico havia desalojado os
bizantinos cristãos da região situada entre o Adriático e a Pérsia. Os otomanos
estavam triturando o poder veneziano no Mediterrâneo oriental e avançando para
os Bálcãs. (Aliando-se com a ameaçada Granada, também efetuavam as suas
primeiras incursões ao Mediterrâneo ocidental.) Além disso, depois de muitos

Figura 2.3 A Europa cm 1478 d.C. (adaptado de Colin McEvedy, The Penguin Atlas o f Medieval His­
tory', Penguin Books, 1961. Copyright © 1961 Colin McEvedy).
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séculos em que as guerras européias haviam permanecido regionais, e apenas uma


cruzada ocasional envolvera militarmente os estados transalpinos no Mediterrâneo,
os reis da França e da Espanha começaram a lutar pela hegemonia na Itália.
Em 1490, em torno da periferia européia situavam-se os governantes que
dominavam extensos territórios: não só o Império Otomano, como também a
Hungria, a Polônia, a Lituânia, Moscóvia, as terras da Ordem Teutônica, a União
Escandinava, a Inglaterra, a França, Portugal, Nápoles. Essas potências viviam em
grande medida de rendas e tributos e governavam por intermédio de magnatas
regionais que desfrutavam de grande autonomia dentro de seus próprios terrenos;
os magnatas freqüentemente opunham-se ao poder real ou mesmo o rejeitavam. Não
obstante, em 1490 todos os grandes reis e duques estavam consolidando e amplian­
do os seus domínios.
Nesse momento, dentro do círculo quebrado dos estados maiores a Europa
continuava sendo uma terra de soberania bastante fragmentada. É verdade que um
Império Habsburgo difuso começava a estender-se através do continente, enquanto
Veneza dominava um arco importante do Adriático. No entanto, a zona que vai do
norte da Itália até Flandres e, a leste, às fronteiras indefinidas da Hungria e da
Polônia se fragmentou em centenas de áreas formalmente independentes: princi­
pados, ducados, bispados, cidades-estado e outras entidades políticas que de modo
geral somente podiam usar a força no interior imediato em volta de suas capitais; o
sul da Alemanha sozinho abrangia 69 cidades livres, além de seus múltiplos
bispados, ducados e principados (Brady 1985: 10). Rumina J. R. Hale,
A pesar da fronteira que um cartógrafo podia traçar em torno da área que a opinião
pública do meado do século XV admitia integrar o Sacro Império Romano, isto é, a zona
essencialm ente germânica entre a França e a Hungria, e a Dinamarca e o norte da Itália, ele
não consegue colorir a multidão de cidades, de enclaves principescos e territórios eclesiásti­
cos militantes que se consideram real òu potencialmente independentes, sem que passe ao
leitor uma impressão de que está sofrendo de um mal da retina.
(Hale 1985: 14.)

Oitenta milhões de pessoas na Europa se distribuem em cerca de 200 estados, pre­


tensos estados, estadoziuhos e organizações similares a estados.
Por volta de 1990, outros cinco séculos mais tarde, os europeus haviam es­
tendido enormemente a obra de consolidação. Seiscentos milhões de pessoas viviam
então dentro do perímetro do continente. Nenhum estado muçulmano persistia na
Europa, embora um poderoso mundo islâmico prosperasse contenciosamente ao sul
e ao sudeste e impressionantes vestígios da cultura muçulmana perdurassem na
Espanha, nos Bálcãs e naTurquia. Um gigantesco estado russo havia-se constituído
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JAPÃO

MANCHUS

OIRATES'

MONCÓIS
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OTOMANOS
1VIJA1ANAGAR
TURCOS I I '
CARNEIROS 1 | GUJERAT
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IMPÉRIO1
INCA 1ABISSÍNIOS

Figura 2.4 O Mundo em 1490 d.C. (adaptado de Colin McEvedy, The Penguiri Atlas o f Modem fíisto-
ry to 1815, Penguin Books, 1972. Copyright © 1972 Colin McEvedy).

a leste e se estendia até o Ártico e o Pacífico, enquanto uma extensa Turquia


atravessava a fronteira asiática até o sudeste. Grande parte do continente se havia
transformado em estados que ocupavam pelo menos 100 mil quilômetros quadrados,
sem contar as colônias e as possessões: as duas Alemanhas, Bulgária, Espanha,
Finlândia, França, Grécia, Itália, Noruega, Polônia, Reino Unido, Romênia, Suécia,
Tchecoslováquia, Turquiae aURSS ainda não fraccionada. Os micro-estados, como
Luxemburgo e Andorra, embora maiores do que muitas das entidades políticas .flue
existiram em 1490, haviam-se transformado em meras curiosidades. Se se contasse
pelo número de governantes, a Europa inteira dividia-se em apenas 25 a 28 estados.
Levou muito tempo para que o mapa da Europa fosse dominado pelos estados
nacionais: organizações relativamente centralizadas, diferenciadas e autônomas que
reclamavam prioridade no uso da força dentro de territórios amplos, contíguos e
claramente circunscritos. Em 990, nada a respeito desse mundode feudos, senhores
locais, invasores militares, aldeias fortificadas, cidades comerciantes, cidades-
estado e mosteiros podia prever uma consolidação em estados nacionais. Em 1490,
o futuro continuava à frente; apesar do uso freqüente da palavra “reino”, os impérios
de um ou de outro tipo reclamavam a maior parcela da paisagem européia e, em
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Figura 2.5 A Europa em 1990 d.C.

algumas regiões do continente, as federações continuavam viáveis. Algum tempo


depois de 4490, os europeus eliminaram essas oportunidades alternativas e partiram
decididamente para a criação de um sistema constituído quase que totalmente de
estados nacionais com uma autonomia relativa.
Por outro lado, os estados diminuíram em quantidadee aumentaram em área.
Para traçar o mapa das mudanças, temos de aplicar o termo “estado” com
generosidade, incluindo qualquer organização que comandava meios substanciais
de coerção e reclamava uma prioridade permanente sobre todos os outros
aplicadores de coerção dentro pelo menos de um território claramente circunscrito.
Em 990, alguns estados muçulmanos relativamente extensos dominavam grande
parte do oeste do Mediterrâneo, inclusive o sul da Espanha e a costa norte da África.
Entre outros estados de bom tamanho, podemos incluir o reino da França, o império
saxão, o reino da Dinamarca, a Rússia de Kiev, a Polônia, a Hungria, a Boêmia e o
Império Bizantino. No conjunto, os governantes dessas entidades políticas cobra­
vam tributos dos territórios que se achavam nominalmente sob o seu domínio. No
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entanto, fora de suas próprias regiões, administravam com dificuldade os seus pre­
tensos domínios e tinham a sua autoridade continuamente contestada por potentados
rivais, inclusive por seus próprios agentes e vassalos putativos.
Consideremos a Hungria, um estado que se desenvolveu a partir da área con­
quistada pelos magiares, um dos muitos povos nômades armados que, vindos da
estepe eurasiática, invadiram a Europa. No decurso do século X, a maioria dos ma­
giares migraram do Volga e dominaram os eslavos, que eram em menor número,
lavradores e habitantes das florestas da Bacia dos Cárpatos, região que hoje deno­
minamos Hungria (Pamlenyi 1975: 21-5). Quando se mudaram para o oeste dos
Cárpatos, a escassez da pastagem natural fez com que alguns nômades predadores
se retirassem, ou tivessem reduzida a sua população, ou se extinguissem (Lindner
1981). Depois de um século de pilhagem, os húngaros, agora cristianizados, volta­
ram-se cada vez mais para a agricultura num território quase desprovido de cidades.
Sua base agrícola não impediu que a nobreza húngara fizesse guerra com seus
vizinhos, lutasse pela sucessão real ou participasse do jogo europeu de casamentos
e alianças. Além do mais, o seu controle da força armada proporcionou-lhes o poder
de jogar escravos e homens livres indistintamente numa servidão comum. As
cidades cresceram no momento em que a agricultura feudal prosperou, as minas
passaram a exportar metais para o restante da Europa e as rotas de comércio da
região se ligaram às da Europa Central e Ocidental. O capital alemão acabou por
dominar o comércio e a indústria húngaros. No entanto, as cidades da Hungria
continuaram estritamente subordinadas a seus senhores nobres até que, no século
XV, a coroa começou a controlá-los.
No final do século XV, o rei Janos Hunyadi e seu filho, o rei Mateus Corvino,
construíram uma máquina de guerra relativamente centralizada e eficiente,
combatendo tanto os turcos belicosos a sudeste quanto os famintos Habsburgos a
oeste. Todavia, com a morte de Mateus, a nobreza contra-atacou e privou o seu
sucessor Ladislau dos meios de sustentar o seu próprio exército. Em 1514, o esforço
para organizar uma nova cruzada contra os turcos provocou uma imensa revolta
camponesa, cuja repressão reduziu definitivamente o campesinato à servidão e
aboliu os seus direitos de mudar de senhor. Na luta entre os magnatas que se seguiu
aos acordos de paz que puseram fim à guerra camponesa, o advogado Istvan
Verbõczi acolheu a opinião dos nobres em relação aos costumes húngaros, inclusive
as leis de compensação contra os camponeses e os provimentos pelos quais

os nobres gozavam de imunidade contra a prisão sem um prévio julgam ento legal, estavam
sujeitos som ente a um rei legitimamente coroado, não pagavam qualquer espécie de tributos
e só podiam ser recrutados para prestar serviço militar em caso de defesa do reino. Finalm en­
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te, era garantido o direito de rebelião contra qualquer rei que infringisse de algum modo os
direitos da nobreza.
(McNeill 1975 [1964]: 17.)

O tratado de Verbõczi tornou-se o texto autorizado da lei húngara e “a bíblia


da nobreza” (Pamlenyi 1975: 117). Por volta de 1526, a Hungria não tinha um, mas
dois reis eleitos e os dois lutavam entre si. Não admira muito que, no meio século
seguinte, os turcos tenham conseguido tomar a metade do território húngaro! Nessa
época, evidentemente, os grandes estados não eram necessariamente os estados
fortes.

OS ESTADOS E A COERÇÃO

Por volta de 1490, os muçulmanos estavam-se retirando de Granada, o seu


último posto avançado na Ibéria, mas ao mesmo tempo construíam um extenso
império em torno do Mediterrâneo oriental e faziam incursões até os Bálcãs.
Começaram a surgir nos flancos da Europa estados dotados de grandes exércitos e
de algum controle judicial e fiscal sobre territórios de bom tamanho, e as cidades-
estado principiaram a armar-se para a guerra terrestre como nunca havia acontecido
antes. O mapa europeu de 1490 atribui grandes áreas à Inglaterra, à Suécia, à
Polônia, à Rússia e ao Império Otomano, mas também assinala dezenas de ducados,
principados, arcebispados, cidades-estado e outros estados-miniatura.
A quantidade de estados distinguíveis depende de decisões discutíveis
relacionadas com a própria natureza dos estados da época. São elas: se os 13 cantões
suíços (como em 1513) e as 84 cidades livres do Império Otomano (como em 1521)
devem ser contados como entidades separadas; se as possessões tecnicamente
autônomas de Aragão e Castela, como a Catalunha e Granada, merecem reconhe­
cimento; se a colcha de retalhos dos Países-Baixos constituíam um único estado
(ou apenas parte de um estado) sob a hegemonia dos Habsburgos; se os estados
tributários sob o controle otomano pertenciam individualmente ao sistema europeu
de estado da época. Nenhum conjunto plausível de definições fornece menos de 80
unidades distintas, ou mais de 500. Podemos tomar, arbitrariamente, 200 como um
número médio. As cerca de 200 entidades políticas européias da época que detinham
uma autonomia formal controlavam uma média de 24,5 mil quilômetros quadrados,
mais ou menos o tamanho dos atuais El Salvador, Lessoto e Catar.
A população européia de aproximadamente 62 milhões de habitantes em 1490
distribuía-se numa média de 310 mil pessoas por estado. Evidentemente, as médias
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obscurecem as enormes variações: o grande número de estados menores da Europa


e suas populações caberiam facilmente no vasto território da Rússia. Não obstante,
a Europa principiava a consolidar-se em estados territorialmente distintos e
organizados em torno de instituições militares permanentes, e a superioridade
militar começava a propiciar aos estados melhores chances de sobrevivência.
Para falar a verdade, apenas começava. Em 1490, os exércitos eram consti­
tuídos, em sua grande maioria, de mercenários contratados para uma campanha, de
clientes dos grandes senhores e de milícias de cidadãos. Na França e na Borgonha,
os exércitos permanentes haviam substituído as milícias urbanas, mas em outros
reinos não muito. As rendas de tributos e as taxas pessoais ainda tinham grande peso
nas receitas dos reis. Dentro dos estados maiores, as comunidades, as guildas, as
igrejas e os magnatas regionais detinham grande parcela de imunidade e autonomia.
A administração se concentrava sobretudo nas questões militares, judiciais e fiscais.
Na zona central da Europa continuavam a proliferar as jurisdições diminutas. Como
as cidades-estado, ligas de cidades, impérios dinásticos, principados vinculados
apenas nominalmente a monarquias ou impérios maiores, e entidades eclesiásticas
como a Ordem Teutônica, todos coexistissem (embora litigiosamente) no continen­
te, ainda não era evidente que os estados nacionais, da forma como os conhecemos
hoje, iriam tornar-se as organizações predominantes da Europa. Não antes do século
XIX, com as conquistas de Napoleão e as subseqüentes unificações da Alemanha e
da Itália, quase toda a Europa se teria consolidado em estados separados entre si,
dotados de forças armadas permanentes e profissionais e que exerciam um controle
considerável sobre as pessoas em áreas de 100 mil quilômetros quadrados ou mais.
Nos quatro séculos seguintes, muitos tratados de paz e algumas federações
deliberadas reduziram drasticamente o número de estados europeus. No século XIX,
o número tendeu a estabilizar-se. No começo do ano de 1848, por exemplo, a Europa
abrigava de 20 a 100 estados, dependendo de como se contam os 35 membros da
Confederação Germânica, os 17 estados papais, os 22 segmentos tecnicamente
autônomos da Suíça e umas poucas unidades dependentes mas formalmente
distintas, como Luxemburgo e Noruega: no Almanaque de Gotha, o catálogo de
nobres e estadistas, a lista alfabética da época começava com os diminutos Anhalt-
Bernburg, Anhalt-Dessau eAnhalt-Kothan antes de incluir os mais extensos Áustria,
Baden e Bavária.
As principais consolidações aconteceram quando da formação do Império Ger­
mânico e do reino da Itália. Mais ou menos no início de 1890, a lista de estados ha­
via diminuído para cerca de 30, nove dos quais eram membros do Império Germâ­
nico. No final de 1918, a contagem estava em torno de 25 estados separados. Em­
bora as fronteiras tivessem mudado significativamente com os tratados que puseram

AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

fim à Primeira e à Segunda Guerra Mundial, o número e o tamanho dos estados


europeus não mudou muito no curso do século XX. Se, de acordo com Small & Sin-
ger, contarmos apenas aqueles estados grandes bastante para estabelecer uma dife­
rença militar independente, detectamos realmente uma leve inversão da tendência a
longo prazo: 21 contendores no final das Guerras Napoleônicas, 26 em 1848, 29 (in­
cluindo agora Malta, Chipre e a Islândia) em 1980 (Small & Singer 1982: 47-50).
Em contraste com os 24 500 quilômetros quadrados de 1490, os 30 estados
de 1890 controlavam uma média de 160 mil quilômetros quadrados, o que os
igualava às atuais Nicarágua, Síria e Tunísia. Em vez dos 310 mil habitantes de
1490, o estado médio de 1890 contava cerca de 7,7 milhões. Se os imaginarmos
numa circunferência, os estados originam-se num raio médio de 90 até 230
quilômetros. Num raio de 90 quilômetros, o controle direto do interior pelos
governantes de uma única cidade muitas vezes era viável; a 230 quilômetros,
ninguém governava sem um aparelho especializado de vigilância e supervisão.
Além disso, embora os micro-estados como Andorra (453 km2), Liechtenstein (157),
San Marino (62) e mesmo Mônaco (1,8) tenham sobrevivido à grande consolidação,
as desigualdades de tamanho diminuíram radicalmente com o tempo.
Falando de modo geral, a última parcela da Europa a consolidar-se em estados
nacionais extensos foi a faixa de cidades-estado que ia da Itália do Norte, em torno
dos Alpes, e abaixo do Reno até os Países-Baixos. As criações sucessivas da
Alemanha e da Itália colocaram sob controle nacional essas pequenas mu­
nicipalidades prósperas mas briguentas, e suas regiões interioranas. E como se os
europeus descobrissem que, sob as condições predominantes a partir de 1790 ou
mais, um estado viável necessitava de um raio de pelo menos 160 quilômetros, e
não poderia dominar com facilidade além de um raio de 400 quilômetros.

AS CIDADES E O CAPITAL
Para perceber com mais clareza o padrão geográfico, deveríamos estabelecer
uma distinção entre sistemas de cidades e sistemas de estados. Os sistemas de ci­
dades da Europa representavam as relações indefinidas entre as concentrações de
capital; os seus sistemas de estados, as relações variáveis entre as concentrações de
coerção. As cidades européias formavam uma hierarquia frouxa de precedência comer­
cial e industrial dentro da qual, em qualquer instante, uns poucos aglomerados de
cidades (agrupadas comumente em torno de um centro hegemônico único) domina­
vam claramente o resto. (Na verdade, a hierarquia européia constituía apenas uma
parte de uma rede urbana mais vasta que ia até a Ásia no começo do período e que,
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com o passar do tempo, se estendeu à África e à América.) Na simplificação valiosa


de Femand Braudel, Veneza, Antuérpia, Gênova, Amsterdam, Londres e New York
foram as capitais sucessivas do sistema europeu de cidades do século XIV ao XX.
No que diz respeito à predominância, a questão crucial não foi tanto o tamanho
quanto a centralidade na rede européia de comércio, produção e acumulação de
capital. No entanto, as concentrações de capital e de população urbana se equivaliam
tão estreitamente que o aglomerado de cidades predominante sempre era também
um dos maiores. Usando um critério classe-tamanho e algum traçado um tanto
arbitrário de fronteiras, J. C. Russell delineia regiões medievais centradas em torno
de Florença, Palermo, Veneza, Milão, Augsburgo, Dijon, Colônia, Praga, Magde-
burgo, Liibeck, Ghent, Londres, Dublin, Paris, Toulouse, Montpellier, Barcelona,
Córdoba, Toledo e Lisboa. As cidades eram mais densas e as regiões correspon­
dentemente menores na faixa que vai de Florença a Ghent, especialmente em sua
extremidade italiana; medidas pelo total da população das dez maiores cidades, as
regiões de Veneza (357 mil), Milão (337 mil) e Florença (296 mil) lideram o
conjunto (Russell 1972:235). Em 1490, um cálculo mais preciso do “potencial ur­
bano”, feito por Jan de Vries, escolhe as regiões centradas mais ou menos em torno
de Antuérpia, Milão e Nápoles como os picos do sistema urbano europeu, embora
em 1790 predominasse claramente a zona circunvizinha de Londres (incluindo as
áreas que atravessavam o Canal da Mancha) (de Vries 1984: 160-4).
O sistema de cidades e o sistema de estados se espalharam de forma muito
desigual, e de maneiras contrastantes, através do mapa europeu. No ano de 990, as
cidades eram pequenas e se estendiam por quase toda a região situada ao norte dos
Alpes. No entanto, eram mais densas e suas relações mais intensas numa faixa que
se estendia ao norte, de Bolonha e Pisa através dos Alpes até Ghent, Bruges e
Londres. As zonas secundárias de concentração urbana apareciam ao sul da Espanha
e ao sul da Itália. As terras mediterrânicas abrigavam um número muito maior de
cidades do que aquelas que costeavam o Atlântico ou o Báltico. As duas maiores
cidades da Europa eram, na época, Constantinopla e Córdoba, não só os principais
centros de comércio mas também sedes respectivamente do Império Bizantino e do
Califado Omíada; cada uma contava com uma população que se avizinhava do meio
milhão (Chandler e Fox 1974: 11). No curso do milênio seguinte, a faixa central
continuou sendo a zona européia de maior intensidade urbana, mas essa faixa
ampliou-se, e seu centro de gravidade deslocou-se para o norte, rumo aos grandes
portos do Atlântico. De 1300 em diante, a faixa dé cidades ligadas ao norte dos Alpes
cresceu de forma desproporcional.
A presença ou ausência de aglomerações urbanas causou uma profunda
diferença na vida social regional e suscitou significativamente as possibilidades de
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AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

