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N° 18 | Março de 2012 U rdimento

A voz social no contexto escolar: identidade,


subjetividade e diferença1
Raquel Guerra2

Resumo

Este artigo apresenta uma revisão bibliográfica dos


conceitos de identidade, subjetividade e diferença a partir
da perspectiva educacional pós-crítica, com o intuito
de refletir sobre os paradigmas com os quais o professor
se depara no contexto escolar e cogitar de que
maneira a prática teatral pode se relacionar com estas
questões e dar voz social ao estudante.

Palavras-chave: Identidade; subjetividade; teatro na escola.

Resumo

This article presents a review of the concepts of identity,


subjectivity and difference from the post-critical
educational perspective, in order to reflect on the
paradigms that the teacher faces in the school context and
to consider how the theatrical practice can relate to these
social issues and give voice to the student.

Keywords: Identity; Subjectivity; Theatre in the school.

1 Texto revisado da dissertação “O espaço sonoro em processos de drama: a voz e os ruídos na construção
de narrativas teatrais no contexto escolar”, defendida no PPGT/UDESC em 2010.
2 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Teatro da UDESC. Atriz e Arte – educadora, atua em
escolas e projetos de educação sociocultural.

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I – Introdução: a ruptura de paradigmas muito diferentes, parece uma contradição luta contra a hegemonia cultural, esta com- concepções de subjetividade são depen-

