WJ Manso de Almeida
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1. Crônicas. I. Título.
Preâmbulo
Sumário
1. O chão brasileiro
2. Variações e exercícios
3. Observações adicionais
6. Novos exercícios
Preâmbulo
Muitos povoados e cidades menores do interior do Rio de Janeiro, Minas
Gerais e Goiás guardam capelas e pequenas igrejas cujas origens remontam
ao século XVIII, quando o ouro e os diamantes representavam a grande
riqueza da colônia portuguesa. Tais construções atestam que também nos
lugares mais distantes e de recursos mais escassos dispensava-se algum
cuidado estético na realização da arquitetura de cunho religioso. Embora quase
sempre muito simples nas suas definições de estrutura e volumes, essa
arquitetura não deixou de obedecer a certos critérios básicos da visão tomista
da beleza; a proporcionalidade, o equilíbrio, a harmonia, a parcimônia... Ao
longo do século XIX e princípios do século XX, a arquitetura dessas capelas e
igrejas interioranas foi incorporando, segundo ritmo e grau variados, as ideias
que então iam surgindo nos centros maiores; o neoclássico, o neogótico, o
estilo deco francês... E a partir da segunda metade do século XX tais
construções passaram a exibir decisivas modificações simplificadoras quanto à
estrutura, volumes e elementos de decoração, decorrentes das novas
orientações adotadas pelo Clero católico. As igrejas das cidades do interior
retratam toda essa evolução e mostram que a simplicidade, a harmonia e a
manutenção de traços de origem muito antiga constituem verdadeiras
características da arquitetura sacra brasileira.
1. O chão brasileiro
Mas, que o conjunto seja considerado à distância, de novo. Clara nas suas
cores, modesta porque sem realces absolutos, harmônica na sua decoração,
simétrica na distribuição dos seus elementos básicos, simples de ser
entendida: uma porta, duas janelas, duas águas escondidas pelo frontão
triangular. A despeito de toda a decoração e das duas torres recuadas que, na
verdade, dão maior destaque à fachada, tem-se aqui um dos modelos mais
simplificados da arquitetura sacra de origem portuguesa, o qual veio a ser
largamente adotado nas vilas e povoados do território das Minas. Por vezes
incluindo duas torres campanárias, ora uma só, ajuntada ao alçado lateral ou
fincada sobre a cumeeira ou ainda em estrutura separada, essa construção em
forma de paralelepípedo ou de nave em forma de caixa (conforme definiu o
Prof. George Kubler para o caso português), uma vez despida dos seus
adornos eruditos e reduzida nas suas dimensões, tornou-se o arquétipo da
pequena igreja do interior brasileiro na região que ora se considera.
Dificilmente, porém, o observador irá encontrar duas fachadas iguais entre si.
Cada povoado imprimiu a sua marca, embora em todos eles o primitivismo do
ambiente cultural e a carência de recursos financeiros, de conhecimentos
técnicos e de estética, de materiais adequados e de mão-de-obra competente
por certo muito limitaram a concretização de uma decoração mais elaborada e
talvez mais acorde com a devoção dos paroquianos.
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Muitas vezes esse mesmo modelo surge acompanhado de duas torres sineiras
laterais, conforme acima se disse. Essa variedade dos traços básicos está
presente na Basílica de N. S. da Assunção; a Catedral da Sé de Mariana,
Minas Gerais. Essa Catedral, por seu turno, guarda grande semelhança com a
Igreja de Santa Catarina dos Livreiros, construída em Lisboa no século XVI,
mas hoje não mais existente (Kubler, George. op. cit., p. 74-76).
Uma nota adicional, ora se faz necessária. Aqui na Catedral da Sé, tal como na
Igreja do Carmo, acha-se presente um elemento decorativo típico da fase
colonial brasileira e originário da história das navegações portuguesas: as
denominadas telhas-de-bico colocadas nas quinas das cornijas, um motivo
então tomado de empréstimo aos templos da China, os pagodes. E,
curiosamente, ainda hoje essa telha decorativa é com frequência utilizada nas
construções residenciais do interior de Minas. Esses chinesismos, conforme os
apelidam historiadores e críticos de arte, também incluem simplificadas
pinturas de motivos chineses, tais como os próprios sagrados pagodes dos
orientais e os seus ambientes ajardinados. Tais elementos de decoração
surgem mesclados àqueles de cunho propriamente cristão nos interiores de
várias igrejas mineiras. Disso constitui exemplo os painéis laterais do órgão do
coro da Catedral da Sé de Mariana, assim como os painéis do arco triunfal da
Igreja de N. S. do Ó, em Sabará, Minas.