formação do estado. Sob as condições de produção e transporte predominantes na


Europa antes do século XIX, as cidades maiores estimularam a agricultura comercial
em áreas tributárias que se estenderam por muitos quilômetros dentro da zona rural.
Este tipo de agricultura, por sua vez, favoreceu de modo geral a prosperidade dos
comerciantes, dos grandes cultivadores e dos pequenos proprietários rurais e ao
mesmo tempo reduziu a capacidade dos grandes senhores de terra de dominar as
pessoas em suas adjacências rurais. (Todavia, ocorreu uma exceção significativa
naqueles locais em que a classe dirigente da cidade também detinha extensões de
terra no interior, fato freqüente nas cidades-estado italianas; aí o campesinato sofreu
o peso total do domínio senhorial.)
Além do mais, as cidades influenciaram profundamente a demografia das
regiões circunvizinhas. Até recentemente, a maioria das cidades européias
experimentaram um declínio natural: suas taxas de mortalidade superaram as de
natalidade. Conseqüentemente, mesmo as cidades em estagnação atraíram volumes
consideráveis de migrantes das cidades e aldeias próximas, enquanto as cidades em
crescimento geravam grandes correntes migratórias. Essas correntes eram muito
maiores do que o déficit urbano de nascimentos mais a taxa urbana de crescimento,
uma vez que todos os sistemas de migração envolviam uma grande parcela de
movimentação para a frente e para trás; mascates, comerciantes, empregados e
artesãos flutuavam com freqüência entre a cidade e a zona rural de um ano para o
outro ou de uma estação para a outra. O fluxo líquido do campo para a cidade incluía
usualmente mais mulheres do que homens, resultando que as proporções de sexo
(machos por 100 mulheres) eram caracteristicamente altas no campo e baixas na
cidade. Assim, a cidade foi marcada pelas próprias oportunidades de casamento de
aldeãos em suas circunvizinhanças.
O impacto comercial e demográfico das cidades causou uma diferença
significativa na formação do estado. Deixemos de lado momentaneamente a
importância que as classes dirigentes urbanas e os capitalistas baseados na cidade
detiveram enquanto partidários ou opositores dos esforços de expansão do poder
do estado; mais tarde voltaremos a dar-lhe maior atenção. A existência de um
comércio intenso entre a cidade e o campo ofereceu uma oportunidade aos
governantes de arrecadar receitas através de taxas alfandegárias e de impostos sobre
consumo, enquanto a economia relativamente comercializada facilitou aos
monarcas o controle dos grandes proprietários de terra à medida que estendiam o
poder real às cidades e aldeias.
Além disso, as relações entre a cidade e o campo afetaram o suprimento
potencial de soldados: seriam eles os servos e meeiros dos magnatas rurais, os
mercenários de regiões de alta mobilidade e baixa nupcialidade, as milícias urbanas,
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ou os trabalhadores sem terra expulsos por grupos de pressão? As oportunidades de


tributação, o poder dos proprietários rurais e o suprimento de tropas afetaram
profundamente o modo de formação dos estados. Através do abastecimento de
alimentos, da migração, do comércio, das comunicações e das oportunidades de
emprego, as grandes aglomerações urbanas imprimiram a sua marca na vida social
de regiões circunvizinhas e influenciaram assim as estratégias dos dirigentes que
tentavam estender o poder do estado a essas regiões. Períodos de crescimento
urbano apenas acentuaram esses efeitos.
Com algum risco, e negligenciando em grande escala a variação regional,
podemos dividir o crescimento urbano da Europa a partir de 1000 em cinco fases:
um período de considerável expansão até mais ou menos 1350; uma épo^ca de
depressão seguida de flutuação não-tendenciosa entre 1350 e 1500; uma aceleração
no século XVI; uma redução no século XVII e, finalmente, uma enorme aceleração
depois de 1750 (Hohenberg & Lees 1985: 7-9). A devastadora disseminação da peste
no século XIV marca a transição da primeira para a segunda fase; a navegação ibérica
para a América, o início da terceira fase; o crescimento da indústria algodoeira depois
de 1600, o começo da quarta; a implosão do capital, das manufaturas, dos serviços
e do comércio nas cidades, a mudança da quarta para a quinta fase.
Do século XVI ao XVIII, muitas regiões européias, entre elas as zonas interio-
ranas de Milão, Lyon e Manchester, experimentaram a proto-industrialização: a mul­
tiplicação de pequenas unidades manufatureiras, inclusive domésticas, e de pequenos
comerciantes que as ligavam aos mercados distantes. Durante essa grande expansão
industrial, o capital procurou o trabalho e não o inverso; o trabalho rural proletarizou-
se, no sentido de que mudou decisivamente para o serviço assalariado usando os
meios de produção de propriedade dos capitalistas, mas permaneceu nas unidades
domésticas e nas pequenas oficinas. Nesse momento, o capital acumulou-se gran­
demente, mas não se concentrou na mesma proporção. No decurso dos séculos XIX
e XX aconteceu um movimento inverso: o capital implodiu, a manufatura e os tra­
balhadores mudaram-se para as cidades e extensas áreas do campo se desindustria-
lizaram. Os manufatureiros procuraram localizar-se cada vez mais naqueles lugares
em que era possível minimizar os custos de matéria-prima e de mercado para os
seus produtos, admitindo corretamente que os trabalhadores viriam até eles às custas
de algum outro. A última lufada de concentração acelerou enormemente a urbani­
zação européia e produziu o continente enxameado de cidades que conhecemos hoje.
As cidades cresceram juntamente com a população européia, e o número de
lugares urbanos, portanto, multiplicou-se mesmo quando a porção urbana da
população se manteve constante; com base nos testemunhos atuais, apenas não
sabemos se a população européia se tornou realmente mais urbana antes de 1350.
102
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

De qualquer modo, a proporção que vivia nas cidades não aumentou significati­
vamente antes do século XIX. Segundo as melhores estimativas de que dispomos, a
porção de lugares com 10 mil habitantes ou mais girava em torno de 5% em 990,
6% em 1490, 10% em 1790 e 30% em 1890, em comparação com os quase 60% de
hoje (Bairoch 1985: 182, 282; de Vries 1984: 29-48).
A escala da urbanização refletiu a história do capital europeu. Durante sécu­
los, a maior parte do capital líquido da Europa esteve nas mãos de pequenos co­
merciantes que trabalhavam dispersos por todo o continente, ou comerciando bens
produzidos em outro local ou orientando a manufatura de produtores formalmente
independentes em aldeias, distritos e pequenas cidades. Os grandes capitalistas,
como os de Gênova, Augsburgo e Antuérpia, desempenharam um papel importante
na ligação de toda a Europa entre si e com o resto do mundo, mas detinham uma
pequena parcela de todo o capital em movimento.
Antes de 1490, a dispersão dos testemunhos torna difícil oferecer alguns in­
formes quantitativos mais detalhados. No entanto, as estimativas de Paul Bairoch e
a recente compilação de evidências relativas à urbanização européia a partir de
1500, feita por Jan de Vries, possibilitaram alguns cálculos simples mas surpreen­
dentes. A Tabela 2.1 mostra a taxa comum prolongada de crescimento urbano antes
de 1490, a aceleração no século XVI e a excepcional urbanização depois de 1790.
Por volta de 1980, a barreira dos 10 mii habitantes havia perdido o seu sentido (daí
os números especulativos da tabela), e um total de 390 cidades tinham 100 mil
habitantes ou mais. Com efeito, as estatísticas de 1980 colocam 34,6% da população
em cidades de no mínimo 100 mil habitantes. A grande aceleração do crescimento
urbano ocorreu depois de 1790, com a concentração de capital no século XIX, o
aumento escalar dos empregos e a criação do transporte de massa. No entanto, na
maior parte do período posterior a 1490, as zonas interioranas exclusivas de que
dispunham a maioria das cidades estavam diminuindo de tamanho.

Tabela 2.1 Urbanização de 990 a 1980 na Europa a oeste da Rússia.


990 1490 1590 1690 1790 1890 1980
cidades de 10 mil habitantes ou mais 111 154 220 224 364 1709 5000?
população nas cidades de 10 mil ou mais 2,6 3,4 5,9 7,5 12,2 66,9 250?
(milhões)
taxa anual (%) de crescimento — 0,1 0,6 0,2 0,5 1,7 1,5?
a partir da data anterior
% de população em cidades 4,9 5,6 7,6 9,2 10,0 29,0 55?
de mais de 10 mil habitantes
km2 por cidade (mil) 44,3 31,9 22,0 22,0 13,5 2,8 1,0?
Fonte: De Vries 1984: 29-48; Bairoch 1985: 182.
103
CHARLES TILLY

A INTERAÇÃO ENTRE CIDADE E ESTADO

As tendências divergentes das cidades e estados mudaram algumas relações


críticas. Em 990 d.C., com milhares de unidades tipo estado, é possível que
houvesse na Europa uma única cidade de 10 mil habitantes para cada vinte ou trinta
“estados”. Em 1490, essa cidade existia para cada um ou dois estados. Em 1890, o
estado médio mítico tinha cerca de 60 cidades de 10 mil habitantes ou mais.
Somente essa mudança já provocou alterações fundamentais nas relações entre
governantes e governados: alterou as técnicas de controle, alterou as estratégias
fiscais, alterou as demandas de serviços e alterou a política.
As cidades moldaram os destinos dos estados, sobretudo por servirem como
pontos de recebimento e distribuição de capital. Por meio do capital, as classes
dirigentes urbanas estenderam a sua influência a todo o interior urbano e através de
redes extensas de comércio. Mas as cidades variaram no que se refere à quantidade
de capital que suas oligarquias controlavam; Amsterdam, no século XVII, fez a
outrora gloriosa Bruges parecer insignificante. Além disso, o fato de as cidades
serem os locais de acumulação de capital propicia às suas autoridades políticas o
acesso ao capital, ao crédito e ao controle sobre o interior que, se for dominado e
cooptado, pode servir também aos objetivos dos monarcas. Adam Smith expôs o
fato central de forma convincente:
Uma região que abunda em comerciantes e manufatureiros ... necessariamente abunda
tam bém em um conjunto de pessoas que sempre dispõem do poder de adiantar, se escolhe­
rem fazê-lo, uma soma muito grande de dinheiro ao governo.
(Smith 1910 [1778]: II, 392.)

Se escolherem fazê-lo: por trás desse qualificativo se escondem séculos de disputa


entre os capitalistas e os reis. Não obstante. Adam Smith estava totalmente correto
em eafatizar as vantagens financeiras dos estados que operavam em regiões de
capital abundante.
Os estados, por sua vez, atuam sobretudo como receptáculos e aplicadores
dos meios de coerção, especialmente a força armada. Hoje em dia, o desenvol­
vimento de estados que investem no bem-estar público, de estados regulamen-
tadores, de estados que empregam grande parte de seu esforço em intervir nas
questões econômicas, suavizou e obscureceu a centralidade da coerção. Contudo,
durante esse milênio de história européia que estamos examinando, os gastos
militares usualmente consumiram a maior parte dos orçamentos do estado, e as
forças armadas constituíram caracteristicamente o maior setor do governo, tomado
isoladamente.
104
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

As diferenças entre a geografia da formação do estado europeu e a da


construção de cidades colocaram um problema pungente para qualquer pretenso
governante. Abeberando-nos em Paul Hohenberg e Lynn Lees, podemos estabele­
cer uma distinção grosseira entre cidades: praças centrais e pontos de redes urba­
nas; todas as cidades pertencem a um ou ao outro sistema, mas a importância rela­
tiva dos dois conjuntos de relações varia drasticamente de uma cidade para outra
(Hohenberg & Lees 1985: capítulo 2). O sistema hierárquico de praça central é o
intermediário do fluxo de produtos comuns como alimento e vestuário entre as
povoações de uma região contígua; as matérias-primas e os produtos brutos tendem
a deslocar a hierarquia das praças centrais para povoações maiores que servem a
mercados mais extensos, enquanto que os produtos acabados e especializados -
sobretudo os produzidos fora do sistema regional - tendem a mudar-se dos lugares
maiores para os menores. Durante grande parte da história que estamos exami­
nando, alguns produtores primários, comerciantes locais, vendedores ambulantes
e feiras públicas periódicas vendem uma parte importante dos produtos a seus
consumidores.
Por outro lado, as redes urbanas ligam os centros de alto nível de sistemas
regionais separados, às vezes afastados entre si por milhares de quilômetros. Em­
bora muito antes de 1500 a madeira de lei, o trigo, o sal e o vinho tenham viajado
grandes distâncias na Europa, as redes urbanas por muito tempo se especializaram
na troca de produtos leves e caros como especiarias e sedas. Os comerciantes e
financistas, por disporem de grande quantidade de capital, se tornaram figuras
importantes nas redes urbanas da Europa. Durante séculos, aquilo que Philip Curtin
denomina diásporas comerciais teve um papel decisivo; alguns grupos mercantis
geograficamente dispersos, como os judeus, os armênios, ou os genoveses, que
tinham a mesma língua, religião, parentesco e (às vezes) origem geográfica reduzi­
ram as incertezas do comércio internacional mediante a concessão entre si de cré­
dito, informação de mercado e tratamento preferencial (Curtin 1984). Mesmo na­
queles lugares onde as diásporas comerciais não criaram os vínculos decisivos entre
os centros distantes, comerciantes dispersos costumavam manter relações com seus
colegas por meio de viagens, correspondência pessoal, nomeação de representantes
locais e contato com conhecidos mútuos.
Pode ocorrer que um governante aplicador de coerção, com uma certa soma
de esforços, capture todo o território de uma ou mais hierarquias de praça central, e
até remaneje uma hierarquia de forma a que corresponda mais ou menos aos limites
de seu estado; por volta do século XVI, foi estabelecida uma correspondência
aproximada entre a Inglaterra e o sistema de praça central de Londres, entre a França
e o sistema de praça central de Paris. No entanto, é raro e difícil um estado encaixar-
105
CHARLES TILLY

se nos contornos de uma rede urbana de longa distância. As federações, a exemplo


das Ligas Hanseáticas, e os impérios marítimos, como Veneza e Portugal, quase o
conseguiram durante algum tempo, mas sempre foram coagidos a competir ou
negociar com governantes territoriais que reivindicavam um ou outro de seus postos
de comércio; a consolidação de um império otomano por cima das rotas comerciais
mais lucrativas de Veneza condenaram o império mercantil espetacular que os
venezianos haviam criado nos séculos XII e XIII. Por outro lado, os estados
territoriais cujos negociantes se dedicaram ao comércio de longa distância sempre
tiveram de enfrentar poderosos atores econômicos de cujas relações externas eles
nunca conseguiram um controle total e que, toda vez que as exigências do
governante se tornavam insuportáveis, encontraram relativa facilidade de fugir com
seu capital para outro lugar de comércio. A duradoura discrepância entre a geogra­
fia da coerção e a do capital garantiu que as relações sociais organizadas em torno
delas evoluíssem de maneira distinta.
No conjunto da Europa, as alterações no controle estatal do capital e da
coerção, entre 990 d.C. e o período atual, seguiram duas curvas paralelas. A
princípio, durante a época do patrimonialismo, os monarcas europeus geralmente
extraíram o capital de que necessitavam, sob a forma de tributos ou rendas, das terras
e população que se achavam sob o seu controle imediato - muitas vezes com limites
contratuais rígidos sobre as quantidades que podiam extorquir. No tempo da
corretagem (sobretudo entre 1400 e 1700 ou mais), passaram a depender fortemente
de capitalistas formalmente independentes para os empréstimos, a administração
das empresas produtoras de rendas e a cobrança de impostos. Todavia, por volta do
século XVIII, teve início o período da nacionalização; muitos soberanos incor­
poraram o aparelho fiscal diretamente à estrutura do estado e reduziram de forma
drástica a participação de contratados independentes. O último século mais ou
menos, a era da especialização, introduziu uma separação mais aguda entre a orga­
nização militar e a fiscal e um crescente envolvimento dos estados na fiscalização
do capital fixado.
Do lado da coerção, ocorreu uma evolução semelhante. Durante o período do
patrimonialismo, os monarcas recrutaram a força armada entre aqueles clientes,
vassalos e milícias que lhes deviam serviço pessoal - mas no caso também com
limites contratuais significativos. Na época da corretagem (de novo sobretudo entre
1400 e 1700) recorreram em crescente medida às forças mercenárias que lhes eram
fornecidas pelos contratantes, os quais mantinham considerável liberdade de ação.
Em seguida, durante a nacionalização, os soberanos incorporaram o exército e a
marinha diretamente à estrutura administrativa do estado, recorrendo apenas
eventualmente a mercenários estrangeiros e alugando ou recrutando a maior parte
106
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

de suas tropas entre os seus próprios cidadãos. A partir da metade do século XIX,
numa fase de especialização, os estados europeus consolidaram o sistema de
soldados cidadãos financiados por vastas burocracias civis, e separaram as forças
de polícia especializadas no uso da coerção fora da guerra.
Por volta do século XIX, a maioria dos estados europeus haviam internalizado
tanto a força armada quanto os mecanismos fiscais; reduziram, assim, as funções
governamentais dos arrematantes de impostos, dos contratantes militares e de outros
agentes independentes. Seus governantes, então, continuaram a negociar com os
capitalistas e outras classes o crédito, as rendas, a mão-de-obra e os meios de guerra.
A negociação, por seu turno, criou novas exigências ao estado: pensões, pagamentos
aos pobres, educação pública, planejamento urbano e muito mais. No processo, os
estados, em vez de ampliar as máquinas de guerra, passaram a criar organizações
de múltiplas finalidades. Seus esforços para controlar a coerção e o capital pros­
seguiram, mas juntamente com uma ampla variedade de atividades de regulamen­
tação, compensação, distribuição e proteção.
Antes do século XIX, os estados diferiam acentuadamente no tocante à
sincronização e intensidade relativas dos dois principais processos de mudança.
Durante um século ou mais, o estado neerlandês alugou grandes exércitos e frotas
de navios, adotou precocemente a administração estatal das finanças, mas continuou
devendo aos capitalistas de Amsterdam e de outras cidades mercantis. Na verdade,
em alguns momentos o estado neerlandês se decompôs em suas principais munici­
palidades. Por outro lado, em Castela, as forças terrestres - muitas vezes alugadas
fora da Espanha - predominaram; lá a monarquia conquistou o crédito dos merca­
dores ao convertê-los em arrendatários de impostos e passou a depender das rendas
coloniais para reembolsá-los. Portugal, Polônia, as cidades-estado italianas e os es­
tados do Sacro Império Romano adotaram outras combinações das duas curvas e,
desse modo, criaram estruturas de estado claramente diferentes

AS FISIOLOGIAS DOS ESTADOS


Por que os estados europeus seguiram caminhos tão diferentes, embora quase
todos eles tenham caminhado rumo a uma maior concentração de capital e coerção?
Duas razões ocultas explicam a maior parte dessa complexidade. A primeira é a
competição permanente e agressiva por comércio e território entre os vários estados
de tamanho igual, os quais fizeram da guerra uma força propulsora da história
européia. A segunda reside naquilo que Gabriel Ardant denominou a “fisiologia”
dos estados: os processos pelos quais adquirem e distribuem os meios de realizar as
107
CHARLES TILLY

suas principais atividades. No que se refere à maior parte da história que nos
interessa aqui, os meios importantes eram sobretudo de coerção, os recursos para a
guerra. Os meios de coerção tinham uma função na guerra (atacando os rivais
externos), na formação do estado (atacando os inimigos internos) e na proteção
(atacando os inimigos dos clientes do estado). Os meios coercivos também faziam
parte do exercício de extração (tirando da população submetida os meios de
atividade do estado) e de justiça (resolvendo as disputas entre os membros dessa
população). Somente quando surgiram a produção e a distribuição é que os meios
de coerção deixaram de ser os principais suportes da atividade do estado - e mesmo
nesse momento o grau de coerção variou de estado para estado. Nas regiões em
que os estados instituíram seus próprios monopólios sobre a produção de sal, armas
e artigos de fumo, por exemplo, eles o fizeram caracteristicamente com a força das
armas; comumente o contrabando se torna contrabando quando os governantes
decidem monopolizar a distribuição da mercadoria em questão.
Os meios de coerção combinam armas com homens que saibam usá-las.
(Quero dizer mesmo homens; na experiência ocidental, as mulheres tiveram uma
importância surpreendentemente pequena na construção e uso da organização
coerciva, fato que certamente ajuda a explicar a sua posição subordinada dentro dos
estados.) Os agentes dos estados têm mais disponibilidade para concentrar a coerção
e para impedir que outros o façam, na medida em que (a) a produção de armas
implica um conhecimento esotérico, materiais raros e capital abundante, (b) poucos
grupos dispõem da capacidade independente de mobilizar grandes quantidades de
homens e (c) poucas pessoas conhecem o segredo de combinar armas com homens.
Com o decurso do tempo, os governantes dos estados europeus aproveitaram-se de
todas essas condições para instaurar monopólios das maiores concentrações de
meios de coerção dentro de seus territórios: exércitos, forças de polícia, armas,
prisões e tribunais.
Os estados usaram a concentração da coerção de muitas maneiras diferentes.
Nos primeiros séculos após 990 d.C., os reis raramente dispunham de maior
contingente de força armada sob seu controle do que os principais soberanos que
vieram depois. A logística da alimentação e manutenção de homens armados tornou
proibitivamente cara a instituição de exércitos permanentes. Normalmente, um
exército real era constituído da pequena força permanente do rei e das tropas que
deixavam temporariamente a vida civil a chamado dos partidários do rei. A
presença deste reforçava os vínculos pessoais entre os guerreiros: “A regra geral
era que o rei comandasse pessoalmente toda campanha importante. A idade não
importava; Oto III tinha 11 anos quando chefiou seu exército contra os saxões (991)
e Henrique IV tinha 13 quando foi à guerra contra os húngaros em 1063”
108
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

