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MSI 361 - Atividade pedagógica não-presencial (APNP)

Filosofia, Redação Técnica e Sociologia - 2021.2


Professor(as): Roberta Cassiano, Tátia Áquila e Fábio Peixoto

TEXTO 1

O conceito de democracia:
argumentação, isegoria e as regras do debate

Roberta Ribeiro Cassiano

Introdução

Iniciamos nosso trabalho na proposta integrada das disciplinas de


Filosofia, Redação Técnica e Sociologia falando sobre as Fake News (notícias
falsas), seus impactos e características. No texto introdutório sobre o qual
discutimos, é identificada a relação entre este fenômeno e alguns
acontecimentos recentes da política no Brasil e em diversos outros países do
mundo. O referido material nos lembra, por exemplo, o seguinte:

Em 2016, durante as eleições americanas, os EUA foram alvos das


Fake News. A disseminação de mentiras e de textos extremistas,
sensacionalistas, conspiratórios e de opinião disfarçados de notícias
jornalísticas ganhou força frente a reportagens feita por profissionais.
Segundo pesquisadores da universidade de Oxford, 46,5% de todo o
conteúdo apresentado sobre política era composto por notícias falsas,
documentos não verificados do WikiLeaks e matérias de origem russa.
Já no Brasil, segundo uma pesquisa do Ibope de 2018, 85% dos
eleitores acreditam que as fake news podem sim influenciar o cenário
político. (Disponível em
https://www.ciawebsites.com.br/facebook/o-que-e-fake-news-e-quais-se
us-impactos/ - acesso em fevereiro de 2020).

Dando prosseguimento a este debate, nas linhas que seguem,


buscaremos indicar uma reflexão sobre a relação intrínseca entre a
democracia e as Fake News que, mesmo que não tenham sido sempre
chamadas dessa forma, foram muitas vezes objeto de consideração e de
desconfiança por parte dos filósofos, teóricos da política e estudiosos da forma
de governo acima mencionada. A primeira questão importante que devemos
fazer aqui é a seguinte: o que chamamos de democracia e de que modo ela
pode ser corrompida e/ou favorecer o surgimento de movimentos de
disseminação proposital de discursos falsos?

1. O conceito de democracia

Em primeiro lugar, é importante lembrar que muitos termos que utilizamos


em nossa linguagem política possuem diversos significados. Como alerta
Norberto Bobbio, filósofo político e historiador italiano:

Esta variedade depende, tanto do fato de muitos termos terem passado


por longa série de mutações históricas — alguns termos fundamentais,
tais como "democracia", "aristocracia", "déspota" e "política", foram-nos
legados por escritores gregos —, como da circunstância de não existir
até hoje uma ciência política tão rigorosa que tenha conseguido
determinar e impor, de modo unívoco e universalmente aceito, o
significado dos termos habitualmente mais utilizados. (...) Da mesma
forma, os termos que adquiriram um significado técnico através da
elaboração daqueles que usam a linguagem política para fins teóricos
estão entrando continuamente na linguagem da luta política do
dia-a-dia, que por sua vez é combatida, não o esqueçamos, em grande
parte com a arma da palavra, e sofrem variações e transposições de
sentido, intencionais e não-intencionais, muitas vezes relevantes.
(BOBBIO, N. Dicionário de política. Brasília : Editora Universidade de
Brasília, 1ª ed., 1998. p. 8).

Neste sentido, vale destacar que o que hoje compreendemos por


democracia não é a mesma coisa que era assim nomeada pelos gregos
antigos, responsáveis pela primeira experiência mais amplamente documentada
desta forma de governo. Não por acaso, uma tarefa importante assumida por
filósofos clássicos como Platão e Aristóteles em suas considerações acerca da
política foi justamente a investigação das consequências e dos problemas
decorrentes da adoção deste tipo de regime. Não precisamos concordar com as
soluções propostas por estes dois pensadores para lidar com os dilemas da
democracia, mas podemos ouvi-los para elaborar as nossas próprias questões
e reflexões acerca do assunto.

