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H U B E R T J_E D I N

CONCILIOS
ECUMENICOS
A .

HISTÓRIA E DOUTRINA

Tradução de
NICOLAS BOÉR

EDITORA HERDER
SÃO PAULO
1961
Versão portuguêsa sôbre a primeira edição original
alemã Kleine l(onziliengeschichte, de HUBERT JF.DIN,
publicada em 1959 por Verlag Herder KG., Freiburg
im Breisgau (Alemanha).

Distribuição em Portugal:
LIVRARIA SAMPEDRO, Lisboa.

NIHIL OllSTAT:

Monsenhor JOSÉ ALVES MOTTA FILHO


Censor

IMPRIMATUR:

t ANTÔNIO FF:RRE!RA DE MACEDO

Bispo Auxiliar do Em.'"º Sr.


Cardeal Arcebispo de São Paulo.

S. Paulo, 1.0 de janeiro de 1961

©
Copyright 1961 by Editôra Herder, São Paulo

Impresso nos Estados Unidos do Brasil


Printed in the United States of Brazil
fNDICE

PREFÁCIO IX
ELUCIDAÇÃO DA TERMINOLOGIA l

PARTE I
OS PRIMEIROS OITO CONC!LIOS ECUM1lN!COS
DA ANTIGÜIDADE 11
O "Grande e Santo Sínodo dos 318 Padres" em
Nicéia (315) - Controvérsia em tôrno do Concílio de
Nicéia - Concilio Ecumênico de Constantinopla (381)
- Duas escolas - duas imagens de Cristo - Cirilo
contra Nestório - O Theotokos de Éfeso (431) - Um
sínodo de "latrocínio" - A fé de Calcedónia (451) -
As conseqüências do monofisitismo - A questão de
Honório - Um outro mundo surge - Iconoclasmo e
veneração de imagens: o Concílio de Nicéia de 787 -
Epílogo no Ocidente - O cisma de Fócio e a sua extinção
pelo 8.° Concílio Ecumênico (869-870).

PARTE II

OS CONCfLIOS GERAIS PAPAIS DA ALTA


IDADE MÉDIA ... 47
Os sínodos papais de reforma e o concílio de paz
na época da luta das investiduras - Os dois primeiros
concílios gerais de Latrão (1123 e 1139) - Luta e paz com
Barbaroxa: o terceiro Concílio de Latrão (1179) - !no-
cencío III n o 4.° Concílio dc Latrão (!2I5) - A depo-
sição d o imperador Frederico II no Primeiro Concilio
de L y o n — Cruzada, união c o m os gregos e a ordem de
conclave n o segundo Concilio d e Lyon (1274) — A sombra
d e Bonifácio VIII - O cerimonial litúrgico da reunião d e
abertura do Concilio em V i e n n e (1311) — O processo
contra os Templários e a reforma eclesiástica,

PARTE III

ESTA O C O N C Í L I O A C I M A D O PAPA ? 79

A origem da "teoria conciliar" — O grande cisma


do Ocidente — Concilio era Pisa (1409): três Papas ao
invés de dois — O rei Sigismundo e João X X I I I convocam
o Concilio de Constança (1414-1418) — A fuga e a depo-
sição d o Papa conciliar — A resignação d e Gregorio X I I
e a deposição de Benedito XTII — A eleição d e Mar-
tinho V — A reforma eclesiástica c as concordatas —
Sentença sobre João H u s — E u g ê n i o IV e ^£_ConciÍio
de Basiléia — R u p t u r a definitiva entre o P a p a e o
Concilio — Concilio dc rmião com os gregos em Ferrara
—- Florença — Supressão do cisma de Basiléia — A sobrc-
v i \ * n c í a ~ a a idéia conciliar — U m q u i n t o Concillo d e
LaLrão (1512-1517).

PARTE IV

A CRISE RELIGIOSA F. O CONCÍLIO


DE T R E N T O 107

U m •'concílio c o m u m , livre e cristão cm países


alemães" — O passo errado em Míintua-Vicenza — diálogo
entre religiões, ao invés de concilio — A primeira con-
vocação para T r e n t o (1542) — A guerra de Schmalkden
e o Concílio de T r e n t o (1545-1547) — U m a agitada con-
gregação geral ~ Justificação e conceito de sacramento
— Transferência para B o l o n h a — Volta para T r e n t o
(1551-1552) — Os protestantes c m T r e n t o — Calvinismo
na França — Terceiro período de negociações (1562-1563)
— A grande crise conciliar e a sua extinção — As grandes -
propostas d c reforma de Morone — Encerramento e "
execução,
r

PARTE V

O CONCILIO D O V A T I C A N O 14S

O Syllabus de Pio I X — Anuncio de u m Concilio


Ecumênico — Convocação para o Vaticano — Trabalhos
preparatórios e ordem dos trabalhos — O artigo da
Civillá e a opinião pública da Europa — Instalação —
Primeiro decreto de fé — Debates sobre questões pastorais
- - A questão da infalibilidade torna-se aguda — Eco
em toda a Europa — Debates sobre o Primado e a Infa-
libilidade d o Papa — Definição d o primado papal —
Definição da infalibilidade d o Papa — Aceitação c
oposição.

FONTES E IÍSDICAÇÕES BiBLiocRAncAs 183


CRONOLOGIA 189
Prefácio

4 Q U E M D I G A , mesmo entre teólogos, q u e após


a definição solene do p o d e r jurisdicional su-
p r e m o e da infalibilidade do Papa, no Concílio do
Vaticano, os Concílios Ecumênicos p e r d e r a m a q u e l a
importância decisiva q u e lhes era própria nos pri-
meiros scculos da história da Igreja. De fato, a cons-
tante e vigilante presença do Papa, Pastor Supremo
e D o u t o r Universal da Igreja, em virtude d o carisma
da infalibilidade inerente a o seu m ú n u s apostólico,
— hoje claramente reconhecido pela consciência cató-
lica como d o g m a d e fé divina — faz com q u e os
mais de quatrocentos milhões de católicos do m u n d o
permaneçam em contato p e r m a n e n t e com o Evan-
gelho e a T r a d i ç ã o . Além d o mais, a Cátedra desem-
p e n h a suas funções supremas de poder jurisdicional
e d e magistério e m colaboração í n t i m a com o co-
légio apostólico dos bispos, ao qual cabe o d o m da
infalibilidade, seja qual fôr a forma cm q u e ensina,
"modo solemni", nos concílios, ou "modo ordinario
et universal! magisterio".
A b e m dizer, sob o p o n t o de vista teológico, os
concílios ecumênicos nunca foram estritamente ne-
cessários; o fato d e depois d o Concílio d e T r e n t o
terem passado três séculos da história eclesiástica
sem ser celebrado u m só concílio e de o Concílio do
Vaticano ter permanecido praticamente suspenso
d u r a n t e noventa anos, sem o m í n i m o prejuízo p a r a
a fé e a. disciplina d a Igreja, confirmara, com u m
a r g u m e n t o histórico e prático, a tese eclesiológica,
segundo a qual os concíiios ecumênicos representam
apenas u m a forma — u m a forma não insubstituível
n e m indispensável — d o ensinamento do Magistério
eclesiástico. Todavia, o reconhecimento desta ver-
dade da eclesiologia sofreu sempre a influência da
situação existencial, interna e externa, da própria
Igreja. Nos tempos do Concílio d e Constança, q u e
viu triunfar, pelo menos transitoriamente, p o r toda
a cristandade, o princípio herético do "concilium
supra p a p a m " , houve até tentativas envolvendo
toda a cristandade, no sentido de transformar os con-
cílios ecumênicos n u m a instituição permanente,
n u m a instância s u p i e m a em q u e residisse toda a
autoridade eclesiástica. Coube, de fato, ao Concílio
d e Constança, a ingente tarefa de restituir ao pró-
prio P a p a d o a autoridade q u e a Cátedra de Pedro
perdera no século agitado q u e se seguiu à morte de
Bonifácio VIII, último dos grandes papas-rcis da
Idade Média em v i r t u d e dos tumultos históricos
que, após e em conseqüência do cativeiro avinho-
nense do Papado, conduziram ao grande cisma oci-
dental, Para a consciência católica, naquele tempo,
os concílios ecumênicos pareciam u m a instituição
estritamente necessária, já q u e a maior e mais deses-
p e r a d a aspiração da cristandade de então, a reforma
eclesiástica, a "reformatio in capite ct in membrís",
estava ligada, inseparavelmente, à idéia do concílio.

Da mesma forma, nos primeiros séculos da his-


tória eclesiástica, q u a n d o a autoridade dos sucessores
de Pedro a i n d a n ã o estava definida com precisão
jurídica (essa definição caberia apenas aos tempos
em q u e ela fosse posta em dúvida) e a vida comu-
nitária da Igreja se desenrolava em formas q u e ainda
conservaram m u i t o do estilo próprio da época apos-
tólica, os concílios ecumênicos constituíram u m a
constante na história religiosa da cristandade, tra-
duzindo a pulsação do Corpo Místico e a u n i ã o de
seus membros n a caridade e na doutrina. T o d a v i a ,
após a revoluçãoi religiosa do século XVI, à me-
dida q u e se consolidou a autoridade do Papado, no
sentido q u e Cristo a conferiu ao apóstolo Pedro, e
q u e se salientou o elemento organizacional da
Igreja, considerada antes de t u d o como u m a socie-
dade perfeita hierarquicamente organizada e menos
como u m a comunhão mística — e isto como reação
ao protestantismo, para o q u a l a Igreja n ã o passa
de u m a sociedade essencialmente invisível, cuja vida
externa se desenrola em moldes democráticos — os
concílios ecumênicos perderam sua significação de
instituição que brota da exigência da consciência
católica.
O novo ciclo do progresso teológico, q u e se ini-
ciou com o Concílio dc T r e n t o , encerrou-se no
Vaticano, consagrando, com a definição solene do
poder jurisdicional supremo, b e m como da infali-
bilidade do R o m a n o Pontífice, o processo de centra-
lização dogmática e disciplinar que resultou n a con-
solidação dos quadros hierárquicos da Igreja, fun-
d a d o ainda por Cristo, e mais ainda em sua adap-
tação operativa e eficiente ao estado atual d a hu-
manidade, mais ou menos integrada em cinco conti-
nentes. A bem dizer, é u m a prova evidente da vita-
lidade destes qiiadros jurídicos e institucionais, sóli-
dos e bem organizados, que êles tenham contribuído
para u m a verdadeira renascença cristã: u m novo
florescimento do sentimento d e universalidade e de
u n i d a d e n a consciência católica, o revigoramento das
grandes correntes de caridade e de união q u e consti-
t u e m o princípio de vida do Corpo Místico.
Neste novo contexto teológico e histórico, os
Concílios Gerais a d q u i r e m exatamente aquela im-
portância que lhes atribui a eclesiologia: u m a insti-
tuição ecumênica que, embora n ã o estritamente
necessária, mas a l t a m e n t e litil e salutar em deter-
minadas condições históricas, se e n q u a d r a nos planos
da Providência que rege a vida da Igreja. Dc fato,
os concílios ecumênicos têm, embora n ã o maior,
mais plena autoridade infalível q u e outras formas
da proposição infalível da doutrina. As decisões do
concílio geral são precedidas por investigações mais
manifestamente universais e representam de maneira
mais espetaculosa a a u t o r i d a d e d e todo o magistério
eclesiástico. A presença de tantos dignitários do ma-
gistério eclesiástico e d e homens dedicados à santi-
dade e á d o u t r i n a crista, sua. u n i ã o e comunhão com
a Cátedra de Pedro, n u m a época como a nossa, forta-
lece a força de persuasão da Igreja, que assim
reaparece, diante de toda a h u m a n i d a d e , nos esplen-
dores da sua universalidade e u n i d a d e suprana-
cionais.

Foi realmente u m a "inspiração primaveril" q u e


deu ao P a p a J o ã o X X I I I a lumitrosa idéia de con-
vocar o segundo concílio d o Vaticano, o 21.° con-
cílio ecumênico. U m dos grandes propósitos deste
novo conclave é o serviço da grande e eterna divisa
cristã: " u n u m ovile et unus pastor". A presente obra,
escrita por I l u b e r t J e d i n , conhecido historiador e
professor d e história eclesiástica da Universidade de
Bonn, especialista n a história do Concílio d e T r e n t o ,
expõe a história não apenas dos vinte concílios
ecumênicos, mas também da separação de muitas
épocas e nações de u m só r e b a n h o e de u m só Pastor.
Cabe, indubitavelmente, ao Pastor, a tarefa principal
de ressuscitar o espírito ecumênico de então ou,
pelo menos, de criar u m a atmosfera de maior com-
preensão e entendimento. Mas os católicos devem
cooperar com o Pai C o m u m , o q u e n ã o p o d e m fazer
senão inteirando-se dos aspectos doutrinários e his-
tóricos dos concilios ecumênicos. A O b r a d e H u b e r t
Jedin, q u e a grande editora católica, a H e r d e r da
Alemanha, apressou-se em publicar, após a primeira
noticia da convocação do concilio, fornece u m a
preciosa iniciação p a r a os católicos interessados n a
realização das intenções d o Vigário de Cristo. Suas
intenções são as do próprio Cristo: "fiat u n u m ovile
et unus pastor". A Editora H e r d e r de São Paulo,
com a tradução desta obra para a língua portuguesa,
pretendeu prestar u m serviço aos católicos brasi-
leiros, cuja glória é ter sempre compreendido as
grandes correntes q u e a n i m a m a vida d o C o r p o d e
Cristo.

São Paulo, 21 de dezembro de 1960

NICOLÁS BOÉR

xm
Elucidação da terminologia

C ONCÍLIOS ECUMÊNICOS, dc acôrdo com as dispo-


sições d o direito canónico em vigor (CIC, can.
222-229), são as assembleias dos bispos e de outros
determinados detentores do poder jurisdicional.
Êstcs, convocados pelo Papa e sob a sua presidência,
t o m a m decisões sobre assuntos relativos à fé cristã
e à disciplina eclesiástica. Suas resoluções d e p e n d e m
ainda da confirmação pontifícia. T ê m direito à
participação nos concílios ecumênicos os cardeais,
mesmo que n ã o sejam bispos, os patriarcas, os
arcebispos, os bispos, inclusive os bispos titulares
(estes últimos só q u a n d o expressamente nomeados
no documento de convocação), os abades-primazes,
os abades-gerais das congregações monásticas, os
superiores-geriiis das ordens isentas, os abades e os
prelados q u e possuam cicunscrição jurisdicional. O
direito à participação está ligado à pessoa. Pode-se
d a r procuração, o que porém não inclui o direito
de d u p i o sufrágio. -Com o prévio consentimento da
presidência do concílio, os participantes têm o di-
reito d e fazer propostas relativas a o programa d o
concílio. O concílio ecumênico possui o "supremo
poder de jurisdição sobre a Igreja Universal".

Os Concílios Ecumênicos devem ser distinguidos


dos concílios provinciais dos bispos de u m a pro-
víncia eclesiástica, reunidos sob seu metropolita e
dos concílios plenários que, estendendo-se a mais de
u m a província eclesiástica, se realizam sob a presi-
dência de u m legado pontifício (CIG, can. 281-283).
Os sínodos diocesanos, organizados pelos bispos,
não são concílios n o sentido estrito, p o r q u e neles
o bispo é o único legislador.
E n q u a n t o os concílios provinciais estão li-
gados a u m a instituição imiito antiga da constituição
eclesiástica, à u n i d a d e metropolitana, os concílios
plenários abrangem os bispos de muitas províncias
eclesiásticas de u m país ou de u m grupo de países,
em q u e parece desejável a coordenação do trabalho
missionário e pastoral; assim os três concílios ple-
nários de Baltimore (1852-1884) serviram para a
organização da atividade pastoral dos Estados
Unidos da América.
Devem distinguir-se dos concílios provinciais e
plenários as conferências episcopais que, em muitos
países (na A l e m a n h a desde 1848) se realizam, perio-
dicamente, sob a presidência do bispo de mais alto
grau hierárquico, ou do cardeal, algumas vezes do
n ú n c i o ou delegado pontifício. Estas ocupam-se
dos assuntos comuns das dioceses do respectivo país,
mas n ã o possuem poder legislativo, como os concí-
lios, de maneira q u e suas resoluções n ã o obrigam
j u r i d i c a m e n t e os seus participantes. Nas regiões
missionárias, as conferências episcopais r e ú n e m os
bispos de regiões inteiras, como a conferência epis-
copal organizada em M a n i l h a de 10 a 17 de de-
zembro de 1958, q u e r e u n i u , sob a presidência do
cardeal Agagianian, mais de cem bispos dos países
do E x t r e m o Oriente, do J a p ã o à Indonésia.
Neste opúsculo n ã o nos ocupamos n e m com
estas conferências episcopais n e m com concílios de
ordem inferior. Nossa atenção dirige-se, exclusiva-
mente, aos vinte concílios Ecumênicos, reconhecidos
como tais pela igreja. Por toda urna época q u e vaí
além do primeiro milênio, n ã o foram as intenções e a
vontade d o convocador q u e d e t e r m i n a r a m a natu-
reza ecumênica dos concílios. T a m b é m a aprovação
das suas resoluções pelo Papa, neste espaço de tempo,
n ã o teve, desde o início, o caráter de u m a confir-
mação formai tão unívoca, como aconteceu com os
ulteriores Concílios Ecumênicos. A aprovação justa-
mente destes vinte concílios, reconhecidos como
Ecumênicos, n ã o se funda n u m só ato legislativo dos
Papas, q u e compreenda todos êles juntos, mas se
impôs n a ciência eclesiástica e na praxe. O pro-
cesso da aceitação ainda não foi estudado pormeno-
rizadamente e d e m a n e i r a científica. Mesmo assim,
p o d e dizer-se, desde já, q u e os oito Concílios Ecumê-
nicos d a Antigüidade j á n o século X V I alcançaram,
validade estabelecida. H o u v e íiesitaçÕcs q u a n t o à
apreciação do primeiro Concílio de Latrão e — com-
preensivelmente — do Concílio de Basiléia. O Car-
deal Domênico Jacobazzi, em sua obra. Sobre o Con-
cilio, escrita d u r a n t e o 5,° Concílio de Latrão, só p u -
blicada em 1538, n ã o e n u m e r a o primeiro e segundo
Concílio de L a t r ã o , nem o d e Basiléia. O bispo Mat-
thia Ugoni, em 1532, procede da mesma maneira era
sua o b r a sobre os concílios, N o Concílio T r i d e n t i n o ,
os espanhóis e os franceses opuseram-se ao reco-
n h e c i m e n t o d o 5.*^ Concílio de Latrão. O Cardeal
Bellarmino, ao contrário, já tem a numeração de
hoje. Êle redigiu .para a edição romana dos con-
cílios (veja-se índice bibliográfico) u m a Advertência
ao Leitor a respeito do Concilio de Basiléia, que,
porém, n ã o aparece na publicação, p o r q u e os atos
de Basiléia não foram reconhecidos.

A realidade histórica é bem mais multiforme do


q u e deixam imaginar as unívocas cla.ssificações e de-
finições do Código de Direito Eclesiástico. Nela se.
apresentam m u i t o mais tipos de concílios, q u e liem
mesmo os historiadores p o d e m distinguir com faci-
lidade. Algumas indicações serão suficientes. A reu-
nião realizada em Jerusalém pelos Apóstolos e An-
ciãos n a r r a d a em os Atos dos Apóstolos (15, 6-29)
foi considerada como modelo para as assembléias
episcopais da Antigüidade Cristã, chamadas sí-
nodos (do grego: Synodos: "reunião", mas t a m b é m
"lugar de r e u n i ã o " ) . Nela P a u l o e Barnabé defen-
d e r a m a liberdade dos cristãos gentílicos das obri-
gações da lei judaica. Suas intervenções foram co-
roadas de êxito, de tal forma q u e a proposta inter-
mediária de São T i a g o foi aceita e notificada à
c o m u n i d a d e d e Antioquia: "Porque pareceu b e m ao
Espírito Santo e a nós não vos i m p o r além dos neces-
sários q u e são estes: q u e vós abstenhais das coisas
imoladas aos ídolos, e do sangue, e das carnes sufo-
cadas, e da fornicação". Os 85 Cânones Apostólicos,
que, segundo se diz, foram compilados por Clemente
K-omano e q u e se acham no 8.*^ Livro das Consti-
tuições Apostólicas, n ã o r e m o n t a m à época dos
Apóstolos, mas foram compostos mais provavel-
mente no começo do século V pela utilização de câ-
nones de concílios anteriores, principalmente do de
A n t i o q u i a (341). N a I d a d e Média sua autentici-
dade foi reconhecida.
Pode-se duvidar q u e os sínodos episcopais mais
antigos reunidos ira segunda metade do século II
na Ásia-Menor, a fim de combater a seita dos mon-
tañistas, se tenham referido ao "Concílio Apostó-
lico". Da mesma forma n ã o está provado q u e seu
modelo foram as convenções provinciais de R o m a .
A explicação mais n a t u r a l é q u e os bispos das co-
m u n i d a d e s vizinhas se r e u n i r a m para tratar e deci-
d i r sobre heresias e cismas q u e se criaram em suas
comunidades. Nisso, n a t u r a l m e n t e , cabia a inicia-
íiva e a precedência às comunidades apostólicas.
Vitor, bispo de Roma, r e u n i u , no ano de 197, u m
sínodo em q u e se tomou posição contra a data da
Páscoa seguida no Oriente.
N o século I I I já se apresentam como u m a insti-
tuição p e r m a n e n t e os sínodos episcopais q u e e m
p a r t e se associam às unidades metropolitanas em for-
mação e de vez em q u a n d o as ultrapassam. N o a n o
dc 256, Cipriano, bispo de Cartago, reúne 87 bispos
africanos, a fim de fortalecer sua concepção sobre a
invalidade dos batismos ministrados pelos herejes.
Pouco depois de 300, reúnem-se em Elvira 19 bispos
espanhóis e 24 presbíteros d e todas as províncias
da Península e redigem 81 cânones, com, determi-
nações sobre disciplina eclesiástica e que chegaram
até nós. E m todo o caso falta a esses sínodos u m a
competência rigidamente circunscrita; sentem-se êles
como testemunhos da tradição e sua autoridade de-
pende da questão de saber se suas resoluções foram
aceitas pela Igreja imiversal. O cân, 5 d o Concílio
de Nicéia q u e m a n d a realizar dois sínodos em cada
ano demonstra q u e os sínodos episcopais no início
do século IV já representaram u m a instituição
permanente.
A possibilidade e ao mesmo tempo a necessi-
dade de r e u n i r os bispos de toda a Oecumene, isto
é, d o m u n d o d a cultura grego-romana, surgiu pri-
meira vez q u a n d o a cristandade, através do' Edito
de Milão promulgado por Constantino, obteve a
grande tolerância, tornando-se religião d o m i n a n t e
e finalmente religião oficial. A u n i d a d e e a ordem
d a Igreja constituia-se agora também interesse do
Estado. J á em 314 Constantino convocou para Aries
u m sínodo de 33 bispos de todas as partes do impé-
rio ocidental. Esse sínodo tratou da questão dona-
tista q u e explodiu na Africa, da questão da vali-
dade do batismo ministrado pelos herejes e da data
da Páscoa. U m a década depois, realizou-se o pri-
meiro • sínodo ecumênico em Niccia, q u e £oi ao
mesmo tempo concílio do I m p é r i o (Cf. Parte I ) .
T o d a v i a , n ã o se deve esquecer q u e alguns concílios
do I m p é r i o , planejados como ecumênicos, n ã o se
i m p u s e r a m como tais, como o de Serdika (343) e os
de Selêucia e R i m i n i (359-360), que se r e u n i r a m
era lugares diversos para tratar de assuntos relativos
ao Ocidente e ao Oriente. Deu-se o contrário com
o Concílio de Constantinopla (381), que, originaria-
mente planejado para a p a r t e oriental do Império,
pelas suas definições de fé de valor universal sobre
a Divindade do Espírito Santo, obteve aprovação
no Ocidente, com base n a autoridade do bispo de
Roma.

Paralelamente com a elaboração da constituição


m e t r o p o l i t a n a e patriarcal desenvolveram-se os tipos
sinodais correspondentes: sínodos patriarcais, q u e
foram convocados pelos patriarcas de Alexandria, de
A n t i o q u i a — e pouco pais tarde — de Constanti-
nopla, os sínodos provinciais, q u e se r e u n i a m no
Oriente, duas vezes p o r ano, a fim de decidir sobre
a eleição e a consagração dos bispos e a fim de pôr
termo a conflitos. Além disso, cm Cartago, n a
África, realizaram os bispos africanos concílios
plenários q u e n ã o foram ligados a u m a província
eclesiástica ou a u m patriarcado. N ã o é exagero
dizer-se q u e nesses sínodos palpitava a vída da
Igreja antiga; os concílios ecumênicos formaram a
c ú p u l a do edifício sinodal.
Cria-se u m novo tipo sinodal nos reinos ger-
mânicos, em q u e os reis exerceram influência deci-
siva sobre as igrejas dos territórios por eles gover-
nados. T a i s concílios do I m p é r i o ou concílios na-
cionais, que, de vez em q u a n d o sem identificar-se
com as assembléias imperiais dos magnatas seculares,
iigavam-se a elas, se d e n o m i n a r a m "sínodos gerais",
"concílios gerais" p o r q u e não se limitavam aos bispos
d e u m a província eclesiástica, mas abrangiam todo o
Império. N ã o eram concílios universais no sentido
da expressão. Nas assembléias mistas do Império, os
assuntos eclesiásticos, em regra geral, eram debatidos
pelos bispos reunidos separadamente, se bem q u e as
decisões, n a época carolíngia, tivessem sido muitas
vezes promulgadas como leis do reino pelo rei.
D u r a n t e toda a p r i m e i r a fase d a Idade Média os
reis alemães organizaram, n a A l e m a n h a e n a Itália,
sínodos do reino, dos quais participavam freqüente-
mente magnatas seculares, sem q u e com isso os
sínodos tivessem perdido seu caráter eclesiástico.
Além dos sínodos do reino, realizaram-se concílios
m e r a m e n t e episcopais, como o do arcebispo de
Mogúncia, Aribo em Seligenstadt e Hoechst (1023-
1024). Na Inglaterra as assembléias do reino per-
maneceram separadas dos sínodos do reino reunidos
sob a presidência do arcebispo d e Cantuária.
Como nos concílios do reino godo-ocidental,
franco e alemão, convocados pelos soberanos, mani-
festa-se o "domínio leigo" n a Igreja, assim nos
concílios organizados pelos Papas, desde o prevale-
cimento da reforma gregoriana, se verifica a ascen-
dência do P a p a d o da Reforma, empenhado na luta
pela "liberdade da Igreja". Os concilios de reforma
de Leão I X e os coíicílios romanos "quaresimais" de
seus sucessores foram os preliminares dos concílios
gerais papais da I d a d e Média q u e alcançaram i-eco-
nhecimento ecumênico (cf. Parte I I ) .

A posição d o m i n a n t e do P a p a d o torna-se dis-


cemível desde o século X I I , considerando-se q u e
nesta época, mas especialmente n o século X I I I , os
concílios nacionais passaram a ser presididos pelos
legados dos Papas, como o concilio nacional da H u n -
gria de 1256, realizado em Esztergom, o da Franca
de 1263, em Paris, o da A l e m a n h a de 1278, em
W u e r t z b u r g . Esse tipo d e concilio desaparece no
século XIV, em conseqüência da ascendência dos
Estados nacionais e do enfraquecimento do' P a p a d o
pelo grande cisma. As assembléias nacionais dos
bispos e do clero, organizadas sem colaboração papal,
q u e n ã o quiseram denominar-se "concilios naci-
onais", estão em grande p a r t e sob a influência de
tendências anti-papais, como os concilios nacionais
d e Paris de 1395, 1398 e 1406, q u e se propuseram
superar o cisma. É a época em que, afinal, depois
do malogro de todos os outros meios, o Concilio
Ecumênico se encarregou da tarefa de pôr fim ao
cisma, e até pretendeu, n a t u r a l m e n t e também sob
a influência de teoria conciliar, constÍtuÍr-se em
instância final, superior ao P a p a d o (cf. Parte I I I ) .

Só na época da crise religiosa do século X V I é


q u e os concilios nacionais, planejados e mesmo
realizados, se t o m a r a m preocupação constante dos
Papas e u m a razão séria d a convocação do Concilio
Ecumênico. O concilio nacional de Speyer (1524),
planejado na Alemanha, não se realizou- Igua-
lando-se a u m concilio nacional, u m a assembléia
do clero de Poissy (1561), ligada a u m diálogo entre
as religiões, fortaleceu a decisão de reabrir o Con-
cilio d e T r e n t o , t o m a d a pelo P a p a Pio IV (cf.
Parte I V ) .
A reforma tridentina estimula a realização dos
concilios provinciais q u e desde o século X I V tinham
quase totalmente passado de moda. Os concilios pro-
vinciais de Milão, organizados por São Carlos de
BoiTomeu, constituíram-se em paradigma para
numerosos outros. As "Assembléias Nacionais do
Clero Francês" do século X V I até o século X V I I I n ã o
foram concílios, mas serviram, principalmente, para
autorizar a votação de impostos para o reí da França;
ainda assim, a Assembléia de 1682 endossou os
Artigos Galicanos.
Resta ainda dissipar u m mal-entendido: os
Concílios Ecumênicos recebem seu n o m e não do
fato d e neles se reunirem os bispos de toda a terra
habitada ein n ú m e r o pelo menos a p r o x i m a d a m e n t e
completo; no p r ó p r i o Concílio do Vaticano n ã o foi
c u m p r i d a essa condição (cf. P a r t e V ) . N e m mesmo
todas as províncias eclesiásticas estão sempre repre-
sentadas nos Concilios Ecumênicos. Por outro lado,
nossa noção "ecumênico" n a d a tem a ver com o
Movimento Ecumênico de nossos dias. Ela diz,
exclusivamente, que u m a parte essencial do epis-
copado universal esteve presente nestes concílios e
q u e suas resoluções foram endossadas pela Igreja
Universal, resi^ectivamentc confirmadas pelos Papas.
Esta última característica c decisiva, segundo o
atual estado da teologia c do direito eclesiástico.
U m teólogo m o d e r n o (Eorget) define o concílio
ecumênico ou universal como "a reunião solene dos
bispos de todo orbe terrestre, sob convocação, auto-
ridade e direção do Papa, a fim de, em comum,
deliberar e legislar sobre assuntos universais da
Igreja". A história dos concílios mostra o c a m i n h o
q u e essa instituição percorreu desde suas origens
até o seu aperfeiçoamento contemporâneo.
PARTE I

O s primeiros oito Concílios


Ecumênicos da Antigüidade

O s OITO Concílios Ecumênicos que, convocados


pelos imperadores romanos, mais t a r d e pelos
imperadores romanos orientais, se realizaram em
regiões do Império Oriental ~ em Nicéia, Constan-
tinopla, Éfeso e Calcedonia — distinguem-se d e todos
os outros seguintes, convocados pelos Papas e cele-
brados n o Ocidente, de tal forma que é justificado
tratá-los como u n i d a d e histórica, embora cronolo-
gicamente cheguem a alcançar os primórdios da
I d a d e Média e embora os q u a t r o primeiros — os
"concílios antigos" n o sentido estrito — superem aos
demais em importância.
O P a p a Gregório Magno comparou os q u a t r o
primeiros, por causa da sua autoridade, com os qua-
tro evangelistas, p o r q u e êles definiram os dogmas
fundamentais da Igreja: o dogma trinitario e o cris-
tológico. Examinados à luz desta sua função prin-
cipal, todos os outros assuntos neles debatidos são
de segunda categoria. Mencionamos só alguns, a
fim de irradiar luz sobre as conexões entre os con-
cílios e a situação geral da Igreja na época.
A questão que foi vivamente debatida desde
a época da Reforma, e nos tempos mais recentes
entre o dogmático Scheeben e o historiador da
Igreja F u n k — a de saber se o imperador, ao con-
vocar os antigos concilios, tinha obtido a aprovação
prévia do bispo de R o m a ou tinha agido propria-
mente por incumbencia déle — pode, no q u e diz
respeito aos fatos, ser considerada como decidida
no sentido negativo; isso, porém, não atinge os di-
reitos fundamentais do Papa. Da mesma maneira
é certo q u e os Papas neles foram representados na
qualidade de patriarcas do Ocidente e em virtude
da sua precedência particular e q u e seus legados ti-
veram sempre precedencia e às vezes ocuparam a
p r ó p r i a presidencia e que as resoluções para sua
validade ecumênica necessitaram da sua aprovação.

Constantino Magno concedeu a liberdade à


Igreja e t a m b é m "ligou a Igreja ao Império e o Im-
pério à Igreja" (Schwartz). Mas a Igreja e o Im-
pério foram inquietados por u m a dissençao reli-
giosa em q u e se tratava de assunto de suprema im-
portância: da Pessoa do seu F u n d a d o r . A Igreja
Antiga adorava-o como seu Senhor (Kyrios) e colo-
cava-o ao lado de Deus, visto q u e Êle se declarara
seu Filho. Conforme o m a n d a d o de Jesus, ela admi-
nistrou o batismo em n o m e d o Pai e do Filho e do
Espírito Santo. Como p o d e m ser conciliadas a fé
no Kyrios e a fórmula batismal trinitaria com o pen-
samento rigidamente monoteísta q u e o cristianismo
h e r d o u do j u d a í s m o ?
Q u a n d o o p e n s a m e n t o teológico, no fim do
século 11, se impôs com força, voltou-se a este mis-
tério. Foi no pensamento grego q u e a idéia do
Logos e dos Demiurgos — q u e r dizer a idéia do Al-
tíssimo, n u m a escala de seres divinos e seres inter-
mediários entre Deus e o h o m e m — parecia ofe-
recer à inteligência h u m a n a u m a saída clara, do
aparente dilema. Nos moldes desse pensamento
grego, muitos teólogos do século III ensinaram, d e
maneira "subordinacionista", isto é, subordinaram
o Filho ao Pai, embora n ã o adotassem as posições
de Sabélio, q u e declarou serem o Pai, o Filho e o
Espírito apenas modalidades de manifestação de u m
só Deus (modalismo). O presbítero alexandrino.
Ario, endossou a concepção modalista, por intermé-
dio do seu mestre Lúcio de Antioquia e até a refor-
çou: o Logos, segundo êle, é u m a "Criatura do Pai",
carece dos atributos da eternidade: "Houve u m
tempo em q u e êle não existia".

Ario n ã o era um pensador isolado. Sendo per-


sonalidade de g l a n d e força atrativa e um escritor
talentoso, reuniu em seu redor discípulos e formou
uma comunidade. Seu bispo, Alexandre, por causa
da sua doutrina, o excomungou n u m grande sínodo
(318). N o entanto, o n ú m e r o dos seus partidários
já era grande demais. U m a tentativa d e mediação
empreendida por u m h o m e m da confiança do Im-
perador, Kósio, bispo de Córdova, ficou sem resul-
tado. A controvérsia repercutiu intensivamente cm
todo o Oriente.