(Contamine 1984: 39). Os exércitos reais em marcha viviam, em ampla medida, da


requisição (que teoricamente era indenizada pelo tesouro real) e da pilhagem (que
não o era); na verdade, a distinção entre esses dois eventos permaneceu ambígua
durante séculos.
As cidades, habitualmente, organizavam milícias de cidadãos que guardavam
os muros, patrulhavam as estradas, intervinham em conflitos públicos e even­
tualmente travavam algumas batalhas contra os inimigos da cidade ou do reino. As
milícias municipais espanholas foram uma exceção; tiveram uma importância
decisiva na conquista da Ibéria muçulmana pelos reis cristãos, fato que se reflete
nos grandes poderes que as municipalidades dominadas pelos nobres adquiriram
depois da Reconquista e na cristalização da diferença entre caballero (cavaleiro) e
peón (soldado a pé) numa divisão social duradoura e geral (Powers 1988). Em
outras regiões, os reis geralmente tentaram limitar a força armada independente de
que dispunham os cidadãos, pela mesma boa razão de que os cidadãos pro­
vavelmente usariam essa força em seu próprio interesse, inclusive para opor-se às
exigências do rei.
Essas várias forças militares enfrentaram muitos grupos de homens armados
que não agiam sob o controle direto do rei; entre outras, os vassalos de senhores
particulares que comumente não eram recrutados para o serviço real, os bandidos
(muitas vezes soldados desmobilizados que continuavam a sua pilhagem sem a
aprovação real) e os piratas (que freqüentemente agiam sob proteção real ou cívica).
As acumulações dos meios de coerção eram modestas mas muito disseminadas; a
concentração era pequena. Mesmo assim, os governantes estavam empenhando-se
mais em concentrar a coerção do que haviam feito quaisquer outros.
Os estados acabaram por operar múltiplas forças armadas, todas elas buro­
cratizadas e mais ou menos integradas à administração nacional. Mesmo a Espanha,
conhecida pela repetida atribuição de poderes de estado a seus agentes e grandes,
empenhou-se seguidamente para separar suas forças armadas de seu ambiente civil.
Filipe II, por exemplo, colocou intencionalmente sob o controle direto do governo
as forças armadas cujos comandos, durante o reinado de Carlos V, seu pai, haviam
sido quase que posses privadas dos grandes. Por volta de 1580,
toda a instituição militar foi devolvida à Coroa e era administrada pelos ministros reais; as
galeras da Espanha, de Nápoles e da Sicília, depois de um breve e m al-sucedido retorno à
contratação em 1574-76, retornaram à administración, o aprovisionamento das frotas medi-
terrânicas e das guarnições da África do Norte era controlado pelo comissariado real de Se-
vilha, as indústrias de armas e os fabricantes de salitre estavam sob a estrita supervisão real,
e a manufatura de pólvora era um monopólio do rei.
(Thompson 1976: 6-7.)
109
CHARLES TILLY

Durante o meio século seguinte, as exigências de financiamento e adminis­


tração levaram a Espanha de volta à contratação extensiva e ao controle local; não
obstante, as forças armadas passaram a agir daí por diante como ramos distintos e
diferenciados do estado nacional. Com efeito, no século XIX, o exército espanhol
adquiriu tal distinção e autonomia que interveio repetidas vezes na política nacional
como força isolada (Ballbé 1983).
Na Espanha e em outros países, cedo emergiu uma divisão acentuada entre o
exército e a marinha, divisão que subsistiu por muito tempo. Em escala nacional,
só muito tarde - na maioria dos países, no século XIX - é que se generalizou a
separação entre o exército (geralmente especializado em combater outras forças
armadas) e as forças de polícia (comumente especializadas no controle de indivíduos
ou pequenos grupos desarmados ou providos de armas leves). Mais ou menos nessa
época, as acumulações de força coerciva eram amplas, concentradas e, portanto,
muito desiguais. Por volta do século XIX, os estados haviam conseguido armar-se
de forma impressionante e quase desarmar as suas populações civis.
A figura 2.6 esquematiza a relação entre as cidades e os estados em função
da interação do capital e da coerção. Acima da diagonal, a coerção superou o capital;
abaixo dela, o capital sobrepujou a coerção. A distinção aplica-se às cidades
individuais; portos europeus como Amsterdam e Barcelona tipicamente nadaram
em capital embora dispusessem de aparelhos de coerção relativamente tênues; por
outro lado, sedes de monarquias, como Berlim e Madrid, apresentaram maior
volume de coerção do que de capital.

Concentração de capital
Baixa Alta

Figura 2.6 Caminhos alternativos de mudança em caso de concentrações de capital e de poder coerci­
vo na Europa, 1000-1800.

110
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

A distinção aplica-se também aos ambientes dos estados. A direção geral da


mudança européia na passagem do milênio sem dúvida elevou a diagonal, rumo a
concentrações cada vez maiores tanto de capital quanto de coerção. No entanto,
estados diferentes seguiram caminhos diferentes na mesma direção geral. O
Brandenburgo-Prússia desenvolveu-se num ambiente rico de coerção, pobre de
capital, e revelou as marcas de seu ambiente inicial mesmo quando estendeu o seu
domínio às cidades capitalistas da Renânia. A Dinamarca teve usualmente maiores
concentrações de capital à disposição do que o resto da Escandinávia e investiu
menos esforços na construção do poder militar.
Os Cavaleiros Teutônicos (a ordem do Hospital de Santa Maria em Jerusalém)
adotou um caminho irregular: de cruzados pirateadores na Terra Santa (portanto,
envolvidos intensamente no mundo pirático do comércio oceânico) no final do
século X II a governadores de uma grande porção da Transilvânia durante o século
X III, depois a conquistadores e colonizadores da Prússia pagã, onde de aproxi­
madamente 1300 até o século XVI governaram no estilo dos grandes senhores de
terra. Os Cavaleiros, em mais ou menos trinta anos, cruzaram a linha entre a
formação do estado com grande inversão de capital e a formação com intensa
coerção. Os Cavaleiros de Malta (também conhecidos sucessivamente por
Cavaleiros Hospitalários de São João de Jerusalém e Cavaleiros de Rodes) também
ziguezaguearam, mas terminaram numa localização muito diferente:
... uma ordem religiosa nascida na Terra Santa mais ou menos em 1100, mas que se transfor­
mou quase que imediatam ente numa ordem m ilitar em defesa dos estados latinos do Oriente,
e em seguida converteu-se numa carreira m arítim a quando se retirou de Chipre (1291) e de­
pois de Rodes (1309) e finalm ente foi forçada, em 1530, a devotar-se integralm ente à sua
instalação em M alta sob a forma de estado soberano sob a suserania do Rei da Sicília.
(Fontenay 1988a: 362.)

Devotando-se à pirataria legalizada a partir de sua base em Malta, os Cavaleiros


seguiram um caminho que investia mais capital do que os seus antigos vizinhos da
Terra Santa. Podemos dizer, assim, que o diagrama é um mapa das múltiplas traje­
tórias que estados europeus diferentes seguiram em suas diversas interações com
as cidades existentes em seus territórios.
O diagrama coerção-capital incorpora o argumento que delineei no capítu­
lo I: os governantes mais poderosos em alguma região particular estabeleceram
os termos da guerra para todos; os governantes menos importantes tiveram de
optar entre aceitar as exigências dos vizinhos poderosos ou tentar esforços
excepcionais no sentido de se prepararem para a guerra. A guerra e os pre­
parativos da guerra levaram os governantes a extrair os meios de guerra daqueles
u i
CHARLES TILLY

que mantinham os recursos essenciais - homens, armas, provisões ou dinheiro


para comprá-los - e que relutavam em cedê-los sem forte pressão ou com­
pensação. Dentro dos limites estabelecidos pelas exigências e compensações dos
outros estados, a extração e a luta pelos meios de guerra criaram as estruturas
organizacionais centrais dos estados. A organização das principais classes sociais
dentro do território de um estado, e as suas relações com este, afetaram signifi­
cativamente as estratégias que os governantes empregaram para extrair recursos,
a resistência que enfrentaram, a luta daí resultante, os tipos de organização dura­
doura que a extração e a luta introduziram e, portanto, a eficiência da extração
de recursos.
A organização das principais classes sociais, e suas relações com o estado,
variaram consideravelmente das regiões européias que aplicaram intensa coerção
(áreas de poucas cidades e predominância agrícola, onde a coerção direta era
decisiva na produção) para aquelas onde houve grande aplicação de capital (áreas
de muitas cidades e predominância comercial, onde prevaleciam os mercados, a
troca e a produção para o comércio). As reivindicações que essas classes principais
fizeram ao estado, e sua influência sobre ele, variaram correspondentemente. O
sucesso relativo das diferentes estratégias extrativas, e as estratégias que os
governantes aplicaram de fato, variaram portanto de modo significativo das regiões
que usaram intensa coerção para aquelas de grande inversão de capital.
Conseqüentemente, as formas organizacionais dos estados seguiram traje­
tórias claramente diferentes nessas partes distintas da Europa. O tipo de estado que
prevaleceu numa época e parte determinadas da Europa variou grandemente.
Somente no curso do milênio é que os estados nacionais exerceram uma superio­
ridade evidente sobre as cidades-estado, os impérios e outras formas comuns na Eu­
ropa. Não obstante, a escala crescente da guerra e o entrelaçamento do sistema
europeu de estado através de relações comerciais, militares e diplomáticas acabaram
por conferir, na guerra, uma vantagem àqueles estados que podiam dispor de
grandes exércitos permanentes; os estados que tinham acesso a uma combinação
de grandes populações rurais, capitalistas e economias relativamente comercia­
lizadas venceram as guerras. Estabeleceram os termos da guerra, e a sua forma de
estado passou a predominar em toda a Europa. No final, os estados europeus
convergiram nesta forma: o estado nacional.
Dentro de cada trajetória indicada no diagrama capital-coerção, os primeiros
passos determinaram os últimos. Embora as classes dirigentes urbanas tenham
desempenhado funções importantes na consolidação inicial de um estado dado
(como aconteceu na Holanda), muito depois o estado imprimiu a sua marca na forma
das instituições burguesas. Embora um estado se tenha originado da conquista de
112
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

populações amplamente rurais (como nos sucessivos impérios russos), continuou a


oferecer pouca perspectiva àquelas cidades que medraram em seu meio; nessas
regiões, grandes nobrezas se desenvolveram quando os monarcas garantiram
privilégios fiscais e substanciais poderes locais aos proprietários de terras armados,
em troca de seu serviço militar permanente.

LIAISONS DANGEREUSES
Durante a maior parte do último milênio, as cidades e estados europeus
estabeleceram uma série de liaisons dangereuses*, questões de amor-ódio em que
cada um se tornou ao mesmo tempo indispensável e intolerável ao outro. As cidades
e seus capitalistas buscaram junto àqueles especialistas em coerção que percorriam
os estados a indispensável proteção para sua atividade comercial e industrial, mas
certamente temeram a interferência na sua aquisição de riqueza e o desvio dos
recursos para a guerra, para os preparativos da guerra ou para o pagamento de
guerras passadas. Os estados e os militares passaram a depender dos capitalistas
baseados na cidade para assegurar os meios financeiros de recrutar e manter a força
armada, embora se preocupassem particularmente com a resistência ao poder do
estado engendrada pelas cidades, por seus interesses comerciais e por suas classes
trabalhadoras. Na troca de proteção por acesso ao capital, as cidades e os estados
encontraram as bases para incômodas negociações, mas até o século XIX tais
negociações continuaram frágeis.
É difícil imaginar hoje em dia as conspirações que Messina, a cidade mais
mercantil da Sicília, intentou no século XVII. A Sicília tornou-se de tal forma um
símbolo do atraso que esquecemos facilmente os muitos séculos de glória siciliana
quando foi sede de reinados brilhantes, celeiro do Mediterrâneo e objeto de
competição entre as grandes potências. A Sicília - antes muçulmana e depois
normanda - caíra sob o domínio de Aragão em 1282, e no século XVI, com a
formação de uma monarquia espanhola unificada, se convertera numa propriedade
da Espanha. Os oligarcas-mercadores de Messina se exasperaram com o domínio
espanhol, que, em favor de interesses dinásticos, reprimiu o seu acesso aos mercados
estrangeiros e sobretudo o seu controle sobre a exportação da seda siciliana. Em
1674, a Espanha (frouxamente aliada à Holanda) estava em guerra com a França
(naquele momento com frouxas alianças com a Inglaterra). Os líderes de Messina
fecharam os seus portões às tropas espanholas, pediram ajuda à França, à Inglaterra
* Em francês no texto, “ ligações perigosas”. (N. do T.)

113
CHARLES TILLY

e ao Império Otomano, exigiram uma Sicília independente e governada a partir de


Messina por um rei estrangeiro, reivindicaram uma isenção de taxas para seu porto
e aceitaram com alegria um governador francês da Sicília com seus soldados.
No entanto, três anos depois, os habitantes de Messina se cansaram da ocupa­
ção francesa quando os franceses perderam o seu entusiasmo em manter um esta­
belecimento militar em meio a uma população traiçoeira. Quando os franceses se
retiraram e as famílias importantes fugiram, o s.mercadores remanescentes formaram
uma guarda civil e aplaudiram a volta do governo espanhol (Mack Smith 1968a:
225-30). Na Sicília, como em outros lugares, os pactos estado-cidade se romperam
facilmente quando acontecimentos externos alteraram a posição militar dos estados
ou a posição comercial das cidades, e quando um lado ou o outro quis avançar
demais em sua vantagem. Os governantes e os capitalistas constantemente
renegociaram as suas posições relativas.
Contudo, nem todo par estado-cidade manteve o mesmo relacionamento.
Longe disso: o padrão variou de forma acentuada Je uma parte a outra da Europa e
mudou vividamente no curso dos séculos. Veneza criou o seu próprio império
comercial e somente mais tarde é que empreendeu a conquista do território
continental; os senhores poloneses tolheram o crescimento de suas cidades,
enquanto que Paris, apesar de todas as suas rebeliões, serviu muito bem a monarquia
francesa.
Retornando ao diagrama capital-coerção, podemos esquematizar os históri­
cos de uma série de áreas européias diferentes como na figura 2.7. Assim, de acor­
do com o diagrama, o estado polonês viveu num ambiente rico de coerção e pobre
de capital e realmente experimentou um declínio nas concentrações de ambos
tão logo os nobres ilustres se apossaram de suas porções de coerção e de capital.
Os estados escandinavos geralmente começaram em meio a substanciais concen­
trações de coerção e no final mudaram para níveis mais elevados de controle do
capital concentrado. Os pequenos estados alemães, as cidades-estado italianas e a
República Holandesa, em compensação, empreenderam as suas trajetórias na
presença de importantes concentrações de capital mas força armada fraca e
intermitente e somente aos poucos mudaram para instituições militares permanen­
tes e concentradas.
As posições das cidades dentro das hierarquias de mercado (mercados
internacionais, regionais, exclusivamente locais etc.) estavam relacionadas mais ou
menos com o seu tamanho, o seu impacto demográfico sobre o seu interior, a
extensão da acumulação de capital e a sua capacidade de instituir e controlar uma
ampla esfera de influência. Esses fatos, por sua vez, afetaram consideravelmente a
relativa atratividade das diversas cidades em termos de fontes de capital para a
114
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

Concentração de capital
Baixa Alta

Figura 2.7 Trajetórias hipotéticas de diversos estados.

construção de exércitos e a formação do estado, a autonomia de suas classes


dirigentes com referência aos criadores pretensos e reais do estado e a força de suas
instituições representativas. Quanto mais alta a sua posição de mercado, em média,
tanto maior era a probabilidade de que, dentro de suas relações com dirigentes
nacionais, a oligarquia de uma cidade atuasse como pessoas iguais e indispensáveis,
dotadas de amplos direitos de representação.
Em conseqüência, as cidades comerciais importantes e as cidades-estado
opuseram uma resistência mais eficiente à penetração dos estados nacionais do que
as localizadas em regiões extremamente agrárias. Na maioria das vezes, os estados
nacionais só adquiriram um controle genuíno sobre as cidades comerciais impor­
tantes quando estas começaram a perder as suas posições de predominância nos
mercados internacionais. Mesmo então, importantes cidades comerciais tentaram
fundamentar no aparelho estatal as estruturas de poder municipais com mais inten­
sidade do que fizeram os centros de mercado local e regional, e a presença de grande
quantidade dessas cidades geralmente provocou um atraso na formação dos estados
nacionais. Por outro lado, na ausência de capital fácil, os governantes construíram
aparelhos maciços para extorquir recursos de uma população relutante.
Com exceções importantes, a Reforma protestante concentrou-se na faixa da
Europa em que se localizavam as cidades-estado e, a princípio, ofereceu uma base
adicional de resistência à autoridade dos estados centralizadores. Entre as exceções
incluem-se a católica Itália do Norte, onde a Igreja Romana nunca perdeu a sua
grande influência, bem como as protestantes Boêmia e Hungria, áreas profun­
115
CHARLES TILLY

damente rurais que já estavam produzindo variantes populistas tanto do Cristia­


nismo quanto da Reforma. Em muitos lugares, notavelmente na Inglaterra e nos paí­
ses nórdicos, os governantes promoveram e cooptaram as suas próprias versões da
Reforma, que estabeleceram extenso controle estatal sobre o aparelho religioso e
estreita colaboração entre o clero e os funcionários leigos da administração local.
Em outros lugares (como nos Países-Baixos), o Protestantismo forneceu uma base
doutrinária atraente de resistência à autoridade imperial, sobretudo uma autoridade
ancorada por pretensos privilégios reais sancionados por Deus. Diante da
disseminação do protestantismo popular, o governante tinha três opções: adotá-lo,
cooptá-lo ou combatê-lo.
Dentro do Sacro Império Romano, a divisão entre principados oficialmente
protestantes e católicos e a ameaça de que um governante - na busca de qualquer
dos dois propósitos dinásticos, consolo religioso ou uma base de resistência ao
imperador - mudasse de fé tornaram-se fontes constantes de disputa durante o
século XVI. O Tratado deVestfália, que pôs fim, em 1648, à Guerra dos Trinta Anos,
deu destaque a uma disposição segundo a qual qualquer governante que mudasse
de fé seria afastado de seu direito à coroa. A partir daí, as diferenças religiosas con­
tinuaram importantes na política doméstica da Europa, mas declinaram rapidamente
enquanto perigo de guerra.
No conjunto, igrejas estatais fortes (seja protestante, católica ou ortodoxa)
foram instituídas naqueles países em que o próprio estado, no processo de aumentar
o volume das forças armadas, criou grandes burocracias civis e militares. As popu­
lações das áreas que contavam com uma grande concentração de capital opuseram-
se geralmente com tanto sucesso à imposição de formas de culto prescritas pelo
estado que bloquearam o desenvolvimento inicial dos estados nacionais.
Londres e a Inglaterra constituem o desafio óbvio à oposição teórica entre a
atividade capitalista e o poder do estado. Na Inglaterra, um extenso estado se formou
relativamente cedo apesar da presença de uma temível cidade comercial e manteve
uma igreja estatal hegemônica até o século XIX. Observem-se, contudo, as diversas
características cruciais da experiência inglesa. A monarquia adquiriu amplos
poderes antes de Londres transformar-se num centro internacional importante; nesse
particular, a Inglaterra assemelhou-se muito mais à Escandinávia do que aos Países-
Baixos. Parentesco, comércio e finanças, contudo, forneceram aos comerciantes de
Londres vínculos estreitos com a alta e a pequena nobreza do país; a City de Londres
ganhou representação direta no Parlamento e, através da Livery*, obteve uma voz

* Em inglês, libré. Qualquer das companhias de Londres que se desenvolveram a partir das guildas co ­
merciais mais antigas, que se caracterizavam por um uniforme distintivo. (N. do T.)

116
/IS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS
semi-autônoma nas questões reais. Nesses aspectos, a Inglaterra se assemelhou mais
aos Países-Baixos que à Escandinávia. Do século XVII em diante, finalmente, o
estado que emergiu assistiu à crescente limitação do poder real pelos representantes
conjuntos dos proprietários de terra e da burguesia, o Parlamento. Assim, a
Inglaterra tentou percorrer uma certa distância nas duas principais trajetórias de
formação do estado.

