Você está na página 1de 38

Capítulo 10

Tutela dos bens culturais


pelo Poder Público:
competência e políticas públicas

Sumário: 10.1 Competência em matéria de patrimônio cultural - 10.1.1 Competência


administrativa - 10.1.2 Competência legislativa concorrente - 10.2 Políticas Públicas
patrimoniais e Constituição - 10.2.1 As diretrizes constitucionais para as políticas patrimoniais
- 10.2.2 A execução das políticas de proteção dos direitos e bens culturais - 10.3 O Plano
Nacional de Cultura a partir das diretrizes constitucionais - 10.4 Política do patrimônio cultural
e orçamento público - 10.4.1 Políticas públicas patrimoniais e estabelecimento de gastos
prioritários nas leis orçamentárias - 10.4.2 O papel das agências de fomento e os recursos
públicos destinados ao setor privado para implementação das políticas culturais

10.1 Competência em matéria de patrimônio cultural


10.1.1 Competência administrativa
A Constituição não estabelece competência exclusiva em matéria de
patrimônio cultural. As competências são distribuídas no sistema federativo
brasileiro de acordo com as regras de competência comum e competência
concorrente. Nos termos do art. 23, é competência comum da União, dos
Estados e dos Municípios: proteger os documentos, as obras e outros bens
de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais
notáveis e os sítios arqueológicos (inc. III); impedir a evasão, a destruição e a
descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico
ou cultural (inc. IV); proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à
ciência (inc. V); proteger o meio ambiente e combater a poluição em quaisquer
de suas formas (inc. VI). As regras de competência comum fazem referência aos
atos que devem ser praticados em relação à matéria de patrimônio cultural, ao
mesmo tempo em que indicam as balizas para delimitação de uma não atuação
ou de uma omissão dos entes no exercício de suas competências.

Ines Virginia P Soares - dir ao 395 395 12/8/2009 16:04:26


396 Inês Virgínia Prado Soares

Os incisos III, IV e VI do art. 23 distribuem a competência entre os entes


para uso de meios e instrumentos que proporcionem a proteção e a defesa
do patrimônio cultural. Assim, os incisos versam acerca das possibilidades de
atuação dos entes federativos com o fim de proporcionar os meios de acesso
à cultura, à educação e à ciência. Mas não cabe somente ao Poder Público a
defesa dos bens culturais. Além da previsão do art. 225, caput, da Constituição,
que indica o dever da comunidade de defender o meio ambiente e todos os
seus elementos, entre os quais os bens culturais, o texto constitucional também
estabelece a colaboração da comunidade na tutela do patrimônio cultural
brasileiro, por meio da utilização de instrumentos nominados e inominados
(art. 216, §1º). Com isso, a realização das tarefas para a tutela dos bens culturais
devem se dar de modo compartilhado tanto entre os entes da federação como
entre estes e a comunidade (no que for possível).
Os bens culturais materiais e imateriais estão, logicamente, distribuídos em
todo o território nacional, sem a necessária proporção entre desenvolvimento
socioeconômico e presença de elementos culturais (ou seja: não é sempre correta
a premissa de quanto mais desenvolvido economicamente o local, maior a riqueza
cultural). Por isso, todos os entes federativos têm a obrigação de zelar pela
manutenção dos sítios, bens, espaços, edificação e bens culturais imateriais bem
como promover as bases para o surgimento ou a consolidação de outros tantos
bens culturais latentes. A presença de bens culturais em todo o território também
exige que seja desenvolvida uma política pública que conte com apoio dos órgãos
de fomento, do empresariado, da classe política e da comunidade.807
No âmbito da competência material, cabe a todos os entes federativos
compartilharem as funções de proteção, guarda e responsabilidade sobre os
sítios e bens culturais, legislando no sentido de que tais funções devem ser
repartidas entre todos os entes. Nesse enfoque, o Supremo Tribunal Federal
decidiu, em sede de ADI,808 a questão de competência sobre a proteção, guarda
e responsabilidade dos bens arqueológicos.809 A Suprema Corte aceitou a

807
No mesmo sentido, diz Maria Lúcia Franco Pardi: “No tocante à questão patrimonial, podemos dizer que os
vestígios arqueológicos representam os mais regularmente distribuídos pelo território nacional, tendo poten-
cialmente condições de estarem representados em quase todos os municípios. Este aspecto nos permitiria
desenvolver efetivamente uma política nacional e, com certeza, sensibilizar o apoio dos órgãos de fomento, do
empresariado e da classe política, fazendo da arqueologia, não uma atividade diletante, com é vista por muitos,
mas um instrumento de planejamento e desenvolvimento do país” (Gestão de patrimônio arqueológico,
documentação e política de preservação, p. 39).
808
ADI 2544-9, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, julgada procedente pelo Pleno em 28.06.2006.
809
O Sr. Governador do Estado do Rio Grande do Sul propôs ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de
suspensão cautelar, da Lei Estadual 11.380, de iniciativa parlamentar e com o seguinte teor: “Art. 1º – Os sítios
arqueológicos, bem como o seu acervo, existentes no Estado, ficam sob a proteção, guarda e responsabilidade
dos municípios em que se localizam. Art. 2º – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 3º
– Revogam-se as disposições em contrário”. Após citações doutrinárias acerca da competência comum e de
sua irrenunciabilidade (art. 23, III, da CF), da inserção dos sítios arqueológicos no domínio público da União
(art. 20, X, CF) e das implicações, no caso, do princípio da autonomia dos municípios. Para lastrear o pedido

Ines Virginia P Soares - dir ao 396 396 12/8/2009 16:04:27


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 397

argumentação de que o dispositivo de lei estadual que imputava aos municípios


a proteção, guarda e responsabilidade dos sítios arqueológicos e de seu acervo
seria inconstitucional, já que: a) comprometia o equilíbrio que deve existir entre
as três pessoas políticas que compõem a Federação, já que demitia o Estado e
a União de competência que constitucionalmente é sua, além de sobrecarregar
o Município desnecessariamente, b) a operacionalização entre os Entes poderia
perfeitamente ser feita via convênio, como prevê a lei federal de regência,
descabendo ao Estado-Membro derrogar disposição que o Constituinte originário
reservou à lei complementar, e c) afetava a autonomia municipal, porquanto
ao se carrear a responsabilidade pelos sítios arqueológicos, com exclusividade,
aos Municípios, passa-se a exigir destes a mobilização de recursos materiais e
humanos que podem estar para além das respectivas possibilidades reais.
Na ementa do STF fica destacado o entendimento de que a inclusão de
determinada função administrativa no âmbito da competência comum não impõe
que cada tarefa compreendida no seu domínio, por menos expressiva que seja,
haja de ser objeto de ações simultâneas das três entidades federativas: donde
a previsão, no parágrafo único do art. 23 da CF, de lei complementar que fixe
normas de cooperação (v. sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos a
Lei 3.924/61), cuja edição, porém, é da competência da União e, de qualquer
modo, não abrange o poder de demitirem-se a União ou os Estados dos encargos
constitucionais de proteção dos bens de valor arqueológico para descarregá-los
ilimitadamente sobre os Municípios.810

de suspensão cautelar, aduziu que, em permanecendo em vigor a lei ora questionada, ficaria seriamente
comprometida a efetividade da proteção do patrimônio arqueológico no Estado do Rio Grande do Sul, sendo
certo que tais danos são irrecuperáveis, com o que se mostra de rigor a concessão da liminar. Os Municípios,
sem o concurso do Estado e da União, não terão condições de evitar que a riqueza arqueológica que neles
se localiza venha a sofrer mudanças que a tornam imprestável para o fim a que era destinada. A Assembléia
Legislativa do Estado argumentou que não há no Rio Grande do Sul sítios arqueológicos de vulto, que mereçam
a preocupação do Poder Executivo na ADIN que impetrou. Alegou que, se fosse descoberto um grande sítio,
o Estado e até a União seriam chamados a participar, face a importância do evento. Por isso não haveria
justificativa jurídica a embasar o pedido de decretação de Lei Inconstitucional”.
810
Em 12.05.2002, o STF deferiu a medida cautelar pleiteada para suspender, até a decisão final, a eficácia da
referida lei. O teor da decisão foi repetido no acórdão proferido em 28.06.2006, que julgou procedente a ADI:
“EMENTA: Federação: competência comum: proteção do patrimônio comum, incluído o dos sítios de valor
arqueológico (CF, arts. 23, III, e 216, V): encargo que não comporta demissão unilateral. 1. L. Est. 11.380, de
1999, do Estado do Rio Grande do Sul, confere aos municípios em que se localizam a proteção, a guarda e
a responsabilidade pelos sítios arqueológicos e seus acervos, no Estado, o que vale por excluir, a propósito
de tais bens do patrimônio cultural brasileiro (CF, art. 216, V), o dever de proteção e guarda e a conseqüente
responsabilidade não apenas do Estado, mas também da própria União, incluídas na competência comum
dos entes da Federação, que substantiva incumbência de natureza qualificadamente irrenunciável. 2. A
inclusão de determinada função administrativa no âmbito da competência comum não impõe que cada tarefa
compreendida no seu domínio, por menos expressiva que seja, haja de ser objeto de ações simultâneas das
três entidades federativas: donde, a previsão, no parágrafo único do art. 23 CF, de lei complementar que fixe
normas de cooperação (v. sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos, a L. 3.924/61), cuja edição,
porém, é da competência da União e, de qualquer modo, não abrange o poder de demitirem-se a União
ou os Estados dos encargos constitucionais de proteção dos bens de valor arqueológico para descarregá-los
ilimitadamente sobre os Municípios. 3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (ADIN 2544/
RS. Relator Ministro Sepúlveda Pertence. O Tribunal, por maioria, julgou procedente a ação direta para declarar

Ines Virginia P Soares - dir ao 397 397 12/8/2009 16:04:27


398 Inês Virgínia Prado Soares

10.1.2 Competência legislativa concorrente


A competência legislativa concorrente está prevista no art. 24 da Constituição.
Neste artigo fica fixada a prevalência da União na edição de normas gerais.
Portanto, no que tange aos bens culturais cabe aos Estados e ao Distrito Federal
suplementarem a legislação federal (art. 24, §2º) com a finalidade de tutelar os
bens culturais, materiais ou imateriais, que se revelem relevantes para a memória,
identidade ou ação da comunidade que habita a região. Os Municípios, por força
dos incs. I e II do art. 30 da Constituição, podem legislar para suplementar as
normas federal e estadual que versem sobre bens culturais, com o objetivo de
atender aos interesses culturais locais.
Assim, no que toca à competência para legislar sobre patrimônio cultural,
cabe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios, de modo concor-
rente, estabelecerem as leis sobre: proteção ao patrimônio histórico, cultural,
artístico, turístico, paisagístico (inc. VII); responsabilidade por dano a bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (inc. VIII).
Embora os Municípios não estejam mencionados para o exercício da competência
legislativa concorrente, por força do art. 30, inc. II, podem legislar de modo
suplementar à legislação federal e estadual no que couber. A legislação em matéria
de patrimônio público é cabível, já que o inc. IX do mesmo art. 30 estabelece
competência para promover a fiscalização do patrimônio histórico-cultural local,
devendo observar a legislação e a ação fiscalizadora federais e estaduais.
A Constituição dispõe que os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão
punidos, na forma da lei (art. 216, §4º). Nesse esteio, quanto à produção legislativa
concorrente em relação à responsabilidade por dano a bens e valores culturais
(inc. VIII), existe um debate doutrinário acerca do alcance dessa norma, já que o
art. 22, I, dá competência legislativa exclusiva à União para as matérias de direito
civil e penal. A corrente majoritária entende que o exercício de competência
concorrente pelos Estados e Municípios somente é cabível para regulamentar a
responsabilidade administrativa.811 Essa também é a posição adotada neste livro,

a inconstitucionalidade da Lei 11.380, de 03 de novembro de 1999, do Estado do Rio Grande do Sul, nos
termos do voto do Relator. Vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio, que a julgava parcialmente procedente
para dar interpretação conforme ao dispositivo, reconhecendo aos municípios responsabilidade sobre os sítios
arqueológicos situados no seu território, sem excluir, todavia, a competência dos demais entes federados.
Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello)”.
811
José Afonso da Silva sugere, no entanto, uma amplitude dessa competência: “Algum sentido há que sobressair
do texto em função de sua inserção no conjunto de regras sobre a competência legislativa concorrente. Uma
das conseqüências dessa inserção pode ser mesmo a de abrir uma exceção à competência exclusiva da
União para legislar sobre responsabilidade civil e criminal, de sorte que, tratando-se de dano a bens de valor
artístico, estético, histórico, e paisagístico, aos Estados e ao Distrito Federal também foi facultado fazê-lo. Mas
a natureza da competência concorrente condiciona duplamente essa faculdade. No âmbito dessa competência,
a União estabelece normas gerais e os Estados, normas suplementares. Isso quer dizer que — em matéria de
responsabilidade por dano a bens e valores culturais — a União tem competência para estabelecer normas
gerais, deixando aos Estados e Distrito Federal as providências suplementares” (Ordenação, p. 45)

Ines Virginia P Soares - dir ao 398 398 12/8/2009 16:04:27


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 399

já que as normas a serem estabelecidas pelos Estados e Distrito Federal não


podem versar sobre direito penal, com criação de tipos e previsão de crimes
contra o patrimônio cultural. Tal entendimento, no entanto, não inviabiliza a
previsão e utilização, pelos Estados e Municípios, de instrumentos acautelatórios,
nominados ou não, que contribuam para identificação do nexo de causalidade
entre a conduta lesiva aos bens culturais e o dano.
No que tange ao patrimônio arqueológico, os atos normativos gerais sobre
esses bens são de competência da União. Nesse sentido, o Decreto-lei 25/73 e
a Lei 3.924/61 estabelecem as normas gerais que podem ser complementadas
pelos Estados e Distrito Federal no que for cabível. Porém, vale ressalvar que as
regras que estabelecem as atuações relativas ao controle e gestão desses bens
(poder de polícia e de fiscalização do órgão federal) não podem ser suprimidas
no âmbito da legislação concorrente. Assim, o IPHAN continua a ser o órgão
responsável pela gestão dos bens arqueológicos, cabendo a todos os entes
federativos sua proteção.