O "Grande e Santo Sinodo dos


318 Padres" em Nicéia

}á q u e também outras questões eclesiásticas liti-


giosas, como a data da festa pascal, causavam inquie-
tação, Constantino convocou os bispos do Império
para Nicéia, cidade da Bitínia e ordenou que, como
aos altos funcionários, a êles sc concedesse o direito
de, era sua viagera, usar a diligência imperial. O
n ú m e r o dos participantes, tradicionalmente dado,
é. urna reminiscencia bíblica dos 318 servos de
Abraão (Gen. 14, 14); na realidade, dificilmente,
foram mais de 220, cujos nomes conhecemos; o "pai
da história eclesiástica", Ensebio de Cesaréia, fala
em 250. Nota, porém, q u e procediam de todas as
partes do m u n d o (oecumene): (no concilio) "to-
m a r a m p a r t e sírios e cilicios, fenicios, árabes e pales-
tinos, e a i n d a egípcios e tebanos, libios, bem como
recém-chegados da Mesopotâmia; e até u m bispo
da Pérsia dêle participou, n ã o faltando n e m mesmo
u m cita nas discussões; o P o n t o e a Galácia, a Ca-
padócia e Asia, a Frigia e a Panfília enviaram o q u e
tinham de melhor como representantes. E até trá-
cios e macedônios, aqueus e epirotas, e homens q u e
habitavam regiões ainda mais distantes q u e estes
compareceram ao concilio. Mesmo da Hispânia foi
aquele h o m e m de fama m u n d i a l (Hósio), u m dos
numerosos participantes d a assembléia. Da cidade
imperial ( R o m a ) , entretanto, n ã o veio o bispo (Sil-
vestre), p o r causa d a sua i d a d e avançada; vieram,
porém, sacerdotes, a fira de representá-lo". Do Oci-
dente foram cinco bispos apenas.
O concilio esteve r e u n i d o de 20 de maio a 25
, de j u l h o de 325 n u m a sala do Palácio Imperial de
. veraneio em Nicéia. O i m p e r a d o r ali compareceu
pessoalmente; fêz cm latim u m discurso em q u e
aconselhou a paz; no entanto, n ã o interveio nas
negociações e "entregou a palavra aos presidentes
do concilio" (Eusébio). Q u e m e r a m estes n ã o se
sabe com certeza, p o r q u e n ã o possuímos as atas deste
concilio, assim como do q u e se lhe seguiu.
Alguns bispos "traziam em seu corpo as marcas
de nosso Senhor", p o r q u e nas perseguições prece-
dentes confessaram a sua fé com firmeza e perseve-
rança, como o bispo Paulo de Neocesaréia, cidade
situada jiintü ao Eufrates, que trazia as duas mãos
paralisadas, p o r q u e lhe haviam destruído os nervos
com ferro em brasa, e o egípcio Pafnúcio, q u e n a
perseguição de M a x i m i n o perdera u m dos olhos.
Ário defendeu pessoalmente sua doutrina, e,o mais
poderoso dos seus 17 partidários foi o bispo d a
Corte, Eusébio de Nicomédia. E m "longas delibe-
rações, muitas lutas e ponderadas considerações",
prevaleceu o p a r t i d o ortodoxo sob a lide-
rança do bispo Marcelo de Ancira ( A n k a r a ) , do
bispo Eustácio de A n t i o q u i a c do diácono Atanásio.
Converteu-se o símbolo batismal da Igreja de An-
tioquia, proposto p o r seu bispo Eusébio, n o símbolo
de fé niceno, q u e por expressões unívocas excluiu
q u a l q u e r subordinação do Logos ao Pai: êle é
"da substância do Pai", "Deus d e Deus, Luz da Luz,
verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, nato, n ã o
feito, consubstanciai (homousios) com o Pai". E m
apêndice foram expressamente condenadas as teses
principais de Ário. O símbolo de fé foi endossado
pelo Concilio a 19 de j u n h o de 325. Só dois bispos
se recusaram a assiná-io. F o r a m cies, como Ário,
expulsos da c o m u n i d a d e eclesiástica. O símbolo foi
promulgado pelo I m p e r a d o r como lei do Império.
Os assuntos de importância m e n o r ali discutidos
o c u p a r a m o Concilio a i n d a d u r a n t e u m mês. Con-
cordou-se sobre a fixação, válida ainda hoje, da data
pascal no primeiro domingo após a primeira lua-
cheia da primavera e encarregou-se o bispo da eru-
dita cidade de Alexandria da tarefa de comunicar,
anualmente, a data pascal por êle computada. O
I m p e r a d o r elevou t a m b é m esta resolução à lei impe-
rial. Ao bispo rigorista Melecio de Licópolis — q u e
se mostrou descontente com a suavidade com q u e
o bispo de Alexandria tratara os q u e se p r o v a r a m
fracos nas perseguições d e Diocleciano — proibiu-se
a intervenção nos direitos do seu colega. E m vinte
decretos curtos o Concilio tomou posição sobre ques-
tões menores, em litígio, e sobre inconveniências e
deu, assim, orientação à vida eclesiástica, donde o
n o m e cânon (isto é: r e g r a ) . Os cânones, aqui e
nos seguintes concilios, deitam luz sobre a situação
respectiva da Igreja. Deviam-se liquidar os tempos
da perseguição: o Cân. 11 dispõe q u e os "lapsi"
(os q u e cairam) na perseguição de Licínio depois
de u m a penitência d e doze anos em três etapas po-
d i a m ser readmitidos c o m o membros com pleno
direito n a Igreja. Entre os muitos, que depois da
libertação da Igreja nela entraram, houve oportvi-
nistas e ambiciosos; o cân. 2 reafirma a regra já
existente que os recém-batizados n ã o poderiam ser
logo ordenados sacerdotes ou bispos, mas somente
após prolongadas provas. Outros cânones estavam
relacionados com a constituição e a liturgia da
Igreja: segimdo o cân. 4 a consagração episcopal
eleve ser administrada, pelo menos, por três bispos;
o cân. 6. subordina ao bispo de Alexandria todos
os metropolitas e os bispos do Egito, da Líbia e de
Tebas, de maneira q u e êle ocupará u m a posição
patriarcal, semelhante à do bispo de R o m a . O
cân. 20., ordena q u e aos domingos e d u r a n t e toda
a época da Páscoa se realizem dc pé as orações. E
inúmeras vezes foi repetido nos concilios ulteriores
o can. 17. contra a aceitação dc usuras.
Sócrates, o historiador grego da Igreja, relata
q u e o Concilio de Nicéia quiz introduzir o celibato
dos bispos, dos sacerdotes e dos diáconos, mas desis-
tiu disto, q u a n d o o bispo-confessor Pafnúcio insistiu
em que n ã o se lhes impuzesse u m jugo demasiada-
mente pesado. Ao relato n ã o falta fidedignidade:
seu núcleo histórico seguro é q u e o concilio con-
firmou a p r a x e oriental, segundo a q u a l os sacerdotes
não-casados n ã o mais sc casaram depois da orde-
nação e os q u e já estavam casados deviam continuar
a sua vida conjugai. O cân. 3. do concilio p e r m i t e
aos clérigos a convivência com a mãe, irmã ou tia,
ou com pessoas tais q u e não suscitassem n e n h u m a
suspeita.
Depois do encerramento das negociações con-
ciliares, Constantino, que então festejava o vigésimo
aniversário do seu governo, convidou os bispos para
u m b a n q u e t e de tal p o m p a q u e Eusébio assim ter-
m i n a seu relatório sobre êle: "Poderia julgar-se
q u e t u d o isso tivesse sido apenas sonho e n ã o reali-
dade". T o d o o esplendor da corte do império res-
tituido caiu sobre este primeiro concilio ecumênico
da Igreja q u e se erguia da perseguição. N o entanto,
o concilio n ã o trouxe a paz tão desejada; m u i t o
ao contrário, constituiu u m p o n t o de p a r t i d a de
violentas controvércias teológicas que c o n t i n u a r a m
ainda por ura meio século.

Controvérsia em torno do Concilio


de Nicéia

Poucos anos depois do concilio, o partido de


pendores filo-arianos, derrotado em Nicéia, conse-
guiu, sob a liderança de Eusébio de Nicomédia,
exercer influência sobre Constantino e aproveitou-
se disso para conduzir u m a l u t a encarniçada contra
Atanásio, chefe dos ortodoxos, q u e entrementes se
tornara bispo de Alexandria. Este foi, em 335, des-
terrado para T r í e r e escreveu ali sua famosa "Vida
do eremita A n t ô n i o " a q u a l revelou ao Ocidente
a idéia do m o n a q u i s m o egípcio. A readmíssão de
Ario na c o m u n i d a d e eclesiástica só foi impedida p o r
sua morte (336). U m novo sínodo do Império,
realizado em Serdika, a hodierna Sofia, no ano de
343, n ã o conseguiu restabelecer a u n i d a d e eclesi-
ástica; ao contrário, acabou criando u m a nova dis-
córdia: os ocidentais declararam injusta a depo-
sição de Atanásio e reafirmaram o credo niceno. Os
orientais, q u e estavam reunidos em separado, con-
d e n a r a m a Atanásio assim como ao P a p a J ú l i o I,
q u e o havia acolhido. Êles redigiram u m a fórmula,
q u e evitava usar o termo adotado pelo Concílio de
Nicéia: "igual em essência, isto é, consubstancial"
(homousios). Forjaram-se, fervorosamente, fór-
mulas de compromisso, como por exemplo, q u e o
Filho é "semelhante" ao Pai, "semelhante em t u d o "
ou t e m "essência semelhante à do Pai". Os adver-
sários do Concílio de Nicéia convenceram a Cons-
tâncio, imperador filo-ariano, da necessidade de
u m novo sínodo do império, q u e se reuniu, para o
Ocidente, em Rimini, p a r a o Oriente, em Selêucia.
T o d a v i a , n e m ainda este concílio trouxe a reconci-
liação. Os bispos reunidos (cerca d e 400) em Ri-
m i n i r e i t e r a r a m o símbolo de Nicéia, os d e Selêucia
permaneceram divididos. O imperador Constâncio
ameaçou cora o desterro a todos os bispos q u e se
recusaram a assinar u m a fórmula proposta era Nice
(Nicenum em vez de Nicaenum), segundo a q u a l
"o P a i e o Filho são semelhantes, conforme ensina
a Bíblia Sagrada". E m b o r a o P a p a Libério e Santo
H i l á r i o de Poitiers lhe t e n h a m negado a assina-
tura, a expressiva frase usada mais tarde por São
J e r ô n i m o n ã o era completamente destituída de
verdade; "O m u n d o gemeu e percebeu, com admi-
ração, q u e se tinha t o r n a d o ariano".

Só a m o r t e d e Constâncio (361) trouxe u m a re-


viravolta. N ã o se c u m p r i u a esperança de seu su-
cessor, J u l i a n o o Apóstata, de q u e a volta p o r êle
decretada dos bispos desterrados de ambos os par-
tidos conduziria à desintegração e ao declínio do
cristianismo, que êle detestava profundamente.
T a m b é m o imperador Valente, simpatizante dos
arianos, não conseguiu deter a cisão progressiva e o
declínio do arianismo e do serai-arianismo, sob cujo
nome se resumiam as numerosas espécies de arianos
moderados. A política pacífica do imperador Gra-
ciano (375-385), de convicções católicas, e do P a p a
Dámaso I (366-384) impôs-se, também no Oriente,
tanto mais, por q u e os chamados "novos nicenos", os
três grandes de Capadócia, Basilio, Gregorio Nazian-
zeno e Gregorio dc Nissa dissiparam os malenten-
didos teológicos, q u e se o p u n h a m à boa inteligência
da fórmula de Nicéia, resumindo-a nestas palavras:
" u m a essência e três pessoas". Compreende-se q u e os
rígidos "velhos nicenos" tivessem, a princípio cm Ale-
x a n d r i a e no Ocidente, recebido com desconfiança
esta solução. E, por exemplo, em Antioquia — o n d e
se deu u m cisma — os "velhos nicenos" favoreceram o
velho niceno Paulino contra o "novo niceno" Me-
lecio. O imperador Teodósio I resolveu eliminar,
n u m novo concilio do império, as tensões a i n d a
existentes e estabelecer a paz; a este concilio coube,
ao mesmo tempo, a tarefa de coroar a obra da con-'
fissão trinitaria: a divindade do Espírito Santo.

Com efeito, coerentes com o seu p o n t o de vista,


os arianos e os semi-arianos declararam ser o Espí-
rito Santo criatura do Filho. T a m b é m nesta ques-
tão Atanásio se lhes opôs nos anos de 362-363 em
dois sínodos de Alexandria. Muitos sínodos romanos
condenaram os "adversários do Espírito Santo"
(pneumatómachoi). Pertencia a estes o bispo Ma-
cedônio de Constanlinopla; p o r isso êles eram cha-
mados, de vez em q u a n d o , macedônios.
Concilio Ecumênico de Constantinopla (B81)

O Concílio imperial, convocado pelo imperador


Teodósio e instalado em maio de 381, reuniu apenas
os bispos do Oriente, e p o r isso, o n ú m e r o dos seus
participantes (aproximadamente 150) íicou aqué]n
do do Concilio de Nicéia. O Papa Dâmaso n a o
esteve presente, nem foi nêle representado. Os bis-
pos do Ocidente se r e u n i r a m em Aquiléia, n a pri-
mavera de 381. Sobre as negociações deste con-
cílio sabemos ainda menos do q u e sobre as de Nicéia.
Coube, n o começo, a presidência ao patriarca Me-
lecio de Antioquia, favorito do imperador. Estavam
presentes também São Gregório Nazian/eno, cuja
eleição p a r a bispo de Constantinopla (em lugar de
Macedónio) foi confirmada pelo Concílio e São Ci-
rilo de Jerusalém, cujas catecheses mystagógicas
constituem u m a das jóias da literatura do cristi-
anismo antigo.

E m vão procurou-se convencer do seu erro os


36 macedônios; êles a b a n d o n a r a m a cidade. Depois
d a m o r t e d e Melecio parece q u e Gregório Nazian-
zeno exerceu, d u r a n t e u m certo período, a presi-
dência do Concílio. Todavia, êle se retirou ao veri-
ficar q u e seus esforços p a r a superar o cisma antio-
q u e n o pela eleição de P a u l i n o para a cátedra de
Melecio encontravam forte resistência no sínodo.
Foi eleito u m intimo do falecido. Depois da che-
gada dos bispos egípcios — q u e atenderam ao con-
vite reiterado e insistente do imperador — começou .
a soprar, como em seu relato diz Gregório Nazian-
zeno, " u m vento ocidental mais cortante no sínodo".
Por amor à paz, Gregório r e n u n c i o u à Sé episcopal
dc Constantinopla e proferiu seu discurso de despe-
dida, q u e se t o r n o u célebre. A partir desse mo-
m e n t o seu sucessor Nectario dirigiu os trabalhos do
concílio, até seu encerramento em julho do mesmo
ano.
O primeiro dos q u a t r o cânones autênticos rea-
firma o credo de Nicéia e condena, sumariamente,
as diversas correntes dos arianos, dos semi-arianos
ou pneumatômacos — neste p o n t o idênticos — mas
também os sabelianos. O C â n o n 3 reconhece, em
correspondência à posição e n t ã o assumida por Cons-
tantinopla, como nova residência imperial, a prece-
dência do bispo daquela cidade sobre os outros pa-
triarcas da Igreja Oriental, mas abaixo do bispo
de R o m a . Os cânones 5-7, atribuídos pela tradição
grega ao Concílio Ecumênico de Constantinopla, n ã o
pertencem a este, mas a u m outro sínodo, ali reali-
zado no ano de 382. Este enviou aos bispos do Oci-
dente os decretos do concílio do ano anterior e,
embora não tenha conseguido o reconhecimento dos
cânones (por causa do cân. 3 rejeitado por R o m a ) ,
alcançou o concílio a aprovação da fórmula de fé,
q u e foi adotada depois da partida dos macedônios.

O símbolo costumeiramente chamado niceno-


constantinopolitano e atribuído a estes dois concílios
era, no fundo, u m a confissão batismal recomen-
dada pelo bispo Epifânio de Constância em C h i p r e
em seu livro, Ayicoraius e originária provavelmente
de Jerusalém. Sua primeira parte era idêntica ao
símbolo niceno; contem ela, entretanto, u m adita-
mento, q u e confirma a divindade do Espírito Santo:
"Senhor e vivificador, procedente do Pai a ser ado-
rado e glorificado j u n t o com o Pai e com o Filho,
que falou pelos santos profetas".
Este símbolo de fé, depois de haver alcançado
aprovação ecumênica após o Concílio de Constanti-
nopla, d e 381, tornou-se a confissão f u n d a m e n t a l
da Igreja grega. Impôs-se tambénr à Igreja ociden-
tal; é usada a i n d a hoje, n a liturgia r o m a n a d a
santa missa, aliás, com u m p e q u e n o aditamento,
que, historicamente, desempenhou u m a tarefa peri-
gosa. Com efeito, os gregos entenderam a fórmula
"que procede do P a i " como u m processo "do Pai
através d o Filho", mas os ocidentais como "do P a i c
do Filho". O a d i t a m e n t o jUioque que ocorre pri-
meiro na Hispânia e q u e t a m b é m se encontra na
confissão de fé rítmica atribuída erroneamente a
Santo Atanásio Quicumque vuLt salvus esse tornou-
se u m p o n t o d e litígio e n t r e a Igreja oriental e a
ocidental, p o r q u e os gregos o consideraram não.
como u m a extensão explicativa, mas como u m a
falsificação do texto consagrado.

Duas Escolas — Duas Imagens de Cristo

É em si u m fato, absolutamente lógico, o de


q u e depois de nos dois primeiros concílios ecumê-
nicos ter o Magistério definido a fé trinitaria, se
tenha o pensamento teológico voltado ao mistério da
pessoa de Cristo, E n t r e t a n t o , esta volta n ã o é u m
processo lógico, m u i t o ao contrário, foi provocada
por u m a controvérsia, havia já muito tempo exis-
tente entre duas escolas teológicas e agravada por
u m a rivalidade eclesiástica de natureza política.
A escola catequética alexandrina, que, nas pes-
soas de Clemente de Alexandria e de Orígenes, o
maior teólogo da Igreja grega, venerou seus líderes,
aplicou, n a exegese da Bíblia Sagrada, o método ale-
górico. Pensava de m a n e i r a platônica. Sua força
era a especulação teológica. Pertencia a ela Ata-
násio e os três de Capadócia e seu maior teólogo foi,
no começo do século V, Cirilo de Alexandria, desde
412 patriarca daquela cidade. Levado pelo empe-
n h o d e d a r u m a descrição mais í n t i m a possível d a
u n i ã o da divindade com a h u m a n i d a d e em Jesus
Cristo, Cirilo falou de "uma natureza de Logos
encarnado" e a representou por u m a imagem expres-
siva: a natureza divina penetra a h u m a n a , como
o fogo penetra o carvão em brasa ou a lenha ardente.
Faltou-lhe a sensibilidade de perceber q u e essas
expressões e imagens p o d e r i a m levar à sublimação
da natureza h u m a n a de Cristo e a conceber a li-
gação das duas naturezas como u m a "mistura" (syn-
crasis).
A escola d e Antioquia, de q u e é considerado
fundador Luciano de A n t i o q u i a (ou de Samósata),
por sua vez, distinguiu-se por u m a exegese cuidadosa
e sóbria, gramatical e histórica d a Bíblia Sagrada.
Pensando mais de modo aristotélico, esta escola foi
ligeiramente atingida pelo sopro do racionalismo.
Seu chefe, m u i t o venerado, e de grande prestígio, no
século IV, Diodoro de T a r s o (-{- antes de 394),
como exegeta consciencioso, levou tão a sério a hu-
m a n i d a d e de Cristo q u e incorreu no perigo de
afrouxar a sua união substancial com a sua divin-
dade por êle reconhecida e de concebê-la como u m a
u n i ã o apenas moral. Essa tendência pouco se ma-
nifestou em seu grande discípulo, João Crisóstomo,
que, em 398, como sucessor de Nectario, se t o r n o u
bispo de Constantinopla. Transpareceu mais no
influente exegeta T e o d o r o de Mopsuéstia (f 428);
manifestou-se, fortemente, e m u m discípulo deste,
Nestório, que, no ano da morte de seu mestre, se
tornou bispo de Constantinopla. A diferença das
concepções exprime-se claramente na imagem que os
antioquenos usaram para esclarecer a união da natu-
reza divina e h u m a n a em Cristo: o Logos h a b i t a
no homem-Jcsus como n u m templo.
Cirilo, patiiarca de Alexandria; Nestório, pa-
triarca de Constantinopla: a tensão, originada das
diversas orientações teológicas, agravou se pela riva-
lidade das Sedes episcopais. Constantinopla, resi-
dencia imperial no Bosforo, oburabrou e ultrapassou
sucessivamente, em importancia, Alexandria q u e
gozava de grande autoridade como sede da ciência
e p á t r i a da ortodoxia. J á Crisóstomo tivera de sofrer
m u i t o por causa do ciúme de Teófilo, patriarca de
Alexandria, ambicioso e ávido de poder. Cirilo foi
seu sobrinho e sucessor. Era então mais d o q u e com-
preensível que este, com grande zelo, tomasse posição
contra as opiniões ousadas de Nestório.

Cirilo contra Nestório

Fiel à orientação teológica da sua escola antio-


q u e n a , Nestório, dotado de grande eloqüência,
investiu em suas pregações contra a denominação de
"Mãe de Cristo" como "Theotokos", ou seja geni-
tora de Deus; só poderia ser ela denominada "Chris-
totokos", ou seja genitora de Cristo, p o r q u e dera
à luz o homem-Cristo em q u e Deus "morava como
n u m templo". Os fiéis, porém, não quiseram aban-
d o n a r o título honorífico de Mãe de Deus, com o
qual estavam tão i n t i m a m e n t e familiarizados. Nesse
m o m e n t o foi despertada a atenção de Cirilo. E m
u m a das suas costumeiras cartas de Páscoa, n a diri-
gida aos bispos do Egito em 429, e n u m a carta
circular aos seus adeptos mais fiéis — a milhares de
monges — Cirilo rejeitou a d o u t r i n a de Nestório e
pediu ao Papa Celestino I (422-432) que decidisse
a questão. Celestino n u m sínodo r o m a n o (430)
aderiu à posição de Cirilo. Este, então, exigiu de
Nestório a retratação das suas teses e enviou-lhe u m a
lista de 12 erros (anaihematismoi) que êle deveria
abjurar. O primeiro' p o n t o era o seguinte: "Seja
anatematizado q u e m não confessa que o E m a n u e l
é verdadeiro Deus e a Santa Virgem é genitora de
Deus, que, segundo a carne, deu à luz o Logos
encarnado de Deus". O terceiro anatematismo con-
denava a expressão usada pelos antioquenos "con-
j u n ç ã o (synapheia) da divindade e h u m a n i d a d e no
Logos, mas empregava para as duas naturezas o
têrrao equívoco "hypostasis" n o sentido de "subs-
tância".
Dessa maneira foi n a luta em torno do título
"genitora de Deus" q u e se condensou a antiga opo-
sição entre as duas escolas teológicas de Alexandria
e de Antioquia. O patriarca João de Antioquia, no
fundo, tomou posição do lado de Nestório, mas reco-
m e n d o u a paz, já q u e também a expressão "Theo-
tokos" p o d e ter sentido correto. Nestório perma-
neceu intransigente. Apresentou 12 "contra-anate-
matismos", entre os quais o primeiro rejeitava o
"theotokos", p o r q u e Deus só habitava na natureza
h u m a n a q u e êle assumira no seio da Virgem. Con-
seguiu êle do imperador Teodósio II a convocação
de u m concílio ecumênico para reunir-se em Éfeso
no Pentecostes de 431, feita u m a carta circular
datada de 19 de novembro de 430 e dirigida a todos
os metropolitas do Oriente e do Ocidente (para os
do Ocidente em nome do imperador Valentiniano
n i ) . O concílio /euniu-se n a grande igreja da Vir-
gem Maria, q u e foi objeto de recentes estudos
arqueológicos. Podemos a c o m p a n h a r o decurso
dramático desse concilio melhor do que o dos ante-
riores pelo fato de possuirmos suas atas e nume-
rosas cartas a êle ligadas.
o "Theotokos" de Éfeso (431)

P a r a Éfeso foÍ, por urna carta pessoal do impe-


rador, convidado também o maior teólogo da Igreja
ocidental, Aurélio Agostinho. Mas antes de chegar
às suas mãos o convite imperial, morria em sua
cidade, H i p o n a , sitiada pelos vândalos. A persona-
lidade d o m i n a n t e do concílio de Éfeso foi Cirilo do
Alexandria. Êle o instalou, j u n t o com o delegado
do Papa, com u m atraso de 16 dias, a 22 de j u n h o
de 431, embora os antioquenos, sob a liderança do
seu patriarca João, ainda n ã o tivessem chegado.
E m b o r a presente em Éfeso, e, apesar do tríplice con-
vite, Nestório se recusou a tomar parte nos traba-
lhos. A atitude do povo era tão hostil a èle em
Éfeso q u e êle pediu e conseguiu para sua proteção
u m a g u a r d a imperial.
N a sessão de a b e r t u r a foi lido e aceito u m
estudo d o u t r i n a l de Cirilo sobre a união hipostá-
tica das duas naturezas em Cristo. Foi lida tam-
bém u m a série de passagens relativas ao assunto
extraídas dos textos dos Padres da Igreja, teste-
m i m h a n d o a antiga fé e contrastando com vinte
passagens tiradas dos escritos de Nestório. De-
pois, apressadamente, sem dúvida, procedeu-se à
sentença: "Jesus Cristo blasfemado por êle (Nes-
tório) determina, através do Santo Sínodo, q u e Nes-
tório seja privado da dignidade episcopal e excluído
d e toda c o m u n i d a d e sacerdotal". 198 bispos pre-
sentes assinaram. Entrementes anoiteceu e os bispos
voltaram p a r a suas residências aplaudidos, jubilosa-
mente, pelo povo e acompanhados de tocheiros.
O comissário imperial do concílio, Candidiano,
protestou contra a sua instalação sem os antio-
quenos. O relatório dêle e o de Nestório foram en-
tregües ao imperador. Foi-lhe também-entregue o do
concilio. E n t ã o (a 26 ou a 27 de j u n h o ) compare-
ceram os bispos antioquenos, constituindo-se em u m
contra-concilio e excluíram da comunidade ecle-
siástica Cirilo e o bispo ordinário de Éfeso, M e m n o n ,
q u e foi, j u n t o com Cirilo e logo depois dêle, respon-
sabilizado peio processo. T a m b é m os antioquenos
justificaram sua atitude diante do imperador. T e o -
dósio declarou, sem rodeios, q u e tudo o q u e até
então aconteceu n ã o era válido. Os antioquenos
rejubilaram-se, mas cedo demais.
N a segunda sessão, realizada a 10 de julho, na
residência de M e m n o n , o concílio recebeu os dele-
gados papais — dois bispos e u m sacerdote. N a sua
q u a r t a sessão, de 16 de julho, declarou nulas as sen-
tenças do contra-concílio dos antioquenos. Na
q u i n t a sessão, de 17 de julho, excomungou o pa-
triarca João e seus adeptos. Enfim, n a sua tiltima,
a sétima sessão (provavelmente a .31 de j u l h o ) q u e
se realizou, novamente, n a igreja dedicada à San-
tíssima Virgem, redigiu seis cânones contra Nestório
e seus partidários. Estes, n u m a carta circular, infor-
m a r a m dos acontecimentos os bispos ausentes.
Os nestorianos conseguiram interceptar todas
as cartas q u e Cirilo e a maioria do concílio diri-
giram ao imperador. U m mensageiro disfarçado
em mendigo, enfim, levou secretamente a Constan-
tinopla, escondida n u m bastão vazio a carta — q u e
chegou até nós dirigida por Cirilo aos monjes
da cidade imperial hostis a Nestório. Estes, em
massa, m a r c h a r a m p a r a a residência imperial.
Mesmo assim n ã o conseguiram de Teodósio mais do
que a confirmação da deposição t a n t o de Nestório,
como dos seus adversários, Cirilo e M e m n o n , e tam-
bém a prisão destes dois últimos. U m novo comis-
sário conciliar de categoria mais elevada, o tesou-
leiro, imperial, João, foi enviado a Éfeso. O fiel da
balança vacilou, mas a causa dos antioquenos, de
modo algum, parecia estar perdida. Estes acusaram
n o v a m e n t e a Cirilo dc ter aliciado os outros bispos
da maioria e sublevado o povo. Defenderam sua
d o u t r i n a pela formulação d e u m a confissão dc fé. O
i m p e r a d o r chamou à sua presença oito deputados de
cada u m dos dois partidos, a fim de inteirar-se da si-
tuação. Foi então q u e começou a m u d a r de opinião.
Depois de u m certo tempo n ã o admitiu os deputados
antioquenos à sua presença e afastou-se decidida-
mente de Nestório: " N i n g u é m poderá mais falar
comigo sobre este homem". Nestório foi desterrado
antes p a r a u m mosteiro d e p e r t o de Antioquia, de-
pois para o Alto-Egito. Até hoje se discute em que
medida era êle hereje no sentido estrito da palavra
e em q u e medida se explica seu destino por u m mal-
entendido.
Os participantes do concilio p u d e r a m voltar
para casa. Cirilo também. A 30 de o u t u b r o de 431
entrou cie solenemente em Alexandria. "Conse-
guira u m a g r a n d e vitória teológica, b e m como d e
política eclesiástica " (Ostrogorsky). Mas também o
P a p a SixLo 111 (432-440), em memória do concilio,
m a n d o u colocar, no arco triunfal da basílica de
Santa Maria Maggiore, por êle construída, os mo-
saicos marianos ali ainda existentes.

Um "sínodo de latrocinio"

Em Éfeso foi condenado Nestório, mas não foi


condenada toda a escola a n t i o q u e n a , n e m o patri-
arca João com os seus partidários, contanto que n ã o
se mantivessem ligados a Nestório. "Nestorianos"
mantiveram-se nas escolas de Edessa e de Nisibis,
F u n d a r a m , em 498, em Selêucia-Ktesifon, u m pa-
triarcado próprio, que, nos séculos seguintes, esten-
deu sua obra missionária até a China e a í n d i a .
Cirilo estendeu a mão aos antioquenos mode-
rados para a reconciliação, enquanto em 433 aceitou
u m a confissão de fé intermediária deles, q u e con-
tinha a expressão Theotokos. N o entanto, o núcleo
do erro q u e estava contido também n a imagem de
Cristo alexandrina, provocou, n ã o muito depois,
u m a nova heresia cristológica, cuja rejeição tornou
necessário u m novo concílio.
Êutiques, a r q u i m a n d r i t a de u m mosteiro em
Constantinopla e zeloso antinestoríano, representou
a concepção de que depois da união das naturezas
divina e h u m a n a em Cristo esta foi absorvida por
aquela, de maneira q u e nessa altura só se pode falar
de u m a natureza, ou seja da divina. O monofisi-
tismo, como foi chamada em conseqüência disso
essa lieresia, restringiu a htimanidade do Senhor,
que é a condição da salvação. Êutiques foi conde-
n a d o por u m sínodo realizado em 448, em Constan-
tinopla sob a presidência do Patriarca Flaviano.
Compreende-se, porém, q u e tenha encontrado apoio
j u n t o ao patriarca Dióscuro de Alexandria, sucessor
dc Cirilo c a êle semelhante no zelo pela cristología
alexandrina, diferente, entretanto, por sua ambição
desenfreada e por sua b r u t a l falta de delicadeza.
Por insistência de Dióscuro, o imperador Teodósio
11 convocou u m sínodo imperial, novamente para
ÉfesOj onde, sob a forte pressão da tropa imperial e
dos monges ali concentrados, Êutiques foi reabili-
tado. O P a p a Leão I, a cujos legados foi negada
a presidência e cuja carta esclarecedora dirigida ao
patriarca Flaviano não pôde ser lida, qualificou esse
concílio de "latrocínio". Elevaram-se, de toda a
p a r t e protestos contra suas decisões. J á a 13 de
o u t u b r o de 449, em n o m e dos bispos ocidentais
pediu Leão q u e o i m p e r a d o r convocasse u m novo
concilio p a r a a Itália. Duas vezes renovou seu pe-
dido, mas sem êxito. Foi só o sucessor de Teodósio
II, Marciano, q u e acedeu ao desejo dêle e, a 17 d e
maio de 4-51, convocou u m novo concilio, embora
não para a Itália, mas para Nicéia. Todavia, logo
depois da abertura, transferiu-o p a r a Calcedonia no
Bosforo, recomendada por ser próxima da Capital.
O áP Concilio Ecumênico, embora convocado nova-
m e n t e p e l o imperador, foi obra de Leão I, a q u e m
a história deu o n o m e dc " G r a n d e " . Com base em
fontes ricas, (protocolos oficiais, listas de presença
dos bispos, cartas) estamos m u i t o mais bem infor-
mados do curso deste concilio do que do de todos
os demais concilios da antigüidade.

A fé de Calcedonia (45J)

O Concilio de Calcedonia superou, em n ú m e r o


d e participantes, a todos os concilios anteriores e
a maioria dos posteriores até o d o Vaticano. Comu-
m e n t e se dá o n ú m e r o de 600 bispos presentes, mas
foi certamente m u i t o m e n o r esse n ú m e r o . A repre-
sentação do Ocidente foi fraca n o q u e toca ao
n ú m e r o . Consistia de cinco legados papais (três
bispos e dois sacerdotes), que, segundo a exigência
de Leão, presidiram o Sínodo (a direção administra-
tiva estava com os comissários imperiais do concilio)
e de dois africanos q u e t i n h a m fugido dos vândalos.
J á na p r i m e i r a sessão, realizada a 8 de o u t u b r o de
451, na igreja d e Santa Eufemia, devia o organizador
do "Sínodo de latrocínio", Dióscuro, sentar-se no
banco dos réus. F o r a m revelados seus métodos
violentos e na terceira sessão, de 13 de o u t u b r o ,
procedeu-se à sua deposição. Seus partidários foram
tratados com indulgência. Antes, na segunda sessão,
t i n h a m sido lidas a confissão de fé nicena e u m a
carta dogmática de Leão Magno sobre as duas natu-
rezas em Cristo. "Esta é a fé dos padres da Igreja —
exclamaram os bispos — esta é a fé dos Apóstolos,
Assim cremos todos nós. Pedro falou pelos lábios
de Leão".

N o entanto, era preciso ainda dissipar certas


dúvidas q u e surgiram contra a versão que, entre
os bispos da Palestina e da Ilíria, fora dada à dou-
trina sobre as duas naturezas. Sustentando q u e a
causa já estava suficientemente esclarecida, os repre-
sentantes do Papa resistiram a u m a nova fórmula
de fé. Apesar disso, na q u i n t a sessão de 22 de ou-
tubro, foi aceita pelo concílio u m a fórmula de fé,
proposta por 23 bispos, que, q u a n t o ao seu conteúdo,
muito estreitamente se alinhava à carta d o u t r i n a l do
Papa, Na sexta sessão, n a presença do casal impe-
rial, foi essa fórmula proclamada e assinada por
todos os bispos: "Nós todos ensinamos, unanime-
mente, q u e há u m único e mesmo Filho, Nosso
Senhor, Jesus Cristo, perfeito na divindade e perfeito
na h u m a n i d a d e . . . e m (e n ã o d e ) duas naturezas,
inconfusa e imutavelmente (contra os monofisitas),
indivisa e inseparavelmente (contra os nestorianos),
que concorrem numa pessoa e numa hipóstase".
A sexta sessão, cuja presidência honorária assu-
m i r a m Marciano e sua enérgica esposa. Pulquería,
foi, indubitavelmente o ponto c u l m i n a n t e do con-
cílio. Os Padres consideraram-no como terminado,
mas o i m p e r a d o r desejava ainda resolver alguns as-
suntos de natureza disciplinar e pessoal, como, por
exemplo, a completa reabilitação de T e o d o r e t o
de Ciro e de Ibas de Édessa, dois chefes da escola
antioquena, O último dos 28 cânones estabelecidos
na décima-sexta sessão, a de 31 de outubro, provocou
a oposição da parte dos legados papais, que, na ses-
são de encerramento, a IP de novembro, e n t r a r a m
com protesto formal contra ele. Com efeito, o cânon
dizia q u e a sede da Nova R o m a (Constantinopla),
gozava dos mesmos direitos q u e a Antiga R o m a e
q u e ela devia ocupar depois desta o segundo lugar.
Embora o concilio e o i m p e r a d o r tenham pedido a
sua confirmação. Leão Magno recusava dá-la. O
referido cânon contradizia à d o u t r i n a d o p r i m a d o
p a p a l q u e aquele P a p a reconhecia com grande cla-
reza e representava com a mesma determinação.
D u r a n t e as negociações da reforma tridentina
foram invocados as vezes t a n t o o cânon G, do con-
cílio de Calcedonia, q u e proibia as ordenações sacer-
dotais, chamadas absolutas, ou seja, as que n ã o
foram feitas para um d e t e r m i n a d o cargo da comu-
nidade, como os cânones 3, 4 e 20, que submetiam os
monges à autoridade dos bispos.

