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29/05/2021 Correio Express » O Outro que não existe e seus comitês científicos*

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O Outro que não existe e seus comitês cientí cos*

Data: 28 mar 2020 Por Éric Laurent


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A epidemia e seus comitês
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Comentário: 0  O que é muito surpreendente nessa epidemia mundial é que todos os governos, ditaduras,
democracias liberais ou não, populismos de todos os tipos e espécies estão sendo levados a
tomar medidas drásticas de gestão da população. Como justi cá-las? Os autocratas puros, Textos Recentes
efetivos ou sonhados, apoiam-se somente em si mesmos. Bolsonaro dá uma banana e Putin
declara que a Rússia está sob controle. Quanto aos outros, o recurso aos comitês cientí cos que Editorial Correio Express Extra nº018
aconselham o governo se apresenta como uma necessidade em um ambiente incerto.
abr 14, 2021

Se considerarmos os casos inglês e francês, observaremos que esse mesmo recurso dá lugar a Apresentação
medidas muito diferentes. Um ponto deve ser salientado já de início: apesar das aparentes
abr 14, 2021
divergências maciças dessas medidas, elas se apoiam sobre os mesmos estudos. O que é tanto
mais fácil de constatar, Darwin oblige, visto que os epidemiologistas ingleses têm um prestígio e
ENTREVISTA* sobre Le sexe des Modernes
uma autoridade mundialmente reconhecidos. Uma longa cadeia de transmissão permitiu que
biólogos evolucionistas ingleses contribuíssem majoritariamente com a “nova síntese”, que abr 14, 2021
reúne a genética mendeliana e a seleção natural darwiniana em uma modelização matemática
da genética das populações. De Ronald Aylmer Fischer a Richard Dawkins e John Maynard Editorial Correio Express Extra nº017
Smith, Oxford e Cambridge produziram uma linhagem impecável de biólogos evolucionistas e dez 24, 2020
epidemiologistas. Voltaremos às eventuais estranhezas das opiniões sustentadas por esses
cientistas, pois biólogo é uma pro ssão de risco. Ela predispõe a generalizações sobre a espécie Pulsão de morte e o supereu feminino. Do gozo in nito e
que podem, eventualmente, parecer estranhas, e até mesmo perigosas. da causa do desejo
dez 24, 2020
Desta vez, não é de Oxbridge que vem a voz de autoridade, mas do Imperial College de Londres.
No dia 16 de março, a equipe de Neil Ferguson forneceu, em tempo recorde, um relatório e uma
modelização de diferentes cenários possíveis, tanto ao governo inglês como ao governo Categorias
francês. Esse relatório foi considerado, por um comitê formado por dez especialistas franceses,
Categorias
como exemplar, ao mesmo tempo porque provinha de uma fonte prestigiosa e porque ousava
apresentar perspectivas aleatórias. Selecionar categoria

A imunidade coletiva e as variações de Ferguson


Mais Lidos
A equipe do Imperial College colocou em números o real da epidemia a partir de duas opções e
de cinco ações possíveis para desacelerar o vírus: “Essas duas opções são quali cadas de Editorial Correio Express Extra nº018
‘mitigação’ (atenuação) e de ‘supressão’ (contenção), elas jogam com cinco tipos de ações: No Responses.
isolamento em domicílio dos casos con rmados; quarentena da família em questão;
afastamento social das pessoas com mais de 70 anos; afastamento ampliado ao conjunto da ECOS - XIII Congresso de Membros da EBP
população; fechamento das escolas e das universidades”(1). No Responses.

A primeira opção, a atenuação, não tem o objetivo de interromper o vírus, mas controlá-lo, por PORVIR - A internet, a biopolítica e as paixões do ser
meio de ações extraídas das cinco ações acima, ao menor nível possível, a m de obter o mais No Responses.
rapidamente possível uma imunidade da população que leve a um declínio do número de casos
quando a proteção coletiva for alcançada, ‘immunity herd’, em inglês. O conceito é brutal em sua
língua de origem: herd, o rebanho. Razão pela qual as traduções eufemizam geralmente o
conceito. Falar de imunidade de grupo ou de imunidade coletiva é mais humano.

