Você está na página 1de 70

1

Capelas e pequenas igrejas do interior


(Rio, Minas e Goiás)

WJ Manso de Almeida
2

Manso de Almeida, WJ, 1940-

Capelas e pequenas igrejas do interior (...) / WJ Manso de Almeida.

1. Crônicas. I. Título.

Direitos Autorais – BN/EDA/DF 2009 nº 916


3

Preâmbulo

Sumário

1. O chão brasileiro

2. Variações e exercícios

3. Observações adicionais

4. Agruras do meio-ambiente social

5. Depois de Vila Rica

6. Novos exercícios

7. Proportio integritas claritasque


4

Preâmbulo
Muitos povoados e cidades menores do interior do Rio de Janeiro, Minas
Gerais e Goiás guardam capelas e pequenas igrejas cujas origens remontam
ao século XVIII, quando o ouro e os diamantes representavam a grande
riqueza da colônia portuguesa. Tais construções atestam que também nos
lugares mais distantes e de recursos mais escassos dispensava-se algum
cuidado estético na realização da arquitetura de cunho religioso. Embora quase
sempre muito simples nas suas definições de estrutura e volumes, essa
arquitetura não deixou de obedecer a certos critérios básicos da visão tomista
da beleza; a proporcionalidade, o equilíbrio, a harmonia, a parcimônia... Ao
longo do século XIX e princípios do século XX, a arquitetura dessas capelas e
igrejas interioranas foi incorporando, segundo ritmo e grau variados, as ideias
que então iam surgindo nos centros maiores; o neoclássico, o neogótico, o
estilo deco francês... E a partir da segunda metade do século XX tais
construções passaram a exibir decisivas modificações simplificadoras quanto à
estrutura, volumes e elementos de decoração, decorrentes das novas
orientações adotadas pelo Clero católico. As igrejas das cidades do interior
retratam toda essa evolução e mostram que a simplicidade, a harmonia e a
manutenção de traços de origem muito antiga constituem verdadeiras
características da arquitetura sacra brasileira.

As capelas e igrejas de pequeno porte das povoações e cidades menores do


interior do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do estado de Goiás constituem,
portanto, o objeto de principal interesse da presente apreciação sobre
características da arquitetura brasileira de cunho religioso. A caracterização
aqui abordada cinge-se a feições externas daquelas edificações, quase
sempre, conquanto buscando identificar traços comuns entre essas e explicitar
a originalidade que lhes acompanha. Ademais, esta apreciação buscou
registrar o ambiente social, a organização e as relações político-institucionais
vigentes em cada grande etapa do período considerado e opinar quanto à
influência que tais fatores exerceram sobre a evolução da arte brasileira na
construção de igrejas. Finalmente, especulou-se no campo da estética,
procurando explicitar valores que distinguem aquela singeleza das igrejinhas
do interior.

NF, setembro de 2009


5

1. O chão brasileiro

A Igreja de N. S. do Monte do Carmo, em Mariana, Minas Gerais, não é uma


pequena construção de uma cidadezinha do século XVIII, propriamente, mas
um precioso exemplo da arquitetura sacra brasileira realizada em fins dos
setecentos, na sede de uma diocese e centro urbano de uma importante região
do país de então. Entretanto, por quatro motivos ora se escolhe esse edifício
para se dar início à apreciação das igrejas menores: (i) a beleza da sua
apresentação exterior, firmada na simplicidade característica do modelo
português aqui adotado; (ii) o seu patrocínio de Ordem Terceira, que aponta a
situação político-institucional então prevalecente; (iii) o testemunho de um
momento de ápice que representa para um exercício artístico brasileiro; (iv) a
sua natureza de patrimônio histórico reconhecido e as vicissitudes a que se
tem submetido, a ilustrar a situação de tantos outros acervos de valor cultural.

A simplicidade é revelada pelo fato de que todo o conjunto da sua frontaria é


facilmente apreensível. A despeito dos seus tantos detalhes de decoração, já à
primeira vista constata-se uma porta, duas janelas, duas torres e a cruz lá no
alto. A beleza tampouco se esconde: uma moldura de arenito bege em torno do
pano caiado de branco dá destaque ao portal trabalhado e àqueles enfeites lá
em cima, que compõem o denominado frontão. A composição é clara e alegre.
Sóbria, porém. Sem alardes, observa-se.
6

Depois o observador começa a se demorar nos detalhes. No entablamento,


bandas sucessivas definem arquitrave, friso e cornija ressaltada que percorre
todos os lados do corpo principal do edifício. Na sua parte fronteira, friso e
cornija, ressaltados, juntos descrevem um arco para acomodar um grande
óculo recortado e de cinza emoldurado. Acima dessa cornija arcada, o frontão,
cujas empenas mostram-se interrompidas, recortadas, enfeitadas de volutas
que volteiam e contravolteiam. E aqui se descobre outro elemento de
decoração a sublinhar: a obra de laço flamenga, o rolwerk holandês, elemento
já então de longa data incorporado à arquitetura portuguesa. E um novo óculo
emoldurado surge no tímpano desse frontão, tudo, afinal, sustentando uma
cruz de grande simplicidade, a qual parece ganhar mais destaque frente às
duas torres redondas pintadas de branco e amarelo dos Habsburgos, de
cornijas ressaltadas, pinaculadas e com janelas romanescas. À entrada da
igreja, por seu turno, o portal, as duas janelas e o escudo ricamente trabalhado,
que mostra dois anjos trazendo uma coroa, compõem um conjunto harmonioso.
Os detalhes dessa decoração sucedem-se para cada observador, que irá
divisá-los variadamente.

Mas, que o conjunto seja considerado à distância, de novo. Clara nas suas
cores, modesta porque sem realces absolutos, harmônica na sua decoração,
simétrica na distribuição dos seus elementos básicos, simples de ser
entendida: uma porta, duas janelas, duas águas escondidas pelo frontão
triangular. A despeito de toda a decoração e das duas torres recuadas que, na
verdade, dão maior destaque à fachada, tem-se aqui um dos modelos mais
simplificados da arquitetura sacra de origem portuguesa, o qual veio a ser
largamente adotado nas vilas e povoados do território das Minas. Por vezes
incluindo duas torres campanárias, ora uma só, ajuntada ao alçado lateral ou
fincada sobre a cumeeira ou ainda em estrutura separada, essa construção em
forma de paralelepípedo ou de nave em forma de caixa (conforme definiu o
Prof. George Kubler para o caso português), uma vez despida dos seus
adornos eruditos e reduzida nas suas dimensões, tornou-se o arquétipo da
pequena igreja do interior brasileiro na região que ora se considera.
Dificilmente, porém, o observador irá encontrar duas fachadas iguais entre si.
Cada povoado imprimiu a sua marca, embora em todos eles o primitivismo do
ambiente cultural e a carência de recursos financeiros, de conhecimentos
técnicos e de estética, de materiais adequados e de mão-de-obra competente
por certo muito limitaram a concretização de uma decoração mais elaborada e
talvez mais acorde com a devoção dos paroquianos.
7

Bom Jesus de Matozinhos; Itabirito, MG

A Capela do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, em Itabirito, Minas, é uma


bonita ilustração dessas igrejinhas interioranas construídas segundo aquele
modelo básico de origem portuguesa que acima se identificou: uma caixa sobre
base retangular, duas águas, uma porta e duas janelas, que aninham os sinos
e dispensam a torre. O pano frontal é caiado de branco e delimitado por duas
pilastras de pedra com pináculos assentados aos extremos das empenas,
sobre uma cornija interrompida ou apenas anunciada. Uma cruz de talho forte,
sobranceira, tudo domina. A decoração inclui um florão de quatro lobos e uma
cartela emoldurada, dois elementos razoavelmente comuns nessas pequenas
construções do interior. Segundo considerações criteriosas de profissionais, o
trabalho de arquitetura é aqui muito escasso, e mais escasso ainda em tantos
outros exemplos que se vê nos povoados e cidadezinhas de Minas e Goiás. De
fato, na maioria dos casos, retirando-se a decoração própria do templo católico
e reduzindo-se um pouco a altura dos alçados, a construção pouco difere de
uma casa residencial muito simples. Mas, também na maioria dos casos,
parece que é precisamente essa singeleza que conquista o carinho dos fiéis.

Em Portugal, datam do século XVI, pelo menos, as construções que atestam a


antiga existência desse modelo arquitetônico sem torres campanárias, tal como
a Capela de Caçarelhos, na região de Bragança, com a qual muito se
assemelha a supracitada Capela do Bom Jesus, em Itabirito, feitas as devidas
simplificações quanto à decoração (v. Reader’s Digest/J. A. Ferreira de
Almeida, coord. Tesouros artísticos de Portugal. - Lisboa: Ed. Seleções
Reader’s Digest, 1976, p. 162). Os mesmos traços básicos da fachada são
exibidos pela Capela de N. S. da Conceição construída em Tomar no século
XVI. Essa capela tem base retangular, nave em forma de caixa, fachada plana
delimitada por pilastras, uma porta, duas janelas e um frontão triangular. Nesse
caso, contudo, a proposta semelhança requer desprezar-se o restante do risco
da construção portuguesa, porquanto esse inclui, ademais de sofisticações, um
transepto com frontarias e cúpula, o que evidentemente não veio a ser
8

considerado nas modestas edificações brasileiras do interior (v. Kubler,


George. A arquitetura portuguesa chã. - Lisboa: Nova Vega Ed., 2ª ed., 2005,
p. 54-56.)

Também do século XVI são algumas construções brasileiras que já seguiam


aquele modelo básico, tal como a igreja de N. S. da Assunção, em Anchieta,
Espírito Santo, e a igreja de Santo Inácio, outrora no antigo Morro do Castelo,
no Rio de Janeiro. Todavia, nesses dois últimos casos faz-se presente uma
torre sineira lateral, um elemento que parece caracterizar as antigas
construções próximas do litoral brasileiro (v. Bardi, P. M. História da Arte
Brasileira. - São Paulo: Cia. Melhoramentos Ed., 1975, p. 35-6).

Muitas vezes esse mesmo modelo surge acompanhado de duas torres sineiras
laterais, conforme acima se disse. Essa variedade dos traços básicos está
presente na Basílica de N. S. da Assunção; a Catedral da Sé de Mariana,
Minas Gerais. Essa Catedral, por seu turno, guarda grande semelhança com a
Igreja de Santa Catarina dos Livreiros, construída em Lisboa no século XVI,
mas hoje não mais existente (Kubler, George. op. cit., p. 74-76).

Catedral da Sé de Mariana, Minas

A Catedral da Sé exibe uma fachada dividida em cinco tramos delimitados por


fortes pilastras, as quais seguem para o segundo piso até o entablamento,
onde se distingue uma cornija saliente que rodeia todo o corpo principal da
9

construção. A sua planta-baixa é quadrangular, e sobre essa base foram


construídas uma nave central e duas alas com capelas sob as estruturas das
tribunas, as quais têm janelas para fora do edifício.

O conjunto é simples e austero na sua pintura externa em branco, cinza e


verde. A face fronteira mostra duas torres campanárias, também
quadrangulares e definidas pelas fortes pilastras já a partir das bases,
mostrando frestões chanfrados no parterre, janelas de arco redondo na
acomodação dos sinos e terminação com telhado em pirâmide e cornija
saliente. Entre essas duas estruturas sineiras, em plano ligeiramente recuado,
distinguem-se os traços do modelo básico já comentado: uma porta, duas
janelas e um frontão triangular. Sobre o portal a decoração desenvolve-se
numa composição ascendente de esculturas e apliques e terceira janela
retangular, a qual realça a simetria com as duas janelas maiores e as próprias
torres. No frontão triangular ganha a atenção os dois rolos à moda holandesa
inseridos sob as extremidades das empenas, assim como a grande janela
recortada e gradeada que surge no tímpano. Por fim, a cruz altaneira assume
maior destaque com a pequena abertura quadrada rasgada no alto do tímpano.

Uma nota adicional, ora se faz necessária. Aqui na Catedral da Sé, tal como na
Igreja do Carmo, acha-se presente um elemento decorativo típico da fase
colonial brasileira e originário da história das navegações portuguesas: as
denominadas telhas-de-bico colocadas nas quinas das cornijas, um motivo
então tomado de empréstimo aos templos da China, os pagodes. E,
curiosamente, ainda hoje essa telha decorativa é com frequência utilizada nas
construções residenciais do interior de Minas. Esses chinesismos, conforme os
apelidam historiadores e críticos de arte, também incluem simplificadas
pinturas de motivos chineses, tais como os próprios sagrados pagodes dos
orientais e os seus ambientes ajardinados. Tais elementos de decoração
surgem mesclados àqueles de cunho propriamente cristão nos interiores de
várias igrejas mineiras. Disso constitui exemplo os painéis laterais do órgão do
coro da Catedral da Sé de Mariana, assim como os painéis do arco triunfal da
Igreja de N. S. do Ó, em Sabará, Minas.

Esse modelo ou variedade de duas torres laterais constituiu outro protótipo


para as igrejas das paróquias interioranas de outrora. A sua origem portuguesa
parece bem ilustrada pela semelhança entre a Catedral da Sé de Mariana e a
antiga igreja lisboeta de Santa Catarina dos Livreiros, conforme já apontado.

Tais construções do interior brasileiro vieram a ser refeitas ou reformadas


ocasionalmente, mas, com frequência, sem perder os seus traços básicos
originais. Essas assertivas são ilustradas pela Igreja de N. S. do Rosário em
Minas Novas, que conserva o seu aspecto mais primitivo, embora com
10

ampliações, e a Igreja do Rosário em Alfredo Vasconcelos, que passou por


reformas de atualização, por assim dizer.