10.2 Políticas Públicas patrimoniais e Constituição


10.2.1 As diretrizes constitucionais para as políticas patri-
moniais
A Constituição contém um amplo universo de normas que enunciam
programas, tarefas, diretrizes e fins a serem perseguidos pelo Estado e pela
sociedade, para estruturação da ordem sociocultural brasileira.812 A atuação estatal
com a finalidade de implementar os valores e princípios constitucionais culturais
se dá pelo estabelecimento de políticas públicas que versem sobre proteção
cultural, formação cultural e promoção cultural,813 com a regulamentação do
aparato administrativo necessário para o exercício dos direitos culturais e das
relações destes decorrentes.
As diretrizes gerais da política brasileira de patrimônio cultural são,
portanto, extraídas da Constituição. A postura a ser adotada pelo Poder Público,
indicada nos dispositivos constitucionais, é a do estabelecimento de instru-
mentos e procedimentos que dêem ênfase ao desenvolvimento cultural da
sociedade, com respeito à diversidade, dentro de uma perspectiva de liberdade
e igualdade materiais.
A sistematização constitucional parte da concepção de que incumbe ao
Estado o poder-dever de tutelar os bens culturais, com ações protetivas e de

812
PIOVESAN. Temas de direitos humanos, p. 209.
813
SILVA. Ordenação..., p. 210-214.

Ines Virginia P Soares - dir ao 399 399 12/8/2009 16:04:27


400 Inês Virgínia Prado Soares

valorização que visem atender às necessidades dos grupos e comunidades ligados


social, econômica ou culturalmente aos bens. Desse modo, para elaboração e
implementação das políticas públicas culturais, as atividades do Poder Público
são atividades vinculadas à orientação constitucional.
Além disso, há necessidade de uma atuação do Poder Público, em suas
diversas esferas, com a consideração da repercussão coletiva de suas decisões e
atuações no trato dos bens culturais, bem como da existência das desigualdades
de poder e de informação entre as classes distintas de sujeitos que integram a
sociedade brasileira.814 O reconhecimento da desigualdade e da diversidade,
com a previsão constitucional de garantias e direitos para os grupos forma-
dores, especialmente os indígenas e as comunidades quilombolas, constitui
importante passo que deve ser observado na elaboração e implementação das
políticas culturais.815
As diretrizes constitucionais para a política de proteção do patrimônio
cultural brasileiro são: o planejamento, por meio do Plano Nacional de Cultura
(art. 215, §3º) e de leis orçamentárias; a coordenação das tarefas culturais entre
os diversos órgãos que integram a Administração Pública, pelo Poder Público;
a proteção dos bens culturais pelo sistema ambiental; a participação popular na
defesa e valorização dos bens culturais; o dever de atuação e de não omissão do
Estado e da sociedade na tutela dos bens culturais, explicitado pelos instrumentos
previstos e pela abertura de outras formas de acautelamento (art. 216, §1º) e pelos
princípios da prevenção e da precaução; a informação, a eqüidade intergeracional
(art. 225, caput e parágrafos); a exigência do respeito à diversidade cultural; a
necessidade de redução das desigualdades culturais, por meio do fortalecimento
dos grupos vulneráveis formadores da sociedade brasileira (arts. 215 e 216);
a abertura para que a sociedade e o Poder Público possam aferir valores de
referência cultural aos bens (art. 216); a gestão cooperativa entre os Estado e
sociedade para a tutela dos bens culturais (arts. 216 e 225).

814
Nesse sentido, vale trazer a argumentação de Christian Courtis: “(...) En el mismo sentido, el desarrollo del
derecho a la información en materia de consumo y en materia ambiental, o el del derecho de participación
y consulta de minorías culturales o de grupos desaventajados en las decisiones que puedan afectarlos son
ejemplos de esa tendencia. La tendencia afecta incluso derechos tales como el derecho a la salud, donde se han
desarrollado una serie de requisitos procedimentales para la toma de decisiones referidas al tratamiento médico
o a la realización de intervenciones quirúrgicas. En uno y otro caso, las formas de la procedimentalización
acompañan la diversa manera de concebir las relaciones entre individuo y sociedad de cada modelo: en el
caso del derecho privado clásico, la procedimentalización privilegia el lugar del individuo y de la voluntad
individual; en el caso del derecho social, el diseño de los procedimientos toma en cuenta dimensiones colectivas
y desigualdades de poder y de información entre clases distintas de sujetos” (ABRAMOVICH; COURTIS. ¿Tiene
algún sentido mantener la categoría de “derechos sociales”?, p. 12).
815
Nesse sentido, Juliana Santilli destaca: “A Constituição seguiu uma orientação claramente multicultural e plu-
riétnica, reconhecendo direitos coletivos a povos indígenas e quilombolas, e assegurando-lhes direitos terri-
toriais especiais. A Constituição assegurou aos índios o direito de permanecerem como tais, rompendo a
tradição assimilacionista e assegurando-lhes direitos permanentes. São reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças, tradições, e direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas”
(Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural, p. 42).

Ines Virginia P Soares - dir ao 400 400 12/8/2009 16:04:27


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 401

Vale ressaltar ainda a importância da atenção do Estado com as instituições


culturais e os órgãos públicos competentes pela gestão do patrimônio cultural,
para a efetividade das políticas públicas de valorização e proteção do patrimônio
cultural. A estruturação dos órgãos culturais com recursos humanos e financeiros,
especialmente com a destinação de recursos materiais que permitam (ou
garantam) o desempenho de todas as suas atribuições de modo eficiente e
eficaz, é medida implicitamente colocada na Constituição.
Por isso, as ações do Poder Público que resultam em desestruturação
e desequilíbrio entre os órgãos culturais (por exemplo, com repartição de
competência ou atribuição que enfraqueçam o poder decisório, ou com a não
destinação de recursos financeiros, ou com a não realização de concursos para
garantir um quadro de servidores que possam desempenhar as tarefas, entre
outras) devem ser rechaçadas, inclusive pelo Poder Judiciário, com base nas
tarefas constitucionais estabelecidas para proteção do patrimônio cultural, bem
como nos objetivos, valores e princípios previstos na Carta Magna para a tutela
desses bens.

10.2.2 A execução das políticas de proteção dos direitos e


bens culturais
Os direitos culturais, como um processo dinâmico de acomodação de
forças para acesso aos bens necessários à fruição cultural,816 necessitam de ações
do Poder Público estabelecidas para garantir e instrumentalizar a sua efetividade.
A política cultural, baseada nas obrigações assumidas pelo Estado para realização
dos direitos culturais, possibilita a consolidação de práticas democráticas817 e de
instituições culturais. Para isso, é necessário que a administração da cultura pelos
órgãos públicos, no nível federal, estadual e municipal, estabeleça a realização
de planos e programas que tornem a cultura acessível a todos.
Na implementação dessas políticas, além da igualdade no acesso, é neces-
sário também que exista liberdade cultural em todo o decorrer do processo que
envolve as fases de produção (escolha, destinação, apresentação) e fruição dos
bens e práticas culturais. Desse modo, a atuação do Estado para efetividade das
políticas culturais passa pela produção de normas jurídicas que incorporem meca-
nismos e instrumentos financeiros na prática cultural, como forma de respaldo
para produção dos atores culturais. Ao mesmo tempo, cabe também ao Estado a
criação de normas que delimitem atividades econômicas ou sociais que de algum

816
Para utilizar as lições de FLORES, ob. cit.
817
Nas palavras de Marilena Chauí: “A política cultural é, juntamente com a política social, uma das formas empre-
gadas pelo Estado contemporâneo para garantir sua legitimação, isto é, para oferecer-se como um Estado que
vela por todos e vale para todos” (CHAUÍ et al. Política cultural, p. 36).

Ines Virginia P Soares - dir ao 401 401 12/8/2009 16:04:27


402 Inês Virgínia Prado Soares

modo prejudiquem, ou possam prejudicar, o exercício dos direitos culturais, em


qualquer das etapas da implementação da política cultural.818
As políticas culturais devem ser executadas nos três níveis: federal, estadual
e municipal, já que, nos termos do artigo 215, cabe ao Estado garantir a todos o
pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes de cultura nacional,
dando apoio e incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais.
Ao mesmo tempo, para que não restem dúvidas, o §6º do artigo 216 faculta aos
Estados e ao Distrito Federal a possibilidade de vincular a um fundo estadual
de fomento à cultura percentual de sua receita tributária.
No mesmo sentido, os artigos constitucionais que versam sobre a com-
petência comum (artigo 23, em especial os incisos III, IV e V), a competência
privativa (artigo 24, principalmente os incisos VII, VIII e IX) e a competência
do Município (artigo 30, IX) indicam claramente o dever de todos os entes
federativos na promoção e proteção dos bens culturais. Cabe à União o
planejamento estrutural da política nacional de cultura, com estabelecimento,
no que for possível, das diretrizes básicas a serem seguidas pelos Estados e
Municípios, quando da implementação dessas políticas públicas locais.
O §3º ao artigo 215 da Constituição819 prevê a criação, por lei, de um Plano
Nacional de Cultura. O teor dessa lei que implementará o Plano ainda é objeto
de discussão com a comunidade em todas as regiões brasileiras. O Ministério
da Cultura assumiu a coordenação de tais discussões e a previsão é de que a
lei seja editada a partir de 2010.

10.3 O Plano Nacional de Cultura a partir das diretrizes consti-


tucionais
Entre as ações do Poder Público na realização de tarefas e implementação
de políticas culturais, a Constituição estabeleceu como necessária a elaboração,
pela União, de um Plano Nacional de Cultura, com a finalidade de proteger,
formular e promover a cultura e o patrimônio cultural. Por meio da Emenda
Constitucional 48/05, que acrescenta o §3º ao artigo 215, o referido Plano deve
formular regras visando: à integração das ações do Poder Público que conduzam
à defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; à produção, promoção
e difusão de bens culturais; à formação de pessoal qualificado para a gestão da

818
Vale citar o exemplo da legislação portuguesa na valorização dos bens culturais como veículo do direito cultural.
A Lei do Patrimônio Cultural, em seu art. 3º (nº 2), dispõe que o “Estado protege e valoriza o património cultural
como instrumento primacial de realização da dignidade da pessoa humana, objecto de direitos fundamentais,
meio ao serviço da democratização da cultura e esteio da independência e identidade nacionais”.
819
Acrescido pela Emenda Constitucional 48/05.

Ines Virginia P Soares - dir ao 402 402 12/8/2009 16:04:27


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 403

cultura em suas múltiplas dimensões; à democratização do acesso aos bens de


cultura; à valorização da diversidade étnica e regional.820
O Plano Nacional de Cultura viabiliza a prática de planejamento ao nível
federal, buscando assegurar a coerência e a continuidade das ações do governo,
num período temporal que possibilite a formulação, a implementação e o
acompanhamento das políticas culturais traçadas. A previsão constitucional é de
um Plano para os direitos culturais, os quais dependem sempre de uma atuação
programada do Estado, com aporte de recursos materiais e financeiros para a
realização das tarefas e com a consideração da conjuntura econômica.
Embora a concepção do Estado como agente normativo e regulador
esteja explicitada no dispositivo constitucional destinado à ordem econômica,
a previsão sobre a elaboração de plano nacional ou regional de cultura, pela
Constituição, indica a possibilidade de utilização, no que for cabível, do esta-
belecido para a matéria econômica.821 Assim, a lei que dispuser sobre o Plano
Nacional de Cultura deve propor as diretrizes e as bases do planejamento do
desenvolvimento cultural nacional de forma harmônica e equilibrada, sendo
determinante para o setor público e indicativa para o setor privado.
A duração plurianual do Plano Nacional de Cultura, além de remeter
à idéia e aos dispositivos constitucionais de planejamento a longo prazo,
também vincula o assunto à necessidade de inserção das políticas culturais no
planejamento orçamentário e, especialmente, no Plano Plurianual, já que os
planos e os programas nacionais previstos na Constituição Federal, sejam eles
culturais, sociais, econômicos, devem ser elaborados em consonância com o
Plano Plurianual (art. 165, §4º, da CF).822
O Plano Plurianual tem, por sua vez, a finalidade de viabilizar o plane-
jamento federal, garantindo que as ações do governo guardem coerência. O
planejamento e a viabilidade das políticas públicas culturais estão vinculados ao
orçamento e, por isso, o Plano Plurianual (art. 165, inc. I, e §1º) deve estabelecer
as diretrizes, objetivos e metas da Administração Pública federal para as despesas
relativas aos programas de duração continuada previstos no Plano Nacional de
Cultura. A fixação de diretrizes pelo Plano deve ter recursos financeiros para
suas execuções (art. 165, §2º, da CF).
A lei que estabelecer as diretrizes do Plano Nacional de Cultura certa-
mente, no esteio constitucional, indicará o dever do Poder Público de investir
constantemente num aparato organizacional com instituições fortes e preparadas
para tutelar o patrimônio cultural, proporcionado os instrumentos legais para que

820
Art. 215, §3º, inc. I a V.
821
Conforme o art. 174, caput e §1º, da Constituição Federal.
822
A Lei do Plano Plurianual é mais específica do que a Lei do Plano Nacional (ou regional), já que a programação
traçada pelo Plano Plurianual deve ser respeitada pelo Executivo tanto na elaboração dos projetos das leis
orçamentárias anuais, quanto quando da sua execução.

Ines Virginia P Soares - dir ao 403 403 12/8/2009 16:04:27


404 Inês Virgínia Prado Soares

essa missão seja alcançada. Deverá, também, possibilitar a participação ampla da


sociedade nos temas culturais, por meio de incentivos econômicos e sociais, bem
como pela previsão de mecanismos participativos nos processos decisórios.
Para atender aos ditames constitucionais e instrumentalizar o Plano
Nacional de Cultura, foi editado o Decreto 5.520/2005, que institui o Sistema
Federal de Cultura (SFC) e dispõe sobre a composição e o funcionamento do
Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). Entre os objetivos do Sistema
Federal de Cultura (SFC) vale destacar o de articular ações com vistas a estabe-
lecer e efetivar, no âmbito federal, o Plano Nacional de Cultura823 (art. 1º) e o de
promover a integração da cultura brasileira e das políticas de cultura do Brasil,
no âmbito da comunidade internacional, especialmente das comunidades latino-
americanas e países de língua portuguesa (art. 4º, VI).