As conseqüências do monofisitismo

Calcedonia coloca-se em posição intermediária,


entre as falsas imagens de Cristo dos nestorianos e
dos monofisitas. Ao mesmo tempo representa u m a
síntese entre o Oriente e o Ocidente, entre o P a p a
e o I m p e r a d o r , mas foi t a m b é m o "resultado de u m a
d u r a luta de forças concorrentes: política imperial
dos imperadores, rivalidades de patriarcas, inte-
resses nacionais particulares, entusiasmo monacal"
(Grilimeier). Todavia, o pensamento monofisita
lançou n o Egito e nos países vizinhos raízes muito
profundas, de maneira q u e a fé de Calcedonia não
p ô d e facilmente extirpá-las. Além disso, associou-ss
ao separatismo das províncias afastadas do centro
do Imperio. E m Alexandria deu-se u m levante
sangrento, u m monofisita tornou-se patriarca e mo-
nofisitas ocuparam muitas sedes episcopais. D u r a n t e
mais de u m século os imperadores bizantinos esfor-
çaram-se desesperadamente p o r dominar a resistên-
cia latente e aberta. Propuseram u m a fórmula
vaga de unificação, o Henotikon (482), t e n t a r a m
até criar um cisma com Roma, o assim chamado
cisma acaciano (484-519). O imperador J u s t i n i a n o
(527-565), o restaurador do império — cuja esposa
T e o d o r a se j u n t a r a em segredo aos monofisitas ~
na esperança de eliminar a resistência do Ocidente
contra u m a reaproximação aos monofisitas, levou
à sede episcopal de R o m a o aparentemente transi-
gente Vigílio, q u e fora legado papal em Constanti-
nopla. Mas também Vigílio, finalmente, declarou-
se partidário da fé de Calcedonia.

E n t ã o u m conselheiro lembrou ao I m p e r a d o r
q u e se poderia, indiretamente, por u m golpe contra
os líderes da escola antioquena, aproximar-se dos
monofisitas ou talvez até reconciliá-los com R o m a .
J u s t i n i a n o condenou por u m édito imperial: 1) a
pessoa e os escritos d e Teodoro d e Mopsuéstia; 2) os
escritos de T e o d o r e t o de Ciro (f cerca de 460), diri-
gidos contra Cirilo de Alexandria e o Concilio de
Éfeso; 3) u m a carta de Ibas dc Edessa que defendia
a T e o d o r e t o contra Cirilo. Eis os "três capítulos"
contra os quais devia tomar posição o concílio impe-
rial q u e Justiniano, de acôrdo com o Papa Vigílio,
convocara para Constantinopla para o início d o ano
de 553.

Vigílio estava sob d u r a pressão. O i m p e r a d o r


m a n d o u q u e da Itália, q u e , depois da destruição do
império dos ostrogodos, passara a fazer parte do
império oriental, fosse êle levado para Constanti-
nopla, onde foi tratado como prisioneiro. Vigílio
fugiu para Calcedonia, e do seu asilo, a igreja do
concilio anterior, retirou sua promessa de par-
ticipar, pessoalmente, do concílio, p o r q u e temia q u e
éste fosse d o m i n a d o pelos gregos. Sem êle, e até
a despeito do seu protesto, o concilio, o segundo
concilio ecumênico de Constantinopla, foi instalado
pelo patriarca E u t í q u i o , a 5 dc maio de 553, diante
de 150 bispos, no Secretarium da igreja episcopal.
164 bispos assinaram as atas d a oitava sessão, q u e
foi a do encerramento, realizada a 2 de j u n h o de
553. E m suas 5.^ e 6.^ sessões, realizadas respecti-
vamente a 19 e a 26 de m a l o , o sínodo condenou
os "tres capítulos", embora Vigílio n u m a declaração
de 14 de maio, q u e fora assinada por 16 bispos, e m
sua maioria ocidentais, se tivesse distanciado d a
condenação da pessoa de T e o d o r o e dos outros dois
"capítulos". Só posteriormente, a 8 de dezembro de
553, e mais u m a vez a 23 de fevereiro de 554, com
base n u m a justificação mais minuciosa, aprovou
Vigílio a condenação dos "três capítulos" e aplainou,
dessa maneira, o c a m i n h o p a r a o reconhecimento
do caráter ecumênico do concílio; chegou à con-
vicção de q u e com isso a fé de Calcedonia n ã o seria
prejudicada. N o entanto, as províncias eclesiásticas
d e M i l ã o e d e Acjuiléia, d u r a n t e m u i t o t e m p o se
negaram a reconhecer o concílio. Só em 607 é q u e
o metropolita de Aquiléia, q u e entrementes aceitara
o título de patriarca, voltou ¡Dará a comunidade
com R o m a .

Mais tarde foi o patriarca Sérgio de Constanti-


nopla (610-638) que fêz u m a nova tentativa de
reconciliar os monofisitas c o m a Igreja do Império.
P a r t i n d o da- u n i d a d e m o r a l das ações do Deus-,
H o m e m , ensinou que Jesus Cristo tinha uma só
energia n a t u r a l , como Deus-Homem e u m a só von-
tade de Deus-I-Iomem (monoteletismo). U m grupo
moderado de monofis-itas, os severianos (nome q u e
vem de Severo de A n t i o q u i a ) deixaram conquistar-
se por sua doutrina; os partidários do Concílio de
Calcedonia, especialmente o m o n g e Sofronio, q u e
em 634 ascendeu à sede patriarcal de Jerusalém, se
opuseram à fórmula, suspeita de compromisso. Sér-
gio conseguiu u m a aprovação, m a n t i d a em generali-
dades, do P a p a H o n ó r i o I (625-638), menos infor-
m a d o nessa questão sublime, p o r cuja conseqüência
o monoteletisnio foi, n o a n o d e 638, prescrito c o m o
lei imperial (Ekthesis). Mas o P a p a M a r t i n h o I
(649-665) manifestou-se, n u m concílio de Latrão,
no ano de 669, contra essa d o u t r i n a e em favor de
"duas vontades naturais e dois modos de ação" de
Cristo. Por causa disto foi desterrado, como réu de
alta traição, para a Criméia e ali morreu em conse-
qüência dos maus tratos q u e sofria.

Foi só sob o reinado do imperador Constantino


I I I (668-685) q u e o império bizantino, gravemente
ameaçado n o N o r t e pelos avaros e no Oriente pelos
árabes, voltou para a linha unívoca de Calcedonia.
De acôrdo com o P a p a Agaton (678-681), convocou
o imperador u m concílio imperial para Constanti-
nopla. Para lá levaram oito legados do P a p a u m a
manifestação sinodal do sínodo patriarcal r o m a n o ,
em q u e foi exposta a d o u t r i n a ortodoxa.

O 6P Concilio ecumênico (o terceiro de Cons-


t a n t i n o p l a ) esteve r e u n i d o de 7 dc novembro de
680 a 16 de setembro de 681 na sala de cúpula d o
palácio imperial {Trullus, por isso Trullanum)
sob a presidência dos legados papais. E m b o r a as
fortalezas do monofisitismo, os patriarcados de Ale-
x a n d r i a e d e Jerusalém, tivessem caído entrementes
no domínio árabe, e por isso quase não foram repre-
sentadas, o n ú m e r o dos participantes elevou-se a
174. O imperador Constantino I I Í assistiu, pessoal-
mente, às onze primeiras sessões. Depois do exame
aprofundado da questão e após terem sido invali-
dados os pretensos argumentos do porta-voz dos
monoíeletas, Macário de Antioquia, foram conde-
nados, n a 13.^ sessão, a 28 de março de 681, os fun-
dadores e os protetores do monoteletismo. Na
16.^ sessão (de e n c e r r a m e n t o ) , de novo n a presença
do imperador, foi aceita u m a confissão de fé, q u e
declarava estar a d o u t r i n a sobre as duas vontades
naturais e as duas energias em Cristo de acordo com
os cinco concílios até então celebrados. N o fim,
Constantino foi aclamado como u m novo Marciano
e u m novo Justiniano.

A questão de Honorio

E n t r e os protetores do monoteletismo, q u e
foram condenados no 6.° Concilio ecumênico, estava
t a m b é m o Papa H o n o r i o I. A "questão de H o n o r i o " ,
q u e no Concilio do Vaticano levantou tanta i:)oeira,
rcduz-se ao seguinte p r o b l e m a : Por q u e causa foi
H o n o r i o condenado ? Por ter sido partidário do
erro — p o r t a n t o hereje — ou por descuido e negli-
gência, nessa questão de fé ? O Papa Leão H (682-
683) deu a resposta a esta questão. E m b o r a tenha
confirmado as resoluções d o concilio, restringindo
a sentença deste, só culpou seu antecessor de negli-
gência na supressão da heresia.
O 5.° e 6.° Concilios Ecumênicos não estabele-
ceram cânones disciplinares. O vazio assim criado
foi preenchido n u m sínodo reunido no a n o de
692, de novo em Consiantinopla, que redigiu 102
cânones, q u e diziam respeito, quase exclusivamente,
à situação eclesiástica d o O r i e n t e e negligenciaram
as reivindicações ocidentais (como o p r i m a d o ro-
m a n o ) e os costumes ocidentais (por exemplo o
j e j u m ) . N ã o foram reconhecidos pelo Papa Sérgio
(687-701), embora fosse êle originário do Oriente,
visto que era sírio de nascimento. A Igreja grega
considera também este concilio como ecumênico.

Um oiilro mundo surge

E n q u a n t o a Igreja oriental, depois do Concilio


de Calcedonia, esgotava suas melhores forças em dis-
tinções sutis na cristologia, o m u n d o ia-se t o r n a n d o
outro. N o império ocidental, d u r a n t e as invasões
dos bárbaros, as tribos germânicas fundaram novos
reinos: os vândalos e os ostrogodos, reinos d e vida
curta, e os visigodos e os lombardos, reinos de
maior duração, e enfim os francos o seu futiu'o
grande império. N o O l i e n t e desencadeou-se a
tempestade histórica dos árabes, que, por u m a mar-
cha vitoriosa invencível ocuparam o Egito, a Síria,
a Pérsia e a África do Norte, estendendo o cinto
islâmico, que, d u r a n t e oito séculas, estrangulou o.
Ocidente cristão, isolando-o do resto do m u n d o . A
entrada dos germanos e dos árabes n a história mun-
dial não deixou de influir sobre a organização e a
estrutura dos concilios.
Nas igrejas dos impérios dos godos ocidentais e
dos francos q u e conservaram no início suas caracte-
rísticas romanas, os bispos continuaram suas ativi-
dades sinodais. Formaram-se, no entanto, novos
tipos: os sínodos de reino convocados pelos reis
merovíngios, por exemplo o de Orleans, no ano de
511, e mais tarde, na época carolíngia, os sínodos d o
império, q u e às vezes se ligavam às dietas dos mag-
natas seculares, embora não completamente identi-
ficados com elas, como o Concilium Germanicum,
celebrado n o ano de 743, sob a influencia de São
Bonifácio, cujas resoluções foram promulgadas como
"decretos dos soberanos" (Capitularia).
Foi semelhante a evolução no império dos visi-
godos. Desde que os reis visigodos se converteram
do arianismo para o catolicismo Concilio de
T o l e d o , de 589), os sínodos de T o l e d o , 18 celebrados
até 702, foram também sínodos imperiais. A ordem
eclesiástica e estatal entrelaçaram-se ali como na
França, mas de forma diversa do q u e se dera no
Império Bizantino. Os concilios nacionais dos
reinos visigótico e franco são a expressão fiel dessa
situação. Êles t o r n a m manifesto por q u e não se pôde
realizar n o Ocidente u m concilio ecumcnico. R o m a ,
a única autoridade eclesiástica q u e teria tido a com-
petência para organizá-lo, pertencia ao Império Ro-
m a n o Oriental, e não d i s p u n h a ainda de u m a influ-
ência suficiente nas igrejas dos reinos germânicos,
excetuando a anglo-saxônica, q u e ela mesma fun-
dara.

Iconoclasmo e veneração de imagens:


o Concílio de Nicéia, de 787

A tempestade árabe n ã o apenas arrancou largas


províncias ao Império Bizantino, mas t a m b é m
avançou, já n o fim do século VII, até às portas da
sua capital. Só a habilidade militar de Leão I I I , d o
Isáurios, impediu em 717-718 q u e Constantinopla
fosse conquistada pelos árabes. Mas este mesmo
imperador, deixando-se levar por círculos eclesiás-
ticos hostis à veneração das imagens (iconoi) e talvez
t a m b é m p o r modelos judaicos e islâmicos, proibiu,
n o ano de 730, por u m decreto imperial, esta espécie
d e piedade. Fundamentou-se essa proibição, em
parte, n o Velho T e s t a m e n t o ("Não farás para ti
imagem d e escultura"), e em p a r t e também, com
referência às imagens de Cristo, n a impossibilidade
de exprimir a natureza divina de Cristo por u m a
imagem. Representar só a natureza h u m a n a seria
nestorianismo. Muitas obras magníficas de arte
foram absurdamente destruídas e defensores das
imagens, como o patriarca G e r m a n o de Constanti-
nopla, depostos e violentamente perseguidos. E m
vão protestou contra o iconoclasmo o P a p a Gre-
gório I I I n u m concílio r o m a n o (731)- U m sínodo
em Hieréia j u n t o ao Bosforo o fundamentou e
sancionou teologicamente (754). "Êles elevaram
a dogmas as suas opiniões — assim caracteriza o
cronista bizantino- T e ó f a n o as resoluções dO' sínodo
— sem q u e alguém das sedes episcopais católicas,
n o m e a d a m e n t e de Roma, Alexandria, A n t i o q u i a
e Jerusalém, tivesse estado presente". O imjjerador
Constantino V (741-775) estava m u i t o mais violen-
tamente furioso contra os partidários da veneração
de imagens do que seus predecessores; só n o mês de
agosto dc 766, 16 altos funcionários e oficiais foram
executados por essa razão.
Jamais cessou entre o povo e entre os monjes
a resistência contra o iconoclasmo do jurisdiciona-
lismo eclesiástico. Mas ela só se manifestou q u a n d o
a enérgica imperatriz Irene assumiu a regência em
lugar de seu filho m e n o r Constantino (780). Sua
primeira tentativa de liquidar o iconoclasmo por u m
sínodo malogrou: a G u a r d a iconoclasta com espadas
desembanhadas penetrou na Igreja dos Apóstolos e
dispersou a r e u n i ã o (31 de j u l h o de 786). Irene,
porém, não renunciou a seu propósito. Apoiada por
Tarásio, patriarca partidário da veneração de ima-
gens, por ela nomeado, conseguiu realizar em Ni-
ceia, no outono de 787, o 7.° Concílio Ecumênico,
q u e em oito sessões de 24 de setembro a 23 de
o u t u b r o revogou as resoluções de 754, invalidou os
argumentos tirados da Bíblia Sagrada e da tradição
eclesiástica q u e os iconoclastas aduziram contra a
veneração de imagens e definiu, como d o u t r i n a de
fé a seguinte tese: É p e r m i t i d a a representação figu-
rativa de Cristo, da Mãe de Deus, dos anjos e dos
santos, p o r q u e , através dela, o fiel que a contempla
se estimula a recordar e imitar o modelo represen-
tado. A veneração prestada às imagens (Proskynesis)
relaciona o modelo representado, ao protótipo,
ela deve ser distinta da adoração (latreia) q u e só
se deve a Deus.
Q u a n t o aos bispos, antes iconoclastas, que se
revelaram arrependidos, o sínodo sobre eles tomou
decisões suaves. A oitava e última sessão de q u e
participaram Irene e seu filho, realizou-se no Palácio
de Magnaiu-a. Mais de 300 bispos, liderados pelos
dois legados pontifícios, subscreveram suas reso-
luções. " N a d a de novo foi ensinado" — diz o cro-
nista Teófanes, resumindo o resultado do concílio
— "só as doutrinas dos santos e benditos Padres
foram conservadas imperturbavelmente e rejeitadas
as novas heresias. . . Agora estabeleceu-se a paz
n a Igreja de Deus, embora o inimigo nunca cesse dc
disseminar, através dos seus auxiliares, a má cizânia.
Mas a Igreja de Deits vence sempre, mesmo q u a n d o
combatida". E, de fato, o iconoclasmo reacendeu-se,
mais u m a vez, no século I X , para sucumbir definiti-
vamente.

Epilogo no Ocidente

N o Ocidente o iconoclasmo foi sempre rejei-


tado. Sem excluir a veneração das Imagens, elas
foram apreciadas por seu valor didático. Elas são os
"Livros dos Leigos", isto é, a leitura dos ignorantes,
conforme disse Gregorio Magno. F o r a m pintados
ciclos inteiros de acontecimentos bíblicos nas pa-
redes das igrejas, como os milagres de Cristo na
Igreja de Oberzell j u n t o a Reichenau, Acrescenta-se
q u e as atas gregas de Nicéia chegaram ao Ocidente
em traduções latinas inexatas. A distinção ali feita
entre a veneração e adoração aqui foi u m tanto obli-
terada. Carlos Magno, q u e se considerava defensor
da ortodoxia não m e n o r do q u e o imperador bizan-
tino m a n d o u combater os supostos erros dos bizan-
tinos n u m escrito teológico polêmico, nos "livros ca-
rolinos" (Libri Carolini), q u e negavam o caráter
ecumênico ao segundo Concilio de Nicéia. Carlos
Magno pensou em opor-lhe u m concilio universal
do Ocidente realizado em Frankfurt, no a n o de
794, ao q u a l compareceram bispos de todas as pro-
víncias eclesiásticas da França e dois representantes
do Papa, mas t a m b é m bispos da Inglaterra. Carlos
M a g n o presidiu-o pessoalmente e participou ativa-
mente das negociações teológicas, tendo a p r i m e i r a
e a última palavra. As decisões do Concilio de
Nicéia de 787 foram rejeitadas como não ecuinê
nicas — mas sem grande êxito. O Papa A d r i a n o I
(772-795) não retirou o reconhecimento do Concilio
de Nicéia; antes se negou a proceder à excomu-
n h ã o do imperador bizantino, exigida por Carlos
Magno.

Esses acontecimentos e a coroação imperial de


Carlos Magno por Leão III, no N a t a l do ano de
800, tornam visível q u ã o afastados já estavam u m d o
o u t r o o Oriente e o Ocidente. O Papado, p r e m i d o
pelos lombardos e a b a n d o n a d o pelo império r o m a n o
oriental, ao qual pertencia de direito, d u r a n t e o
pontificado de Estêvão II, aliou-se a Pepino, fun-

. 4J
dadoi- do reino carolí'ngio e entregou-se à sua
proteção. E m compensação recebeu dêle aquela
famosa doação de terras, das quais se desenvolveram
os Estados Pontifícios. A d r i a n o I foi o primeiro
P a p a q u e não datoti seus documentos segundo os
anos d o reinado dos imperadores romanos orientais
e q u e m a n d o u c u n h a r sua p r ó p r i a moeda. E m Bi-
zâncio a volta do P a p a d o aos francos foi considerada
como deserção e traição. Foi menos do q u e isto,
mas ao mesmo tempo, algo mais. Bizâncio — q u e se
sentia p o r t a d o r a tanto d a cultura greco-romana,
como da ortodoxia — e o Ocidente cristão em p l e n a
formação, q u e reconhecia n o P a p a d o r o m a n o e no
império carolíngío suas forças cristalizadoras da or-
dem, t o m a r a m diferente r u m o de evolução. O
cisma entre a Igreja grega e a latina, que precedeu
ao 8.° Concílio Ecumênico, n a o foi causado apenas
pelo conflito entre u m P a p a fortemente cônscio da
sua primazia e u m patriarca douto, mas ambicioso.
Suas causas foram m u i t o mais profundas.

O cisma de Fócio e sua extinção pelo


8.^ Concilio Ecumênico (869-870)

O P a p a Nicolau I (858-867) negou-se a reco-


nhecer o patriarca Fócio d e Constantinopla, que pela
demissão forçada do seu predecessor Inácio obteve
sua sede, e q u a n d o Inácio n ã o desistiu nem se mos-
trou disposto a renunciar à sua jurisdição na Itália
do Sul e na Dalmácia, o condenou n u m sínodo ro-
m a n o . Fócio, por causa do aparecimento de legados
papais n a Bulgária, p r e o c u p a d o com seus direitos pa-
triarcais ali, defendeu-se n u m a carta circular dirigida
aos outros patriarcas do Oriente, a qual continha
graves acusações contra o P a p a e a Igreja ocidental:
falsificação da fé ortodoxa pela introdução do "fi-
l i o q u e " n o símbolo, pela doutrina do purgatorio,
etc. N u m sínodo de Constantinopla excomungou
Fócio a Nicolau I. Era o cisma.
Algumas semanas depois, Fócio em conseqüên-
cia d e u m a m u d a n ç a no trono (assassínio de Miguel
I I I , e ascensão de Basilio I, o Macedónio, ao trono)
perdeu seu cargo e Inácio voltou a ocupar a sua
sede patriarcal. Logo depois, a 13 de novembro de
867, morria t a m b é m Nicolau I, q u e foi pelo cro-
nista Regino de P r u e m chamado "um segundo Elias,
no espírito e n o poder". A m u d a n ç a de pessoas foi
ao mesmo t e m p o m u d a n ç a d e cenário.
Basílio pediu ao novo P a p a Adriano II (867-
872) q u e colaborasse n a extinção do cisma e n a
reconstrução da ordem eclesiástica n u m concílio
ecumênico. Adriano, antes de tudo, n u m sínodo
realizado j u n t o à Sé de Pedro, em j u n h o de 869,
confirmou as resoluções de seu predecessor e des-
pachou três legados, q u e presidiram o concílio con-
vocado pelo imperador para Constantinopla, já
q u e exigiram d e todos os participantes a assinatura
de u m formulário q u e continha a submissão ao
p r i m a d o do Papa.
O 8.° Concílio Ecumênico, o q u a r t o de Cons-
tantinopla, realizou dez sessões n a Igreja de Santa
Sofia, de 5 de o u t u b r o de 969 a 28 de fevereiro de
870. N o início foi p e q u e n a a acorrência e n o fim
participaram dêle 102 bispos. Os patriarcas de
A n t i o q u i a e de Jerusalém enviaram legados e, a
p a r t i r da 9.^ sessão, estava presente t a m b é m u m
representante do patriarca de Alexandria. O tema
principal das negociações foi o processo contra
Fócio e seus partidários. N a 5.^ e na 7.^ sessões
(respectivamente a 20 e 29 de o u t u b r o ) , êle foi
conduzido ao plenário do concilio, mas recusou-se,
resolutamente, a proferir u m a confissão de culpa
e negou a competência jurídica do legado papal. Foi
d u r a a sentença, que, afinal, caiu sobre êle: "Aná-
tema ao cortesão e ao intruso". A maioria dos
seus partidários tiveram o mesmo destino.
Os 27 cânones aprovados n a sessão de encerra-
m e n t o visaram a impedir q u e se repetissem os acon-
tecimentos em torno de Fócio e confirmaram, nova-
mente, a liceidade da veneração das imagens (can. 3).
O cân. 21 estabelece a ordem hierárquica dos cinco
patriarcas: o Papa da R o m a antiga, os patriarcas
de Constantinopla, Alexandria, A n t i o q u i a e Jeru-
salém. O reconhecimento da precedência de Cons-
tantinopla sobre Alexandria até então negado pelo
P a p a foi u m a concessão de A d r i a n o 11.
O concílio de 869-870 é reconhecido, como
ecumênico pela Igreja Católica, mas n ã o pela
Igreja grega. Fócio foi r e a b i l i t a d o e, depois da m o r t e
de Inácio, tornou-se novamente patriarca. U m sí-
nodo realizado nos anos de 879-880 rejeitou as reso-
luções do concílio precedente. Êle é considerado n a
igreja grega como o 8.° Concílio Ecumênico. T o d a -
via, u m segundo cisma parecia estar evitado. O Pa-
pado, gravemente ameaçado pelas incursões dos sar-
racenos n a Itália, não defendido pelo Império caro-
língío, q u e estava em p l e n o processo cie desinte-
gração, tomando-se cada vez mais um joguete dos
diversos partidos do patriciado romano, ia entrar
n u m dos períodos mais escuros da sua história, do
q u a l só foi libertado pelo movimento de reforma
q u e se iniciou em Cluny,

A Igreja grega tirou nova força da restauração


política e cultural q u e o Império Bizantino expe-
rimentou d u r a n t e o reinado dos imperadores mace-
dônios. Ela fortaleceu sua influência sobre os Balcãs
e a Itália do sul; seu maior êxito foi, no entanto, ter
obtido a adesão da Rússia. U m a luta de importância
relativamente m e n o r em torno d a jurisdição n a
Itália do sul provocou , sob o patriarca Cerulário,
u m cisma novo e desta vez definitivo: a 16 de j u l h o
de 1054, os legados papais H u m b e r t o , Frederico de
Lorena e Pedro de Amalfz colocaram no Altar da
Igreja de Sofia a bula de excomunhão com as pa-
lavras: "Que Deus o veja e julgue".
PARTE II

Os Concílios Gerais Papais


da Alta Idade Média

XCETUANDO-SE O and-concíHo q u e Carlos M a g n o


quisera opor como ura, concilio do Império
do Ocidente ao Concilio de Nicéia de 787, a I d a d e
Média em sua primeira fase não empreendeu ne-
n h u m a tentativa de realizar u m concilio universal.
N ã o levantou tal pretensão n e m mesmo o Concilio
dc Sutri, de decisiva importância histórica, em q u e
o rei H e n r i q u e III, n o a n o de 1046, afastando três
papas rivais, pôs fim ao envolvimento do P a p a d o
pelas intrigas intestinas romanas e abriu em R o m a
a porta para o movimento de reforma. Os concilios
gerais da Idade Média — assim se chamam êles a
si mesmos — saíram dos sínodos, convocados pelos
papas da época da reforma e realizaram-se em R o m a
ou fora dc Roma, ocuj^ando-se com questões ecle-
siásticas de natureza universal. N o começo o
círculo dos seus participantes foi restrito, embora
abrangendo territórios t a m b é m de fora d a Itália.
Seu alcance ecumênico e sua autoridade é completa-
mente dependente da ascensão do Papado d a Re-
forma e do seu prestígio universal que se impôs em
duras lutas. São concilios papais no sentido estrito
da palavra.
Os sínodos papais de reforma e o concilio
de paz na época da hita das investiduras

Desde as Decretais pseudo-isidorianas — aquela


coleção originada no século I X e feita, em grande
parte, de cartas papais falsificadas, mas principal-
mente de cânones autênticos de concílios ~ e sobre-
t u d o desde a sua aceitação de boa fé pelo P a p a Ni-
colau I, foi tese jurídica reconhecida em R o m a q u e
todos os sínodos maiores, abrangendo numerosas
províncias eclesiásticas (sínodos gerais, mas não no
sentido h o d i e r n o ) , só com autorização papal podem
ser realizados. Éste é o sentido da 16.^ tese do fa-
moso "Ditado do P a p a " (Dictdtus Papae) de Gre-
gório V I I : " N e n h u m sínodo pode ser chamado
geral sem a sua decisão (do P a p a ) " . Os Papas da
época da reforma organizavam pessoalmente, e, por-
tanto, n ã o só através dos seus legados, sínodos cujos
participantes se recrutaram em diversas províncias
eclesiásticas e até em diversos países e em q u e se
tratava de questões universais d a Igreja e da cristan-
dade — questões da fé, da T r é g u a de Deus, planos
de cruzada ou a grande questão da época, a liber-
dade da Igreja. Por isso essas assembléias supe-
r a r a m m u i t o em autoridade os concilios provinciais
e nacionais até então comuns. J á os sínodos de
reforma de P á d u a e de R h e i m s (1049), convocados
pelo P a p a Leão I X (1049-1054), Papa "alemão",
n a t u r a l de Lorena, ultrapassaram os límites das as-
sembléias provinciais. Leão I X convidou para o
Concílio de Roma, de 1050, entre outros também
bispos ingleses. Ao mesmo tempo, o bispo Deduino,
de Liège, dirigiu-se contra o plano traçado pelo
rei da França para condenar a heresia de Beren-
gário de T o u r s n u m concílio nacional francês. O
Papa Nicolau II (1059-1061), no sínodo de R o m a
de 1059, de q u e participaram 118 bispos, p r o m u l g o u
o famoso decreto sobre a eleição papal, q u e reserva
aos cardeais o direito de eleger o Papa. Os sínodos
de Gregório V I I (1073-1085) estavam a serviço dos
grandes objetivos da reforma, que aquele Papa se
propusera: a luta contra a simonía, contra a inves-
t i n d u r a pelos leigos e pelo celibato dos sacerdotes.
Êles quiseram ser válidos n ã o apenas para uma cir-
cunscrição limitada, mas também para toda a cristan-
dade católica, q u e Gregório procurou u n i r mais ener-
gicamente do q u e q u a l q u e r dos seus predecessores
( T a n g i ) . Para o sínodo da quaresma de 1075 con-
vocou bispos da Itália do N o r t e e da França; os
bispos alemães, suspeitos de simonía, foram cha-
mados a prestar contas. Pela primeira vez na gestão
de Gregório V I I se convocam abades para tais sí-
nodos. Êle pede que os principes enviem legados a
fim de q u e o poder civil tome p a r t e nas deliberações
sobre as questões de limite. Os dois estados do
m u n d o da I d a d e Média — o espiritual e o temporal
— devem ser representados nos sínodos, sob a presi-
dencia do Papa.
N a literatura da luta das investiduras discute-
se, extensamente, o papel dos concilios na consti-
tuição eclesiástica. Segundo Bernoldo de Constancia,
partidário de Gregório, a sentença sobre I l c n r i q u e
IV é "a sentença geral da Igreja" p o r q u e foi tomada
n ã o unicamente (privatim.) pelo Papa, mas por
ele como presidente do concilio geraí (como generali
synodo praesidens); u m concilio r o m a n o desse
tipo, embora n ã o d e n o m i n a d o ecumênico, é, apesar
disso, " u m concílio m u i t o universal" {generalissima
synodus). E m oposição a êle, Pedro Crasso, parti-
dário de H e n r i q u e IV, sustenta que a convocação
do concílio geral cabe ao imperador. O autor do
livro Söhre a Unidade da Igreja é de opinião q u e
essa u n i d a d e se baseia n ã o n o poder do Papa sobre a
Igreja universal, mas na u n i d a d e do e23Íscopado,
como se p o d e ler já em São Cipriano,
Esse antagonismo de posições explica por q u e
n ã o se realizou o concílio de paz freqüentemente
proposto para pôr termo à luta das investiduras e
ao cisma q u e dela surgiu. O p a p a teria de subme-
ter-se à sua arbitragem, o q u e se compreende q u e
Gregório V I I tenha rejeitado. Êle morreu, aparente-
mente vencido, no desterro, mas sob o pontificado
do seu segundo sucessor, o francês U r b a n o 11 (1088-
1099), os concílios papais r e d u n d a r a m no triimfo do
P a p a d o . E m Piacenza (1095) U r b a n o II, n a pre-
sença de 200 bispos vindos da Itália, da França e da
A l e m a n h a e de milhares de clérigos, e leigos, exortou
a cristandade a empreender a tarefa de libertar a
Igreja O r i e n t a l do domínio dos infiéis. Ainda no
mesmo a n o se fêz a pregação empolgante d i a n t e de
90 bispos e mais de 90 abades em Clermont, d a n d o o
sinal da primeira cruzada. Apoiado n u m a verda-
deira o n d a dc entusiasmo, o P a p a d o firmoti sua
posição eclesiástica e política na luta q u e ainda não
se tinha decidido pela liberdade da Igreja e contra
a supremacia do poder leigo.
Por o u t r o lado deve se levar em consideração
q u e a animação do p e n s a m e n t o conciliar na luta das
investiduras n ã o somente favoreceu à autoridade do
Papa, mas t a m b é m tornou os bispos mais cônscios do
seu papel já q u e da sua colaboração nos concílios de-
p e n d i a m as mais importantes decisões eclesiásticas.
Segundo a d o u t r i n a de Santo Ivo de Chartres
(f 1117), o P a p a e o concílio garantem juntos a con-
servação fiel das tradições eclesiásticas. Essa concep-
ção do direito q u e têm os bispos de participar das
deliberações eclesiásticas tornou-se evidente, q u a n d o
Pascoal II (1099-1118) p e r m i t i u q u e , em 1111, o
rei H e n r i q u e V lhe extorquisse o T r a t a d o de Ponto
M a m m o l o , em q u e concedeu ao rei o direito d a
investidura dos prelados do império, com anel e
bastão, ou seja, fazendo a conceçao q u e Gregório V I I
tão decididamente se negara a fazer, A resistência
dos bispos, p r i n c i p a l m e n t e dos franceses, foi tão
violenta q u e o Papa, no Concílio dc L a t r ã o de 1112,
se sentiu obrigado a r e t i r a r o privilégio concedido
ao rei — q u e seus adversários c h a m a r a m "pravilégio"
(privilégio vergonhoso) — e a d e r i n d o p u b l i c a m e n t e
às teses fundamentais representadas por seus pre-
decessores, Gregório V I I e U r b a n o I I . O sínodo
de L a t r ã o de 1116, de q u e participaram bispos e
abades e t a m b é m príncipes e condes das regiões
mais diversas — entre outras da Espanha — con-
d e n o u o rei, embora o Papa, conforme u m a promessa
se tenha negado a anunciar, pessoalmente, a con-
denação. Q u a n d o a sentença foi promulgada, u m
participante contou 427 velas nas mãos dos bispos
e abades presentes.