N. S. do Rosário; Minas Novas, MG

N. S. do Rosário; Alfredo Vasconcelos, MG

Eis, pois, o modelo arquitetônico que transparece daquelas construções sacras


do interior setecentista, o qual ora se apelida de estilo chão brasileiro, numa
alusão à denominação adotada pelo Prof. Kubler para o caso da arquitetura
desornamentada de Portugal: planta retangular, nave em alçados de caixa,
duas águas, uma porta, duas janelas, um frontão triangular e, às vezes, uma ou
duas torres sineiras. Essa estrutura irá experimentar adições decorativas e até
mesmo modificações de substância que irão torná-la cada vez mais brasileira,
para jamais ser abandonada e até mesmo vir a ser construída em moldes ainda
mais modestos em pleno século XX, conforme ora se exemplifica com a Capela
de São Cristovão, em João Pinheiro, Minas.
11

Capela de São Cristóvão; zona rural de João Pinheiro, MG

Muitas vezes a literatura dedicada às construções sacras satisfaz-se com


referências mais amplas, tais como estilo colonial, colonial da região, estilo
barroco, rococó, etc. Não há dúvida de que a taxonomia presta um grande
auxílio no estudo do objeto, mas não se pode descuidar de que o gênero pode
esconder ou subentender um grande número de espécies ou tipos. Conforme
alerta o Prof. Kubler na sua citada obra, o dogma corrente tem sido de que tais
estilos são ecumênicos, aplicáveis em qualquer lugar, o que leva as pessoas a
acreditar que desvios ou originalidades sejam “apenas heresias grosseiras ou
desertos de provincianismo e de arte popular” (op. cit., p. 203). Ou seja, seria
errôneo afirmar, por exemplo, que em dado lugar tem-se um estilo barroco
eivado de invenções locais, quando o mais acertado seria reconhecer que em
tal lugar há construções ou um estilo de construção que se utiliza de elementos
do barroco.

Alerta ainda, o Professor, que “oposta a esta noção... surge um critério mais
recente segundo o qual nenhum estilo ou categoria exclui a possível
convergência simultânea de muitas outras categorias anteriores. Em qualquer
lugar e em qualquer momento, o artista empenha-se em colher os seus
materiais do passado, combinando-os e ajustando-os conforme as suas
necessidades e preferências...” (op.cit., p. 26). Com aqueles elementos
extraídos da história surge, então, um estilo todo próprio, ou ainda, uma nova
contribuição para o avanço da criação artística.

Eis, pois, que examinando a arquitetura sacra da Bahia dos séculos XVI e XVII,
o arquiteto Glauco de Oliveira Campello vem evidenciar as contribuições
autóctones e concluir pela existência de um verdadeiro estilo franciscano local
(Campello, G. de Oliveira. O brilho da simplicidade: dois estudos sobre
arquitetura religiosa no Brasil colonial. Rio: Casa da Palavra Ed., 2001).
12

2. Variações e exercícios

Na região das Minas do século XVIII praticou-se uma ars gentiliter, uma arte à
moda da casa, ao jeito do país, que também nas construções sacras implicou
em adaptações ditadas pelas penúrias locais, para satisfazer às demandas de
compradores de poder aquisitivo relativamente expressivo. Certamente
naquele rude ambiente de desbravadores faltava de tudo, menos o dinheiro.
Mas o dinheiro não compra tudo. Nicolau Nasoni não viria à Colônia embelezar
Vila Rica, ou ainda, el-Rei Dom João V não lhe permitiria viesse tão longe,
dispensando-o da tarefa de enfeitar a Metrópole; o que talvez tenha sido muito
bom, pois que tal patrocínio real ao italiano parece ter significado um
desprestígio para a arte dos reinóis e um desincentivo aos artistas da terra e,
aqui, a presença do famoso arquiteto poderia ter significado a morte de um
exercício artístico nascente. Assim, dançou-se conforme se pôde. Faltava
conhecimento técnico, materiais adequados e mão-de-obra competente.
Faltava finura no trato das coisas, faltava gosto. Certamente para cá vieram, ou
el-Rei permitiu que viessem uns pedreiros experimentados que queriam fazer a
América, além de alguns profissionais que tinham frequentado Aulas de
engenharia militar e construção de pontes em Portugal. É bem possível que
esses tenham ganhado a incondicional preferência dos contratadores ou, quem
sabe, que eles tenham aquiescido aceitar tais encomendas brasileiras, pois
que outros havia então?

Em resumo, nas Minas do início dos setecentos a arquitetura sacra ainda era
uma ars primaeva, nascente, tal como o fora a arte da Bahia e de Pernambuco
no início do ciclo da cana-de-açucar. Somente no correr de um século inteiro foi
possível desenvolver adaptações, formar a mão-de-obra e contar-se com
alguns reconhecidos artistas autóctones – muito embora precariamente e
quase por acaso. Evoluiu-se aos tropeços no sentido de uma ars gentica, de
uma verdadeira arte da gente brasileira. Um movimento que teria atingido o seu
ápice com as obras de Antônio Francisco Lisboa. Um ápice, de fato, pois que
depois disso a evolução da arquitetura sacra parece ter experimentado forte e
duradouro declínio, sem que o país tivesse chegado a produzir um capolavoro
que atestasse maturidade.

No círculo dos grandes centros de então foi possível erguer construções como
a Sé de Mariana e as igrejas de N. S. do Rosário e de São Francisco, em Ouro
Preto. No final dos setecentos terminava-se a Igreja de São Francisco de Assis
de São João d’el-Rei e nas primeiras décadas do século XIX foram concluídas
a Igreja de N. S. do Carmo de Mariana e a estatuária da Igreja do Bom Jesus
de Matozinhos de Congonhas do Campo. Depois disso, o silêncio; regido pela
13

decadência das minas de ouro e diamantes, pelo despotismo herdado da


Metrópole e pelo crescente conflito entre o Estado e a Igreja.

Nos centros menores, do mesmo modo, as suas pequenas construções


experimentaram aprimoramentos ao longo e até fins do século XVIII. Os seus
recursos financeiros eram mais escassos, por certo, mas as outras carências
não deviam ser muito mais limitantes que aquelas das grandes vilas. A
Irmandade do centro urbano mais importante repassa plantas e conselhos à
Irmandade do povoado, os irmãos da cidade grande ajudam aqueles do
interior, os pedreiros e ajudantes são os mesmos das construções das casas
de comércio e residências, pois que, ademais, trabalham nas horas vagas ou
nos dias de folga, tal como atualmente continua acontecendo, etc. O estudioso
de agora pode facilmente imaginar muitas situações prováveis para aquele
ambiente social das camadas menos favorecidas de então, dado que ainda
hoje o país exibe grandes disparidades sociais. Quando os recursos da
comunidade interiorana não são tão escassos, ou quando se trata de
construções encomendadas pelo seu extrato social mais aquinhoado, com
maior facilidade obtém-se aquela colaboração necessária. Entretanto, resta
saber onde encontrar o artista. Aquele que trará aquela pequena adição ao
edifício, tornando-o o orgulho da comunidade: que a Vila Rica tenha a sua
grande Igreja de São Francisco, mas aqui temos a nossa igrejinha muito bonita
também! E, desse modo, os povoados, os pequenos centros do interior
procuraram construir as suas obras de arte, de expressar no singelo a beleza
da arquitetura que podiam patrocinar.

É preciso lembrar que certos povoados e pequenos centros interioranos do


passado tornaram-se bairros ou distritos das cidades dos dias de hoje, dado
que as distâncias ora se afiguram menores com os atuais meios de transporte.
Por exemplo, a comunidade do Morro de São João, em Ouro Preto, situada lá
nos píncaros, há 250 anos devia parecer um povoado tão longe de Vila Rica
quanto o lugar onde Judas perdeu as botas. Não obstante, na maioria dos
casos aqui considerados, tais povoados e pequenos centros do interior eram
realmente interioranos, distanciados das grandes vilas, e ainda hoje o são.

Por outro lado, esses pequenos centros urbanos de outrora nem sempre foram
comunidades pobres ou administradas por extratos sociais sem recursos,
conforme acima lembrado. Eis que Catas Altas era e ainda é um pequeno
centro urbano, mas, naqueles tempos do ouro, foi capaz de construir um
belíssimo exemplo de arquitetura que também poderia denominar-se
desornamentada ou chã, numa nova alusão aos estudos do Professor Kubler.
14

N. S. da Conceição; Catas Altas, MG

Presença, equilíbrio e simplicidade. A sua fachada de três tramos é, ao mesmo


tempo, unificada, não se separa em partes. Pois que o seu grande frontão, com
as suas empenas integradas numa enorme e contínua ondulação, cujos
extremos assentam-se sobre os segmentos das pilastras acima da cornija,
abraça as duas torres sineiras formando o corpo superior do edifício. Essas
torres, quadrangulares de cornijas salientes, acomodam os sinos e têm janelas
romanescas abertas aos quatro ventos. E para coroá-las, recebeu cada uma
delas não uma campânula, nem uma pirâmide, nem um telhado redondo ou
quadrado, mas a originalidade de um enorme e admirável pináculo, um bulbo
espichado, circundado de quatro pináculos de menor tamanho. E todo esse
corpo superior do edifício exibe a sua alvenaria pintada de branco, com os seus
componentes emoldurados de pedra cinza. Esse conjunto de coroamento
ganharia demasiado destaque, não mostrasse o nível inferior da construção
três grandes janelas de feitio retangular, com vergas trabalhadas e peitoril
baixo sobre mísulas, dando sequência vertical às três grandes portas de arco
redondo, de estilo igual ao das janelas dos campanários. Constata-se, desse
modo, uma notável simetria vertical: a linha das janelas confere equilíbrio à
linha das portas e esse conjunto, unido às bases das torres pela pintura em
cinza claro das pilastras, dá equilíbrio ao frontão abraçado aos campanários.
15

E a simetria também se desenvolve horizontalmente, a partir do eixo do tramo


central: a porta do meio, a janela que lhe é superior, o óculo de quatro lóbulos e
a cruz altaneira, juntos, fazem o eixo de equilíbrio das laterais dessa frontaria.

Essa idéia de equilíbrio é prevalecente em todos os alçados do edifício, o qual


se revela do porte das igrejas dos centros urbanos maiores da região. A sua
arte é também revelada pelo nártex sotocoro embutido na frontaria, aberto ao
exterior pelas três grandes portas sob as três janelas gradeadas do coro. À sua
vez, o interior dessa Matriz acha-se enriquecido de um belíssimo trabalho de
decoração, com pinturas e talhas cromadas, o qual, todavia, não chegou a ser
terminado.

A construção dessa Igreja Matriz teve início em 1712 e prolongou-se até cerca
de 1780, conforme historiografia. Nada menos de 68 anos de trabalhos, por
certo, intermitentes, claro. Mas vê-se que também no Brasil ocorriam aquelas
persistências que caracterizaram a construção das grandes igrejas da Europa.
Naqueles distantes decênios do século XVIII, nos ermos primitivos das Catas
16

Altas, partiu-se do zero: arranjaram-se uns desenhos, juntaram-se os materiais,


aprendeu-se a erguer paredes e pilastras, a fazer telhados, aprendeu-se a
entalhar a madeira... O ouro e a fé tudo facilitando. E, muito provavelmente
com interrupções de toda sorte, chegou-se quase ao fim. Chegou-se à
concretização, não obstante, dessa admirável construção de caráter religioso.

Atualmente conclui-se um amplo processo de restauração, com o louvável


apoio financeiro da Companhia Vale do Rio Doce, sob a vigilância do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico. A recuperação de vários desses
insubstituíveis testemunhos regionais da história brasileira tem contando com o
inestimável aporte de recursos dessa Companhia de origem estatal. Todavia,
os cuidados de conservação que têm sido dispensados em cada caso e que
seriam de se esperar das instituições governamentais e das organizações civis
não têm sido suficientes, por vezes, nem mesmo para manter as custosas
restaurações então realizadas com dotações benevolentes. Não se trata,
entretanto, de questão de fácil resolução, cabe reconhecer.

De descuidos também foi vítima a Igreja de N. S. do Carmo, em Mariana; uma


das razões porque foi escolhida para dar início às presentes considerações
sobre a arquitetura sacra do interior, conforme apontado anteriormente. Essa
Igreja da Ordem Terceira do Carmo teve a sua construção iniciada em 1762 e
terminada já no século XIX, no ano de 1835, conforme historiografia. Fazendo
parte do tombamento de Mariana promovido em 1938 pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e da condição de Monumento
Histórico Nacional desde 1945, essa construção passou por um demorado
processo de restauração. Iniciados em 1988, os trabalhos vieram a ser
concluídos em 1999, data em que, por razões de inadequado manejo de
materiais perigosos, o edifício foi tomado pelas chamas e parcialmente
transformado em escombros. O relato desse episódio foi feito pelo próprio autor
do projeto de restauração que então se completava, o Prof. Altino Barbosa
Caldeira, no artigo de sua autoria A Igreja do Carmo de Mariana (in Arquitextos,
nº 027, ago. 2002). O que se perdeu, o artigo do Professor explica melhor do
que uma tentativa que ora se fizesse nesse sentido. Os trabalhos de
restauração foram retomados, agora acompanhados de trabalhos de
reconstrução propriamente. Mas ainda hoje não teriam sido concluídos,
enquanto o mato já galgou as bonitas torres de inspiração barroca.

O cuidado, a manutenção, o gosto pela coisa bem feita ainda não parece ser
uma característica nacional, infelizmente. Desse modo, é corriqueiro encontrar-
se esses testemunhos da história pátria com cara de abandono, de coisa
imprestável. Muitas vezes a possível beleza dessas construções não pode ser
constatada, pois que se acharia escondida pela maquiagem que lhes confere o
pouco caso. E muitas vezes, também, tal circunstância não parece derivar da
falta de recursos, mas daquela efetiva falta de interesse da comunidade na
17

preservação das coisas. Enfim, o IPHAN brasileiro parece enfrentar uma tarefa
insana e infindável.