A
ou uma impossibilidade.” (SACRISTÁN, preendida como a estruturação de “um dentes de fatores políticos, sociais e cultu-
2001, p. 71-72). aparato cultural que promove o consenso rais”, de modo que “a subjetividade não
pesquisa bibliográfica está de-
através da reprodução e distribuição dos pode ser tomada como algo independente
senvolvida a partir de duas Somos únicos porque somos ‘va- sistemas dominantes de crenças e atitu- das formas de linguagem; pelo contrário,
questões amplas: como o proces- riados’ internamente, porque somos des.” (GIROUX, 1997, p.113). O autor aten- a subjetividade é constituída tanto dentro
so educacional se relaciona com uma combinação irrepetível de con- ta para a ocorrência desta relação de do- quanto por meio do ato da fala”. (EDGAR
a constituição da subjetividade e dições e qualidades diversas, não de
minação/subordinação no meio escolar e E SEDGWICK , 2003, p. 326). Segundo To-
identidade do educando? Quais as conver- todo estáticas, o que nos torna tam-
reforça a necessidade de o educador situar- maz Tadeu (2000), o entendimento con-
gências destes aspectos para a experiência bém diferentes em relação a nós mes-
mos ao longo do tempo e segundo se diante dela ciente de sua existência nas temporâneo para subjetividade e identi-
artística/teatral desenvolvida no contexto
as circunstâncias em mudanças que experiências pedagógicas. dade indica mobilidade e fragmentação,
escolar?
nos afetam. Nas condições sociais e diferenciando-se da concepção humanista
Segundo conceituações contemporâ- As Escolas são lugares sociais cons-
culturais da pós-modernidade, essa do sujeito, que via o indivíduo “constituí-
neas em torno da primeira questão, já não tituídos por um complexo de cultu-
complexidade e instabilidade de cada do de um núcleo autônomo, racional, cons-
é possível pensar os conceitos de identi- pessoa são acentuadas consideravel- ras dominantes e subordinadas, cada ciente e unificado”. (TADEU, 2000, p. 102).
dade e subjetividade como uma parte es- mente, diante da variedade de rela- uma delas caracterizada por seu po-
tável e centrada do sujeito. Tomaz Tadeu ções que estabelecemos em contex- der em definir e legitimar uma visão
As velhas identidades, que por
(2000; 1994) e Stuart Hall (2000; 2001), em tos mutantes. (SACRISTÁN, 2001, específica da realidade. Os professo-
tanto tempo estabilizaram o mun-
abordagens acerca do pós-estruturalismo p. 73-74). res e aqueles interessados em edu-
do social, estão em declínio, fa-
e pós-modernismo3 revelam que o descen- cação devem passar a compreender
zendo surgir novas identidades
O termo diversidade comumente apare- como a cultura dominante funciona
tramento da consciência e do sujeito indi- e fragmentando o indivíduo mo-
em todos os níveis de ensino esco-
ca a instabilidade das próprias estruturas ce associado à noção de identidade pós-mo- derno, até aqui visto como um su-
lar para invalidar as experiências
nas quais os sujeitos contemporâneos estão derna, sobretudo nos escritos do movimento jeito unificado. A assim chamada
culturais das ‘maiorias excluídas’.
constituídos, noutras palavras, o mundo multiculturalista, que considera a diversida- ‘crise da identidade’ é vista como
(...) para os professores isso significa
de como uma “coexistência de diferentes e parte de um processo mais amplo
globalizado imprimiu às sociedades mu- examinar seu próprio capital cultu-
de mudança, que está deslocando
danças constantes e rápidas, ao mesmo variadas formas (étnicas, raciais, de gênero, ral e examinar o modo no qual este
as estruturas e processos centrais
tempo em que as diversidades existentes sexuais) de manifestação da existência huma- beneficia ou prejudica os estudantes.
das sociedades modernas e aba-