Vê-se, daí, q u e tanto o círculo dos participantes


como as tarefas dos concílios papais se ampliaram
à medida q u e o movimento de reformas ia arras-
tando o p a p a d o . Bispos, abades, representantes do
clero das catedrais da Itália, d a Alemanha, assim
como da Espanha e da Inglaterra foram convocados
p a r a os sínodos. T a m b é m representantes do p o d e r
temporal estiveram presentes. Deliberou-se e deci-
diu-se sobre as grandes questões da reforma ecle-
siástica, sobre a eleição papal, a investidura dos
bispos, os planos das cruzadas, a trégua de Deus.
Os dois primeiros concilios gerais em
Latrão (1123-1139)

N ã o foi absolutamente surpreendente n e m foi


u m a p u r a formalidade o fato de q u e o Papa Ca-
lixto I I (1119-1124), após haver terminado no a n o
de 1122, pela Concordata de Worms, a luta das
investiduras com o rei alemão (obrigando-o a renun-
ciar à investidura dos prelados com anel e bastão,
sem prejuízo dos interesses d o I m p é r i o ) , no ano
seguinte fêz confirmar o t r a t a d o através de u m con-
cilio em Latrão. O p r i m e i r o Concilio de L a t r ã o
q u e obteve reconhecimento ecumênico (como o 11.*"
Concilio Ecumênico) realizou-se em Latrão, igreja
episcopal do Papa, em 1123 provavelmente de 18
d e março a 6 de abril. O palácio ligado à igreja,
que d u r a n t e u m milênio servira de residência dos
papas, obteve u m a sala de concilio, edificada por
Leão I I I , d a n d o acesso direto à Basílica. Seu adorno
e m mosaico, sobre o q u a l possuímos apenas infor-
mações escassas, era extraordinariamente expressivo.
O mosaico da ápside principal representava Cristo,
a Mãe de Deus e os apóstolos Pedro e Paulo; nas
ápsides laterais estavam os outros apóstolos. Pode-
se supor q u e as deliberações dos concilios latera-
nenses medievais se realizaram nessa sala, e os atos
solenes na basílica vizinha.
Atas, isto é, relatórios protocolares sobre o
curso das deliberações do primeiro Concilio de La-
trão como também dos seguintes n ã o chegaram às
nossas mãos. O q u e sabemos a respeito deles vem
d e convocações isoladas, q u e foram conservada.s, de
notícias de cronistas e do seu resultado, isto é, dos
decretos dos cânones. Segundo o cálculo mais fide-
digno, o n ú m e r o dos participantes do primeiro Con-
cílio de Latrão se eleva a a p r o x i m a d a m e n t e 300
bispos; é certamente exagerada a informação con-
tida n a biografia de Calixto II, escrita por P a n -
dulfo, segundo a qual 997 bispos e abades teriam
déle participado.
Os 25 cânones do 1 ° Concilio de Latrão reafir-
m a m , cm parte, decretos anteriores; a proibição
da simonia, a observação da trégua de Deus, q u e
já fora proclamada em Clermont. Garantiu-se aos
cruzados a indulgência das penas temporárias do
pecado e a defesa das suas famílias e dos seus bens.
Foi inflingida a pena de excomunhão aos peregrinos
romanos autores de saques e pilhagens. Os outros
cânones se referem à administração de ordens e dos
outros sacramentos, bem como à investidura em
cargos eclesiásticos. D u r a n t e o concílio (a 28 d e
m a r ç o ) , foi canonizado o bispo Conrado de Cons-
tança (f 976). O arcebispo Adalberto de H a m -
burgo-Bremen obtém o pallium. Os arcebispos de
C a n t u á r i a e de York suspenderam sua luta pela
precedência.

Torna-se evidente da lista dos assuntos trata-


dos q u e este primeiro Concílio dc Latrão foi, em
grau elevado, u m p o n t o de encontro e forurn da
cristandade. O ensejo do segundo foi u m litígio
interno da Igreja: o cisma de Anacleto I I .
Depois da morte do Papa H o n ó r i o II (1124-
1130), dezesseis cardeais, em sua maioria franceses,
elegeram para p a p a o candidato d a poderosa família
dos Frangipani, Gregório Papareschi, q u e se chamou
Inocêncio II. Logo depois vinte cardeais elegeram
Pedro Pierleoni, de ascendência judaica, o "Papa
vindo do Gheto", Anacleto I I . Êstc gozou do forte
apoio d o rei R o b e r t o I I d a Sicília, mas a intervenção
de São Bernardo de Claraval a favor do seu rival,
Inocêncio II, assegurou o prevalecimento deste
último, já q u e t a m b é m o i m p e r a d o r Lotário I I I ,
m a r c h a n d o sobre R o m a e m duas ocasiões, favore-
cera a sua posição, deixando-se coroar por êle.
Anacleto II, no entanto, até a sua morte a 25 de
janeiro de 1138, manteve-se n o Vaticano e n a Cidade
Leonina, ou seja, no distrito situado n a m a r g e m
direita do rio Tévere, e m t o m o da Basílica de S.
Pedro q u e Leão IV cercara de muros para defendê-
la contra os sarracenos.
N o a n o seguinte (1139), Inocêncio II, então
universalmente reconhecido, convidou os bispos e os
abades do Ocidente p a r a u m "sínodo plenário" —
assim o chamou em vez da expressão h a b i t u a l "sí-
n o d o geral". Só chegou a nós a convocação dirigida
à província eclesiástica distante de Compostela. Os
dados sobre o n ú m e r o dos participantes oscilam,
de novo , m u i t o fortemente: os anais de Melk,
j u n t o ao D a n ú b i o , falam de 500, a crônica de O t t o
de Freising fala em cerca de mil participantes.
A i n d a q u e o n ú m e r o inferior seja considerado o
mais correto, fica a verdade de q u e Otto de Freising
testemunha a impressão dos contemporâneos,
q u a n d o dá ao sínodo o qualificativo de "muito
g r a n d e " (máxima). Como já por ocasião do pri-
meiro concílio de L a t r ã o , assim também neste se-
gundo, resulta dos documentos papais despachados
d u r a n t e o concílio q u e os participantes vieram de
quase todos os países da cristandade: de Lincoln
n a Inglaterra, Huesca na Espanha, de Jerusalém;
com maior n ú m e r o representadas foram natural-
mente as igrejas e os mosteiros da França, da Suíça,
d a A l e m a n h a e da Á u s t r i a .

O Concílio d u r o u de 4 d e abril de 1139 até o


fim do mês. N o seu discurso d e abertura o Papa
deplorou a confusão q u e surgira n a Igreja pelo
cisma d e Anacleto e depôs os partidarios déste.
Estes deviam restituir seus palios, báculos e anéis
episcopais. Para o grande desgosto d e Bernardo
de Claraval, a deposição atingiu também seu prote-
gido, o Cardeal Pedro de Pisa. A maioria dos 30
cânones do cottcílio continua a traduzir a ideologia
do movimento da reforma gregoriana; mas encon-
tram-se entre êles t a m b é m proibições da usura, dos
torneios e dos estudos d e direito e d e medicina
aos monjes. Alcançou grande importância, q u a n t o
à execução do celibato, o cânon 7, q u e declara invá-
lido e n ã o apenas ilícito, como fora até então, o ma-
trimônio contraído pelos clérigos (a partir dos sub-
diáconos) e pelos monjes. O Cân. 28 confirma o
direito q u e os cabidos têm à eleição dos bispos, n o
entanto sem a exclusão dos superiores das o r d e m ,
até então autorizados para isso; este cânon tornou-
se o p o n t o de partida do desenvolvimento da po-
sição influente dos cabidos n a I d a d e Média.

O âmbito das tarefas é agora m u i t o mais ex-


tenso do q u e foi em 1123. Certos sectários, q u e re-
jeitam a eucaristia, o batismo de crianças, o sacer-
dócio e o casamento, serão excomungados pelo cân.
23; são os precursores dos grandes movimentos heré-
ticos q u e logo depois deviam tanto preocupar a
Igreja. Segundo o relatório de O t t o de Freising, o
cônego A r n a l d o de Bréscia foÍ denunciado pelo seu
bispo por ter afirmado q u e n e n h u m sacerdote ou
monje, q u e possuísse bens, podia ser canonizado;
ainda desta vez êle saiu sem grande prejuízo: foi-
lhe imposto apenas o silêncio.

T a m b é m no segundo Concilio de Latrão reali-


zou-se u m a canonização: Sturmi, o primeiro abade
de Fulda foi declarado santo a 18 de abril.
N ã o assistiu ao concílio o h o m e m mais influente
da época, q u e lhe d e u seu nome: Bernardo d e Cla-
raval. Apenas por sua palavra vibrante, sem o apoio
do concílio, o grande santo realizou a segunda cru-
zada de resultado infeliz.

Luta e paz com Barbaroxa: o terceiro


Concilio de Latrão (1179)

A l u t a de política eclesiástica, a das investiduras,


deu origem ao primeiro Concilio de L a t r ã o ; u m
cisma, ao segundo. A pré-história do terceiro Con-
cilio de L a t r ã o reúne os dois motivos.
À eleição de R o l a n d o Bandinelli de Sena para
P a p a (Alexandre LLÍ, 1159-1181), opôs o i m p e r a d o r
Frederico I, apelidado o "Barbaroxa", sob a pressão
da representação brusca dos cardeais reunidos n a
Dieta d e Besançon em-1157, u m contra-candidato n a
pessoa do cardeal Otavíano de Montecelio (Vitor
I V ) . A tentativa levada a efeito por Barbaroxa, para
restituir a soberania do império na Itália, levou as
cidades da Itália do N o r t e para o lado de Alexandre
III, q u e se recusou a comparecer ao concilio reunido
em P á d u a em 1160. Só depois de u m a luta encar-
niçada, q u e d u r o u cerca de 15 anos, Barbaroxa
a b a n d o n o u , n a Paz de Veneza (1177), seu a n t i p a p a
-- q u e fora Calixto III, o segundo sucessor de Vítor
—, obrigando-se a restituir os benefícios por êle
ocupados. O terceiro Concilio de Latrão, previsto
já nas atas da Paz, foi o sélo eclesiástico pôsío sob a
conclusão da paz, q u e fortaleceu o poder do Pa-
pado. Ao Concilio, segundo as palavras da convo-
cação enviada aos bispos de Toscana, caberia, "con-
forme os costumes dos Santos Padres", confirmar a

S6
paz e emprestar-lhe a força que, sem isso, ela n ã o
teria. Portanto, Alexandre liga o concilio aos da
antiga Igreja. Seu desejo era reitnir "todo o m u n d o
católico, pelo menos todo o m u n d o eclesiástico"
(Tangi).
Do terceiro Concilio de Latrão, o 11.° Concilio
Ecumênico, possuímos pela primeira vez listas dos
participantes episcopais com 291 nomes ao todo;
o n ú m e r o efetivo dos participantes devia ultrapassar
a 300, O grosso é constituído, naturalmente, dos bis-
pos d a Itália central e meridional, mas achavam-se
representadas todas as províncias eclesiásticas da In-
glaterra, da Escócia, da Irlanda, da França e da Ale-
m a n h a ou por seu metropolita em pessoa ou por
seus sufragáneos. T a m b é m da Espanha vieram 19
bispos, da Dalmácia 5, dos Estados dos Cruzados 8. O
n ú m e r o cios abades presentes é desconhecido, mas,
pelo volume dos privilégios concedidos ao mosteiros
d u r a n t e o concilio deve ter sido considerável. U m a
fonte inglesa constata q u e compareceram "legados
de quase todos os imperadores, reis e príncipes de
toda a cristandadc".
O concilio realizou três sessões: em 5, 7 (ou 14)
e 19 (ou 22) de março de 1179. O cronista Gui-
lherme de T i r o diz em sua História das Cruzadas:
"Sobre as resoluções deste Concilio, os nomes, o
n ú m e r o e o título dos bispos, leia-se o relatório que
redigimos a pedido dos sinodais e q u e depositamos
n o arquivo da nossa igreja de Tirus". Mas esse
escrito não chegou até nós. Sabemos quase nada
a respeito do decurso das negociações conciliares; só
conhecemos o seu resultado, os 27 "capituli". Os
dois primeiros refletem ainda o litígio anterior ao
concilio. A fim de prevenir futuros cismas, decide-
se q u e dali por diante, para a eleição do Papa, seja
necessária u m a maioria de dois terços; a dignidade
e a sagração dos cismáticos serão declaradas nulas.
Das outras resoluções escolhemos exemplos caracte-
rísticos pelos quais fica manifesta a extensão do
concilio n o domínio eclesiástico e ate no civil. Para
a eleição d o bispo, exigir-se-á a idade m í n i m a de
30 anos, a i n d a hoje era vigor, b e m como descen-
dência legítima. N i n g u é m p o d e possuir várias digni-
dades, p. ex., paróquias — é a proibição das cha-
madas acumulações de benefícios. Em cada cate-
dral deve haver u m professor para o ensino das
crianças pobres e dos clérigos. O fornecimento d e
armas ou materiais p a r a a r m a m e n t o s — p . ex., ferro
c madeira de construção de navios — aos sarracenos,
será p u n i d o com excomunhão. Judeus e sarracenos
n ã o p o d e m possuir escravos cristãos. Pronunciar-se-á
o a n a t e m a sobre os cataros espalhados no Sul da
França, o q u e se estenderá a todos os q u e os hospe-
darem ou q u e com êles negociarem; seus bens
devem ser confiscados; e q u e m , seguindo o conselho
dos bispos, pegar em armas contra êles, como os
cruzados, estará sob a defesa da Igreja. Conforme
notícias fidedignas, compareceu ao concilio u m a
embaixada dos "Pobres dc Lyon", i.e. dos parti-
dários do antigo comerciante Pedro Valdo, q u e
entregaram a sua tradução d a Bíblia e pediram a
aprovação das prédicas dos leigos. Êles não foram
atendidos, sera serem, e n t r e t a n t o condenados. Só
mais tarde se tornou este movimento de pobreza,
originado dos melhores motivos, u m a seita perigosa,
n ã o menos perigosa do q u e a dos cataros condenados
no concilio. Ambos desenvolveram-se em movi-
mentos clandestinos. A q u i se explica a razão p o r
q u e o processo aplicado contra os herejes desde os
concilios medievais difere do da Igreja Antiga: con-
sidera-se a heresia n ã o apenas como ura erro na fé,
mas t a m b é m como u m atentado contra a Igreja e
a sociedade; n ã o somente se condena a d o u t r i n a :
aViiquila-se também seu autor.
Eis mais u m a imagem característica deste con-
cílio, esboçada pelo cronista Von Stade na Baixa
Saxônia: " N o concílio foram dois ingleses e dois
escoceses consagrados bispos pelo Papa, dos quais
u m veio só com u m cavalo, o outro a pé com u m
companheiro. Estava lá t a m b é m u m bispo irlandês
q u e contou ao Scolasticus de Bremen q u e êle con-
seguia manter-se com três vacas leiteiras; q u a n d o
elas n ã o davam mais leite, eram substituídas por
outras por seus diocesanos".
Os três primeiros concílios de Latrão conse-
g u i r a m reconhecimento universal pelo fato de terem
colocado o selo da solução dos problemas mais ar-
dentes da época: puseram termo à luta das inves-
tiduras, aos cismas de Anacleto I I e de Barbaroxa.
O n ú m e r o sempre crescente dos participantes, mas
também a consciência dos seus convocadores eleva-
os acima dos anteriores concílios papais. Mesmo
assim, são apenas preliminares do quarto Concílio
de Latrão, 12.'^ Concílio Geral, celebrado no ano de
1215, que desde o início foi planejado como ecumê-
nico, conscientemente ligado aos antigos concílios.

Inocêncio III no 4.° Concilio


de Latrão (1215)

" T e n h o desejado ardentemente comer con-


vosco esta Páscoa, antes de sofrer" (Luc. 22,15).
Com estas palavras do Senhor o P a p a Inocêncio I I I ,
sentindo sua próxima morte, abriu, a 11 de no-
vembro de 1215, o grande concílio de Latrão, p a r a
o qual, dois anos antes, a 19 de abril de 1213, "se-

5,9
g u n d o a regra dos antigos Padres", convidara os bis-^
pos do Oriente e do Ocidente, os superiores dg's
grandes ordens religiosas e os representantes dos ca-
pítulos, b e m como os reis cristãos. Entre os 404 bis-
pos conhecidos por nome, q u e atenderam ao convite,
não se contavam os gregos d o patriarcado de Cons-
tantinopla, também convidados. Em compensação
encontraram-se os bispos dos países do Oriente euro-
peu q u e n ã o se representaram em concílios anteriores
— Boêmia, H u n g r i a , Polônia, Letônia e Estônia —
que, ali comparecendo, demonstraram a sua inte-
gração n a cristandade ocidental. Contavam-se 800
abades entre os presentes. Enviaram legados o
i m p e r a d o r Frederico TI, os reis da França, da Ingla-
terra, de Aragão, da H u n g r i a , assim como os Estados
dos cruzados e algumas cidades, como Gênova. T o d a
a cristandade, eclesiástica e leiga, íoi "representada".
O concílio teve só três sessões; a 11, a 20 e a 30
de n o v e m b r o de 1215. São seu resultado os 70 "ca-
pítulos" q u e passaram a fazer parte do código ecle-
siástico. Sobre sua origem como em geral sobre
o curso das negociações, faltam, ainda u m a vez, as
fontes. Os capítulos são introduzidos por u m a
confissão de fé que se dirige contra os cataros sera
citá-los expressamente. Contem o conceito da
"transubstanciação" n a Eucaristia, elaborado du-
rante a luta contra a heresia de Berengário de
T o u r s ; contem ainda a condenação da d o u t r i n a
trinitaria do abade calabrês, J o a q u i m de Flores.
A luta defensiva que a Igreja teve de travar contra
as heresias dos cataros, dos valdenses e de outros
grupos sectários, reflete-se nas instruções da Inqui-
sição. A i n d a hoje está em vigor o famoso capítulo
21, que obriga todos os cristãos, q u e já chegaram ao
uso da razão, à confissão e à páscoa anual: era
isto u m a exigência mínima, mas q u e corresponde
perfeitamente à orientação papal de não decretar
n a d a q u e fosse irrealizável e q u e por isso corresse o
risco de permanecer letra morta.
Esse espírito realista transparece através de
todas as leis d e reforma do concílio, q u e / s e g u n d o
u m plano cuidadosamente premeditado, abrangiam
todos os graus hierárquicos e todos os estados, e
q u e procuravam servir à cura das almas. N e n í i u m a
diocese p o d e permanecer "sede vacante" por mais de
três meses (c. 23). J á q u e os bispos, pela extensão
das suas dioceses, nem sempre podem cumprir pes-
soalmente sua obrigação dc anunciar a fé pela pa-
lavra, devem empregar pregadores e confessores
idôneos nas catedrais (c. 10) e cuidar da pregação^ na
língua vernácula dos fiéis (c. 9 ) . Os sínodos provin-
ciais (c. 6) e os capítulos gerais das ordens (c. 12),
organizados a n u a l m e n t e devem velar pela execução
dos decretos de reforma. Para sc elevar o nível
intelectual dos clérigos é preciso contratar u m pro-
fessor de gramática nas catedrais e teólogos instruí-
dos nas igrejas metropolitanas (c. 11). Para os leigos
era i m p o r t a n t e a limitação dos impedimentos matri-
moniais, a proibição dos casamentos clandestinos,
bem como adverti-los contra as fraudes com as relí-
quias e nas peregrinações (c. 62). A legislação a
respeito dos judeus (proibindo-lhes a saída nos
dias da Semana Santa e obrigando-os a usar vestes
especiais n ã o se baseou em preconceitos raciais
n e m foi concebida, em termos de ofensa h u m i l h a n t e ,
p o r q u e era válida também para os maometanos q u e
viviam entre os cristãos. Seu motivo era a defesa da
fé cristã, mas mesmo assim permanece u m tributo à
"cosmovisão" da época.

Sob o pontificado de Inocêncio III, atingiu o


P a p a d o n a Idade Média o auge da sua autoridade
espiritual e temporal. Apesar disso, o 4.° Concílio
de L a t r ã o n ã o foi absolutamente apenas " u m ce-
nário d o Papa, como senhor absoluto da Igreja
universal" n e m foram os bispos rebaixados a "instru-
mentos de u m Papa o n i p o t e n t e " ( H e l l e r ) . Ino-
cêncio n e m mesmo conseguiu impor sua vontade
era tudo. A garantia financeira dos serviços públicos
papais (Chancelaria e c â m a r a ) , bem como da Corte
pontifícia através da contribuição regular da Igreja
universal não teve a aprovação da maioria do con-
cílio, e isso, podemos dizer, para o prejuízo da
Igreja, porque, se o tivesse obtido, talvez n ã o ti-
vesse desenvolvido o sistema curial de taxas e im-
postos, que, no século XIV, provocou tanta oposição
entre os povos. E m b o r a tragam alguns decretos con-
ciliares a marca da personalidade do Papa, não á
menos verdade q u e a legislação da reforma d o A:P
Concílio de L a t r ã o foi o resultado de u m a verdadeira
colaboração entre o P a p a e os participantes do con-
cílio. Por isso exerceu este tão boa influência, espe-
cialmente n a Inglaterra, ainda q u e não se tenha rea-
lizado a renovação fundamental da Igreja q u e o
Papa t a n t o esperava. A 16 de j u l h o do ano seguinte,
chegou a "hora derradeira do P a p a " (Federer), a
q u e m a história estranhamente se recusou a conceder
o sobrenome de Grande; n a idade de 55 anos morreu
êle em Perúgia.

Graças à autoridade q u e o P a p a d o até no do-


m í n i o temporal possuiu e exerceu, o concílio tomou
também resoluções políticas, todas n a t u r a l m e n t e
ligadas de certa forma aos interesses eclesiásticos: a
entrega do condado de T o u l o u s e — foco do movi-
m e n t o dos cataros — a Simão de Monfort; a conde-
nação da Magna Carta extorquida ao rei João da In-
glaterra; a confirmação da eleição de Frederico II
para imperador. O concílio fixou a data d e l.*^ de
j u n h o de 1217 para o início d e u m a grande cruzada
estabelecendo a Sicília como o lugar de encontro;
para financiá-la o clero devia, d u r a n t e vinte anos,
entregar a vigésima p a r t e das suas rendas. A £Ím
de m a n t e r livre a praça existente para os cru-
zados, foi proibida por quatro anos q u a l q u e r comu-
nicação m a r í t i m a com os maometanos, bem como
o comércio com armas e material bélico, ou o ser-
viço, como piloto, em navios sarracenos. O recru-
tamento para a cruzada teve pleno êxito, mas esta,
q u e se dirigiu contra o Egito, a base de poder de
onde foram ameaçados os Lugares Santos, r e d u n d o u
em completo malogro.
O concílio geral seguinte, organizado pelo Papa
Inocêncio IV e realizado em Lyon, exerceu ainda
mais profunda influência sobre a evolução histórica
do que o 4.° Concílio de Latrão. Seu lugar significa
o gradativo deslocamento d o foco de gravitação da
vida eclesiástica, que, inicÍando-se d u r a n t e a luta
final entre o P a p a d o e a dinastia dos Hohenstauf,
teve conseqüências de decisiva importância pela
transferência da Sede papal para a França.

A deposição do Imperador Frederico II


no primeiro Concilio de Lyon (1245)

N a noite de 28 para 29 de j u n h o do ano de


1244, alguns cavalheiros abriram caminho a toda
pressa e em profundo segredo através dos bosques
q u e se estendem entre Sutri e o porto de Cività
Vecchia: o P a p a Inocêncio IV, antes Sínibaído Fies-
ciii d e Gênova, a c o m p a n h a d o de seu sobrinho, de
dois camaristas, do capelão e do seu confessor, saiu
apressado em direção do porto salvador, onde o
esperava u m a frota genovesa. Fugia do i m p e r a d o r
Frederico II com q u e m estava em negociações havia
meses, a í i m d e p ô r termo a o conflito q u e explodira
sob o pontificado do seu predecessor, Gregório IX,
a respeito dos direitos imperiais e eclesiásticos n a
Itália. O P a p a estava convicto de q u e esse litígio
n ã o ia terminar, pois n ã o havia desejo de chegar
a u m acordo. Cercaram-no tropas imperiais, impe-
clindo-lhe a ligação cora o m u n d o exterior. Q u a n d o
em Gênova, sua pátria, recebido entre júbilo após
a sua fuga bem sucedida, citou cie a palavra do Sal-
mista (Ps. 123, 7 ) : "A nossa a l m a como o pássaro
escapou do laço dos caçadores; o laço foi quebrado,
e nós ficamos livres".
O P a p a julgou ter encontrado em Lyon o lugar
mais propício para a luta c o n t r a o imperador. Êle
estava decidido a continuá-la. A cidade se achava
ainda d e n t r o das fronteiras do império, mas perten-
cia ao arcebispo e tinha as melhores comunicações
tanto com a França com a A l e m a n h a . De lá saíram,
a 3 de j a n e i r o de 1245, as convocações ao m u n d o
para o 13." concílio geral. Em grande n ú m e r o ,
atenderam os bispos da França e d a Espanha; em
m e n o r n ú m e r o vieram os d a Inglaterra e da Itália
e em m e n o r n ú m e r o ainda os do Império da Nação
Alemã: o imperador proibiu, o mais severamente
possível, o comparecimento ao concílio e fechou os
caminhos de acesso a o mar. O Concílio de Lyon
com u m n ú m e r o d e participantes entre 140-150,
ficou m u i t o a q u é m do último concílio de Latrão.
Seu q u a d r o p a r a nós é mais colorido, p o r q u e
possuímos dêle ura curto relatório de atas e u m a
descrição contida na crônica de Mateus de Paris.
D u r a n t e a sessão de abertura, realizada a 28 de
j u n h o de 1245 na catedral de Lyon, o Papa falou das
cinco dores que o afligiam: os pecados dos sacer-
dotes, a perda da cidade santa de Jerusalém (que
em 1244 caíra definitivamente nas mãos dos mao-
metanos), a ameaça dirigida contra o império de
Constantinopla (fundado n a 4.^ Cruzada), a irrup-
ção dos mongóis na E u r o p a e enfim — o assunto
principal — a perseguição da Igreja pelo i m p e r a d o r
Frederico I I . Contra êle o P a p a levantou as mais
sérias acusações: heresia, ligação com os infiéis,
violação de tratado e de j u r a m e n t o . Tadeu de
Suessa, supremo juiz da corte siciliana defendeu
seu i m p e r a d o r objetiva e p r u d e n t e m e n t e , mas Ino-
cêncio o refutou p o n t o por p o n t o . U m a das de-
núncias se referia ao concílio q u e o P a p a Gregório
I X quisera realizar na Páscoa de 1241, em Latrão e
q u e Frederico impedira, interceptando a frota geno-
vesa com seus cem prelados a b o r d o e aprisionando
seus ocupantes.
U m a semana depois, n a segunda sessão d e 5 de
julho, teve continuação o processo contra o impe-
rador. T a d e u de Suessa n ã o pôde refutar a acusação
de q u e Frederico exercera violência contra os bispos;
conseguiu, n o entanto, a suspensão da sentença por
12 dias, a fim de obter novas instruções do seu
soberano.
Nesse ínterim, o concílio liquidou assuntos ecle-
siásticos. Dos seus 22 "capítulos" (e n ã o 17 ou 19,
como se s u p u n h a a n t e r i o r m e n t e ) , 8 foram reso-
luções pré-conciliares que êle apenas confirmou.
Inocêncio, antes de ser eleito Papa, fora professor
de direito canónico em Bolonha; daí seu interesse
pela reestruturação do direito processual, do qual
trata u m a parte dos "capítulos". Os grandes pro-
blemas da cristandade dos quais o P a p a falara em
seu discurso de abertura, n ã o foram esquecidos.
Êle mesmo se responsabilizou pelas despesas de esta-
belecimento de fortificações destinadas à defesa
contra futuras incursões mongóis. Aos beneficiários
n ã o residentes foi imposta a obrigação de contribuir
com a terça parte da sua renda anual para o auxílio
do i m p e r a d o r latino de Constantinopla, assim como
a todos os clérigos se obrigou, semelhantemente ao
q u e fora prescrito n o 9.° Concilio de Latrão, a con-
t r i b u i r com a vigésima p a r t e d a sua renda para a
reconquista dos Lugares Santos d a Palestina.
Essas resoluções foram aprovadas pelo concilio
na 3.^ sessão de 17 de j u l h o , em q u e u m a embaixada
de barões Ingleses protestou, sem êxito, contra a con-
cessão d e benefícios ingleses a italianos. O p o n t o
priiicipal das negociações foi a sentença no pro-
cesso dirigido contra o imperador. Frederico' 11 foi
deposto como rei alemão e imperador r o m a n o
p o r violação d e j u r a m e n t o , perturbação de paz e
suspeita de heresia. Desde os dias de Gregorio V i l
era a primeira deposição de u m imperador pelo
Papa. " O h ! dia da ira, da calamidade e da mi-
seria" — exclamou T a d e u de Suessa. Foi, de fato,
o começo do declínio da causa dos Stauf, e do poder
imperial. Foi também como u m a prova de força d a
p l e n i t u d e dO' poder do P a p a d o no domínio tem-
poral, para cujo desempenho êle, a longo prazo, não
estava p r e p a r a d o .
U m mês depois da sessão de encerramento do
concilio, a 25 de agosto de 1245, Inocencio IV enviou
os 22 "capítulos" às universidades, "para o uso na
administração da justiça e n o ensino", investindo-os
assim de força jurídica. Acrescidos de mais 11 de-
cretos, passaram a integrar-se n a coleção definitiva
de leis do Papa, p u b l i c a d a no a n o de 125.3. O
processo é m u i t o elucidativo para as relações enti'e
o P a p a e o concilio; êle nos ocupará ainda u m a
vez, q u a n d o tratarmos do concilio seguinte.
Cruzada, uniào com os gregos e
a ordem de conclave no segundo Concílio
de Lyon (1274)

Ao segundo Concílio de Lyon — 14.° Concílio


Geral — precedeu u m a demorada vacância da Santa
Sé. D u r a n t e três anos, depois da luorte de Cle-
m e n t e IV a 29 d e n o v e m b r o d e 1268, os cardeais,
divididos em partidos, n ã o conseguiram chegar
a u m acôrdo sobre u m candidato; para forçar u m a
decisão, os cidadãos de Viterbo destelharam o pa-
lácio episcopal, em q u e estava reunido o colégio
eleitoral. T e d a l d o Visconti, d e Piacenza, eleito P a p a
a l.° de setembro de 1271, detinha-se em Akkon, o
último baluarte dos cristãos n o Oriente. Compre-
ende-se que a causa das cruzadas — q u e n a realidade
já se havia perdido •— lhe tocava m u i de perto ao
coração. "Se eu m e esquecer d e ti Jerusalém" (Ps.
138) teria êle dito, ao despedir-se. Ao mesmo t e m p o
Gregório X estava muito desejoso da u n i ã o com os
gregos, q u e reconquistaram Constantinopla e ali
mesmo d e r r u b a r a m o império latino, tendo, p o r é m ,
m e d o d o contra-ataque do rei Carlos de Nápoles.
Eleição papal, cruzada e u n i ã o com os gregos
foram os temas principais d o concílio, q u e foi con-
vocado por Gregório X, em abril de 1273, novamente
p a r a Lyon. Eoram convidados n ã o só os arcebispos,
os bispos, os capítulos e abades (um de cada dio-
cese), os reis e os príncipes do Ocidente, mas tam-
b é m o i m p e r a d o r grego, Miguel de Constantinopla,
o rei e o "Katholicos" (chefe eclesiástico) da Ar-
mênia, e até o G r a n d e K h a n dos mongóis, sobre
cuja inclinação para o cristianismo chegaram notí-
cias falsas, ou, pelo menos, exageradas ao Ocidente.
Embora, a representação não tenha alcançado a do
4 ° Concílio de Latrão, igualou-se a êle q u a n t o à sua
extensão universal. Depois da Itália, o país mais
fortemente representado foi a Alemanha, com 6
arcebisi^os e 28 bispos, da França vieram ,S1;25 de
cada u m dos países da península ibérica, bem como
da Inglaterra, a o todo mais de 200, cuja presença
p o d e ser provada. Os cálculos dos cronistas, em
q u e estão incluídos os abades, outros dignatarios
eclesiásticos e procuradores, elevam-se a mil e talvez
a mais. U m dos convocados, o maior de todos,
faltou: T o m á s de A q u i n o m o r r e u em viagem de
Nápoles a Lyon, a 7 de março de 1274, no mosteiro
de Fossanuova perto de R o m a . Semelhante destino
teve Agostinho antes do Efesíno.

O segundo Concílio de Lyon foi instalado na


segunda-feira, dia de rogação, a 7 de maio de 1724,
p o r u m a pregação d e Gregório X, q u e tomou como
texto as mesmas palavras da Escritura que seu pre-
decessor Inocêncio I I I usara n a abertura d o 4.°
Concílio de Latrão: " T e n h o desejado ardente-
m e n t e . . . " Êle apontou três objetivos d o concílio:
o auxílio a Jerusalém, a união com os gregos e a
reforma d a Igreja. À direita d o Papa tomaram
assento os cardeais-bispos, e entre êles São Boaven-
tura, à esquerda os cardcais-presbíteros; a êles se
unirani,dos dois lados, os arcebispos, os bispos e os
abades. Os patriarcas latinos de Constantinopla e
de A n t i o q u i a tiveram lugares especiais n a nave da
igreja, sinal de q u e a dignidade patriarcal ainda não
tinha sido subordinada ao cardinalato. Obtiveram
lugares separados t a m b é m o rei de Aragão, os le-
gados dos reis da França, da Alemanha, da Ingla-
terra e da Sicília, bem como os representantes das
ordens de cavalaria-eclesiástica.
A fim dc levantar os fundos para uraa g r a n d e
cruzada, o P a p a julgou necessário u m sacrifício
q u a t r o vezes maior que o exigido por Inocêncio
I I I : o dízimo por seis anos. Com u m a p r u d e n t e
tática d e negociações, conseguiu obter a aprovação
dos prelados resistentes; tratou com êles n ã o no
Plenário, mas separadamente cora os representantes
de cada província eclesiástica. N a segunda sessão
de 18 de maio, as aprovações estavam concedidas.
E m interesse da cruzada o P a p a pediu a paz por
seis anos; mas antes de vir a cruzada a realizar-se,
A k l o n caiu a 18 d e m a i o d e 1291.

A 24 de j u n h o chegaram os legados gregos: o


antigo patriarca de Constantinopla, Germano, o
arcebispo de Nicéia c o logoteta. (chanceler) d o
imperador. Êles aceitaram, n a 4.^ sessão de 6 d e
j u l h o a confissão de fé q u e lhes fora apresentada e
q u e continha o reconhecimento do p r i m a d o p a p a l ,
da d o u t r i n a sobre o purgatório, dos sete sacramentos,
e j u r a r a m , em n o m e do seu imperador, a união cora
a Igreja R o m a n a . D u r a n t e a missa foi cantado o
C r e d o e m latim e e m grego com o "filioque"; após
haverem os gregos dessa maneira tornado pública sua
fé no "fÍlioc]ue", foi-lhes concedido m a n t e r o texto
tradicional do seu símbolo. N o entanto, a u n i ã o n ã o
teve duração, p o r q u e ela, ambicionada pelo impe-
rador por motivos políticos, encontrara a oposição
do episcopado grego, b e m como p o r q u e o Papa
M a r t i n h o IV (1281-1285) a p o i a r a os planos d e con-
quista do rei de Nápoles no Oriente.