Comecemos então com o próprio significado da palavra democracia,


composta pelos termos gregos demo (δῆμος) e kratía (κρατία). Em geral, se
costuma traduzir este termo por meio da expressão “poder do povo”. Contudo,
aqui gostaríamos de sugerir outra possibilidade. A palavra demo, em grego, se
referia inicialmente a subdivisões de terra nas áreas rurais. Desde o século VI
a. C.,com as reformas propostas por Clístenes1, em 508 a.C., a cidadania e a
permissão de participação na vida pública passou a ser concedida a todos
aqueles que realizassem os alistamentos obrigatórios em seu demo, e não
mais era obtida por meio da associação a uma fratria ou grupo familiar. Neste
sentido, talvez pudéssemos dizer que a democracia é um tipo de “poder do
bairro”, ou seja, uma forma de organização que se funda na redistribuição dos
meios de participação e decisão na vida coletiva e nos assuntos referentes à
administração pública. Trata-se, portanto, de uma solução específica para um
problema fundamental e permanente na esfera política: como decidir quem
governa?

Se antes, o poder e a autoridade para deliberar e agir em relação aos


assuntos de interesse comum pertenciam exclusivamente a um indivíduo
(monarquia) ou a alguns poucos indivíduos (aristocracia), neste contexto de
reformas referido anteriormente cria-se uma nova categoria política, a
democracia, que indica uma forma de governo exercido por muitos, uma forma
de governo que procura não concentrar, mas distribuir o poder político por meio
da tomada coletiva de decisões - e isto tanto Aristóteles como para Platão
sublinharam em suas reflexões sobre o tema.

Diante desta breve caracterização, podemos nos colocar duas


perguntas: 1) Quem são esses “muitos” que exercem o poder numa
democracia? e 2) através de que meios é possível, nesta forma de governo,
influenciar a tomada coletiva das decisões políticas?

1
“Clístenes nasceu por volta de 570 a.C. e era membro do clã dos Alcmeônidas, neto do tirano Clístenes de Sícion,
tio de Péricles e avô de Alcebíades. Quanto ao seu legado, Clístenes tomou uma série de medidas reformatórias,
principalmente no que tange à reorganização política do território da Ática mudando a organização política ateniense,
que era baseada em quatro tradicionais tribos com fortes laços de parentesco entre si, que foram responsáveis pelas
tiranias anteriores. A fim de impedir que a tirania se instalasse novamente através destas relações de parentesco,
Clístenes dividiu a Ática em dez tribos de acordo com sua área de residência, o seu dēmos. Estas reformas territoriais
foram na verdade uma “dessacralização da pátria” (KERCKHOVE, 1980, p. 27) e consequência do processo de
racionalização em curso na Grécia Arcaica (D’AMBROS, 2014).” (D'AMBROS, B. A reorganização territorial ática
sob Clístenes: a democracia como enfraquecimento dos poderes parental-aristocrática. em v. 3 n. 3 (2017): Hélade |
Primeiro triênio da Nova Série, p. 97-98)
A primeira questão nos leva a considerar a existência de uma gama de
possibilidades variáveis envolvidas na implementação e consolidação de um
regime democrático ou, em outras palavras, podemos pensar que existem
“graus” de democracia, a depender do contexto histórico, social e político a que
nos referimos. Nem sempre os “muitos” aqui mencionados obtêm um sentido
universal. Ou seja, “muitos” nem sempre significa “todos(as)”.

Para não sairmos do exemplo dos gregos, podemos lembrar que em seu
período de experiência democrática, os escravos, os metecas (estrangeiros) e
as mulheres não possuíam a cidadania e não estavam autorizados, portanto, a
tomar parte nas decisões referentes à coletividade. Eles não poderiam
participar nas assembleias ou serem escolhidos para ocupar cargos de
magistratura e de governo.

Se pensarmos no caso das democracias representativas atuais2,


podemos questionar: será que todos e todas tomam parte de maneira equânime
nos processos de debate e discussão acerca da administração pública? Será
que todas e todos possuem a mesma capacidade de influência sobre a opinião
pública a ponto de se fazer ouvir na esfera pública? Será que todas e todos
possuem as mesmas chances de ocupar cargos na política institucional? Ao
observarmos os parlamentos brasileiros, por exemplo, podemos afirmar que
toda a população está ali igualmente representada e com seus interesses e
especificidades consideradas?

A segunda questão nos leva a considerar o papel da argumentação, do


convencimento e da persuasão nos regimes democráticos. De forma ideal,
podemos considerar que, sendo a democracia uma forma de governo que tem
como pressuposto a distribuição do poder entre os cidadãos, então ela exige a
criação de métodos adequados para aferir as diferenças de opiniões e
interesses a fim de encontrar a um denominador comum que poderá servir de
referência para as tomadas de decisão.