entre as sociedades e dentro delas foram na, as quais não podem ser hierarquizadas (GIROUX, 1997, p. 38).
lando os quadros de referência que
expostas. A respeito da segunda questão, é por nenhum critério absoluto ou essencial” davam aos indivíduos uma anco-
pertinente considerar que “o ensino do te- (TADEU, 2000, p.44). Nesse caso, a diversi- Consoante o pensamento destes auto- ragem estável no mundo social.
atro, na escola e na comunidade, reflete as dade está entendida como uma caracterís- res, o texto expõe algumas definições para (HALL, 2001, p. 7)
formas teatrais contemporâneas ao mesmo tica da sociedade contemporânea. O autor os conceitos de identidade e subjetividade
tempo em que responde aos avanços das te- ressalta, porém, que o termo pode perder que expressam conexões com as experiên- Consoante Tadeu (2000, p. 100), as crí-
orias da educação.” (CABRAL, 2009, p.39). relevância teórica em função da ideia que cias pedagógicas na escola e que implicam ticas pós-moderna e pós-estruturalista efe-
Neste sentido, o texto apresenta o pensa- “a diversidade está dada, que ela preexiste uma atitude auto reflexiva do professor tuam um duplo descentramento do sujeito
mento da teoria educacional pós-crítica na aos meios sociais pelos quais – numa outra sobre sua própria prática e as relações que cartesiano: primeiro, o homem não ocupa
intenção de confrontá-lo com o ensino do perspectiva – ela foi, antes de qualquer coisa, nela se estabelecem, muitas vezes, de forma mais a posição de centro do universo, já que
teatro na escola. criada” (TADEU, 2000, p. 44). Desse modo, silenciosa. Nesse sentido, as colocações te- este lugar foi cedido à sociedade, à lingua-
Ao discorrer sobre a diversidade cul- sugere a utilização do conceito de diferença, óricas são referentes ao papel do professor gem e à história; segundo, a subjetividade
tural no contexto da escola obrigatória e da “por enfatizar o processo social de produção em geral, mas o contexto deve ser lido tam- perde seu sentido enquanto uma proprie-
educação em tempo de globalização, Gime- da diferença e da identidade em suas cone- bém, e principalmente, considerando-se o dade que pertence ao sujeito e passa a ser
no Sacristán (2001) destaca um dos desafios xões, sobretudo, com relações de poder e au- professor de teatro. vista como resultante de processos incons-
educacionais contemporâneos: como abor- toridade.” (TADEU, 2000, p. 45). Portanto, a cientes que o interpelam. A racionalidade e
dar a diversidade quando o processo de diversidade cultural não deve ser compreen- a consciência de ‘si’ mesmo já não tem lu-
II- Identidade, subjetividade e diferença
escolarização se apresenta rígido quanto às dida como um fenômeno social dado, estáti- gar na teoria educacional pós-crítica, posto
normas igualadoras, ou seja, “uma escola co- co, mas sim, deve estar associada ao processo que o ‘si’ mesmo, o self, não é propriedade
mum que satisfaça o ideal de uma educação social de formação da identidade, posto que A subjetividade, para Edgar e Sedgwi- ou domínio do sujeito, mas resultante de
igual para todos [...] na paisagem social das este seja atrelado às questões de diferença. ck (2003, p. 326), pode ser entendida como suas relações socioculturais. “O Self é so-
sociedades modernas, acolhendo sujeitos Para Henry Giroux (1997), a diver- “a propriedade de ser sujeito”, todavia, tal cialmente ‘construído’, no sentido de ser
sidade cultural nos processos educacionais propriedade não é dada e sim “constituída moldado através de interação com outras
3 Sobre os termos e sua relação com campo educacional, ver TADEU (1994;
deve ser valorizada como uma forma de por formas e relações sociais”, ou seja, “as pessoas e por utilizar materiais sociais sob
2000) e GIROUX (1999).