FORMAS ALTERNATIVAS DE ESTADO


As experiências de outras regiões indicam que o fato de a negociação cen­
tralizar-se em torno dos meios de guerra afetou de maneira significativa as formas
de representação que surgiram. Em Portugal, que dependia amplamente do comér­
cio ultramarino para obtenção de rendas para a coroa, percebemos poucas institui­
ções representativas de qualquer tipo, salvo a forte presença do governo municipal
de Lisboa na qualidade de interlocutor. Em Aragão, no século XVI, observamos que
Barcelona mostrava uma relação semelhante com a coroa; o poderoso Consell de
Cent podia passar por cima do vice-rei e falar diretamente com o rei em Madrid,
não obstante nunca tenha tido o poder de dominar todo o Aragão, muito menos toda
a Espanha. Em Castela, vemos que o poder estava investido nas Cortes, um
instrumento dos grandes proprietários rurais e das oligarquias de dezoito cidades.
Em conjunto, as instituições urbanas, ao que parece, tornaram-se parte da estrutura
do estado mais rapidamente naqueles estados em que os capitalistas predominaram.
Os estados em que as instituições capitalistas e burguesas tinham funções de
comando revelaram grandes vantagens quando precisaram de rápida mobilização
de capital para guerras dispendiosas. No entanto, continuaram vulneráveis a
retrações de capital e a pedidos de proteção comercial. A República Holandesa
ilustra de forma clara os custos e benefícios da dominação capitalista. De um lado,
os holandeses levantaram facilmente seus recursos para a guerra - a curto prazo
por meio de empréstimos tomados de seus cidadãos mais ricos, a longo prazo por
meio de taxas alfandegárias e impostos sobre vendas de todo e qualquer produto,
de marfim a bebidas alcoólicas (’t Hart 1986, 1989a, 1989b; Schama 1975); e
fizeram-no sem criar uma estrutura de estado permanente. Grandes frotas holan­
desas, entre elas os navios particulares das Companhias das índias Ocidentais e
Orientais, converteram-se rapidamente numa temível armada. No entanto, somente
quando as principais províncias (sobretudo a Holanda) concordaram em pagar é que
a república pôde empreender uma guerra, ou qualquer outro esforço mais ingente;
mas freqüentemente elas não concordavam. A vantagem militar de tais estados
117
CHARLES TILLY

variou com o tipo predominante de guerra: foi historicamente forte na guerra naval,
menos na de artilharia e cavalaria, e bastante atrasado em táticas que usavam um
exército numeroso.
As forças militares permanentes reduziram (mas não eliminaram) as insur­
reições por ocasião das exigências de recursos militares e, desse modo, aumentaram
a vantagem dos estados que dispunham de crédito a longo prazo e de bases amplas
de tributação. Estados como a Prússia, a França e a Grã-Bretanha - considerados
muitas vezes modelos de formação eficiente de estado - combinaram a cooptação
dos proprietários de terras e dos comerciantes, criaram exército (e marinha) per­
manente na época das táticas de formação militar cerrada, da Guerra dosTrinta Anos
às Guerras Napoleônicas, e, conseqüentemente, criaram vastas burocracias centrais.
Contrastes entre esses exemplos de compêndios escolares, no entanto, ocuparam
apenas uma faixa estreita no espectro total da formação do estado europeu.
Quando se mobilizaram para as guerras da Revolução Francesa e as Napo­
leônicas, a maioria dos estados europeus se expandiram e centralizaram. No final
da guerra, todos eles se contraíram um pouco - nem que seja apenas por causa da
desmobilização dos milhões de homens em armas por volta de 1815 - mas seus
orçamentos, seu pessoal e os níveis de sua atividade continuaram muito mais
elevados do que em 1790. A guerra na Europa e fora dela continuou a fornecer os
maiores incentivos para aumentos nos gastos do estado. Não obstante, no século
XIX, ocorreram diversas mudanças decisivas na formação de estado. A grande
implosão do capital e do trabalho nas cidades e vilas criou para os governantes
ameaças e oportunidades que não haviam enfrentado anteriormente: ameaças de
ação coletiva decorrente da concentração da classe trabalhadora, oportunidades de
extração e controle como nunca haviam tido antes. O campo de atividade do estado
ampliou-se imensamente em toda a Europa; melhorar a navegação, construir
estradas e ferrovias, policiar, criar escolas, instituir serviços de correio, estabelecer
regras para as relações entre o capital e o trabalho, tudo isso passou a ser atividade
regular dos estados, e ensejos de agregar especialistas do serviço estatal. Serviços
civis profissionais se formaram e se multiplicaram.
Ao mesmo tempo, quando os governantes negociaram com as suas populações
impostos maciços, serviço militar e cooperação em programas estatais, a maioria
dos estados deu dois passos à frente de profunda importância: o avanço para o
governo direto que reduziu o papel dos patronos locais e regionais e colocou
representantes do estado nacional em cada comunidade, e a expansão da consulta
popular sob a forma de eleições, plebiscitos e legislaturas. Juntos, eles favoreceram
o nacionalismo tanto no sentido da identificação popular com os objetivos doestado
(para a maioria) quanto (para as minorias) no sentido da resistência às exigências
IIX
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

de uniformidade e integração, resistência oposta por grupos lingüísticos e culturais.


O estado onipresente, as lutas em torno de seus governantes e suas políticas, a
formação de sérios concorrentes orçamentários às forças armadas e muitas outras
características dos estados que hoje tomamos como certas emergiram no século XIX,
época em que ocorreu a absorção geral da população pelo estado. Os estados
europeus, em virtude das suas relações diferentes entre o estado e a economia,
começaram a convergir num modelo de burocracias intervenção e controle.
A análise embutida no diagrama capital-coerção revela-nos múltiplas
trajetórias de formação do estado e uma convergência final em estados com altas
concentrações de capital e de coerção. A análise ajuda a reformular e responder a
pergunta inicial: O que explica a grande variação, no tempo e no espaço, entre os
tipos de estados que predominaram na Europa a partir de 990 d.C., e por que os
estados europeus acabaram convergindo em variantes distintas do estado
nacional? Há três respostas: a relativa disponibilidade de capital concentrado e
meios concentrados de coerção em regiões e períodos diferentes afetaram conside­
ravelmente as conseqüências organizacionais da prática dà guerra; até recentemente,
só sobreviveram aqueles estados que, na guerra com outros estados, se mantiveram
firmes; e final mente, com o tempo o caráter multiforme da guerra proporcionou uma
vantagem militar aos estados que conseguiram recrutar forças militares amplas e
duradouras junto às suas próprias populações, os quais se converteram em estados
cada vez mais nacionais.
O raciocínio capital-coerção também sugere algumas soluções possíveis para
os problemas históricos que derivam dessa questão geral. O que explica o padrão
mais ou menos concêntrico de formação de estado no conjunto da Europa? Reflete
a desigualdade na distribuição espacial do capital e, portanto, realça os estados
relativamente grandes mas pobres de capital que circundaram o continente a partir
do enxame de entidades com características de estado, pequenas e ricas de capital,
que proliferaram perto de seu centro. O contraste distingue os estados exteriores,
como a Suécia e a Rússia, que atravessaram seus anos de formação com concen­
trações relativamente amplas de coerção e concentrações relativamente pequenas
de capital, dos estados interiores, como Gênova e Holanda, nos quais a recíproca
era verdadeira, e ainda estados intermediários, como a Inglaterra e a França, nos
quais as concentrações de capital e de coerção se desenvolveram lado a lado.
Por que, apesar de óbvios interesses em contrário, os governantes muitas
vezes aceitaram o estabelecimento, dentro de suas jurisdições, de instituições
representativas das classes principais? Com efeito, os governantes tentaram evitar
a instalação de instituições representativas de grupos estranhos à sua própria classe,
e às vezes o conseguiram durante períodos consideráveis. Com o decurso do tempo,
119
CHARLES TILLY

porém, essas instituições passaram a ser o preço e a conseqüência da negociação


com diferentes membros da população pelos recursos para gerir a atividade do
estado, especialmente os meios de guerra. Os reis da Inglaterra não queriam que
um Parlamento se constituísse e assumisse um poder cada vez maior; fizeram essa
concessão aos barões, e depois ao clero, à pequena nobreza e aos burgueses, na
tentativa de persuadi-los a aumentar os recursos para a guerra.
Por que os estados europeus variaram tanto no que diz respeito à incor­
poração das oligarquias e instituições urbanas? Os estados que foram obrigados a
lutar desde o começo contra as oligarquias e instituições humanas geralmente
incorporaram essas oligarquias e instituições à estrutura nacional de poder. As
instituições representativas usualmente apareceram pela primeira vez na Europa
quando os governos locais, regionais ou nacionais negociaram com os grupos de
súditos que tinham poder bastante para inibir a atuação do governo mas não para
assumi-la (Blockmans 1978). Onde os governos em questão eram estados mais ou
menos autônomos e os grupos de súditos eram oligarquias urbanas, os conselhos
municipais e instituições similares comumente se tornaram elementos integrantes
da estrutura de estado. Onde predominou uma cidade isolada, emergiu uma forma
muito efetivaile estado: acidade-estado ou cidade-império. Desapareceram, porém,
tão logo os exércitos em massa recrutados entre a própria população se tornaram
decisivos para o sucesso da guerra.
Por que o poder político e comercial deslocou-se das cidades-estado e cida-
des-império do Mediterrâneo para os estados extensos e as cidades relativamente
subordinadas do Atlântico? Isso ocorreu não só porque o comércio do Atlântico e
do Báltico eclipsou o mediterrânico mas também porque o controle de força armada
maciça e permanente tornou-se cada vez mais decisivo para o sucesso do estado
tanto na política quanto na economia. Quando, no final do século XVI, a Espanha,
a Inglaterra e a Holanda começaram a mandar grandes navios armados ao Mediter­
râneo para comércio e pirataria (os dois não são tão distintos), as cidades-estado
como Ragusa, Gênova e Veneza acharam que a sua confiança anterior na velocida­
de, nas ligações e na sagacidade já não era suficiente para evitar maciças perdas
comerciais. Os proprietários de grandes naus apropriadas para as longas viagens
marítimas ganharam tanto em termos comerciais quanto militares (ver Guillerm
1985, Modelski & Thompson 1988).
Por que as cidades-estado, as cidades-império, as federações e as organi­
zações religiosas perderam a sua importância como tipos predominantes de estado
na Europa? Duas coisas aconteceram. Em primeiro lugar, a comercialização e a
acumulação de capital nos estados maiores reduziram a vantagem de que gozavam
os pequenos estados mercantis, que anteriormente haviam conseguido contrair
120
AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

empréstimos vultosos, tributar com eficiência e contar com seu próprio poder ul­
tramarino para manter à distância os grandes estados limitados territorialmente. Em
segundo lugar, a guerra acabou tomando um rumo que fez da sua soberania frag­
mentada e de pequena escala uma clara desvantagem, e foi vencida pelos estados
maiores. As repúblicas de Milão e de Florença esboroaram-se sob o peso das requi­
sições militares dos séculos XV e XVI. Na verdade, um organizador profissional de
exércitos mercenários, Francesco Sforza, tornou-se duque de Milão em 1450 antes
Vjue os seus descendentes perdessem o ducado para a França (1499) e depois para a
Espanha (1535).
Em Florença, um república renovada persistiu até 1530, mas então as forças
combinadas do papa e do imperador Carlos V ocuparam o seu contado, forçaram
uma rendição da cidade (apesar das fortificações recomendadas por uma comissão
chefiada por Niccolò Macchiavelli e construídas sob a direção de Michelangelo
Buonarrotti) e instalaram os Medieis como duques. Com as exceções parciais de
Veneza e Gênova, que se mantiveram de algum modo como potências marítimas,
essa época de grandes exércitos, artilharia pesada e extensas fortificações levou
todas as cidades italianas à extinção, subordinação ou sobrevivência perigosa nos
interstícios das grandes potências.
Por que a guerra derivou da conquista por tributo e da luta entre extorqui-
dores de tributos armados para as batalhas sustentadas entre extensos exércitos e
marinhas? Em essência, por dois motivos: com as inovações organizacionais è téc­
nicas da guerra nos séculos XV e XVI, os estados que tinham acesso a grande quan­
tidade de homens e a grande volume de capital adquiriram uma vantagem manifesta,
e repeliram os cobradores de tributos ou obrigaram-nos a adotar outros padrões de
extração que geraram uma estrutura de estado mais duradoura. Nos séculos XV e
XVI, o estado russo fez essa transição quando Ivan III e Ivan IV usaram concessões
de terras para amarrar os burocratas e soldados ao serviço do estado por longo
tempo. No decurso do século XVIH, a capacidade dos estados populosos, como a
Grã-Bretanha e a França, de recrutar entre seus próprios cidadãos exércitos maciços
lhes proporcionou os meios de subjugar os pequenos estados.
Mesmo que essa análise esteja correta, ela cria os seus próprios paradoxos:
por que, por exemplo, o fragmentado Sacro Império Romano perdurou por tanto
tempo em meio a monarquias belicosas e em consolidação? Por que não foi engolido
pelos estados grandes e poderosos? Outrossim, que lógica teria previsto que a
comercial Novgorod, uma cidade mercantil cujos patrícios controlavam todo o seu
grande interior, daria origem à Moscou principesca? Certamente, a posição
geopolítica e as retrações com respeito às principais potências desempenharam um
papel mais importante do que insinua a minha formulação simples. Isso se evidencia
121
CHARLES TILLY

de forma mais patente nos últimos capítulos. Não obstante, a linha de raciocínio
resumida no diagrama capital-coerção convida-nos a repensar a formação do estado
europeu em termos da interação entre cidades e estados, e desse modo apreende
algumas normalidades amplas na formação do estado. Supera claramente a
explanação da formação do estado inglês, francês ou prussiano enquanto processo
essencial e todas as outras tentativas atenuadas ou mal-sucedidas de seguir a mesma
trajetória. 3
Contudo, no decurso dos séculos anteriores ao XIX, os estados haviam diver­
gido bastante quando criaram forças militares em situações em que as relações entre
o capital e a coerção eram muito diferentes. Trajetórias alternativas de formação do
estado, por sua vez, conduziram a formas diferentes de resistência e rebelião, a es­
truturas de estado diferentes e a sistemas fiscais diversos. Se assim for, debates pa­
dronizados sobre a transição do feudalismo para o capitalismo e o surgimento de
estados nacionais se concentraram demais nas experiências da França, da Inglaterra
e de alguns outros estados extensos, ao passo que negligenciaram um determinante
importante do caráter real dos estados. Na Polônia, os grandes proprietários de terras
subjugaram tanto os capitalistas quanto os reis, mas praticamente não existiram na
Holanda. O “feudalismo” de Florença e de seu contado diferiram tanto do “feuda­
lismo” da Hungria que dificilmente se pode denominar os dois com o mesmo termo.
Mais do que qualquer outra coisa, a importância relativa das cidades, dos
financistas e do capital numa zona de formação do estado afetou consideravelmente
os tipos de estado que se formaram nessa região. A mobilização para a guerra teve
efeitos bastante diferentes de acordo com a presença ou ausência de capital vultoso
e de capitalistas. Uma olhadela mais atenta à verdadeira atuação dos estados
europeus - o tema do capítulo seguinte - esclarecerá como a disponibilidade e a
forma do capital tornaram tão diferentes a preparação para a guerra, e como a guerra,
por sua vez, moldou a estrutura organizacional duradoura dos estados.
Os capítulos 3 e 4 deixarão de lado a variação geográfica dentro da Europa
para examinar decididamente as principais mudanças na guerra, a estrutura política
e a luta doméstica. Em compensação, os capítulos 5 e 6 (sobre as trajetórias
alternativas de formação do estado e a evolução do sistema internacional dos
estados) atentarão firmemente para a variação entre os diferentes tipos de estado,
antes que o capítulo 7 confronte a experiência histórica da Europa com o caráter da
formação do estado no mundo contemporâneo.

122
3

COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS,


E VICE-VERSA

UMA BIFURCAÇÃO DE VIOLÊNCIA


A despeito da atual acalmia de quarenta anos na guerra aberta entre as grandes
potências do mundo, o século XX já se firmou como o mais belicoso da história
humana. Desde 1900, se contarmos cuidadosamente, o mundo assistiu a 237 novas
guerras - civis e internacionais —que mataram pelo menos mil pessoas por ano; até
o ano 2000, esses números implacáveis atingirão o montante de aproximadamente
275 guerras e 115 milhões de mortos em luta. As mortes civis poderiam facilmente
equiparar-se a esse total. O sangrento século XIX contou apenas 205 guerras e 8
milhões de mortos; o belicoso século XVIII, meras 68 guerras com 4 milhões de
mortos (Sivard 1986: 26; ver também Urlanis 1960). Esses números traduzidos em
taxas de mortalidade por mil habitantes dão cerca de 5 para o século XVIII, 6 para o
século XIX e 46 - oito ou nove vezes mais - para o século XX. De 1480 a 1800, a
cada dois ou três anos iniciou-se em algum lugar um novo conflito internacional
expressivo; de 1800 a 1944, a cada um ou dois anos; a partir da Segunda Guerra
Mundial, mais ou menos a cada quatorze meses (Beer 1974: 12-15; Small & Singer
1982: 59-60; Cusack & Eberwein 1982). A era nuclear não diminuiu a tendência
dos séculos antigos a guerras mais freqüentes e mais mortíferas.
O fato de os ocidentais comumente pensarem de modo diferente resulta talvez
de ser cada vez mais rara uma guerra entre as grandes potências: a França, a
Inglaterra, a Áustria, a Espanha e o Império Otomano em 1500; a França, o Reino
Unido, a União Soviética, a Alemanha Ocidental, os Estados Unidos e a China no
123
CHARLES TILLY

passado recente; outros grupos no período intermediário. A partir do século XVI,


declinaram, em média, a freqüência, a duração e o número de estados envolvidos
em guerras entre grandes potências. Em amarga compensação, porém, tornaram-se
muito mais severas - sobretudo se contarmos o número de mortos por mês ou por
ano (Levy 1983: 116-49). Entre as potências menores, as guerras aconteceram em
quantidade cada vez maior, mas foram razoavelmente pequenas; entre as grandes
potências, foram em quantidade cada vez menor, mas cada vez mais mortíferas.
Pode-se encarar com otimismo ou com pessimismo o contraste entre a
experiência de luta da grande potência e a de outros estados. Com otimismo,
podemos imaginar que as grandes potências acabam encontrando meios menos
onerosos de acertar as suas diferenças do que as guerras incessantes, e que o mesmo
poderá acontecer com outros estados. Com pessimismo, podemos concluir que as
grandes potências exportaram a guerra para o resto do mundo e evitaram que as
suas energias destruíssem uns aos outros em explosões concentradas. Seja qual for
a predisposição, percebemos um mundo cada vez mais beligerante em que os
estados mais poderosos gozam de uma ausência parcial da guerra em seus próprios
territórios e, por conseguinte, tornam-se talvez menos sensíveis aos horrores dos
conflitos.
O problema, no entanto, não é o fato de as pessoas se terem tornado mais
agressivas. A medida que o mundo se tornou mais belicoso, a violência entre as
pessoas que se acham fora da esfera do estado declinou de maneira geral (Chesnais
1981, Gurr 1981, Hair 1971, Stone 1983). Pelo menos isso parece ser uma verdade
no que diz respeito aos países ocidentais, até agora os únicos para os quais dispomos
de uma longa série de testemunhos. Embora os relatos de homicídios, raptos,
estupros e violência coletiva em nossos jornais diários possam sugerir coisa
diferente, as chances de morrer por morte violenta nas mãos de um outro cidadão
diminuíram enormemente.
As taxas de homicídio na Inglaterra no século XIII, por exemplo, eram cerca
de dez vezes as de hoje, e talvez duas vezes as dos séculos XVI e XVII. As taxas de
assassinato declinaram com particular rapidez do século XVII para o século XIX.
(Como os Estados Unidos têm de longe a maior taxa nacional de homicídio do mun­
do ocidental, pode ser mais difícil para os americanos do que para os outros avaliar
como a violência interpessoal se tornou mais rara em outras regiões; na maioria dos
países ocidentais, o suicídio é dez ou doze vezes tão comum quanto o homicídio,
embora a taxa de homicídio da população americana se aproxime de sua taxa de
suicídio.) Se não fossem a guerra, a repressão do estado, o automóvel e o suicídio,
as chances de morte violenta de qualquer tipo seriam incomparavelmente mais
escassas na maioria dos países ocidentais do que eram dois ou três séculos atrás.
124
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS. E VICE-VERSA

Pensadores como Michel Foucault e Marvin Becker talvez tenham razão


quando atribuem esse fato em parte a grandes mudanças de mentalidade. Todavia,
uma contribuição significativa resulta com certeza da tendência cada vez maior dos
estados a controlar, reprimir e monopolizar os meios efetivos de violência. No
mundo, em sua maior parte, a atividade dos estados criou um notável contraste entre
a violência da esfera estatal e a relativa não-violência da vida civil fora do estado.