2
O modelo de democracia representativa é aquele no qual o povo delega, por meio de eleições, o seu poder de
decisão a outras pessoas, que devem participar dos espaços deliberativos e ocupar cargos eletivos nas instituições
políticas. Opõe-se ao modelo de “democracia participativa” ou “democracia direta”, no qual os próprios cidadãos é
que tomam parte nas instâncias decisórias e deliberativas.
Em outras palavras, se o regime democrático pressupõe o debate e a
argumentação como meio de fazer a vontade privada (de uma pessoa ou grupo
social) se estabelecer como vontade geral ou pelo menos como vontade da
maioria, as técnicas para convencer aqueles que divergem de minhas opiniões
e levá-los a aderir às mesmas posições que eu e meu grupo possuímos se
tornam cruciais e ganham uma relevância estratégica. No contexto grego a que
temos aludido neste texto, isso era feito através da realização de assembleias
de cidadãos.

No gozo de sua soberania, os cidadãos podiam votar as decisões de


interesse coletivo, ser indicados para cargos públicos (através de
sorteio), fazer parte de júris e, ao mesmo tempo, destituir ou colocar no
ostracismo os governantes cuja ação era considerada prejudicial ao
bem comum e aos interesses da maioria. O processo envolvia dois
princípios fundamentais que, séculos mais tarde, passaram a ser
centrais para o conceito: se referiam, por uma parte, à igualdade dos
cidadãos perante a lei (isonomia), e, por outra, ao direito deles se
expressarem na assembleia (isegoria); a sua vigência deu origem a
uma nova concepção de relações de poder consolidada quando a
noção de democracia foi retomada na modernidade política a partir dos
séculos XVII e XVIII. (Verbete “democracia”. Disponível em
http://nupps.usp.br/downloads/relatorio/Anexo_02_Democracia-verbete.pdf
. Acesso em 07/01/2020)

Devemos considerar que ainda que haja muitas formas de impor uma
vontade específica sobre outras (já que a pluralidade indica que há
necessariamente uma infinidade de disposições e pontos de vista distintos no
interior de uma única sociedade), como a violência, a coerção, a negociação da
adesão através da transferência de recursos e vantagens econômicas,
devemos dizer que numa democracia, há uma preponderância da palavra sobre
todas os demais instrumentos de poder. E também, que esta democracia será
mais forte à medida que garantir além da isonomia, a isegoria.
2. O conceito de isegoria e as regras do debate para uma
distribuição justa do poder por meio da palavra

A esta altura podemos então nos concentrar neste outro conceito


fundamental para a nossa reflexão que é o conceito de “isegoria”. Vejamos a
sua definição: “isegoria significa acesso igual a fóruns deliberativos, ou seja,
direito de falar sobre questões públicas e de estar presente participando da fala
do outro” (SANTANNA, M. A significação original de democracia e a isegoria
como pressuposto da deliberação na modernidade. p. 5. Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=17170f265eb26e87. Acesso em
08/01/2021)

Aqui começamos a antever os fios condutores que unem algumas


observações críticas à democracia propostas por Platão e Aristóteles às
questões suscitadas na atualidade pela disseminação das Fake News e sua
ampla e documentada influência em processos eleitorais no Brasil e no mundo.
Em linhas gerais, o que esse conceito indica em suas entrelinhas é que o
regime democrático, pelo privilégio nele concedido ao exercício da razão
pública, da argumentação e do convencimento, exige que sejam estabelecidas
algumas “regras do debate”, a fim de que os cidadãos tenham plenas condições
de assumir as consequências e os “porquês” de suas escolhas e mesmo de
defendê-las mediante a apresentação de justificações que possam ser
compartilhadas com os demais.

Já à época do declínio da democracia grega, Platão alertava para os perigos


da sofística3. O maior deles? Espalhar discursos falsos. Será que já não

3
“Os sofistas surgem exatamente nesse momento de passagem da tirania e da oligarquia para a democracia. São os
mestres de retórica e oratória, muitas vezes mestres itinerantes, que percorrem as cidades-Estado fornecendo seus
ensinamentos, sua técnica, suas habilidades aos governantes e aos políticos em geral. Embora sem formar uma escola
ou grupo homogêneo, o que os caracteriza é muito mais uma prática ou uma atitude comuns do que uma doutrina
única. Há portanto uma paideia, um ensinamento, uma formação pela qual os sofistas foram responsáveis, consistindo
basicamente numa determinada forma de preparação do cidadão para a participação na vida política.”
ouvimos isso em algum lugar? Vejam o que o filósofo grego escreve em seu
diálogo O Sofista:

E então? Não esperamos que haja uma outra arte das palavras com
que possa ser, por sorte, capaz de encantar pelos ouvidos os jovens
afastados da verdade e longe dos fatos; com palavras que apresentam
imagens faladas de tudo, de modo a parecer que o que se diz fazer é
verdade e que esse que fala é absolutamente o mais sábio de todos?
(PLATÃO, O Sofista, 234c)

O que podemos depreender desta objeção platônica à sofística é que uma


das regras implícitas ao bom funcionamento da democracia, além da isegoria, é
o comprometimento daquele que discursa na esfera pública com noções
mínimas de verdade ou, pelo menos, com a necessidade de justificação factual
e racional das posições a serem defendidas, pois é através delas que o debate
poderá ser considerado legítimo como um instrumento central da
governabilidade democrática.

Caso essas regras e indicações procedimentais não sejam previamente


estabelecidas e a todo momento reforçadas, a democracia se torna um regime
de demagogos, ou seja, um regime que favorece àqueles que “dizem o que a
multidão quer ouvir”, sem nenhuma consideração crítica das implicações éticas
e epistemológicas destas posições, ou seja, sem uma avaliação mais detida
das implicações referentes à justiça e à adequação a um conjunto de valores
morais admitidos como fundamentais e ao valor de verdade desses discursos.

Um dos maiores problemas aqui envolvidos é que, como alerta o filósofo, o


discurso falso não vem com uma espécie de etiqueta que indique a sua
condição, mas, ao contrário, costuma se apresentar a partir da verossimilhança
ou na “forma aparente” de verdade, como também indica o material sobre “Fake
News e Pós-verdade” que lemos e discutimos até aqui em nossa proposta
integrada para as APNPSs

Podemos então retomar a ideia anteriormente apresentada de que é


possível falarmos em graus de democracia. Apesar de ser um termo que, como

(MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 13ª ed. Ed. Zahar: Rio
de Janeiro, p. 43)
já indicamos, apresenta certa variação em sua compreensão e nos significados
que adquire historicamente, a democracia se baseia em um conjunto mínimo de
regras que são insistentemente violadas quando se assume a “mentira” como
método de convencimento e sensibilização das pessoas e grupos sociais em
favor de determinados interesses.

O que indicam as atuais reflexões e pesquisas sobre Fake News, que agora
circulam em grande volume e numa velocidade que Platão jamais poderia
sequer imaginar, é que muitas vezes elas são publicamente disseminadas por
agentes do jogo político, muitas vezes de forma organizada e contando com um
caro aparato técnico e tecnológico que permite aumentar o seu alcance,
fomentando o debate acerca de um conjunto mínimo de regras, leis e
instituições que deveriam ser adotadas para dar efetividade a esse regime.

Dito em outras palavras: se a democracia assume a persuasão como


método para a governabilidade, é legítimo considerar que qualquer coisa pode
ser defendida e propagada pelos agentes dessa disputa discursiva? Como
reconhecer e demarcar esses limites? Além de uma forma de governo, a
democracia representa um ideal e, portanto, envolve também a formação de
uma cultura democrática que implica atitudes, escolhas e compromissos dos
cidadãos com o seu bom funcionamento.

Quando pensamos, por exemplo, na adoção do voto como forma de decisão


sobre quem deverá governar uma determinada cidade, país ou estado, devemos
considerar que este procedimento, por si só, não garante o bom funcionamento
da democracia. Aqui seria necessário garantir ainda que todas e todos que
serão afetados pelas decisões coletivas (e que podem eleger e ser elegíveis),
possam influenciar esta escolha nas mesmas condições e que possam ter
acesso a fontes de informação diversificadas, racionalmente fundamentadas,
cujas consequências e pressupostos éticos e epistemológicos estejam
disponíveis para o debate, e não subordinadas ou controladas pelas instituições
políticas e/ou por grupos que buscam se apropriar dos mecanismos
democráticos para promover algo que é totalmente contrário à sua natureza: a
concentração do poder de influência e de decisão acerca dos assuntos relativos
à administração pública e à coletividade, que, nos parece, é justamente o caso
da influência da disseminação massiva de Fake News no contexto
contemporâneo.

“Este é um material pedagógico organizado por servidor do IFRJ. Seu uso,


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existentes ou que vierem a ser desenvolvidos, somente poderão ser feitos
mediante autorização expressa de seu autor e do IFRJ. Caso contrário,
poderão ser aplicadas as penalidades legais vigentes”.

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