Infindável, realmente, pois que as experiências artísticas brasileiras nesse


amplo espaço interiorano foram numerosas. E seria uma lástima perder-se
esse instrutivo acervo de ensaios arquitetônicos e artísticos, de singelas
construções de caráter religioso que, ademais, atestam a continuada posse da
terra desde os nossos mais distantes avoengos. As investigações ora
conduzidas sugerem que três diferentes tipos ou variações vieram integrar
esse acervo de igrejinhas brasileiras no século XVIII: (i) o risco tradicional ou
modelo básico simplificado, conforme identificado anteriormente; (ii) o modelo
que presentemente se convencionou denominar variação Sabará; e (iii) o
modelo aqui denominado variação Couto de Magalhães.

A variedade risco tradicional é encontrada desde a região setentrional de


Minas, na pequena e simpática Chapada do Norte, até Jequitibá no centro do
estado e Paracatu do Príncipe no oeste. Desde as desbravadoras Goiás Velho
e Jaraguá das serras goianas até Andrelândia na Mantiqueira e Itaboraí na
terra fluminense. Nave de caixa, duas águas, uma porta, duas janelas e frontão
triangular; em cada caso, porém, uma adição, imprimindo a marca do lugar, do
insubstituível ambiente natural circundante e sua comunidade.

N. S. do Rosário; Chapada do Norte, MG


18

SS. Sacramento; Jequitibá, MG

São João; Morro de S. João/O.P., MG

Sto. Antônio; Paracatu, MG


19

S. Francisco de Assis; Cidade de Goiás, GO

N. S. do Rosário; Jaraguá, GO

N. S. do Rosário; Andrelândia, MG
20

São João Batista; Itaboraí, RJ

Algumas dessas marcas locais logo são captadas pelo observador. Numa
igrejinha, aquela de Chapada do Norte, nota-se o caimento suavizado das
empenas avançadas e uma trava alta, acima do óculo redondo, dispensando o
explicito desenho de um frontão, enquanto se destaca o pitoresco campanário
lateral pintado de azul forte; noutra, em Jequitibá, a presença de um frontão
triangular avançado todo feito de telhas, com um óculo trilobado no tímpano, e
uma pequena janela com parte-luz abrigando dois sinos acima do portal; na
terceira, no Morro de São João, Ouro Preto, a clara sugestão barroca dos
alçados em linha curva, as janelas envidraçadas e a presença do amarelo dos
Habsburgos na pintura; depois, na de Santo Antônio em Paracatu, admira-se
uma singular rosácea dentada no tímpano e uma trabalhada decoração a guisa
de frontão do portal; em Goiás Velho, outra adiciona panos laterais à frontaria,
acrescenta a alegria do amarelo ao tradicional azul-e-branco da pintura e se
junta de uma expressiva estrutura de madeira para abrigar o sino; em seguida,
a de Jaraguá, além do tosco e pitoresco campanário lateral, mostra um portal
de madeira entalhada com um original frontão bilobado, que acomoda duas
pequenas janelas envidraçadas; a sétima igrejinha, em Andrelândia, distingue-
se pelo especial capricho no acabamento e adições da sua fachada, onde a
atenção é reclamada pelas empenas côncavas, a cornija com telhas-de-bico e
o minúsculo sino em suporte sobre a janela; e no oitavo exemplo ora
apresentado, a igreja de Itaboraí, que se mostra de porte mais avantajado,
tingida de branco e exibindo uma pesada torre sineira lateral, dois traços
comuns nas construções mais próximas do mar e de história mais antiga, além
do risco austero do portal com verga trabalhada.
21

A seguir vem o segundo tipo arquitetônico identificado, ao qual se deu o nome


de variação Sabará, conforme antes anunciado. A Igreja de N. S. do Ó é uma
das mais famosas pequenas construções setecentistas de Sabará, Minas
Gerais. Um excelente testemunho do apreço que as Irmandades do ciclo do
ouro dedicavam aos seus locais de reunião e de culto. A sua Padroeira é
também chamada Nossa Senhora da Espera ou da Expectação do Parto, tendo
vingado, porém, o nome de N. S. do Ó, o qual tem origem nas celebrações de
vésperas do Natal, quando sete antífonas são repetidas a cada dia: Ó
Sabedoria... Ó Adonai... Ó Raiz de Jessé... Ó Chave de Davi... Ó Sol
Nascente... Ó Rei de Todos os Povos... Ó Emanuel, Deus Conosco...

O interior dessa construção é profusamente decorado com trabalhos de entalhe


e grandes quadros emoldurados, tudo cobrindo, tudo em policromia, ouro,
vermelho, verde, marrom, cinza, bege, não restando qualquer espaço vazio,
senão, curiosamente, nas paredes do coro alto e nas laterais internas do portal.
Os quadros têm os seus motivos tirados de passagens do Antigo Testamento e
de símbolos consagrados da religião. Ícones e figuras decorativas tradicionais,
tais como cartelas, volutas, orelhas, nervuras e acantos, são usadas
generosamente nos complementos. E nos painéis laterais do arco-triunfal
encontram-se os chinesismos a que antes se fez referência.

N. S. do Ó; Sabará, MG

Criou-se nesse pequeno interior uma atmosfera de refúgio, um ambiente


recôndito, um lugar que inspira proteção; o que muito combina com o desejo de
se esconder, de fugir, que naqueles tempos de barbárie parecia dominar o
cotidiano dos súditos de província de um Rei distante. Assim, a riqueza da
decoração interna, ainda que longe de ser um primor das artes, significaria a
feliz concretização de um lugar de acolhimento e consolo para aquela gente tão
desfavorecida de então.
22

O exterior, mais uma vez, expressa aquela criatividade setecentista brasileira,


ou seja, aquela mesma capacidade de simplificação e de adição de elementos
decorativos a que se fez referência. Mas aqui a traça diferencia-se daquele
risco tradicional, daquele modelo básico do qual se tratou primeiramente. Ora
distingue-se sobremodo a fachada chanfrada em três tramos e a continuidade
vertical do pano central entre colunas de madeira, que aloja o portal largo, a
janela medianeira do coro alto e a abertura fronteira do campanário
quadrangular. Nos panos chanfrados as duas outras janelas balaustradas do
coro. A cobertura do edifício principal é recortada de forma a conferir aos
beirais uma linha inclinada ascendente no sentido da frente da torre, como que
buscando as alturas. A torre sineira tem um telhado em pirâmide, flecha ou
grimpa de alegorias e telhas-de-bico nas suas quinas. Dois corpos de
construção acham-se aí conjugados, mostrando linhas quebradas e sugerindo
curvas. Todo esse exterior mostra-se em alvenaria pintada de branco e
madeira pintada de vermelho nos cunhais e nas esquadrias, enquanto o largo
portal e as bandeiras das janelas pintam-se de azul forte.

N. S. do Ó; Sabará, MG
23

Fachada de três panos com os laterais chanfrados, face central acomodando


um portal largo seguido de janela do coro alto e abertura fronteira do
campanário quadrangular. Para os presentes efeitos de exposição, a esse tipo
de igrejinha deu-se o título de variação Sabará; não porque se queira afirmar
que a igreja de N. S. do Ó tenha antecedido às demais ou servido de modelo
para as demais de igual inspiração construídas em diferentes povoados e
pequenos centros mineiros do século XVIII, mas tão simplesmente porque se
mostrou aos olhos do observador como sendo a mais completa, a melhor
documentada e a mais facilmente acessível dentre aquelas visitadas.

A construção dessa igreja teve início em 1719, mas o seu frontispício


chanfrado data, tardiamente, de 1782. Esse é outro exemplo, portanto,
daquelas edificações feitas aos poucos, conforme se costuma dizer. Uma
excelente descrição das etapas dos trabalhos de estrutura e de
complementação, assim como uma pormenorizada apreciação da decoração
interna da igreja acha-se documentada no Itinerário do turista. Igreja Nossa
Senhora do Ó e Santo Antônio de Pompéu, de autoria do Padre Luiz F. N. de
Oliveira (Betim: Gráfica MM Impressos, 2002).

Ora repetindo, várias igrejinhas desse segundo tipo foram construídas no


interior setecentista de Minas. Novamente, aqui e acolá, uma originalidade na
decoração ou mesmo de substância é apresentada, como que registrando a
marca da comunidade. E algumas dessas igrejas exibem certo porte, tais como
a de N. S. do Rosário em Conceição do Mato Dentro e a de N. S. dos Anjos em
Mariana, as quais fazem lembrar construções mais elaboradas dos centros
maiores. As ilustrações aqui incluídas convidam a novas considerações.

Santa Quitéria; Catas Altas, MG


24

N. S. dos Anjos; Mariana, MG

N. S. do Rosário; Conceição do Mato Dentro, MG

Rosário; S. G. do Rio Abaixo, MG


25

Santa Ifigênia; São Gonçalo do Rio Abaixo, MG

O terceiro tipo de igrejinha também exibe uma torre sineira no tramo central da
frontaria. Contudo, ora não se encontram os panos chanfrados, enquanto a sua
fachada mostra uma decoração de traços mais caprichosos, geralmente. Para
os presentes propósitos de exposição, deu-se o nome de variação Couto de
Magalhães a esse risco de arquitetura sacra simplificada. Tal como no caso
anterior, a escolha dessa denominação não decorre de qualquer idéia ou
comprovação de que a Igreja do Rosário de Couto Magalhães de Minas,
próximo de Diamantina, tenha constituído o protótipo das demais de igual traça.
A denominação é, pois, apenas figurativa.

Rosário; Couto de Magalhães de Minas


26

A pequenina igreja de Couto de Magalhães de Minas mostra uma expressiva


janela quadrilobada no tímpano, com moldura em cinza-claro e grade branca,
duas janelas com sacadas e cuidada decoração encimando o portal de verga
em arco abatido. A conjugação de alvenaria em branco e peças de madeira em
cinza-claro e branco confere sobriedade à construção, sem torná-la austera. O
cruzeiro, à sua frente, exibe uma flecha com alegorias, ou grimpa, que muito se
aproxima daquela que completa a torre sineira, levando o observador a uma
instintiva comparação entre os dois elementos. Os beirais do telhado são
salientes, assim como a cornija que rodeia a pirâmide de cobertura do
campanário. No seu conjunto, o edifício parece bem equilibrado, ao mesmo
tempo em que a sua torre central, lembrando um mirante, chama a atenção do
transeunte.

Embora mais modesta, a igrejinha de Inhaí, também nas proximidades de


Diamantina, não deixa de ter as suas particularidades. Campanário ao estilo
pagode chinês encimado de grimpa de alegorias, empenas de caimento
suavizado com telhas-de-bico, trave das empenas sobre um quadrilóbulo
formado por oreilles e internamente fechado por estrutura raiada lembrando
uma custódia, janelas retangulares com balaustres e portal almofadado. Do
mesmo modo que a igrejinha de Couto de Magalhães de Minas, a Sant’Ana de
Inhaí acha-se no centro de uma grande praça da simpática cidadezinha, sendo
vigiada nos quatro lados pelo casario histórico.

Sant’Ana; Inhaí, MG
27

Rosário; São Gonçalo do Rio Preto, MG

A Igreja do Rosário de São Gonçalo do Rio Preto, pintada de branco e azul-


real, buscou melhor equilíbrio e maior presença com a adição de meias-águas
aos seus alçados laterais. A simetria simples parece ser a sua distinção. Essa
igrejinha exemplifica, ademais, a assertiva de que os cuidados de manutenção
fazem uma grande diferença na explicitação dos valores estéticos,
possibilitando ao observador uma apreciação mais fácil do exercício artístico.

A Matriz de Santa Cruz de Chapada do Norte, por sua vez, destaca-se pela
continuidade do seu eixo de face, onde se tem o portal largo seguido na vertical
por uma janela retangular, um óculo redondo no tímpano e, varando as
empenas telhadas do frontão, a torre sineira quadrangular com cobertura em
pirâmide de pagode. No momento da visita que se fez, essa igreja setecentista,
tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico, achava-se
em pleno processo de restauração promovido pela Secretaria Municipal de
Educação e Cultura.

Santa Cruz; Chapada do Norte, MG


28

N. S. do Amparo; Diamantina, MG

A igreja de N. S. do Amparo em Diamantina, embora de época em que aquele


centro urbano era a capital do Distrito Diamantino, também se enquadra nessa
categoria aqui denominada variação Couto de Magalhães. Trata-se de uma
construção trabalhada com os cuidados típicos daquele arraial dos anos
setecentos; muito enfeitada e buscando certa grandeza. O branco e o azul são
as cores básicas em que se acha pintada, mas um friso chocolate está
presente nas almofadas e na verga do portal, nas cornijas salientes dos
entablamentos mestre e de cobertura da torre, assim como nas volutas à moda
holandesa que decoram as empenas do frontão do edifício. Um nicho
quadrilobulado, emoldurado de azul e fechado com estrutura envidraçada,
realça o equilíbrio da fachada, estando posicionado acima do portal e entre as
duas janelas altas com sacadas, as quais exibem alças e peitoris gradeados de
ferro trabalhado. A torre sineira quadrangular é particularmente alta, vindo
enfatizar aquela já citada aparência de mirante. A sua cobertura à moda de
pagode chinês com telhas-de-bico é encimada por uma grimpa onde figura um
galo sobre um globo armilar. O que significa essa alegoria? Uma pequena
pesquisa já sugere que são várias as interpretações dessas alegorias das
grimpas mineiras.