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a forma de imagens e ideias culturais. [...] (HALL, 2000, p.109).  matográficos, de personagens e modos aula  que seja uma experiência que dá voz ao
o indivíduo não é um participante passivo A educação não pode ser uma ten- de interpretação, poderia ser vista como estudante, por isso, o educador deve atentar
desse processo, e pode exercer uma influ- tativa de homogeneizar, pois as diferen- uma forma de hegemonia cultural? Qual para as formas pelas quais as subjetividades
ência muito forte sobre a maneira como o ças podem interagir umas com as outras o papel do professor de teatro diante são construídas e legitimadas, como a experi-
processo e suas consequências se desen- e o conflito oriundo delas não pode ser desta situação? Longe de esgotar as pos- ência dentro da escola é moldada, como cer-
volvem.” (EDGAR e SEDGWICK, 2003, p. ignorado. A problemática do processo sibilidades de respostas a estas questões tos aparatos de poder legitimam uma versão
204). Sacristán (2001), ao discutir sobre es- de escolarização, presente em Giroux amplas, a citação abaixo aponta para particular do conhecimento como verdade
tas relações que marcam o indivíduo e que (1997) e em Sacristán (2002), é o contras- possíveis pontos a partir dos quais tais (GIROUX, 1997, p.31).
se formam no processo de escolarização, te oriundo de uma cultura dominante e a questões possam ser [re]pensadas. O ensino de Teatro na Escola, quan-
reflete acerca do conceito de identidade e diversidade de manifestações que fazem do reproduzido segundo as “inúmeras
acrescenta que: obstáculos a ela – tal oposição é defini- Quer se fale de jogo dramáti- visões preconcebidas que reduzem a ati-
da como resistência4 por Henry Giroux. co, jogo teatral ou drama, não
vidade artística na escola a um verniz de
A partir de um ponto de vista pós- Noutras palavras, a escola é um espaço há como deixar de reconhecer o
papel central das interações do superfície, que visa as comemorações de
moderno, a identidade não é algo de convívio sociocultural que produz datas cívicas” (PCN/ARTES, 1997, p.31)
fazer teatral com outras áreas
unificado, definitivo e fixado de uma uma infinidade de narrativas, estas au- não seria uma forma de inibir a voz social
de conhecimento. Processos de
vez por todas, mas sim algo em cons- torizam/aprovam uma série de atitudes montagem, criação coletiva, in- do aluno? Nesse sentido, a reflexão sobre
tante transformação, de sorte que o e valores culturais ao mesmo tempo de- vestigações cênicas, interagem o ‘como ensinar’ o teatro na escola é tão
sujeito assume diferentes identidades saprovam e recriminam outros. Conso- com temáticas, ideias, imagens. indispensável de ser revisto e repensado
em momentos e lugares distintos. Se
ante Henry Giroux (1999), a noção de Seu diretor/professor media as como ‘o que ensinar’ ou ‘que técnica usar’.
o sujeito se crê dotado de uma iden-
diferença pode ser explorada através de interações entre os participantes,
Nessa reflexão, os Parâmetros Curricula-
tidade determinada não é porque a
uma pedagogia que dê voz ao aluno e e destes com o espaço, o tempo,
possua. Mas sim consequência da
a cena, o contexto da ficção. É res Nacionais indicam que o professor de
narração de sua vida que se repre- não reduza o comportamento humano
a partir desta constatação que se artes deve ser visto como um observa-
senta diante de si. Essa forma de en- a padrões determinantes nem legitime
deve pensar no papel do profes- dor das questões de interesse dos alunos,
tender a identidade é coerente com apenas um modo de ser. “A noção da
sor. O cruzamento de áreas e su- como um criador das situações de apren-
o tipo de sociedade em mudança na diferença tem desempenhado um papel báreas do conhecimento no fazer dizagem do conhecimento arte. Segundo
pós-modernidade. (SACRISTÁN, ‘importante em tornar visível como o teatral, aponta para a interdisci-
2001, p.44) Fusari e Ferraz (1993, p. 53) o professor
poder é inscrito de maneiras diferentes plinaridade. A heterogeneidade que ministra uma disciplina de artes não
em e entre as zonas de cultura, como as do grupo indica uma abordagem