Alerta ainda, o Professor, que “oposta a esta noção... surge um critério mais
recente segundo o qual nenhum estilo ou categoria exclui a possível
convergência simultânea de muitas outras categorias anteriores. Em qualquer
lugar e em qualquer momento, o artista empenha-se em colher os seus
materiais do passado, combinando-os e ajustando-os conforme as suas
necessidades e preferências...” (op.cit., p. 26). Com aqueles elementos
extraídos da história surge, então, um estilo todo próprio, ou ainda, uma nova
contribuição para o avanço da criação artística.
Eis, pois, que examinando a arquitetura sacra da Bahia dos séculos XVI e XVII,
o arquiteto Glauco de Oliveira Campello vem evidenciar as contribuições
autóctones e concluir pela existência de um verdadeiro estilo franciscano local
(Campello, G. de Oliveira. O brilho da simplicidade: dois estudos sobre
arquitetura religiosa no Brasil colonial. Rio: Casa da Palavra Ed., 2001).
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2. Variações e exercícios
Na região das Minas do século XVIII praticou-se uma ars gentiliter, uma arte à
moda da casa, ao jeito do país, que também nas construções sacras implicou
em adaptações ditadas pelas penúrias locais, para satisfazer às demandas de
compradores de poder aquisitivo relativamente expressivo. Certamente
naquele rude ambiente de desbravadores faltava de tudo, menos o dinheiro.
Mas o dinheiro não compra tudo. Nicolau Nasoni não viria à Colônia embelezar
Vila Rica, ou ainda, el-Rei Dom João V não lhe permitiria viesse tão longe,
dispensando-o da tarefa de enfeitar a Metrópole; o que talvez tenha sido muito
bom, pois que tal patrocínio real ao italiano parece ter significado um
desprestígio para a arte dos reinóis e um desincentivo aos artistas da terra e,
aqui, a presença do famoso arquiteto poderia ter significado a morte de um
exercício artístico nascente. Assim, dançou-se conforme se pôde. Faltava
conhecimento técnico, materiais adequados e mão-de-obra competente.
Faltava finura no trato das coisas, faltava gosto. Certamente para cá vieram, ou
el-Rei permitiu que viessem uns pedreiros experimentados que queriam fazer a
América, além de alguns profissionais que tinham frequentado Aulas de
engenharia militar e construção de pontes em Portugal. É bem possível que
esses tenham ganhado a incondicional preferência dos contratadores ou, quem
sabe, que eles tenham aquiescido aceitar tais encomendas brasileiras, pois
que outros havia então?
Em resumo, nas Minas do início dos setecentos a arquitetura sacra ainda era
uma ars primaeva, nascente, tal como o fora a arte da Bahia e de Pernambuco
no início do ciclo da cana-de-açucar. Somente no correr de um século inteiro foi
possível desenvolver adaptações, formar a mão-de-obra e contar-se com
alguns reconhecidos artistas autóctones – muito embora precariamente e
quase por acaso. Evoluiu-se aos tropeços no sentido de uma ars gentica, de
uma verdadeira arte da gente brasileira. Um movimento que teria atingido o seu
ápice com as obras de Antônio Francisco Lisboa. Um ápice, de fato, pois que
depois disso a evolução da arquitetura sacra parece ter experimentado forte e
duradouro declínio, sem que o país tivesse chegado a produzir um capolavoro
que atestasse maturidade.
No círculo dos grandes centros de então foi possível erguer construções como
a Sé de Mariana e as igrejas de N. S. do Rosário e de São Francisco, em Ouro
Preto. No final dos setecentos terminava-se a Igreja de São Francisco de Assis
de São João d’el-Rei e nas primeiras décadas do século XIX foram concluídas
a Igreja de N. S. do Carmo de Mariana e a estatuária da Igreja do Bom Jesus
de Matozinhos de Congonhas do Campo. Depois disso, o silêncio; regido pela
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Por outro lado, esses pequenos centros urbanos de outrora nem sempre foram
comunidades pobres ou administradas por extratos sociais sem recursos,
conforme acima lembrado. Eis que Catas Altas era e ainda é um pequeno
centro urbano, mas, naqueles tempos do ouro, foi capaz de construir um
belíssimo exemplo de arquitetura que também poderia denominar-se
desornamentada ou chã, numa nova alusão aos estudos do Professor Kubler.
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A construção dessa Igreja Matriz teve início em 1712 e prolongou-se até cerca
de 1780, conforme historiografia. Nada menos de 68 anos de trabalhos, por
certo, intermitentes, claro. Mas vê-se que também no Brasil ocorriam aquelas
persistências que caracterizaram a construção das grandes igrejas da Europa.