A famosa lei sobre a eleição papal "Ubi peri-


culum", q u e foi aprovada n a 5.^ sessão d e 16 d e
julho, ainda hoje — ligeiramente modificada e am-
pliada ~ está em vigor. Ela adotou o modelo das
eleições da magistratura de muitas cidades italianas.
Os cardeais devem reunir-se, dez dias depois d a
morte do Papa, no mais rigoroso isolamento do
m u n d o exterior (conclave), a fim de eleger seu suces-
sor. Se a eleição n ã o se realizar depois de três dias de
reunião, receberão u m só p r a t o p a r a o almoço e para
o jantar, e, depois de cinco dias, só água e pão. Du-
r a n t e o conclave, cessam os benefícios q u e recebem
da Igreja universal. Apesar da compreensível resis-
tência dos cardeais, a nova lei eleitoral foi aprovada
pelo concílio.
Para os planos d a reforma eclesiástica, o Papa,
antes já do concílio, pediu pareceres. Pelo menos
três destes se conservam, entre êles o do superior
geral dos dominicanos, H u m b e r t o d e R o m a n s . Pelo
resultado final das negociações apenas podemos
saber em q u e m e d i d a influíram êles sobre a orien-
tação das clecisões. Dos 31 "capítulos" cuja maioria
foi aprovada n a 3.^ sessão (de 7 dc j u n h o ) , n a 5.^
e n a 6.^ sessões (dc 16 e 17 de j u l h o ) , alguns se
referem às eleições episcopais e às outras eleições
eclesiásticas. A atividade pastoral extensa das q u a t r o
ordens mendicantes ~ dominicanos, franciscanos,
eremitas augustinianos e carmelitas — originadas n o
decurso do século X I I I , chocou-se com múltiplos
e freqüentes protestos da p a r t e do clero secular: o
capítulo 23 confirmou os privilégios deste último,
sem, no entanto, com isso acabar com a tensão; com
ela terão de ocupar-se todos os futuros concílios até
o Tridentino.
As resoluções do concílio foram postas em vigor
por Gregório X, a 1.° de novembro de 1274, em-
bora com algumas modificações, aliás, não incisivas
— u m a prova convincente de q u e o Papa reivindicou
e de fato exerceu seus direitos de supremacia sobre
o concílio.
Através da sua delegação ecumênica, como u m a
assembléia de toda a cristandade, o segundo Con-
cilio de Lyon se pareceu com o 4.° Concilio de
L a t r ã o . Como êle, foi t a m b é m teatro de resoluções
políticas. A luta pela coroa real alemã entre o reí
Afonso de Castela c Rodolfo de Habsburgo foi deci-
dida segundo a natureza das coisas. O Papa aceitou
as respostas afirmativas de Rodolfo e exortou o seu
rival à renuncia; o reconhecimento formal de Ro-
dolfo seguiu-se ao encerramento do concilio a 26
de setembro de 1274. Assim tei'minou o calamitoso
Interregnum. O rei T i a g o I de Aragão, que compa-
recera ao concilio, a fim de se deixar coroar pelo
Papa, partiu aborrecido p o r q u e Gregorio exigira
déle submissão e tributo feudal. O rei da França
restituiu o C o n d a d o de Venaissin, que, embora ti-
vesse pertencido ao Papa, havia já m u i t o , fora até
então administrado por u m vassalo seu. U m a embai-
xada do G r a n d e K h a n dos Mongóis tentou estabe-
lecer aliança contra o Egito; esta n ã o se realizou,
mas u m m e m b r o da delegação se deixou batizar. As
tentativas de levar o cristianismo ao Extremo Ori-
ente, escudada na tolerância praticada pelos khans
mongóis, apesar de realizações admiráveis (p. ex.,
do franciscano João de Montccorvino), malograram,
em última análise, por causa das distâncias enormes.
Permanece digna de admiração a a m p l i t u d e dos
planos e das iniciativas q u e d e Gregorio X — beati-
ficado pela Igreja — se irradiou sobre o concilio.

A sombra de Bonifacio VIU

Duas décadas depois, o P a p a d o , sob o ponti-


ficado do altivo Bonifácio V I I I , chegou ao auge
do seu poder. N a bula " U n a m Sanctam" formulou
êle a d o u t r i n a n ã o nova, mas essencialmente depen-
dente das condições da época sobre as duas espadas
na m ã o do P a p a —• a espiritual e a temporal — u m a
m a n e j a d a pela Igreja, a o u t r a para a Igi'eja. Seu
conflito com o rei Filipe, o Belo, da França e seu
aprisionamento pelos enviados deste em Anagni a
3 de setembro de 1303, constituíram o prelúdio de
u m a nova época do P a p a d o — o "Exílio de Avi-
n h ã o " . A sombra de Bonífácio' cobriu também o
concílio, q u e seu segundo sucessor. Clemente V, a
12 de agosto de 1308, de Poitiers, onde se encontrara
com Filipe, o Belo, convocou para Vienne, cidade
situada j u n t o ao rio R ó d a n o . Na bula de con-
vocação o P a p a indicou os seguintes assiintos a serem
debatidos n o concilio: o p r o b l e m a da o r d e m dos
templários, questões de fé, a reforma da Igreja e a
reconquista da T e r r a Santa. N ã o foram todos os
bispos convocados, como era costume; fêz-se u m a
seleção, q u e — de maneira significativa para a situ-
ação q u e o P a p a d o dali por diante passou a ocupar
— foi c o m b i n a d a com o rei francês. U m a lista dos
convocados, q u e se chama Lista de Paris por ter
sido ali encontrada, contém 165 nomes, outra, defi-
nitiva, 231 nomes. Destes apareceram 20 cardeais,
4 patriarcas, 29 arcebispos, 79 bispos e 38 abades.
Mais numerosamente representados foram os fran-
ceses, mas a presença dos arcebispos de T a r r a g o n a ,
Braga e Compostela, de York, A r m a g h e Dublin,
de Colônia, Magdeburgo e Bremen, mostra q u e
"todo o episcopado estava representado n o concílio,
perfeita e validamente" (E. M u e l l e r ) . Muitos au-
sentes enviaram, representantes (procuradores). O
Concílio de Vienne foi ainda u m concílio de bispos,
mas já t a m b é m u m concílio de procuradores.

" M u i t a coisa é penosa p a r a mim aqui. O lugar


é extraordinariamente frio, o que, na m i n h a idade,
causam muitos aborrecimentos. U m a grande mul-
tidão de homens está a p e r t a d a na p e q u e n a cidade,
de maneira que se criam muitos incômodos. Mas
é preciso ter paciência" — foi assim que, com resig-
nação, a 9 de novembro de 1311, o bispo R a y m u n d o
de Valencia, legado do rei T i a g o II de Aragão,
escreveu d a cidade do concilio ao seu soberano real.
T r ê s semanas antes, a 16 de o u t u b r o , instalou Cle-
mente V, em Vienne o 15.*^ Concilio Geral.

O cerimonial litúrgico da sessã.o


de abertura em Vienne 1311)

As sessões dos Concílios Gerais são não somente


atos jurídicos e eclesiásticos, mas também festas litúr-
gicas, como a canonização e a coroação papal. Sua
forma litúrgica é mais do q u e revestimento exterior,
pertence à sua essência: q u a n d o êles definem, de
modo obrigatório questões de fé e de disciplina, rea-
lizam atos do culto divino.
A sessão de abertura em Vienne, a 16 de outu-
bro de 1311, apresenta a mesma construção litúrgica,
q u e iremos encontrar nos Concílios de Constança,
Basiléia e T r e n t o ; certas variações q u e ali verifi-
camos explicam-se pela presença pessoal do Papa
em Vienne.
Clemente V, vestido de hábitos pontificais,
entrou na catedral, com u m pequeno cortejo e
tomou assento no trono do presbitério. Os patri-
arcas latinos de Alexandria e de Antioquia sentaram-
se fora da ordem de sucessão no meio da igreja;
todos os outros prelados, vestidos de mantos de
coro, com mitras de linho, em três filas, de níveis
diversos, tomaram assento na nave principal, a o todo
114 portadores d e mitra. O P a p a deu a bênção, o
coro entoou uma antífona, depois todos, exortados
por u m diácono (Flectamus genua) prostraram-se, le-
vantaram-se, e o Papa, voltando-se para o concilio,
rczou a oração prescrita no "Ordmarium" dirigida
ao Espirito Santo: "Aqui nos encontramos. Senhor...
reunidos em T e n n o m e . Desce sobre nós e sé co-
nosco. .." Depois da oração, todos se ajoelharam no-
vamente e rezaram a L a d a i n h a de T o d o s os Santos, à
q u a l se seguiu u m a outra oração do Papa. O car-
deal-diácono, Napoleão Orsini, cantou o Evangelho
sobre a missão dos 70 discípulos (Luc. 10, 1-16) q u e
t i n h a sido c a n t a d o n o segundo Concilio d e L y o n
e que, 200 anos depois, n a abertura do Concilio de
T r e n t o , d e novo deveria ser cantado. E m seguida,
o P a p a entoou o h i n o : Veni, Creaior Spiritus, e
toda a assembléia a c o m p a n h o u o canto, comple-
tando as estrofes.

T u d o isso foi apenas a preparação. Só então


começou o P a p a seu discurso de abertura e apre-
sentou o p r o g r a m a d o Concilio q u e abrangeu três
pontos: a questão d a ordem dos templarios, a
reconcjuista da T e r r a Santa, a reforma dos costumes,
bem como as liberdades da Igreja. N o fim, anun-
ciou a criação de u m a comissão conciliar para exa-
m i n a r o p r o b l e m a dos templarios; n ã o marcou,
porém, como aliás era de costume a data da sessão
seguinte. A bênção p a p a l encerrou a cerimônia.
Assim se desenrolou a a b e r t u r a do Concilio de
Vienne. Nos concilios seguintes, que o Papa n ã o
presidiu pessoalmente, a cerimônia de abertura,
tal q u a l a q u e acima foi descrita, foi precedida por
u m a missa do Espírito Santo com o sermão de u m
p a r t i c i p a n t e do concilio. E m lugar do discurso de
abertura entrou u m a curta alocução do presidente
e a leitura d a resolução de abertura tomada pelo
"Placet" dos participantes com direito de voto e,
nas sessões seguintes, a leitura e a aprovação dos
decretos. Os votos (vota) eram registrados pelo
coletor de votos q u e ia dc assento a assento a fim
de receber t a m b é m as eventuais justificações e
restrições escritas de próprio p u n h o n u m a folha
(schedae). O encerramento é constituído regular-
mente pelo Te Deum.

O processo contra os Templários


e a reforma eclesiástica

A a b e r t u r a realizada com mais de u m ano de


atraso foi condicionada pelo processo . contra a
O r d e m de Cavalaria dos Templários, que devia ser
concluído n o concílio. Os templários, tendo a missão
origina] de defender os peregrinos da Palestina e
os Lugares Sagrados, após a perda da T e r r a Santa
tiveram sua tarefa terminada. Sua grande riqueza
foi a causa, e os abusos morais indubitavelmente
existentes o pretexto p a r a q u e o rei Filipe, o Belo,
da França, mandasse — estamos tentados a usar a
expressão mal-afamada: "por u m golpe r e p e n t i n o "
~ prender em seu país, a 13 de o u t u b r o de 1307,
todos os membros da Ordem, confÍscando-lhes todos
os seus bens. Foi isto u m a violação flagrante do di-
reito canónico, ao q u a l a O r d e m estava subordinada.
Mesmo depois de Clemente V ter tomado em suas
mãos o processo e n o m e a d o u m a comissão p a p a l de
investigação, o processo c o n t i n u o u sob forte pressão
do rei, a q u a l ainda mais se agravou por sua exi-
gência d e c o n d e n a r posteriormente (com vigor re-
troativo) seu inimigo mortal, Bonifácio V I U . Du-
r a n t e todo o processo, Fili^De usou esta exigência
como u m meio dc pressão política. Os juízes no-
meados pelo P a p a insistiram em q u e a sentença n ã o
fosse tomada n a base exclusiva das atas da inqui-
sição, extorquidas, em parte, pela tortura, mas que
se desse à O r d e m a o p o r t u n i d a d e de defender-se. O
resultado das longas negociações q u e ocuparam todo
o inverno de 1311-12, n ã o foi u m a sentença do con-
cílio, mas a supressão da O r d e m , por um ato admi-
nistrativo do Papa, q u e t o m o u esta decisão dois dias
depois da chegada de Filipe a Vienne, a 22 de março
de 1212. Os bens da Ordem, porém, n ã o foram,
como exigia o rei, entregues a u m a nova ordem de
cavalaria a ser fundada e, por esta, a êle próprio,
mas adjudicados aos cavaleiros da O r d e m de São
João. O processo contra Bonifácio V I U não se
efetuou.

T a m b é m as duas constituições sobre a obser-


vação da pobreza na ordem franciscana e sobre a
d o u t r i n a do franciscano João Pedro Olivi, q u e foram
anunciadas n a terceira sessão (sessão de encerra-
m e n t o ) , tiveram u m a longa pré-história. A orien-
tação dos "espirituais" q u e se referiam ao espírito
d o fundador da ordem, São Francisco de Assis, recri-
m i n a r a à maioria da O r d e m q u e ela, apoiada por
privilégios papais, a b a n d o n a r a o ideal original da
pobreza; esta, por seu lado, pôs em dúvida a boa
fé de u m dos líderes dos "espirituais", justamente
a de Olivi. A investigação feita por u m a comissão
de cardeais e de bispos do Concílio absolveu das
acusações a maioria da O r d e m ; foram-lhe impostas,
n o e n t a n t o , determinações sobre a realização prática
do ideal da pobreza ("usus pauper"). T r ê s teses
atribuídas a Olivi foram condenadas sem citação de
nome, entre elas t a m b é m a opinião de que a alma
h u m a n a n ã o é a "forma" do corpo.
Para fundar as negociações sobre a reforma ecle-
siástica, Clemente V exortou os bispos a resumir
em "memorándum^' os abusos reinantes era suas
dioceses. D o rico material assim recolhido, sur-
giram dois complexos de problemas: as queixas
(gravamina) sobre as usurpaçÕes e ofensas cometidas
pelo p o d e r civil na esfera eclesiástica, p . ex., a po-
sição jurídica especial do clero, sua isenção de
impostos, a administração dos bens eclesiásticos e
dos hospitais; e, em segundo lugar, o i m p e d i m e n t o
dos bispos pelas isenções, isto é, o fato de ter o
Papa libertado da jurisdição dos bispos capítulos
catedrais e colegiais, mosteiros particulares e ordens
inteiras. A primeira queixa resultou do fortale-
cimento d o p o d e r estatal e a segunda produziu-se e m
conseqüência d o centralismo desenvolvido n a Cúria
R o m a n a . "Dos 35 benefícios, q u e d u r a n t e os 20 anos
da m i n h a atividade episcopal se t o r n a r a m livres
na m i n h a catedral, só dois podia eu conferir" —
queixou-se o bispO' L c m a i r e de Angers. Estudadas as
reclamações dos bispos, verifica-se q u e nela se en-
contram todos os abusos q u e nos concilios dos
séculos XV e X V I virão novamente à tona. Disso
se conclui q u e os decretos de reforma, aprovados
na sessão de encerramento, n ã o conseguiram impor-
se de maneira d u r a d o u r a . Após u m a revisão, foram
pelo sucessor de Clemente V, João X X I I , a 25 de
o u t u b r o , enviados às universidades e postos e m
vigor; formam p a r t e integrante dos assim chamados
clementinos, de u m a d i t a m e n t o ao Corpus Juris
Canonici. Fixemos bem: o Papa considera-se autori-
zado a redigir definitivamente as resoluções tomadas
n o concilio, se fôr necessário, a revê-las e, enfim,
podas em vigor.
Mais u m a vez se tratou da cruzada. Demons-
trou-se, entretanto, q u e a idéia d a cruzada, isto é,
da luta contra os infiéis estava em franco declínio,
ao passo q u e a idéia missionária estava em ascensão.
Por iniciativa do filósofo R a i m u n d o LuUo, o assim
c h a m a d o "cânon d e línguas" d o Concilio de Vienne
SC dispôs q u e nas universidades se estabelecessem
cadeiras para as línguas grega, hebraica e árabe,
p o r q u e o conhecimento dessas línguas era u m a con-
dição da obra missionária entre os judeus e maome-
tanos. Só em poucas universidades foi executado
este cânon; faltaram as forças necessárias-
N ã o se discutiram em Vienne os ideais refor-
mistíus extensos, q u e o bispo D u r a n d o de Mcnde
desenvolveu em seu volmuoso " T r a t a d o sobre o Con-
cílio Geral": fortalecimento sistemático do poder
episcopal com a limitação simultânea da prática
administrativa papal, revigoramento da constituição
sinodal vigente n a Igreja antiga, elevação do nível
da formação do clero. Nelas ia -se anunciar u m a
nova época.
"O Concílio está n u m a encruzilhada, entre dois
m u n d o s " (E. M u e l l e r ) , Os Concílios Gerais Papais
d a Alta I d a d e Média e r a m criaturas d o P a p a d o d e
Reforma. T o d o s foram convocados e dirigidos pelos
Papas. F o r a m concílios d e bispos como os antigos
concílios, mas ampliados pela participação de
abades, representantes d e capítulos, mesmo dos
poderes civis, que, porém, n ã o t i n h a m direito de •
voto, n o sentido p l e n o da palavra, mas o direito
consultivo nos assuntos a êles relacionados. O
P a p a deu aos decretos conciliares sua forma defi-
nitiva, incorporando-os, em g r a n d e parte, em seu
código de leis. Êle aparece nos concílios, como o
chefe da Igreja e, ao mesmo tempo, d a cristandade,
como o ápice da p i r â m i d e q u e r e ú n e tanto a Igreja
como a comunidade dos povos cristãos. T u d o se
m u d o u , q u a n d o se exigiram direitos constitucionais
para os concílios, como a "representação" da cris-
t a n d a d e e dos membros da Igreja, e, q u a n d o n u m a
época de fraqueza do Papado, se procurou í m p o r
tais exigências.
PARTE III

Está O Concílio acima do P a p a ?

CONCILIO DE VIENNE foi o último dos Concilios


Gerais Papais da Alta I d a d e Média. Q u a n d o
êle estava r e u n i d o , pairavam no ar idéias cjue atri-
b u í r a m aos Concilios Gerais u m a função m u i t o
mais ampla do que aquela q u e até então êles cum-
priram. Estas os conceberam como a última e
suprema instância para restaurar a u n i d a d e da
Igreja, apesar do P a p a d o dividido, e p a r a realizar
a urgente e necessária reforma da Igreja "na cabeça
e nos membros" (reforrnatio in capite et in
memhris).

A origem da "teoria conciliar"

A d o u t r i n a de q u e o Concilio está acima do


Papa, chamada comumente "teoria conciliar" era
antes a t r i b u í d a a Marsilio de Pádova (f 1342), o
teórico revolucionário da soberania popular, bem
como ao seu partidário. G u i l h e r m e de Occam
(f 1M9). O raciocínio parecia simples. Como o
Estado surge da vontade do povo, construindo-se de
baixo para cima, assim t a m b é m a Igreja. Sua hie-
rarquia, o P a p a e os bispos, n ã o foi fundada p o r
Cristo, mas se formou históricamente. O depositario
do p o d e r eclesiástico, limitado à pregação da palavra
e à administração dos sacramentos, é a "assembléia
dos fiéis". O Concilio Geral "representa" a Igreja
e está acima de todos os membros d a H i e r a r q u i a ,
inclusive o P a p a .
Essa dedução da teoria conciliar de Marsílio de
Pádova e de G u i l h e r m e de Occam, q u e consciente-
mente simplificamos, a fim de torná-la clara, n ã o
corresponde, de acordo cora os nossos conheci-
mentos de hoje, à realidade histórica. Antes de t u d o ,
a idéia representativa é mais antiga do q u e Marsílio
e se desenvolveu completamente independente dêle.
E l a se radica n a concepção de q u e a Igreja é u m a
corporação constituída de u m a cabeça e de membros
q u e formara u m todo, exercem funções comuns, mas
cada u m tem para si seus próprios direitos c deveres.
O P a p a n ã o é, como sustentaram os curialistas rí-
gidos, o único detentor do poder na Igreja, como
diz o dominicano João de Paris (f 1306), figura-
chave dessa teoria eclesiástica, o poder não reside
apenas n a cabeça, mas estende-se a todos os mem-
bros. Pela eleição realizada pelos cardeais, os mem-
bros transferiram ao P a p a os seus direitos, mas
p o d e m retirar esses direitos q u a n d o o Papa cair
era heresia, em erro acerca d a fé, ou q u a n d o êle
abusa do seu poder em d e t r i m e n t o da Igreja.

Nesta teoria eclesiástica há u m a camada ainda


mais antiga q u e r e m o n t a aos canonistas do século
X I I . O Papa, opinou o canonista holandês Hu-
guccio ( f l 2 1 0 ) , mestre de Inocencio III, pessoal-
mente p o d e errar, a Igreja, p o r é m não. Huguccio
entendia sob a noção da Igreja, antes a Igreja ro-
mana, mas, também a Igreja universal, com a totali-
dade dos fiéis. Quem permanece, porém, firme,
q u a n d o u m Papa erra na fé ? A resposta n a t u r a l
seria: o concilio como representação da Igreja uni-
versal. N o entanto, não vão tão longe os canonistas,
p o r q u e êles em oposição à tese jurídica reconhecida
de q u e "o P a p a n ã o será j u l g a d o p o r n i n g u é m " ,
se negam a atribuir ao concilio poder judiciário
sobre o Papa; no m á x i m o , poderia êle verificar o
fato d o erro, e e n t ã o o Papa errado "Ípso Tacto" não
seria mais Papa. Para sair da dificuldade, inventa-se
a fórmula: E m resoluções sobre a fé, o P a p a está
ligado ao conselho dos bispos; q u a n d o êle o obtém
no concilio q u e representa a Igreja, então goza de
infalibilidade. Resulta dessa colaboração e n t r e o
Concilio e o Papa a tese: O concilio (com o P a p a ) é
maior do q u e o Papa (sozinho).
A estes caminhos, q u e do m u n d o de pensa-
m e n t o da Alta Idade Média conduzem à teoria con-
ciliar, acrescentam-se fatos históricos, em q u e se
manifesta a oposição contra a doutrina sobre a
plenitude do p o d e r d o Papa. Q u a n d o Bonifácio
V I I I procedeu contra os cardeais revoltosos d a Casa
de Colonna, êstcs apelaram para u m Concilio Geral.
Filipe o Belo desencadeou o golpe de Anagni a fim
de submeter o P a p a a u m concilio anti-papal por êle
planejado. A apelação de Sachsenhausen, feita pelo
imperador Luiz de Baviera (1324) contra a sen-
tença de J o ã o X X I I , baseou-se na opinião jurídica
de que contra a sentença de u m Papa que ultra-
passa a sua competência se poderia apelar para u m
Concilio Geral.

O grande cisma do Ocidente

Estas concepções sobre a "representação" da


Igreja pelo Concilio Geral só alcançaram u m a
significação e m i n e n t e m e n t e prática q u a n d o os car-
deais, descontentes com a volta de Gregorio X I de
A v i n h ã o a R o m a e cora a personalidade aristocrá-
tica de sen sucessor. U r b a n o VI, a 20 de seterabro
de 1378, em Fondi, levantaram u m anti-papa na
pessoa do cardeal R o b e r t o de Genebra e cora êle
voltaram p a r a Avinhão, colocando-se sob a defesa
do reino francês. Agora estavam dois Papas com
seus aderentes ("obediências") u m contra o outro.
O grande cisma do Ocidente distinguiu-se da maioria
dos anteriores pelo fato de n ã o ter sido envolvido no
jogo, pelo menos diretamente, n e n h u m p o d e r tem-
poral, como, por exemplo, nos tempos de Barbaroxa.
A maioria dos eleitores legítimos declarou a eleição
de U r b a n o VI forçada (pelo povo r o m a n o ) e con-
seqüentemente inválida e a nova eleição como a
unicamente válida. Q u e m era então o Papa legí-
timo: U r b a n o VI ou Clemente V I I ? Q u e m devia
decidir a questão d a legitimidade ?

Dois teólogos alemães, q u e ensinavam na Uni-


versidade de Paris, deram a resposta: o Concilio
Geral. H e n r i q u e de Langenstein e C o n r a d o de
Gelnhausen desenvolveram já em 1379 a teoria de
q u e u m Concilio Geral q u e representasse a Igreja
universal, n o estado de necessidade fosse o juiz tanto
sobre os cardeais, como sobre o P a p a eleito p o r
êles. A Universidade d e Paris adotou a solução
conciliar n u m memorial redigido em seu n o m e por
Nicolau de Clcmanges p a r a o rei Carlos V, da
França, caso n ã o fosse exeqüível a sua demissão
espontânea ou a sua submissão a u m a arbitragem.
Duas décadas deviam passar antes que se devesse
enveredar pelos caminhos conciliares — indicio de
q u e a idéia fundamental da teoria conciliar estava
ainda m u i t o longe de possuir força e gozar de reco-
nhecimento universal p a r a se impor, ao contrário
do q u e se podia presumir com base na sua pré-
história. Q u a n d o já t i n h a m malogrado todas as ten-
tativas de chegar a u m acordo entre os Papas (em
R o m a desde 1389 o n a p o l i t a n o Bonifácio I X e e m
Avinhão, desde 1394 o espanhol Benedito X I I I ) ,
q u a n d o também nem o fato de desistir a França de
sustentar o seu Papa, o de Avinhão, fêz q u e este,
convicto dc seu direito, perdesse o ânimo, concor-
d a r a m 13 cardeais q u e a b a n d o n a r a m a sua obedi-
ência e a d o Papa r o m a n o Gregorio X I I (1406-1415),
em L i v o m o , no sentido de convocar, para 25 d e
março de 1409, em Pisa u m Concilio Geral, a fim
de pôr fim ao perigoso cisma.

Concilio em Pisa (1409): três Papas


ao invés de dois

A base jurídica do Concilio de Pisa era suma-


mente insegura, visto q u e pelo menos a posição dos
cardeais de uma "obediência" a serem convidados
não podia ser legal. Dois dias antes da abertura do
concilio, a 23 de março de 1409, o rei alemão R u p -
precht de Pfalz lançou em Heidelberg u m protesto
contra o Concilio d e Pisa. Êle n ã o podia i m p e d i r
q u e os convocadores de início tivessem pleno êxito.
Compareceram quase 100 arcebispos e bispos e
igual n ú m e r o de abades e, além deles, procuradores
de mais dc 100 bispos, de 200 abades, de 100 capí-
tulos e de 13 universidades; u m terço dos parti-
cipantes constituía-se de franceses. Gregorio X I I
e Benedito X I I I foram intimados a comparecerem
ao Concilio como herejes obstinados, e, por n ã o
terem comparecido, foram tratados como desobedi-
entes contumazes e depostos logo após, a 5 de
j u n h o de 1409, depois que na 8.^ e 9.^ sessões o Con-
cilio se tinha constituído em "Concilio Ecumênico".
Autorizados por este, os cardeais presentes, a 26 de
j u n h o , elegeram P a p a o d o u t o franciscano, Pedro
í'ilarghi, de Cândia, q u e t o m o u o n o m e de Alexan-
dre V; por detrás já se tornava visível u m a o u t r a
figura, Baltasar Cossa, o legado enérgico e inescru-
puloso d e Bolonha, q u e u m a n o depois, como J o ã o
X X I I l , se seguiu ao grego. E m vez do "dualismo
infame" — conforme se p o d i a ler n u m tratado con-
t e m p o r â n e o — surgiu u m a " t r i n d a d e maldita". C o m
efeito, tanto Gregorio X H , como Benedito X I I I ,
mantiveram, mesmo depois da eleição de Pisa, suas
pretensões d e serem os legítimos detentores d a digni-
dade p a p a l , embora suas "obediências" t e n h a m dimi-
i H Ú d o fortemente. Ambos opuseram ao Concilio de
Pisa sínodos dc p e q u e n o comparecimento, respecti-
vamente em Cividale (Friaul) c em Perpignan. De-
claram-se ainda partidários de Gregorio, alem do
rei R u p p r e c h t , apenas Nápoles Veneza e o príncipe
Malatesta d e R i m i n i ; permaneceram na "obedi-
ência" d e Benedito a Espanha e a Escócia. O P a p a
conciliar teve a maior adesão ~ sua legitimidade foÍ
e permaneceu duvidosa. Portanto, a primeira ten-
tativa d e restabelecer a u n i d a d e da Igreja, pela via
conciliar, terminou com u m malogro.

O rei Sigismundo e João XXIII convocam


o Concilio de Constança (1414-1418)

O fato de ter a via conciliar, apesar d e tudo,


chegado a êxito, foi antes de mais nada mérito
do rei alemão, Sigismundo (1410-1437). O sobe-
r a n o espiritualmente inconstante mas vivo, demons-
trou n a questão conciliar habilidade admirável e
grande perseverança. Q u e b r a n d o a linha política
do seu antecessor, uniu-sc a João X X I I I e extorquiu-
lhe a anuência — d a d a n a t u r a l m e n t e com repug-
nância — a q u e se convocasse u m grande concílio de
união na cidade imperial de Constança, à margem
do Lago de Boden. Anunciou sua convocação, a 30
de o u t u b r o dc 1413, n u m a proclamação dirigida a
toda a cristandade. Posteriormente, a 9 de dezembro
de 1413, J o ã o X X I I I , também por sua vez, pro-
clamou a convocação. Sigismundo assegurou de
antemão a delegação ecumênica, através de nego-
ciações com os dois outros Papas e com quase todos
os Estados europeus; foi também convidado o
imperador Manuel de Constantinopla.

J o ã o X X I I I considerou o Concílio de Cons-


tança como a continuação do Concílio de Pisa. Êle
esperava obter a sua confirmação n o cargo. Quase
toda a Itália a b a n d o n o u Gregório X I I e cabe notar
q u e os italianos formaram a maioria em Constança;
p o r t a n t o , as suas perspectivas não foram más. Mas
já alguns meses depois da abertura (a 5 de no-
vembro de 1414), m u d o u o clima. A fim de prevenir
q u e se formasse u m a maioria italiana, os ingleses,
os alemães e os franceses conseguiram q u e a votação
não fosse feita por presença, mas sim por nações, de
maneira q u e cada u m a das q u a t r o "nações conci-
liares", i n d e p e n d e n t e m e n t e do n ú m e r o de seus
membros, possuísse u m voto; o q u i n t o voto cabia
ao colégio cardinalício.
A votação segundo as nações só foi seguida
exclusivamente pelo Concílio de Constança. Ela
não é, como alguns estariam inclinados a presumir,
u m a primeira manifestação vitoriosa do princípio
de nacionalidades. As nações conciliares são uniões
politicamente condicionadas, corpos consultivos e
deliberativos que p o d e m reunir diversas nacionali-
dades e nísto são elas semelhantes às "nações" das
universidades medievais. A nação concihar alemã
abrangia, além dos alemães, t a m b é m os escandinavos,
os poloneses, os checos, os húngaros, os croatas, os
dalmácios, os ingleses, os escoceses e os irlandeses.
C o m o j á em Pisa, t a m b é m e m Constança os bispos
e os abades pessoalmente presentes sc acharam em
minoria diante dos procuradores dos que não com-
pareceram e das corporações eclesiásticas (mosteiros,
capítulos e universidades), bem como diante dos
doutores em teologia e cm direito canónico.

A fuga e a deposição do papa conciliar

Logo depois do N a t a l , surgiram no Concílio


as primeiras acusações contra o Papa conciliar, cuja
vida, de fato, n ã o era irrepreensível. Êle reconheceu
q u e suas esperanças n a sua confirmação pelo concílio
se diluíram, e declarou-se, em t o d o o caso sob deter-
minadas condições, disposto à resignação. Todavia,
em segredo já tecia planos p a r a fugir, com o intuito
de torpedear o concílio. J á antes, tinha êle con-
cluído u m tratado de defesa com o príncipe Fre-
derico do T i r o l . P o n d o nêle sua confiança, fugiu
para Schaffhausen, a 20 de m a r ç o de 141.5, disfar-
çado e "montado n u m j u m e n t i n h o " . João fora for-
m a l m e n t e o convocador do concílio. Deveria este
agora desintegrar-se ?
Parecia que ia ser assim. Muitos dos seus se-
quazes, também oito cardeais, imitaram seu exem-
plo. Os comerciantes, locais e estrangeiros, fizeram
as malas de medo de saque, o burgomestre convocou
às armas os cidadãos. Sigismundo sozinho salvou
a situação; com o conde p a l a t i n o Luís atravessou
êle a cidade a cavalo e " m a n d o u publicar coni trom-
betas, insistentemente, b r a d a n d o êle próprio de
viva voz a todos os cambistas, italianos ou de o u t r a
nacionalidade, a todos os merceeiros e comerciantes,
a todos os cardeais e senhores q u e ninguém se fosse
embora" (Ulrich de Richental). Gerson, chanceler
da Universidade de Paris, em i m p o r t a n t e discurso,
a 23 de março, tirou da teoria conciliar as seguintes
conclusões para a situação: T o d o m e m b r o da
Igreja, inclusive o Papa, deve obediência ao Concílio
Geral. O concílio embora não possa revogar a ple-
n i t u d e do p o d e r papal, pode limitá-la q u a n d o o b e m
da Igreja o exigir. A ligação de Cristo com sua
Igreja é inseparável, mas n ã o a do P a p a com ela.
Essas foram as idéias fundamentais, q u e o
concílio, a 6 de abril, redigiu no famoso decreto
"Sacrosancta" (segundo a palavra inicial): O Con-
cílio Ecumênico r e u n i d o em Constança é a repre-
sentação da Igreja Universal; tem seu poder direta-
mente de Cristo; todos, inclusive o Papa, devem-
lhe obediência em assuntos de fé, da u n i d a d e da
Igreja e da reforma na cabeça e nos membros.
É preciso ter sempre em mente q u e este decreto
surgiu da situação criada em Constança depois d a
fuga do P a p a e foi considerado como u m a m e d i d a
de necesiclade. Seu conteúdo correspondeu à
"teoria conciliar", mas já n a q u e l a altura se chocou
com a contradição de u m a parte dos cardeais.
Pedro de Ailly,.-o cardeal francês mais influente,
ausentou-se da sessão e seu colega e patrício Fi-
lástrio se recusou a fazer a leitura do decreto.
Apesar disso, o decreto foi aprovado pelo con-
cílio. Assim a crise mais grave foi superada. J o ã o
X X I I I foi, a 17 d e maio, levado prisioneiro a Ra-
dolfzell e, a 29 de maio, deposto.
A resignação de Gregorio XII e a
deposição de Benedito XIII

Os dois outros papas ainda exerceram seu


ofício. Comportou-se da maneira mais correta Gre-
gorio X I I , a b a n d o n a d o quase por todos. Dêle féz
Dietrich de N i e m objeto de u m trocadilho vulgar,
alterando o seu nome de família Correr, latinizado
Corrarius, para Erroríus ("Errado"). Mantendo
conseqüentemente até o fim sua pretensão a P a p a
legítimo, m a n d o u êle, por seu protetor, Malatesta
de R i m i n i , apresentar p e r a n t e o concilio na 14.^
sessão, de 4 de julho de 1415, o documento de sua
resignação, após haver legitimado o concilio por
u m a nova bula de convocação. Retirou-se para o
colégio cardinalício e m o r r e u dois anos depois,
como cardeal-bispo de P o r t o .
Mais difícil trato exigiu o caso do P a p a avi-
nhonense Benedito X I I I . Após ter a França desis-
tido de apoiar suas reivindicações, êle transferiu-se
para a esfera de influência do rei de Aragão. Si-
gismundo, a c o m p a n h a d o p o r u m a embaixada do
concilio, visitou-o em N a r b o n a em agosto d e 1415.
Benedito, embora não se t e n h a recusado, em prin-
cípio, à resignação, todavia prometeu fazê-la sob a
condição d e q u e o Concilio de Pisa fosse anulado
e de q u e o Concilio d e Constança fosse trans-
ferido para outro lugar, mais conveniente para êle.
A satisfação da primeira exigência foi-lhe prometida,
a da segunda recusada. Q u a n d o Sigismundo o
exortou a renunciar, êle deu (segundo conta seu
p a r t i d á r i o , M a r t i n h o de A l p a r t i l ) a seguinte res-
posta: "Vós dizeis q u e n e m eu nem m e u adver-
sário (Gregorio X I I ) somos Papas. Então n ã o
existe n e n h u m cardeal senão eu (que sou o único
cardeal ainda vivo criado pelo ú l t i m o Papa antes do
cisma) e sou o único a ter o direito de eleger o
Papa. B e n t r o de u m dia se o quiserdcs, elegê-lo-ei,
e, vos prometo q u e eu n ã o vou eleger-me a m i m
mesmo". T a m b é m esta exigência, exprimindo u m a
atitude jurídica vigorosa, mas rígida, não lhe foi
reconhecida. Q u a n d o Benedito compreendeu q u e
n ã o lhe restava o u t r a alternativa senão a da re-
núncia, fugiu com seus poucos partidários de Per-
pignan e pôs-se a salvo n a inexpugnável fortaleza
montanhosa de Peñiscola, onde declarou: "Aqui
é a arca de Noé, a verdadeira Igreja". Seus segui-
dores a b a n d o n a r a m - n o no T r a t a d o de N a r b o n e a 13
de dezembro de 1415, como também os reis de
Aragão, Castela, Navarra e Portugal, que até e n t ã o
se t i n h a m declarado seus partidários. A Espanha
enviou delegados ao Concilio de Constança e formou
assim a q u i n t a nação conciliar. Contra Benedito
X I I I instaurou-se u m processo, em q u e -- diante
da sua personalidade irrepreensível — o único p o n t o
de acusação foí a sua obstinada recusa a renunciar.
A 2G de j u l h o de 1417 seguiu-se a sua deposição.