Diante das definições que cercam es- deve apenas saber o que é ou como fazer
fronteiras culturais suscitam questões intercultural. Entretanto, o pro-
tes conceitos, como pensar a identidade e fessor de teatro, por um lado, é arte, ele também precisa ‘saber ser pro-
importantes com respeito às relações de
a subjetividade que se deixa evidenciar na pressionado a decorar e animar fessor de arte’ e compreender as particu-
desigualdade, luta e história, e como as
sala de aula? Seria possível identificar estas diferenças são expressas de maneiras as datas comemorativas, por ou- laridades que o processo de aprendiza-
questões na prática teatral? Sacristán (2001) múltiplas e contraditórias dentro dos in-
tro lado, vê seu espaço de atuação gem criativa em um grupo demanda: “O
reflete sobre as relações que, no interior es- ser considerado descartável (...). professor de arte precisa saber o alcance
divíduos e entre grupos diferentes.” (GI- A complexidade deste quadro,
colar dão suporte a essa representação de si ROUX, 1999, p.197). de sua ação profissional, ou seja, saber
que persiste nos dias atuais, re-
e de uma suposta identidade fixa do sujeito: Diante deste contexto teórico, lanço que pode concorrer para que seus alunos
quer uma reflexão sobre a postu-
o menino ‘lento’ passa a crer que é pouco in- algumas perguntas: poderia o teatro na ra, atitudes e ações do professor
também elaborem uma cultura estética e
teligente, que não é capaz. A escola (colegas escola, com sua poética subversiva, ser no campo da escola. (CABRAL, artística que expresse com clareza a sua
e professores) reforça esta característica que pensado como resistência? A variedade 2008, p.43). vida na sociedade.” (FUSARI E FERRAZ,
lhe é atribuída. Mas será que essa é realmen- de práticas teatrais e suas poéticas po- 1993, p. 53). A prática na sala de aula, a
te a sua identidade?  Será que ela não tem dem contribuir como resistência a uma No pensamento de Giroux (1999; 1997), forma como a experiência pedagógica
voz ou não tem uma escuta que reconheça possível hegemonia cultural? A constan- a experiência pedagógica na escola está asso- é moldada e as posições e papéis que o
essa voz com suas particularidades, diferen- te reprodução, durante as improvisações ciada à prática do professor como um Intelec- professor assume são poderosos vetores
ças e peculiaridades culturais? Nesse caso, teatrais com alunos de ensino funda- tual Transformador5 que, para o autor, refere-se na legitimação das experiências subjeti-
compreende-se a identidade através das mental, dos modelos televisivos e cine- à construção de uma pedagogia em sala de vas dos alunos no cotidiano escolar, seja
inter-relações com os locais históricos e ins- ela uma forma de emancipação ou repro-
4 O conceito de resistência desenvolveu-se na teoria educacional crítica em
titucionais que as produzem “e são, assim, contraste às teorias da reprodução e à ideia da passividade da ação humana 5 A noção de Intelectual Transformador (educadores e pesquisadores dução de um capital dominante. Por isso,
mais o produto da marcação da diferença e diante das forças sociais opressoras. “Mais recentemente, algumas análises educacionais) de Henry Giroux (1997) está associada a uma série de o teatro como disciplina do conhecimen-
têm-se voltado para a concepção de resistência oferecida por Michel Foucault, considerações em torno de uma Política Educacional que reavalie a
da exclusão do que o signo de uma unidade para quem o poder implica, sempre, resistência”(Tadeu, 2000, p. 98). Esta é, participação do professor em diversas esferas, desde a elaboração de to escolar também necessita refletir tais
idêntica, naturalmente constituída, de uma particularmente, a análise de Giroux, que se apoia nas noções foucaultianas
do contradiscurso e do poder como força positiva para pensar o conceito
currículo e normativas às práticas em sala de aula. Em minha pesquisa, detive-
me às considerações do autor sobre o Intelectual Transformador e sua
questões em sua prática pedagógica.
identidade em seu significado tradicional” de resistência na escola. relação com a experiência pedagógica. Segundo Gadotti (1998, p.192), a teo-