Naqueles distantes decênios do século XVIII, nos ermos primitivos das Catas
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O cuidado, a manutenção, o gosto pela coisa bem feita ainda não parece ser
uma característica nacional, infelizmente. Desse modo, é corriqueiro encontrar-
se esses testemunhos da história pátria com cara de abandono, de coisa
imprestável. Muitas vezes a possível beleza dessas construções não pode ser
constatada, pois que se acharia escondida pela maquiagem que lhes confere o
pouco caso. E muitas vezes, também, tal circunstância não parece derivar da
falta de recursos, mas daquela efetiva falta de interesse da comunidade na
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preservação das coisas. Enfim, o IPHAN brasileiro parece enfrentar uma tarefa
insana e infindável.
N. S. do Rosário; Jaraguá, GO
N. S. do Rosário; Andrelândia, MG
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Algumas dessas marcas locais logo são captadas pelo observador. Numa
igrejinha, aquela de Chapada do Norte, nota-se o caimento suavizado das
empenas avançadas e uma trava alta, acima do óculo redondo, dispensando o
explicito desenho de um frontão, enquanto se destaca o pitoresco campanário
lateral pintado de azul forte; noutra, em Jequitibá, a presença de um frontão
triangular avançado todo feito de telhas, com um óculo trilobado no tímpano, e
uma pequena janela com parte-luz abrigando dois sinos acima do portal; na
terceira, no Morro de São João, Ouro Preto, a clara sugestão barroca dos
alçados em linha curva, as janelas envidraçadas e a presença do amarelo dos
Habsburgos na pintura; depois, na de Santo Antônio em Paracatu, admira-se
uma singular rosácea dentada no tímpano e uma trabalhada decoração a guisa
de frontão do portal; em Goiás Velho, outra adiciona panos laterais à frontaria,
acrescenta a alegria do amarelo ao tradicional azul-e-branco da pintura e se
junta de uma expressiva estrutura de madeira para abrigar o sino; em seguida,
a de Jaraguá, além do tosco e pitoresco campanário lateral, mostra um portal
de madeira entalhada com um original frontão bilobado, que acomoda duas
pequenas janelas envidraçadas; a sétima igrejinha, em Andrelândia, distingue-
se pelo especial capricho no acabamento e adições da sua fachada, onde a
atenção é reclamada pelas empenas côncavas, a cornija com telhas-de-bico e
o minúsculo sino em suporte sobre a janela; e no oitavo exemplo ora
apresentado, a igreja de Itaboraí, que se mostra de porte mais avantajado,
tingida de branco e exibindo uma pesada torre sineira lateral, dois traços
comuns nas construções mais próximas do mar e de história mais antiga, além
do risco austero do portal com verga trabalhada.
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N. S. do Ó; Sabará, MG
N. S. do Ó; Sabará, MG
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O terceiro tipo de igrejinha também exibe uma torre sineira no tramo central da
frontaria. Contudo, ora não se encontram os panos chanfrados, enquanto a sua
fachada mostra uma decoração de traços mais caprichosos, geralmente. Para
os presentes propósitos de exposição, deu-se o nome de variação Couto de
Magalhães a esse risco de arquitetura sacra simplificada. Tal como no caso
anterior, a escolha dessa denominação não decorre de qualquer idéia ou
comprovação de que a Igreja do Rosário de Couto Magalhães de Minas,
próximo de Diamantina, tenha constituído o protótipo das demais de igual traça.
A denominação é, pois, apenas figurativa.
Sant’Ana; Inhaí, MG
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A Matriz de Santa Cruz de Chapada do Norte, por sua vez, destaca-se pela
continuidade do seu eixo de face, onde se tem o portal largo seguido na vertical
por uma janela retangular, um óculo redondo no tímpano e, varando as
empenas telhadas do frontão, a torre sineira quadrangular com cobertura em
pirâmide de pagode. No momento da visita que se fez, essa igreja setecentista,
tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico, achava-se
em pleno processo de restauração promovido pela Secretaria Municipal de
Educação e Cultura.