COMO OS ESTADOS CONTROLARAM A COERÇÃO


Os estados europeus é que comandaram a construção desse contraste. E o
fizeram instituindo temíveis meios de coerção e privaram ao mesmo tempo as
populações civis do acesso a esses meios. Na maioria dos casos, contaram
intensamente com o capital e com os capitalistas enquanto reorganizavam a coerção.
No entanto, estados diferentes fizeram-no de formas notavelmente diferentes.
Não subestimem a dificuldade ou a importância da mudança. No decurso da
maior parte da história européia, era fato usual homens comuns (novamente, a forma
masculina da palavra é importante) disporem de armas letais; além do mais, dentro
de qualquer estado particular, era habitual os detentores de poder local ou regional
controlarem os meios concentrados de força que, quando combinados, podiam
igualar-se aos do estado ou mesmo sobrepujá-los. Durante muito tempo, em muitas
partes da Europa, os nobres gozaram do direito legal de fazer uma guerra particular;
no século XII, os Usatges, ou Costumes, da Catalunha registraram de forma espe­
cífica esse direito (Torres i Sans 1988: 13). Durante todo o século XVII os bandidos
(que muitas vezes consistiam de segmentos desmobilizados de exércitos públicos
ou particulares) se espalharam por grande parte da Europa. Na Sicília, os mafiosi,
empresários da violência controlados e protegidos, aterrorizaram as populações
rurais até os nossos dias (Blok 5974, Romano 1963). As pessoas alheias ao estado
muitas vezes se aproveitaram muito bem do uso particular dos meios violentos.
No entanto, a partir do século XVH, os governantes tentaram mudar o equi­
líbrio de maneira decisiva tanto em detrimento dos cidadãos individuais quanto dos
detentores de poder rivais dentro de seus próprios estados. Declararam criminoso,
impopular e inexeqüível para a maioria de seus cidadãos o uso de armas, baniram
os exércitos particulares e tornaram normal agentes armados do estado enfrentarem
civis desarmados. Hoje em dia, os Estados Unidos, por aceitarem a posse de armas
de fogo pelos cidadãos, diferem de todos os outros países do Ocidente e pagam o
preço em índices de mortalidade por tiro centenas de vezes superiores aos países
europeus; no tocante à proliferação de armas nas mãos dos particulares, os Estados
125
CHARLES TILLY

Unidos se assemelham muito mais ao Líbano e ao Afeganistão do que à Grã-


Bretanha ou aos Países-Baixos.
O desarmamento da população civil aconteceu em muitas e pequenas etapas:
apreensão geral das armas ao término das rebeliões, proibições dos duelos, controles
da produção de armas, introdução da licença para o porte de armas por particulares,
restrições a demonstrações públicas de força armada. Na Inglaterra, os Tudors !
suprimiram os exércitos particulares, limitaram o poder principesco dos grandes
senhores ao longo da fronteira escocesa, contiveram a violência aristocrática e
eliminaram os castelos-fortaleza que antes simbolizavam o poder e autonomia dos
grandes magnatas ingleses (Stone 1965: 199-272). Luís XIII, o monarca que, no
século XVII, com a ajuda de Richelieu e de Mazarino, reconstruiu as forças armadas :
do estado francês, provavelmente demoliu mais fortalezas do que construiu. Mas
construiu nas fronteiras e demoliu no interior. Para submeter os magnatas e cidades
que se opunham a essa norma, demoliu regularmente as suas fortificações, limitou
os seus direitos ao uso de armas e, desse modo, reduziu as probabilidades de
qualquer rebelião futura mais séria.
Ao mesmo tempo, a expansão dada pelo estado às suas próprias forças ar­
madas superou os armamentos de que dispunha qualquer de seus antagonistas do­
mésticos. A distinção entre política “interna” e “externa”, que antes não era muito
clara, tornou-se relevante e decisiva. Acentuou-se a conexão entre a guerra e a
estrutura de estado. Finalmente, a definição de estado dada por Max Weber, his­
toricamente contestável, começou a fazer sentido com relação aos estados euro­
peus: “o estado é uma comunidade humana que reivindica (com sucesso) o mono­
pólio do uso legítimo de força física dentro de um determinado território” (Gerth
& Mills 1946: 78).
A forma exata como ocorreu o desarmamento civil estava na dependência de
seu ambiente social: nas regiões urbanas, a instalação de um policiamento rotineiro
e a negociação de acordos entre as autoridades municipais e nacionais foram
importantes no caso, ao passo que, nas regiões dominadas pelos grandes proprie­
tários de terra, a dissolução dos exércitos particulares, a eliminação dos castelos
cercados de muros e fossos e a proibição das vendetas se alternaram entre cooptação
e guerra civil. Juntamente com a estruturação das forças armadas do estado, o desar­
mamento dos civis aumentou enormemente a proporção de meios coercivos nas
mãos do estado com relação àqueles de que dispunham os antagonistas domésticos
ou opositores daqueles que no momento detinham o poder. Conseqüentemente,
tornou-se quase impossível a uma facção dissidente tomar o poder num estado
ocidental sem a colaboração ativa de alguns segmentos das próprias forças armadas
(Chorley 1943, Russell 1974).
126
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA

A criação de forças armadas por um governante gerou uma estrutura de estado


duradoura. E isso aconteceu não só porque o exército se tornou uma organização
expressiva dentro do estado mas também porque a sua criação e manutenção indu­
ziram a instalação de organizações complementares: tesouros, serviços de
abastecimento, mecanismos de recrutamento, órgãos de coleta de impostos e muitas
outras. O principal organismo de arrecadação de impostos da monarquia prussiana
recebeu o nome de Comissariado Geral da Guerra. No final do século XVII, os su­
cessivos governos republicano e monárquico da Inglaterra, preocupados em rebater
o poder naval holandês e francês, transformaram os estaleiros reais na maior indús­
tria concentrada do país. Tais organizações construtoras de impérios, como a Com­
panhia holandesa das índias Orientais, converteram-se em elementos de enorme
influência em seus governos nacionais (Duffy 1980). De 990 d.C. em diante, as prin­
cipais mobilizações para a guerra propiciaram os melhores ensejos para os estados
se expandirem, se consolidarem e criarem novas formas de organização política.

AS GUERRAS
Por que aconteceram as guerras? O fato central e trágico é simples: a coerção
funciona; aqueles que aplicam força substancial sobre seus camaradas obtêm con­
descendência, e dessa condescendência tiram múltiplas vantagens, como dinheiro,
bens, deferência, acesso a prazeres negados aos indivíduos menos poderosos. Os
europeus seguiram urna lógica padronizada de provocação da guerra: todo aquele
que controlava meios substanciais de coerção tentava garantir uma área segura
dentro da qual poderia desfrutar dos lucros da coerção, e mais uma zona-tampão
fortificada, talvez conseguida aleatoriamente, para proteger a área segura. A polícia
ou o seu equivalente exercia a força na área segura, enquanto o exército patrulhava
a zona-tampão e se aventurava fora dela; os príncipes mais agressivos, como Luís
XIV, reduziram a zona-tampão a uma fronteira estreita mas fortemente armada, ao
passo que seus vizinhos mais fracos ou mais pacíficos tinham zonas-tampão e cursos
d’água maiores. Quando essa operação era assegurada por algum tempo, a zona-
tampão se transformava em área segura, que encorajava o aplicador de coerção a
adquirir uma nova zona-tampão em volta da antiga. Quando as potências adjacentes
estavam perseguindo a mesma lógica, o resultado era a guerra.
No entanto, algumas condições prévias da guerra variaram. A marca particular
de cada estado na guerra dependia de três fatores estreitamente relacionados: a
natureza de seus principais antagonistas, os interesses externos de suas classes
dominantes e a lógica da atividade de proteção que os governantes adotavam em
m
CHARLES TILLY

nome de seus próprios interesses e dos das classes dominantes. Naquelas regiões
em que os antagonistas eram marinheiros mercadores, a pirataria e o corso simples­
mente persistiram, independentemente do estado formal de guerra e paz, ao passo
que, naquelas em que as potências agrárias dominadas pelos senhores de terra
viviam ombro a ombro, as disputas pelo controle da terra e do trabalho - principal­
mente nos momentos das brigas de sucessão - precipitaram com muito mais
freqüência o apelo às armas. Quando as pequenas potências marítimas dispunham
de grandes impérios ultramarinos, a proteção dos interesses levou-os a patrulhar as
linhas costeiras e, desse modo, a travar inevitáveis batalhas contra aqueles que
cobiçavam o mesmo negócio. Com a mudança básica, no decurso dos mil anos que
estamos estudando, da composição de rivalidades, da natureza das classes
dominantes e das solicitações de proteção, mudaram também as causas carac­
terísticas da guerra.
A coerção é sempre relativa; quem quer que controle meios concentrados de
coerção corre o risco de perder vantagens quando um vizinho cria os seus próprios
meios. Na Europa anterior a 1400, o controle da maioria dos estados por grupos de
parentesco compôs a competição. Onde os governantes formavam um grupo de
parentesco, a tendência de grupos mais prósperos de parentesco se expandirem e
buscarem locais para seus herdeiros em números crescentes incitou-os à conquista
e, por conseguinte, aguçou as suas rivalidades. Além disso, o casamento entre
famílias governantes multiplicou as pretensões de dinastias poderosas aos tronos
vagos. Na soberania fragmentada da Europa, os antagonistas - parentes ou não -
sempre estavam à mão, mas do mesmo modo quase sempre uma coligação estava
pronta a impedir a expansão indefinida de qualquer centro particular.
Além disso, por muito tempo, estados maiores, como a Borgonha e a
Inglaterra, abrigaram antagonistas Internos do soberano vigente, grupos armados
que tinham alguma pretensão ao governo e que, às vezes, serviam de aliados
implícitos ou explícitos dos inimigos externos. Na China, quando se formou o vasto
aparelho imperial um império em desenvolvimento tinha uma série de inimigos,
mas nenhum antagonista real dentro ou fora de seus territórios. Os mongóis fizeram
constantes ameaças ao longo da fronteira setentrional da China e de vez em quando
realizaram incursões devastadoras dentro do império, mas só o tomaram realmente
uma única vez. Em geral, os mongóis eram melhores na extorsão de tributos do que
teriam sido na operação dos próprios aparelhos do estado. As dinastias chinesas
entraram em colapso quando a esfera administrativa do império fugiu ao seu
controle, quando os senhores da guerra se organizaram nos interstícios do império
e quando os invasores nômades (principalmente os manchus) assolaram o território
imperial e tomaram as rédeas do poder. A China se tornou o local de grandes
128
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA

rebeliões e guerras civis, mas não de guerra entre múltiplos estados. Nesse
particular, a Europa manteve o recorde.
Com o transcorrer do tempo, as guerras européias tornaram-se mais letais e
menos freqüentes. Apoiando-se na obra pioneira de Pitirim Sorokin, Jack Levy
compilou um catálogo das maiores guerras de que participaram as grandes potências
- na Europa ou em outras regiões - de 1495 até 1975 (ver tabela 3.1). O seu ca­
tálogo, que requer um mínimo de mil mortos em combate por ano, é muito menor
que a listagem que Evan Luard tentou elaborar e que compreendia todas as guerras
de vulto num período comparável, mas Levy estabelece critérios mais claros.de
inclusão e fornece maiores detalhes sobre as guerras que relaciona (ver Levy 1983,
Luard 1987). No decurso dos séculos, o número de guerras entre as grandes
potências, a sua duração média e a proporção dos anos de duração dessas guerras
caíram de forma relevante (Levy 1983: 88-91, 139). A lista de todas as guerras
elaborada por William Eckhardt - guerras entre as grandes potências « outras,
internacionais e civis, combinadas - atribui 50 ao século XVIII, 208 ao século XIX
e 283 ao século XX até 1987 (Eckhardt 1988: 7; Sivard 1988: 28-31).

Tabela 3.1 Guerras que envolveram grandes potências


Número de Duração média Proporção dos
Século guerras das guerras anos sob guerra
(anos) (%)
XVI 34 1,6 95
XVII 29 1,7 94
XVIII 17 1,0 78
XIX 20 0,4 40
XX* 15 0,4 53
* até 1975.
Fonte'. Levy 1983, Luard 1987.

Além disso, a intensidade da guerra mudou consideravelmente. Afigura 3.1


revela algumas das alterações por meio de um artifício tirado da análise de greves:
um sólido cujo volume representa o número total anual de mortos em combate nas
grandes potências, e cujas três dimensões revelam os componentes do total de
mortos em combate. Os três componentes são: o número de mortos em combate
por estado que se envolveu nas guerras entre as grandes potências durante o ano
médio; o número de estados que participaram dessas guerras durante o ano médio;
e o número médio de guerras por ano-estado de participação. Assim
129
CHARLES TILLY

mortos cm combate por ano =


mortos em combate por estado x anos-estado por guerra x guerras por ano

que é o que mostra o sólido.

Figura 3.1 Magnitudes das guerras entre grandes potências por século, 1500-1975.
130
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA

Movendo-nos de século para século, vemos que o número de mortos em


combate por estado aumenta de menos de três mii por ano durante o século XVI
para mais de 223 mil durante o século XX. O número médio de estados envolvidos
nas guerras entre grandes potências subiu de 9,4 no século XVI para 17,6 no século
XVIII, caindo a apenas 6,5 no século XX. (O aumento e diminuição revela o
desenvolvimento da guerra geral entre todas as grandes potências ou entre a sua
maioria, contrabalançado nos séculos XIX e XX pela tendência dos estados
ocidentais a começar conflitos locais fora do Ocidente ou a intervir neles.)
Finalmente, o número de guerras num determinado ano por estado participante caiu
do século XVI para o XVIII, depois se estabilizou: 0,34,0,29, 0,17,0,20 e 0,20. Isso
quer dizer que, no século XVI, os estados que sempre participaram das guerras de
grandes potências estiveram em conflito durante cerca de um ano a cada três (0,34);
no decurso do século XX, um ano a cada cinco (0,20).
Em conseqüência dessas mudanças, o volume absoluto de mortos por ano nas
grandes potências ascendeu de 9 400 durante o século XVI para 290 mil no curso
do século XX. Se incluirmos as mortes de civis e soldados das potências menores,
esse aumento com certeza seria muito maior. Com a aviação, os tanques, os mísseis
e as bombas nucleares, a taxa de mortalidade nas guerras do século XX supera de
longe as dos séculos anteriores.
Os números são apenas aproximados, mas determinam o intenso envolvi­
mento na guerra, século após século, dos estados europeus (que, do século XVII ao
século XIX, formaram quase o total das grandes potências do mundo). Também
sugerem que os preparativos para a guerra, o seu pagamento e a reparação de seus
danos preocuparam os governantes durante os cinco séculos em exame. Além do
mais, nos cinco séculos antes de 1500, os estados europeus concentraram-se quase
que exclusivamente em fazer guerra. Durante todo o milênio, a guerra foi a atividade
dominante dos estados europeus.
Os orçamentos dos estados, os impostos e as dívidas refletem essa realidade.
Antes de 1400, na era do patrimonialismo, nenhum estado tinha um orçamento
nacional no sentido estrito da palavra. Nos estados mais comercializados da Europa
existiam impostos, mas em toda a parte os governantes tiravam dos tributos, rendas,
direitos e feudos a maior parcela de suas receitas. Os soberanos individuais
tomavam dinheiro emprestado, mas habitualmente em seus próprios nomes e ao
arrepio dos parentes colaterais. Durante o século XVI, quando a guerra multiplicou
os gastos do estado na maior parte do continente, os estados europeus começaram a
normalizar e ampliar os seus orçamentos, os impostos e também as dívidas. As
receitas futuras dos estados passaram a servir de garantia para as dívidas a longo
prazo.
131
CHARLES TILLY

A dívida pública da França assumiu sérias proporções quando, na década de


1520, Francisco I começou a fazer empréstimos junto aos homens de negócio de
Paris em garantia das receitas futuras da cidade (Hamilton 1950: 246). Gastou o
dinheiro em suas grandes campanhas contra o imperador Habsburgo Carlos V.
Embora a dívida nacional francesa oscilasse em função dos esforços de guerra e
das políticas fiscais, de modo geral ela aumentou assustadoramente - a ponto de os
empréstimos tomados para custear as guerras do século XVIII terem submergido o
estado, arruinado o seu crédito e conduzido diretamente à fatídica convocação dos
Estados Gerais em 1789. Os orçamentos e os impostos aumentaram paralelamente: í
os impostos franceses subiram do equivalente a mais ou menos 50 horas do salário
de um trabalhador comum per capita por ano em 1600 para quase 700 horas per :
capita em 1963 (Tilly 1986: 62).
A Grã-Bretanha sobreviveu sem grandes dívidas nacionais até o reinado de ;
Guilherme III e Maria II. A Guerra da Liga de Augsburgo (1688-97) elevou a dívida
britânica a longo prazo para 22 milhões de libras. Por volta de 1783, depois da
Guerra dos Sete Anos e da Guerra da Independência Americana, havia decuplicado
para 238 milhões de libras. Em 1939, quando a Grã-Bretanha se rearmou, a dívida
pública alcançou o total de 8,3 bilhões de libras (Hamilton 1950: 254-57). A partir
do final do século X V II, os orçamentos, as dívidas e os impostos cresceram ao ritmo
da guerra. Todos os estados europeus envolvidos em guerras passaram pela mesma
experiência.
Se a guerra impulsionou os estados, nem por isso exauriu a sua atividade. Ao
contrário: impelidos pelos preparativos para a guerra, os governantes deram início
—de bom ou mau grado a atividades e organizações que acabaram por adquirir vida
própria: tribunais, tesouros, sistemas de tributação, administrações regionais, assem­
bléias públicas, e muitos outros. Escrevendo sobre o século XVI, J. H. Elliott observa:
Se a guerra foi um tem a dominante na história da Espanha nos reinados de Carlos V e
Filipe II, a burocratização foi outro. [...] A substituição de um rei guerreiro Carlos V por um
sedentário Filipe II, que gastava o dia de trabalho em sua escrivaninha rodeado de pilhas de
docum entos, simbolizou adequadam ente a transform ação do Império Espanhol quando pas­
sou da época do conquistador para o tempo do Servidor Público.
(Elliott 1963: 160.)

Os serviços de aparelhar os exércitos e marinhas não foram os únicos que re­


sultaram na expansão da estrutura de governo. Nenhum monarca podia fazer guerra
sem assegurar a aquiescência da quase totalidade de seus súditos, e da ativa coope­
ração pelo menos de uns poucos decisivos. Repetidas vezes, os governantes envia­
ram tropas para fazer cumprir a arrecadação de tributos, de impostos, os recruta-
132
COMO /t GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA

mentos de homens e as requisições de materiais. Mas permitiram igualmente que


as localidades se livrassem da onerosa injunção de tropas mediante o pagamento
no tempo devido de suas obrigações. Nesse particular, os governantes se asseme­
lhavam a vendedores de proteção: em troca de um valor, ofereciam proteção contra
os danos que eles próprios de outro modo infligiriam, ou pelo menos permitiriam
que fossem infligidos.
aNa esfera do estado, só multo lentamente se desenvolveu, e nunca se
completou, a divisão organizacional entre as forças armadas orientadas para atacar
os inimigos externos (exércitos) ess orientadas para controlar a população nacional
(policia). Os problemas de policiamento diferem sistematicamente entre as áreas
rurais (onde, entre outras coisas, grandes porções de terra tendem a situar-se em
espaço privado, vedado às autoridades públicas) e as áreas urbanas (onde grande
parte da terra é espaço público, acessível a todos); um estilo militar de policiamen­
to disponível sob chamado é adequado para a maior parte das áreas rurais, ao passo
que nas áreas urbanas é possível um patrulhamento e vigilância sistemática
(Stinchcombe 1963). Em conseqüência dessas e de outras diferenças, as cidades,
muito antes da zona rural, desenvolveram de modo geral forças de polícia distintas;
e naqueles estados relativamente urbanos a separação entre as forças de polícia e as
outras organizações militares ocorreu muito mais cedo.
Em meio ao século XVII, a maioria dos grandes estados europeus, para o
governo doméstico, dependiam de magnatas regionais armados e parcialmente
autônomos, e enfrentaram repetidas ameaças de guerra civil quando os magnatas
pegaram em armas contra os soberanos. Nos séculos críticos de 1400 a 1700, os|
governantes gastaram grande parte do seu esforço em desarmar, isolar ou cooptar'
os pretendentes rivais ao poder do estado. As municipalidades e jurisdições rurais
criaram bem antes as suas próprias forças policiais, de pequena monta, mas somente
no século XIX é que os estados europeus instituíram forças policiais uniformizadas,
assalariadas e burocráticas, especializadas no controle das populações civis. Desse
modo, não mais concentraram os seus exércitos na conquista externa e na guerra
internacional.
AS TRANSIÇÕES
A guerra teceu a rede européia de estados nacionais, e a preparação da guerra
criou as estruturas internas dos estados situados dentro dessa rede. Os anos em torno
de 1500 foram decisivos. Mais ou menos no meado do século XIV os europeus
haviam começado a usar regularmente a pólvora na guerra. Durante os 150 anos
seguintes, a invenção e difusão de armas de fogo deu vantagem militar àqueles
133
CHARLES TILLY