Essa ênfase nos enriquecimentos conferida à Igreja de N. S. do Amparo acha-


se presente também noutras igrejas de Diamantina. E alguns desses templos
setecentistas da cidade são tidos como que carregados de laicismos, uma
feição que decorreria da ingerência que antigamente o Estado exercia nas
coisas da Igreja. Sabe-se que o então Distrito Diamantino distinguia-se pelas
suas severas disposições administrativas, inclusive no tocante aos assuntos da
29

religião católica. Aí não tinham acesso as Ordens regulares e tanto o Clero


secular quanto as Ordens Terceiras e as Irmandades dependiam das
condições estabelecidas pelo Estado para a construção das suas igrejas.
Desse modo, também quanto à prática da religião, mandava el-Rei através dos
seus prepostos, e esses, por vezes, tomaram iniciativas graciosas; conforme
atesta o episódio da construção da Igreja do Carmo pelo Contratador João
Fernandes.

A Igreja de Sant’Ana, em Coromandel, no sul de Minas, é a sexta ilustração do


tipo arquitetônico que ora se comenta. O edifício parece ter recebido as suas
adições laterais posteriormente à conclusão do projeto original, ou traça inicial.
Trata-se, arisca-se dizer, de um detalhe de pouca importância, nesse, assim
como em muitos outros casos, pois que todas essas igrejas teriam sido
construídas aos poucos, ao longo de muitos anos e, possivelmente, com
modificações várias em cada etapa. A sua construção dataria de começos do
século XIX, porquanto as informações prestadas por Auguste de Saint-Hilaire in
Viagem às nascentes do rio São Francisco (Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2004,
p. 138-139) dão conta de que a primeira missa na capela dedicada a Sant’Ana
foi celebrada quando da sua passagem pelo povoado, em 1819. Uma
originalidade, um detalhe especial chama a atenção do observador: o portal
dessa igreja tem verga bilobada. Único dentre todas as pequenas igrejas
visitadas, esse mimo de decoração mais uma vez sugere o constante cuidado
de se apor a marca da comunidade na construção realizada.

Sant’Ana; Coromandel, MG
30

Igreja do Rosário; Rio Preto, MG

A cidade de Rio Preto situa-se às margens do curso de igual nome, o qual hoje
constitui um trecho da divisa político-administrativa entre os estados de Minas
Gerais e Rio de Janeiro. Já no século XVIII o lugar era ponto de travessia
fluvial de uma das vias de ligação do Rio de Janeiro a São João d’el-Rei. Essa
via de transporte era chamada de Caminho do Rio Preto ou Caminho do
Comércio, dado que fora construída pela Câmara de Comércio do Rio de
Janeiro; conforme atesta o mesmo citado Saint-Hilaire. Assim, com muita
naturalidade, a sua Igreja do Rosário revela traços que são encontradiços nas
construções mais antigas e mais próximas do litoral marítimo. Uma estrutura de
aspecto pesado, toda caiada de branco, com uma torre sineira quadrangular de
grande presença e que, nesse caso, interrompe um frontão de cornija e
empenas salientes. Contudo, essa posição central da sua torre, numa fachada
de porta, duas janelas e frontão triangular, a faz comungar da caracterização
das demais integrantes da variação aqui denominada Couto de Magalhães. Ao
mesmo tempo, dado a sua antiguidade, è possível que essa igreja de Rio Preto
seja um antecedente das demais pertencentes à variação ora comentada. O
detalhe demonstrado pela torre varando as empenas, por exemplo, encontra-se
na igreja de Chapada do Norte, também, conforme acima comentado.
31

3. Observações adicionais

À medida que a ocupação da terra progredia e novas riquezas a explorar eram


encontradas, novas vilas e povoados iam sendo constituídos e, assim, o
estabelecimento de novas paróquias, com as suas igrejas e as suas capelas. O
exercício da arte de construir era continuado, portanto. E essa continuidade
propiciou a oportunidade de se formar mão-de-óbra mais destra e de se
experimentar inovações, ideias inesperadas, muitas vezes nascidas de mistura
aos entusiasmos do momento.

Desse modo, foram surgindo aqui e acolá, também nos centros urbanos
menores, uns trabalhos mais caprichados na decoração dos edifícios da Igreja.
E é bom ter sempre presente que no mundo ocidental, durante muitos séculos,
a construção de caráter religioso constituiu o principal locus das manifestações
da arquitetura e d’outras artes. E isso não foi diferente nas terras novas do
Reino, embora aqui se tratasse de uma ars primaeva. Na antiga capital de
Goiás, por exemplo, a igreja de N. S. da Boa Morte, de origem setecentista,
exibe um frontão de muita originalidade e bonita composição, sugerindo
motivos advindos de diferentes momentos da história da arte. E na fachada de
três tramos definidos pelas pilastras, frontões triangulares encimam as janelas
de verga em arco abatido, enquanto a janela central com balaustres faz um
eixo de simetria com a porta encimada de arco e ornamentação ressaltada. À
sua vez, as cores suaves da alvenaria realçam o vermelho fosco do portal e
das esquadrias das janelas.

N. S. da Boa Morte; Cidade de Goiás, GO

Ainda na Cidade de Goiás, a Igreja de N. S. d’Abadia, pintada de branco com


esquadrias em azul, mesmo que mais singela, mostra um frontão também
32

interrompido e todo de ressaltos, sobre um entablamento largo de terminações


destacadas. O portal tem verga trilobada ou ondulada, assim como as duas
janelas que, ademais, são coroadas de arcos salientes em alvenaria.

N. S. d’Abadia; Cidade de Goiás, GO

Essa criatividade dos pedreiros da terra marcou presença também nas


igrejinhas ainda mais modestas, conforme testemunha a Capela do Senhor do
Bonfim, em Catas Altas, Minas. Caiada de branco, com as suas esquadrias em
azul, a fachada dessa capelinha mostra um portal ladeado de duas janelas
retangulares baixas, não altas, como de costume. Acima da porta, larga e
igualmente retangular, acha-se o sino acomodado numa janelinha rasgada
abaixo do tímpano de um frontão sem cornija. E lá no topo, sob o vértice das
empenas, um pequenino óculo redondo. Já as suas diminutas dimensões
buscam cativar os fiéis, arisca-se dizer. Uma miniatura do risco básico
tradicional a que se fez referência anteriormente, com as suas originalidades.

Senhor do Bonfim; Catas Altas, MG

Deixar à mostra o madeiramento das colunas, vigas, beirais e esquadrias é


uma característica da arquitetura antiga de Minas, tanto nas construções laicas
quanto naquelas de cunho religioso, pode-se dizer. No interior de Goiás, em
33

muitas das suas construções antigas, essa exposição da estrutura vai além.
Não só aqueles elementos principais, por assim dizer, mas igualmente
travessas, alças e vigas secundárias ficam à mostra, o que acaba por conferir a
essa arquitetura certa identificação com o estilo pans-de-bois. Cabe lembrar
que tanto em Minas quanto em Goiás trata-se muitas vezes de construções de
taipa, ou seja, da técnica de construção com estrutura e armação de madeira,
onde os vazios são preenchidos com barro, socado ou não, ou com adobe, o
tijolo secado ao sol. Nas construções mineiras o madeiramento é todo
recoberto e caiado, à exceção das citadas peças básicas. Na variação goiana,
todavia, as peças deixadas à mostra são mais numerosas, com a clara
intenção decorativa. A própria ideia do pans-de-bois, ou enxaimel, que na
variação catarinense tem o gradeamento preenchido com tijolos cozidos.

Eis, pois, que aquele risco básico tradicional das pequenas igrejas do interior
setecentista vem surgir em Goiás com uma aparência própria. Ilustra essa
variação goiana a Igreja do Senhor Bom Jesus, em Pirenópolis, a Igreja de N.
S. da Penha, em Corumbá de Goiás, e a Igreja de N. S. da Conceição, em
Canoeiros, um povoado do município de São Gonçalo do Abaeté. Cabe aclarar
que esse último município pertence ao estado de Minas Gerais, mas naqueles
tempos mais recuados essa região do noroeste mineiro muito se apartava da
região das Minas. Assim, não raro se descobre afinidades dessa região com
aquelas de Goiás que lhes são mais próximas.

Senhor Bom Jesus; Pirenópolis, GO


34

N. S. da Penha; Corumbá de Goiás

N. S. da Conceição; Canoeiros/SGA, MG

Tais variações parecem dar força àquela citada observação do Prof. George
Kubler, quanto a que não se deve deixar que as classificações gerais
escondam as manifestações da arte. E em tão extenso território, com uma
população tão espalhada, ainda que nos seus primórdios de colonização e com
tantas dificuldades, talvez fosse mesmo de se esperar manifestações ou
exercícios muito variados.

Ilustra ainda mais essa ponderação a Igreja de São José, em Minas Novas;
impar na sua construção de clara inspiração bizantina ou oriental. O corpo
principal do edifício tem alçados sobre planta centrada octogonal e um telhado
formado de oito gomos encimado por uma grimpa com pequena cruz no topo.
Um segundo corpo, com alçados sobre planta hexagonal, adoça-se ao tardoz,
à face posterior do edifício-mestre, enquanto um nártex coberto, sobre base
retangular, oferece aos fiéis o acesso ao interior da igreja. Toda pintada de
branco, senão a porta e o gradil do nártex em azul escuro, a Igreja de São José
é de grande estima naquela comunidade mineira.
35

São José; Minas Novas, MG

Esses caros exercícios de originalidade também vão manifestar-se nos


singelos campanários daquelas pequenas igrejas e capelas dos setecentos. E,
novamente, será necessário atentar-se para as nuances de cada caso. De todo
modo, alguns desses detalhes saltam aos olhos, muitas vezes.

Santo Antônio; Sto. Antônio do Pompéu, MG


36

São Francisco; Sta. Bárbara, MG

São João; Morro de São João/OP, MG

N. S. da Conceição; Jaraguá, GO
37

Sto. Antônio; Cachoeira do Campo, MG

Mais ainda, cabe lembrar que tais construções de cunho religioso não se
restringiram aos povoados e centros urbanos, mas foram erguidos também nas
zonas rurais e junto a sedes de fazendas, que por vezes se encontravam
próximas das estradas. Esse é o caso da Capela do Sagrado Coração de
Jesus, da Capela da Fazenda Campo Verde e da Capela de N. S. da Piedade,
na Borda do Campo, todas elas situadas no município de Antônio Carlos, em
Minas, às margens da Estrada Real, ou Caminho Novo da velha Estrada do Rio
de Janeiro à Vila Rica. Nesse pequeno conjunto de exemplos, sobressai a
Capela de N. S. da Piedade, dado exibir um nártex do tipo alpendre e, assim,
constituir um raro exemplar mineiro das antigas igrejas alpendradas; um tipo de
arquitetura que foi objeto de estudo especial pela Profra. Dra. Maria Berthilde
Moura Filha (Arquitetura e Arte no Brasil Colonial – miscigenação de formas e
fazeres. Revista Humanidades - UFRN, v. 09, nº 24, 2008).

Sagrado Coração de Jesus; Estrada Real/Antônio Carlos, MG


38

Capela da Faz. Campo Verde; Estrada Real/Ant. Carlos, MG

N. S. da Piedade; Borda do Campo/Ant. Carlos, MG


39

4. Agruras do meio-ambiente social

Haveria uma relação de dependência entre as condições sociais reinantes em


dado lugar e as realizações artísticas do seu povo? Caso exista, tal relação não
parece ser de natureza muito simples. Não se pode afirmar que uma
comunidade rica, justa e dotada de boas instituições de ensino irá produzir
destacadas obras de arte, necessariamente. Nalgumas isso ocorre, ou ocorreu,
enquanto noutras, não. Não se pode afirmar, tampouco, que uma comunidade
de poucos recursos e parcamente educada será incapaz de grandes
realizações; contudo, tais deficiências irão impedir que o processo de criação
seja duradouro, muito certamente. Kenneth Clark, historiador e Slade Professor
da Universidade de Oxford, observa que a relação arte-sociedade não é nem
simples nem previsível, pode ter validade para obras e autores menores, mas
sempre os verdadeiros talentos são capazes de escapar dessa trama.
(Civilisation. N. York: HarpperCollins Pub., 1990, p.340).

No caso brasileiro dos anos setecentos, a historiografia e uma avaliação de


bom senso apontam que as instituições e as condições sociais então vigentes
não favoreciam o desenvolvimento das artes, mas aquele ambiente não
impediu que Antônio Francisco Lisboa exercitasse o seu talento; ele escapou
daquela trama, dir-se-ia. Contudo, parece que aquele mesmo meio-ambiente
social e institucional reinante na região das Minas não permitiu o
amadurecimento das artes aí praticadas: a pintura, a escultura, a arquitetura, a
música. E com o esgotamento das lavras de ouro e diamantes, daí
desapareceram os artistas que teriam sido formados e daí também
desapareceram as vocações artísticas. É tentador concluir que a demanda de
mercado teria sido responsável por tudo, mas essa seria uma explicação
resumida por demais.

A demanda surgira com o povoamento e as descobertas das minas de ouro.


Os homens de posse, os donos do poder, as Ordens Terceiras e as
Irmandades interessaram-se pelas artes e vieram a contratar muitas obras de
arte sacra: a própria construção dos edifícios de reunião e oração, as obras de
decoração, obras de entalhe, esculturas, pinturas, vestuário e paramentos,
composições musicais, etc. Tudo isto junto ao mercado interno, junto aos
fornecedores e provedores de serviços que então viessem se apresentar nas
Minas. Mas a Administração Real não facilitava a concretização de tais obras,
pois que não eliminava as restrições à obtenção dos conhecimentos técnicos, à
formação e ao treinamento da mão-de-obra, ao contato com os centros mais
avançados; permitia que se fizesse, mas não criava ambiente institucional
favorável. Uma atitude de quem diz: podem fazê-lo, se é que conseguem. E, de
fato. Como é que vieram a ser realizadas aquelas obras, como é que vieram a
40

ser atendidas aquelas demandas? Somente com o tempo, dir-se-ia. Um século


inteiro fora necessário para se evoluir do zero à realização de projetos como
aqueles que vieram exibir Mariana, Ouro Preto, São João d’el-Rei e Congonhas
do Campo.