10.4 Política do patrimônio cultural e orçamento público


A constante necessidade de acomodação entre os elementos essenciais
para o desenvolvimento humano, os interesses dos setores produtivos e o direito
fundamental ao patrimônio cultural exigem do Estado, no âmbito financeiro,
tanto uma ação positiva, no sentido de investimento financeiro, como ação
negativa, de não financiar (ou mesmo renunciar receitas fiscais) as atividades
produtivas que não guardem pertinência com os princípios e valores do direito
ao patrimônio cultural.824
A singularidade dos bens culturais pode ser apontada como fator decisivo na
necessidade de interferência estatal, que deve formular as políticas patrimoniais,
com o estabelecimento de planos e as metas a serem cumpridos, bem como os
programas que concretamente possibilitem o cumprimento destes.
A realização das políticas patrimoniais depende prioritariamente dos
recursos financeiros, tanto nas tarefas típicas do Estado de fiscalização, quanto
nas tarefas que podem ser realizadas em conjunto pelo Estado e sociedade: edu-
cação patrimonial, informação, preservação, conservação entre outras atividades

823
Ainda sobre o Plano, no site do Ministério da Cultura consta que: “A diversidade é entendida como o encontro
entre as diferentes culturas e sua síntese, fenômeno gerador de novas práticas culturais. A chance desse contato
acontecer, assegurado o direito da livre manifestação, é maior quando existe reconhecimento, valorização e
respeito de todas as culturas. O objetivo do PNC é apontar caminhos para a elaboração de políticas públicas
que imprimam esse caráter horizontal à sua formulação. ‘O Plano quer estabelecer o fim da hierarquização
das culturas. O diálogo entre as culturas, a diversidade cultural, o contato entre as manifestações, acontece
independentemente do Estado, mas se temos instrumentos que otimizam e propiciam estas trocas, nós os
aprovaremos’, sintetiza Elder Vieira, coordenador executivo do PNC”. Disponível em: <www.minc.ov.br/
politica/planonacionaldecultura>. Acesso em: 08 dez. 2006.
824
No que tange à esfera de ação negativa do Estado, a alocação dos recursos financeiros para as empresas deve
obedecer a dispositivo constitucional que determina que o projeto de lei orçamentária seja acompanhado de
demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões,
subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia (art. 165, §6º).

Ines Virginia P Soares - dir ao 404 404 12/8/2009 16:04:27


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 405

e instrumentos. Pela própria natureza do bem resguardado, cabe ao Estado


investir financeiramente para o cumprimento das diretrizes e metas estabelecidas
tanto para a tutela do patrimônio cultural já formado e identificado, como para
a promoção das manifestações culturais e das ações propícias à produção e
fortalecimento dos bens culturais. Tais diretrizes e metas também podem ser
observadas pela indicação dos gastos na Lei Orçamentária Anual. Nesta há a
sistematização dos recursos825 que serão alocados para a proteção e promoção
dos bens culturais materiais e imateriais, no curso do ano.
É válido ressaltar que, quando se fala em recursos públicos destinados aos
que atuam no setor privado para promoção do patrimônio cultural, não se está a
falar somente em despesas públicas, em recursos financeiros destinados às polí-
ticas patrimoniais propostas (subvenções,826 subsídios), mas também em recursos
despendidos e em recursos não arrecadados, seja pela renúncia fiscal, seja pela
isenção, entre outros mecanismos de incentivo para a iniciativa privada.
Nesse sentido, a Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei 8.313/91) — Lei
Rouanet — assume maior importância. Essa lei prevê a possibilidade de obtenção
de desconto no Imposto de Renda das pessoas físicas e jurídicas que doarem
ou patrocinarem projetos culturais. A mencionada lei também criou o Programa
Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), que tem por finalidade o desenvol-
vimento da atividade cultural e a priorização da produção da cultura nacional.
Para isso, prevê mecanismos para a captação e canalização dos recursos públicos
e privados. No entanto, a ausência de vinculação da liberação das verbas públicas
à atuação dos beneficiados por tais recursos é aspecto que começa a despertar
discussões que permeiam o âmbito jurídico. Isso porque ainda não é clara a
obrigatoriedade de que o beneficiário efetivamente garanta o acesso e a fruição
dos bens culturais à comunidade e respeite a eqüidade intergeracional.
Dessa forma, com base da legislação prevista para promoção cultural
no país, em muitos casos as verbas públicas (ou privadas captadas pelo Poder
Público) servem para apoiar empreendimentos ou atividades menos relevantes
para a cultura brasileira. Por conseqüência são aceitos investimentos em
empreendimentos e espetáculos que não atendem aos valores estabelecidos
na Constituição para preservação do patrimônio cultural brasileiro, em sua
diversidade e riqueza. Isso ocorre porque não há uma compatibilização da polí-
tica nacional de cultura com as atividades culturais financiadas ou incentivadas
pelo Poder Público.

825
Os recursos podem ter origem pública ou ter procedência de organismos nacionais e internacionais.
826
As subvenções estão previstas no art. 12 da Lei 4.320/65, como despesas correntes. Eduardo Maciel Ferreira
Jardim afirma que enquanto despesas correntes as subvenções “são verdadeiras despesas operacionais, e, por
isso mesmo, economicamente improdutivas” (Manual de direito financeiro e tributário, p. 38).

Ines Virginia P Soares - dir ao 405 405 12/8/2009 16:04:27


406 Inês Virgínia Prado Soares

10.4.1 Políticas públicas patrimoniais e estabelecimento de


gastos prioritários nas leis orçamentárias
Os recursos orçamentários destinados às políticas públicas patrimoniais se
realizam pelo planejamento dos investimentos públicos no Plano Plurianual, na
Lei de Diretrizes Orçamentárias e nas Leis Orçamentárias Anuais (no orçamento
fiscal e no orçamento de investimento, art. 165, §5º, I e II). Dessa forma, a fase
de escolha ou priorização dos gastos está estritamente ligada à concepção dos
Poderes Legislativo e Executivo, em relação às políticas culturais que devem ser
concretizadas no exercício financeiro próximo.827 Essa fase de escolha espelha
as decisões sociais trazidas pelos Poderes Públicos investidos. A ausência de
previsão dos gastos inviabiliza a implementação das ações para tutela e pro-
moção do patrimônio cultural. Por isso, podem e devem ser acompanhadas
pela sociedade para que a prioridade de gastos seja respeitada, com a sua
previsão orçamentária.
Assim, os gastos com a promoção ou proteção do patrimônio cultural
brasileiro podem ser priorizados por um período certo, desde que essa previsão
de gasto seja estabelecida na Lei Orçamentária. Além do acompanhamento e
controle do estabelecido como prioritário, tanto pela sociedade como pelo
Judiciário, como o direito ao patrimônio cultural é um direito fundamental
social, destacados os programas culturais prioritários para o cumprimento da
Política Nacional de Cultura, estes poderão receber tratamento privilegiado em
sua execução.828
Os Planos Plurianuais fornecem elementos de controle (judicial ou admi-
nistrativo) da aplicação dos recursos destinados à Política Nacional de Cultura.
Embora sejam normas de planejamento, podem estabelecer prioridades per-
centuais na alocação de recursos, que devem ser cumpridas nos orçamentos
anuais.829 A priorização do gasto em matéria patrimonial na Lei de Diretrizes
Orçamentárias também é fundamental para o posterior controle da execução orça-
mentária,830 já “que permitirá, durante um prazo adequado, um debate mais detido

827
Ou seja: no período de um ano, compatível com o ano civil.
828
SERRA. Orçamento no Brasil, p. 127. A hipótese de existência de um parâmetro de gasto definido nos
Planos Plurianuais para o patrimônio cultural é sugerida por José Serra: “Além da definição de recursos no
Orçamento anual, nada impedirá que nos Planos Plurianuais, aprovados em leis, sejam definidas prioridades
percentuais na alocação de recursos, de forma realista, flexível e por determinados períodos, segundo critérios
de governantes e parlamentares democraticamente eleitos, que respondam a anseios e reivindicações da
comunidade” (idem, p. 127).
829
Pode-se considerar a teoria da discricionariedade mínima, na qual a liberdade do administrador restringe-se às
opções constitucionais.
830
Vale ressaltar que os objetivos fundamentais declarados nas LDOs dos anos de 1999 e de 2000, que fixam os
parâmetros para a elaboração das leis orçamentárias anuais dos exercícios de 2000 e 2001, não mencionam
nada específico acerca de proteção ambiental.

Ines Virginia P Soares - dir ao 406 406 12/8/2009 16:04:27


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 407

sobre as prioridades orçamentárias e os financiamentos concedidos por agências


públicas, cujo papel é estratégico para o desenvolvimento brasileiro”.831
Como o patrimônio cultural é um “bem fundamental à sociedade”, caso
os gastos com a matéria não sejam previstos como prioritários pelo Executivo,
a participação do Poder Legislativo na determinação da utilização dos recursos
públicos é essencial. Nossa Constituição atribui ao Poder Legislativo uma
participação efetiva por meio da votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, que
fixa as prioridades e as quantidades destinadas a cada setor, da possibilidade de
aprovar emendas à proposta orçamentária, da votação do Plano Plurianual de
investimentos e da capacidade de fiscalização da execução orçamentária.832
A inclusão de um programa como prioritário vincula o gasto em um
período determinado e pode ocorrer não só por força constitucional (como o
caso da educação e saúde), mas também por lei infraconstitucional. Vale, porém,
atentar que a definição do gasto e a priorização de recursos para a área cultural
devem conter elementos que possibilitem a análise da legalidade, legitimidade
e economicidade na fiscalização e no controle da execução orçamentária. Esses
elementos bem definidos e especificados servem também para embasar ações
judiciais que questionem a não aplicação dos recursos previstos, a não realização
dos gastos eleitos como prioritários no orçamento anual.

10.4.2 O papel das agências de fomento e os recursos públicos


destinados ao setor privado para implementação das
políticas culturais
A Constituição Federal reconhece a pobreza e a marginalização, bem como
as desigualdades sociais e regionais e a necessidade de desenvolvimento de nosso
país, quando estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil “garantir o desenvolvimento nacional e erradicar a pobreza e a margi-
nalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, II, e III).
Desse modo, as políticas públicas estabelecidas para proteção e promoção
do patrimônio cultural devem se pautar nesses objetivos e nos fundamentos do
nosso Estado Democrático de Direito declarados no art. 1º, incs. I a V, especial-
mente nos fundamentos da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa
humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Porém, como

831
SERRA. Orçamento no Brasil, p. 10.
832
SERRA, ob. cit., p. 125. Misabel de Abreu Machado Derzi destaca que, “em relação aos orçamentos, a legalidade
foi reafirmada e expandida, por meio do restabelecimento da faculdade de emendar do Poder Legislativo. Com
isso, o Órgão Parlamentar não se limitará a aprovar in totum (ou rejeitar) o projeto de lei orçamentária elaborado
pelo Executivo, mas efetivamente poderá co-decidir e colaborar em matéria orçamentária” (Repartição das
receitas tributárias, p. 354).

Ines Virginia P Soares - dir ao 407 407 12/8/2009 16:04:27


408 Inês Virgínia Prado Soares

a Constituição forneceu uma conceituação de patrimônio cultural brasileiro


que abriga uma enorme gama de elementos, com características diversas,
especialmente se considerada a divisão bens materiais e imateriais, a atuação
do Estado é muitas vezes na garantia da liberdade cultural, com o fomento, e
outras vezes na vinculação do setor público e dos recursos financeiros a tarefas
que permitam a conservação e fruição do bem cultural.
A concepção constitucional de que o patrimônio cultural brasileiro tem
uma formação aberta e que constantemente pode ser integrado por outros bens
que a sociedade entenda importantes e representativos da ação, identidade e
memória dos brasileiros leva à indicação de uma maior importância ao fomento
público na matéria. O fomento público parte do pressuposto da liberdade na
escolha das ações e projetos a serem desenvolvidos no âmbito privado, para
fruição do patrimônio cultural por todos.
A atividade administrativa de fomento é aquela por meio da qual o Estado
(ou seus delegados) estimula ou incentiva iniciativas privadas na área cultural,
que podem resultar em produção de novos bens culturais, com a finalidade de
que as manifestações e atividades culturais, ou ainda as práticas que tutelem
os bens culturais existentes, contribuam para o desenvolvimento integral e
harmonioso da sociedade.833
A principal diferença entre a atividade de fomento e outras exercidas pelo
Estado é a ausência de compulsoriedade da primeira. Portanto, com o fomento,
cabe ao setor privado aderir ao incentivo oferecido pelo Poder Público e exercer
sua liberdade de seleção, proteção e promoção dos bens culturais. O direito à
liberdade cultural em suas várias vertentes e as características dos bens culturais
realçam a importância da atividade administrativa de fomento, especialmente
no planejamento estatal.
Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o fomento é o instru-
mento mais ativo “para que a indicatividade do planejamento estatal receba
as respostas desejadas da sociedade”.834 Dessa forma, no estado democrático
brasileiro, a atividade de fomento deve fornecer respaldo para o acesso e a
fruição dos bens culturais, de acordo com o interesse da comunidade local e
com os valores de referência dos bens culturais. Esse interesse da comunidade
sempre deve resultar da conciliação das vantagens do planejamento estatal com
as liberdades democráticas.835

833
Diogo de Figueiredo Moreira Neto conceitua o fomento público como “a atividade administrativa através
da qual o Estado ou seus delegados estimulam ou incentivam a iniciativa dos administrados ou de outras
entidades, públicas e privadas, para que desempenhem ou estimulem, por seu turno, atividades que a lei haja
considerado de interesse público para o desenvolvimento integral e harmonioso da sociedade” (Curso de
direito administrativo, p. 408).
834
Ibidem, p. 409.
835
Ibidem, p. 409. Diogo de Figueiredo Moreira Neto acredita na possibilidade de obtenção de resultados melhores
por meio da utilização da atividade de fomento pelo Estado. Em suas palavras: “Na verdade, será no conceito