“A segunda opção, a contenção, visa a fazer de modo que um dado indivíduo transmita o vírus a
menos de uma pessoa, levando à extinção da epidemia. Essa estratégia utilizada pela China de
maneira autoritária supõe medidas mais radicais que chegam ao con namento de toda a
população. Porém, após cinco meses de um tal regime, a epidemia correria o risco de aumentar
muito rapidamente em caso de interrupção dessas medidas”. De fato, qualquer que seja a
solução escolhida, o que é preciso obter, queiramos ou não, é a herd immunity da população
diante de um vírus com o qual há muito a aprender.

Que se deixe infectar muito ou que se contenha muito, isso não é uma questão de princípio
absoluto, mas uma questão pragmática para a equipe do Imperial College. A base fundamental
do cálculo deve ser o recurso em termos de leitos de CTI dos quais dispõe cada sistema de
saúde. O conceito de “leito” implica, ao mesmo tempo, o objeto e os pro ssionais necessários
para fazê-lo funcionar. E é preciso muita gente.

É por isso que, num primeiro tempo, no dia 15 de março, Boris Johnson, acompanhado de seu
principal conselheiro cientí co (Chief scienti c advisor), Patrick Vallance, e de seu diretor médico
executivo (Chief medical o cer), declarou: “Não é mais possível evitar que todo mundo contraia o
vírus. E isso tampouco é desejável, pois é preciso que a população adquira uma certa imunidade”
(2).

A aplicação do conceito de herd immunity, que vem da teoria das vacinas em uma situação para a
qual não existe vacina, chocou. Patrick Vallance é o antigo chefe de pesquisa e de

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desenvolvimento da GlaxoSmithKline. Sua adesão à lógica do mercado é consumada. E uma tal
declaração, no limite do deixar pra lá (laisser faire), foi certamente inspirada no conselheiro do
Brexit, Dominic Cummings. As autoridades deixaram, portanto, acontecer a meia-maratona de
Bath, pois, segundo o seu raciocínio, pessoas jovens e em boa saúde, caso se infectem,
aumentarão a imunidade geral e haverá, entre elas, poucos casos graves.

Porém, muito rapidamente os números se tornam implacáveis. Para a imunidade é preciso que
60% da população seja infectada, ou seja, 40 milhões de Britânicos. Como atualmente 5% dos
casos são considerados graves, o que signi ca 2 milhões de casos graves, em um mesmo
período de tempo, provavelmente bastante curto, isso deve ser correlacionado com um número
de leitos de CTI similar à França, ou seja, em função da mobilização, entre 5.000 e 7.000 leitos.

O redator-chefe da mais prestigiosa revista médica do mundo, The Lancet, tuitou, portanto:
“Matt Hancock [ministro da saúde] e Boris Johnson a rmam seguir a ciência. Mas não é verdade
[…]. O governo está  jogando roleta russa com o público” (3). Os apelos neochurchilianos de
Boris Johnson preparando a população para perder seres amados não tranquilizaram ninguém,
evidentemente.

De modo mais razoável e menos neoliberal, a equipe de Ferguson indicou uma via que é,
contudo, atordoante pelas restrições que ela vai impor e pela reinvenção de todas as nossas
maneiras de proceder que ela implica. A única via sensata seria fazer alternar períodos de total
con namento com períodos de atenuação das restrições em correlação com o número de leitos
de CTI ocupados nos hospitais. Quando o con namento total tiver liberado um número
su ciente de leitos, será preciso afrouxar as restrições para que uma outra parte da população
se infecte, até que se atinja a imunidade de grupo su ciente. Nos modelos de Ferguson, seria
preciso restrições máximas entre um terço e a metade do tempo, durante 18 meses, até que
uma vacina possa ser desenvolvida e amplamente distribuída. “Essas conclusões alarmantes
fazem eco com os trabalhos do laboratório Inserm-Sorbonne Université Epix-Lab, dirigido por
Vittoria Colizza (Inserm, Sorbonne-Université), mostrando a e cácia e os limites dos
fechamentos das escolas e do desenvolvimento do trabalho à distância” (4). Será longo.
Ninguém diz fundamentalmente o contrário. Viveremos ao ritmo das restrições até a chegada
da vacina.

Os números e o impossível de suportar

Na primeira lição do curso de Jacques-Alain Miller intitulado “O Outro que não existe e seus
comitês de ética” – curso do qual participei ̶ , Miller foi levado a articular certo impasse do
discurso da ciência, que não conseguia mais apaziguar as angústias do sujeito da civilização
contemporânea, mergulhado no sentimento de que tudo é semblante. Esse sujeito é
confrontado com o Outro “em sua ruína” (5). Em nossa civilização, sabemos ‒ “explicitamente,
implicitamente, desconhecendo-o, inconscientemente ‒ que o Outro não passa de um
semblante” (6). O termo semblante é tomado aqui em sua acepção mais ampla. Ele inclui o
cálculo.