Certamente a construção civil era um dos poucos setores onde os homens


livres de poucas posses podiam ganhar dinheiro, empregar-se. Juntaram-se
esforços, portanto. Um engenheiro militar reinol com horas vagas, uns
pedreiros experimentados que para cá vieram, alguns vindos do Rio, da Bahia,
ou de Pernambuco, uns homens desocupados ávidos para ascender na escala
de valores, ou simplesmente escapar da fome, uns religiosos que
contrabandeavam cópias de riscos de igrejas e gravuras da Europa, Irmãos
que conseguiam colaboração externa e entre as suas Irmandades... Várias
hipóteses podem ser formuladas quanto ao acontecido. Provas concretas,
porém, dependem um pouco do quanto se crê nas anotações oficiais e
oficiosas, nos depoimentos de testemunhas ocasionais, nas interpretações
esparsas registradas pela historiografia e o quão satisfeito com tais
informações o pesquisador venha achar-se. A formação da mão-de-obra
necessária fazia-se na execução dos trabalhos, aos tropeços, com certeza;
alicerces mal feitos, paredes que ruíam ou que ficavam demasiadamente
tortas, janelas desalinhadas, desproporções nas figuras esculpidas, pinturas
em tábuas que se empenavam, etc. Nada de excepcional constituem esses
acontecimentos, a bem da verdade. O extraordinário é que tais demandas
foram atendidas a partir da ignorância do básico. E, por isso mesmo, não se
poderia esperar uma arte comparável àquela que na Europa então resultara de
mil anos de desenvolvimento e de muita aplicação nos estudos.

Instituições de ensino, nas Minas não havia; somente a partir do Império. As


Ordens Religiosas Regulares que se caracterizaram como promotores da
educação do povo da terra, gentio e gentes de propriedade, não podiam entrar
nesse território. A Administração pública não promovia, mas dificultava a
instrução com a proibição da impressa e da circulação de livros e demais
papéis; sobretudo, evidentemente, daqueles que pudessem atentar contra a
estabilidade do Reino, coisa que dependia de interpretação. Com o tempo, os
filhos das famílias mais endinheiradas iam fazer seus aprendizados noutras
vilas da Colônia, ou em cidades doutros países; de onde traziam ideias novas,
desastrosas para a referida estabilidade das instituições. Essa situação de
penúria das condições de formação intelectual dos mineiros, que então teria
sido menos grave na Bahia e em Pernambuco, estendeu-se no tempo.

Para as construções sacras das vilas mineiras não se podia contar com a ajuda
dos arquitetos e artistas dominicanos que construíram a bela Igreja do Mosteiro
no Rio, ou dos excelentes franciscanos que construíram as Igrejas de Cairú e
de João Pessoa (v. Souza, Alberto. Igreja franciscana de Cairú: a invenção do
41

barroco brasileiro. Arquitextos, 070, mar. 2006) e muito menos com o auxílio
dos temíveis jesuítas; nenhum padre de tais Ordens podia por os pés nas
Minas. Ainda na primeira metade do século XIX tal situação era mantida,
conforme anotou Johann Moritz Rugendas na sua Viagem pitoresca através do
Brasil (São Paulo: Circulo do Livro, s.d., p. 38): “Coisa notável em Vila Rica:
não há conventos; sua ausência surpreende o visitante que ignore que sob o
ministério do Marquês de Pombal a província de Minas Gerais foi interditada às
ordens religiosas.” Ora, o Marquês fora ministro de Dom José I, meio século
antes da visita de Rugendas, e a coisa persistia. Como obter a instrução, o
know-how necessário para a concretização das idéias? Estudos e experiências
de longa duração. Fazendo e aprendendo. Haveria outro caminho possível?
Uma pesquisa acadêmica procurou mostrar que as figuras esculpidas por
Antônio Francisco Lisboa em Congonhas do Campo tiveram por modelo
esculturas portuguesas e estampas dos azulejos de Portugal, bem como
pinturas e gravuras italianas, alemãs e holandesas através do conhecimento de
desenhos e cópias de gravuras correspondentes (v. Davenport, Nancy.
European sources for the prophets at Congonhas do Campo. Barroco – UFMG,
nº 7, 1975, p. 15-20). Essa tese mostra, portanto, que o escultor brasileiro
procurou auxiliar-se de trabalhos já realizados, um expediente que, cabe
lembrar, parece ter sido comum na própria Europa. No presente caso, muito
mais importa salientar que o brasileiro de Vila Rica precisava ter uma idéia de
que cara teria esse tal de Daniel que lhe encomendaram; e o Jonas com a sua
baleia, como seria ele? Nas Minas não se distribuíam santinhos a torto e a
direito e muito menos de qualquer profeta; e isso lá existia? Em seguida, obtido
um desenho da obra, uma cópia de uma gravura que não se sabia ser boa ou
ruim, ainda fora necessário imaginar as medidas adequadas, as proporções de
tais figuras a esculpir, para se dizer o mínimo. Ou seja, o brasileiro criou tudo a
partir daí. Como? Ele tinha talento! Outros não tinham tanto. A então penúria
das condições de aprendizado não foi suficiente para lhe tolher a capacidade
de realização artística, embora, por certo, tenha dificultado ou impedido o
aparecimento de um grupo de expressivos profissionais das artes.

Já corria o século XIX quando Manoel da Costa Ataíde, autor das mais
consideradas pinturas sacras das Minas dos setecentos, solicitou que el-Rei
concedesse licença para a criação de uma Aula de Desenho e Arquitetura em
Mariana (v. Correia Dias, Fernando. Para uma sociologia do barroco mineiro.
Barroco – UFMG, nº 1, 1969). Se a sua petição foi considerada, não se sabe.
Não obstante, essa notícia mostra que já corria um novo século, mais de cem
anos de exploração do ouro e de edificações de novas vilas e arraiais, e ainda
não se dispunha de uma instituição de ensino profissional para a construção
civil. Com a vinda da Corte para o Rio de Janeiro, o Príncipe Regente tomou
providências para a criação de uma Academia Militar, a qual viera ministrar
aulas de arte militar e de engenharia (inicialmente restrita à topografia, porém),
42

e uma Escola de Belas Artes, destinada a melhor aproveitar os ensinamentos


que os mestres da eufemisticamente denominada missão francesa viessem a
oferecer. Ambas essas instituições foram estabelecidas no Rio, cujos atos de
fundação datam de 1810 e 1816, respectivamente.

Sessenta anos mais tarde, em 1876, o segundo Imperador do Brasil viria


estabelecer uma Escola de Minas em Ouro Preto. Ou seja, somente depois de
quase dois séculos de exploração de ouro e pedras preciosas na base do
improviso. E porque a Metrópole não investira na melhoria das técnicas e da
tecnologia de mineração, coisa que aumentaria os rendimentos das lavras e
prolongaria a sua vida útil? Aqui transparece a feição de transitoriedade da
ocupação portuguesa, o caráter de feitoria que de fato a Metrópole conferia à
Colônia, conforme tese defendida por Sérgio Buarque de Holanda (v. Raízes
do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995).

E nada lia essa gente das alterosas? Lia. Até que lia; pois não integrava os
Inconfidentes um bando de escritores e poetas sonhadores? Alguns até fizeram
estudos na França e na Inglaterra! E a Constituição dos Estados Unidos, assim
como a Riqueza das Nações, do economista liberal Adam Smith, não chegara
a circular entre eles? Mas tratava-se de um exercício perigoso, condutor de
ideias nefastas, conforme acima lembrado. Em 1747, conta Buarque de
Holanda (op. cit., p.120), Antônio Isidoro da Fonseca teve a sua oficina gráfica
fechada por efeitos de Carta Régia que mandava, ademais, sequestrar “as
letras de impressa” e remetê-las à Metrópole. Alegava a Carta não ser
conveniente a impressão de livros e outros papéis no Brasil, porquanto seria
mais cara e tão demorada quanto obter de Lisboa as licenças necessárias, lá
imprimi-los e trazê-los prontos aos brasileiros. Lembrava a mesma Carta
quanto à necessidade de se obter as licenças da Inquisição e do Conselho
Ultramarino, sem as quais nenhum impresso podia ser posto em circulação.
Imagina-se, portanto, que nas Minas a leitura devia ser coisa de um extrato
social privilegiado, perfeitamente acorde com a ideia da necessária estabilidade
das instituições, ou então de uma nata social feita de gente muito corajosa.

Passados mais de cinquenta anos, John Mawe, um estudioso inglês que veio
conhecer o país, ainda iria relatar que a educação dos habitantes de
Diamantina era muito deficiente, geralmente se mostrando alheios à ciência e
exibindo apenas restritas noções sobre as coisas de utilidade ou de uso
comum (Ávila, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas. Belo Horizonte:
UFMG, vol. I, p. 124). E um exemplo do então cerceamento do ensino e dos
estudos foi dado por providência firmada pelo próprio Príncipe Regente:
através de comunicado aos governadores-gerais das capitanias do norte,
determinou que impedissem a entrada de “um tal barão de Humboldt, natural
de Berlim”, pois que a sua viagem parecia suspeita e “prejudicial aos interesses
políticos da Coroa” (S. B. de Holanda, op. cit., p. 121).
43

A profissão de naturalista parecia soar muito mal aos ouvidos oficiais do Reino;
talvez, tanto quanto as diferentes ideologias vieram parecer aos agentes
governamentais em diferentes momentos da história da República. Em fins do
século XVIII, José de Sá Bittencourt Câmara, profissional que se dedicava à
mineração e metalurgia, deixou anotado que corriam perigo aqueles que
sabiam fundir o ferro, lidar com o salitre e fabricar a pólvora. E que, por causa
de tais conhecimentos, foi perseguido e encarcerado e, uma vez libertado,
decidiu fugir para a Bahia e renegar a sua profissão, então apelidada de
naturalista, disse ele (v. Affonso Ávila, op. cit., p. 120). Eis que a fuga da região
das Minas, ou das vistas das autoridades do Reino, não era tão somente de
homens escravizados que iam formar os seus quilombos, ou de malfeitores e
devedores relapsos que se escondiam das suas obrigações fiscais, mas de
gente boa também, fazendeiros, criadores de gado, comerciantes, profissionais
autônomos e mão-de-obra treinada ou com algum conhecimento, que partia
com as suas famílias para desbravar o sertão e fundar novas povoações –
conforme registra Waldemar de Almeida Barbosa in A decadência das minas e
a fuga da mineração (Belo Horizonte: UFMG/Centro de Estudos Mineiros,
1971). Mesmo quando permitidos, aponta esse historiador, tais movimentos de
empreendedores eram muitas vezes mal vistos pelas autoridades, pois que
implicavam na retirada de capitais e da mão-de-obra escrava tão reclamada na
mineração do ouro. E as intrigas e delações eram comuns, e os castigos eram
severos, tivesse a acusação fundamento ou não. A vontade de fugir, de tentar
a sorte mais longe devia ser frequente.

Saint-Hilaire (op. cit.) dá notícias de povoados que se formaram a partir da


reunião de fugitivos das lavras e do fisco real. E Rugendas aponta que, “uma
vez fundido o ouro, cobradas as correspondentes despesas e recolhido o
quinto... o metal era na maioria exportado, pouco dele ficando no Brasil” (op.
cit., p. 71). Sumiam, pois, o metal e o garimpeiro. O produto e o produtor.

O imposto sobre a extração do ouro era cobrado segundo uma alíquota


específica de 20% sobre o peso do produto; ou seja, o titular da lavra, aquele
que obtivera o direito de explorá-la, devia recolher aos cofres públicos um
quinto do total obtido. Um imposto com alíquota de vinte por cento não parece
um absurdo para os atuais contribuintes brasileiros, posto que hoje a maioria
acha-se cotidianamente submetida a alíquotas mais altas, ou muito mais altas.
Assim, aos olhos contemporâneos e tendo-se em conta as crônicas da época,
a sonegação parece ter sido grande e corriqueira naqueles tempos e paragens.
Entretanto, já em pleno período de decadência das minas, o fisco real passara
a exigir um recolhimento total (tantas arrobas de ouro por ano) que vinha
equivaler a uma percentagem crescentemente superior aos 20% da produção
efetiva, porquanto essa declinava ano a ano (v. W. de Almeida Barbosa, op.
cit.). Esse fato levou a repetidas declarações de derrama, à exigência arbitrária
44

daquilo que as autoridades estimavam estar faltando, o que, não raro, era
acompanhado de abusos de poder e castigos impiedosos.

Conforme ponderou K. Clark com relação à dada circunstância na história da


Europa (op. cit., p.241), “pode ser difícil definir o que venha a ser civilização,
mas não é tão difícil reconhecer a barbárie”. E fazer cavalos bravios arrastar o
corpo de uma pessoa pelas ruas empedradas da vila não parece deixar dúvida
de que se trata de barbarismo. E os reinóis não ficavam somente nisso. Aqui,
as cabeças dos revoltosos eram às vezes recebidas com festejos. Em 1729, a
indignação causada pelo peso dos tributos e a ameaça de uma derrama
levaram Pascoal da Silva e Felipe dos Santos a organizarem uma revolta em
Vila Rica, indo à Vila do Carmo (Mariana) intimar o governador-geral da
capitania a revogar o “imposto do quinto” e fechar as casas de fundição. Essa
cândida exigência, posto evidenciar a ignorância dos revoltosos quanto aos
limites da competência legal dos diferentes níveis de governo, foi aceita sem
reservas pelo Conde de Assumar, o então governador-geral. Acalmados,
retornaram aqueles às suas tarefas cotidianas, dando tempo ao Conde de
preparar as suas tropas e dirigir-se a Vila Rica para por cobro às coisas:
invasões generalizadas das residências, maus tratos distribuídos à vontade,
promoção de incêndios diversos, encarceramentos, destruição e queima
sumária de todas as propriedades do rico Pascoal da Silva e morte de Felipe
dos Santos por arrastamento do seu corpo atado às caudas de dois cavalos,
pelas ruas da cidade. Exemplar! Barbárie pura. Arte e civilização? Como
realizar tais disparates num ambiente como aquele? (Espinheira, Ariosto.
Viagem através do Brasil. São Paulo: Ed. Melhoramentos, vol. 4, p. 47.)