monarcas que tinham condições de fundir canhões e de construir os novos tipos de


fortalezas que os canhões não conseguiam destruir. A guerra passou das batalhas
travadas em campo aberto para os cercos das cidades importantes. Mais ou menos
em 1500, os custos subiram novamente, quando a artilharia móvel de sítio, e a
infantaria que a acompanhava, passaram a ser usadas de forma difusa; o
desenvolvimento dos mosquetes portáteis no começo do século XVI aumentou ainda
mais a importância da infantaria treinada e disciplinada. Na mesma época, os navios
a vela com grandes canhões passaram a predominar na guerra naval. Os maiores
estados ao norte dos Alpes, principalmente a França e o Império Habsburgo, tinham
condições de absorver os custos, e tiraram vantagem disso.
É verdade que, por mais dois séculos, alguns estados que se concentraram em
construir suas marinhas continuaram a prosperar; segundo alguns padrões, a Re­
pública Holandesa, com forças terrestres muito pequenas, tornou-se o estado líder
da Europa durante o século XVII. Do mesmo modo, Portugal e Veneza mantiveram
a sua condição durante todo o século XVII. A Inglaterra insular floresceu como po­
tência marítima antes de construir o seu exército durante o século XVIII (Modelski
& Thompson 1988: 151-244). Esses estados extorquiram riquezas de suas colônias,
lucraram com o intenso comércio internacional e tiraram vantagem das bases do­
mésticas que a marinha podia defender com facilidade. No entanto, aqueles estados
que recrutaram e mantiveram imensos exércitos com os próprios recursos nacio­
nais - a França, a Grã-Bretanha e a Prússia são os modelos preponderantes - aca­
baram por prevalecer sobre todos os outros.
Numa escala européia, portanto, o final do século XV assinalou uma transição
importante: quando os grandes estados militares começaram a sentir o incentivo da
expansão capitalista, as vantagens dos pequenos estados mercantis principiaram a
desaparecer. Nisso a geopolítica teve o seu papel: o término da Guerra dos Cem
Anos liberou uma França relativamente unificada para buscar outros espaços a
conquistar. Os múltiplos estados da Ibéria, que estavam concluindo a expulsão dos
muçulmanos da Península, sentiram a pressão francesa; com efeito, em 1463, Luís
XI anexou os condados catalães de Roussillon e Cerdagne. O casamento de
Fernando e Isabel (1474), que reuniu as coroas de Castela e Aragão, foi uma reação
à ameaça francesa e, por sua vez, uma ameaça à França. A rivalidade posterior entre
a França e a Espanha começou a reverberar por toda a política européia.
A Itália foi a primeira a sentir o impacto dessa mudança. E claro que os estados
papais, as repúblicas e as pequenas monarquias da Itália há muito se vinham
envolvendo na política fora da península. Em suas atitudes políticas a maior
importância foi dada a alianças de delicado equilíbrio, a apelos a mediadores
externos e a casamentos oportunos. Do século XIV ao século XV, os papas haviam
134
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA

devotado grande parte de sua energia a fiscalizar, controlar e até manipular as


eleições dos sacros imperadores romanos baseados na Alemanha. Esses, por sua
vez, caracteristicamente reclamaram suserania sobre grande porção da Itália. Em
resumo, a política italiana há muito estava ligada à dos outros estados.
A guerra e a rivalidade internacional também não eram novidades na Penín­
sula. Durante o século XIII, Aragão, o Sacro Império Romano, a França e o papado,
todos haviam disputado a predominância sobre a Itália. Foi nessa região que
ocorreram muitas das principais batalhas do século. Além disso, mais ou menos na
década de 1490, as principais potências da Itália-Veneza, Milão, Florença, Nápoles
e os estados papais - durante décadas vinham guerreando entre si intermitente­
mente. Contudo, as suas guerras haviam sido feitas de um modo suave e confinado.
Nessa época, o duque-usurpador Ludovico Sforza de Milão solicitou a Carlos VIII
da França que apoiasse as pretensões de sua família ao reinado de Nápoles.
Carlos V III cercou Nápoles, e com ele não foi um mas dois flagelos que
invadiram a Itália. Antes de 1494, a sífilis provavelmente não existia na Europa; é
possível que tenha sido introduzida na Espanha pelos homens que retornaram da
primeira viagem de Colombo à América. O certo é que os mercenários espanhóis
que participaram do cerco de Nápoles (1494-95) sofreram uma epidemia que com
quase certeza era sífilis, a qual se espalhou daí por todo o continente. Os franceses
costumavam chamá-la de “doença napolitana”, ao passo que os napolitanos
preferiam denominá-la “doença francesa” (Baker & Armelagos 1988). Qualquer
que seja a origem exata dessa primeira epidemia, os italianos logo sentiram que os
franceses e os mercenários haviam retornado à península com uma vingança. Se os
franceses vieram, logo se seguiriam os espanhóis.
Os anos 1490, portanto, foram diferentes do passado. Foram diferentes por
trazerem para a cidade-estado Itália não só embaixadores, príncipes e forças
imperiais, como também, através dos Alpes, grandes exércitos dos estados nacionais
em expansão. Além disso, os setentrionais chegaram com canhões móveis de sítio
e táticas a acompanhá-los, que multiplicaram a escala e destrutividade da guerra. A
invasão francesa de 1494 transformou a península no campo de batalha da Europa,
pôs fim ao ciclo das guerras de pequena monta entre cidades-estado autônomas e
chocou os pensadores italianos.
Esse choque originou-se do fato de as forças bárbaras mais uma vez terem
assolado a pátria da civilização. E como diz J. R. Hale:

Essa mudança no caráter da guerra depois de 1494 foi enfatizada por Machiavelii, com
o intuito de provar uma tese sobre os méritos relativos de milicianos a conclouicri, como o
foi igualmente por Guicciardini cuja intenção era revolver a faca na ferida da auto-estima da
135
CHAULES TILLY

Itália, mas certam ente houve uma m udança, e foi saudada com horror difuso. Contudo, esse
horror não era causado pela guerra em grande escala como tal, já que ela se opunha às guer­
ras anteriores de pequena escala, nem mesmo pelo fato de essas guerras durarem demais; tam­
pouco era provocado de alguma form a pela mudança no caráter da guerra - que se tornara
mais sangrenta, mais total, mais cara. Foi motivado pela evidência, fornecida por essas guer­
ras, de um colapso da moral, de um fracasso do caráter italiano em enfrentar esse desafio.
(Hale 1983: 360.)

Um trecho significativo do escrito de Machiavelli sobre as questões militares nasceu


do seu esforço para meditar sobre o que estava ocorrendo ao sistema italiano de
estado e o que se podia fazer a respeito.
O que estava ocorrendo ao sistema italiano de estado? Os estados nacionais
que se formaram ao norte dos Alpes, quando competiram pela hegemonia na Itália,
integraram-na energicamente a um sistema mais vasto que compreendia grande
parte da Europa. Logo depois, o Império Otomano se expandiu e ocupou parte do
território europeu e pressionou a Itália a partir do sudeste; o reinado de Solimão, o
Magnífico (1520-66), levou os turcos ao apogeu de seu poder na Europa. O avanço
otomano, por sua vez, deu início a uma luta de quatro séculos com a Rússia, que
pela primeira vez uniu com os otomanos e contra os russos os tártaros da Criméia,
estrategicamente localizados.
Na Itália, a mudança da guerra apresentou conseqüências devastadoras. Mais
ou menos na década de 1520, os Habsburgos e os Valois lutaram as suas guerras
dinásticas no território italiano. Em 1527, os mercenários do imperador Habsburgo
saquearam Roma. A partir de 1540, Milão e a Lombardia caíram sob o domínio
espanhol, a França ocupou grande porção da Sabóia e do Piemonte, Florença se
havia tornado um ducado governado pelos Medieis e submetido nominalmente ao
império, e Nápoles era um apanágio da coroa espanhola. Das maiores potências ita­
lianas, somente as mais marítimas, Veneza'e Gênova, haviam conservado as suas
instituições oligárquicas. No entanto, mesmo elas perderam a preeminência no
Mediterrâneo.
Quando os estados do Norte generalizaram as suas guerras e arrastaram altãlia
para as suas lutas, a guerra terrestre tornou-se mais importante e a capacidade de
pôr em campo grandes exércitos passou a ser decisiva para o sucesso de um estado.
A França contava 18 mil homens em armas em 1494, 32 mil em 1525 e 40 mil em
1552. As forças espanholas se expandiram muito mais depressa: de 20 mil soldados
em 1492 para 100 mil em 1532. Por volta de 1552, o imperador Carlos V tinhacerca
de 148 mil homens em armas, um número sem precedentes desde os tempos
romanos (Parker 1988: 45). No apogeu da Espanha, mais ou menos em 1630, 300
mil homens serviam sob a sua bandeira. A proporção entre as tropas e o total da
136
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA

população cresceu de maneira significativa. Os números da tabela 3.2 requerem


alguns esclarecimentos. As datas são aproximadas; “Inglaterra e Gales” significam
a Inglaterra e Gales até o final de 1600, a Grã-Bretanha em 1700 e o Reino Unido
depois disso; as fronteiras de todos esses estados sofreram contínuas alterações
durante o período; e o freqüente emprego de mercenários estrangeiros significa que,
entre 1500 e 1700, os números mostrados aqui foram, em diversos casos, muito
superiores à proporção da população nacional em armas. Além disso, o poder de
fogo oficial e real dos exércitos muitas vezes diferiu consideravelmente, sobretudo
antes de 1800. Finalmente, por motivos que este capítulo pretende examinar, os
números de soldados oscilaram drasticamente de ano para ano, de acordo com as
finanças públicas e com o estado da guerra; perto de 1700, na França, por exemplo,
o exército em tempo de paz contava cerca de 140 mil homens, mas Luís XIV elevou
esse número para 400 mil no meio de suas grandes campanhas (Lynn 1989). Não
obstante, os números elucidam eloqüentemente a questão principal. Durante os
séculos XVI e XVII, sobretudo, os exércitos se expandiram. Converteram-se num
grande negócio.

Tabela 3.2 Homens em armas na Europa, 1500-1980.


Homens em armas (iniJ) % úq soldados/população aacionaí
País 1500 1600 1700 1850 1980 1500 1600 1700 1850 1980
Espanha 20 200 50 154 342 0,3 2,5 0,7 1,0 0,9
França 18 80 400 439 495 0,i 0,4 2,1 1,2 0,9
Inglaterra/Gales 25 30 292 201 329 1,0 0,7 5,4 U 0,6
Países-Baixos 20 100 30 115 1,3 5,3 1,0 0,8
Suécia 15 100 63 66 1,5 7,1 1,8 0,8
Rússia 35 170 850 3663 0,3 1,2 1,5 1,4
Fonte: Com püada de 8aiJbe <983, Brewer 4989, C orvisier <976, -Flora 4983, Jones 4988, Lynn 1989,
M itchell ! 975, Parker 1976, Parker, 1988, Reinhard, Armengaud & Dupäquier 1968, Sivard 1983,
de Vries 1984, Wrigley & Schofield 1981.

Os orçamentos do estado, os impostos e a dívida cresceram paralelamente.


As receitas de impostos de Castela aumentaram de menos de 900 mil reales em 1474
para 26 milhões em 1504 (Elliott 1963: 80). Ao mesmo tempo, Fernando e Isabel
fizeram empréstimos em Granada e na Itália para pagar suas guerras. Quando o
•domínio espanhol sobre a Itália se aprofundou, a tributação italiana passou a ser
uma fonte primária de renda da coroa; os Países-Baixos também forneceram uma
parcela importante da receita de Castela. As Cortes de Catalunha, Aragão e Valência,
ao contrário, conseguiram resistir aos pedidos reais de aumento de suas contribui-
137
CHARLES TILLY

ções para as guerras do estado. Mais ou menos no meado do século XVI, as provín­
cias holandesas e italianas da Espanha deixaram de concordar com aumentos subs­
tanciais; Carlos V e Filipe II, necessitando de ajuda financeira, voltaram seus olhos
cada vez mais para Castela (onde seus antecessores haviam mostrado mais eficiência
na sujeição da nobreza, do clero e das cidades à vontade real) e para a América
(Elliott 1963: 192-3). Também tomaram empréstimos sob a garantia de antecipações
de renda de Castela e da América, resultando daí que, por volta de 1543, 65% das
rendas regulares da coroa se destinavam ao pagamento das anuidades (Elliott 1963:
198; para maiores detalhes, ver Fernandez Albaladejo 1989). Por conseguinte, não
deve causar surpresa que a coroa tenha ido à bancarrota quando não reconheceu as
suas dívidas em 1557.
Na mesma época, os suíços - ainda um povo conquistador nesse tempo -
desenvolveram novas táticas militares, que empregavam uma infantaria altamente
disciplinada e que logo provaram a sua superioridade. Os suíços já haviam
demonstrado seu valor militar quando, na década de 1470, derrotaram repetidas
vezes Carlos, o Calvo, da Borgonha. Em pouco tempo quase toda potência
necessitava dos soldados suíços, e a Suíça começou a substituir a condução de suas
próprias guerras pelo treinamento e exportação de mercenários (Fueter 1919: 10).
No processo, até os cantões suíços entraram no negócio de fornecimento de
soldados em troca de pagamento (Corvisier 1976: 147). A exemplo dos outros
exportadores de mercenários, a Suíça contava um número extenso de montanheses
pobres, nômades, semiproletarizados, que casavam tarde, portanto excelentes
candidatos ao serviço militar longe da terra natal (Braun 1960). Os mercenários,
fossem suíços e outros, substituíram os exércitos de clientes e as milícias de
cidadãos.
Numa escala pequena, durante séculos os mercenários tiveram a sua
importância nas guerras européias. Desde o tempo das cruzadas, soldados
flibusteiros do norte dos Alpes vendiam os seus serviços aos príncipes, genuínos
ou aspirantes, por todo o Mediterrâneo. Quando não encontravam quem os
empregasse, extorquiam e pilhavam por conta própria (Contamine 1984: 158).
Durante o século XIV, as cidades-estado italianas começaram empregando pequenos
corpos de tropas alugadas. Quando se acelerou a sua anexação forçada do território
adjacente, na década de 1320, por exemplo, Florença passou a depender
regularmente da cavalaria mercenária. Nos anos 1380, a Florença democrática
empregou - ou subornou - o grande mercenário inglês sir John Hawkwood, que
vinha pilhando a Toscânia desde que o término de uma guerra entre Milão e o
papado deixara a sua companhia desempregada. Hawkwood havia servido
anteriormente à Inglaterra, a Sabóia, a Milão, a Pisa e ao papado. Para a infelicidade
I3H
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS. E VICE-VERSA

dos florentinos, Hawkwood apoiou a oligarquia em sua ascensão vitoriosa de 1382;


foi-lhe “concedido o raro benefício da cidadania florentina juntamente com uma
pensão vitalícia e isenção de impostos; e, quando morreu em 1394, o governo agra­
decido não só o homenageou com um esplêndido funeral às expensas públicas,
cõmo também celebrou os seus serviços mandando pintá-lo na parede da fachada
interna da catedral, montado em seu cavalo com toda a sua panóplia de guerra”
(Schevill 1963: 337). Os turistas atuais ainda olham com curiosidade o mural
secular.
Em Veneza, a grande potência marítima, a nobreza residente durante muito
tempo forneceu seus próprios comandantes militares de terra e mar; além disso,
recrutou os seus soldados e marinheiros em grande parte entre a própria população
veneziana. No entanto, mais ou menos no final do século XIV, Veneza, a exemplo
de seus vizinhos italianos, passou a alugar capitães mercenários, condottieri, que
recrutavam as suas próprias tropas e lutavam as guerras da cidade-estado em troca
de um bom preço. O contrato que um soberano particular ajustava com os homens
que faziam a sua guerra se denominava condotta; assim, condottiere significa,
essencialmente, contratante. O vocábulo alemão Unternehmer exprime o mesmo
caráter comercial. Os condottieri eram os petroleiros da sua época, mudando de
lealdade de um negócio para o outro e às vezes acumulando grande riqueza; quando
o empresário mercenário Bartolomeo Colleoni morreu em 1475, a sua fortuna era
“comparável à riqueza do maior banqueiro da época, Cosimo de’Medici” (Lane
1973a: 233). Mais ou menos em 1625, Wallenstein, duque de Friedland, conquis­
tou seu próprio domínio de mais de cinco mil quilômetros quadrados, que lhe serviu
de base para um sistema de fornecimento de tropas que ele criou - com lucro —em
nome do sacro imperador romano. Em vez de permitir que as suas tropas saqueas­
sem indiscriminadamente, organizou um sistema de proteção, que as cidades eram
obrigadas a pagar com receio de que os soldados fossem deixados à vontade
(Maland 1980: 103). No tempo de Wallenstein, a guerra se transformou num
negócio bem lubrificado.
A guerra não apenas suscitou o recrutamento e pagamento das tropas. Os es­
tados que faziam guerras também tiveram de sustentá-las. Durante o século XVII,
um exército típico de 60 mil homens, com seus 40 mil cavalos, consumia mais de
450 toneladas de alimento por dia - parte transportada junto com o exército, parte
armazenada em depósitos, a maior parcela conseguida onde quer que o exército
estivesse acantonado, mas tudo isso requeria gastos maciços e organização (Van
Creveld 1977: 24). Aos preços e salários da época, 450 toneladas de grãos custam
o equivalente aos salários diários de cerca de 90 mil trabalhadores comuns
(cálculo feito a partir de Fourastié 1966: 423). Além do alimento, os exércitos pre­
139
CHARLES TILLY

cisavam de armas, cavalos, roupa e abrigo; quanto maiores os exércitos, menor a


possibilidade de cada soberano abastecer o seu. De Wallenstein a Louvois, os
grandes organizadores de guerra do século X V II envolveram-se muito mais no
aprovisionamento que na batalha. Isso fez com que seu grande negócio até
crescesse.
Do século X V ao século X V II - o período crítico para a formação do estado
, europeu - os exércitos criados em grande parte da Europa eram constituídos muito
mais de mercenários recrutados por grandes senhores e por empresários militares.
Da mesma forma, as marinhas nacionais (principalmente os corsários que saquea­
vam a frota inimiga com a autorização de um estado protetor) comumente congre­
gavam marinheiros alugados por todo o continente (Fontenay 1988b). E verdade
que a extensão, e o período, em que os estados dependeram de mercenários varia­
ram. Os governantes dos estados maiores e mais poderosos lutaram para limitar essa
dependência: a França, a Espanha, a Inglaterra, a Suécia e as Províncias Unidas
conservaram os seus próprios generais e alugaram os regimentos e companhias, mas
os estados menores comumente alugavam o exército inteiro, do general aos sol­
dados. Os Habsburgos alemães até a Guerra dos Trinta Anos usaram os recruta­
mentos iociis durante a guerra contrataram o grande mas exigente c o n d o ttie re
Wallenstein e. depois, na última metade do século X V II inclinaram-se a criar um
exército permanente.
Como as batalhas são ganhas mais pelo tamanho dos exércitos na relação entre
um e outro estado do que pelo esforço per capita que está por trás deles, pode-se
perceber porque estados menores relativamente prósperos muitas vezes alugaram
os seus exércitos no mercado internacional. Também as armadas misturaram forças
públicas e privadas. E o que observa M. S. Anderson:

Ató a década dc 1660, uma proporção considerável da frota de galeras francesas era
equipada por empresários privados (m uitas vezes Cavaleiros de M alta) que eram os proprie­
tários das galeras que comandavam e serviam ao rei sob contrato por um período fixo em tro­
ca de uma soma especificada. Na Espanha, em 1616, a marinha estava em má situação e dos
setenta navios da frota cinco eram de propriedade privada, alugados apenas para o verão (a
estação dc campanhas marítimas e terrestres), enquanto que no ano seguinte outros seis ou
sete tiveram de ser alugados para fornecer um a escolta às frotas de prata da América ao por­
to. Na Inglaterra, dos vinte e cinco navios que formaram a expedição de Drake às índias Oci­
dentais em 1585, apenas dois foram equipados pela rainha; e, em bora viajasse na qualidade
de almirante da rainha e recebesse instruções oficiais, som ente cerca de um terço dos custos
da expedição foi pago pelo governo.
(Anderson 1988: 27;
ver tam bém Fontenay 1988a, 1988b.)
140
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA

Os corsários, que gozaram de m uito sucesso na guerra m arítim a do século XVII,


são originários das forças não-governam entais licenciadas.
Os exércitos alugados e as marinhas arrendadas viviam essencialmente dos
pagamentos feitos e autorizados pelos agentes das coroas a que serviam. Afinal,
etimologicamente, “soldado” significa “aquele que luta por pagamento”. OSõldner
e o Unternehmer complementavam-se um ao outro. A peculiaridade do sistema
tornou-se manifesta muito cedo, quando, em 1515, “dois exércitos suíços, um a ser­
viço do rei francês e o outro de um barão italiano, se viram em lados opostos numa
batalha em Marignano na Itália do Norte e aniquilaram um ao outro quase qtie
completamente” (Fischer 1985: 186). O evento convenceu os suíços a evitar guerras
próprias, mas não os impediu de alugar mercenários para as guerras de outros povos.
Durante vários séculos, os estados europeus encontraram um meio adequado
de construir as suas forças armadas, através de um sistema em que sacavam a pres­
tação contra receitas antecipadas da tributação. O caso extremo de especialização
do estado na produção de mercenários foi sem dúvida Hesse-Cassel, um pequeno
estado do século XVIII que mantinha em armas 7% de sua população total - 12 mil
em guarnições domésticas que participavam da economia local e mais 12 mil num
exército bem-treinado que o landgrave arrendava por dinheiro (Ingrao 1987: 132).
Quando a Grã-Bretanha precisou de soldados extras para as suas guerras contra os
revoltosos americanos, recorreu ao Hesse. Por isso, na história do folclore ameri­
cano, “hessiano” significa grosseiro, impatriótico - em suma, mercenário. Com base
nos negócios militares, Frederico II (1760-85) instituiu um despotismo esclarecido,
complementado com a assistência aos pobres e um hospital maternidade; contudo,
a maioria dos programas entrou em colapso quando a guerra americana terminou e
os estados europeus voltaram a recrutar os seus próprios exércitos nacionais (Ingrao
1987: 196-201). Chegava ao fim a época dos mercenários.
Durante muito tempo os estados maiores da Europa haviam-se esforçado para
conter os mercenários dentro de exércitos comandados por seus próprios generais e
controlados pelos seus próprios civis. Além disso, com o século do Iluminismo, os
custos e riscos políticos das forças mercenárias em ampla escala levaram os
governantes desses estados a recrutar cada vez mais os seus próprios cidadãos e a
substituir onde fosse possível os mercenários estrangeiros. Nos primeiros estágios
da expansão militar com exércitos alugados, os governantes acharam dispendioso
e politicamente arriscado o recrutamento de soldados entre a sua própria população;
continuava grande o perigo de uma resistência doméstica e de rebelião. As guerras
da Revolução Francesa e do Império determinaram o final dessa tendência, e chegou
ao fim a predominância dos exércitos mercenários. Como refletiu Cari von
Clausewitz após a derrota de Napoleão:
141
CHARLES TILLY

Enquanto, segundo a maneira usual de ver as coisas, todas as esperanças, em 1793,


foram colocadas numa força militar muito limitada, emergiu uma força que até então ninguém
podia imaginar. De repente, a guerra voltou a ser um problema do povo, e de um povo que
chegava aos trinta milhões, cada um dos quais se considerava um cidadão do Estado. [...]
Mediante essa participação do povo na Guerra em vez de um Gabinete e um Exército, toda
uma Nação com seu peso natural entrou na balança. Doravante, os meios disponíveis —os es­
forços que podiam ser envidados - já não tinham quaisquer limites definidos; a energia com
que a própria Guerra podia ser conduzida já não tinha qualquer contrapeso e conseqüente­
m ente o perigo para o adversário havia crescido ao extremo.
(Clausewitz 1968 [1832]: 384-85.)