N. S. do Amparo; Diamantina, MG
Sant’Ana; Coromandel, MG
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A cidade de Rio Preto situa-se às margens do curso de igual nome, o qual hoje
constitui um trecho da divisa político-administrativa entre os estados de Minas
Gerais e Rio de Janeiro. Já no século XVIII o lugar era ponto de travessia
fluvial de uma das vias de ligação do Rio de Janeiro a São João d’el-Rei. Essa
via de transporte era chamada de Caminho do Rio Preto ou Caminho do
Comércio, dado que fora construída pela Câmara de Comércio do Rio de
Janeiro; conforme atesta o mesmo citado Saint-Hilaire. Assim, com muita
naturalidade, a sua Igreja do Rosário revela traços que são encontradiços nas
construções mais antigas e mais próximas do litoral marítimo. Uma estrutura de
aspecto pesado, toda caiada de branco, com uma torre sineira quadrangular de
grande presença e que, nesse caso, interrompe um frontão de cornija e
empenas salientes. Contudo, essa posição central da sua torre, numa fachada
de porta, duas janelas e frontão triangular, a faz comungar da caracterização
das demais integrantes da variação aqui denominada Couto de Magalhães. Ao
mesmo tempo, dado a sua antiguidade, è possível que essa igreja de Rio Preto
seja um antecedente das demais pertencentes à variação ora comentada. O
detalhe demonstrado pela torre varando as empenas, por exemplo, encontra-se
na igreja de Chapada do Norte, também, conforme acima comentado.
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3. Observações adicionais
Desse modo, foram surgindo aqui e acolá, também nos centros urbanos
menores, uns trabalhos mais caprichados na decoração dos edifícios da Igreja.
E é bom ter sempre presente que no mundo ocidental, durante muitos séculos,
a construção de caráter religioso constituiu o principal locus das manifestações
da arquitetura e d’outras artes. E isso não foi diferente nas terras novas do
Reino, embora aqui se tratasse de uma ars primaeva. Na antiga capital de
Goiás, por exemplo, a igreja de N. S. da Boa Morte, de origem setecentista,
exibe um frontão de muita originalidade e bonita composição, sugerindo
motivos advindos de diferentes momentos da história da arte. E na fachada de
três tramos definidos pelas pilastras, frontões triangulares encimam as janelas
de verga em arco abatido, enquanto a janela central com balaustres faz um
eixo de simetria com a porta encimada de arco e ornamentação ressaltada. À
sua vez, as cores suaves da alvenaria realçam o vermelho fosco do portal e
das esquadrias das janelas.
muitas das suas construções antigas, essa exposição da estrutura vai além.
Não só aqueles elementos principais, por assim dizer, mas igualmente
travessas, alças e vigas secundárias ficam à mostra, o que acaba por conferir a
essa arquitetura certa identificação com o estilo pans-de-bois. Cabe lembrar
que tanto em Minas quanto em Goiás trata-se muitas vezes de construções de
taipa, ou seja, da técnica de construção com estrutura e armação de madeira,
onde os vazios são preenchidos com barro, socado ou não, ou com adobe, o
tijolo secado ao sol. Nas construções mineiras o madeiramento é todo
recoberto e caiado, à exceção das citadas peças básicas. Na variação goiana,
todavia, as peças deixadas à mostra são mais numerosas, com a clara
intenção decorativa. A própria ideia do pans-de-bois, ou enxaimel, que na
variação catarinense tem o gradeamento preenchido com tijolos cozidos.
Eis, pois, que aquele risco básico tradicional das pequenas igrejas do interior
setecentista vem surgir em Goiás com uma aparência própria. Ilustra essa
variação goiana a Igreja do Senhor Bom Jesus, em Pirenópolis, a Igreja de N.
S. da Penha, em Corumbá de Goiás, e a Igreja de N. S. da Conceição, em
Canoeiros, um povoado do município de São Gonçalo do Abaeté. Cabe aclarar
que esse último município pertence ao estado de Minas Gerais, mas naqueles
tempos mais recuados essa região do noroeste mineiro muito se apartava da
região das Minas. Assim, não raro se descobre afinidades dessa região com
aquelas de Goiás que lhes são mais próximas.
N. S. da Conceição; Canoeiros/SGA, MG
Tais variações parecem dar força àquela citada observação do Prof. George
Kubler, quanto a que não se deve deixar que as classificações gerais
escondam as manifestações da arte. E em tão extenso território, com uma
população tão espalhada, ainda que nos seus primórdios de colonização e com
tantas dificuldades, talvez fosse mesmo de se esperar manifestações ou
exercícios muito variados.
Ilustra ainda mais essa ponderação a Igreja de São José, em Minas Novas;
impar na sua construção de clara inspiração bizantina ou oriental. O corpo
principal do edifício tem alçados sobre planta centrada octogonal e um telhado
formado de oito gomos encimado por uma grimpa com pequena cruz no topo.