Ines Virginia P Soares - dir ao 408 408 12/8/2009 16:04:27


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 409

A busca do desenvolvimento nacional e da redução das desigualdades


regionais e sociais para a conseqüente erradicação da pobreza e da marginalização
encontra nas agências de fomento financeiras oficiais um instrumento hábil e
teoricamente eficiente. A Carta Magna faz referência específica às agências
de fomento exatamente na Seção II (Dos Orçamentos) do Capítulo II (Das
Finanças Públicas) do Título VI (Da Tributação e do Orçamento) no art. 165,
§2º, que estabelece que a lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as
metas e prioridades da Administração Pública federal, incluindo as despesas
de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da
lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e
estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras de fomento.
Essa política de aplicação de recursos financeiros das agências oficiais de
fomento destina-se a implementar planos e programas nacionais, regionais e
setoriais, que, nos termos do §4º do art. 165 da Lei Maior, “devem ser elaborados
em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional”.
Mas serão os orçamentos anuais, em especial o orçamento fiscal e o orçamento
de investimento, que “compatibilizados com o Plano Plurianual, terão entre
suas funções a de reduzir desigualdades inter-regionais” (§7º do art. 165 da CF).
Portanto essa função, típica das agências oficiais financeiras de fomento estará
prevista anualmente na Lei Orçamentária.
Da mesma forma, a Constituição deseja que a interferência do Estado
para atingir os objetivos fundamentais insculpidos no art. 3º, II e III, da Carta
Magna por meio das agências de fomento se realize de forma transparente na
Lei Orçamentária Anual, que terá seu projeto “acompanhado de demonstrativo
regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrentes de isenções,
anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e
creditícia” (§6º do art. 165).
O direcionamento constitucional, em matéria de patrimônio cultural, é
no sentido de que a atuação dessas agências de fomento deve respeitar a liber-
dade na formação do patrimônio cultural brasileiro e na integração de novos
bens merecedores de tutela. No que tange aos bens culturais já consolidados,
a indicação da Constituição é de priorizar a proteção e manutenção dos bens,
cabendo ao Poder Público e à sociedade a utilização de todos os instrumentos
nominados, bem como outras formas de acautelamento para sua proteção.836
Há ainda na Constituição a obrigatoriedade de que o empreendedor
(privado ou público) que desenvolva obras ou explore atividades (tais como:
construção de rodovias, hidrelétricas, atividade de extração de petróleo, usinas

do planejamento que os instrumentos e mecanismos administrativos do Fomento Público poderão produzir os


melhores resultados, exatamente pela imbricação, solidariedade, parceria e integração, que se logra alcançar,
entre as atividades governamentais e as atividades privadas” (ob. cit., p. 409).
836
Ver art. 216, caput e §1º, da Constituição.

Ines Virginia P Soares - dir ao 409 409 12/8/2009 16:04:27


410 Inês Virgínia Prado Soares

nucleares etc.) que potencial ou efetivamente causem danos aos bens culturais
cumpra todas as exigências necessárias para a compatibilização das normas
orçamentárias e dos princípios e valores ambientais.
A necessidade de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as despesas
e as receitas, decorrentes dos subsídios e benefícios de natureza financeira,
no projeto da Lei Orçamentária Anual, direciona a fiscalização e o controle da
execução orçamentária das agências de fomento para a observação da aplicação
dos recursos financeiros em projetos e/ou atividades que se enquadrem às
normas ambientais. E, desse modo, o financiamento, por tais agências, de
obras ou atividades que afrontem o sistema normativo ambiental conduz à
responsabilização dos gestores das agências de fomento de forma solidária com
os empreendedores.
No mesmo sentido é a previsão do artigo 12 da Lei 6.938/81, que estabelece
que a reprovação do financiamento de projetos pelas instituições financeiras
para empreendimentos ou atividades para ao quais a lei exija o licenciamento
ambiental fica condicionada à expedição de licença favorável pelo órgão
ambiental competente.
Portanto, as agências de fomento têm o dever de exigir do empreendedor a
demonstração de cumprimento da legislação ambiental, sob pena de serem respon-
sáveis solidariamente pelo dano ambiental causado, entre os danos, certamente
estão os danos aos bens culturais, materiais ou imateriais. A alocação de recursos
do financiador para o financiado, com a transgressão induvidosa da lei, coloca
o financiador numa atividade de cooperação ou de co-autoria com o financiado
em todos os atos lesivos ambientais que ele fizer, por ação ou omissão.837
A fiscalização e o controle da execução orçamentária assumem importância
fundamental, já que, além de se conseguir a não aplicação dos recursos finan-
ceiros em empreendimentos que não se enquadram nas normas de proteção
ambiental, deixam-se, em contrapartida, tais recursos livres para a tutela dos
bens culturais, com investimentos em setores e empreendimentos adequados
que valorizem e protejam o patrimônio cultural brasileiro ou possibilitem o
acesso e a fruição ao patrimônio cultural pelos brasileiros.
Por isso, a atuação das agências de fomento em nosso país, para ser
compatível com o nosso sistema normativo, principalmente no que tange à
obrigatoriedade de efetivação de políticas sociais estabelecidas em planos de
governo e que integram as políticas públicas do Estado, deve valorizar e res-
guardar os interesses ambientais (especialmente os interesses culturais), com a
obrigação de não financiar determinadas obras.838

837
MACHADO, ob. cit., p. 315.
838
Esta é uma sofisticação do controle das execuções das agências de fomento e reflete o entendimento de que,
além da obrigação estatal de atuação positiva para satisfação do direito social, o Estado também possui uma
obrigação negativa de abstenção no incentivo de condutas que atentem contra tais direitos.

Ines Virginia P Soares - dir ao 410 410 12/8/2009 16:04:27


Capítulo 11

Patrimônio cultural
e licenciamento ambiental

Sumário: 11.1 Normas e princípios ambientais aplicáveis ao patrimônio cultural - 11.2


Licenciamento ambiental e proteção do patrimônio cultural brasileiro - 11.2.1 A participação
do IPHAN no procedimento de licenciamento ambiental - 11.2.2 Licenciamento ambiental
e Portaria IPHAN 230/2002 - 11.2.3 EIA/RIMA e apreciação do impacto cultural - 11.2.4 A
produção ou disponibilização de informação sobre patrimônio cultural em decorrência da
obra ou atividade licenciada - 11.2.5 Da criação da reserva arqueológica em decorrência
de atividades e empreendimentos licenciados

11.1 Normas e princípios ambientais aplicáveis ao patrimônio


cultural
As normas protetivas do meio ambiente foram construídas e constantemente
adaptadas para convivência harmônica com os diversos interesses e direitos
econômicos. No ordenamento jurídico brasileiro, a Lei de Política Nacional do
Meio Ambiente (Lei 6.938/81) trouxe conceitos, princípios e instrumentos para
proteção do bem ambiental (e seus elementos naturais ou culturais). Essa lei
permite, especificamente, a tutela dos bens culturais materiais e imateriais e deve
ser usada, tanto pelo Estado como pela sociedade, para tornar mais efetiva a
proteção do patrimônio cultural brasileiro.
A relevância da mencionada lei para os bens culturais é refletida na
ampliação da base legal dos mecanismos de proteção do patrimônio cultural
e no aumento do campo de trabalho dos profissionais especializados, pelos
maiores investimentos exigidos e empregados, em decorrência do licencia-
mento ambiental.839 A lei ambiental trouxe a concepção jurídica ampla de meio

839
O site da Sociedade Brasileira de Arqueologia (<www.sba.org.br>) faz referência a um novo campo de

Ines Virginia P Soares - dir ao 411 411 12/8/2009 16:04:27


412 Inês Virgínia Prado Soares

ambiente, com a visão integrada dos aspectos ecológico e culturais e a previsão


de instrumentos extrajudiciais específicos para proteção ambiental. A partir da
produção transversal de dados, informações e conceitos foi possível estabelecer
um sistema de proteção ambiental, pautado em princípios direcionadores da
conduta dos setores privado e público, com a finalidade precípua de manutenção
da vida com qualidade, a partir dos valores e interesses estabelecidos como
relevantes pela geração presente.
O sistema de proteção ambiental brasileiro é composto por diversas
normas que protegem os bens ambientais que integram o meio ambiente. As
normas sobre patrimônio cultural tangenciam esse sistema protetivo. Muitas
vezes, mais que tangenciar, as normas patrimoniais são essenciais para se
atingir a finalidade de proteção do meio ambiente e da sadia qualidade de
vida, e nesse aspecto as normas de tutela dos bens culturais são nucleares
para a justiça ambiental. Porém, apesar do conjunto de normas e diplomas
integrantes do sistema ambiental, a Lei de Política Nacional de Meio Ambiente,
a Constituição e a ECO-92 são os diplomas que indicam as diretrizes gerais a
tutela do meio ambiente em nosso país. Juliana Santilli destaca, entre os 27
princípios estabelecidos na Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (Rio/92), cinco que considera como referências fundamentais
para a formulação das políticas públicas sociais e ambientais nacionais: princípio
do desenvolvimento sustentável e do direito intergeracional ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado; princípio da precaução, segundo o qual a ausência
de certeza científica absoluta não pode servir de pretexto para procrastinar a
adoção de medidas que visam a evitar danos ambientais; princípio do poluidor-
pagador, segundo o qual o poluidor deve, em princípio, assumir o custo da
poluição; princípios da participação social na gestão ambiental e do acesso à
informação ambiental; princípio da obrigatoriedade da intervenção estatal, que
atribuiu ao Poder Público a obrigação de defender o meio ambiente.840
Os princípios acima mencionados já pertenciam à gramática de tutela
ambiental brasileira e estavam insculpidos no art. 225 da Constituição (de 1988).
Todos são de extrema importância para a tutela dos bens culturais brasileiros.
Mais que isso: são princípios que ao lado dos princípios patrimoniais próprios

trabalho para os profissionais: a Arqueologia de Contrato: “Na esteira de um mundo ambientalmente correto
e preocupado com sua herança, surgiu um campo de atuação novo para os arqueólogos: a avaliação e o
salvamento do patrimônio arqueológico ameaçado por grandes empreendimentos. Pode parecer estranho,
mas há alguns anos um grande jornal contava, em seus anúncios classificados, com uma oferta de emprego no
mínimo inusitada: ‘Contrata-se arqueólogo com experiência comprovada’. E a vaga não estava sendo oferecida
por órgãos públicos como Instituições de Pesquisa, Universidades ou Museus, locais onde a maior parte dos
arqueólogos até então trabalhava. Tratava-se de grande empresa de engenharia civil, voltada à construção de
obras de infra-estrutura (barragens, hidrelétricas, linhas de transmissão de energia, etc.). Ela necessitava, com
urgência, de incorporar em seus quadros um arqueólogo, a fim de atender a uma nova demanda”.
840
SANTILLI, ob. cit., p. 43-44.

Ines Virginia P Soares - dir ao 412 412 12/8/2009 16:04:28


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 413

(ver Capítulo 6 desse livro) devem ser evocados e aplicados na defesa do


patrimônio cultural. Neste capítulo serão abordados os princípios ambientais
da precaução e do acesso à informação ambiental, por serem relevantes para o
que será a seguir desenvolvido sobre a proteção dos bens culturais no licencia-
mento ambiental.
O princípio ambiental da precaução é um dos pilares mais importantes
para a tutela do patrimônio cultural material e imaterial. A consagração desse
princípio impôs, em definitivo, a adoção do enfoque da prudência e da vigilância
na aplicação do direito ambiental às condutas e atividades lesivas aos bens que
integram ao meio ambiente, em detrimento do enfoque da tolerância e da certeza
científica.841 O caráter peculiar da irreversibilidade do dano causado a um bem
cultural, quando da implementação de obra ou serviço passível de licenciamento
ambiental, ressalta a necessidade de que todos os estudos e análises considerem
o risco a que está exposto o bem cultural localizado na zona direta ou indireta
do empreendimento.
A percepção do risco para o patrimônio cultural como bem ambiental
conduz à necessidade de exigência de avaliações e estudos multidisciplinares
antes da implantação de empreendimentos potencialmente impactantes. Se, nas
palavras de Paulo Affonso Leme Machado, ainda é prematuro estabelecer regras
rígidas para a aplicação do princípio da precaução, no caso de alguns bens
culturais, como os bens arqueológicos ou os bens paleontológicos, a certeza
da existência de risco está sempre presente, embora não se possa dimensionar
antecipadamente os efeitos de tal risco.842
Esse princípio acarreta, no âmbito administrativo, a inversão do ônus
da prova para a caracterização da lesão ao meio ambiente, impondo ao
empreendedor, diante de elementos confiáveis (mas passíveis de contestação
científica) a respeito da degradação, a comprovação cabal de que sua atividade
não é (ou não será) significativamente degradadora da qualidade ambiental e
dos bens que integram o meio ambiente, autonomamente considerados. Ao
órgão licenciador cabe, quando não apresentada, exigir tal comprovação, sob
pena de afronta aos princípios da Administração Pública e, principalmente do
princípio da precaução.

841
Nesse sentido, Cristiane Derani: “O princípio da precaução deixa claro que, devido à dimensão temporal
(relacionada com o futuro) e à complexidade da proteção ambiental, não é suficiente que se prestigie apenas
uma intervenção periférica. Isto é, como base neste princípio, a política ambiental desenvolve-se não em
normas rigidamente divididas numa denominada ordem do direito ambiental” (Direito ambiental econômico,
3. ed, p. 165).
842
“A abrangência do princípio da precaução não é expressa por uma fórmula única. (...). Parece-me prema-
turo estabelecer rígidos limites para a aplicação do princípio, pois a necessidade ética de possibilitar um
desenvolvimento sustentado, que beneficie as gerações presentes sem prejudicar as gerações futuras, irá
gradativamente indicando o campo adequado do princípio da precaução” (MACHADO. O princípio da
precaução e a avaliação de riscos, p. 37).