A eleição de Martinho V

Com isso abriu-se o caminho para a eleição


de u m novo Papa. Os cardeais presentes em Cons-
tança declararam-se dispostos a concordar em q u e
os representantes das nações participassem da elei-
ção. Mas o concílio foi ameaçado de dividir-se a res-
peito de u m a grande questão: Deveria ser decretada
a reforma eclesiástica antes da nova eleição e sua
observância imposta ao eleito — como exigiam a
nação alemã e a inglesa e como recomendava Sigis-
m u n d o — ou deveria ser antes eliminado o cisma e
depois iniciada a obra da reforma ? As opiniões cho-
caram-se tão violentamente entre si q u e o concilio
chegou quase ao p o n t o de dissolver-se. Enfim a
defecção dos ingleses obrigou os alemães a ceder. O
bispo de Winchester, p r i m o do rei da Inglaterra,
conseguiu estabelecer u m compromisso: a eleição
p a p a l realiza-se sem demora, mas antes serão promul-
gados os decretos de reforma já elaborados e o fu-
turo Papa, comprometido, p o r decreto conciliar, cora
a continuação da obra da reforma.

O mais i m p o r t a n t e entre os cinco decretos de re-


forma, q u e foram aprovados n a 39.^ sessão de 9 de
o u t u b r o d e 1417, foi o decreto Frequens (segundo a
sua palavra inicial), pelo q u a l os Concilios .Gerais
deviam transformar-se n u m a instituição p e r m a n e n t e
d a Igreja e dessa m a n e i r a , n u m a espécie d e u m a
instância de controle sobre o Papado, O p r ó x i m o
concilio deveria realizar-se dentro de 5 anos, e o se-
g u i n t e depois de 7 anos após o encerramento desse;
em seguida deveria ser estabelecida u m a freqüência
periódica de dez anos. Se este decreto tivesse sido
executado e os Concilios Gerais tivessem sido de-
senvolvidos para u m a instituição permanente, então
t a m b é m o pensamento fundamental revolucionário
do decreto Sao'osancta teria, inevitavelmente, che-
gado a ser pôsío em prática.
A 8 de n o v e m b r o de 1417, os 56 eleitores do
P a p a — o colégio cardinalício fortalecido p o r 6
delegados de cada nação conciliar — reuniram-se
em conclave na Casa do Comércio de Constança.
Desvaneceu-se a esperança dos franceses de obter a
tiara p a r a seu patrício, Ailly. A 11 de novembro
ainda faltou ao cardeal O d d o Colonna (da antiga
e poderosa família d a nobreza r o m a n a ) u m voto
para alcançar a maioria de dois terços. Então passou .
u m a procissão, e u m coro de crianças a q u a t r o vozes
entoou o Veni Creator. Soou como u m coro de
anjos. Comovidos até às lágrimas, mais dois car-
deais d e r a m seu voto a Colonna. Êle se chamou,
segundo o santo d o dia, M a r t i n h o V. "Antes q u e
a cruz (da procissão) chegasse de volta à catedral
"relata Ulrich de Richental", veio do conclave o
b r a d o e a exclamação: T e m o s u m Papa, O t t o d e
C o l o n n a ! E todos correram para a Casa do Co-
mércio, umas oitenta mil pessoas — mulheres e
homens". O j ú b i l o era justificado: a Igreja tinha
de novo u m P a p a indubitavelmente legítimo.

Reforma eclesiástica e as concordatas

Depois da eleição bem sucedida, logo se tornou


visível a força d a idéia papal. M a r t i n h o V foi
desde o início a cabeça indiscutível do concilio. Foi
bastante p r u d e n t e p a r a seguir o conselho dos q u a t r o
influentes bispos do concilio, do arcebispo de Milão,
do patriarca de Antioquia, do arcebispo de Riga e
d o d e Salesbury, d e cujo anagrama provém o "slo-
gan"; Mars reina no concilio.
Assim n ã o ia mal a causa da liberdade do
concilio. Mas compro varam-se os prognósticos das
nações alemã e inglesa, segundo os quais a reforma
eclesiástica depois da eleição dificilmente alcançaria
êxito. A principal culpa disso n ã o cabia ao Papa,
mas à desunião dos reformadores. Êles estavam
d e acordo apenas em q u e a p l e n i t u d e d o p o d e r
p a p a l devia ser cortada segundo as possibilidades;
estavam, porém, em desacordo a respeito das me-
didas que seriam necessárias. Os desejos das nações
divergiam bastante, estabelecidos nas "advertências"
e o professor d e Viena, P e d r o d e Pulka, observou
corretainente: "No m o m e n t o , tenho medo de q u e
n ã o se dará n e n h u m a reforma séria". Embora
t e n h a m sido votados n a 43.^ sessão d e 21 de março de
1418 sete decretos d e reforma e m q u e p.e. o n ú m e r o
dos cardeais era reduzido a 24 e se fazia t a m b é m
a tentativa de restabelecer a extensão, vigente antes
do cisma, das intervenções papais, que no terreno d a
distribuição dc cargos e de benefícios limitou consi-
deravelmente a competência dos bispos, mesmo
assim os assuntos mais importantes n ã o foram regu-
lamentados, de m o d o geral e conciliarmente, mas
p o r acordos entre o P a p a e as nações conciliares.
Estas Concordatas de Constança n ã o foram como as
concordatas modernas, tratados entre a Igreja e o
Estado, mas (exceto a inglesa, válida para sempre)
convênios entre o P a p a e as nações conciliares, esta-
belecidos por u m prazo d e 5 anos, investidos da
forma de constituições papais. Seus temas eram
os seguintes: o reconhecimento das eleições de
bispos e de abades pelo Papa, a limitação das
reservaçÕes de benefícios, de indulgências; o paga-
m e n t o das anuidades (tributo pago na Cúria por
ocasião de concessão de cargos). Mas ninguém se
enganava acerca de q u e só t i n h a significação formal
a declaração feita simultaneamente com a aceitação
dos sete decretos de reforma e das concordatas, se-
g u n d o a q u a l já teria sido satisfeita a resolução de
reforma concebida antes d a eleição do Papa. Já o
futuro próximo demonstrava, q u e a aspiração a
u m a verdadeira renovação da Igreja não tinha sido
atendida.

Sentença sobre João Hus

J u s t a m e n t e esta renovação da Igreja esteve


presente no espírito do professor de Praga, João
Hus, cuja d o u t r i n a e pessoa ocupou o concilio no
intervalo d e negociações q u e se seguiram à deposição
d e J o ã o X X I I I . T e n d o como seu exemplo o inglês
J o ã o Wiclef, cujas 45 teses foram condenadas a 4
de maio de 1415, também H u s se afastou da Igreja
da época, tão cheia de imperfeições para refugiar-se
na Igreja espiritual dos predestinados por Deus, em
q u e n ã o o cargo do sacerdócio e a administração
objetiva dos sacramentos garantem a participação n a
redenção, mas somente a posse de carismas. Pessoal-
mente irrepreensível, pela crítica sem reserva ao
clero, fêz ele voltar-se contra sí seu protetor, o arce-
bispo de Praga; em compensação conquistou segui-
dores entre a nobreza e no povo checo. O concilio
devia proferir a última palavra sobre êle. P a r a a
viagem a Constança o rei Sigismundo lavrou-lhe
u m salvo-conduto, foi levantada a excomunhão lan-
çada sobre êle, mas não a suspensão, isto é, a proi-
J3Íção de celebrar a missa e de pregar. Quando
H u s em Constança violou esta interdição, foi feito
'prisioneiro. Diante dos juizes de instrução criminal,
instituídos pelo concilio, negou-se êle a retratar-se
de sua d o u t r i n a : "Eu não ensino erro, n e n h u m
checo é hereje". Foi condenado, a 6 dc julho de
1416, como hereje obstinado e, conforme o direito
em vigor, entregue ao "braço secular" para execução.
U m ano depois, acompanhou-o à fogueira seu amigo
J e r ó n i m o de Praga, q u e antes se retratara. A atitude
firme, com q u e êle enfrentara a morte, impeliu o hu-
manista Poggio, que assistiu a execução, a proferir a
sentença: "Vir praeter fidcm egregius" (fé à parte,
u m h o m e m egrégio).

Na mesma sessão em que H u s foi condenado, o


concilio rejeitou a opinião do franciscano J e a n
Petjt, segundo a q u a l seria permitido assassinar u m
"tirano" com astucia sem respeito ao j u r a m e n t o de
fidelidade a êle prestado. Essa condenação do tira-
nicidio, embora originada de determinados pressu-
postos e de condições históricas específicas, tem vigo-
r a d o até o presente.
"O Concilio de Constança, assim termina seu
diário o cardeal Filástrio — foi mais difícil de con-
vocar do q u e todos outros concilios anteriores,
em seu decurso foi m u i t o singular e maravilhoso,
mas t a m b é m mais perigoso do q u e cies; enfim ultra-
passou-os n o q u e diz respeito à duração". Tem
razão Filástrio: o Concilio de Constança d u r o u mais
d o q u e todos os outros concilios anteriores, que, em
sua m a i o r parte, c u m p r i r a m sua missão em poucas
semanas ou meses. A dêle, entretanto, era m u i t o
mais difícil d o q u e q u a l q u e r outra, q u e até agora já
se impôs a u m concilio e é isso q u e explica suas con-
cessões arriscadas à teoria conciliar. Foi êle a assem-
bléia mais m o v i m e n t a d a e polimorfa q u e já recebeu
o n o m e de concilio. O trovador Osvaldo de Wol-
kenstein fixou n u m verso pitoresco a carestía rei-
n a n t e e m Constança: " Q u a n d o penso n o lago d e
Boden, até a bolsa me doe". Mais de 300 cardeais,
bispos e abades, a Corte de Sigismundo e de muitos
príncipes com seu cortejo, ao todo a p r o x i m a d a m e n t e
de 15.000 a 20.000 estrangeiros n u m a cidade de
menos de 10.000 habitantes deviam inevitavelmente
causar alta de preços. Nas ruas de Constança ou-
viam-se todas as línguas do m i m d o então conhecido.
O concilio foi sede de u m a transbordante vida espi-
ritual, o h u m a n i s m o italiano começou sua marcha
de conquista c aproveitou a o p o r t u n i d a d e e, nas
bibliotecas dos mosteiros da região do lago de
Boden, investigava à p r o c u r a dos clássicos; Poggio
encontrou "Flauto no convento das freiras". Mas o
mais i m p o r t a n t e foi a restauração da imidade ecle-
siástica. Pesava sobre ela n a t u r a l m e n t e u m a grave
hipoteca. A teoría conciliar nascida da críse eclesi-
ástica continuou a florescer, embora fosse incom-
patível com a estrutura hierárquica da Igreja: ela
é democrática, q u a n d o se toma por p o n t o d e p a r t i d a
a igualdade dos homens diante de Deus, mas n ã o
é Democracia.
M a r t i n h o V n ã o confirmou formalmente os
decretos d e Constança, simplesmente p o r q u e a maio-
ria do concilio, que pensava conciliarmente, n ã o
o teria aceito; sua declaração feita na 45.^ sessão —
êle aprovou todas as resoluções conciliarmente to-
madas — só se refere à questão do dominicano J o ã o
Falkenberg. Apesar disso, o P a p a condenou indire-
tamente a teoria conciliar, e n q u a n t o proibiu expres-
samente a apelação do P a p a ao concilio. T o d a v i a
ateve-se êle ao Decreto Frequens. Depois de decor-
rido o prazo de cinco anos instalou êle u m novo con-
cilio em P á d u a — lugar combinado j á em Constança
— mas transferiu-o p a r a Siena e enfim o dissolveu,
p o r q u e a representação era m u i t o fraca. Sete anos
depois, convocou, e m b o r a c o n t r a r i a d o c só sob
a pressão de ameaças indiretas u m concilio para
Basiléia.

Eugênio IV e o Concilio cie Basiléia

. O conflito enft'e o poder primacial paliai e o


conciliarismo foi i n e v i t á v e l ^ N o entanto, c duvidoso
c|ue esse conflito teria tomado u m curso tão dra-
mático e tão perigoso para o Papado, se o sucessor
de M a r t i n h o , Eugênio IV (1431-1447), sobrinho
de Gregorio X I I , a despeito de toda a sua piedade
e beneficiência, não tivesse sido tão indeciso e de-
p e n d e n t e do seu ambiente. O episcopado estava

9S
1 cansado dos concilios. Seu cansaço ainda não tinlia
1 sido superado.;_'0 Concilio de Basiléia, o 17.° Con-
' cilio Geral, foi instalado, a 23 de j u l h o de 1431,
pelos representantes do legado p a p a l Cesarini, sera
i q u e u m só bispo estivesse presente.J Até o o u t o n o
I a representação permaneceu tão fraca que o P a p a se
sentiu autorizado a dissolvc-lo, a 18 de dezembro.
[ O q u e se temia já cm Siena aconteceu então: o
,! concilio re recusou a obedecer. Q u a n d o a bula
! de dissolução deveria ser p r o m u l g a d a os partici-
pantes d o concilio a b a n d o n a r a m a assembléia e
Cesarini demitiu-se da presidência. Renovou-se o
decreto Sacrossancta dc Constança e exigiu-se do
Papa q u e a dissolução fosse anulada, e, até cie foi
convidado a prestar contas ao concibo. O pensador
mais profundo da época, Nicolau de Cusa, j u n t o ao
, rio Mosel, escreveu n a q u e l e tempo em defesa do
concilio sua Concordaniía Caiholica. O concilio
d i s p u n h a de defensores poderosos: o rei Sigismundo
; e o príncipe Visconti de Milão.

O conflito d u r o u dois anos: só então é que


Eugênio cedeu. U m a p a r t e dos cardeais desaprovou,
desde o inicio, a dissolução precipitada do Concilio.
Santa Francesca R o m a n a aconselhou sua anulação.
De mês em mês ia-se d i m i n u i n d o o n ú m e r o de par-
tidários d o Papa, o "Condottiere" Fortebraccio
i r r o m p e u nos Estados Pontifícios. Apesar disso, o
concilio pôde registrar um grande êxito: os hus-
sitas, q u e por suas pilhagens se tornaram os fla-
gelos dos países vizinhos e vencedores de muitos
exércitos cruzados enviados contra êles, a 30 de .
n o v e m b r o de 1433, aceitaram os Compáctala de
Praga q u e lhes outorgaram, sob determinadas con-
dições, o cálice leigo e q u e continham outras con-
cessões. Assim Eugênio IV, a 15 de dezembro de •
1433, retirou o decreto de dissolução e declarou q u e
o Concílio d e Basiléia devia ser considerado legí-
timo. A vitória dos de Basiléia parecia completa.
N o intervalo, o Concilio começou a transformar
em praxe a teoría conciliar e a se estabelecer como a
instancia suprema jurídica e administrativa d a
Igreja. Instalou j u n t o a si oficios e u m aparato de
funcionarios, decidiu processos, distribuiu benefícios
e indulgências. O Concílio dc Basiléia, n u m grau
ainda maior do q u e o de Constança, foi u m a assem-
bléia d e procuradores e d e doutores. P o r ocasião d e
u m a votação, a 5 de dezembro de 1436, estavam
três cardeais, 19 bispos e 29 abades diante de 303
outros; p o r t a n t o , os bispos constituíram menos
de u m a décima parte dos participantes. Quem
eslava incorporado ao Concílio tinha direito de voto
e podia ser eleito para u m a das q u a t r o comissões
— de questões gerais, fé, reforma e paz. U m a co-
missão principal dirigiu o plenário. N ã o só em seu
regulamento o concílio parecia u m p a r l a m e n t o mo-
derno, mas também na tendência de atrair sob sua
jurisdição cada vez mais assuntos e, com isso, a
direção real da Igreja.

Estimulado por numerosos pareceres de re-


forma, entre os quais o sumamente original do bispo
de Luebeck, João Schele, o Concílio p r o m u l g o u ,
nos anos q u e m e d i a r a m e n t r e 1433 e 1436, decretos
notáveis relativos à reforma eclesiástica, que, se
executados, poderiam ter contribuído essencialmente
para a renovação d a Igreja: sobre organização re-
gular de sínodos provinciais e diocesanos, sobre a
liturgia eclesiástica, contra o concubinato dos clé-
rigos, contra apelações não fundadas dirigidas a
R o m a . T o d a v i a , outros decretos obedecem univoca-
mente à tendência de reduzir o poder p a p a l e de
se apoderar do Executivo, como, por exemplo, a
supressão completa do p a g a m e n t o de a n u i d a d e e de
taxas à Cúria R o m a n a , à qual, dessa maneira, sub-
traia sem compensação g r a n d e parte dos seus rendi-
mentos. O Concilio deu aos coletores papais ordens
de prestar contas em Basiléia. Foi promulgada tam-
bém u m a nova ordem de eleição papal.
Eugênio IV, q u e residia em Florença e q u e
por m u i t o pouco escapou de uraa revolução explo-
dida em Roraa, protestou em agosto de 1435, por
intermédio de Traversari, superior geral dos camal-
dulenses, e, na primavera de 1436, por intermédio
dos Cardeais Albergati e Cervantes — mas sem êxito
algum. Chegou-se, finalmente, à r u p t u r a entre o
P a p a e o Concílio no verão de 1437, ao se tratar da
questão sobre o lugar o n d e deveria reunir-se o con-
cílio de u n i ã o com os gregos.

Ruptura definitiva entre o Papa


e o Concilio

O imperador J o ã o V I I I Paleólogo, premido


pelos otomanos de Leste e de Oeste, procurou adesão
e ajuda n o Ocidente, reconhecendo com razão q u e
a condição disso seria o restabelecimento da u n i ã o
eclesiástica com Roma. Sobre esta questão êle tra-
tou t a n t o com o P a p a como com o Concílio. O
Concílio propôs como lugar para o encontro Ba-
siléia ou Avinhão, Eugênio IV recomendou U d i n e
ou Florença; n ã o foi u m espetáculo m u i t o edifi-
cante q u e tenham ido a Constantinopla duas embai-
xadas rivais do Ocidente. Q u a n d o , após u m longo
vai-vém, a maioria do Concílio, a 7 de m a i o d e
1437, escolheu as cidades mencionadas em primeiro
lugar e u m a minoria o p t o u pelas cidades sugeridas
pelo Papa, este colocou-se ao lado da minoria. Os
gregos aceitaram a sua proposta, mas concordaram
com êlc a respeito de Ferrara, cuja situação era
vantajosa para êles. O Papa transferiu p a r a lá o
Concílio de Basiléia a 18 de setembro de 1437. A
minoria, e entre ela o Cardeal Cesarini e Nicolau
de Cusa, seguiu o decreto dc translação; a maioria
permaneceu em Basiléia.
Ali os conciliaristas radicais consegxiiram pre-
d o m i n a r e puseram de lado todos os respeitos: de-
clararam a supremacia do Concílio sobre o P a p a
como u m dogma d a fé e, a 25 d e j u n h o de 1439,
depuseram como hereje Eugênio IV, que, natu-
ralmente, se opusera ao dogma. A 5 dc n o v e m b r o
d o mesmo ano, elegeram p a r a sucedê-lo o p r í n c i p e
A m a d e u de Savóia, pessoalmente irrepreensível, q u e
tomou o n o m e de Felix V e que, p o r sua fortuna, se
recomendava ao Concílio q u e estava em p e n ú r i a
financeira. O mesmo conciliarismo q u e em Cons-
tança ajudou a eliminar o grande cisma, em Ba-
siléia levou a u m novo, a o ú l t i m o cisma d a história
dos Papas. Foi esse o seu maior erro.

Concílio de União com os Gregos


em Ferrara-Florença

Entrementes a posição de Eugênio IV se forta-


lecia p o r u m grande êxito. O Concílio de U n i ã o
com os gregos foi aberto a 9 de abril de 1438 n a
Catedral de Ferrara, com a presença do Papa, de
mais de 70 bispos ocidentais, do imperador bizan-
tino, do patriarca José de Constantinopla, dos arce-
bispos d e Éfeso, Nicéia e Kiew, bem como dos re-
presentantes dos patriarcas de Alexandria, de An-
tioquia e d e Jerusalém. As d o u t r i n a s controvertidas
entre latinos e gregos foram discutidas em comissões,
de maneira q u e os gtegos apresentaram suas objeções
contra os pontos de vista dos latinos e estes lhes
responderam. Antes q u e se tivesse produzido u m
resultado, Eugênio IV, por falta d e dinheiro, ~ êle
assumira o encargo da m a n u t e n ç ã o dos 700 gregos
presentes — se viu forçado a aceitar u m a oferta
financeiramente exorbitante, da cidade de Florença,
e a transferir para iá o Concilio (16 de janeiro de
1439). P r i m e i r o chegou-se a u m acordó sobre o
"Filioque" — desde os tempos carolíngios o adita-
m e n t o d o símbolo de fé a ser novamente discutido,
isto é, C[ue o Espirito Santo procede do Pai e do
Filho; e, depois de longas e violentas disputas sobre
o mais difícil de todos os p o n t o s de controvérsia, a
d o u t r i n a do p r i m a d o do P a p a : "A Sede Apostólica e
o P a p a possuem o p r i m a d o sobre todo o orbe terres-
tre; o Papa, como sucessor de Pedro e vigário de
Cristo, é a cabeça de toda Igreja, Pai e Mestre de
todos os cristãos, com o poder de dirigir toda a Igreja
segundo os atos e os cânones dos antigos concilios".
O ú l t i m o aditamento em t o d o o caso foi interpretado
n o sentido explicativo pelos latinos e no sentido res-
tritivo pelos gregos. A bula dc U n i ã o — conservada
em original — Laetentur Caeli foi lida n a sessão de
6 de j u l h o d e 1439, em redação latina pelo Cardeal
Cesarini e em redação grega por Bessarion, Ar-
cebispo de Nicéia; a p r i m e i r a tem 115, a segunda
33 assinaturas, à frente das quais a do imperador.

U m russo, que t i n h a vindo a Florença como


c o m p a n h e i r o d o arcebispo Isidoro de Kiew, inter-
pretou à sua maneira o j ú b i l o dos latinos sobre a
união: "é q u e êles obtiveram perdão dos gregos".
A u n i ã o não podia ter duração, p o r q u e a aversão
do clero grego contra os latinos era mais forte do
q u e seu m e d o d i a n t e dos otomanos. Q u a n d o Meh-
med, o Conquistador, em 1453 assaltou Constanti-
nopla, o Ocidente não se levantou para u m a ação
conjunta.
T a m b é m a logo depois concluída u n i ã o com os
armênios (22 de novembro de 1439), como tam-
bém a u n i ã o posterior com os jacobitas monofisitas
(1442) n ã o abrangeu em sua totalidade essas igrejas
orientais auíocéfalas. A 25 de abril de 1442 o Con-
cílio foi transferido para R o m a .

Supressão do cisma de Basiléia

O êxito da u n i ã o com os gregos foi para Eu-


gênio IV u m a vitória em seu conflito com o Con-
cílio de Basiléia, mas estava a i n d a longe d e ser
a vitória final. É verdade q u e o n ú m e r o daqueles
q u e apoiaram o antí-papa foi p e q u e n o : a Suíça, a
Áustria, u m a p a r t e da Baviera, a Universidade dc
Paris e algumas outras escolas superiores. M u i t o
mais perigosa foÍ a neutralidade da França e da
Alemanha. N a França, já em maio e em j u n h o
de 1438, u m a assembléia nacional, reunida em Bour-
ges, decidiu adotar u m a posição n e u t r a no con-
flito entre o P a p a e o Concílio e, ao mesmo tempo,
pôs e m vigor u m a p a r t e dos decretos d e reforma
dc Basiléia (Pragmática sanção de Bourges); a supre-
macia do concílio sobre o Papa foi com isso reco-
nhecida. Os príncipes eleitores alemães j á antes,
em Franckfurt, declararam-se neutros; u m ano de-
pois, o episcopado alemão seguiu o exemplo francês
e aceitou u m a p a r t e dos decretos de Basiléia como
obrigatória [Instrumento de aceitação de Maguncia,
1439). A Inglaterra, a Burgúndia e Veneza apoia-
ram a Eugênio.

O m a i o r perigo n ã o estava n o cisma como tal.


mas n o neutralismo, cuja base foi constituída pela
teoria conciliar. Mas o p r ó p r i o Concilio dissidente,
que representava essa teoria, por sua radicalização
progressiva, destruía todo o seu prestígio. P r e m i d o
p o r dificuldades financeiras transferiu-se em 1443
para Losana a residência do a n t i p a p a . U m país após
o u t r o voltou à obediência d e Eugênio IV: a H u n -
gria, Aragão, Castela, a Escócia, a Polônia. O an-
tigo secretário do concilio. Enea Sílvio Piccolomini,
q u e t i n h a entrado no serviço do imperador Frede-
rico I I I , conquistou t a m b é m seu novo soberano p a r a
Eugênio. N a dieta de Franckfurt, de 1446, os ale-
mães transigiram e concluíram cora o Papa — em
troca da promessa de se convocar u m novo, u m
"terceiro" concilio, para u m a cidade alemã — as
assim chamadas concordatas de príncipes, às quais
seguia, a 17 de fevereiro, como resultado final, a
concordata de Viena, que já tinha sido assinada pelo
sucessor de Eugênio, Nicolau V. Ela se parecia cora
a concordata de Constança, mas valia para serapre.
Depois q u e também a França a b a n d o n o u sua neu-
tralidade, Felix V resignou, a 7 de abril de 1449.
Eugênio IV devia sua vitória final sobre o Con-
cilio dc Basiléia não menos aos seus erros do q u e à
transigência das potências seculares, que ficaram
preocupadas com o radicalismo dos cismáticos. N o
Colégio dos Cardeais estavam ao seu lado u m a série
d e h o m e n s excelentes: Cesarini, o antigo presidente
do concilio, Albergati, Capranica, Nicolau de Cusa,
os cardeais Vitelleschi e Scarampo firmaram de novo
sua posição nos Estados Pontifícios; na Surnma
sobre a Igreja do cardeal T o r q u e m a d a exprimia-se a
restauração da idéia primacial. Mas a teoria con-
ciliar a i n d a n ã o estava definitivamente vencida,
p r i n c i p a l m e n t e p o r q u e no p e n s a m e n t o da época o
Concilio e a Reforma estavam ainda estreitamente
ligados entre si.
A sobrevivência da idéia conciliar

Os defensores de urna idéia podem sucumbir;


mas cssa idéia só desaparece da história q u a n d o fôr
superada n a ordem do pensamento. O conciUarismo
moderado era representado pelo maior canonista do
tempo, Nicolau Tudeschi, arcebispo de Palermo
(por isso chamado Palermitanus) e ensinado em
muitas universidades. A muitos, e não aos piores,
parecia a reforma eclesiástica impossível sem con-
cilio. N a opinião do cartuxo Jacob d e Jueterborg,
jamais seria a Igreja reformada u n i c a m e n t e pelo
Papa. A tentativa e m p r e e n d i d a pelo dominicano
Andreas Zamometic no ano de 1482 de fazer reviver
o Concilio de Basiléia que n ã o ficou formalmente
encerrado, foi ato desesperado de u m aventureiro
e, por isso, naufragou. Mas também o P a p a d o não
enveredou pelo único caminho capaz de desarmar
o conciliarismo, o de começar com toda a seriedade
a reforma da Igreja ainda n ã o resolvida. A ativi-
dade e as obras culturais admiráveis do P a p a d o
na Renascença n ã o lhe oferecem u m substituto,
já q u e eram acompanhadas por u m a ulterior ampli-
ficação do fiscalismo curial e fenômenos indiscutíveis
de corrução.

Por outro lado a aversão dos Papas contra a


organização de concilio cresceu tanto mais q u a n t o
a ameaça com u m concilio se tornou u m a arma
familiar da política. O rei Luís X I da França e
Podiebrad da Boêmia usaram-na contra P a u l o I I
e Sixto IV, Carlos V I U da França e F e r n a n d o de
Aragão, contra Alexandre VI. A ameaça só foi
realizada por Luís X I I da França, q u a n d o êstc n a
g u e r r a contra J ú l i o I I se serviu de alguns cardeais da
oposição para reunir em Pisa, no ano de 1511, u m

m
concílio antipa2:)aí ~ o assim cliamado Concilia-
bulum de Pisa, Os participantes eram quase exclo-
sivamente franceses, e o rei d a França, seu único
apoio seguro. Foí-lhes pouco útil renovar os conhe-
cidos decretos de Constança. N o início de 1512
transferiu-se êle para Milão. O Conciliabulum de
Pisa n e m mereceria ser citado, sc ele n ã o tivesse
levado Júlio II (1503-1513) a convocar u m Concílio
Geral para o dia 19 de abril de 1512: o q u i n t o Con-
cílio de L a t r ã o (1512-1517).

Um quinto Concilio de Latrão (1512-1517)

O último Concilio de Latrao, que é contado


como o Concilio Geral, ligou-se conscientemente
aos concilios papais d a Alta Idade Média e dis-
tanciou-se com isso dos dois concilios do século XV.
F u n c i o n a n d o sob os olhos e sob a presidencia do
P a p a em Roma, foi êle freqüentado quase exclusi-
vamente p o r bispos italianos. N a sessão de insta-
lação de 10 de maio de 1512 foram contados Í5 car-
deais e 79 bispos. Seu regulamento foi determinado
pelo Papa, os funcionários foram por êle nomeados.
Os decretos tiveram a forma de bula papal.
Êle resolveu com relativa facilidade a sua tarefa
imediata — a dc desarmar o anticoncílio de Pisa.
J á na 2.^ e na 3.^ sessões (de 17 de maio e respecti-
vamente dc 3 de dezembro de 1512) os reis da
Inglaterra e dc Aragão, b e m como o iiiqjerador Ma-
x i m i l i a n o IP se declararam pelo Concilio de R o m a
e contra o Concilio de Pisa. O rei Luiz X I I tam-
bém o a b a n d o n o u , depois da morte do seu adver-
sário J ú l i o H (21 de fevereiro d e 1513) e os car-
deais dissidentes se submeteram ao Papa recém-
eleito. Leão X. As relações do Papado com a França
foram em 1516 novamente reguladas por u m a con-
cordata, a q u a l foi aprovada pelo concilio na 11.^
sessão de 19 de dezembro.
A única definição doginática do q u i n t o Concilio
de L a t r ã o é a q u e a 8.^ sessão d e 19 de dezembro
de 1512 dirigiu contra o filósofo Pedro Pomponazzi
(sem citar o n o m e ) , declarando q u e a alma h u m a n a
individual é imortal.
A questão principal no concilio era e continuou
a ser, saber se se p o d e concentrar suficiente coragem
e vontade para realizar u m a reforma eclesiástica
séria. "Os homens é q u e devem ser transformados
pelas coisas sagradas e n ã o as coisas sagradas pelos
homens" — disse Egídio de Viterbo, superior geral
dos agostinianos em seu sermão de abertura. Dois
venezianos, os camaldulenses Giustiniani e Ouiriní,
entregaram a Leão X n o a n o de 1513, logO' depois de
sua eleição, u m memorial sobre a reforma eclesiás-
tica, notável pela sua crítica sem reservas aos abusos,
mas que n ã o ficou apenas aí, antes estava cheio de
propostas positivas: revisão do código eclesiástico,
unificação da organização das ordens religiosas e da
liturgia, reinicio das negociações de u n i ã o com as
igrejas orientais e até obra missionária no Novo
M u n d o recém-descoberto.