Um segundo corpo, com alçados sobre planta hexagonal, adoça-se ao tardoz,
à face posterior do edifício-mestre, enquanto um nártex coberto, sobre base
retangular, oferece aos fiéis o acesso ao interior da igreja. Toda pintada de
branco, senão a porta e o gradil do nártex em azul escuro, a Igreja de São José
é de grande estima naquela comunidade mineira.
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N. S. da Conceição; Jaraguá, GO
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Mais ainda, cabe lembrar que tais construções de cunho religioso não se
restringiram aos povoados e centros urbanos, mas foram erguidos também nas
zonas rurais e junto a sedes de fazendas, que por vezes se encontravam
próximas das estradas. Esse é o caso da Capela do Sagrado Coração de
Jesus, da Capela da Fazenda Campo Verde e da Capela de N. S. da Piedade,
na Borda do Campo, todas elas situadas no município de Antônio Carlos, em
Minas, às margens da Estrada Real, ou Caminho Novo da velha Estrada do Rio
de Janeiro à Vila Rica. Nesse pequeno conjunto de exemplos, sobressai a
Capela de N. S. da Piedade, dado exibir um nártex do tipo alpendre e, assim,
constituir um raro exemplar mineiro das antigas igrejas alpendradas; um tipo de
arquitetura que foi objeto de estudo especial pela Profra. Dra. Maria Berthilde
Moura Filha (Arquitetura e Arte no Brasil Colonial – miscigenação de formas e
fazeres. Revista Humanidades - UFRN, v. 09, nº 24, 2008).
Para as construções sacras das vilas mineiras não se podia contar com a ajuda
dos arquitetos e artistas dominicanos que construíram a bela Igreja do Mosteiro
no Rio, ou dos excelentes franciscanos que construíram as Igrejas de Cairú e
de João Pessoa (v. Souza, Alberto. Igreja franciscana de Cairú: a invenção do
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barroco brasileiro. Arquitextos, 070, mar. 2006) e muito menos com o auxílio
dos temíveis jesuítas; nenhum padre de tais Ordens podia por os pés nas
Minas. Ainda na primeira metade do século XIX tal situação era mantida,
conforme anotou Johann Moritz Rugendas na sua Viagem pitoresca através do
Brasil (São Paulo: Circulo do Livro, s.d., p. 38): “Coisa notável em Vila Rica:
não há conventos; sua ausência surpreende o visitante que ignore que sob o
ministério do Marquês de Pombal a província de Minas Gerais foi interditada às
ordens religiosas.” Ora, o Marquês fora ministro de Dom José I, meio século
antes da visita de Rugendas, e a coisa persistia. Como obter a instrução, o
know-how necessário para a concretização das idéias? Estudos e experiências
de longa duração. Fazendo e aprendendo. Haveria outro caminho possível?
Uma pesquisa acadêmica procurou mostrar que as figuras esculpidas por
Antônio Francisco Lisboa em Congonhas do Campo tiveram por modelo
esculturas portuguesas e estampas dos azulejos de Portugal, bem como
pinturas e gravuras italianas, alemãs e holandesas através do conhecimento de
desenhos e cópias de gravuras correspondentes (v. Davenport, Nancy.
European sources for the prophets at Congonhas do Campo. Barroco – UFMG,
nº 7, 1975, p. 15-20). Essa tese mostra, portanto, que o escultor brasileiro
procurou auxiliar-se de trabalhos já realizados, um expediente que, cabe
lembrar, parece ter sido comum na própria Europa. No presente caso, muito
mais importa salientar que o brasileiro de Vila Rica precisava ter uma idéia de
que cara teria esse tal de Daniel que lhe encomendaram; e o Jonas com a sua
baleia, como seria ele? Nas Minas não se distribuíam santinhos a torto e a
direito e muito menos de qualquer profeta; e isso lá existia? Em seguida, obtido
um desenho da obra, uma cópia de uma gravura que não se sabia ser boa ou
ruim, ainda fora necessário imaginar as medidas adequadas, as proporções de
tais figuras a esculpir, para se dizer o mínimo. Ou seja, o brasileiro criou tudo a
partir daí. Como? Ele tinha talento! Outros não tinham tanto. A então penúria
das condições de aprendizado não foi suficiente para lhe tolher a capacidade
de realização artística, embora, por certo, tenha dificultado ou impedido o
aparecimento de um grupo de expressivos profissionais das artes.
Já corria o século XIX quando Manoel da Costa Ataíde, autor das mais
consideradas pinturas sacras das Minas dos setecentos, solicitou que el-Rei
concedesse licença para a criação de uma Aula de Desenho e Arquitetura em
Mariana (v. Correia Dias, Fernando. Para uma sociologia do barroco mineiro.