Também a intriga, fazia parte do cotidiano. Felisberto Caldeira Brant não foi
nenhum revoltoso, ao contrário, mesmo após as injustiças que sofrera,
demonstrou fidelidade a el-Rei. Fora um próspero Contratador do Distrito
Diamantino que, em 1753, tornou-se alvo da inveja, da intriga, da
arbitrariedade, das tramas arranjadas nos gabinetes das autoridades do Reino
no Arraial do Tejuco. Preso, seus bens confiscados, sua família declarada
infame, foi remetido a Lisboa, lá condenado e encarcerado. (A. Espinheira, op.
cit., p. 88).

A Inconfidência Mineira constitui o episódio mais ilustrativo do barbarismo que


então caracterizava as terras brasileiras. Em 1789, descobrindo os arranjos da
revolta, as autoridades de governo agiram rapidamente com encarceramentos,
degredos, punições e enforcamento e esquartejamento do principal
comandante dos revoltosos. Segundo historiadores, os Inconfidentes teriam
sido temerários, pois que ainda não contavam com o compromisso de líderes
de outras províncias. E tampouco nas Minas eram respaldados por forte
adesão ( v. Affonso Ávila, op. cit., p. 121 & A. Espinheira, op. cit., p. 95-101 ).
45

A cabeça de Joaquim José da Silva Xavier foi recebida em Vila Rica com
festejos, celebrando-se a volta à tranquilidade e ao respeito às leis do Reino.
Até mesmo uma música foi composta especialmente para a celebração de um
Te-Deum de graças pelo bom sucesso das coisas.

No Arraial do Tejuco tais acontecimentos não teriam lugar, pois que aí se


tratava de um distrito regido por leis ainda mais severas, onde a liberdade de ir
e vir não existia. Diamantina era um enclave dentro do então Estado do Brasil
(v. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 103). Também nesse distrito
diamantino a entrada das Ordens religiosas era terminantemente vedada,
enquanto a fundação das Ordens Terceiras e das Irmandades e a construção
das suas igrejas eram assunto do Poder Público, do Contratador e autoridades
do Reino, conforme já lembrado.

Embora Portugal fosse oficialmente um país de religião católica, os interesses


do Estado e da Igreja pareciam sempre conflitantes entre si. A concordância
entre as duas partes mostrou-se variável no tempo e dependia das
circunstâncias. Há muito parecia existir uma idéia de supremacia do poder
estatal vis-á-vis poder eclesial, pois que vinha da Idade Média o
reconhecimento de que o poder do Rei emanava da vontade Divina. Antigo
expediente de conversão dos bárbaros e coisa de visigodos adeptos da
doutrina de Arius, dir-se-ia. Ademais, el-Rei era Grão-Mestre da Ordem de
Cristo, direito confirmado pelo Papa João III na bula Praeclara carissimi,
juntamente com o privilégio do padroado nas novas terras descobertas pelos
portugueses. Em função de tal privilégio, cabia à Coroa cobrar o dízimo, prover
o sustento dos padres seculares, decidir sobre a construção das igrejas, além
de providências e decisões que, pouco a pouco, passaram a ser requeridas
como de direito pelo monarca e contestadas como próprias da Igreja pelas
autoridades eclesiásticas. Entre tais questões de direito figurava a decisão
sobre o funcionamento e o currículo dos seminários religiosos e, até mesmo,
sobre a efetivação do cargo de bispo, o então denominado placet. E a
nomeação de um bispo não raro era feita por el-Rei ad referendum do
Pontífice. Tais conflitos, que vieram agravar-se com o tempo, vigoraram
durante o Brasil Colônia, claro está. Mas, não só. Vigoraram também durante o
período Imperial, pois que entendia Dom Pedro II ser igual herdeiro daqueles
antiquíssimos direitos.

A Querela das Investiduras, referente ao conflito entre o Papa e o Imperador


Romano Germânico do Ocidente quanto à nomeação dos bispos, não foi coisa
restrita aos alemães e à Idade Média, portanto. Aqui também teve lugar uma
querela brasileira, que no seu auge tomou o nome de a Questão Religiosa,
com a proibição da formação de novos frades, o encarceramento de bispos por
46

ordem do Imperador (em 1873) e a interveniência do Vaticano através de carta


e Bula (em 1876). Eis, pois, que aqueles cerceamentos da liberdade eclesial
nas Minas dos setecentos, aquelas determinações administrativas em assuntos
de foro interno da organização católica, aquele jogo de interesses que envolvia
em contradições o clero regular, o clero secular, as irmandades e as
autoridades reinóis não ficaram lá atrás, mas foram trazidos ao século XIX e
inícios do século XX, períodos em que a ação do Estado passou a receber a
influência adicional das novas organizações e credos que então surgiam. (v.
Amoroso Lima, Alceu de. Síntese da evolução do catolicismo no Brasil in
Enciclopédia Delta-Larousse. - Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. Delta, Tomo IV,
p. 1944-76 & Sérgio Buarque de Holanda, op. cit.)

Quando da sua visita ao Brasil, no segundo decênio do século XIX, Rugendas


anotou que Vila Rica dispunha de todo um aparato urbano; de igrejas, de
residências para as autoridades provinciais, etc. “Do ponto de vista artístico,
porém, esses edifícios nada apresentam de notável”, observou (op. cit., p. 37).
O desenhista e estudioso alemão, a quem se deve boa documentação ilustrada
sobre o Brasil de outrora, aqui chegava de uma Europa onde a arquitetura já
realizara maravilhas – Versailles, há mais de um século tinha sido concluído;
prontos também estavam o Palácio-Convento de Mafra e o Aqueduto das
Águas Livres em Portugal, que ele mesmo cita como obras admiráveis; e, no
seu próprio país, já se podia contemplar uma das mais preciosas realizações
do rococó, o Santuário de Vierzehnheiligen. Instintivamente, profissional de
conhecimento da estética, deve ter comparado, com certa pressa, porém, as
experiências das montanhas mineiras com as joias da arquitetura da Baviera,
por exemplo. Pois é. Incompreensível. Porque el-Rei não empregou na Colônia
os seus bons arquitetos, que conheciam o requinte do retângulo de ouro, das
paredes-celulares e das coberturas laminadas, dispensados que estariam pela
preferência então dada aos estrangeiros - pergunta-se. E os seus músicos-
compositores também, uma vez que teriam sido preteridos no palácio em favor
do sofisticado Domenico Scarlatti. Ou, pelo menos, permitisse que as Ordens
regulares da Bahia e de Pernambuco, conhecedoras que eram da arte de
construir, viessem dar uma mãozinha nas Minas. Mas, qual? Embelezar e dar
chances de civilização à feitoria brasileira? Rugendas, assim como Saint-
Hilaire, parece nunca ter entendido tais coisas.
47

5. Depois de Vila Rica

Em 1759 os Jesuítas foram expulsos de todas as terras do domínio português,


acontecimento que deve ter levado a que os religiosos das demais Ordens
pusessem as suas barbas de molho. E até mesmo aqueles do Clero secular,
pois que tanto dependiam do padroado real, enquanto os membros das
Irmandades devem ter ponderado se era mesmo prudente envolver-se com as
coisas da religião. Na Europa circulavam umas idéias materialistas, aprontava-
se uma revolução sanguinária e a Companhia de Jesus acabaria por ser
interditada pelo Papa Clemente XIV, enquanto, aqui, o movimento de Vila Rica
iria terminar com degredos e degolas e as minas de ouro e diamantes iam
render cada vez menos, levando a repetidas e impiedosas derramas.
Entretanto, ainda assim, deu-se continuidade às obras da Igreja do Carmo em
Mariana e às esculturas do Santuário do Bom Jesus em Congonhas do Campo,
entre outras realizações maiores. Depois disso, as construções de cunho
religioso seguiram um ritmo mais lento e pouco a pouco a arquitetura iria deixar
esse campo de exercício em favor dos edifícios da administração pública, das
instalações fabris, dos viadutos ferroviários e das grandes pontes. Aliás, uma
mudança de área de atuação que também se verificou na Europa.

Não foi nula, porém, a experiência brasileira de arquitetura sacra no século


dezenove. Ao contrário, apareceram novas ideias e novos exercícios foram
realizados. A declaração da Independência e a fundação do Império do Brasil
abriram novos horizontes, mesmo que isso tenha significado influências de fora
ou adoção de concepções em voga no exterior, mais uma vez. Surge então um
estilo Império Brasileiro, cujas construções, embora tomando a feição
dominante do classicismo, não deixam de exibir motivos próprios da arquitetura
brasileira anterior, conforme apontam os estudos de Alberto Souza e Nestor
Goulart Reis Filho (v. Souza, A. Origens da arquitetura classicista do Império in
Palladio e o Neoclassicismo. PUCRS: I. Misoguchi & N. Machado Org., p. 151-
170 et Reis Filho, N. G. Quadro da arquitetura no Brasil. Resenha de Affonso
Ávila in Barroco – UFMG, nº 3, 1971, p. 57-8).

Observa-se, pois, que a arquitetura nacional do século XIX e inícios do século


XX viera incorporar ideias, criações e motivos de construções brasileiras
anteriores e daquelas que ora faziam sucesso no exterior, bem como adicionar
concepções novas, tipicamente autóctones, inspiradas no rico meio-ambiente
social e natural do país. Na arquitetura sacra, ademais, aqui e acolá, esse novo
movimento parece revelar, nas suas audácias, uma tentativa laicisadora, talvez
decorrente das interferências do poder público nos assuntos da Igreja,
ajudadas então pela influência das novas organizações e credos, durante o
período da Questão Religiosa a que já se fez referência. Essa, todavia, é uma
48

tese que talvez carecesse de maior investigação, porquanto tais audácias


podem ter sido resultantes de fortuitos entusiasmos, por exemplo. Eis que a
exemplo das construções de estilo enfeitado do Arraial do Tejuco, ora vinham
aparecer umas capelas com cara de simples e acolhedoras pequenas
residências. Contudo, não se pode negar que nas cidades do interior dos 800 e
inícios dos 900 foram construídas bonitas capelas e igrejas, as quais
assumiram porte destacado, às vezes.

A Igreja de N. S. do Monte do Carmo, Matriz da paróquia do Carmo, pequena


cidade fluminense situada na beirada interior da Serra do Mar, foi concluída em
1877 e constitui elegante exemplo do estilo Império Brasileiro – denominação
convencional ora adotada, tendo-se em conta os referidos estudos do Prof.
Alberto Souza. A par da inspiração clássica que caracteriza o edifício, a sua
decoração externa é ilustrativa da manutenção daqueles motivos presentes na
arquitetura brasileira antiga e da introdução de novos elementos próprios do
país: o arco sobre a cornija da frontaria encontradiço nas Minas dos
setecentos, os beirais com telhas de cerâmica vitrificada e ornamentada em
azul e branco, comuns no Rio de Janeiro, e as pilastras e demais peças de
pedra, inclusive os grandes painéis frontais, tudo em gnaisses claros naturais
da serra fluminense, enquanto a posição da torre sineira junto ao tardoz faz a
novidade maior. A atenção do observador é igualmente atraída pela simetria
dos elementos de composição e decoração do edifício, pelo equilíbrio dos seus
volumes. Não parece fácil decretar que se trata de um academicismo pura e
simplesmente. Da simples concretização de ideias importadas, pois que,
ademais, exóticos ao ambiente brasileiro também se mostram os elementos
tomados do barroco e do rococó.

N. S. do Monte do Carmo; Carmo, RJ


49

N. S. do Monte do Carmo; Carmo, RJ

A Igreja Matriz da cidade de Pedro do Rio mostra que, também na sua


construção, elementos decorativos tradicionais foram mantidos; tais como as
volutas no frontão e os pináculos nos topos das pilastras. Mas testemunha,
ainda, que a inspiração clássica estendeu-se para cá da metade do século XX,
pois que data de 1985 a ampla reforma do edifício mais modesto que aí tinha
lugar.

Matriz de São Pedro; Pedro do Rio, RJ


50

Matriz de S. Pedro; Pedro do Rio, RJ

Pedro do Rio situa-se às margens da velha rodovia União e Indústria, a qual


era acompanhada pelos trilhos da antiga Leopoldina Railways, ao longo de
vários trechos. Abertas ao tráfego nos anos 800, essas duas estradas vieram
servir a numerosos povoados e pequenas cidades do interior fluminense e
mineiro. Assim, adiante de Pedro do Rio acha-se o distrito de Hermogêneo
Silva, que exibe outro exemplo do denominado estilo Império Brasileiro. A
pequena igreja parece um primor do classicismo do país, pois que na fachada,
por exemplo, estão presentes elementos de inspiração clássica que, não
obstante, vêm de construções aqui realizadas muito anteriormente. Situada
numa destacada elevação do terreno e se juntando de edifícios auxiliares de
igual estilo, essa igreja vem compor todo um sítio neoclássico de muita graça.

