TEXTO 1
O conceito de democracia:
argumentação, isegoria e as regras do debate
Introdução
1. O conceito de democracia
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“Clístenes nasceu por volta de 570 a.C. e era membro do clã dos Alcmeônidas, neto do tirano Clístenes de Sícion,
tio de Péricles e avô de Alcebíades. Quanto ao seu legado, Clístenes tomou uma série de medidas reformatórias,
principalmente no que tange à reorganização política do território da Ática mudando a organização política ateniense,
que era baseada em quatro tradicionais tribos com fortes laços de parentesco entre si, que foram responsáveis pelas
tiranias anteriores. A fim de impedir que a tirania se instalasse novamente através destas relações de parentesco,
Clístenes dividiu a Ática em dez tribos de acordo com sua área de residência, o seu dēmos. Estas reformas territoriais
foram na verdade uma “dessacralização da pátria” (KERCKHOVE, 1980, p. 27) e consequência do processo de
racionalização em curso na Grécia Arcaica (D’AMBROS, 2014).” (D'AMBROS, B. A reorganização territorial ática
sob Clístenes: a democracia como enfraquecimento dos poderes parental-aristocrática. em v. 3 n. 3 (2017): Hélade |
Primeiro triênio da Nova Série, p. 97-98)
A primeira questão nos leva a considerar a existência de uma gama de
possibilidades variáveis envolvidas na implementação e consolidação de um
regime democrático ou, em outras palavras, podemos pensar que existem
“graus” de democracia, a depender do contexto histórico, social e político a que
nos referimos. Nem sempre os “muitos” aqui mencionados obtêm um sentido
universal. Ou seja, “muitos” nem sempre significa “todos(as)”.
Para não sairmos do exemplo dos gregos, podemos lembrar que em seu
período de experiência democrática, os escravos, os metecas (estrangeiros) e
as mulheres não possuíam a cidadania e não estavam autorizados, portanto, a
tomar parte nas decisões referentes à coletividade. Eles não poderiam
participar nas assembleias ou serem escolhidos para ocupar cargos de
magistratura e de governo.
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O modelo de democracia representativa é aquele no qual o povo delega, por meio de eleições, o seu poder de
decisão a outras pessoas, que devem participar dos espaços deliberativos e ocupar cargos eletivos nas instituições
políticas. Opõe-se ao modelo de “democracia participativa” ou “democracia direta”, no qual os próprios cidadãos é
que tomam parte nas instâncias decisórias e deliberativas.
Em outras palavras, se o regime democrático pressupõe o debate e a
argumentação como meio de fazer a vontade privada (de uma pessoa ou grupo
social) se estabelecer como vontade geral ou pelo menos como vontade da
maioria, as técnicas para convencer aqueles que divergem de minhas opiniões
e levá-los a aderir às mesmas posições que eu e meu grupo possuímos se
tornam cruciais e ganham uma relevância estratégica. No contexto grego a que
temos aludido neste texto, isso era feito através da realização de assembleias
de cidadãos.
Devemos considerar que ainda que haja muitas formas de impor uma
vontade específica sobre outras (já que a pluralidade indica que há
necessariamente uma infinidade de disposições e pontos de vista distintos no
interior de uma única sociedade), como a violência, a coerção, a negociação da
adesão através da transferência de recursos e vantagens econômicas,
devemos dizer que numa democracia, há uma preponderância da palavra sobre
todas os demais instrumentos de poder. E também, que esta democracia será
mais forte à medida que garantir além da isonomia, a isegoria.
2. O conceito de isegoria e as regras do debate para uma
distribuição justa do poder por meio da palavra
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“Os sofistas surgem exatamente nesse momento de passagem da tirania e da oligarquia para a democracia. São os
mestres de retórica e oratória, muitas vezes mestres itinerantes, que percorrem as cidades-Estado fornecendo seus
ensinamentos, sua técnica, suas habilidades aos governantes e aos políticos em geral. Embora sem formar uma escola
ou grupo homogêneo, o que os caracteriza é muito mais uma prática ou uma atitude comuns do que uma doutrina
única. Há portanto uma paideia, um ensinamento, uma formação pela qual os sofistas foram responsáveis, consistindo
basicamente numa determinada forma de preparação do cidadão para a participação na vida política.”
ouvimos isso em algum lugar? Vejam o que o filósofo grego escreve em seu
diálogo O Sofista:
E então? Não esperamos que haja uma outra arte das palavras com
que possa ser, por sorte, capaz de encantar pelos ouvidos os jovens
afastados da verdade e longe dos fatos; com palavras que apresentam
imagens faladas de tudo, de modo a parecer que o que se diz fazer é
verdade e que esse que fala é absolutamente o mais sábio de todos?
(PLATÃO, O Sofista, 234c)
(MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 13ª ed. Ed. Zahar: Rio
de Janeiro, p. 43)
já indicamos, apresenta certa variação em sua compreensão e nos significados
que adquire historicamente, a democracia se baseia em um conjunto mínimo de
regras que são insistentemente violadas quando se assume a “mentira” como
método de convencimento e sensibilização das pessoas e grupos sociais em
favor de determinados interesses.
O que indicam as atuais reflexões e pesquisas sobre Fake News, que agora
circulam em grande volume e numa velocidade que Platão jamais poderia
sequer imaginar, é que muitas vezes elas são publicamente disseminadas por
agentes do jogo político, muitas vezes de forma organizada e contando com um
caro aparato técnico e tecnológico que permite aumentar o seu alcance,
fomentando o debate acerca de um conjunto mínimo de regras, leis e
instituições que deveriam ser adotadas para dar efetividade a esse regime.