Ines Virginia P Soares - dir ao 413 413 12/8/2009 16:04:28


414 Inês Virgínia Prado Soares

Para isso, é fundamental a atuação conjunta do IPHAN (ou do órgão


cultural no plano estadual ou municipal) com o órgão ambiental, no curso do
procedimento administrativo do licenciamento ambiental, desde o momento da
elaboração das diretrizes que devem ser seguidas pelos empreendedores para
realização do estudo de impacto ambiental, com vistas a contemplar e tutelar os
bens culturais.843 Pelas especificidades na intervenção nos diversos bens culturais,
a elaboração, pelo IPHAN (ou órgão cultural no plano estadual ou municipal),
de Termos de Referência em matéria de patrimônio cultural para serem seguidos
no licenciamento ambiental, desde a confecção do Estudo de Impacto Ambiental
(EIA/RIMA), seria uma aplicação do princípio da precaução nessa seara.
Desse modo, o direcionamento da conduta dos empreendedores e do
Poder Público licenciador pelo princípio da precaução é obrigatório quando
existir o menor indício de potencialidade de dano aos bens culturais. Pode-se
dizer que a instrumentalização da sociedade e do Poder Público para controlar
ou restringir as atividades que causem impactos ao meio ambiente por meio
da previsão dos instrumentos legais, inclusive preventivos, é uma das maiores
contribuições do sistema nacional de proteção ambiental para proteção do nosso
patrimônio cultural. Com semelhante teor, a Declaração do Rio de Janeiro/92
estabelece:

Princípio 15 – Com o fim de proteger o meio ambiente, os Estados deverão aplicar


amplamente o critério de precaução conforme suas capacidades. Quando houver perigo
de dano grave ou irreversível, a falta de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada
como razão para se adiar a adoção de medidas eficazes em função dos custos para impedir
a degradação do meio ambiente.

O princípio ambiental da informação prevê o direito e o dever de todas as


pessoas estarem informadas sobre as questões ambientais, inclusive acerca dos
materiais e atividades perigosas em suas comunidades e dos reflexos e dos riscos
que tais atividades ou produtos podem vir a apresentar para a saúde e para a
qualidade de vida das presentes e futuras gerações.844 Porém, esse princípio vai

843
A incerteza do lesividade da atividade não pode ser motivo de omissão dos órgãos envolvidos: “O incerto não
é algo necessariamente inexistente. Ele pode não estar bem definido. Ou não ter suas dimensões ou seu peso
ainda claramente apontados. O incerto pode ser uma hipótese, algo que não foi ainda verificado ou não foi
constatado. Nem por isso, o incerto deve ser descartado, de imediato. O fato de o incerto não ser conhecido ou
de não ser entendido aconselha que ele seja avaliado ou pesquisado” (MACHADO, ob. cit., p. 37).
844
O art. 2º, item 3, da Convenção sobre o Acesso à Informação, a Participação do Público no Processo Decisório
e o Acesso à Justiça em Matéria de Meio Ambiente, define a abrangência que tem a informação ambiental:
“A expressão ‘informação sobre o meio ambiente’ designa toda informação disponível sob a forma escrita,
visual, oral ou eletrônica ou sob qualquer forma material, sobre: a) o estado do meio ambiente, tais como
o ar e a atmosfera, as águas, o solo, as terras, a paisagem e os sítios naturais, a diversidade biológica e seus
componentes, compreendidos os OGMs, e a interação desses elementos; b) fatores tais como as substâncias,
a energia, o ruído e as radiações e atividades ou medidas, compreendidas as medidas administrativas, acordos
relativos ao meio ambiente, políticas, leis, planos e programas que tenham, ou possam ter, incidência sobre os
elementos do meio ambiente concernente à alínea a, supramencionada, e a análise custo/benefício e outras

Ines Virginia P Soares - dir ao 414 414 12/8/2009 16:04:28


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 415

mais além: direciona a atuação do Estado para exigência de transparência na


conduta do empreendedor desde a sua manifestação de vontade de realizar a
obra ou prestar o serviço que cause dano ao bem cultural até sua destinação.
A finalidade de reinserção do bem cultural na comunidade é um dos
aspectos mais importantes do princípio da informação ambiental. A descoberta
e o estudo de um sítio arqueológico ou paleontológico, por exemplo, devem
trazer, primeiro, para a comunidade recursos para a melhoria de sua qualidade
de vida. Esses recursos não precisam ser necessariamente culturais, podem
ser também econômicos ou sociais.845 O princípio também se aplica aos bens
imateriais. A realização de pesquisas sobre os conhecimentos tradicionais de uma
comunidade ou sobre suas formas de expressão (dança, músicas, lendas, ritos
funerários etc.) deve retornar à comunidade detentora do saber e da cultura. Além
disso, no caso de empreendimentos licenciados ambientalmente, é obrigatória
a avaliação do impacto cultural de tal obra ou serviço no Estudo de Impacto
Ambiental. O órgão licenciador, por sua vez, deve ouvir o órgão cultural acerca da
alternativa locacional e das medidas mitigadoras ou condicionantes que garantam
a preservação dos bens culturais. Assim, o princípio da informação aplicado aos
bens culturais exige que o Poder Público e o empreendedor produzam material
para avaliação sobre a viabilidade do empreendimento.
O princípio da informação ambiental sob a ótica dos bens culturais também
encontra respaldo na Lei de Política Nacional de Educação Ambiental, a qual
define educação ambiental como “os processos por meio dos quais o indivíduo
e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes
e competências voltados para a conservação do meio ambiente”846 e estabelece
entre seus princípios o enfoque democrático e participativo (inc. I), a vincu-
lação entre a ética, a educação, o trabalho e as práticas sociais (inc. IV) e o reco-
nhecimento e o respeito à pluralidade e à diversidade individual e cultural.

análises e hipóteses econômicas utilizadas no processo decisório em matéria de meio ambiente; c) o estado
de saúde do homem, sua segurança e suas condições de vida, assim como o estado dos sítios culturais e das
construções na medida onde são, ou possam ser, alterados pelo estado dos elementos do meio ambiente ou,
através, desses elementos, pelos fatores, atividades e medidas visadas na alínea b, supramencionada” (cf.
MACHADO. Direito ambiental brasileiro, p. 85). Na nota de rodapé sobre a Convenção: “Aarhus (Dinamarca),
25 de junho de 1998. A Convenção foi preparada pelo Comitê de Políticas de Meio Ambiente da Comissão
Econômica para a Europa das Nações Unidas. Entrou em vigor em 30 de outubro de 2001.”
845
Nesse sentido: “Havendo incerteza sobre a possibilidade de impacto ambiental, a solução é abrir para o
conhecimento público políticas, planos e programas. Não obstante não ter a lei apontado a fase em que se
deva dar acesso aos documentos referidos, é de se refletir sobre as vantagens da presença participativa dos
interessados, sendo a informação fornecida em todas as fases da formulação desses documentos. Não se há de
esperar que as políticas, planos e programas ambientais estejam totalmente prontos para que o público possa
deles tomar conhecimentos, colocando-se os informados praticamente diante de fatos consumados, em que
se mudará muito pouco ou em que as alterações só poderão ocorrer em pontos insignificantes, pois o grande
esqueleto dos documentos já foi traçado, quase de forma imutável” (MACHADO. Direito à informação e
meio ambiente, p. 208-209).
846
Art. 1º da Lei 9.795/99.

Ines Virginia P Soares - dir ao 415 415 12/8/2009 16:04:28


416 Inês Virgínia Prado Soares

11.2 Licenciamento ambiental e proteção do patrimônio


cultural brasileiro
11.2.1 A participação do IPHAN no procedimento de licencia-
mento ambiental
O licenciamento e a revisão de atividades potencialmente poluidoras,
previstos no art. 9º, IV, da Lei 6.938/81 como instrumentos da Política Nacional
de Meio Ambientes, são de extrema importância para a proteção efetiva do
patrimônio cultural brasileiro. O cenário nacional e a postura do Poder Público,
dos empreendedores e da sociedade no tratamento do patrimônio cultural foram
modificados com a obrigatoriedade do Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA)
e da contemplação, neste, dos estudos sobre os bens culturais impactados. Ao
mesmo tempo, a reafirmação, no texto constitucional, da necessidade de estudo
prévio de impacto ambiental (art. 225, §1º, inc. IV) e da punição, na forma da
lei, aos danos e ameaças ao patrimônio cultural (art. 216, §4º) fortalece e atualiza
o teor da Lei 6.938/81, especialmente de seus instrumentos.
A previsão legal847 do EIA/RIMA seguiu a tendência mundial de possibilitar
normativa e concretamente (com a utilização/construção de instrumentos pela
sociedade) de buscar compatibilizar o desenvolvimento econômico com a
preservação do meio ambiente. Assim, a contemplação legal de um processo
administrativo que submetesse as atividades potencialmente danosas ao meio
ambiente, com a análise técnica, jurídica e social de sua viabilidade, bem como
a previsão de participação da sociedade, se materializou na nomenclatura
licenciamento ambiental.
O Licenciamento Ambiental é um procedimento administrativo no qual a
Administração pratica, em todas as suas fases, atos seqüenciais para adequar obra
ou atividade a um patamar de qualidade ambiental em que estejam garantidas
as condições sociais e econômicas para o desenvolvimento da vida sadia das
presentes e futuras gerações, com a finalidade de autorizar o funcionamento do
empreendimento. Ou, nos termos legais, “é o procedimento administrativo pelo
qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e
a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais,
consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer
forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais
e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso”.848

847
A Constituição não trata expressamente de licenciamento ambiental (nem deveria, nele ressaltar), mas fornece
os princípios e valores necessários para o enfrentamento da matéria no plano administrativo.
848
Art. 1º, inc. I, da Resolução CONAMA 237/97.

Ines Virginia P Soares - dir ao 416 416 12/8/2009 16:04:28


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 417

O licenciamento ambiental é o mais importante mecanismo de controle


das atividades e empreendimentos que realmente causam grandes impactos ao
meio ambiente. É o procedimento administrativo viabilizador do controle ou
restrição dos efeitos danosos da atividade ou empreendimento, num processo
decisório que exige a produção de dados, informações e estudos, além de
envolver a sociedade desde a opção pela obra ou serviço.849 O licenciamento (e
revisão) de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras (arts. 9º, inc. IV, e
10 da LPNMA) está detalhado no Decreto 99.274/90 (arts. 17 e seguintes) e nas
Resoluções CONAMA 01/86 e 237/97 (esta última, principalmente).
Essas normas também estabelecem a competência dos órgãos ambientais
para licenciar as atividades e regulamentam os aspectos de licenciamento
ambiental mencionados na Política Nacional do Meio Ambiente. O art. 10, caput,
da LPNMA prevê que o licenciamento das atividades que causem, de qualquer
forma, degradação ambiental dependerá de prévio licenciamento em órgão
competente. O licenciamento ambiental é definido pela Resolução CONAMA
237/97 como um procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental
competente verifica a localização, a instalação, a ampliação e a operação de obras
ou atividade utilizadoras de recursos ambientais que potencial ou efetivamente
causem degradação ambiental.
A incorporação da variável ambiental e a internalização nos custos de
seus empreendimentos das despesas com o bem ambiental lesado (com suas
características específicas, com a finalidade de compatibilizar a atividade exercida
e potencialmente causadora de dano ambiental com os outros elementos
que garantem as condições essenciais para a existência humana num meio
ambiente equilibrado) trouxeram maiores garantias ao patrimônio cultural e
abriram um campo de atuação profissional para os detêm expertise em temas
patrimoniais850 (restauração, reforma, urbanismo, conhecimentos arquitetônicos,
artes, arqueologia, educação patrimonial etc.).
A avaliação de impacto ambiental e o licenciamento e a revisão
de atividades potencialmente poluidoras (art. 9º, III e IV) permitem uma
intervenção direta do IPHAN (e dos órgãos estaduais e municipais com atribuição
de fiscalizar e proteger com o patrimônio cultural), para a análise e avaliação dos
riscos e impactos decorrentes do empreendimento, sob a ótica dos bens culturais.
Desse modo, a proteção aos bens, no licenciamento ambiental, tem início a
partir do primeiro contato formal do empreendedor com o órgão licenciador,
num momento anterior à elaboração do Estudo de Impacto Ambiental.

849
“O mais importante dentre todos os mecanismos de controle é o licenciamento ambiental. Através do licencia-
mento a Administração Pública, no uso de suas atribuições, estabelece condições e limites para o exercício de
determinadas atividades” (ANTUNES. Direito ambiental, p. 86).
850
O art. 11 da Resolução CONAMA 237/97 prevê que os estudos devem ser feitos por profissionais legalmente
habilitados, sendo que os profissionais da área de patrimônio cultural devem se submeter ao IPHAN (ou órgão
de cultura do estado ou município).

Ines Virginia P Soares - dir ao 417 417 12/8/2009 16:04:28


418 Inês Virgínia Prado Soares

Apesar do procedimento de licenciamento tramitar perante o órgão


ambiental, em muitas situações existe a possibilidade de identificação de
significativos sítios arqueológicos ou pré-históricos, sítios de interesse histórico,
de notável beleza paisagística, enfim, sítios de valor cultural. Por isso, quando o
licenciamento se der no plano federal, torna-se imprescindível a participação da
autarquia federal competente para a proteção do patrimônio cultural, que é o
IPHAN, desde o momento do estabelecimento das diretrizes para a elaboração
dos estudos. Quando o procedimento de licenciamento for no plano estadual,
faz-se necessária a participação dos órgãos estaduais de cultura. Em todos os
casos de licenciamento ambiental, é obrigatória a manifestação da Prefeitura
Municipal, por meio de expedição de Certidão declarando que o local e o
empreendimento ou atividade estão em conformidade com a legislação aplicável
ao uso e à ocupação do solo (art. 10, §1º, da Resolução CONAMA 237/97). Com
isso, os bens culturais urbanos, em conjunto ou edificações isoladas, tombados ou
não, bem como a área envoltória ficam protegidos e devem ser considerados na
expedição da Certidão. E mais: os suportes físicos de bens culturais imateriais851
também devem ser reconhecidos para fins de expedição da aludida Certidão.
Ademais, mesmo que o licenciamento se dê no plano estadual, o indício de
presença de bens arqueológicos ou pré-históricos na área do empreendimento
exige a participação do IPHAN desde o início do processo de licenciamento. O
fundamento legal para participação do IPHAN nesses casos, além das normas
ambientais mencionadas, está nos ditames da Lei 3.924/61, que é a norma matriz
para o tratamento dos bens arqueológicos no país. Em seu O artigo 3º assevera
serem “proibidos em todo território nacional o aproveitamento econômico,
a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas arqueológicas ou
pré-históricas (...) antes de serem devidamente pesquisados”. O art. 4o indica
que o exercício de atividade de exploração de sítios arqueológicos deve ser
comunicado ao IPHAN para efeito de exame, registro, fiscalização e salvaguarda
do interesse da ciência. E, ainda no mesmo diploma, o artigo 5º dispõe que
qualquer ato que importe na destruição ou mutilação dos monumentos a que se
refere seu artigo 2º (que define os bens arqueológicos) será considerado crime
contra o Patrimônio Nacional e, como tal, punido de acordo com o estabelecido
nas leis penais.
Por isso, em decorrência de exigência legal, o interesse público de proteção
dos bens arqueológicos colocados em risco (mesmo que potencialmente) pelo
empreendimento objeto do licenciamento exige a intervenção obrigatória do
IPHAN. Aplicável é o §1º do art. 4º da Resolução CONAMA nº 237/97, que

851
Esses bens imateriais já devem ter inventariados, mapeados ou de alguma forma identificados. Não há neces-
sidade de existência de um procedimento formal de reconhecimento dos bens imateriais, como pelo registro,
por exemplo. Apenas que estes sejam importantes para a comunidade.