Até tão longe o q u i n t o Concilio de L a t r ã o n ã o


estendeu seus objetivos. Promulgou alguns de-
cretos de reforma m u i t o úteis: na 8.^ sessão sobre
o sistema de taxas curiais, n a 9.^ sessão (5 de
maio de 1514) sobre a seleção dos bispos, o ensino
religioso, e a proteção da propriedade eclesiástica;
na 10.^ sessão (4 de maio de 1514) sobre as casas
de penhores de utilidade pública ( m o n t e p i o s ) — de
necessidade urgente na época do protocapitalismo
— assim como sobre a censura de livros, na 11.^
sessão sobre a pregação; n a discussão deste ú l t i m o
assunto explodiu em violentas acusações e queixas
a indignação dos bispos diante dos privilégios das
ordens mendicantes. T o d a v i a , sob u m p o n t o de vista
global, cumpre verificar q u e o concilio não procurou
r e p r i m i r os piores abusos — acumulação de bene-
fícios n u m a só pessoa, descuido do dever de resi-
dência, laisser faire de tantos magistrados eclesiás-
ticos — sem o q u e n ã o era possível introduzir mu-
danças. A matéria infalível acumulada n o N o r t e
n ã o foi neutralizada; o princípio exigido por u m
memorial espanhol de q u e "o julgamento deve ini-
ciar-se n a casa do Senhor" n ã o foi realizado. N e m
mesmo o modesto conteúdo dos decretos lateranenses
sc tornou vida e realidade, p o r q u e não havia von-
tade firme de executá-los conseqüentemente e de
n ã o os deixar inutilizar p o r dispensações facilmente
adquiridas. Leão X, o filho de Lorenzo o Magní-
fico, n ã o foi u m Papa de Reforma. Os sínodos me-
dievais de Latrão, n u m m u n d o transformado, não
p o d i a m ser revivificados. O q u i n t o Concilio dc
L a t r ã o foi encerrado em sua 12.^ sessão, a 16 dc
março de 1517; a 31 de o u t u b r o do mesmo a n o
M a r t i n h o L u t e r o pregava suas 95 teses na p o r t a da
igreja d o castelo de W i t t e m b e r g .
PARTE IV

A Crise Religiosa e o Concílio


de T r e n t o

ODOS CLAMAM: concílio, concílio" — relata o


n ú n c i o papal Aleander acerca d a Dieta de
Worms (1521), onde se estava prestes a discutir o
problema de Lutero. Q u a n d o o processo contra êle
estava ainda em a n d a m e n t o , o jovem augustiniano,
após o interrogatório em Augsburgo (1518) pelo
cardeal-legado T o m á s de Vio, o q u a l ficou sem
resultado, apelou para o Papa melhor informado e
para u m concílio geral, sem levar cm consideração
a proibição d e tais apelações p r o m u l g a d a por Mar-
tinho V, reiterada p o r Pio II, Sixto IV e J ú l i o I I
e reforçada ainda pela cláusula de invalidade. Lu-
tero, seguindo o conselho dos juristas de Wittem-
berg, apelou t a m b é m u m a segunda vêz p a r a o con-
cílio, após haver tomado conhecimento da bula
Exsurge Domine, de 15 de j u n h o de 1520, amea-
çando-o com a excomunhão. Naquele tempo a ape-
lação era ainda apenas u m lance processual, já q u e
u m ano antes na disputa de Leipzig com J o ã o Eck,
êle tinha qualificado a sentença de Constança sobre
H u s de injusta e falsa e, levado à parede por Eck,
tinha declarado q u e também os Concílios Gerais
p o d e m errar. Naquele tempo a última e única
regra de fé foi para cie a Sagrada Escritura (sola
Scriptura).
Todavia, continuava êle a acreditar firmemente
n a utilidade dos Concílios Gerais. E m seu livro,
publicado no mesmo a n o de 1520, cujo título tra-
duzido é "À nobreza crista da nação alemã", exortou
êle a "nobreza", isto é, os príncipes e os estados
seculares a assumirem êles próprios o encargo de
cuidar d a reforma da Igreja, e, se fosse necessário,
por meio de u m concílio: "Por isso o n d e a neces-
sidade exige e o P a p a causa escândalo à cristan-
dade deve aquele q u e p o d e em primeiro lugar, como
m e m b r o fiel do corpo inteiro, fazer q u e se realize
u m concílio realmente livre, o q u e n i n g u é m pode
tão b e m como a espada temporal". L u t e r o propôs
u m extenso programa para u m futuro concílio, q u e
em sua crítica dirigida contra a Cúria R o m a n a e
contra os outros abusos eclesiásticos coincidia em
muitos pontos com proposições anteriores de re-
forma, mas destas se distinguia por fazer derivar
os males da Igreja n ã o das falhas morais dos ho-
mens, mas da falsificação do verdadeiro Evangelho,
pela qual, segundo sua opinião, o P a p a d o e a esco-
lástica aristotélica eram os principais responsáveis.
O q u e êle chamou "reforma" foi algo diferente das
aspirações de reforma da I d a d e Média tardia, inclu-
sive dos conciiiaristas: Q u a n d o o Evangelho supos-
tamente obscurecido de novo vem à luz e a justifi-
cação únicamente pela fé é anunciada, então tam-
b é m a Igreja reencontrará sua verdadeira "forma"
e será "reformada".
A condenação papal das 41 teses tiradas dos es-
critos de L u t e r o n ã o era, p a r a muitos, q u e ainda
estavam sob a influência d a teoria conciliar, a última
palavra da Igreja; só ura Concílio Geral podia pro-
ferir esta palavra. "Lutero esteve ç está na Igreja; êle
só pode ser dela excluído q u a n d o fôr condenado
legitimamente n u m concilio", esta glosa do pro-
curador d a cidade de Augsburgo, Conrado Peu-
tinger, exprimia o pensamento de largos círculos
leigos e até eclesiásticos. Apesar disso, passou-se
quase u m a geração h u m a n a até q u e se realizasse u m
concilio. As causas dessa demora encontram-se n a
m u d a n ç a anterior d a idéia conciliar q u e tornara o
P a p a d o desconfiado e cauteloso, mas t a m b é m no con-
flito da política m u n d i a l entre o poderio dos Habs-
burgos e a França.

Um "concilio comum, livre, cristão em


países alemães"

Na Dieta de Worms a solução conciliar n ã o


chegou a ser aplicada, n ã o somente p o r q u e L u t e r o
se recusou a submeter-se incondicionalmente à reso-
lução de u m Concilio Geral, mas t a m b é m p o r q u e
o representante do Papa, o núncio Aleander, embora
p o r motivos completamente diversos, com ela n ã o
simpatizava. A convicção de q u e só u m Concilio
Geral tinha o direito de proferir a última sentença
sobre a verdade e o erro na d o u t r i n a d e L u t e r o
estava, no entanto, tão espalhada, que n a Dieta
seguinte de N u r e m b e r g todos os estados do Reich,
tanto os católicos, como os partidários de Lutero,
exigiram u m "concilio comum, livre, cristão em
países alemães."
A fórmula parecia ser inofensiva, mas atrás
dela se escondiam, pelo menos segundo a concepção
dos luteranos, exigências, q u e em R o m a deviam
suscitar graves apreensões. Pelo termo "livre" enten-
dia-se "livre do Papa"; já que o P a p a tomara p a r t i d o
na questão de Lutero, o concilio n ã o devia ser n e m
convocado n e m presidido por êle: era o imperador
que, j u n t a m e n t e com os príncipes cristãos, devia
convocá-lo. Pelo termo "cristão" se quería dizer
q u e dcssc futuro concilio e das suas decisões deviam
participar n ã o somente bispos ou clérigos, mas tam-
bém leigos e q u e nele devia proceder-se "cristã-
mente", isto é, julgar u n i c a m e n t e segundo o critério
da Bíblia Sagrada. Q u e o concílio devia realizar-se
em território do Império alemão, decorre do fato
de o conflito a ser aplainado ter surgido na Ale-
m a n h a ; pelas mesmas razões teriam sido realizados
no O r i e n t e os antigos concílios dos primeiros séculos.
Vê-se q u e essa interpretação da fórmula de Nurem-
berg ultrapassa m u i t o a transformação que o con-
ceito d o concílio' ecumênico sofreu na Alta Idade
Média e n a Idade Média tardia. À luz da história
dos concílios mostra-se êle revolucionário.

Explica-se assim por q u e a fórmula tenha encon-


trado em R o m a graves apreensões. O P a p a de
então era Clemente V I I (1523-15.34), p r i m o de
Leão X . Êle compartilhava a aversão dos seus pre-
decessores contra u m concílio, n ã o apenas pela lem-
brança dos exemplos precedentes de Constança e de
Basiléia, que, como sombras escuras, cobriam toda
a pré-história do Concílio T r i d e n t i n o , mas também
p o r motivos pessoais, fundados n ã o em seu com-
p o r t a m e n t o moral, mas em sua origem ilegítima.
D u r a n t e toda a sua vida procurou, embora jamais
proferindo u m " n ã o " definitivo, declinar e con-
tornar a exigência do concílio. Esperava poder
enfrentar, de outra maneira, o movimento dissi-
dente; acreditava na magia da arte diplomática.

Foi-lhe fácil impedir a realização de u m concílio


nacional alemão, que, n a segunda Dieta de Nurem-
berg d e 1524, diante da evidente passividade de
Roma, tinha sido convocado p a r a Speyer: o impe-
rador proibiu-o sem rodeios. Mas êle, o imperador,
naquele tempo ainda jovem e politicamente condu-
zido pelo seu grão-chanceler Gattinara, transformou-
se a seguir, n o defensor mais fervoroso da solução
conciliar. E m suas memórias escreve (na terceira
pessoa) o seguinte: "Desde q u e o i m p e r a d o r n o
ano de 1529, pela primeira vez foi à Itália e se
encontrou tambéin com o P a p a Clemente, todas as
vezes q u e se r e u n i u com o P a p a Clemente ou com
o Paj^a Paulo, e da mesma forma em todas as dietas
q u e organizou, em todos os outros tempos e opor-
tunidades jamais deixou êle de insistir, pessoal-
mente ou através dos seus ministros, n a necessidade
da convocação de u m Concilio Geral", E êle diz
a verdade. Q u a n d o Carlos V em sua viagem da Es-
p a n h a para a Alemanha, em 1530, pleiteava em
Bolonha a coroa imperial, arrancou ao P a p a o con-
sentimento n a realização de u m concilio, m a s condi-
cionado à hipótese de n ã o vir a ser realizado o dese-
jado e n t e n d i m e n t o com os protestantes. De fato,
este n ã o se realizou n a g r a n d e dieta de Augsburgo.
Apesar disso, prevaleceram em Clemente V i l as
apreensões contra o concilio, sobre as vantagens
deste, de tal modo q u e êle ligou sua convocação a
múltiplas condições. As negociações iniciadas enca-
lharam. O P a p a notou reservas na atitude de Fran-
cisco I da França, que linha medo de q u e o concilio
e a extinção do conflito religioso na A l e m a n h a por
êle p r e p a r a d a a u m e n t a r i a o poder do seu adversário
político, Carlos V. "
A França permaneceu ausente, ou n u m a atitude
de expectativa, mesmo depois q u e o sucessor do
segundo P a p a Mediei, P a u l o I I I (1534-1549) d a
Casa Farnese, p r o m e t e u definitivamente ao impe-
rador, d u r a n t e a sua visita a R o m a na primavera de
1536, a convocação d o concilio c o c u m p r i u , logo
depois, a 2 de j u n h o do mesmo ano. O Papa-Far-
nese extremamente inteligente, que é melhor caracte-
rizado pelo inimitável retrato de T i c i a n o do q u e
por q u a l q u e r obra escrita, já há muito reconhecia
q u e n ã o se deveria prolongar por muito tempo a
resistencia à pressão da opinião pública. Concilio
e reforma eclesiástica constituiam os pontos prin-
cipais do seu programa de governo e assim perma-
neciam, mesmo q u a n d o n o decurso dos anos êle se
tornou cada vez mais claramente consciente dos
riscos d e u m concilio e do sacrificio q u e u m a reforma
séria exigia do P a p a e, p o r isso, em sua atitude
geral sc mostrou hesitante. Só com restrições, pode
êle ser chamado primeiro P a p a da reforma católica.

O passo errado em Mântova-Vicenza

A primeira convocação do concílio para 23 de


maio de 1537 em Vicenza, que, como feudo do
Império, correspondia de certa maneira à condição
imposta pelos alemães, foi u m passo errado n ã o
somente p o r ter explodido u m a nova guerra entre
Carlos V e Francisco I, t o r n a n d o caduca a fraca
adesão d a França, mas t a m b é m ter o d u q u e de
Mântova feito condicionar o alojamento do con-
cílio em sua residência à formação de u m a tão
forte G u a r d a Conciliar (50ÜÜ-6Ü00 h o m e n s ) , q u e o
Papa, a 8 de o u t u b r o de 1537, com base em u m a
combinação com os venezianos, o transferiu para
Vicenza. E m b o r a três legados papais, os cardeais
Gampeggio, Simonetta e Aleaiider, tivessem sido
encarregados da direção do concílio e já estivessem
a c a m i n h o de Vicenza, a representação mesmo da
Itália continuou extremamente escassa. Vieram
alguns emissários dos bispos alemães e foram-se em-
hora; os protestantes alemães, unidos, política e
militarmente desde 1531 n a aliança de Schmalkal-
den, declinaram bruscamente do convite entregue
pelo nuncio Pedro van der Vost para Mântova. A
abertura foi adiada d e u m termo para outro, e, final-
mente, a 21 de maio de 1539, para u m a data indeter-
minada.

Ficou sumamente satisfeito com este desfecho


o rei H e n r i q u e V I I I da Inglaterra, que, separado
da Igreja R o m a n a pelo Ato de Supremacia dc 1534,
tinha medo de q u e no Concilio Geral se formasse
u m a liga continental dirigida contra êle. Profunda-
mente desencorajados foram, porém, os católicos da
Alemanha, cujo n ú m e r o cada vez maís se reduzia.
N o lado protestante dizia-se abertamente q u e o
P a p a seriamente não queria n e n h u m concilio; o
q u e êle queria era, conforme lhe atribuiu o luterano
Corvinus, "burlar os reís e todo o m u n d o " .
Mas n ã o era isto o que êle queria. P o r q u e foi
justamente em vista do concilio anunciado q u e
P a u l o III, n o o u t o n o de 1536 convocou para R o m a
u m a Comissão de reforma composta de nove pre-
lados, entre êles os recém-nomeados cardeais Con-
tarini e Carafa, a qual, a 9 de março de 1537, apre-
sentou-lhe u m parecer "sobre a purificação da
Igreja", que, q u a n t o à clareza, n ã o deixava n a d a
a desejar e recomendava intervenções extremamente
radicais na praxe administrativa da Cúria e em toda
a vida eclesiástica. Criaram-se sub-comissoes p a r a
a reforma d a chancelaria papal, da Câmara, da
Penitenciaria, bcm como para se reformar a Dataria,
q u e era a mais violentamente atacada. Sobre o
motivo não h á n e n h u m a dúvida: procurava-se co-
meçar a "reforma da cabeça", antes q u e o concilio
levantasse essa exigência e enveredasse pelo c a m i n h o
q u e em Basiléia conduziu ao cisma.
Diálogo entre religiões^ ao invés
de concilio

Mais u m a vez, com a permissão do P a p a mas


n ã o p o r êle encarregado, tentou o I m p e r a d o r u m
e n t e n d i m e n t o com os protestantes, através de u m
diálogo. As condições prévias p a r a isto foram mais
favoráveis do q u e nunca. As idéias conciliatórias
de Erasmo, q u e ia já ficando velho (f 1536) n ã o
deixaram de exercer sua influência: havia muitos
erasmianos nas chancelarias principescas, outros
o c u p a v a m sedes episcopais. P a u l o I I I enviou como
legado a Regensburgo (1541) o mais sincero par-
tidário de u m e n t e n d i m e n t o , o cardeal Contarini.
Mas a união malogrou a i n d a u m a vez, e no fundo
não p o r q u e a elaborada forma de compromisso sobre
a justificação (o h o m e m será justificado por u m a
d u p l a justiça, a justiça de Cristo e a comunicada
ao h o m e m ) fora rejeitada tanto em Roma, como por
L u t e r o , mas por causa da diferença fundamental da
noção de Igreja dos dois partidos. Q u a n d o os
protestantes rejeitaram a d o u t r i n a sobre a tran-
substanciação n a Eucaristia, definida pelo q u a r t o
concílio de L a t r ã o , declarou o cardeal Contarini
que q u a l q u e r concessão ulterior seria apenas u m
acôrdo aparente (concordia palUaia).

Nas perspectivas históricas é fácil dizer q u e


em Regensburgo se tentou o impossível. Mas per-
gunta-se: n ã o era a u n i d a d e da Igreja u m b e m tão
sublime — a vontade de Cristo de q u e seus discí-
pulos fossem u m — tão rigorosamente imperativo,
q u e se precisava aproveitar toda e também a última
ojiortun idade p a r a realizá-la ?
A. primeira convocação para
Trento (1542)

Logo depois da interrupção das discussões de


u n i ã o em Rcgensburgo, P a u l o I I I seriamente pre-
ocupado com a iníiltração do protestantismo n a
Itália, retomou o plano do concilio. Seu ntincio
Morone, o mais hábil diplomata da Cúria, chegou
a u m acordo com os estados do Reich a respeito do
lugar onde se deveria realizar o concilio. Foi esco-
lhida a cidade de T r e n t o . Ela pertencia ao Im-
pério mas era facilmente acessível aos q u e procediam
da Itália e era italiana a maioria da sua população.
Correspondia às exigências dos estados do Império,
mas foi aceita com apreensões pelo Papa. O sobe-
r a n o da cidade era o príncipe-bispo Cristóforo Ma-
druzzo. Albrecht D u c r e r fixou sua imagem d u r a n t e
a viagem q u e fêz à Itália: d o m i n a d a pela pode-
rosa fortaleza episcopal a m p l i a d a por u m a ala de
estilo renascentista, a cidade, que então tinha p o u c o
mais de 6000 habitantes, ainda podia alojar cento e
poucos bispos a mais, os legados das potências com
suas comitivas; q u a n d o o n ú m e r o dos participantes
d u r a n t e o terceiro período das discussões a u m e n t o u
fortemente, suas acomodações se tornaram defi-
cientes.

T a m b é m a segunda convocação para o concilio


— a primeira p a r a T r e n t o • — não foÍ coroada de
êxito. Duas semanas depois da promulgação da bula
de convocação (22 dc maio de 1542), Francisco I
declarou guerra ao imperador. Os legados papais
d e novo em vão esperaram a afluência; finalmente
o Papa e o imperador, p o r ocasião do seu encontro
em Busseto, j u n t o de Parma, no mês de j u n h o de
1543, chegaram a u m acôrdo: adiar-se o concilio.
A g u e r r a continuou e levou Carlos V, q u e neces-
sitava da ajuda militar dos protestantes, a fazer-
Ihes concessões na dieta de Speyer, no verão de
1544, as quais conduziram a u m a séria tensão entre
R o m a e a Corte imperial. N u m "breve" de protesto,
o Papa, cm forma de advertência, evocou a memória
das grandes lutas entre o P a p a d o e o Império du-
rante a Idade Media. Q u a n d o o "breve" chegou às
mãos d o imperador, já estava superado pelos acon-
tecimentos. A conclusão de paz de Crépy, em
setembro de 1544, abrira o caminho para o con-
cilio; n u m a cláusula secreta declarou Francisco I
estar de acôrdo com a instalação deste em T r e n t o e
p r o m e t e u a representação da França. O Papa, a 19
de setembro, levantou a suspensão do concilio e o
convocou para T r e n t o , para o domingo Laetare
(15 de março de 1545). A i n d a mais: no verão de
1545, o P a p a e o i m p e r a d o r concordaram a respeito
de u m a ação conjunta contra os protestantes alemães.
Antes procurou-se q u e b r a r o p o d e r militar da ali-
ança de Schmalkalden; depois devia-se realizar o
concilio com a j^articipação dos protestantes. Assim
tornou-se êle parte integrante de u m grande plano,
visando à eliminação do protestantismo.

A guerra de Schmalkalden e o
Concilio de Trento (1545-1547)

N ã o pôde, n a t u r a l m e n t e , ser observada a ordem


cronológica dos planos. Q u a n d o o imperador co-
meçou, atrasado, a guerra em j u l h o de 1546, para
cujo motivo serviu a reiterada recusa dos protes-
tantes a se fazerem representar no concilio, este.
havia já seis meses, estava em andamento. Fora
instalado, a 1?> de dezembro de 1546, cora a presença
de apenas 31 bispos, n a maioria italianos. A direção
coube a três legados papais: o Cardeal Del M o n t e
q u e como detentor de grau hierárquico mais elevado
foi a cabeça da assembléia, o douto Cervini, que,
como h o m e m de confiança do Papa, foi o seu co-
ração, e o inglês Pole, que, por sua oposição ao Ato
d e Supremacia, fora desterrado.

A 22 de janeiro, foi decidido tratar-se paralela-


m e n t e das duas finalidades principais d o concilio,
q u e já t i n h a m sido indicadas na bula de convocação:
a definição do dogma católico e a reforma eclesiás-
tica. N a 4.^ sessão de 4 de abril tomou-se u m a reso-
lução fundamental decisiva para toda a m a r c h a dos
trabalhos no sentido de q u e as tradições apostó-
licas deviam ser aceitas com tanta veneração (pari
pietatis affectu) como a Escritura Sagrada, cujo
cânon foí, ao mesmo tempo, definido. N a mesma
sessão a tradução latina da Bíblia, em uso, a Vul-
gata de S. Jerónimo, foi declarada "autêntica", isto
c, suficiente para demonstração dogmática. Mas n ã o
estava nas intenções do concilio dispensar n e m tam-
pouco impedir o. estudo das línguas bíblicas ori-
ginais.

O concilio já tinha d a d o a si mesmo t a m b é m a


sua forma, q u e se distinguiu, consideravelmente, d a
dos concilios do século XV. Só os bispos, os supe-
riores gerais das Ordens, representantes das congre-
gações (e n ã o seus procuradores e os representantes
das corporações eclesiásticas, como dos cabidos e das
universidades) possuíam o direito d o voto e vo-
taram per capita e n ã o segundo as nações. Embora,
segundo, aliás, a opinião dos legados, pela sua con-
vocação o concilio tenha sido u m a "representação"
da Igreja universal, evitou-se, apesar das propostas
feitas neste sentido pelos espanhóis e por alguns ita-
lianos, colocar acima dos decretos a fórmula usada
em Constança e Basiléia: Ecclesiam uníversalem re-
praesentaiis. O processo dos trabalhos desenvolveu-
se era três etapas. As "congregações dos teólogos",
eni q u e teólogos instruidos se estenderam em confe-
rências sobre os problemas em foco, serviram apenas
para a informação dos prelados possuidores do di-
reito do voto; nelas p o d i a m ouvir-se as celebridades
da teologia de então, como o dominicano Domenico
Soto e o franciscano Afonso de Castro. A segunda
etapa foi constituída pelas congregações gerais de
todos os prelados que t i n h a m direito de voto, as
quais, a principio, se realizaram na sala da residên-
cia dos legados, o Palacio Prato, e mais tarde q u a n d o
a u m e n t o u o n ú m e r o dos participantes, na igreja
renascentista de Santa Maria Maggiore. Nestas as-
sembléias cada u m deu seu voto sobre as propostas
em questões de dogma e de reforma e muitas vezes
desenvolveram-se debates animados. C u i d a r a m da
formulação dos decretos deputaçÕes eleitas, ou então,
de vez em q u a n d o , os legados, consultando os espe-
cialistas. Nas sessões solenes, que se realizaram n a
catedral románica de São Vigílio, votou-se exclusi-
vamente sobre os decretos já aprontados; seu ceri-
monial litúrgico foi, essencialmente, o mesmo já
observado em Vienne. C o m o secretário do concilio
funcionou o diligente Ângelo Massareíli, a q u e m
devemos as atas cuidadosamente elaboradas, conser-
vadas no Arquivo do Vaticano, além de sete diários.
O direito de proposição, isto é, a determinação do
p r o g r a m a das negociações coube aos legados; no
entanto, cada m e m b r o , e até os representantes das
potências acreditados j u n t o ao concilio estavam au-
torizados a submeter propostas à direção deste.
E m b o r a o imperador, através do seu embaixador
Francisco de T o l e d o , t e n h a exigido q u e as discus-
sões dogmáticas fossem deixadas para mais tarde, os
legados, a fim de imjiedir a dispersão dos partici-
pantes, levaram avante as negociações sem inter-
rupções. N a 5.^ sessão de 17 de j u n h o de 1546 foi
aceito o decreto sobre o pecado original, q u e se diri-
gia tanto contra os pelagianos, como contra a con-
cepção dos reformadores sobre a permanência do
pecado original depois do batismo. U m decreto de
reforma conferiu aos bispos poderes de inspeção
sobre os pregadores, inclusive os das ordens isentas.
Mal se tinha iniciado o debate sobre o artigo prin-
cipal da justificação, q u a n d o as primeiras operações
militares da guerra de Schmalkalden puseram em
questão a possibilidade de permanecer o Concilio
em T r e n t o .
E m T r e n t o tomou-se conhecimento de q u e o
chefe protestante Schaertlin tomara dc assalto o
claustro de E h r e n b c r g e q u e ameaçava os passos dos
Alpes. E n t r e os italianos que, aliás, foram a T r e n t o
contra vontade, explodiu u m terror pânico. Só
a muito conseguiram os legados, apoiados por Ma-
druzzo, m a n t e r juntos os membros do Concilio. N ã o
SC atreveram êles, sem consultar o Papa, a fazer
uso da sua autorização de transferir o concilio, em-
bora t e n h a m sofrido n a q u e l a cidade imperial sob
a constante pressão dos representantes do Imperador.

Uma agitada congregação geral

Os trabalhos da congregação geral de 30 de


j u l h o mostram q u ã o d u r a m e n t e se chocaram entre
si as opiniões naqueles dias excitados. A data, ante-
riormente marcada p a r a a sessão seguinte, tornou-se
caduca. N ã o seria melhor renunciar-se ao estabe-
lecimento de u m a nova data, já q u e em conse-
qüência da guerra todo o futuro do concilio parecia
estar suspenso ? Del M o n t e quis passar tácita-
mente por cima da questão da data, embora dois
dias antes u m a p e q u e n a maioria ( 2 9 x 25) se tinha
manifestado em favor do estabelecimento de u m a
data. Mas contra este procedimento arbitrário o
líder dos espanhóis, o Cardeal Pacheco, levantou
u m violento protesto. O legado, então, invocou o
princípio de q u e os votos deviam ser pesados mas
não contados. Pacheco levantou a voz e p e r g u n t o u :
" P o r t a n t o o meu voto n ã o é de valor igual ao dos
outros ?" O Cardeal Madruzzo pediu q u e o legado
tratasse o concilio de m a n e i r a mais cortês e mais
cristã, pois, em caso contrário ~ acrescentou n u m
tom ameaçador — se sentiria êle obrigado a falar
n u m a linguagem diferente. Nesta altura inflamou-
se a ira de Del Monte: "Não tenho a consciência de
ter agido de maneira não^ cristã. Quer-se dar lição
a mim, ao presidente. M u d e m o seu tom e eu tam-
bém m u d a r e i o meu. N ã o se trata aqui da liberdade
de manifestação de opinião, mas trata-se de saber se
se deve curvar ou n ã o diante das ameaças disfarçadas
(dos imperiais). Pode-se usar violência contra mim,
mas a m i m não m e lançam medo". Para o presi-
dente, no m o m e n t o , os dois cardeais representavam
a encarnação do poder imperial que o p r e n d i a a
T r e n t o e limitava a sua liberdade de decisão.
Mas Madruzzo insistiu em seu direito de mani-
festar livremente a sua opinião e de fazer repre-
ensões ao presidente. O sangüíneo Pacheco lançou
contra êle, n u m ímpeto supremo de ira, a acusação:
"Vós nos tratais, como criados", O conflito tornou-
se tão violento q u e o arcebispo de Palermo, de
joelhos, com mãos levantadas e, entre lágrimas,
pediu aos três cardeais que pusessem lim àquela
cena terrível.
O presidente manteve-se firme em sua posição
segundo a qual a maioria favorável ao estabeleci-
m e n t o de u m a data n ã o era u m a verdadeira maioria,
p o r q u e muitos votos estavam ligados a condições, dc
maneira q u e não se podiam contar, sem reservas,
entre os votos "sim"; além disso, seu colega Cervini,
com q u e m êle j u n t a m e n t e desempenhava as funções
de presidência, estava ausente. Êle rejeitou qual-
q u e r entendimento.
Apesar disso, Pacheco e Madruzzo no fim d a
reunião pediram desculpas, caso o tivessem ofen-
dido. Del Monte acenou ligeiramente com a cabeça.
Então, Madruzzo, i n d i g n a d o pelo tratamento, fêz
a seguinte observação: "Pode julgar minhas pa-
lavras como quiser, eu sou u m nobre". Del Monte,
m o r t a l m e n t e ofendido por esta alusão a sua origem
humilde, retrucou: "Sim, eu não sou nobre, mas
irei a u m lugar onde ninguém pode lançar contra
m i m a sua nobreza". Era isto u m a ameaça d a trans-
ferência, que, os do lado imperial, q u e r i a m evitar
a todo custo.

Justificação e conceito de sacramento

Os rumores sobre u m a transferência iminente


do Concilio p a r a u m a cidade da Itália chegaram
aos ouvidos de Carlos V; êle responsabilizou por
isso o Cardeal Cervini, que era considerado e era
mesmo homem de confiança d o P a p a . T o d a v i a , o
p l a n o de transferência tornou-se supérfluo, p o r q u e
o imperador, em cujo exército lutavam também
tropas papais, pouco depois conseguiu estabilizar
a situação militar. Os debates sobre a justificação
foram reiniciados no fim de setembro; discutiram-
se pormenorizadamente questões especiais, como
p . e., a do grau de certeza de graça ou da salvação
e o problema da dupla justiça, abordado em Regens-
burgo. Só a terceira proposta revista, de cuja formu-
lação participaram intensamente o Cardeal Cervini
e Seripando, superior geral dos augustinianos, encon-
trou a quase u n â n i m e aprovação do concílio, n a 6.^
sessão de 7 de janeiro de 1547. A d o u t r i n a católica
sobre a justificação foi exposta de maneira posi-
tiva em 16 capítulos dogmáticos; 33 cânones a
élcs subordinados condenaram os erros opostos. Os
dois pontos decisivos foram os seguintes: a colabo-
ração d a vontade h u m a n a com a graça divina, subs-
trato de todo o processo de justificação, com q u e
se dava a possibilidade de o h o m e m a d q u i r i r mé-
ritos; além disso, a santificação interna do h o m e m
(em oposição à simples declaração de ser êle justi-
ficado) através da graça santificante. Afirmou-se,
n ã o sem base, q u e a divisão religiosa poderia ter
sido evitada ou q u e se poderia ter enveredado por
outros caminhos, se éste decreto sobre a justificação
tivesse sido votado no q u i n t o Concílio de Latrão.

Contrastando com a u n a n i m i d a d e moral, com


q u e se definiu a d o u t r i n a católica sobre a justifi-
cação, em oposição à d o u t r i n a protestante, os tra-
balhos dedicados às questões de reforma revelaram
sérias divergências entre o g r u p o espanhol-imperial
e a maioria italiana. U m dos abusos que causava
grandes prejuízos à vida católica era o fato de os
bispos e os vigários n ã o terem c u m p r i d o pessoal-
mente os deveres de seu ofício, mas através de subs-
titutos. J á em maio de 1546, os espanhóis exigiram
u m debate sobre o "dever de residência". N o co-
meço d e j u l h o numerosos prelados, entre êles u m
dos três franceses presentes, entregaram memoriais
aos legados sobre os "impedimentos de residência",
isto é, todo o complexo d e impedimentos da ativi-
dade episcopal, vindos de cima e de baixo da p a r t e
da Cúria e do Estado. O decreto sobre a observação
do dever de residência, posto a votos na 6.^ sessão,
declarando suscetível de penalidade a ausência n ã o
justificada por seis meses, foi aj^enas u m a " p e q u e n a
solução"; ignorou êle as queixas em grande p a r t e
fundadas dos bispos. Q u a n d o da contagem dos
votos, verificou-se que, entre os 60 bispos presentes,
só 28 votaram com u m "sim" incondicional. Só
após o exame pormenorizado das cédulas de voto
entregues é q u e pôde ser o decreto declarado apro-
vado, a 25 de fevereiro, após a promessa feita à
oposição de q u e seriam examinadas aquelas recla-
mações. U m ulterior decreto de reforma, q u e foi
apoiado na 7.^ sessão de 3 de março contra os votos
de 4 espanhóis, p r o i b i u a acumulação de muitos
bispados n a m ã o de u m só, o q u e foí u m a das c a m a s
do descuido na observação do dever de residência
e lançou as bases de u m novo direito de cargos e
de ordenação, mais correspondente às exigências da
vida pastoral. Na mesma sessão foi aprovado u n a n i -
m e m e n t e , u m decreto sobre os sacramentos em geral
(fixando o seu n ú m e r o de sete e a sua eficiência obje-
tiva pela execução do sinal externo) e sobre os sacra-
mentos do batismo e da confirmação. O núcleo desse
decreto é a d o u t r i n a segundo a qual os sacramentos
produzem a graça p o r virtude d a sua execução
{ex opere operato) e não exclusivamente através
da fé n a promessa de Deus.

O n ú m e r o dos que participavam do concilio


ei'a agora de 64 bispos e de 7 superiores de congre-
gações religiosas. Os trabalhos prosseguiam b e m
e nada indicava u m a catástrofe iminente.
Transferencia para Bolonha

A 6 d e março, m o r r e u , depois d e curta enfermi-


dade, n a plenitude da sua idade viril, o bispo Ca-
paccio no reino de Nápolis. Nos dias seguintes mui-
tiplicaram-se as enfermidades c os falecimentos, que
o médico do concilio, Fra Castoro, que no ano
anterior escrevera u m a obra pioneira sobre as do-
enças infecciosas, reconheceu corretamente como
tifo exantemático, i m p o r t a d o muito provavelmente
,i p o r soldados q u e regressavam da Alemanha. Os
.' imperiais contestaram a existência de u m perigo,
^ mas os legados e com êles a maioria do concilio
j u l g a r a m o m o m e n t o propicio para a b a n d o n a r
! T r e n t o e para subtrair-se á proteção do imperador,
i! N a 8.^ sessão de 11 de março de 1547, decidíu-se a
, transferencia do concilio para Bolonha, a segunda
•\ cidade dos Estados Pontificios. U m a minoria de 14
j bispos protestou. "A transferência do concilio —
declarou u m déles— põe e m perigo a volta dos ale-
:>
.' mães, q u e se achavam em erro, à paz e á u n i d a d e na
•i Igreja".
ij O grande plano, em q u e o Papa e o I m p e r a d o r
f baseavam sua ação comum, preconizava primeiro a
¡ guerra e depois o concilio. O concilio fêz mais
rápidos progressos do q u e a guerra. Agora, desde
a passagem do a n o de 1546-1547, esboçava-se a vi-
tória i m i n e n t e do imperador. O exército da Liga
de Schmalkalden, q u e no fim do outono enfrentava,
na A l e m a n h a do Sul, o imperial, retirou-se, e u m a
I cidade após a o u t r a foi c a p i t u l a n d o diante do im-
perador: Ulm, Franckfurt, Augsburgo e muitas me-
nores. Segundo a opinião do Papa, a guerra estava
decidida e criada a condição para negociações de
paz; êle retirou o seu contingente. O imperador
q u e r i a a vitória total. E n q u a n t o os legados se trans-
feriara de T r e n t o para Bolonha, marchava o exér-
cito imperial p a r a o Norte, a fim de atacar o adver-
sário principal, o príncipe eleitor João Frederico da
Saxônia. Éste foi vencido e feito prisioneiro, a 24
de abril de 1547, em Muehlberg, cidade situada
j u n t o ao Elba.
E o concilio ? Ele estava reunido em Bolonha
e não mais em T r e n t o , cidade que fora escolhida
anteriormente. A 21 dc abril, celebrou-se u m a ses-
são no imenso átrio da igreja gótica da cidade de
São Petrônio com a presença d e apenas 36 bispos.
D u r a n t e todo o verão e todo o o u t o n o díscutiu-se
a d o u t r i n a dos sacramentos: Eucaristia, penitência,
matrimônio, ordem. Colecionou-se material sobre a
reforma da praxe sacramentai — mas em n e n h u m a
das duas sessões q u e se realizaram em Bolonha se
promulgarara decretos correspondentes.. Por q u e
não ?

O iraperador alegava que seu grande p l a n o fora


contrariado pela transferência do concilio p a r a Bo-
lonha. À minoria que ficara em T r e n t o — em
grande p a r t e espanhóis — fortaleceu êle em sua
resistência e exigiu do Papa q u e tranferisse nova-
mente o concilio para T r e n t o . Paulo 111 negou-se
a atendê-lo, invocando a legitimidade d a decisão
de transferência; antes de negociar, a minoria devia
obedecerdhe c ir para Bolonha. Os dois partidos
ficaram assustados diante da eventualidade de u m a
r u p t u r a total e até de u m cisma q u e queriam evitar
a todo custo. Q u a n d o o i m p e r a d o r apresentou seu
solene protesto a 16 e 23 de janeiro de 1548, em
R o m a e era Bolonha respectivamente, contra a
transferência do concilio, o Papa, embora suspen-
dendo os trabalhos de Bolonha, convocou a R o m a
tanto os representantes do Concilio de Bolonha,
q u e entrementes fora fortalecido por alguns fran-
•ceses, como deputados da minoria tridentina, p a r a
-consulta — mas n ã o o r d e n o u a volta do concilio
para T r e n t o .
Carlos V viu-se obrigado a impor aos protes-
tantes, n a dicta de Augsburgo, u m a solução pro-
visória, o chamado ínterim de Augsburgo, que,
pelo seu conteúdo, era católico, mas faria certas
concessões, como o cálice leigo e o casamento dos
sacerdotes; para os católicos publicou, paralela-
mente, u m estatuto dc reforma, para cuja execução
o Papa, após hesitar por u m pouco, enviou dois
núncios à Alemanha. O ínterim, no entanto, logo
depois se revelou u m passo errado, n ã o somente
p o r q u e lhe faltava a autorização eclesiástica, mas
também, e sobretudo, p o r q u e as forças ainda exis-
tentes {sacerdotes e princij^almente pregadores) não
eram suficientes para a recatolização de regiões, q u e
p o r mais de u m a geração t i n h a m sido protestantes
e q u e ofereceram ao ínterim u m a tenaz resistência.