Vivemos no império dos semblantes (7). Com essa palavra, Lacan relançava o título do ensaio de
Roland Barthes, O império dos signos. Era o momento de enfatizar o quanto o Japão lhe parecia
próximo da Europa, eminentemente inserido na civilização da ciência, “[o que me agrada é que]
a única comunicação que recebi […] tenha sido também a única que lá, como alhures, pode ser
comunicação, por não ser diálogo: a comunicação cientí ca” (8). O império dos semblantes não
é apenas um dos nomes do Japão, é também um dos nomes de nossa civilização que é revelado.

É a partir da inexistência do Outro que garantiria o real da ciência que surge um outro real para
o sujeito que vive na linguagem. É esse real da angústia, da esperança, do amor, do ódio, da
loucura e da debilidade mental. Todos esses afetos e paixões estarão no encontro marcado da
nossa confrontação com o vírus; eles acompanham, como suas sombras, as “provas” cientí cas.
Como muito bem sublinhara Jacques-Alain Miller: “A inexistência do Outro não é antinômica ao
real, ela lhe é, ao contrário, correlativa. […] É […] o real próprio do inconsciente, ao menos esse
do qual, segundo a expressão de Lacan, o inconsciente testemunha, […] o real quando ele se
revela na clínica como o impossível de suportar.”

O impossível de suportar são também as escolhas irresolúveis que tentam ir além dos comitês
de ética, pois já houve e haverá problemas maiores de ética, seja no nível da medicina como tal,
seja no nível pessoal. No nível médico, um especialista diz simplesmente assim: “A diferença,
hoje, é que renunciaremos a salvar pessoas que, na prática corrente, teriam podido se bene ciar
de tratamentos e sobreviver. A carência de recursos disponíveis determina as escolhas, e não os
critérios médicos habitualmente em vigor” (9).

No nível pessoal, o modo como cada um pode interpretar as medidas de segurança


terrivelmente restritivas que lhe são dadas introduz uma variável importante em todo cálculo
global. O impacto das medidas tomadas nas democracias europeias pode ser su ciente, “mas
isso depende muito do comportamento das pessoas e da maneira como vão aplicar essas
medidas […]. Em um Estado que não é totalitário, trata-se de uma questão de ética pessoal. Isso
pode falsear o modelo num sentindo ou em outro” (10). Sem dúvida, devido a essas incertezas
éticas ̶  que passarão para o primeiro plano em um segundo tempo ̶ , é aos comités cientí cos
que os governos europeus recorreram.

Nosso porvir de restrições digitais

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O con namento deu lugar a manifestações originais de solidariedade e a maneiras de proceder
que ressaltam o sentimento reencontrado de fazer parte de uma comunidade que não é
somente aquela de um rebanho biológico, mas que inventa modos comunitários de fazer
sociedade, tal como os italianos que cantam em coro em suas varandas ou aplaudem os
pro ssionais da saúde. Na Espanha, o desvio irônico da permissão que autoriza levar os
cachorros para passear nos dá testemunho igualmente de uma boa maneira de viver
comunitariamente as restrições insuportáveis que caem sobre as nossas cabeças.

Mas essas restrições, fundadas certamente na ciência, não aliviam a angústia de cada um de nós
quanto ao que nos espera. E é preciso que nos preparemos para poder discutir juntos sobre a
legitimidade dos dispositivos intrusivos que serão instaurados até o desenvolvimento da vacina,
única saída verdadeira.

Na Dinamarca, no dia 12 de março, os deputados adotaram uma lei de exceção que permite às
autoridades utilizarem de coerção para examinar, tratar ou isolar uma pessoa contaminada. A
coerção mais forte e ao mesmo tempo a mais sutil será a utilização de aplicativos de
rastreamento individual para regular as restrições em sua graduação e em sua aplicação. Desde
o dia 17 de março, apoiando-se nos exemplos de Israel e de Singapura, o redator-chefe da MIT
Technology Review antecipava nosso novo porvir digital: “Em última instância, contudo, antecipo
que restauraremos a nossa capacidade de nos socializarmos com segurança desenvolvendo
maneiras mais so sticadas de identi car quem apresenta um risco de doença e quem não
apresenta, e poderemos tomar medidas ̶ legais ̶ contra aqueles que representam riscos. Vemos
as premissas disso nas medidas que certos países adotam atualmente. Israel vai utilizar os
dados de localização dos smartphones que seus serviços de segurança usam na luta
antiterrorista para rastrear exatamente quem esteve em contato com portadores conhecidos
do vírus. Singapura faz o mesmo e publica dados precisos sobre cada caso, dando precisamente
os nomes” (11).