Ines Virginia P Soares - dir ao 418 418 12/8/2009 16:04:28


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 419

estabelece que o IBAMA fará o licenciamento de obras de significativo impacto


ambiental de âmbito nacional ou regional após considerar o exame técnico proce-
dido pelo órgão competente envolvido no procedimento de licenciamento. O
exame técnico se baseará em estudos realizados por profissionais legalmente
habilitados, que se darão às expensas do empreendedor, nos termos do art. 11
da Resolução CONAMA nº 237/97. No mesmo sentido é o art. 4º da Carta de
Lausanne:852
Os projetos de desenvolvimento constituem uma das maiores ameaças físicas feitas ao
patrimônio arqueológico. A exigência feita aos empreendedores para que realizem estudos
de impacto arqueológico antes da definição do programa de empreendimento deveria
estar enunciada em uma ação própria, prevendo no orçamento do projeto o custo dos
estudos. Esse princípio deveria também estar estabelecido na legislação referente aos
projetos de desenvolvimento de forma a minimizar seus impactos sobre o patrimônio
arqueológico.

A localização dos sítios arqueológicos é uma exigência da Portaria SPHAN


07/88,853 artigo 5º, inciso III, e da Portaria IPHAN 230/2002.854 A Portaria SPHAN
07/88 regulamentou o ato de outorga para execução de projeto que afete direta ou
indiretamente sítio arqueológico. Contudo, como a Portaria, em muitas situações,
não harmonizava as fases do licenciamento ambiental e acaba ocorrendo uma
ilegal supressão do poder de polícia do IPHAN, esta autarquia regulamentou,
pela Portaria 230/02, como o empreendedor deve proceder em cada uma das
fases de obtenção das licenças ambientais, com objetivo de instrumentalizar o
seu exercício do poder de polícia e compatibilizar as fases do procedimento
ambiental, cuja tramitação se dá nos órgãos ambientais competentes.
Em caso de participação do órgão cultural no licenciamento, nessa fase
que antecede a expedição da Licença Prévia, o IPHAN (ou órgão estadual ou
municipal equivalente) indicará quais estudos e documentos precisam para a
avaliação do empreendimento, sob a vertente do patrimônio cultural. Existe,
inclusive, a hipótese de impossibilidade de aceitação das alternativas locacionais
colocadas por um dano irreversível a bem arqueológico, paleontológico,
paisagístico, entre outros, ou mesmo a necessidade de complementação do
material apresentado para nova análise antes expedição da Licença Prévia.
O cumprimento das obrigações estabelecidas sob a ótica patrimonial e
a avaliação do material apresentado cabem ao IPHAN (ou órgão estadual ou
municipal equivalente), que emitirá sua manifestação sobre a possibilidade de

852
Carta para a Proteção e a Gestão do Patrimônio Arqueológico ICOMOS/ICAHM, Lausanne, 1990.
853
Essa Portaria estabelece os procedimentos necessários à comunicação prévia, às permissões e às autorizações
para pesquisas e escavações arqueológicas em sítios previstos na Lei 3.924/1961.
854
Esse documento traz dispositivos para a compatibilização e obtenção de licenças ambientais em áreas de
preservação arqueológica.

Ines Virginia P Soares - dir ao 419 419 12/8/2009 16:04:28


420 Inês Virgínia Prado Soares

expedição da licença prévia (LP). Sem prejuízo da manifestação do órgão cultural,


esse mesmo material deve servir como subsídio para a formação da decisão
do órgão licenciador ambiental acerca do empreendimento e seus impactos
como um todo, devendo ser considerado no momento das condicionantes para
as outras fases do licenciamento e também na elaboração das compensações
devidas pelo impacto causado (por exemplo: obrigações de implementar e
manter museus, programas de educação patrimonial, restauração de bens na
área de influência etc.).
O Decreto 99.274/90855 dispõe, em seu artigo 19, caput e inciso I, que o
Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá, entre
outras, a Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento da atividade,
contendo requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação
e operação, observados os planos municipais, estaduais ou federais de uso do
solo. Desse modo, já nesta fase é imprescindível a manifestação do Instituto
de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional quando exista possibilidade de
identificação de significativos sítios culturais, especialmente sítios arqueológicos,
na localidade a serem desenvolvidas as obras ou as atividades.
A manifestação do IPHAN deve ser antes da expedição da Licença
Prévia, já que deverá ser considerada pelo órgão licenciador na opção da
alternativa locacional. Outro aspecto igualmente importante é que a comunidade
conheça, desde a audiência pública, o patrimônio cultural (sua existência, suas
características etc.) e os impactos advindos do empreendimento para o bem. A
informação para a comunidade proporciona que esta passe a exigir que o bem
cultural cumpra suas funções de servir de elo com o passado, de fortalecer a
identidade e a memória da comunidade, por meio de valores e sentimentos
afetivos e de servir de recursos (função de sustentabilidade). Nesse enfoque,
a existência de manifestação do IPHAN no momento da audiência pública
possibilita uma maior efetividade na tutela do bem arqueológico, desde o
aproveitamento da mão de obra local para realização de trabalhos arqueológicos
até a reinserção do bem na comunidade.
O art. 19 da Resolução CONAMA 237/97 arrola como fundamentos da
suspensão ou do cancelamento da licença expedida a violação ou inadequação
de quaisquer condicionantes ou normas legais, omissão ou falsa descrição de
informações relevantes e superveniência de graves riscos para a saúde e para o
meio ambiente. Assim, caso seja verificado, após a emissão da licença, que os
estudos sobre o patrimônio cultural não foram realizados de maneira adequada,
ou mesmo se surgirem, ao acaso, indícios de bens culturais materiais (ou de
suportes físicos de bens imateriais) significativos no entorno ou no local de

855
Que regulamenta a Lei 6.938/81.

Ines Virginia P Soares - dir ao 420 420 12/8/2009 16:04:28


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 421

funcionamento do empreendimento, pode-se suspender ou cancelar a licença


até que sejam atendidas as exigências para a proteção do patrimônio cultural.
Vale ainda destacar que, no âmbito federal, a Lei 9.784/99, que regula
o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal,
de modo expresso, considera obrigatória e vinculante a manifestação do órgão
competente para a proteção do bem atingido ou ameaçado, mesmo que o
procedimento administrativo tramite em outro órgão da Administração Pública.
A ausência de manifestação é motivo suficiente e legal para o não seguimento do
procedimento (art. 42, §1º, da Lei 9.784/99).856 Por isso, como o licenciamento é
um processo administrativo, cabe a observância também do teor dessa norma.
Por fim, resta mencionar a possibilidade do uso pelo IPHAN do instrumento
de revisão do licenciamento ambiental ou do cancelamento ou suspensão de
atividades efetiva ou potencialmente poluidoras (arts. 9º, inc. IV, e 10 da LPNMA
e art. 19 da Resolução CONAMA 237/97) quando se verificar ausência de
manifestação do órgão cultural ou quando forem descobertos, posteriormente,
indícios de danos significativos aos bens culturais em virtude do empreendimento
ou atividade licenciada pelo órgão ambiental competente.
A hipótese da revisão foi introduzida pela Lei de Política Nacional do
Meio Ambiente (art. 9º, IV). Esse dispositivo admite que o órgão responsável
pelo patrimônio cultural utilize o instrumento legal da revisão do licenciamento
ambiental quando verificar dano ou ameaça de dano aos bens culturais. A doutrina
compatibiliza essa revisão com o prazo de validade das licenças ambientais (art.
18 da Resolução CONAMA 237/97). Porém, vale ressaltar a possibilidade de
exigência ou complementação de estudos sobre patrimônio cultural a qualquer
tempo, quando se verificar que tais estudos não foram realizados no momento
de licenciamento ou que não seguiram as regras estabelecidas nos documentos
apropriados (Termos de Referência, Diagnósticos, Inventários etc.).
Nesse caso, como a responsabilidade do empreendedor é objetiva,
a obrigação de proteção de todos os bens atingidos pelo empreendimento
persiste, mesmo que os órgãos tenham sido omissos ou agido com negligência,
imprudência ou imperícia. E, como o bem cultural já estava no local da obra ou
serviço, não há que se argumentar acerca do não cabimento das exigências para
sua preservação, por serem novos ou terem decorrido de necessidades culturais
ou sociais posteriores, desvinculadas do empreendimento licenciado.
No que tange ao patrimônio arqueológico, os estudos podem ficar extrema-
mente comprometidos quando não são feitos no momento do EIA e antes da
concessão das licenças. Porém, por ser o bem arqueológico não renovável, a

856
Vale ressaltar que a obrigatoriedade da participação do IPHAN e a vinculação do órgão ambiental não está
pautada nessa lei apenas, já que os licenciamentos no âmbito estadual não seriam procedimentos alcançados
pela regulação mencionada. Mas a Lei reforça o argumento apresentado.

Ines Virginia P Soares - dir ao 421 421 12/8/2009 16:04:28


422 Inês Virgínia Prado Soares

produção de conhecimento e o resgate dos bens são medidas que resguardam o


direito fundamental ao patrimônio cultural. Por isso, cabe exigir estudos arqueo-
lógicos inclusive para a adoção de outras providências, principalmente no que
tange a restrições e limitações do exercício de direitos em razão das características
do sítio. Nesse sentido, a Portaria IPHAN 28/03 estabelece em seu art. 1º que
os reservatórios de empreendimentos hidrelétricos de qualquer tamanho ou
dimensão dentro do território nacional deverão, na solicitação da renovação da
licença ambiental de operação, prever a execução de projetos de levantamento,
prospecção, resgate e salvamento arqueológico da faixa de depleção.
Em suma: o IPHAN (ou os órgãos municipal e estadual com atribuição para
tutela dos bens culturais) tem intervenção obrigatória na revisão do licenciamento
ambiental em todos os casos em que exista indício de risco ao patrimônio cultural,
independente de os bens serem tombados. Para atingir tal finalidade, o órgão
cultural pode, inclusive, ter a iniciativa de exigir a revisão do procedimento ao
órgão ambiental (respeitados os prazos regulamentares das licenças), mesmo
que estudos e documentação a serem apresentados versem apenas sobre o
patrimônio cultural impactado. Neste momento, cabe o estabelecimento, para
o empreendedor, de outras condicionantes, específicas para a preservação ou
proteção dos bens culturais, bem como a previsão de outras compensações.

11.2.2 Licenciamento ambiental e Portaria IPHAN 230/2002


O patrimônio arqueológico tem na Portaria IPHAN 230/2002, que norma-
tizou os trabalhos arqueológicos desenvolvidos durante o licenciamento
ambiental, um instrumento que efetivamente pode minimizar os danos arqueo-
lógicos decorrentes das obras e serviços potencialmente lesivos. Essa Portaria tem
por finalidade compatibilizar as fases de obtenção de licenças ambientais com
os estudos preventivos de arqueologia. Para isso, estabelece os procedimentos
necessários nas fases de licença prévia (LP), licença de instalação (LI) e licença
de operação (LO).
Dos arts. 1º a 4º estão estabelecidos os trabalhos arqueológicos a serem
adotados para composição do EIA/RIMA e a conseqüente obtenção da Licença
Prévia. Entre a finalização do EIA/RIMA e a expedição da Licença Prévia há
o momento da audiência pública, no qual todos os estudos ambientais, entre
os quais estão os estudos arqueológicos, serão apresentados e debatidos com
a sociedade. Por isso, desde esse momento é cabível a tratativa da questão
da educação patrimonial, a ser trabalhada junto com o Poder Público local,
a comunidade leiga e a comunidade arqueológica, num projeto que deve ser
financiado, por força legal, pelo empreendedor.
A importância, para a proteção do patrimônio arqueológico, de os estudos
arqueológicos serem sincronizados com as expedições de licenças, especialmente

Ines Virginia P Soares - dir ao 422 422 12/8/2009 16:04:28


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 423

da Licença Prévia, assume maior realce na consideração da decisão acerca da


alternativa locacional e, dependendo do tipo de obra, nas discussões sobre as
mudanças de traçado com a finalidade de melhor se atender à tutela dos bens
arqueológicos.
Nessa fase inicial, vale destacar ainda a relevância do detalhamento do
Termo de Referência para elaboração do Estudo de Impacto Ambiental. A menção
genérica que deve ser feita por levantamento do potencial histórico, cultural
e arqueológico deve ser substituída por termos mais precisos e detalhados que
sejam aplicáveis ao caso concreto e que atendam à proteção do patrimônio
arqueológico. Quanto mais claro, objetivo e detalhado o Termo de Referência,
maiores serão as chances de sucesso na utilização dos instrumentos judiciais
(tutela antecipada ou ação civil pública, por exemplo) e extrajudiciais (assinatura
de Termo de Ajustamento de Conduta).
Os arts. 5º e 6º da Portaria 230/02 apresentam os procedimentos a serem
adotados nas fases antecedentes às licenças de instalação (LI) e de operação.
A indicação do art. 5º é de que o Programa de Prospecção preveja também
prospecções intensivas nos locais que sofrerão impactos indiretos potencialmente
lesivos ao patrimônio arqueológico, tais como as áreas de reassentamento de
população, expansão urbana o agrícola, serviços e obras de infra-estrutura.
Os arts. 7º e 8º abordam a temática da educação patrimonial, imputando
ao empreendedor a obrigação de arcar com os custos financeiros de programas
destinados à gestão do material arqueológico resgatado. Esses artigos apresentam
um diferencial em relação às diretrizes internas utilizadas pelo IPHAN.
Além das portarias IPHAN mencionadas, vale destacar a edição da Reso-
lução SMA 34/03 pela Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo, que, no §1º do
art. 2º, afirma a competência do IPHAN para avaliar os assuntos de arqueologia
no licenciamento ambiental. Embora tal afirmação decorra do texto legal, ainda
é de extrema importância que os órgãos licenciadores — no âmbito estadual —
tenham fixado a necessidade de consulta do órgão competente para fiscalização
do patrimônio arqueológico. Ainda nessa Resolução, fica estabelecido que os
estudos ambientais são necessários se forem constatados indícios, informações
ou evidências de sítios arqueológico ou pré-histórico (parágrafo único do
artigo 1º). Por fim, o art. 5º obriga a comunicação de descoberta fortuita — pelo
responsável pelo empreendimento ou atividade — de qualquer elemento de
interesse arqueológico ou pré-histórico.857

857
No mesmo sentido, é a Resolução ANEEL 63/2004, que aprova procedimentos no art. 5º, VII, estabelece:
“Constitui infração, sujeita à imposição de penalidade de multa do Grupo II:VII – deixar de comunicar,
imediatamente, aos órgãos competentes, a descoberta de materiais ou objetos estranhos às obras, que possam
ser de interesse geológico ou arqueológico”.