Com uma nação em armas, o poder de extração do estado cresceu enorme­


mente, como também aumentaram as reivindicações dos cidadãos ao seu estado.
Embora uin chamado para defender a mãe-pátria tenha estimulado um apoio
extraordinário aos esforços de guerra, a dependência da conscrição em massa, da
tributação confiscatória e da conversão da produção para as finalidades da guerra
tornou todo estado vulnerável à resistência popular e responsável pelas reivindi­
cações populares, como nunca ocorrera antes. A partir desse momento, o caráter da
guerra mudou e a relação entre a prática da guerra e a política civil alterou-se fun­
damentalmente.
Dada a orientação geral para a monetização e a mercadização, o desapareci­
mento das forças armadas mercenárias chega como uma surpresa. Por que então os
estados parariam de alugar seus soldados e marinheiros e passariam a substituí-los
por exércitos permanentes com base no recrutamento? Vários fatores convergiram
para essa solução. A instituição de imensas forças armadas cuja obrigação para com
a coroa era apenas contratual aumentou os perigos de pressão, de rebelião e mesmo
de disputa pelo poder político; os próprios cidadãos de um estado, comandados por
membros de suas classes dirigentes, muitas vezes lutam melhor, mais confian­
temente e mais barato. O poder sobre a população doméstica que os governantes
adquiriram mediante a instituição de exércitos mercenários e a infra-estrutura para
suportá-los acabou por alterar o equilíbrio; quando os mercenários se tornaram caros
e perigosos por eles mesmos, as possibilidades de resistência efetiva por parte da
população nacional declinaram. Quando as guerras se tornaram mais caras, o custo
absoluto da guerra na escala determinada pelos seus grandes antagonistas
ultrapassou os recursos financeiros de todos os estados, salvo os mais comer­
cializados. No decorrer do século XVIII, a grande expansão da indústria rural abriu
oportunidades econômicas alternativas para os povos de regiões importantes, como
a montanhesa Suíça, que vinha exportando soldados e criados domésticos para o
restante da Europa, e desse modo pressionando a oferta de mercenários. A
142
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS. E VICE-VERSA

Revolução Francesa e Napoleão deram o coup de grâce* no sistema mercenário


quando criaram exércitos imensos e efetivos, recrutados principalmente no próprio
território francês em expansão. Contudo, mais ou menos nessa época, mesmo os
exércitos permanentes recrutados entre a população tinham de ser pagos e
sustentados. A partir do século XV, os estados europeus inclinaram-se decididamente
para a criação de forças pagas, mantidas pelos empréstimos e impostos.
Na verdade, o sistema mercenário revelava umaçrande fraqueza: quando o
pagamento demorava a chegar ou mesmo não vinha, os mercenários habitualmente
se amotinavam, abandonavam a região, tornavam-se bandidos, ou as três coisas ao
mesmo tempo; o povo do local pagava o preço (ver Gutmann 1980: 31-71). Nas
guerras dos séculos XV I e X V II, o saque complementava a renda militar, mas estava
muito longe de garantir a manutenção dos soldados. Com grande diversidade de
um estado para outro, o aluguel de força armada junto a empresários mais ou menos
independentes atingiu seu apogeu no século X V II e começou a diminuir no século
X V III. Não obstante, por três ou quatro séculos, os mercenários determinaram o
padrão europeu de desempenho militar. A maioria dos empresários que serviam aos
exércitos compravam alimento, armas, uniformes, abrigos e meios de transporte ou
diretamente ou mediante concessões a oficiais subordinados. Para isso, precisavam
de dinheiro, e de muito dinheiro. Em 1502, Robert de Balsac, veterano das cam­
panhas italianas, concluiu um tratado sobre a arte da guerra com uma advertência a
todo e qualquer príncipe: “o mais importante de tudo, o sucesso na guerra depende
de se ter bastante dinheiro para fornecer tudo do que a empresa necessita” (Hale
1967: 276).

A APREENSÃO, A FABRICAÇÃO OU /I COMPRA DE COERÇÃO


Mais ou menos em 1502, a maioria dos príncipes europeus já conheciam de
cor a lição de Balsac. Grosseiramente falando, os governantes dispunham de três
meios principais de adquirir os meios concentrados de coerção: poderiam apreen­
dê-los, fabricá-los ou comprá-los. Antes do século XX, poucos estados europeus
fabricaram uma parcela importante de seus próprios meios coercivos; raramente
possuíram o capital necessário ou a técnica para tanto. Aquelas manufaturas caras
e perigosas como a pólvora e o canhão foram as principais exceções. Depois de
990 d.C., os estados europeus passaram a evitar a apreensão direta e tenderam a
adquiri-la.
* Em francês no original, “golpe de misericórdia”. (N. do T.)
143
CHARLES TILLY

Diversas mudanças importantes os impeliram na mesma direção. Em primeiro


lugar, quando a guerra se tornou mais complexa e mais necessitada de capital, um
número cada vez menor de pessoas da população civil passou a dispor dos meios de
guerra; toda família nobre do século XIII possuía espadas, mas nenhuma do sécu­
lo XX possui um porta-aviões. Em segundo lugar, os governantes desarmaram deli­
beradamente as suas populações civis à medida que armavam as suas tropas, acen­
tuando desse modo a distinção entre os que controlavam os meios de guerra e aqueles
que normalmente pagavam a guerra a pedido do monarca. Em terceiro lugar, os es­
tados se envolveram cada vez mais na produção dos meios de guerra, o que colo­
cou a questão sob outra forma: uma escolha entre apreender e comprar os meios de
produção em vez dos próprios produtos. Em quarto lugar, a oposição da massa da
população submetida à captura direta de homens, alimento, armas, transporte e outros
meios de guerra foi muito mais vigorosa e eficiente do que a resistência a pagar os
seus custos. Embora várias formas de recrutamento tenham persistido até os nossos
dias, os estados europeus geralmente tenderam a um sistema de arrecadação de im­
postos em dinheiro, pagamento dos meios coercivos com o dinheiro assim arrecadado
e emprego de alguns meios coercivos para melhorar a arrecadação de impostos.
Tal sistema só funcionou bem sob duas condições muito necessárias: uma
economia relativamente monetizada e a pronta disponibilidade de crédito. Numa
economia onde apenas uma pequena parcela de bens e serviços é comprada e
vendida, prevalece uma série de condições: os coletores de impostos são incapazes
de observar ou avaliar os recursos com alguma precisão, muitas pessoas têm
pretensões sobre algum recurso particular e a perda desse recurso é de difícil
reparação por parte do perdedor. Em conseqüência, qualquer tributação imposta é
ineficiente, claramente injusta e bastante passível de suscitar resistência. Quando a
disponibilidade de crédito é pequena, mesmo numa economia monetizada, os gas­
tos correntes dependem de dinheiro em caixa, e as ondas de despesa só podem
ocorrer depois de cuidadoso armazenamento. Em tais circunstâncias, qualquer
governante que não pode apreender õs meios de guerra diretamente da sua
população ou adquiri-los em outra parte sem qualquer pagamento se vê bastante
pressionado a construir a força armada de seu estado. Após 1500, quando os meios
de guerra vitoriosa se tornaram cada vez mais caros, os governantes da maioria dos
estados europeus gastaram grande parte de seu tempo na obtenção de dinheiro.
De onde provém o dinheiro? A curto prazo, tipicamente de empréstimos junto
a capitalistas e de coletas junto às populações locais que se sentem bastante
incomodadas com as tropas em sua vizinhança. A longo prazo, de uma ou outra
forma de tributação. Norbert Elias observa uma estreita relação entre a tributação e
a força militar:
144
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS. E VICE-VERSA

A sociedade daquilo que chamamos era moderna se caracteriza, principalmente no Oci­


dente, por um certo nível de monopolização. Ao indivíduo é negado o livre uso de armas mi­
litares, que é reservado a uma autoridade central de qualquer tipo; do mesmo modo a tributa­
ção da propriedade e da renda de indivíduos se concentra nas mãos de uma autoridade social
central. Os meios financeiros que fluem desse modo para essa autoridade central mantêm o
seu monopólio da força militar, enquanto essa por seu turno mantém o monopólio da tributa­
ção. Nenhuma das duas tem algum tipo de precedência sobre a outra; são os dois lados do
mesmo monopólio. Se uma desaparece, a outra segue-a automaticamente, mesmo que o domí­
nio ílo monopólio possa às vezes ser abalado mais fortem ente de um lado do que do outro.
(Elias 1982: II, 104.)

Contudo, o dueto de Elias constitui na verdade duas vozes de um trio. O membro


que está faltando, o crédito, liga o monopólio militar ao monopólio da tributação.
Historicamente, poucos estados grandes conseguiram pagar os custos militares
com as receitas normais. Ao contrário, remediaram a necessidade com uma ou outra
forma de empréstimo: fazendo os credores esperarem, vendendo cargos, forçando
empréstimos de clientes, tomando emprestado a banqueiros em troca de direitos
sobre receitas futuras do governo. Se um governo e seus agentes têm condições de
tomar empréstimos, podem descombinar o ritmo de seus gastos com o das receitas,
e aqueles são feitos antes da entrada destas. Esse tipo de gasto antes da receita torna
mais fácil atender às grandes despesas da guerra, uma vez que os gastos com
homens, armas e outros requisitos da guerra ocorrem costumeiramente em ondas,
de tempos em tempos, ao passo que as rendas do estado potenciais e reais costumam
oscilar muito menos de ano para ano. Além disso, um estado que faz empréstimos
rápidos pode mobilizar-se mais depressa que seus inimigos, e desse modo aumenta
as chances de ganhar uma guerra.
E evidente que a disponibilidade de crédito depende de ter o estado pago as
suas dívidas anteriores, mas depende muito mais da presença de capitalistas. Estes
servem aos estados, quando têm vontade de fazê-lo, como emprestadores, mobi­
lizadores de empréstimos e administradores ou mesmo cobradores de rendas para
pagar os empréstimos. Algumas vezes os capitalistas europeus reuniram todas essas \
atividades na figura bastante odiada do arrendatário de impostos, que adiantava |
dinheiro ao estado em troca de impostos que ele mesmo cobrava com a autoridade I
e a força militar do estado e dos quais separava um belo quinhão para si como paga-;
mento de seu crédito, do risco e do trabalho. Todavia, muitas vezes os capitalistas
eram os principais organizadores e depositários da dívida pública. A sua atividade
favorecia igualmente a monetização da economia de um estado; algumas das
relações mais importantes estão resumidas na figura 3.2. Não são as únicas relações
que influenciam as variáveis do esquema. O acesso direto por parte de uma coroa a
145
CHARLES TILLY

recursos de venda fácil, por exemplo, tornam-na mais atraente para os credores, e
ocasionalmente fornece uma alternativa ao empréstimo. Enquanto o ouro e a prata
fluíam das Américas, os reis espanhóis encontraram emprestadores de boa vontade
em Augsburgo, Amsterdam e em outros locais. Na época da mobilização em massa
e dos imensos exércitos de cidadãos que tiveram início com a Revolução Francesa,
o simples tamanho da população de um estado passou a representar crescentemente
uma facilidade para a práticaxla guerra. Mesmo então, as relações entre a atividade
capitalista, a monetização, a disponibilidade de crédito e a facilidade na guerra eram
fonte de importante diferença entre os estados da Europa; proporcionaram aos
estados que tinham pronto acesso aos capitalistas vantagens extraordinárias em
mover-se rapidamente para uma base de operações.

Facilidade de fazer guerra


Disponibilidade
de crédito

Figura 3.2 Como a presença de capital facilita a prática da guerra.

Por conseguinte, a presença ou ausência relativa de cidades mercantis dentro


do território de um estado afetava fortemente a sua facilidade de mobilização para
a guerra. Onde havia abundância de cidades não só os empréstimos e impostos
fluíam mais rapidamente para os cofres dos estados - graças à maior atenção que o
governo dava aos interesses dos “burgueses” dentro e fora do território - mas
também as milícias urbanas e frotas comerciais se adaptavam mais prontamente à
defesa e à predação militar. Onde as cidades eram fracas e raras, os governantes ou
operavam sem grandes empréstimos ou recorriam a banqueiros estrangeiros que
cobravam altos preços por seus serviços, atraíam a cooperação dos magnatas que
controlavam as forças armadas e, além disso, exigiam privilégios em troca, e insti­
tuíam pesados aparelhos fiscais no processo de tributar uma população resistente e
sem dinheiro.
No decurso do século XVIII, quando se expandiu a escala da guerra e se
generalizou o emprego de mercenários, a capacidade de fazer empréstimos tornou-
se cada vez mais decisiva para o êxito militar. Os comerciantes da Alemanha
Meridional, como os Fuggers de Augsburgo, juntaram-se a seus colegas italianos
nas atividades de empréstimos aos reis; por exemplo, os Fuggers da Antuérpia
financiaram as guerras espanholas contra a garantia de entregas futuras da prata
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS. E VICE-VERSA

americana. Os empréstimos a longa distância tornavam os monarcas devedores de


estrangeiros a quem não era fácil controlar, mas dava-lhes condições de não
reconhecer as dívidas, o que produzia efeitos menos catastróficos sobre as
economias locais. No final, as desvantagens superaram as vantagens, e os monarcas
preferiram recorrer a empréstimos domésticos. Evidentemente, os que podiam
tomar empréstimos no país eram sobretudo aqueles cujos estados compreendiam
importantes zonas de empresa capitalista. Mais ou menos na época de Henrique IV
(1598-1610), a França deixou de depender de outros centros de capital (especial­
mente Lyon, um conduto do capital italiano) para voltar-se para o domínio Finan­
ceiro de Paris, abandonou os financistas estrangeiros para cair nas mãos dos em-
prestadores franceses, desistiu da negociação em troca do pagamento forçado de
impostos (Cornette 1988: 622-4). Embora a insolvência tenha ameaçado a coroa
repetidas vezes durante os dois séculos seguintes, essa consolidação do poder fiscal
propiciou à França uma enorme vantagem nas guerras futuras.

PAGANDO AS DÍVIDAS
Fossem os empréstimos pesados ou não, todos os governantes enfrentaram o
problema de ter de pagar as suas guerras sem destruir a capacidade de suas fontes
para pagamentos futuros. E adotaram estratégias fiscais muito diferentes. As receitas
governamentais em geral (“impostos”, no sentido amplo do termo) se compõem de
cinco categorias amplas: tributos, rendas, impostos sobre a circulação, taxas sobre
os estoques e impostos sobre a renda. Os tributos compreendem os pagamentos
arbitrários cobrados de indivíduos, grupos ou localidades; os impostos individuais
que são iguais para toda a população ou para as suas principais categorias cons­
tituem um tipo especial de tributo. As rendas consistem de pagamentos diretos por
terras, bens e serviços fornecidos contingentemente pelo estado aos usuários parti­
culares. (Alguns estados - a Rússia, a Suécia e o Império Otomano, por exemplo -
deram uma característica especial às rendas ao concederem a alguns oficiais mili­
tares e funcionáriosci vis as rendas das terras da coroa que eles mantinham enquanto
continuassem prestando serviço ao rei.)
Tanto as rendas quanto os tributos podem ser facilmente cobrados em espécie.
As taxas sobre a circulação e sobre os estoques não o podem. As taxas sobre a
circulação abrangem os impostos sobre o consumo, as taxas alfandegárias, as taxas
de pedágio e de transporte, os impostos sobre transação e outras taxas sobre
transferências e movimentações; os especialistas muitas vezes as denominam
impostos indiretos, porque refletem de forma bastante indireta a capacidade de
147
CHARLES TILLY

pagamento do contribuinte. As taxas sobre os estoques se dividem sobretudo em


impostos sobre a terra e sobre a propriedade; os especialistas chamam-nas muitas
vezes impostos diretos. Os impostos sobre a renda (na realidade, um caso especial
de taxas sobre circulação) recaem sobre os rendimentos normais, sobretudo salários
e outras receitas monetárias.

Monctização
Baixa Alta
Alta
+ +
+ Rendimentos +
+ +
+ +
+‘ Estoques +
+ +
o + •f
«" + +
Circulação +
1 + +
iS
+ 4-
+ Rendas +
+ +
+ +
+ +
Tributos +
Baixa + --------------------------------------------------------------------------------1-

Figura 3.3 Formas alternativas de tributação.