Barroco – UFMG, nº 1, 1969). Se a sua petição foi considerada, não se sabe.
Não obstante, essa notícia mostra que já corria um novo século, mais de cem
anos de exploração do ouro e de edificações de novas vilas e arraiais, e ainda
não se dispunha de uma instituição de ensino profissional para a construção
civil. Com a vinda da Corte para o Rio de Janeiro, o Príncipe Regente tomou
providências para a criação de uma Academia Militar, a qual viera ministrar
aulas de arte militar e de engenharia (inicialmente restrita à topografia, porém),
42
E nada lia essa gente das alterosas? Lia. Até que lia; pois não integrava os
Inconfidentes um bando de escritores e poetas sonhadores? Alguns até fizeram
estudos na França e na Inglaterra! E a Constituição dos Estados Unidos, assim
como a Riqueza das Nações, do economista liberal Adam Smith, não chegara
a circular entre eles? Mas tratava-se de um exercício perigoso, condutor de
ideias nefastas, conforme acima lembrado. Em 1747, conta Buarque de
Holanda (op. cit., p.120), Antônio Isidoro da Fonseca teve a sua oficina gráfica
fechada por efeitos de Carta Régia que mandava, ademais, sequestrar “as
letras de impressa” e remetê-las à Metrópole. Alegava a Carta não ser
conveniente a impressão de livros e outros papéis no Brasil, porquanto seria
mais cara e tão demorada quanto obter de Lisboa as licenças necessárias, lá
imprimi-los e trazê-los prontos aos brasileiros. Lembrava a mesma Carta
quanto à necessidade de se obter as licenças da Inquisição e do Conselho
Ultramarino, sem as quais nenhum impresso podia ser posto em circulação.
Imagina-se, portanto, que nas Minas a leitura devia ser coisa de um extrato
social privilegiado, perfeitamente acorde com a ideia da necessária estabilidade
das instituições, ou então de uma nata social feita de gente muito corajosa.
Passados mais de cinquenta anos, John Mawe, um estudioso inglês que veio
conhecer o país, ainda iria relatar que a educação dos habitantes de
Diamantina era muito deficiente, geralmente se mostrando alheios à ciência e
exibindo apenas restritas noções sobre as coisas de utilidade ou de uso
comum (Ávila, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas. Belo Horizonte:
UFMG, vol. I, p. 124). E um exemplo do então cerceamento do ensino e dos
estudos foi dado por providência firmada pelo próprio Príncipe Regente:
através de comunicado aos governadores-gerais das capitanias do norte,
determinou que impedissem a entrada de “um tal barão de Humboldt, natural
de Berlim”, pois que a sua viagem parecia suspeita e “prejudicial aos interesses
políticos da Coroa” (S. B. de Holanda, op. cit., p. 121).
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A profissão de naturalista parecia soar muito mal aos ouvidos oficiais do Reino;
talvez, tanto quanto as diferentes ideologias vieram parecer aos agentes
governamentais em diferentes momentos da história da República. Em fins do
século XVIII, José de Sá Bittencourt Câmara, profissional que se dedicava à
mineração e metalurgia, deixou anotado que corriam perigo aqueles que
sabiam fundir o ferro, lidar com o salitre e fabricar a pólvora. E que, por causa
de tais conhecimentos, foi perseguido e encarcerado e, uma vez libertado,
decidiu fugir para a Bahia e renegar a sua profissão, então apelidada de
naturalista, disse ele (v. Affonso Ávila, op. cit., p. 120). Eis que a fuga da região
das Minas, ou das vistas das autoridades do Reino, não era tão somente de
homens escravizados que iam formar os seus quilombos, ou de malfeitores e
devedores relapsos que se escondiam das suas obrigações fiscais, mas de
gente boa também, fazendeiros, criadores de gado, comerciantes, profissionais
autônomos e mão-de-obra treinada ou com algum conhecimento, que partia
com as suas famílias para desbravar o sertão e fundar novas povoações –
conforme registra Waldemar de Almeida Barbosa in A decadência das minas e
a fuga da mineração (Belo Horizonte: UFMG/Centro de Estudos Mineiros,
1971). Mesmo quando permitidos, aponta esse historiador, tais movimentos de
empreendedores eram muitas vezes mal vistos pelas autoridades, pois que
implicavam na retirada de capitais e da mão-de-obra escrava tão reclamada na
mineração do ouro. E as intrigas e delações eram comuns, e os castigos eram
severos, tivesse a acusação fundamento ou não. A vontade de fugir, de tentar
a sorte mais longe devia ser frequente.
daquilo que as autoridades estimavam estar faltando, o que, não raro, era
acompanhado de abusos de poder e castigos impiedosos.