Ines Virginia P Soares - dir ao 423 423 12/8/2009 16:04:28


424 Inês Virgínia Prado Soares

Apesar da previsão normativa e da busca constante de mecanismos e


instrumentos para proteção do patrimônio arqueológico, ainda é reiterada a
postura de desatenção e de mutilação desse bem cultural, como também ocorre
de modo geral com o patrimônio cultural brasileiro, constantemente destruído por
empreendimentos e atividades econômicas.858 As normas existentes no sistema
ambiental brasileiro abarcam grande número de situações e podem ser melhor
utilizadas para tutela dos bens culturais. Nesse sentido, a existência da legislação
ambiental e patrimonial possibilita que o Estado lance mão apenas de seu poder
regulamentar para garantir a efetiva proteção dos bens culturais expostos ao risco
em razão de atividades e obras potencial ou concretamente lesivas.
A Portaria IPHAN 28/03 apresenta novidades que contribuem para a
tutela efetiva do patrimônio arqueológico afetado por grandes obras. Com o
objetivo de minimizar os efeitos dos empreendimentos licenciados, os quais não
contemplaram patrimônio arqueológico, o artigo 1º estabelece que os empre-
endimentos hidrelétricos de qualquer tamanho ou dimensão dentro do território
nacional deverão ser estudados, resgatados e salvos, quando da renovação da
licença ambiental de operação.
No entanto, o IPHAN (e os órgãos de cultura dos Estados e Municípios)
tem competência para exigir, a qualquer tempo, os estudos sobre patrimônio
cultural que não foram feitos durante o licenciamento, já que a responsabilidade
do empreendedor é objetiva e não está elidida pela omissão do órgão licenciador
ou por quaisquer outros motivos que tenham suscitado a omissão injustificada
da tutela desses bens.

11.2.3 EIA/RIMA e apreciação do impacto cultural


A apresentação, pelo empreendedor,859 de estudos e documentos sobre os
riscos e conseqüências do projeto é indispensável para atuação da Administração e
para o regular prosseguimento do licenciamento ambiental. Nos casos de obra ou

858
Nesse sentido, vale destacar a propositura de ação civil pública em 2007 pelo Ministério Público contra o
Município de Pacujá (Ceará), 18ª Vara Federal do Ceará, autos 2007.81.03.0002936. A ação foi proposta em
decorrência da construção de rodovia nas proximidades do local em que se encontra sítio arqueológico.
Segundo a ação, o sítio descoberto na cidade de Pacujá é detentor de um acervo ímpar para o patrimônio
cultural brasileiro, além das notáveis qualidades paisagísticas da região. Nesse local, foram localizados
vestígios de atividades de organismos, pegadas, pistas, perfurações etc. e recentemente foi realizada retirada
de um esqueleto de preguiça gigante. Foram também encontradas peças, tais como, machados, batedores,
almofarizes, de importante valor arqueológico, as quais já estão sendo estudadas pela Universidade do Vale
do Acaraú e do próprio IPHAN. A riqueza da área recomenda a sua conservação in situ, com a implantação
de projeto ecológico, turismo científico e criação de parque. No entanto, a obra foi feita sem licenciamento
ambiental e, por conseqüência, sem EIA/RIMA em desobediência aos ditames da Portaria IPHAN 230/02.
859
Nesse caso, independentemente de ser público ou privado o empreendedor, é administrado para efeitos de
submissão ao órgão licenciador. Claro que os órgãos públicos têm características próprias, mas não estão
isentos de cumprimento de todas as etapas do procedimento de licenciamento ambiental, com a apresentação
da documentação e estudos necessários.

Ines Virginia P Soares - dir ao 424 424 12/8/2009 16:04:28


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 425

atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente,


cabe ao Poder Público exigir a apresentação de Estudo Prévio de Impacto Ambiental
(art. 225, §1º, inc. IV, da CF) e não apenas de estudos ambientais.860
O Estudo de Impacto Ambiental é um procedimento público, que exige
a participação do órgão licenciador e dos outros órgãos públicos, dentro das
atribuições específicas, para a indicação das diretrizes do Estudo. Assim, os
Poderes Públicos envolvidos devem estabelecer o conteúdo básico do material
que será apresentado pelo empreendedor, com os aspectos e documentos
indispensáveis para a avaliação dos impactos. Nas palavras do Prof. Paulo
Affonso Leme Machado:

O Estudo de Impacto Ambiental é um procedimento público. Dessa forma não é possível


entender-se como tal um estudo privado efetuado por uma equipe multidisciplinar sob
encomenda do proponente do projeto, uma vez que é imprescindível a intervenção inicial
do órgão público ambiental desde o início do procedimento (arts. 5º, parágrafo único, 6º,
parágrafo único, e 11, parágrafo único, todos da Resolução 1/86-CONAMA e Resolução
6/86-CONAMA, modelos 1 e 2).861

O Estudo de Impacto Ambiental — EIA — já estava previsto na Lei


6.803/80, que continha as noções de estudo e avaliação ambientais, e ganhou
seus contornos legais definitivos com a Lei de Política Nacional de Meio Ambiente
(Lei 6.938/81). Com a Constituição, o EIA adquire status de instrumento
preventivo essencial e indispensável nos empreendimentos que causem
significativa degradação ao meio ambiente.
A partir da previsão legal, o Estudo de Impacto Ambiental — EIA — foi
logo regulamentado pelo CONAMA.862 A Resolução CONAMA 01/86 (alterada
pelas Resoluções 11/86 e 05/87) conceituou impacto ambiental (art. 1º) e tornou
o EIA obrigatório para diversas atividades, estabelecendo os critérios básicos
e diretrizes gerais para a sua elaboração. Os estudos objeto do EIA devem
contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto e
servirão de base para a elaboração do Relatório de Impacto Ambiental/RIMA,
que deverá ser objetivo, compreensível e acessível ao público. A Resolução
também indicou a hipótese de não execução da obra ou atividade objeto do
licenciamento quando os Estudos revelassem que tal empreendimento seria

860
A Resolução CONAMA 237/97, art. 1º, inc. III, conceitua Estudos Ambientais como “todos e quaisquer estudos
relativos aos aspectos ambientais relacionados à localização, instalação, operação e ampliação de uma atividade
ou empreendimento, apresentado como subsídio para a análise da licença requerida, tais como: relatório
ambiental, plano e projeto de controle ambiental, relatório ambiental preliminar, diagnóstico ambiental, plano
de manejo, plano de recuperação de área degradada e análise preliminar de risco”.
861
Direito ambiental brasileiro, p. 199.
862
A LNPMA inclui entre as competências do CONAMA a de estabelecer, mediante proposta do IBAMA, normas
e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, a ser concedido pelos
Estados e supervisionado pelo IBAMA (art. 8º, I).

Ines Virginia P Soares - dir ao 425 425 12/8/2009 16:04:28


426 Inês Virgínia Prado Soares

significativamente degradador da qualidade ambiental e, portanto, incompatível


com o desenvolvimento sustentável.
A sua previsão no artigo 225, §1º, inc. IV, da Constituição realçou sua
imprescindibilidade para defesa do meio ambiente. Assim, esse instrumento
embora já bastante forte legalmente e com ampla utilização no âmbito admi-
nistrativo, alcança nível constitucional, vinculando, ainda mais, o Poder Público
e os empreendedores. A denominação constitucional realça o caráter preventivo
do instrumento com o acréscimo do vocábulo prévio (Estudo prévio de impacto
ambiental). Sobre esse ponto, vale trazer as palavras do Prof. Paulo Affonso
Leme Machado:
A CF exigiu o mínimo mas, evidentemente, não proibiu maior exigência da legislação
ordinária. É a primeira no mundo que prevê o EIA, o que é uma conquista, pois legislador
ordinário (e, via de conseqüência, o Poder Executivo e o Poder Judiciário) não poderão
abrandar as exigências constitucionais. Acentuamos que a legislação ordinária validamente
já exige o EPIA não só para a instalação, como para a operação de obra ou atividade.
‘Significativa’ é o contrário de insignificante, podendo-se entender como a agressão
ambiental provável que possa causar dano sensível, ainda que não seja excepcional ou
excessivo.863

Antes da elaboração do EIA cabe ao IPHAN (ou aos órgãos estaduais e


municipais com atribuição equivalente, quando os bens culturais estejam sob sua
tutela), entre outras imposições: a) traçar as diretrizes, por meio de um Termo
de Referência, dos estudos a serem feitos especificamente em relação aos bens
culturais materiais ou de suportes físicos de bens imateriais; ou b) indicar, no
caso dos bens imateriais, a metodologia para a realização de Inventário para
mapear os bens imateriais a serem afetados pelo empreendimento. Tanto o
Inventário como o Termo de Referência devem ser exigidos pelo Poder Público
licenciador e apresentados pelo empreendedor antes da licença prévia, como
partes integrantes do EIA.
A exigência de tais estudos patrimoniais, que devem integrar o EIA, é
medida preventiva que facilitaria a tutela dos bens culturais, especialmente nas
intervenções posteriores ao empreendimento ou atividade licenciada. Esses
estudos são, logicamente, cabíveis no plano jurídico. Porém, a sua exigência
não encontra eco nas repartições que cuidam do patrimônio cultural nem nos
órgãos licenciadores. A prática revela a enorme dificuldade de sistematização dos
dados e uniformização produzidas e de sincronização das atuações do IPHAN e
órgão ambiental em grandes empreendimentos. Nesse sentido, vale trazer trecho

863
Direito ambiental brasileiro, p. 192-193. A Declaração do Rio de Janeiro/92, em seu princípio 17, também
afirma a importância do instrumento quando diz que “a avaliação de impacto ambiental, como instrumento
nacional deve ser empreendida para as atividades planejadas que possam vir a ter impactos negativo
considerável sobre o meio ambiente, e que dependam de uma decisão de autoridade nacional competente”.

Ines Virginia P Soares - dir ao 426 426 12/8/2009 16:04:28


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 427

de documento produzido pela Câmara de Coordenação e Revisão de matéria


ambiental no âmbito do Ministério Público Federal, sobre o licenciamento das
obras de transposição do Rio São Francisco:
Quanto ao Patrimônio Arqueológico, informou-se que a análise dos EIA/RIMA apresentados
pelo Ministério da Integração em 2000 e 2004 revelou que as informações referentes ao
diagnóstico do patrimônio arqueológico e imaterial não foram complementadas após a
primeira negativa da Licença Prévia, em 2003, como já foi registrado na IT nº 067/05 – 4ª
CCR: ‘Uma vez que o conteúdo dos Estudos não foi alterado, o IPHAN deveria ter
adotado posicionamentos coerentes entre si, nas duas ocasiões em que foi chamado
a se manifestar, o que não ocorreu’.864

Portanto, desde a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental, deve se


observar a imprescindibilidade de participação do IPHAN (e dos órgãos estadual
e municipal equivalentes, quando os bens culturais estiverem sob sua tutela).
Nessa fase, o órgão cultural estabelece as diretrizes que devem ser adotadas em
relação à contextualização do patrimônio cultural, material e imaterial, na área
de influência do empreendimento ou atividade. Vale ressaltar que, nos termos
da Portaria IPHAN 230/2002, a contextualização arqueológica e etnohistórica
da área de influência do empreendimento deve ser feita mesmo no caso de
projetos que afetem áreas arqueologicamente desconhecidas.865 A partir dessa
contextualização, elabora-se o relatório, chamado de Diagnóstico, por meio
do qual o órgão poderá avaliar a necessidade ou não de sua intervenção no
licenciamento. A mesma exigência pode ser aplicada aos outros bens culturais

864
Informação Técnica Conjunta 144/05, p. 21. 4a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal.
Ainda conforme a Informação: “Em 2001, o IPHAN criticou a sua não-participação na elaboração do Termo
de Referência do empreendimento e apresentou um parecer técnico com críticas ao EIA-RIMA, concluindo
que os impactos sobre o patrimônio cultural foram insuficientemente avaliados. Conseqüentemente, o IPHAN
apresentou uma série de exigências que deveriam ter sido acatadas antes de o IBAMA liberar a Licença Prévia.
Isso porque, sem uma informação mais detalhada, sem a contextualização espacial dos sítios arqueológicos na
Área Diretamente Afetada e na Área de Influência Direta, não é possível diagnosticar o potencial arqueológico
da área, comprometendo o Programa de Prospecção e Salvamento dos Sítios Arqueológicos, conforme as
exigências da Portaria SPHAN 7 de 1988, artigo 5º, inciso III, e da Portaria IPHAN 230 de 2002. Já em 2004 o
IPHAN afirmou que o EIA/RIMA do Projeto de Integração atendia satisfatoriamente a legislação de proteção
e preservação do patrimônio arqueológico brasileiro, mas que, todavia, carecia de complementações. Ocorre
que nenhum parecer técnico foi apresentado para justificar tal posicionamento do órgão, comprovando que
as deficiências constatadas anteriormente teriam sido sanadas. Além disso, as complementações mencionadas
foram exigidas de modo genérico e abrangente, numa única Condicionante Específica da Licença Prévia
200/2005, abaixo transcrita: “2.10 – Realizar o projeto de levantamento e prospecção arqueológica e
identificação de áreas de interesse cultural na AID, de acordo com o Ofício 199/04-GEPAN/DEPAM/IPHAN”.
Em função dessa omissão de informações, em 21.06.2005 foi expedido o Ofício nº 1092 – 4ª CCR ao IPHAN,
solicitando esclarecimentos, mas não houve resposta do Instituto.Caso esses esclarecimentos não sejam
prestados ou sejam insatisfatórios, “o IBAMA se verá obrigado a reavaliar o atendimento das condições
gerais de validade da Licença Prévia nº 200/2005, tendo em vista as lacunas de informações relevantes
sobre o patrimônio arqueológico e cultural. (...) Entendeu-se que a Licença Prévia n.º 200/2005 não estaria
fundamentada em conhecimento satisfatório do meio ambiente na Área de Influência do empreendimento e
dos impactos por ele determinados, haja vista as várias condicionantes específicas que se referem a atividades
de diagnóstico e avaliação de eficiência de medidas de mitigação propostas no EIA do PISF”.
865
Arts. 1º e 2º da Portaria IPHAN 230/02.