Os cinco tipos de impostos formam uma espécie de continuum com respeito


à sua dependência da monetização da economia ambiente. Diferem também em
termos do total de fiscalização permanente que o arrecadador deve exercer (ver
figura 3.3). De modo geral, os impostos que exigem pouca fiscalização dependem
do emprego ostensivo de força mais freqüentemente do que aqueles que exigem
fiscalização permanente, e portanto suscitam o desenvolvimento de quadros
especializados de pessoal para estimativa e cobrança. Os governos que dispõem de
força bastante podem arrecadar tributos e rendas em economias relativamente
desmonetizadas, embora mesmo aqui a capacidade do povo de pagar em moeda
depende da sua possibilidade de vender produtos e serviços a vista. Mesmo as taxas
alfandegárias estão na dependência da existência de fronteiras bem-definidas e bem-
defendidas; o contrabando - a evasão de impostos alfandegários internos ou
externos - passou a ser crime quando os estados europeus tentaram definir e
defender as suas fronteiras. Na verdade, na época do patrimonialismo e da cor­
retagem, os estados contavam com pedágios cobrados em estradas estratégicas,
148
/t
COMO GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA

portos ou canais em vez dos impostos alfandegários arrecadados ao longo de uma


fronteira controlada (Maravall 1972:1, 129-33).
Os impostos sobre circulação dependem grandemente da monetização, porque
a monetização aumenta essas circulações, torna mais fáceis as estimativas dos fluxos
pelos assessores e aumenta a capacidade daqueles que são obrigados a pagar em
moeda. Os impostos sobre os estoques, contra-intuitivamente, também dependem
fortemente'da'-monetização, pois, na ausência de um mercado ativo da terra e da
propriedade em questão, os assessores não dispõem dos meios de equaüzar a taxa
com o vaior; quando essa equalização é deficiente, o imposto é ineficaz (ver Ardant
1965). Assim, a monetização afeta fortemente a eficácia com que um estado pode
financiar o seu esforço de guerra mediante a tributação, em vez de extorquir
diretamente da população esses meios de guerra. O imposto sobre a renda é um caso :
extremo, que se converte numa fonte duradoura e efetiva de receita governamental
naquelas economias ondé praticamente todo o mundo está envolvido na economia
monetária e a maioria dos trabalhadores recebem salários.
No entanto, os estados áftatnente comercializados tiram algumas vantagens
importantes dessas relações. Dado um nível adequado de monetização, as taxas
próximas da extremidade superior do continuum são relativamente eficientes.
Dependem da medida e visibilidade que uma economia comercial aplica à
propriedade, aos produtos e serviços. Os participantes dos mercados já exercem uma
parcela significativa da fiscalização necessária mediante o registro de preços e
transferências. Além disso, os cidadãos particularmente socializados costumam
atribuir valor moral ao pagamento de impostos; fiscalizam a si mesmos e uns aos
outros, condenando os sonegadores de impostos. Por conseguinte, os impostos sobre
a circulação, sobre os estoques e especialmente sobre a renda têm um alto retorno
em relação a um determinado volume de esforço na arrecadação e se adaptam com
maior facilidade do que outros tributos e taxas às alterações na política do estado.
Um estado que tenta arrecadar a mesma quantidade do mesmo imposto numa -
economia menos comercializada enfrenta maior resistência, cobra com menos
eficiência e, portanto, institui durante o processo um aparelho maior de controle.
Se dois estados de tamanho igual mas com graus diversos de comercialização vão à
guerra e tentam extrair somas comparáveis de dinheiro de seus cidadãos por meio
das mesmas espécies de impostos, o estado menos comercializado cria uma estrutu­
ra mais avultada quando faz a guerra e paga os seus custos. O estado mais comer­
cializado, no geral, faz a mesma coisa com uma organização administrativa menos
volumosa.
O abastecimento direto dos exércitos, a imposição de impostos e a gestão do
crédito real, tudo isso funciona de maneira mais fácil nas economias comercia-
149
CHARLES TILLY

lizadas e detentoras de capital abundante. Todavia, onde quer que ocorreram, mul­
tiplicaram os servidores civis do estado. Um esforço de guerra mais intenso geral­
mente produziu uma expansão contínua do aparelho central do estado - o número
de seus servidores em tempo integral, o alcance de suas instituições, o tamanho de
seu orçamento, a extensão de sua dívida. Quando a Holanda e a Espanha, ein 1609,
estabeleceram uma trégua na guerra esgotante pelas pretensões holandesas à
independência, muitos observadores de ambos os lados esperaram um alívio na
extraordinária tributação que os havia esmagado na década anterior. O que se viu
foi que o serviço da dívida, a construção de fortificações e outras atividades do es­
tado absorveram facilmente as receitas liberadas pela desmobilização militar. Os
impostos não diminuíram significativamente em nenhum dos dois países (Israel
1982: 43-4).
Alguns historiadores referem-se a um “efeito catraca” pelo qual um orçamen­
to inflado em tempo de guerra nunca retorna ao nível anterior ao conflito (Peacock
& Wiseman 1961; Rasler & Thompson 1983, 1985a). O efeito catraca não ocorre
universalmente, mas aparece com bastante freqüência, sobretudo naqueles estados
que não sofreram grandes perdas na guerra em questão. Ocorre por três motivos:
porque o aumento do poder do estado em tempo de guerra oferece aos funcionários
uma nova capacidade de extrair recursos, de empreender novas atividades e de
defender-se contra a redução de custos; porque as guerras ou suscitam ou revelam
novos problemas que exigem a atenção do estado; e porque a acumulação de dívida
em tempo de guerra impõe novos encargos ao estado.
As dívidas nacionais se originam em grande parte de empréstimos para e
durante as guerras. A possibilidade de tomar empréstimos para satisfazer os gastos
militares afetou fortemente a capacidade do estado de realizar campanhas militares
eficientes. As solicitações da República Holandesa, no século XVII, aos financistas
de Amsterdam e de outras cidades comerciais importantes permitiram que um
pequeno estado levantasse rapidamente enormes somas para seus exércitos e
marinhas e se tornasse por algum tempo a potência dominante da Europa. As
inovações decisivas haviam ocorrido entre 1515 e 1565, quando os Estados Gerais
dos Países-Baixos dos Habsburgos (cujas províncias setentrionais, após se
revoltarem em 1568, tornar-se-iam no final a República Holandesa) determinaram
a cobrança de anuidades garantidas pelo estado e asseguradas por novos impostos
específicos e que rendiam juros atraentes (Tracy 1985). Conseqüentemente, “numa
emergência, a República Holandesa poderia levantar em dois dias um empréstimo
de um milhão de florins ajuros de apenas 3%” (Parker 1976: 212-13). Os títulos de
crédito do estado tornaram-se um investimento favorito dos investidores holandeses,
cujos agentes taxaram toda a economia em seu próprio benefício. Na verdade, a
150
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS. E VICE-VERSA

palavra “capitalista” em seu uso moderno parece ter derivado do termo que desig­
nava aqueles cidadãos holandeses que pagavam a taxa mais alta per capita de im-
- posto, apregoando desse modo a sua riqueza e sua capacidade de crédito.
Os banqueiros holandeses eram tão abundantes, competentes e independen­
tes que, após 1580, enquanto prosseguia a guerra dos Países-Baixos setentrionais
contra os seus antigos senhores espanhóis, os banqueiros conseguiram ganhar di­
nheiro embarcando para a Antuérpig a prata desviada da frota espanhola, que desse
modo pagava as despesas espanholas da guerra (Parker 1972: 154-5). Quando, em
1608, a Espanha propôs reconhecer a independência da Holanda se esta se retirasse
das índias Orientais e Ocidentais, o negociador holandês Oldenbarnevelt “retrucou
que muitas personagens proeminentes da República estavam envolvidas demais na
Companhia das índias Orientais para que ela fosse dissolvida” (Israel 1982: 9). To­
davia, no conjunto, a profusão de comerciantes atuava em benefício do próprio es­
tado holandês. Uma economia intensamente comercial permitiu que, no século XVII,
o estado holandês seguisse um caminho que os vizinhos prussianos acharam obs­
truído e que os ingleses, recém-agraciados com um rei holandês, tomaram na década
de 1690. Ao adotar as técnicas fiscais holandesas, os ingleses conseguiram reduzir
a dependência em que se achavam anteriormente em relação aos banqueiros holan­
deses e, no final, sobrepujaram os holandeses na guerra.
No século XVII, os holandeses ocuparam uma posição extrema no eixo da
comercialização. Outros estados ricos de capital, como as potências comerciais
italianas de Gênova e Veneza, adotaram técnicas semelhantes de criação da força
militar mediante crédito público e tributação sobre a circulação de mercadorias. Nas
regiões que aplicavam intensa coerção, os recursos que poderiam ser usados para a
guerra continuavam embutidos na agricultura, e nas mãos dos magnatas que
detinham uma força autônoma considerável; nesse caso, a extração de recursos
militares assumiu obviamente formas muito diferentes: diversas combinações de
expropriação, cooptação, clientelismo, conscrição e forte tributação. Entre os dois
extremos, em áreas de coerção capitalizada, o equilíbrio maior entre o capital e a
coerção permitiu que os governantes jogassem um contra o outro, usando força
alugada para impedir que os detentores de exércitos privados e de exércitos
nacionais persuadissem os possuidores de capital privado; com o tempo, enquanto
crescia o volume absoluto das requisições militares, a combinação deu aos
governantes dos estados de coerção capitalizada a vantagem decisiva na guerra; em
conseqüência, o seu tipo de estado - o estado nacional - predominou sobre as
cidades-estado, os impérios, as federações urbanas e outras formas de estado que
algumas vezes haviam prosperado na Europa.

151
CHARLES TILLY

O BRAÇO LONGO E FORTE DO IMPÉRIO


Por volta do final do século XVII, uma parte significativa da guerra européia -
inclusive a guerra entre as vizinhas Holanda e Inglaterra - se realizava no mar, longe
do continente. Na formação de tipos distintos de estados europeus a luta pelo império
marítimo complementou a guerra terrestre européia. Antes de criar os estados
nacionais, os europeus tiveram muita experiência com os impérios. Os nórdicos
construíram impérios efêmeros bem antes da passagem do milênio. Uma série de
impérios - mongol, russo, otomano, sueco, borguinhão e habsburgo - dominaram
por muito tempo partes consideráveis da Europa. As grandes cidades mercantis, como
Gênova e Veneza, conquistaram ou compraram os seus próprios impérios dispersos.
Napoleão construiu um vasto império, embora de vida curta. Os Impérios Otomano,
Austro-Húngaro, Russo e Germânico existiram até a Primeira Guerra Mundial. Para
falar a verdade, com o correr dos séculos, os impérios europeus passaram a
assemelhar-se cada vez mais a estados nacionais. Não obstante, em sua hetero­
geneidade e seus resquícios de governo indireto através dos vice-reis ou equivalentes,
enfrentaram problemas distintos de controle sobre as suas populações.
A partir do século XV, as potências européias começaram a criar impérios fora
do continente. Em 1249, os cristãos portugueses haviam eliminado o reinado mou­
risco de sua porção da Península. Por mais um século e meio, os portugueses res­
tringiram as suas atenções marítimas ao comércio da Europa e da África, mas, em
1415, a captura de Ceuta na costa marroquina deu início a uma expansão que durou
duzentos anos. Mais ou menos na época da morte de D. Henrique (chamado o Nave­
gador), em 1460, as suas forças haviam estendido o seu domínio, político e co­
mercial, a toda a costa ocidental da África, bem como se haviam apossado de Madei­
ra e dos Açores no Atlântico. Com a ajuda de condottieri e empresários genoveses,
começaram quase de imediato a viabilizar comercialmente novas colônias. Antes
do final do século, Vasco da Gama havia navegado em torno da África até Calecute,
estendendo assim a influência portuguesa ao Índico e ao Pacífico.
Os portugueses tentaram deliberadamente quebrar o controle muçulmano-
veneziano do acesso europeu às especiarias e mercadorias de luxo da África, e
estabelecer a sua própria hegemonia nas rotas oceânicas até a Ásia. Com grande
vigor, com riscos excepcionais e extrema impiedade, quase o conseguiram. No
século XVI, as caravelas e galeões portugueses dominaram grande porção do oceano
Índico e transportaram quase a metade de todas as especiarias que chegaram de
navio à Europa e ao Império Otomano (Boxer 1969: 59). No decurso do mesmo
século, colonos portugueses começaram a migrar para o Brasil; passaram a exportar
o açúcar produzido com o trabalho dos ameríndios recrutados à força e depois,
152
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS. E VICE-VERSA

crescentemente, pelos escravos importados de Angola, Congo e Senegâmbia. Uma


porção importante das rendas da coroa portuguesa, na época, proveio de taxas
alfandegárias sobre as mercadorias trazidas das colônias.
No entanto, Portugal enfrentou alguns empecilhos fortes. A sua oferta
doméstica de homens, madeira e outros recursos para a aventura imperial continuou
perigosamente pequena, de tal modo que, no século XVI, os navios “portugueses”
muitas vezes não tinham outro português nativo a não ser os seus comandantes. De
1580 a 1640, Portugal esteve anexado à coroa espanhola e herdou, assim, a guerra
que a Espanha travava com os temíveis holandeses. Sublevando-se contra a
Espanha, em 1640, o pequeno reino guerreou, até 1689, simultaneamente contra os
holandeses e contra os espanhóis. As guerras com os rivais marítimos prejudicaram
os comerciantes portugueses no alto mar. O fato de Portugal ter permanecido
poderoso por tanto tempo atesta uma extraordinária tenacidade e engenhosidade.
Enquanto o imenso império estava ligado a uma base doméstica frágil, os
conquistadores portugueses estabeleceram formas características de domínio
ultramarino e transformaram o seu próprio estado. No ultramar, Portugal converteu
as suas principais colônias em postos avançados militares, que contavam entre suas
atividades principais a de gerar receitas para a coroa. Diferentemente dos holan­
deses, dos ingleses e dos venezianos, os governantes portugueses não concederam
aos mercadores a autorização de organizarem um governo colonial. Diferentemente
da Espanha, não toleraram a criação de grandes domínios autônomos em seus ter­
ritórios ultramarinos. Mas não conseguiam impedir que os administradores co­
loniais, os padres e os soldados comerciassem por sua própria conta, aceitassem
subornos pelo uso ilegal de seus poderes oficiais. Assim, as rendas coloniais tor­
naram Lisboa e seu rei relativamente independentes dos detentores do poder em
outros locais de Portugal, mas sujeitos a funcionários muitas vezes corruptos. Tal
monarquia só podia prosperar enquanto o ouro e as mercadorias fluíssem
livremente das colônias.
Comparados aos vizinhos portugueses, os espanhóis foram os últimos a
investir na conquista ultramarina. Em 1492, Granada, o último baluarte dos
muçulmanos na Península Ibérica, foi submetida a Castela. Por volta dessa época,
os espanhóis do sul já estavam começando a povoar as ilhas Canárias. No mesmo
ano, a rainha Isabel autorizou o condottiere genovês Cristóvão Colombo a viajar
para o oeste, via Canárias, à procura da índia e do Catai. Dentro de quinze anos, a
Espanha já possuía colônias em desenvolvimento no Caribe. Um século depois da
queda de Granada, os espanhóis governavam - embora de forma tênue - quase toda
a América Central e a América do Sul com exceção do Brasil, e haviam conseguido
conquistar também as Filipinas.
153
CHARLES TILLY

Mais ou menos nessa época, entraram em cena os marinheiros holandeses e


ingleses. As Companhias das índias Ocidentais e Orientais dirigidas por civis das
duas nações, sem mencionar seus flibusteiros, navegavam agressivamente nas águas
portuguesas e espanholas do Atlântico Sul, no Índico e no Pacífico. Durante a guerra
de independência que travaram por oitenta anos com a Espanha, ironicamente, os
comerciantes holandeses obtiveram maiores lucros no comércio com o inimigo;
trouxerani mercadorias da Europa Setentrional para a Ibéria e usaram os antigos
vínculos comerciais para penetrar nas redes de comércio dos impérios espanhol e
português. Com isso, iniciaram a construção de um império holandês mundial. No
Atlântico, os mercadores ingleses caíram sobre o comércio português e se especia­
lizaram em ludibriar os oficiais das alfândegas reais. Começaram como parasitas,
mas logo se tornaram os principais organismos em seus territórios.
Na verdade, durante toda a história do imperialismo europeu, uma fase nova
sempre começou com a competição entre um dominador estabelecido numa região
ou rota de comércio do mundo e um recém-chegado que tentava ou desafiar o
hegemônico ou contorná-lo, ou ambas as coisas. Os primeiros alvos do ataque
europeu foram habitualmente os muçulmanos, mas, por volta do século X V , os
europeus lutaram entre si pelo acesso ao Oriente. No século XVI, os aventureiros
portugueses quase conseguiram cercar por todos os lados os venezianos que
controlavam a extremidade ocidental da ligação por terra entre a Europa e a Ásia
Oriental e Meridional, para se verem desafiados no mar um século depois pela
Espanha, Holanda e Inglaterra. Os ingleses e os holandeses nunca expulsaram
totalmente do seu domínio os mercadores e vice-reis portugueses, mas puseram fim
à supremacia de que Portugal havia desfrutado até 1600. (Durante a guerra
holandesa de 1647-48, por exemplo, a ação do inimigo apresou 220 barcos da frota
portuguesa que viajava ao Brasil [Boxer 1969: 221].) As companhias holandesas
das Índias Ocidentais e Orientais governaram grandes impérios próprios, adquirindo
uma vantagem sobre os seus competidores “em virtude de seu maior controle do
mercado e da internalização dos custos de proteção” (Steensgaard 1974: 11). No
século XVII, os holandeses se transformaram na maior potência naval e comercial
do mundo.
Foi nesse momento que os ingleses substituíram os holandeses. A medida que
a força naval holandesa decrescia, os navios britânicos passaram a predominar na
maior parte dos mares do mundo. Por volta do século XVIII, corsários, navios de
guerra e navios mercantes franceses se aventuraram igualmente pelas Américas,
Ásia e Pacífico - causaram pouco impacto na África antes do século XIX - e
atravancaram ainda mais as rotas marítimas. A descoberta, no século XVIII, de ouro
e diamantes no Brasil revivesceu a economia colonial portuguesa, mas não
154
COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS. E VICE-VERSA

conseguiu restaurar o tipo de hegemonia que Portugal detinha no século XVII. A


França e a Inglaterra entraram tardiamente na conquista territorial fora de seus
próprios perímetros imediatos, mas após 1700 recuperaram rapidamente o atraso.
Mais ou menos no final do século XVIII, a Espanha, Portugal, as Províncias Unidas,
a França e a Grã-Bretanha, todos detinham grandes impérios ultramarinos e redes
mundiais de comércio; a Inglaterra superou todos os outros. A conquista imperial
acelerou-se no século XIX. “Entre 1876 e 1915”, observa Eric Hobsbawm, “mais
ou menos um quarto da superfície terrestre do globo estava distribuído ou redistri­
buído sob a forma de colônias entre meia dúzia de estados” (Hobsbawm 1987: 59).
Durante a Primeira Guerra Mundial, à Espanha, a Portugal e ao que era então o
reino dos Países-Baixos não restavam mais que fragmentos de seus antigos impé­
rios, enquanto a estrutura do domínio francês e sobretudo inglês espalhava-se pelo
mundo inteiro.
Todos esses impérios combinaram territórios conquistados com “feitorias”,
núcleos de comércio identificados nas fímbrias de terras governadas por dirigentes
nativos. Com algumas exceções, como a portuguesa Macau, nenhuma potência
européia fez conquistas no Japão ou na China. Mas os portugueses, os espanhóis e,
depois, os holandeses mantiveram enciaves comerciais no primeiro país; durante
os anos fechados do xogunato Tokugawa (1640-1854), o posto avançado holandês
de Deshima era, na prática, o único ponto de contato entre o Japão e a Europa (Boxer
1965: 237). No entanto, com o tempo, o modelo europeu passou a ser a conquista e
colonização parcial. A partir de 1652, por exemplo, até os holandeses - que na
verdade colonizaram uma parcela muito pequena das terras em que adquiriram
hegemonia comercial - passaram a conquistar, administrar e povoar em torno do
cabo da Boa Esperança; o termo Afrikaner começou a ser aplicado aos europeus
transplantados no início do século XVIII (Boxer 1965: 266). Principalmente no
século XIX, os estados europeus tentaram retalhar a maior pârte do mundo não-
europeu em territórios coloniais separados entre si.
O império ultramarino não construiu uma estrutura de estado na mesma
medida que o fez a guerra terrestre na metrópole. Não obstante, a vinculação entre
estado e império se fez em ambas as direções: o caráter do estado europeu comandou
a sua forma de expansão fora da Europa, e a natureza do império afetou de forma
considerável a atuação da metrópole. Os estados que fizeram grande aplicação de
capital, como Veneza e a República Holandesa, se expandiram principalmente atra­
vés da busca impiedosa de monopólios comerciais, mas investiu pouco esforço na
conquista militare na colonização. Os estados que aplicaram intensa coerção, como
os nórdicos e o espanhol, devotaram uma parte maior de sua energia ao povoamento,
à escravização da força de trabalho nativa (ou importada) e à exação de tributos.
155
CHARLES TILLY

Os estados intermediários, como a Grã-Bretanha e a França, entraram no jogo im­


perial relativamente tarde e se notabilizaram pela combinação da estratégia capi-
talista.e da coerciva.
A .estratégia capitalista acrescentou um peso relativamente pequeno ao estado
central, sobretudo quando foi aplicada através de organizações essencialmente
privadas, como a Companhia Holandesa das índias Orientais. Contudo, esses
megálitos comerciais se transformaram em forças políticas a serem disputadas com
seus próprios meios; assim, a privatização levou o estado a negociar com a sua
população, ou pelo menos com a classe comercial dominante. A estratégia de
conquista e povoamento, que exigiu inevitavelmente exércitos e marinhas perma­
nentes, acrescentou ao estado central a burocracia, sem falar da cadeia mundial de
funcionalismo que ela suscitou. Onde produziu riquezas - sobretudo na forma do
ouro e prata em barras (bullion), como na Espanha - a conquista criou uma alter­
nativa à tributação doméstica e, desse modo, protegeu os governantes de algumas
das negociações que definiram os direitos dos cidadãos e estabeleceram limites às
prerrogativas do estado em outros locais.
Tanto na frente doméstica quanto na ultramarina, a extensão com que o apa­
relho estatal emergiu da interação entre a criação de uma máquina militar e o de­
senvolvimento de mercados dependeu de diversos fatores: o tamanho da máquina
em rei ação. à população que a sustentava, a anterior comercialização da economia
e o ponto até onde o estado contou com a mobilização em tempo de guerra dos
detentores do poder que forneceram a sua própria força militar e conservaram a
capacidade de convertê-la aos usos pacíficos depois da guerra. Poderíamos ima­
ginar a existência de um continuum desde a Rússia imperial, em que um aparelho
estatal incômodo se desenvolveu para extorquir homens e recursos militares de
uma economia muito grande e pouco comercializada, até a República Holandesa,
que dependeu fortemente de suas marinhas, instituiu as suas forças militares so­
bre concessões temporárias de suas províncias dominadas pela cidade, extraiu fa­
cilmente receitas de taxas alfandegárias e impostos sobre o consumo e nunca criou
uma burocracia central de vulto. No meio poderíamos colocar aqueles casos, como
a França e a Prússia, em que os reis tinham acesso a importantes regiões de capi­
talismo agrícola e comercial, mas eram obrigados a negociar com poderosos pro­
prietários de terras para manutenção de sua atividade militar. No final das contas,
as requisições de homens, dinheiro e provisões cresceram tanto que os governan­
tes negociaram também com a massa da população. O capítulo seguinte focaliza
essa negociação e suas variações de um tipo de estado para outro.

156

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