N. S. das Dores; Hermogêneo Silva, RJ


51

N. S. das Dores; Hermogêneo Silva, RJ

Mas essa onda do imperial brasileiro não esteve restrita às proximidades da


Corte do país. Mesmo lá na região interiorana dos minérios mineiros, aquele
risco básico tradicional, de uma porta e duas janelas, vai aparecer com
decoração de inspiração helênica. Assim, essa foi a marca escolhida pela
comunidade de Núcleo João Pinheiro, a antiga Sede, para distinguir a sua
igrejinha de N. S. da Conceição. Nessa pequena construção atrai o olhar do
observador o entablamento decorado da frontaria, com as suas guirlandas e
figuras da geometria no friso, a cornija ressaltada sublinhada por uma fieira de
pequenos mútulos, além dos destacados fechos dos arcos do portal e das
janelas. Por fim, as cores claras sugerindo coisa da Grécia a realçar o frontão
clássico triangular, o qual há tanto tempo já se incorporara à arquitetura sacra
de Portugal e do Brasil.
52

N. S. da Conceição; Sede, MG

Logo a mistura de motivos originários de variadas fontes e a liberdade de


criação foram assumindo crescente presença nessa maré de novas ideias e de
novo ambiente institucional do século XIX. Tais fatores parecem estar bem
exemplificados na Capela de N. S. do Carmo do pitoresco lugarejo de Alberto
Torres, nas proximidades de Pedro do Rio. Frontão interrompido, com arco
abatido e volutas de rolo, torre sineira ao lado do edifício, à moda do litoral,
arco português ornamentando as janelas, gregas percorrendo todos os alçados
53

e novas volutas de rolo nas escadas do alpendre, o qual, em particular, confere


aí um ar de entrada de residência, mais do que de porta de igreja.

N. S. do Carmo; Alberto Torres, RJ

Esse laicismo ou aspecto residencial mostra-se ainda mais patente na Capela


do Sagrado Coração, do povoado de Barra Mansa, pertencente ao mesmo
54

citado município de Pedro do Rio. Aqui, novamente, transpareceriam aquelas


interferências administrativas e influências alheias ao credo católico a que se
fez referência parágrafos acima. Uma tese relativa à denominada Questão
Religiosa, como se disse.

Sagrado Coração; Barra Mansa/PR, RJ


55

6. Novos exercícios

Ao mesmo tempo, o estilo Império Brasileiro passou a receber mais e mais a


influência de novas criações estrangeiras, às quais aqueles traços de
inspiração clássica foram cedendo lugar. Dentre tais criações novas, o art deco
francês aqui ganhou incontestável aceitação. Sendo o deco uma mistura por
natureza da sua própria concepção, as propostas francesas podiam ser
modificadas e enriquecidas coerentemente com motivos característicos do
meio-ambiente brasileiro. Assim, tais propostas, primando pela elegância e o
bom gosto, reanimando proposições antigas e acolhendo invenções do
momento, foram prontamente adotadas no país. E, aqui, incorporando
elementos autóctones, o deco veio revelar-se despreocupadamente triunfalista.

Nos primeiros decênios do século XX a construção civil experimentou forte


expansão em todas as regiões brasileiras, favorecida que foi por um
sustentado surto de crescimento econômico do país, pelo aumento da sua
população e do respectivo grau de urbanização e pela consequente fundação
de novos municípios, que implicaram em novas prefeituras e demais prédios de
administração pública. E, com muita frequência, os novos edifícios vieram
exibir a inspiração deco; desde as mais simples casas de comércio até as
obras de maior expressão, de norte a sul e de leste a oeste, as construções
passaram a ostentar aquela cara nova. No Rio de Janeiro, a estátua do Cristo
Redentor e o edifício da Central do Brasil com a sua Torre do Relógio são
exemplos corriqueiramente citados, mas até mesmo uma cidade inteira foi
erguida em deco: Goiânia, que então se construía para sede da nova capital do
estado de Goiás.

Na arquitetura das igrejas os motivos deco foram sendo introduzidos pouco a


pouco e em todas as regiões; ora nos momentos de reforma dos edifícios ora
nas construções que então se iniciavam. Por vezes introduzia-se apenas um
frontão escalonado em substituição ao triângulo tradicional, o que de certa
forma também significava um elemento gótico no lugar de um elemento
clássico; pois que esses frontões escalonados do deco, de fato, foram tomados
de empréstimo ao gótico do norte da Europa continental. A pequenina igreja de
N. S. Aparecida do distrito de Amparo, no município fluminense de Nova
Friburgo, ilustra esse deco simplificado, ora mostrando um frontão escalonado
numa fachada onde sobressaem aqueles traços do laicismo a que se fez
referência anteriormente.
56

N. S. Aparecida; Amparo/NF, RJ

Mas, sem demora, uma mistura de motivos de inspiração variada vinha


sobrepujar a tudo. Ou seja, na arquitetura sacra, reforçava-se aquela riqueza
de decoração contrária ao purismo que goza de maior prestigio acadêmico
costumeiramente. O Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, da cidade
de Bom Jardim de Minas, exemplifica essa evolução da arquitetura brasileira
de cunho religioso. A igreja tem origens em 1790, mas as obras definitivas
datariam de 1856; às quais seguiram várias reformas. O resultado hoje
observado decorre das remodelações feitas nas primeiras décadas do século
XX, com restaurações realizadas em 2007. O deco aí está presente, assim
como motivos de inspiração clássica, barroca e até as telhas-de-bico, há
tempos vindas do pagode chinês.

Senhor Bom Jesus de Matozinhos; Bom Jardim de Minas, MG


57

Senhor Bom Jesus de Matozinhos

Deslocando-se do sul de Minas para o centro do estado, dois outros exemplos


dessa mescla de motivos são encontrados na cidade de Curvelo. Primeiro, a
Igreja Matriz de São Geraldo, que, a par da variegada decoração externa, exibe
uma torre sineira junto à abside, posição essa pouquíssimo comum para os
campanários brasileiros. A construção não dispensou, entretanto, duas torres
menores para compor a sua alargada fachada, onde duas portas adicionais
ladeiam a entrada principal. As cores suaves e o gótico da rosácea, das janelas
e do tímpano do portal chamam a atenção do observador. A apreciação da
igreja é facilitada, ademais, pela grande praça que se abre à sua frente.

Matriz de São Geraldo; Curvelo, MG


58

Matriz de São Geraldo; Curvelo, MG

Nessa mesma cidade, a Matriz de Santo Antônio mostra uma bonita fachada,
onde aquele modelo básico tradicional, com duas torres, acha-se claramente
definido: uma porta, duas janelas e o frontão triangular, que ora se apresenta
sob a forma de empenas interrompidas, arqueadas e ornadas com pináculos.
No tímpano desse frontão, a grande cartela com guirlandas dá sequência
vertical à porta ornamentada de frontão e óculo. E tais ornamentos evidenciam
o ecletismo dos motivos utilizados por toda parte. A igreja encontra-se
igualmente bem posicionada ao fundo de uma praça ajardinada do centro
urbano, o que lhe confere muita coerência com a sua pintura de cores suaves.

Santo Antônio; Curvelo, MG


59

Matriz de Santo Antônio; Curvelo, MG

Na zona setentrional do estado, o Santuário de São José, em Araçuaí, exibe


uma torre sineira de grande presença, salientando-se sobremaneira no corpo
do edifício e vindo a demonstrar, mais uma vez, a variedade do exercício
arquitetônico nas cidades do interior. Cores suaves numa estrutura de
destacada altura, que termina por uma cobertura em pirâmide pintada de
vermelho e encimada de uma cruz singela.

Santuário de São José; Araçuaí, MG


60

A partir da segunda metade do século XX, as novas igrejas do interior, ou as


suas remodelações e reformas, passaram a mostrar certas novidades não
somente de decoração externa, mas no que se refere a volumes e elementos
de estrutura, também. Parcimônia nos enfeites externos e internos, construção
de volumes simples segundo estruturas simplificadas, definição de uma ampla
sala de reuniões, orações e celebrações, a um só tempo, à qual se junta uma
sala ou salas para os serviços de secretaria e sacristia, além de uma torre
frontal sobre o nártex, abrigando equipamentos necessários ao edifício e o
campanário no seu ápice. Por vezes prefere-se uma ou duas torres sineiras
para ladear a frontaria com alpendre. Nessas construções mais recentes do
interior sobressai a reabilitação do nártex ou alpendre, o qual veio revelar-se de
grande comodidade nos últimos tempos, particularmente nas ocasiões de
realização de batizados e casamentos em dias chuvosos.

A igreja de Santo Antônio, na cidade goiana de Cocalzinho, cuja atual


construção resultou de ampla reforma do edifício que aí tinha lugar, muito bem
ilustra essa última descrição. O segundo andar da torre sineira, internamente
ainda não concluído, pode vir a abrigar salas de secretaria. O coro, que aí
poderia ser alojado com uma abertura da torre para a nave-salão, é trazido
para junto do altar, numa busca de maior intimidade entre os participantes da
celebração litúrgica, conforme hoje se nota em numerosas paróquias.

Matriz de Santo Antônio; Cocalzinho, GO


61

Também muito ilustrativa dessas novas disposições da arquitetura sacra, é a


Matriz de São João Batista, da cidade de São João d’Aliança, em Goiás, cujo
atual edifício vem de reforma recente. Essas obras, não obstante, mantiveram
certas características da construção anterior, como a existência de duas torres
ladeando da frontaria, onde agora se destaca o alpendre.

São João Batista; São João d’Aliança, GO

As remodelações dessas igrejas de Cocalzinho e São João d’Aliança apontam


o tipo de construção religiosa que então passou a ser adotado nas paróquias
do interior. De certo modo, as últimas definições para tanto eleitas pelas
autoridades da Igreja renovam a antiga proposição de grandes espaços livres,
desimpedidos de anteparos que posam dificultar a participação mais direta dos
fiéis nas celebrações litúrgicas. Uma idéia que surgira na Renascença
européia, que veio coincidir com a proposta da igreja-salão dos alemães e que
também veio a ser adotada em várias construções portuguesas. Uma idéia
igualmente identificada com a missão dos pregadores religiosos ou, ainda, uma
recomendação formulada na Conferência católica de 1909 realizada em
Malines, na Bélgica: abrigo para uma assembléia de fiéis. (v. A igreja através
dos tempos in História da Igreja. Ecclesia – ecclesia.com.br; A influência da
liturgia na arquitetura cristã in Arte sacra e iconografia cristã.
franciscanos.org.br; e George Kubler, op. cit., p. 51-52.)

Assim, também são ilustrativas da aplicação dessas orientações as obras ora


em andamento na Matriz de São Francisco, em São Francisco, Goiás, e na
Igreja de N. S. do Carmo, em Paraopeba, Minas Gerais: torre campanária e de
serviços (caixa d’água, casa de força, etc.), nártex-alpendre para facilitação do
acesso, um salão de reuniões, orações e celebrações e salas de secretaria.
62

Estruturas de metal e concreto armado, cobertura de telhas de material


variado, paredes pré-moldadas ou de tijolos furados com revestimento leve,
pisos funcionais, portas e janelas realizadas pela indústria comum de
esquadrias. Enquanto as obras de arte são consideradas apenas
secundariamente, embora algumas paróquias tenham conservado altares e
outras peças de valor histórico.

Matriz de São Francisco; São Francisco, GO

N. S. do Carmo; Paraopeba, MG

Às vezes, junto ao edifício principal, adiciona-se um galpão para as festas do


padroeiro e para as quermesses beneficentes, como no caso da Igreja de N. S.
Aparecida, em Jaraguá, Goiás, cuja amplíssima reforma ora se finaliza. Trata-
63

se, aqui, de uma construção que muito bem complementa a exemplificação das
orientações seguidas a partir da Conferência de 1909. Pois que, embora já se
mostrasse de menor dimensão, essa Igreja de N. S. Aparecida passou por
atualizações que primaram por aqueles recomendados princípios de
simplicidade: resume-se ela a uma torre sineira sobre nártex e um amplo salão,
adoçando-se uma pequena capela e uma diminuta sacristia às laterais do seu
extremo leste. A mesa do altar situa-se ao fundo desse salão, à frente de um
crucifixo de madeira abrigado em nicho raso com moldura de portal de arco
redondo. À vista de tal parcimônia, é de se crer que os severos cistercienses
de outrora não hesitariam aprová-la com louvor.

N. S. Aparecida; Jaraguá, GO
64

7. Proportio integritas claritasque

Proporção, integridade e clareza. Esses são atributos fundamentais da beleza


das coisas na estética tomista, ou seja, no julgamento estético de Santo Tomás
de Aquino, conforme aponta o Professor Umberto Eco no seu estudo Arte e
belleza nell’estetica medievale (Milão: Strumenti Bompiani ed., 1994). Recorda
esse renomado estudioso, que a proporção é o mais antigo dos atributos da
beleza lembrados pelos pensadores, porquanto eleito por filósofos anteriores a
Sócrates, há mais de quatrocentos anos antes de Cristo, portanto. Recorda,
ainda, que no século IV, firmando-se no pensamento da antiguidade grega,
Santo Agostinho propunha ser a congruência entre as partes, suavizada pelo
colorido, o fator responsável pela beleza das coisas. Ou, dito de outro modo,
que a proporcionalidade das partes entre si e o colorido suave respondem pela
beleza do objeto.

Assim, no século XIII, Santo Tomás veio retomar uma diretriz de pensamento já
há muito considerada na estética e que, arisca-se dizer, devia parecer e ainda
hoje pareceria natural aos olhos comuns, ao senso comum. Mas os seus
estudos buscaram desenvolver aquelas velhas ideias com vistas a uma
aplicação mais abrangente, mantendo-se, todavia, no âmbito da doutrina
católica. Decorre, pois, que a proporcionalidade é um atributo que não se
restringe à consideração da beleza dos objetos de natureza física, mas que se
aplica igualmente na apreciação da oratória, por exemplo. Para ter beleza, um
discurso deve pautar-se pela ponderação dos seus argumentos, pela harmonia
das suas partes, pela congruência na sua composição, pela parcimônia nas
suas conclusões. O exagero, o supérfluo, a exaltação, o desequilíbrio não
contribuem para a beleza da obra. Em tudo há sempre um limite natural, um
limite que não pode ser ultrapassado, sob pena de o objeto vir a ser rejeitado
pelo bom senso. As coisas enviesadas, disformes, encrespadas, dilaceradas,
ou desequilibradas quanto aos seus componentes não sugerem beleza.