Os protestantes, em Augsburgo, tinham prome-


tido, sob coação, representar-se no Concilio de
T r e n t o — e n ã o d e B o l o n h a — em todo o caso sob
a condição q u e tornava sem valor sua resposta afir-
mativa: o concilio não devia estar sob a direção
do P a p a e os decretos de T r e n t o anteriormente apro-
vados deviam ser reexaminados. Essas condições
estavam ainda de pé no a n o de 1550, q u a n d o o
antigo presidente do concilio, a partir de então Papa
J ú l i o i n (1550-1554) d e t e r m i n o u q u e êsíe voltasse
p a r a T r e n t o , a 1-° de maio de 1551, o q u e fora
recusado pelo seu sucessor. A anbigüidade d a
promessa protestante, q u e o i m p e r a d o r consciente-
mente ignorara e o Papa a princípio não percebera,
tornou-se causa do fracasso desta ¡^rimeira e última
tentativa d e eliminar o cisma através d o concilio com
a colaboração dos alemães.
Volta para Trento (1551-52)

O concílio foi aberto, em T r e n t o , n a data fixada


de l.*^ de maio d e 1551 (12.^ sessão), pelo Cardeal-
legado Crescenzio, a q u e m foram concedidos doís
auxiliares, como co-presidentes, ambos especialistas
em questões alemães e tendo grau hierárquico de
bispos, Pighino e L i p p o m a n i , As negociações ini-
ciaram-se, porém, já n o início de setembro, depois
da chegada dos representantes do episcopado ale-
mão, sobretudo os arcebispos d e Mogúncia e T r i e r ,
seguidos logo após pelo metropolita de Colônia.
D u r a n t e os meses seguintes elevou-se a 13 o
n ú m e r o dos bispos alemães presentes. Os franceses
permaneceram ausentes. O rei H e n r i q u e I I , to-
m a n d o a mesma atitude do seu pai, recusou-se a
reconhecer a "convenção" de T r e n t o , como u m
concílio.

Com base nos trabalhos preparatórios de Bo-


lonha, pôde-se proceder, já a 11 de o u t u b r o , na 13.^
sessão à definição da d o u t r i n a sobre a Eucaristia:
a joresença real de Cristo pela transubstanciação e
por conseguinte t a m b é m fora do m o m e n t o da co-
m u n h ã o . O artigo sobre a distribuição d a Euca-
ristia sob as duas espécies (o "cálice-leigo") foÍ
provisoriamente retardado. T a m b é m os debates
sobre os sacramentos da penitência e da extrema-
unção terminaram com relativa rapidez. A 14.^ ses-
são, de 25 de novembro, defendeu, em 9 capítulos
doutrinais e 15 cânones, a respeito da penitência,
a necessidade da confissão auricular, o caráter judi-
cial da absolvição e da satisfação; o decreto da
extrema-unção, considerada p o r L u t e r o como u m a
simples cerimônia, insistiu em seu caráter sacra-
mental.
N ã o decorreram tão satisfatoriamente os deba-
tes sobre a reforma. As propostas apresentadas por
Crescenzio não foram suficientemente ao encontro
dos desejos do episcopado e p o u p a r a m de maneira
exagerada a praxe curial até e n t ã o em vigor.
Q u a n d o o bisj^o de Vcrdun, Pseaume, autor de u m
diário do concilio, exigiu a completa abolição d a
praxe de sc entregarem as abadias a pessoas n ã o
pertencentes à respectiva ordem, o legado reagiu tão
violentamente q u e os arcebispos de Colônia e Mo-
gúncia foram queixar-se j u n t o aos seus colegas
espanhóis. "Este é a i n d a u m concilio livre ?" —
p e r g u n t o u o bispo de Colônia ao de Orense. A
pergtmta, feita n u m a exitação compreensível não
é u m argumento da falta da liberdade do concilio,
mas é m u i t o significativa para a tensão reinante.

Os protestantes em Trento

A tensão aumentou, q u a n d o compareceram em


T r e n t o embaixadas dos protestantes alemães.
Apenas a de B r a n d e n b u r g o , q u e chegou primeiro,
se submeteu às resoluções do concilio. A de
Wuertemberg, q u e trouxe consigo a sua prÓ23ria
confissão, a Confessio virtembergica, e o legado de
Strassburgo, o historiador João Sleidam, manti-
veram-se e m suas posições e negaram-se a fazer
q u a l q u e r concessão essencial. Evitaram q u a l q u e r
contato com o legado do concilio e só tiveram rela-
ções com êle através dos representantes imperiais.
J u n t o com os representantes do príncipe-eleitor
Maurício de Saxônia, q u e chegaram a 9 de janeiro
de 1552, exigiram êles, na congregação geral de 24
de janeiro, a extensão dos termos do salvo-conduto
a êles a n t e r i o r m e n t e concedido p a r a sua segurança
pessoal; o tratamento p a r a com João H u s em Cons-
tança lançava ainda a sua sombra. Êles obtiveram a
forma desejada d o salvo-conduto no dia seguinte,
mas às ulteriores exigências q u e êles formularam n ã o
p ô d e o concílio atendê-las, sem negar a sua p r ó p r i a
razão d e ser. Suas exigências foram as seguintes:
isentarem os bispos do j u r a m e n t o de fidelidade q u e
devem ao Papa, submeter-se o P a p a a o concílio no
sentido dos decretos de Constança, reiniciarem-se
as negociações sobre os decretos de fé já aprovados.
As negociações conduzidas atrás dos bastidores enca-
lharam. Até o imperador que de Innsbruck acom-
p a n h o u de perto seu curso, não pôde dar aos seus
representantes outras instruções, senão a dc i m p e d i r
a todo o custo a suspensão do concílio.

As negociações conciliares já tinham encalhado


irremediavelmente, q u a n d o notícias inquietantes,
vindas da Alemanha, forçaram o regresso dos bispos
alemães ao seu país. O príncipe-eleitor Maurício da
Saxônia, aliado da França desde o verão de 1551,
preparou-se para u m a guerra contra o imperador.
N o fim de março, resolveu atacar e marchou através
de Augsburgo para o Sul. O imperador, completa-
m e n t e desarmado, fugiu d e Innsbruck. O concílio,
inteiramente paralizado por ter-se enfermado mor-
talmente o legado pontifício, decidiu, a 28 dc abril
de 1552, a sua suspensão. O concílio de união ma-
logrou.

Regressando às suas dioceses, os Padres con-


ciliares deixaram, sob todos os aspectos, u m torso
atrás de si. N e m as doutrinas controvertidas foram
autoritativamente definidas, n e m o problema da
reforma eclesiástica ficou solucionado satisfatoria-
mente. Os decretos, já que necessitavam ainda de
confirmação papal, n ã o constituiram direito em
vigor. A tentativa empreendida na Espanha e em
Portugal para pô-los em vigor unilateralmente levou
o P a p a Júlio I I I à idéia de resumir e completar os
decretos de T r e n t o até então aprovados n u m a
g r a n d e bula de reforma; mas éle morreu antes de
poder promulgá-la. E m b o r a o movimento d e re-
forma se tenha imposto definitivamente nos dois
conclaves do ano de 1555, dos quais saíram primeiro
o antigo legado conciliar Cervini,, como Marcelo II
e, depois da morte súbita deste o cardeal Carafa,
como P a u l o IV, não se levou cm consideração a con-
tinuação do concilio de T r e n t o . Paulo IV viu nela
u m a aventura; u m congresso de reforma, por êle
convocado para R o m a , n o a n o de 1556, cpic deveria
servir de preparação de u m novo Concilio de Latrão,
teve de ser interrompido p o r causa da guerra com a
E s p a n h a . O impulso p a r a a r e a b e r t u r a d o Concilio
de T r e n t o veio desta vez da França.

Calvinismo na França

Os dois primeiros períodos de negociações do


Concilio de T r e n t o foram orientados p a r a a Ale-
m a n h a , país onde se originou o cisma religioso;
formaram u m a parte de u m grande plano de polí-
tica eclesiástica visando à restauração da u n i d a d e da
Igreja, esboçado de c o m u m acôrdo pelo imperador
e pelo Papa, que, porém, depois se desentenderam
a respeito da sua execução. Nas discussões dogmá-
ticas levaram-se em considerações Lutero, ZuingÜo
e outros reformadores de segunda categoria, não,
porém, Calvino, cuja obra principal, havia já
m u i t o , estava escrita. Os progressos rápidos q u e o
calvinismo fez n a E u r o p a ocidental, principalmente
n a França, já d u r a n t e o reinado de H e n r i q u e II,
mas sobretudo sob a regência marcada pelo opor-
tunísrao político de Catarina de Médici, colocaram
n o dominio das possibilidades a perda da "filha
primogênita d a Igreja". O concilio n a o t e r m i n o u
em 1552: só íoi suspenso. Agora aparecía êle ao
sucessor de P a u l o IV, o Papa Pío IV (1559-65),
como o meio à disposição para i m p e d i r a q u e d a da
França e para comjjletar o torso. Deveria ser êle
u m a continuação dos primeiros dois períodos d e
negociações, como Filipe I I da Espanha energica-
mente exigia, ou u m novo concilio, como recomen-
davam a França e o imperador F e r d i n a n d o I ?
A bula de convocação, de 29 de novembro de
1560, favorecia ã primeira interpretação, mas n ã o
excluía a segunda. O p r ó p r i o concilio devia
decidir esta questão. A A l e m a n h a desistiu. Os
príncipes protestantes reunidos em N a u m b u r g o ,
n u m a resposta nitidamente negativa entregue ao
núncio C o m m e n d o n e a 5 de fevereiro d e 1561, rejei-
taram o convite. Ao abade Alartinengo, q u e devia
entregar o convite à r a i n h a Elisabeth I d a Ingla-
terra, foi p r o i b i d a ate a entrada no reino inglês. Os
bispos alemães ausentaram-se, p o r q u e temeram ser
acusados de violação da paz religiosa de 1555, esti-
p u l a d a em Augsburgo. Os outros países q u e per-
maneceram católicos p r o m e t e r a m sua representação
no concilio por seus bispos e legados.

O terceiro período de negociações


(1562-1563)

N a sessão de abertura, a 18 de janeiro de 1562,


contou-se com a presença de 113 portadores de mitra,
então mais do que nunca, de maneira q u e o cardeal
Seripandü, q u e então desempenhava as funções de

m
legado, escreveu para R o m a que, em comparação
com ela,-a sessão de abertura de 1545 se parecia mais
com u m sínodo diocesano do q u e com u m concilio
geral. Tornou-se necessário transferir as congre-
gações gerais para u m a sala mais ampla, na igreja
de Santa Maria Maggiore, cujo interior se pode reco-
nhecer na gravura de ampla divulgação. Como pre-
sidente funcionava Ercole Gonzaga, filho de Isabela
d'Este, u m príncipe segundo a nobreza e os senti-
mentos; foram-lhe dados como auxiliares, além
de Seripando, Hósio, conhecido como u m teologo-
apologeta, o canonista Simonetta, que, como chefe
dos "zelosos", se tornou logo u m a figura-chave
do concilio e, enfim, o sobrinho do Papa, Hohe-
nemps, que, porém, por n ã o estar absolutamente
p r e p a r a d o p a r a exercer o cargo de legado p a p a l e
por n ã o d o m i n a r nem mesmo o latim, após u m breve
tempo, deixou T r e n t o .

A fim de contornar a questão de alta política


da "continuação", os trabalhos foram iniciados com
o debate sobre u m a proposta de reforma. Mas o seu
primeiro artigo, q u e tratava do dever de residência
q u e têm os bispos ainda m u i t o controvertido, pro-
vocou logo a primeira grande crise do concilio. Os
espanhóis sob a liderança do arcebispo Guerrero de
Granada, e u m a p a r t e dos italianos propuseram que
o dever de residência fosse declarado como u m pre-
ceito imediatamente divino [de iure divino), a fim de
excluir, dessa maneira simplista, até a possibilidade
de dispensações. Os curialistas viram n u m a decla-
ração desse tipo u m a t a q u e dirigido contra o poder
primacial do Papa. Depois q u e êles conseguiram,
n a votação de 20 de abril, u m a p e q u e n a maioria
de votos (35 votos non-placet, 34 appellantes, isto é,
participantes q u e colocavam seu voto à disposição
do P a p a ) de mais de 67 votos placet^ o Papa se pôs

m
d o seu lado e p r o i b i u q u e se continuasse a discutir
essa questão de princípio e fêz sentir sua contra-
riedade aos legados Gonzaga e Seripando q u e eram
favoráveis a o lus Divínum do dever de residência.
Por quase dois meses marcou passo o concílio.
Só no início de j u n h o foi de certa maneira
superada a crise de confiança. Sem encontrar resis-
tência digna de menção, os legrados r e t o m a r a m as
discussões dogmáticas n o p o n t o em q u e elas foram
suspensas em 1551 e fizeram aceitar, n a 21.^ sessão
de 16 de julho, o artigo então arquivado sobre o
uso d a Eucaristia (a presença de Cristo sob cada
u m a das duas espécies) e na 22.^ sessão, de 17 de
setembro, o decreto sobre o sacrifício da santa missa.
Este último definiu que a santa missa era a lem-
brança e a continuação do sacrifício de cruz de
Cristo, igual a êle por ser a mesma oferenda e o
mesmo sacerdote sacrificador, Cristo, diferente dêle
pela maneira incruenta do seu oferecimento.
A questão d o cálice leigo, q u e fora levantada
pelo imperador e pelo príncipe da Baviera, foi
submetida ao P a p a e por êle resolvida favoravel-
mente, depois do encerramento do concílio.

A grande crise conciliar e sua extinção

A 13 de novembro de 1563 chegou a T r e n t o


Carlos Guise, cardeal d e Lorena, a c o m p a n h a d o
por 13 bispos franceses. O aparecimento do ainda
jovem e vigoroso e muito talentoso cardeal contri-
b u i u p a r a o agravamento da segunda crise d o con-
cilio, a mais difícil por que êle passou. Entrementes,
foi posto novamente n a ordem do día o decreto
sobre o dever residencial, arquivado d u r a n t e a pri-
mavera, tendo-se t a m b é m iniciado os debates sobre
o sacramento da ordem. E m ambos os casos tratou-se
das relações entre o p o d e r primacial e o poder epis-
copal q u e ainda necessitava de u m a definição da
p a r t e do magistério eclesiástico. Mais exatamente,
a questão era a seguinte: como conciliar-se a insti-
tuição dos bispos por Cristo com o poder primacial
do P a p a ?
T u d o o q u e era possível imaginar de sagaci-
dade teológica e de arte de formulação, foi oferecido,
a fim de se encontrar u m a solução de compromisso,
aceitável igualmente a R o m a e aos zelosos, bem
como à oposição franco-espanhola. N o entanto,
todas as tentativas de solução malograram por causa
da intransigência dos partidos q u e se enfrentavam
! u m ao outro. Guise conseguiu levar o i m p e r a d o r
F e r d i n a n d o , que n a q u e l e tempo estava n o v a m e n t e
em Innsbruck, a intervir. N u m a carta de 3 de
,/i março de 1563, êle, de fato, solicitou ao P a p a q u e
I n ã o se opusesse a u m a reforma a ser introduzida
'I pelo concilio e contribuísse para o a b r a n d a m e n t o
U das posições dos "zelosos", a fim de q u e o concilio
J; se tornasse de novo capaz de prosseguir nas nego-
i¡; ciaçõcs. Era de temer q u e viesse tima semelhante
I; intervenção da parte de Filipe 11. A intervenção
lj das potências seculares poderia levar à dissolução do
'l¡, concilio.
..j; A gravíssima tensão manifestou-se em recrimi-
•j! nações reciprocas e favoreceu às intrigas. Um
j bon mot i m p r e g n a d o do espírito gaulês afirmava
i q u e o Espírito Santo chegava a T r e n t o pelo alforge
do correio curial. Inegavelmente exprimia a ver-
i i: dade de q u e os legados, e n q u a n t o legados do Papa,
!: estavam obrigados a seguir suas instruções; era,
porém, falsa a sua suposição de q u e o concilio esti-
vesse privado da vontade p r ó p r i a e de que êle esti-
\ vesse sendo dirigido por R o m a , sem poder oferecer-
lhe resistência alguma. As subvenções que bispos
e teólogos, privados de recursos próprios, recebiam
dos cofres d o Concilio não podem ser consideradas
como compra de votos. Eram absolutamente neces-
sárias, pois sem elas os bispos de dioceses pobres
n ã o poderiam ter-se sustentado, com a carestía rei-
nante em T r e n t o . Eram dadas, sob condição, n a
m e d i d a das suas necessidades e eram, além disso,
tão insignificantes que o calvinista francês, Lan-
quet, podia ironizar, dizendo q u e os bispos n ã o
vendiam suas almas mais caro do q u e os lansque-
netes alemães vendiam seu serviço militar. Era
também n a t u r a l que d u r a n t e a crise, a fim de quíj-
b r a r as frentes, se procurava atrair membros da
oposição p a r a o lado da maioria. O príncipe Co-
simo d e Florença, cujas relações íntimas com o
P a p a Pio IV eram conhecidas, sugeriu a dois bispos
do seu Estado q u e abandonassem suas posições opo-
sicionistas. É m u i t o significativa a resposta q u e
lhe deu u m deles, o bispo de Fiesola: "Eu dei o
m e u voto de acordo com a m i n h a consciência e
n ã o posso modificá-lo mesmo que, por mantê-lo
pusesse em risco a m i n h a vida. Sou dedicado ao
Papa e obediente, nos assuntos temporais, a vós, meu
príncipe. Mas o bem da m i n h a alma, eu o aprecio
m u i t o mais do que poder votar no concilio contra
as minhas melhores convicções".
Nessas semanas da gravíssima tensão interveio
a morte no destino do concilio. E m poucos inter-
valos, a 2 e a 17 de março, morreram, esmagados
pelo trabalho e pelas preocupações, os dois legados
de mais alto grau hierárquico, respectivamente
Gonzaga e Seripando. Pio IV nomeou para substi-
tui-los seu m e l h o r diplomata e mais í n t i m o conse-
lheiro, Morone e o veneziano Navagero. M o r o n e
tornou-se o salvador do concilio. Cônscio da con-
fiança absoluta do Papa, afastou o "para-govêrno"
dos "zelosos" j u n t a m e n t e com seu líder Simonetta,
viajou para Innsbruck, p a r a ver o i m p e r a d o r e
tranquilizado, e conquistou Guise para u m a solução
de compromisso na questão dos poderes. E m carta
pessoal a Filipe II, êle garantiu q u e o Papa tomaria
a sério a reforma da Igieja.
Agora, depois de u m a interrupção de 10 meses,
tornou-se possível a realização da 23.^ sessão, a 24
de j u l h o de 1563, qiie constituiu u m a grande revi-
ravolta do concílio. Nela limitou-se êle, exclusiva-
mente, à refutação da d o u t r i n a protestante sobre o
sacramento da ordem e a dar u m a formulação mais
rígida ao decreto residencial, sem, porém, fazer refe-
rência ao lus divinum. U m decreto sobre o estabe-
lecimento de seminários episcopais criou, enfim,
a instituição para a educação do clero, inexistente
até aquela época. Reconheceu-se que o estabeleci-
m e n t o de leitorados teológicos, previstos na 4.^ sessão
— u m a renovação de u m cânon lateranense — não
correspondia mais às exigências da época.

As grandes propostas de reforma


de Morone

Como os bispos em Vienne, e m Constança as


nações conciliares, assim em T r e n t o os bispos e,
em parte, os governos representados no concilio
entregaram m e m o r a n d u n s sobre seus desejos de re-
forma: no inicio de março de 1562 u m grupo de ita-
lianos, em abril os espanhóis, e a 7 de j u n h o entre-
g a r a m aos legados os representantes imperiais um
"projeto de reforma", e a 3 de janeiro de 1563
e n t r a r a m os representantes da França com as pe-
tições do episcopado francês. Era a todos comum
o desejo de, em interesse d a o b r a pastoral ordenada,
fortalecer o poder dos bispos sobre o clero secular
e regular das suas dioceses e eliminar q u a l q u e r
i m p e d i m e n t o do seu exercício, por isenções, ape-
lações injustificadas, bem como por intervenções do
Estado. Levando em consideração essas aspirações
nacionais d e reforma, e m p a r t e radicais, e as con-
cepções mais consei"vadoras de Roma, Morone, no
mês de j u l h o de 1563, apresentou u m a proposta de
reforma bem ampla, contendo 42 artigos, q u e foi
debatida d u r a n t e o outono e aceita, após u m a séria
refundição, nas sessões 24.^ e 25.^. Esta regularizou
a nomeação e os deveres d e estado dos cardeais e
dos bispos, a organização de sínodos diocesanos
(anualmente) e dos sínodos provinciais (de três em
três anos), a visitação das dioceses pelo bispo, a re-
forma dos cabidos, a nomeação dos vigários e a
prédica paroquial; a refoiTna das ordens limitou-se
a certas regras gerais referentes à admissão ao novÍ-
ciato, à clausura etc. N ã o é exagero: estes decretos
de Morone constituem o núcleo do q u e geralmente
se chama "reforma tridentina". Sua lei interna é:
a salvação das almas está acima dc tudo.
Na 24.^ sessão, de 11 de novembro, os debates
dogmáticos paralelos resultaram n u m decreto sobre o
caráter sacramentai d o matrimônio, que foi comple-
tado pelo importantíssimo decreto de reforma, Ta-
metsi: os casamentos concluídos secretamente, isto é,
sem a presença dc testemunhas, não são apenas ilí-
citos, mas t a m b é m inválidos; válido é só o casamento
concluído diante do pároco competente e de 2 ou 3
testemunhas, registrado na matrícula. A 25.^ (úl-
tima) sessão, de 3 e 4 de dezembro, acrescentou de-
cretos sobre o purgatório, a indulgência, a veneração
dos santos, das suas relíquias e imagens. "É bom
e salutar invocar os santos", suas relíquias "devem
ser veneradas pelos fiéis", bem como as imagens
de Cristo e dos santos, "não p o r q u e nós creíamos
q u e nelas resida u m a força divina", mas pelo pro-
tótipo q u e elas representam. O "decreto das ima-
gens" renovou, p o r t a n t o , em sua essência, a defi-
nição do 7.° Concilio Ecumênico.

Encerramento e execução

Apesar da tenaz resistência oferecida pelo em-


baixador espanhol. Conde L u n a , e por certos bispos,
M o r o n e apressou-se a levar ao fim o concilio, p o r q u e
este já tinha custado m u i t o ao P a p a e pesado
m u i t o sobre as finanças papais. D u r a n t e o p r i m e i r o
período custara a n u a l m e n t e de 30.000 a 40.000
scudi, quase u m décimo de todas as rendas; no ter-
ceiro período elevaram-se as despesas ao triplo. A
sessão de encerramento foi planejada originalmente
p a r a os meados de dezembro. A 1.° d e dezembro
chegou a carta alarmante do sobrinho do Papa,
Carlos Borromeu, noticiando q u e o Papa estava
gravemente enfermo, de m a n e i r a q u e se poderia
contar com o pior. A fim de excluir "ab ovo" até
a possibilidade de u m a controvérsia sobre o direito
d e eleição p a p a l (como se realizara em Constança,
embora em circunstâncias completamente dife-
rentes), M o r o n e resolveu antecipar a sessão de encer-
r a m e n t o . Por isso ela d u r o u dois dias, p o r q u e todos
os decretos anteriores foram mais u m a vez lidos e
aprovados. Assinaram-nos 199 bispos, 7 abades e
7 superiores gerais de ordens. N o fim da sessão,
o cardeal Guise, antes chefe da oposição, agora porta-
voz do concilio, promoveu u m a aclamação de
aplauso ao P a p a reinante e a seus predecessores,
q u e realizaram o concílio, bem como aos impera-
dores Carlos V e F e r d i n a n d o l e a todos aqueles q u e
contribuíram para seu êxito. Com a expressão "Pro-
cedete in pace", M o r o n e encerrou o concílio. A
28 de janeiro de 1564, o P a p a aprovou todos os
seus decretos, sem exceção e sem emendas, e assim
emprestou-lhe lôrça jurídica.
O Concílio de T r e n t o £oi a resposta d a d a à
Reforma protestante pelo supremo Magistério ecle-
siástico e a realização, embora imperfeita, mas exe-
qüível das exigências, havia m u i t o proclamadas d e
u m a renovação interna d a Igeja. Deram-se normas
claras à teologia e à pregação da fé; definiu-se ofi-
cial e autorizadamente, mas n ã o se distinguiu o n d e
n ã o havia ainda distinção. Opôs-se à Reforma pro-
testante a reforma católica, mas não se restaurou
simplesmente a Idade Média. Ao contrário, mo-
dernizou-se a constituição e a vida pastoral. T r e n t o
já n ã o foi u m a assembléia da cristandade indivisa
n a fé como o 4P Concílio d e L a t r ã o ou o de Cons-
tança, nem resplandesceu, como aqueles, nos ful-
gores de u m Papa-Rei e de u m Imperador, mas foi,
segundo seu exterior, u m ato mais modesto e por
isso mesmo mais eficaz e d u r a d o u r o de renovação
própria.

Apesar disso, dificilmente poderia ter exercido


sua eficácia eclesiástica e histórica através dos
séculos; ao contrário teria permanecido letra morta,
se o Papado, com toda a sua autoridade, n ã o se
tivesse e m p e n h a d o n a realização e n o complemento
dos seus decretos, emprestando-lhes força e vida.
Pio IV criou, a 2 de agosto d e 1564, u m a Congre-
gação Cardinalícia para interpretação autêntica dos
seus decretos, q u e existe até hoje. Seu sobrinho.
Carlos Borromeu, como arcebispo de Milão, por sua
atividade, tornou-se o p r o t o t i p o de u m pastor triden-
tino. P Í O V, sucessor de Pio IV, enviou, para obser-
vação, as edições oficiais dos decretos conciliares a
todos os bispos; elas chegaram até à América e ao
Congo; à A l e m a n h a levou-as São Pedro Canísio.
Executando u m a resolução do concilio, m a n d o u êle
publicar o "Catecismo r o m a n o " , u m m a n u a l de dou-
tiina da fé, baseado nas definições tridentinas, a ser-
viço dos vigários, bem como u m breviario emendado
e o missal, cuja reforma foi iniciada, mas não termi-
nada no concilio. Sob o r e i n a d o de Gregorio X I I I
(1572-1585) os núncios foram encarregados da ta-
refa de velar pela execução dos decretos conciliares.
Seus sucessores, Sixto V e Clemente VIII, publi-
caram a Vulgata emendada. Em interesse da exe-
cução, os papas esforçaram-se por fazer reconhecer o
concilio pelos Estados; seus esforços foram coroados
de êxito na Espanha, na Polônia, nos Estados ita-
lianos, mas não na França e n a Alemanha. Foi
p o r isso q u e o Concilio de T r e n t o "deixou na som-
bra todos os concilios pela sua duração, e ainda mais
pelo seu âmbito, pela variedade e atualidade das
suas atividades, pela proftindeza e solidez das suas
definições doutrinárias, pela sabedoria das suas dis-
posições de constituição e disciplina eclesiásticas,
pelo n ú m e r o e valor dos teólogos que nele tomaram
parte e enfim pela influência que exerceu sobre
a vida da Igreja" (Merkle).

E m flagrante contraste com este julgamento


p o n d e r a d o de u m historiador moderno, o primeiro
historiador do concilio, hostil ao Papado, Paolo
Sarpi, definiu (1619) a reforma eclesiástica de
T r e n t o como u m a lenda e todo o concilio como
u m artifício astuto dos papas, com o fim de recon-
quistar o poder. O livro desse historiador foi refu-
tado em muitos pormenores e com base em fontes
mais ricas e mais seguras, pela História do Concilio
de Trento do jesuíta Pallavicino (1659) e foi refu-
tado, de maneira muito mais incisiva ainda, pelo
fato de q u e toda u m a época da Igreja fora for-
mada por esse concilio. Passaram-se três séculos para
q u e se reunisse novamente u m Concilio Geral, mas
este começou o seu trabalho no p o n t o era q u e o de
T r e n t o deixara u m a lacuna: na d o u t r i n a da Igreja.
PARTE V

O Concílio do Vaticano

s O N D A S da revolução francesa e as secularizaçÕes


- q u e a seguiram passaram como u m temporal
através do edificio da Igreja Católica, aparentemente
envelhecido. D e r r u b a r a m o q u e ligava a Igreja ao
Estado e à sociedade da época absolutista. Desa-
pareceram os bispados-principados alemães e os
bispos franceses áulicos e conventos milenares, tais
como os dc Reichenau e de Cluny. J á antes, a O r d e m
dos Jesuítas fora vítima do absolutismo esclarecido
da corte dos Bourbons. Passado o diluvio, após a
q u e d a de Napoleão, as muralhas básicas do edificio
estavam surpreendentemente intactas. Após u m
século de desprezo, ou melhor ainda, de desdém,
da p a r t e dos racionalistas, a Igreja conseguiu nova-
m e n t e ser respeitada. O p a p a desarmado Pio V I I
opôs-se ao ditador Onipotente. De Maistre e Cha-
teaubriand revelaram, n a grandeza d o p a p a d o , u m a
instituição super-nacional; Lamennais, Montalem-
bert e Goerres, por sua vez, as grandes possibilidades,
q u e a palavra mágica "Liberdade" outorgara à
Igreja, até então amarrada pelas idéias da Igreja
Estabelecida. A Igreja provou novamente sua
força vital indestrutível, se n ã o divina. N ã o obs-
tante estar empobrecida e ainda inibida interior e
exteriormente, cm conseqüência das reminiscências
da mentalidade de Igreja Estabelecida, a Igreja
chegou a perceber lentamente o r i t m o da nova época,
a época da técnica e das massas, n ã o sem resistência
e repercussões, mas chegou a percebê-la.

O "Syllahus" de Pio IX

Como P a p a "liberal", isto é, aberto em seu


íntimo p a r a as novas tarefas da Igreja, começou
P i o I X seu governo, a 22 d e j u n h o de 1846. A revo-
lução do a n o de 1848, q u e trouxe para os católicos
da Prússia e da Áustria-Hungria a liberdade de
ação e introduziu nestes países u m progresso conside-
rável d a vida eclesiástica, causou-lhe decepção pro-
funda. A revolução obrigou-o a fugir de R o m a ;
tropas estrangeiras, francesas, p r e p a r a r a m o caminho
de sua volta. Profundamente convencido de que,
d e n t r o d a Igreja, se deve levantar u m a barreira à
invasão das idéias filosóficas e políticas modernas,
aproveitou-sc dc u m a iniciativa de Pecci, então arce-
bispo de Perúgia, — o futuro P a p a Leão X I I I , e
elaborou u m relatório relativo aos erros da época.
O núncio de Viena tinha já submetido em 1851/52
ao arcebispo de Colônia, Geissel, u m Syllabus com
teses semelhantes, convídando-o a m a n d a r seus teó-
logos examiná-lo. O relatório, q u e originariamente
devia ser publicado j u n t o com a Definição da Ima-
culada Conceição (1854), n ã o foi elaborado até essa
data, p o r q u e o cardeal disso encarregado não termi
nara os seus trabalhos. U m a introdução pastoral
publicada em 1860 por Gerbert, bispo de Perpignan
e q u e condenara 85 teses erradas, foi finalmente
por uraa comissão dos cardeais, presidida pelo car
deal Caicriní, utilizada como base d o trabalho p a r a
o Syllabus planejado. Reduziram-na a 61 pontos.
U m a comissão a m p l i a d a redigiu-a d e novo, a 8 de
dezembro de 1864, j u n t o com u m a Encíclica (Quanta
cura), e remeteu-a aos bispos.
O Syllabus condenou sistemas íilosóficos como
o racionalismo e o panteísmo, bem como ideo-
logias sociais, a saber, o comunismo, erros rela-
tivos à moral cristã, principalmente ao casamento,
mas, antes de tudo, condenou erros sobre a Igreja
e suas relações com o Estado. De u m modo geral, o
Syllabus í'oi considerado quase q u e em geral como
u m a recusa da Igreja Católica a aceitar a cultura
moderna e, como tal, foi m u i t o combalido; n a
França, proibiu-se mesmo a sua publicação. De
fato, êle representava u m m o v i m e n t o de defesa.
Mais u m a vez rctirou-se a Igreja para o campo de
sua tarefa mais original, q u e é a conservação d o te-
souro da fé e pôs u m freio à crença no progresso
incoercível e ao otimismo cultural dessa geração,
q u e avançara com precipitação demasiada. Só
poucos, fora da Igreja, compreenderam o que Hein-
rich, teólogo de Mogúncia, predissera como profeta
no congresso Católico d e T r i e r , em 1865: "os medi-
camentos fortificantes são muitas vezes amargos. . .
Somente q u a n d o a h u m a n i d a d e tiver ultrapassado
o século X I X , ela apreciará devidamente como o
remédio fora eficaz e necessário".

Anúncio de um Concilio Ecumênico

Dois dias antes da publicação do Syllabus, a 6


de dezembro de 1864, após u m a reunião da Con-
gregação dos Ritos, o Papa releve os cardeais pre-
sentes e declarou-lhes seu plano "para h v r a r a
Igreja das aflições extraordinárias por meio extraor-
dinário, isto é, por u m concilio". Com efeito, no
maior segredo pediu q u e os 21 cardeais, residentes
em R o m a , se manifestassem sobre a o p o r t u n i d a d e
d e u m concilio ecumênico. A maioria respondeu
" S I M " , dois deles " N Ã O " , seis manifestaram suas
preocupações. O parecer mais detalhado, apresen-
tado pelo cardeal curial alemão, Reisach, funda-
m e n t o u a necessidade de u m concilio, p o r q u e o úl-
timo realizado, o de T r e n t o , n ã o rejeitara expressa-
mente a heresia fundamental dos reformadores, a
saber, a negação de u m a Igreja hierarquicamente
constituída c de sua a u t o r i d a d e docente infalível;
em conseqüência disto, nascera a insegurança dentro
da Igreja. De fato, nos 4 artigos galicanos, formu-
lados por Bossuet, no ano de 1G82, para a r e u n i ã o
do clero francês, tinha sido aprovado o decreto
Sacrossanto de Constança e fora admitida a afir-
mação de que os decretos do P a p a em matéria de fé
são infalíveis, somente e p r i n c i p a l m e n t e após terem
obtido a aprovação da Igreja. N a Alemanha, o bispo
auxiliar de T d e r , H o n t h e i m , sob o pseudônimo de
Febronius, n a sua obra Sobre o estado da Igreja
(1763) defendera o p o n t o de vista de q u e por prin-
cípio o P a p a n ã o dispõe de maior poder do q u e os
bispos, mas seu p r i m a d o é u m primado dc honra.
A Revolução e a secularização enfraqueceram os
representantes das idéias galicanas e episcopais,
p o r é m n ã o conseguiram dominá-las e eliminá-las.
C o n t i n u a v a ainda a ser agudo o problema da Igreja,
discutido e debatido, como u