Também a intriga, fazia parte do cotidiano. Felisberto Caldeira Brant não foi
nenhum revoltoso, ao contrário, mesmo após as injustiças que sofrera,
demonstrou fidelidade a el-Rei. Fora um próspero Contratador do Distrito
Diamantino que, em 1753, tornou-se alvo da inveja, da intriga, da
arbitrariedade, das tramas arranjadas nos gabinetes das autoridades do Reino
no Arraial do Tejuco. Preso, seus bens confiscados, sua família declarada
infame, foi remetido a Lisboa, lá condenado e encarcerado. (A. Espinheira, op.
cit., p. 88).
A cabeça de Joaquim José da Silva Xavier foi recebida em Vila Rica com
festejos, celebrando-se a volta à tranquilidade e ao respeito às leis do Reino.
Até mesmo uma música foi composta especialmente para a celebração de um
Te-Deum de graças pelo bom sucesso das coisas.
N. S. da Conceição; Sede, MG
6. Novos exercícios
N. S. Aparecida; Amparo/NF, RJ
Nessa mesma cidade, a Matriz de Santo Antônio mostra uma bonita fachada,
onde aquele modelo básico tradicional, com duas torres, acha-se claramente
definido: uma porta, duas janelas e o frontão triangular, que ora se apresenta
sob a forma de empenas interrompidas, arqueadas e ornadas com pináculos.
No tímpano desse frontão, a grande cartela com guirlandas dá sequência
vertical à porta ornamentada de frontão e óculo. E tais ornamentos evidenciam
o ecletismo dos motivos utilizados por toda parte. A igreja encontra-se
igualmente bem posicionada ao fundo de uma praça ajardinada do centro
urbano, o que lhe confere muita coerência com a sua pintura de cores suaves.
N. S. do Carmo; Paraopeba, MG
se, aqui, de uma construção que muito bem complementa a exemplificação das
orientações seguidas a partir da Conferência de 1909. Pois que, embora já se
mostrasse de menor dimensão, essa Igreja de N. S. Aparecida passou por
atualizações que primaram por aqueles recomendados princípios de
simplicidade: resume-se ela a uma torre sineira sobre nártex e um amplo salão,
adoçando-se uma pequena capela e uma diminuta sacristia às laterais do seu
extremo leste. A mesa do altar situa-se ao fundo desse salão, à frente de um
crucifixo de madeira abrigado em nicho raso com moldura de portal de arco
redondo. À vista de tal parcimônia, é de se crer que os severos cistercienses
de outrora não hesitariam aprová-la com louvor.
N. S. Aparecida; Jaraguá, GO
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Assim, no século XIII, Santo Tomás veio retomar uma diretriz de pensamento já
há muito considerada na estética e que, arisca-se dizer, devia parecer e ainda
hoje pareceria natural aos olhos comuns, ao senso comum. Mas os seus
estudos buscaram desenvolver aquelas velhas ideias com vistas a uma
aplicação mais abrangente, mantendo-se, todavia, no âmbito da doutrina
católica. Decorre, pois, que a proporcionalidade é um atributo que não se
restringe à consideração da beleza dos objetos de natureza física, mas que se
aplica igualmente na apreciação da oratória, por exemplo. Para ter beleza, um
discurso deve pautar-se pela ponderação dos seus argumentos, pela harmonia
das suas partes, pela congruência na sua composição, pela parcimônia nas
suas conclusões. O exagero, o supérfluo, a exaltação, o desequilíbrio não
contribuem para a beleza da obra. Em tudo há sempre um limite natural, um
limite que não pode ser ultrapassado, sob pena de o objeto vir a ser rejeitado
pelo bom senso. As coisas enviesadas, disformes, encrespadas, dilaceradas,
ou desequilibradas quanto aos seus componentes não sugerem beleza.
Nas últimas décadas do século XVIII, o filósofo alemão Immanuel Kant veio
propor critérios novos para a consideração estética das coisas. Contrariamente
a Santo Tomás, aponta que a beleza não é cognitiva, não decorre de uma
concepção racionalmente formulada, não depende da forma em que se
apresenta o objeto, mas tão somente de um julgamento subjetivo por parte do
observador. Esse observador, reagindo a determinado efeito psicológico
recebido, poderá sentir prazer ou desprazer em face de dada obra (de natureza
física ou não) e, consequentemente, julgá-la bela ou não, independentemente
de qualquer atributo que possa ser tido como próprio ou impróprio a tal obra.