Ao mesmo tempo em que fazemos o que é possível para ajudar os hospitais e os pro ssionais
da saúde a enfrentarem  os imperativos de saúde pública que os esmagam, será preciso,
também, que cada um de nós contribua para elucidar como as práticas de restrições coletivas
com as quais consentimos devem ser elaboradas a m de que permaneçam suportáveis. Não
apenas top-bottom, mas também bottom-up, testemunhando das boas maneiras de responder a
isso. Isso supõe uma transparência dos dados de saúde e das políticas que se elaboram, para
além dos formidáveis esforços de transparência do relatório Ferguson.

* Publicado originalmente em Lacan Quotidien N.874 e gentilmente cedido pelo autor para a Correio Express.

 Tradução: Yolanda Vilela

Notas

(1) Morin H., Benkimoun P. & Hecketsweiler C., “Covid-19: os cenários decisivos de modelizadores britânicos” / “Coronavírus:
modelizações mostram que a contenção do vírus levará vários meses”, Le Monde, 17 mars 2020, disponível aqui:
https://www.lemonde.fr/sciences/article/2020/03/17/covid-19-les-scenarios-decisifs-de-modelisateurs-
britanniques_6033393_1650684.html

(2) Ducourtreux C., “A imunidade coletiva”: estratégia arriscada do Reino-Unido para lutar contra o coronavírus”, Le Monde, 15
mars 2020, disponível aqui: https://www.lemonde.fr/international/article/2020/03/14/immunite-collective-la-strategie-risquee-
du-royaume-uni-pour-lutter-contre-le-coronavirus_6033097_3210.html

(3) Horton R., citado por ibid., disponível aqui: https://twitter.com/richardhorton1/status/1237282270685380613 [The UK
government—Matt Hancock and Boris Johnson — claim they are following the science. But that is not true. The evidence is clear.
We need urgent implementation of social distancing and closure policies. The government is playing roulette with the public.
This is a major error].

(4) Morin H., Benkimoun P. & Hecketsweiler C., “Coronavírus: modelizações mostram que a contenção do vírus levará vários
meses”, op. cit. & “Expected impactof school closureand teleworkto mitigate COVID-19 epidemicin France”, disponível aqui: 
https://www.epicx-lab.com/uploads/9/6/9/4/9694133/inserm_covid-19-school-closure-french-regions_20200313.pdf

(5) Miller J.-A., “A orientação lacaniana. O Outro que não existe e seus comitês de ética” (1996-1997), lição do dia 20 de
novembro 1996, inédito.

(6) Ibid.

(7) Lacan, J., “Lituraterra” (1971), Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 24.

(8) Ibid., p. 25.

(9) Hirsch E. (professor de ética médica na universidade de Paris-Saclay), “Covid-19: escolhas éticas inquietantes aguardam as
equipes médicas”, fórum no site do jornal Le Figaro do dia 17 de março 2020, disponível aqui:
https://www.le garo.fr/vox/societe/covid-19-des-choix-ethiques-redoutables-attendent-les-equipes-medicales-20200316

 (10) Cauchemez S. (epidemiologista do Institut Pasteur e modelizador para a HP-HP (Assistance Publique – Hôpitaux de Paris),
citado por Hecketsweiler  C. & Pietralunga C., “Vírus: as simulações alarmantes para a França”, Le Monde, 17 de março 2020,
disponível aqui: https://www.lemonde.fr/planete/article/2020/03/15/coronavirus-les-simulations-alarmantes-des-
epidemiologistes-pour-la-france_6033149_3244.html

https://www.ebp.org.br/correio_express/2020/03/28/o-outro-que-nao-existe-e-seus-comites-cientificos/ 3/4
29/05/2021 Correio Express » O Outro que não existe e seus comitês científicos*
(11) Lich eld G., “We’re not going back to normal”, MIT Technology Review, 17 de março 2020, disponível aqui:
https://www.technologyreview.com/s/615370/coronavirus-pandemic-social-distancing-18-months/

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