E para ser proporcional é necessário que a obra, o objeto, a coisa seja


completa, que nada lhe esteja faltando. Na figura de um animal, a falta de um
dos seus membros, por exemplo, comprometerá a consideração da sua beleza
física. Num discurso, a falta de uma conclusão irá torná-lo incompleto e,
novamente, comprometido para a apreciação estética. Como poderá ser
proporcional uma coisa incompleta? A integridade do objeto acha-se, pois,
vinculada à proporcionalidade, ao equilíbrio, à simetria, muitas vezes.

E esse equilíbrio, essa proporção implica em clareza de definições. Para se


concluir pela proporcionalidade, pelo equilíbrio, pela integridade do objeto faz-
se necessário que as suas partes estejam definidas, ou seja, que possam ser
65

claramente identificadas. Se não se distingue com clareza o objeto e os seus


componentes, não se pode pronunciar sobre os seus demais atributos e,
portanto, não se pode opinar conclusivamente sobre a sua beleza.

Proporção, integridade e clareza, os três atributos destacados na estética


tomista que, ao mesmo tempo, significam não apenas requisitos de beleza a
exigir-se da aparência externa dos objetos ou das coisas sob consideração,
mas igualmente da sua própria constituição, a qual, ademais, deve estar
subordinada à sua própria finalidade; pois que não se pode esquecer que tais
raciocínios se fazem no âmbito da doutrina católica, onde o destino do homem
e a finalidade última das suas obras é servir a Deus. Decorre, portanto, que o
julgamento tomista da beleza da obra ou do objeto contemplado dependerá do
seu propósito também, da sua finalidade ou da existência de uma finalidade
coerente com a doutrina católica.

Proporção, integridade, clareza. Harmonia, congruência, equilíbrio, simetria,


parcimônia, ponderação, bom senso, propósito. Há uma análise a se fazer na
apreciação da beleza do objeto. Na visão tomista, conforme aponta Umberto
Eco (op. cit.), belo é aquilo que apraz à compreensão, “id cujus apprehensio
placent”, não somente o “visa placent”, o que agrada à vista. Para Santo
Tomás, o julgamento da beleza envolve uma consideração analítica de
atributos, dentro dos cânones católicos, e não apenas a constatação do
impacto prazeroso ou da sensação de prazer causada pelo objeto em apreço.

O belo é cognitivo, portanto, e o julgamento estético é objetivo. São belas as


coisas que exibem proporção, integridade e clareza. Ou ainda, as coisas belas
exibem proporção, integridade e clareza. Trata-se de proposição ou de
proposições muito fortes, dir-se-ia. Pode-se argumentar contrariamente, claro
está, mas parece difícil negar que essas relações vêm sendo buscadas pelo
homem nas suas realizações ao longo de toda a história.

Não obstante, também consideraram os teólogos da Idade Media a relatividade


de tais proposições estéticas. Vitellione ou Erazmus Ciolek Witel, monge de
origem polonesa e pensador contemporâneo de Santo Tomás de Aquino,
propunha a consideração de dois princípios no julgamento estético: (1) a
variabilidade do gosto ao longo do tempo e segundo o país (ou cultura); e (2) a
visão subjetiva do observador na avaliação estética do objeto (v. U. Eco, op.
cit., p. 107). Argumenta-se, então, que embora se possa identificar certa
proporcionalidade, equilíbrio ou harmonia em dado objeto, esse mesmo objeto
não será considerado belo, necessariamente. Isto porque tais atributos poderão
não ser de valia para o seu observador ou para o observador de dado país.
Contudo, na estética tomista, essa relatividade perderá relevância na medida
em que provar ser contrária à doutrina católica. Ou seja, essa liberdade de
julgamento deve estar subordinada ao princípio de propósito ou finalidade.
66

Muitas dessas ideias antigas parecem válidas nas experiências do dia-a-dia da


atualidade. Na apreciação da fachada de uma igreja, por exemplo, comumente
o observador será levado a buscar a identificação daqueles elementos de
equilíbrio, de balanço, de simetria ou, ainda, a sua atenção será alertada pela
existência daqueles elementos e alertada, ainda mais, quando da falta
daqueles elementos, porquanto, em tal caso, provavelmente contrariará a sua
expectativa costumeira. Poderá ou não considerar belo aquele objeto então
apreciado, conforme pondera Vitellione, mas aqueles elementos tomistas de
proporção, integridade e clareza terão sido procurados, pois que parece
fazerem parte do juízo que geralmente se faz das coisas no mundo ocidental.

Na apreciação do exemplo aqui fornecido pela ilustração da Capela de Itabirito,


em Minas, o observador certamente poderá testar aquelas proposições de
estética. Pode-se afirmar que ora saltam aos olhos a presença daqueles
atributos tomistas da beleza: a proporcionalidade dos elementos componentes
da fachada, ou seja, a sua congruência, a simetria destacada pelo eixo vertical
definido pela sequência portal, ornamento, janela lobada e cruz no vértice do
frontão, a decoração parcimoniosa, não uma sineira, mas o equilíbrio de duas
janelas discretamente acomodando os sinos, a combinação suave das cores, a
clara definição dos limites de cada elemento, etc. Ao mesmo tempo, essa
mesma singela ponderação estética da fachada vem enfatizar, sobremaneira, o
desequilíbrio determinado pela meia-água adoçada à lateral esquerda. Mas tal
detalhe enfeia o conjunto realmente? Não se poderia manter um julgamento
favorável à beleza do edifício ponderando, com Vitellione, que tal juízo pode
variar de pessoa para pessoa? Pois é. Se esse é um edifício onde o belo se faz
presente, depende da avaliação de cada um. Não obstante, aqueles atributos
tomistas, originários da idade clássica, certamente terão sido notados.
67

Nas últimas décadas do século XVIII, o filósofo alemão Immanuel Kant veio
propor critérios novos para a consideração estética das coisas. Contrariamente
a Santo Tomás, aponta que a beleza não é cognitiva, não decorre de uma
concepção racionalmente formulada, não depende da forma em que se
apresenta o objeto, mas tão somente de um julgamento subjetivo por parte do
observador. Esse observador, reagindo a determinado efeito psicológico
recebido, poderá sentir prazer ou desprazer em face de dada obra (de natureza
física ou não) e, consequentemente, julgá-la bela ou não, independentemente
de qualquer atributo que possa ser tido como próprio ou impróprio a tal obra.
Ou seja, as pessoas consideram bela dada escultura, por exemplo, não por
causa das suas proporções, da sua cor, da sua integridade material ou da sua
finalidade, etc., mas simplesmente porque tal coisa lhes traz prazer, porque
lhes parece bonita realmente, porque corresponde à idéia de beleza que
guardam intimamente. (v. Kant, Immanuel. The critique of judgement.
Traduzido do alemão por J. C. Meredith. South Australia: eBooks@Adelaide -
Univ. of Adelaide, 2008. Part I: Critique of aesthetic judgement. Book 1, §1.)

Para Immanuel Kant, portanto, a beleza não está no objeto, mas no sujeito da
observação, no intelecto daquele que faz o julgamento estético. Kant, desse
modo, avança um pouco mais que Vitellione na consideração da relatividade
desse tipo de julgamento.

Considera, ademais, que não estando vinculado às possíveis propriedades ou


finalidades do objeto (se bem elaborado ou não, se utilizável ou não) o
julgamento estético feito pelo observador é um julgamento desinteressado, ou
seja, não depende de um possível interesse do observador quanto ao uso,
emprego ou posse do objeto (op. cit., § 2). Com essa proposição adicional,
Kant avança ainda mais no seu raciocínio: não havendo interesse particular no
seu julgamento estético, a beleza identificada pelo observador tem validade
universal; ou seja, se dada coisa é julgada bela por um observador, todas as
demais pessoas deverão com ele concordar (idem, § 6). Sem dúvida, essa é
uma conclusão difícil de ser aceita comumente. Todavia, o próprio Kant alerta
que essa validade universal acha-se condicionada a que o referido observador
seja um correto ou fiel representante do bom senso comum a todas as
pessoas. Caso tal condição não venha a ser verificada, o seu julgamento
perderá validade ou universalidade (op. cit. § 19 e 20).

Por outro lado, embora procurando demonstrar que a beleza decorre de um


julgamento subjetivo puro, independente das propriedades inerentes ao objeto,
Kant aponta que esse julgamento pode ser influenciado por essas mesmas
propriedades. Ou seja, o prazer subjetivo pode combinar-se com a satisfação
intelectual racional transmitida pelo objeto, reforçando-se mutuamente no
julgamento estético feito pelo observador. Tem-se, em tal caso, um julgamento
impuro, uma beleza dependente das propriedades do objeto considerado, que
68

Kant qualifica de “pulchritudo adhaerens”, em oposição à “pulchritudo vaga”, à


beleza libertada de qualquer conceito racional ou de qualificação do objeto.
Não se pode dizer que a regularidade ou a proporcionalidade das coisas tenha
de ser preferida sempre. O que sucede é que o senso comum leva as pessoas
a esperarem que tais propriedades sejam observadas nas coisas do dia-a-dia,
ou seja, nas coisas de interesse particular. E, assim, a ocorrência de tais
propriedades acaba por reforçar a beleza que as pessoas por ventura
identificam quando julgam aquelas mesmas coisas (op.cit., § 16).

Desse modo, também para a estética kantiana proportio integritas claritasque


pode fazer sentido, embora o julgamento venha tornar-se impuro e a beleza um
pulchritudo adhaerens. Contudo, há uma diferença fundamental entre o
pensamento kantiano e o pensamento tomista na consideração da estética,
porquanto o filósofo alemão não adota o ideal cristão de Santo Tomás.

Talvez não seja incorreto dizer que, na maioria dos casos, são impuros os
julgamentos de estética que se faz no correr da vida e que, quase sempre,
trata-se de um pulchritudo adhaerens a beleza porventura identificada na
consideração do objeto. Arisca-se também dizer que na maioria desses casos
de beleza impura, ou pulchritudo adhaerens, aqueles atributos tomistas estarão
presentes no objeto considerado. Ao mesmo tempo, não parece incorreto dizer
que quando, por exemplo, o enlevado fiel elogia a capelinha da sua terra,
possivelmente estará considerando no seu julgamento estético valores alheios
ou adicionais aos critérios tanto kantianos quanto tomistas. É possível que o
seu julgamento seja, de fato, uma avaliação subjetiva de um católico, de um
crente, em concordância com aquelas proposições de Vitellione: a nossa
igrejinha é muito bonitinha; um julgamento dependente da cultura (crença), do
momento e da consideração subjetiva, conquanto associado ao objeto
(adhaerens) e às suas proporções (tomistas).
69

Mas, se a beleza está presente, a arte está também? Essa é uma questão que
parece ter levado muita gente boa à confusão e muitas obras de valor histórico
ao menosprezo. Sem mais tardança, pode-se afirmar que beleza não significa
arte, e tampouco arte implica em beleza. Uma obra é artística porque bem feita,
não porque traz um prazer de ordem estética ao observador. Kant não
reconhece a beleza como um atributo do objeto. E Santo Tomás não
reconhece a beleza numa obra disforme. Uma obra de arte pode vir
acompanhada de beleza, mas não virá necessariamente; quer do ponto de
vista kantiano quer do ponto de vista tomista. Cabe lembrar, a propósito, que
desde a Idade Média a Igreja não nega a existência da arte numa obra
contrária à sua doutrina, nega-lhe, todavia, a sua beleza, pois que não atende
aos propósitos divinos da criação, ao fim último de servir a Deus.

Kenneth Clark, no seu citado estudo (p. 39-40), conta que o austero
cisterciense Bernard de Clairvaux reprovara severamente certas esculturas de
mármore da igreja de Souillac, na França do século XII; particularmente por
terem sido colocadas num local de oração. Bernard de Clairvaux comentara,
então, que aquelas monstruosidades gravadas no mármore, uns burros
imundos, uns leões ferozes, uns centauros horrendos, umas figuras semi-
humanas, uns quadrúpedes de rabos semelhantes a serpentes... em tal riqueza
e variedade de formas se apresentavam e tal atração exerciam que parecia ser
mais interessante passar o dia admirando aquela obra do que se dedicar às
leituras sagradas. Ou seja, para São Bernardo, dizer que aquela obra de
entalhe tivesse beleza era fora de cogitação, mas, sem dúvida, considerava
tratar-se de uma realização artística, uma obra capaz de despertar grande
admiração, de atrair toda a atenção.

Umberto Eco (op. cit., cap. 10), a certa altura dos seus estudos, busca oferecer
um enquadramento teórico para a discussão do que venha a ser obra de arte.
Presentemente, porém, prefere-se dizer que uma obra de arte exprime
capacidade de realização técnica, capacidade de transmitir a mensagem
pretendida, capacidade de criação, originalidade, sutileza, cuidado de
tratamento do material, enfim, trata-se de fazer a coisa bem feita, com
capricho, buscando a perfeição. Quando a essa realização conjuga-se a
beleza, tem-se uma obra artística de admirável destaque, dir-se-ia. Mas,
conforme acima apontado, o julgamento estético costuma mostrar-se muito
variável, ainda que dada obra de arte possa gozar de grande prestígio ou
aprovação por parte de grande número de observadores.

Assim, muitas das nossas igrejinhas do interior poderão mostrar-se pobres de


realização artística, mas nem por isso deixarão de ser belas, ou melhor, muito
bonitinhas, aos olhos carinhosos, aos espíritos devotos e à consideração de
muitos. Igualmente, muitas das realizações artísticas consideradas de valor
poderão receber pouco das atenções voltadas para a beleza do singelo.
70

Você também pode gostar