Ou seja, as pessoas consideram bela dada escultura, por exemplo, não por
causa das suas proporções, da sua cor, da sua integridade material ou da sua
finalidade, etc., mas simplesmente porque tal coisa lhes traz prazer, porque
lhes parece bonita realmente, porque corresponde à idéia de beleza que
guardam intimamente. (v. Kant, Immanuel. The critique of judgement.
Traduzido do alemão por J. C. Meredith. South Australia: eBooks@Adelaide -
Univ. of Adelaide, 2008. Part I: Critique of aesthetic judgement. Book 1, §1.)
Para Immanuel Kant, portanto, a beleza não está no objeto, mas no sujeito da
observação, no intelecto daquele que faz o julgamento estético. Kant, desse
modo, avança um pouco mais que Vitellione na consideração da relatividade
desse tipo de julgamento.
Talvez não seja incorreto dizer que, na maioria dos casos, são impuros os
julgamentos de estética que se faz no correr da vida e que, quase sempre,
trata-se de um pulchritudo adhaerens a beleza porventura identificada na
consideração do objeto. Arisca-se também dizer que na maioria desses casos
de beleza impura, ou pulchritudo adhaerens, aqueles atributos tomistas estarão
presentes no objeto considerado. Ao mesmo tempo, não parece incorreto dizer
que quando, por exemplo, o enlevado fiel elogia a capelinha da sua terra,
possivelmente estará considerando no seu julgamento estético valores alheios
ou adicionais aos critérios tanto kantianos quanto tomistas. É possível que o
seu julgamento seja, de fato, uma avaliação subjetiva de um católico, de um
crente, em concordância com aquelas proposições de Vitellione: a nossa
igrejinha é muito bonitinha; um julgamento dependente da cultura (crença), do
momento e da consideração subjetiva, conquanto associado ao objeto
(adhaerens) e às suas proporções (tomistas).
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Mas, se a beleza está presente, a arte está também? Essa é uma questão que
parece ter levado muita gente boa à confusão e muitas obras de valor histórico
ao menosprezo. Sem mais tardança, pode-se afirmar que beleza não significa
arte, e tampouco arte implica em beleza. Uma obra é artística porque bem feita,
não porque traz um prazer de ordem estética ao observador. Kant não
reconhece a beleza como um atributo do objeto. E Santo Tomás não
reconhece a beleza numa obra disforme. Uma obra de arte pode vir
acompanhada de beleza, mas não virá necessariamente; quer do ponto de
vista kantiano quer do ponto de vista tomista. Cabe lembrar, a propósito, que
desde a Idade Média a Igreja não nega a existência da arte numa obra
contrária à sua doutrina, nega-lhe, todavia, a sua beleza, pois que não atende
aos propósitos divinos da criação, ao fim último de servir a Deus.
Kenneth Clark, no seu citado estudo (p. 39-40), conta que o austero
cisterciense Bernard de Clairvaux reprovara severamente certas esculturas de
mármore da igreja de Souillac, na França do século XII; particularmente por
terem sido colocadas num local de oração. Bernard de Clairvaux comentara,
então, que aquelas monstruosidades gravadas no mármore, uns burros
imundos, uns leões ferozes, uns centauros horrendos, umas figuras semi-
humanas, uns quadrúpedes de rabos semelhantes a serpentes... em tal riqueza
e variedade de formas se apresentavam e tal atração exerciam que parecia ser
mais interessante passar o dia admirando aquela obra do que se dedicar às
leituras sagradas. Ou seja, para São Bernardo, dizer que aquela obra de
entalhe tivesse beleza era fora de cogitação, mas, sem dúvida, considerava
tratar-se de uma realização artística, uma obra capaz de despertar grande
admiração, de atrair toda a atenção.
Umberto Eco (op. cit., cap. 10), a certa altura dos seus estudos, busca oferecer
um enquadramento teórico para a discussão do que venha a ser obra de arte.
Presentemente, porém, prefere-se dizer que uma obra de arte exprime
capacidade de realização técnica, capacidade de transmitir a mensagem
pretendida, capacidade de criação, originalidade, sutileza, cuidado de
tratamento do material, enfim, trata-se de fazer a coisa bem feita, com
capricho, buscando a perfeição. Quando a essa realização conjuga-se a
beleza, tem-se uma obra artística de admirável destaque, dir-se-ia. Mas,
conforme acima apontado, o julgamento estético costuma mostrar-se muito
variável, ainda que dada obra de arte possa gozar de grande prestígio ou
aprovação por parte de grande número de observadores.