Ines Virginia P Soares - dir ao 427 427 12/8/2009 16:04:28


428 Inês Virgínia Prado Soares

presentes na área de influência do empreendimento, já que se parte do mesmo


raciocínio aplicável à tutela dos bens arqueológicos.

11.2.4 A produção ou disponibilização de informação sobre


patrimônio cultural em decorrência da obra ou atividade
licenciada
A responsabilidade do empreendedor pelo patrimônio cultural impactado
em decorrência de obra ou atividade significa a assunção dos custos para o
manejo deste e para a preservação de todos os seus atributos essenciais na
fase de destinação do bem cultural, se for o caso de sua remoção em face do
empreendimento. Assim, a responsabilidade do empreendedor não se esgota
no resgate ou na descoberta de um sítio de interesse histórico, arqueológico,
paleontológico, paisagístico, enfim, de um sítio de valor cultural. Primeiro porque
nem todas as situações de dano ao patrimônio cultural se caracterizam como
dano a sítios de valor cultural. Segundo porque pode ocorrer que, por opção
administrativa ou mesmo pelos traços do bem, seja necessário a conservação
in situ do patrimônio cultural impactado.
Nos licenciamentos ambientais, os casos mais comuns de impactos aos
bens culturais se verificam nos bens arqueológicos. Por isso, o empreendedor
deve assumir os custos de todas as fases do procedimento de arqueológico
(levantamento, estudo, proteção, conservação e valorização), desde que consta-
tados indícios, informações ou evidências da existência de sítio de interesse
cultural.866 A responsabilidade se estende para as fases posteriores ao resgate
dos artefatos arqueológicos, paleontológicos e outros de valor cultural, tais
como no investimento em pesquisas, na divulgação de relatórios e do material
arqueológico do sítio, nos projetos de educação arqueológica para a comunidade,
na criação e manutenção de espaços para colocação dos bens resgatados,
devendo essa atuação beneficiar, preferencialmente, a comunidade local.
A Portaria IPHAN 230/2002, que estabelece no âmbito arqueológico os
procedimentos necessários para a obtenção das licenças ambientais no curso
do procedimento de licenciamento, dispõe que o desenvolvimento dos estudos
arqueológicos implica trabalhos de laboratório e gabinete (limpeza, triagem,
registro, análise, interpretação, acondicionamento adequado do material coletado
em campo, bem como programa de educação patrimonial), os quais deverão
estar previstos nos contratos entre empreendedores e arqueólogos.867 Desse
modo, as atividades desenvolvidas em campo e em laboratório por força do

866
Cf. art. 1º, inciso III, da Resolução CONAMA 237/97.
867
Art. 7º.

Ines Virginia P Soares - dir ao 428 428 12/8/2009 16:04:29


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 429

licenciamento ambiental têm a finalidade precípua de produção de conhecimento


arqueológico, com a compensação de perda física dos sítios pela incorporação
dos resultados das pesquisas ao acervo nacional.868
Portanto, não basta a realização dos estudos e pesquisas, faz-se obrigatória
a apresentação, pelo empreendedor, das informações colhidas nos trabalhos
arqueológicos. Primeiro porque é uma obrigação legal, e segundo porque os
dados arqueológicos devem estar disponíveis para outras interpretações. A
obrigação não fica limitada à operação de salvamento, mas perdura na manu-
tenção do espaço de exposição e fruição do bem arqueológico pela comunidade.
O empreendedor deve considerar, para fins de previsão no orçamento do
projeto, a variável arqueológica no empreendimento a ser realizado e incorporar
aos seus custos a preservação do bem cultural que sofre o impacto do regular
desempenho de sua atividade numa perspectiva de tempo duradoura.

11.2.5 Da criação da reserva arqueológica em decorrência de


atividades e empreendimentos licenciados
No curso do licenciamento ambiental pode ocorrer situação que exija
a suspensão do procedimento ambiental de licenciamento ou a indicação de
condicionantes pelo IPHAN e pelo órgão licenciador, com a finalidade de
preservar a área delimitada como reserva, no tempo estabelecido. Nesse sentido,
a reserva arqueológica se apresenta como um instrumento preventivo a ser
considerado no curso do licenciamento ambiental, com influência no processo
decisório de concessão das licenças ambientais, desde a alternativa locacional
e mudança de traçado até a definição de condicionantes e das compensações
que atendam à significância do sítio pesquisado.
Pode ser mencionada como exemplo a situação que ocorre com certa
freqüência nas obras de implantação de Linhas de Transmissão (Lts). No âmbito
arqueológico, os sítios podem extrapolar a extensão da faixa de servidão das
linhas de transmissão. O levantamento do sítio pode ser feito nos limites da
faixa de servidão, sem maiores problemas. Porém, o salvamento dos bens
arqueológicos deve se realizar antes da implantação das torres e não pode ficar
restrito à área de servidão, se o sítio for mais abrangente. Por outro lado, o art.
11 da Lei 3.924/61 exige que o proprietário do terreno (ou quem esteja no seu
gozo) dê uma autorização por escrito para que o salvamento seja realizado.
Desse modo, como medida preventiva e temporária, deve ser decretada a reserva
arqueológica até a finalização dos trabalhos.

868
Art. 6º, §2º, da Portaria IPHAN 230/2002.

Ines Virginia P Soares - dir ao 429 429 12/8/2009 16:04:29


430 Inês Virgínia Prado Soares

Como já argumentado, a reserva arqueológica causa uma restrição


temporária ao direito de propriedade, que deve ser arcada pelo empreendedor,
quando a reserva resultar do procedimento arqueológico realizado em virtude
de obra ou atividade submetida a licenciamento ambiental. Como o nexo de
causalidade que justifica a responsabilidade do empreendedor é a realização
da atividade e o dano causado ao bem e como, por conseqüência, cabe a este
arcar com todos os custos relativos ao levantamento, estudo, proteção, conser-
vação e valorização do patrimônio arqueológico, claro está que deverá também
assumir os custos decorrentes da utilização uso da propriedade privada como
reserva arqueológica.
A reserva arqueológica pode ser conceituada como um instrumento
acautelatório provisório para realização do direito fundamental ao patrimônio
cultural, a ser criado por lei, que afeta uma área pública ou privada, para
cumprimento da finalidade pública de produção e registro de conhecimento
arqueológico, o qual deve servir às presente e futuras gerações.
A atuação preventiva na produção de conhecimentos arqueológicos
pressupõe a reserva, geralmente temporária, do espaço físico no qual se desen-
volverão as pesquisas, como modo de se garantir a execução dos trabalhos
arqueológicos. Nesse sentido, a Lei 3.924/61, em seus artigos 8º, 9º e 18, parágrafo
único, indica a restrição do direito de propriedade em face da hipótese de presença
de bens arqueológicos (bens da União) na sua área. Porém, a mencionada lei
não considerou a possibilidade de identificação de sítio significativo, em que
se apresentem riscos reais de lesão e, ao mesmo tempo, a própria característica
do sítio exija a realização de pesquisas e registros consistentes num decurso
temporal mais largo. Esse tempo deve ser suficiente para causar uma restrição
ao direito de propriedade, porém exíguo o bastante para não se enquadrar nos
instrumentos já previstos em lei: tombamento, desapropriação ou criação de
Unidade de Conservação.
Os elementos confiáveis apresentados no processo de salvamento arqueo-
lógico passíveis de contestação científica, a comprovação cabal de que a atividade
não é ou não será prejudicial à integridade dos elementos arqueológicos, exigem
que o órgão licenciador e o IPHAN adotem medidas acautelatórias. Por isso,
embora a reserva arqueológica seja um desdobramento da permissão do IPHAN
para realização das escavações (art. 8º) e se justifique constitucionalmente como
medida acautelatória em face da representatividade e de riscos (art. 216, §1º, e
art. 225, III), faz-se necessária a sua previsão legal.869

869
Nesse sentido, vale trazer a Lei 11.132/2005, que acrescenta o artigo 22-A à Lei 9985/2000, que, em assunto
semelhante, chama medida de limitação administrativa provisória e concede um prazo de sete meses
improrrogáveis para a destinação final da área. Embora os objetivos sejam diversos, em razão da natureza
dos bens protegidos, na reserva arqueológica e na limitação tratada pelo dispositivo, a concepção em ambos
os casos se pauta na possibilidade de risco de dano grave aos bens. Desse modo, está disposto: “O Poder

Ines Virginia P Soares - dir ao 430 430 12/8/2009 16:04:29


Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro 431

A reserva arqueológica tem, assim, caráter preventivo e temporário. Por


estar lastreada no princípio da precaução, caso, no curso das investigações, seja
verificada a necessidade de utilização da área para fins arqueológicos, deve-se
proceder à desapropriação para criação de parque arqueológico ou Unidade
de Conservação de interesse arqueológico. Do mesmo modo, se durante as
pesquisas for verificada a desnecessidade de continuação dos trabalhos in situ,
caberá a desoneração da área:
Como as decisões das autoridades competentes são tomadas em razão de riscos, cuja
certeza não é total, essas decisões passam a ser provisórias, na medida temporal em
que se espera o surgimento da certeza. Sob o ângulo da busca da segurança jurídica,
há de ser ponderado que essas decisões não sejam definitivas, pois buscam sanar
problemas advindos da incompletude de dados científicos. Quando esses dados forem
adequadamente conhecidos, as medidas advindas da aplicação do princípio da precaução
serão adaptadas às novas informações, isto é, poderão ser mantidas ou modificadas.
Se as decisões originárias do princípio da precaução fossem definitivas, elas estariam
vedando ou desestimulando as pesquisas cientificas e tecnológicas destinadas a eliminar
ou a diminuir a incerteza.870

A partir do estabelecimento legal do instrumento denominado reserva


arqueológica e da decorrente da restrição ao direito de propriedade, com
a submissão do bem, particular ou público, às atividades necessárias para a
produção do conhecimento arqueológico, o qual será revertido em proveito da
coletividade, devem ser regulamentados condições, prazos,871 finalidades etc.,
enfim todo o detalhamento para a criação e funcionamento desse instrumento.
Vale ressaltar que os direitos e os ônus dos proprietários, as atribuições do IPHAN
e o limite temporal máximo872 no que tange à reserva arqueológica devem ser
estabelecidos de forma clara na Lei, especialmente no que tange ao pagamento
de indenização pela restrição à propriedade, durante o período no qual esta se
destina à produção do conhecimento arqueológico.
Depois de criado o instrumento acautelatório, o órgão responsável (IPHAN
ou Ministério da Cultura) deverá regulamentar o procedimento de demarcação da
reserva arqueológica com critérios, prazos, enfim, detalhamento. O procedimento

Público poderá, ressalvadas as atividades agropecuárias e outras atividades econômicas em andamento e obras
públicas licenciadas, na forma da lei, decretar limitações administrativas provisórias ao exercício de atividades
e empreendimentos efetiva ou potencialmente causadores de degradação ambiental, para a realização de
estudos com vistas na criação de Unidade de Conservação, quando, a critério do órgão ambiental competente,
houver risco de dano grave aos recursos naturais ali existentes”.
870
MACHADO. Princípio da Precaução..., p. 35-50.
871
Entendemos que o período máximo da reserva arqueológica é de cinco anos, contados a partir do início das
pesquisas, já que um período maior que esse afigura em um ônus demasiado ao proprietário e afronta o
princípio da proporcionalidade.
872
Entendemos que o período máximo da reserva arqueológica é de cinco anos, contados a partir do início das
pesquisas, já que um período maior que esse afigura em um ônus demasiado ao proprietário e afronta o
princípio da proporcionalidade.

Ines Virginia P Soares - dir ao 431 431 12/8/2009 16:04:29


432 Inês Virgínia Prado Soares

deve ser ágil com vistas a preservar os direitos do proprietário onde se encontram
os bens arqueológicos e em razão da fragilidade do bem arqueológico. Deve
ter como diretriz o princípio ambiental da precaução, os princípios da matriz
finita e da conservação in situ) e o princípio da função social da propriedade.
A adequação da implantação da reserva arqueológica se justifica pela
própria característica dos bens encontrados em solo brasileiro, que, na maioria
das vezes, ficam mais seguros se resgatados. Ao mesmo tempo, se a operação
de salvamento e resgate é feita sem os estudos e registros que dificultem ou
inviabilizem a compreensão do contexto e outras possíveis interpretações, o
patrimônio arqueológico não cumprirá suas funções, nem a Administração
atingirá o objetivo colimado.
Nesse sentido, a reserva é medida acautelatória, de cunho excepcional,
quando descartada, pelo IPHAN e pelo Poder Público, a instalação ou continuidade
do procedimento normalmente previsto. A medida de implantação da reserva
será necessária quando se revelar a menos lesiva, relativamente aos demais
instrumentos que poderiam ser utilizados para tutela do bem arqueológico.
O equilíbrio ou a tolerabilidade da medida para o proprietário, que tem seu
direito restringido em um lapso temporal anormal em virtude da reserva arqueo-
lógica, estão justificados na função social da propriedade e ficam atenuados pela
possibilidade de indenização de prejuízos e perdas decorrentes da restrição
do uso e gozo pleno da propriedade. Para a parte que arcará com os valores
indenizatórios, principalmente quando esta for o empreendedor (público ou
privado) em decorrência de obra impactante realizada na área ou entorno da
reserva, a obrigação é absolutamente tolerável, com custos são previsíveis, além
de encontrar amparo constitucional e legal.

Ines Virginia P Soares - dir ao 432 432 12/8/2009 16:04:29

Você também pode gostar