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ria de Giroux não se limita à constatação de cada aluno na sala de aula? Henry Gi- auto reflexividade.” (TADEU, 1994, p. 252). que pode ocorrer aprendizagem se na ver-
de que a escola é um órgão institucional roux (1997) analisa, a partir da teoria da Nesse contexto, quais as condições que o dade ela silencia as vozes das pessoas que
que apenas reproduz a sociedade domi- reprodução, as formas pelas quais as esco- professor de teatro encontra na escola para pretende ensinar? E a resposta é: sim. As
nante, pois ele toma “os conceitos de con- las transmitem, reproduzem e legitimam a reflexão de sua própria ação pedagógica? pessoas aprendem que elas não importam”.
flito e resistência como ponto de partida a cultura dominante. O Capital Cultural6, Infelizmente, Trago um caso discutido junto ao gru-
para suas análises” para compreender as segundo a teoria da reprodução de Pierre po de estudos7 que pode exemplificar esta
relações entre escolarização e sociedade Bourdieu, refere-se aos bens culturais que “o ensino do teatro (e a escola em exposição. Em um processo de Drama de-
dominante e evidenciar que, mesmo não são fornecidos como o capital material, geral) padece com a falta de inves- senvolvido por Beatriz Cabral, com alunos
fazendo parte de uma ‘cultura domi- mas que se referem a valores, estilos, prá- timento em formação continuada e de um colégio municipal de Florianópolis,
atualização do professor. Com sobre-
nante’ e, portanto institucionalizada, as ticas de linguagens, etc. Conforme Gadot- há alguns anos, havia um menino maior
carga de turmas e uma disciplina que
expressões culturais diferentes, ou seja, ti (1998, p. 195), o ponto de partida para a que os demais da classe. Não apenas seu
envolve movimento, som, reformu-
aquelas que não fazem parte do rol de análise de Bourdieu está na relação entre lação do espaço disponível e trabalho tamanho, mas também seu comportamen-
‘manifestações da cultura dominante’, os sistemas social e escolar. No entanto, em grupos, o professor de teatro aca- to agitado e o fato de ter reprovado algu-
elas também têm voz. No âmbito destas não é a mera diferenciação de classe que ba reproduzindo uma relação ensino- mas vezes, faziam com que tal aluno fosse
colocações, visualizo o processo artístico irá definir o sucesso ou o fracasso escolar aprendizagem que vai gradualmente constantemente tido como ‘problema’, o
na escola como uma prática pedagógica dos indivíduos, mas sim sua relação com estabelecendo uma rotina e se afas- aluno ‘reprovado’. No trabalho prático ele
que gera um espaço para estas diversas a herança cultural: “a cultura das classes tando da reflexão teórica e prática.” apresentou seu comportamento habitual
vozes. Gimeno Sacristán (2001) acentua superiores estaria tão próxima da cultura (CABRAL, 2008, p.43). em sala de aula: agitação, desordem, con-
que “as práticas educativas – sejam as da da escola que a criança originária de um versas para chamar a atenção, entre outras
família, as das escolas ou as de qualquer meio social inferior não poderia adquirir III - Experiência pedagógica ações. Então lhe foi proposto outro papel:
outro agente – enfrentam a diversidade senão a formação cultural que é dada aos e processo artístico ele ganhou uma função importante, que
como um dado da realidade.” (SACRIS- filhos da classe culta. Portanto, para uns, nenhum outro aluno possuía, adquirindo
TÁN, 2001, p.75). Esta diversidade cul- a aprendizagem da cultura escolar é uma uma função de status e responsabilidade
tural, no processo da escolarização, não conquista duramente obtida; para outros é No tocante ao ‘dar a voz’ ao aluno, a frente aos demais. Ao fim do processo, o
pode ser homogeneizada por uma norma uma herança ‘normal’, que inclui a repro- sua expressão e presença no processo artís- aluno surpreende: participa com envolvi-
padrão. dução das normas. O caminho a percorrer tico podem indicar que o aluno assume um mento e escreve um texto sobre a atividade
é diferente, conforme a classe de origem.” lugar, um espaço. Talvez possa dizer que com muito empenho – o que veio a sur-
Na vida social, governada por (GADOTTI, 1998, p.195). seu envolvimento no fazer artístico revele preender os profissionais da escola. Cer-
procedimentos democráticos, a Diante da hegemonia cultural que ten- inclusive uma forma de estar se posicio- tamente, com esta descrição não pretendo
diversidade social, de opiniões de a igualar os sujeitos, uma alternativa nando diante do mundo, na proporção que concluir que o processo artístico modificou
quanto a modelos de vida, etc. tal fazer revela suas concepções de mundo,
elencada por Giroux (1997) está na cons- o comportamento do aluno, seria reducio-
é abordada com a prática da to- suas referências, seu capital cultural. No en-
tante reflexão que o educador deve ter nista demais, porém, é possível dizer que
lerância, da aceitação de normas
sobre si e suas experiências pedagógicas. tanto, a participação do aluno no processo o processo artístico permitiu uma variação
compartilhadas que obrigam os
indivíduos a algumas renúncias, Tomaz Tadeu (1994, p. 251), ao analisar o artístico será garantia que ele ‘tenha voz’ no comportamento habitual do aluno.
respeitando espaços para a ex- papel do professor, reforça que “é sua pró- no processo educacional? Não! O processo Este relato não descreve a mudança
pressão e cultivo das individua- pria relação com os estudantes que deve artístico como qualquer outra experiência de comportamento do aluno em si, mas o
lidades singulares. A escola, cuja ser mantida constantemente em xeque, pedagógica pode revelar-se ‘normatizante’ sentido de ‘dar voz’ ao aluno. O exemplo
estruturação é anterior à aceitação tendo em vista seu possível envolvimen- e longe de valorizar as diferenças existentes pode analisar duas coisas: a primeira é o
do modelo democrático, elegeu o to em processos de regulação e controle”. no interior de uma classe de alunos. Quer fato de que muitas vezes se atribui uma
caminho da submissão do dife- Nesse caso, o professor enquanto um inte- dizer, a participação e expressão artística característica fixa a um aluno e toma-se
rente à norma homogeneizadora. do aluno/ator não indicam ou garantem ao
lectual, “não se reconhece tanto pelo grau isso como parte de sua identidade, ou
(SACRISTÁN, 2001, p. 76).
de sua crítica em relação às posições de po- educador ‘dar voz social’ ao aluno. É nes- seja, ‘ele é assim mesmo’. Outra questão é
der e dos outros quanto pelo grau de sua se sentido que a citação anterior de Tomaz a inversão deste contexto no processo ar-
A voz do aluno diante deste contex- Tadeu (1994) está inserida: a necessidade de tístico e, talvez aí resida o poder do teatro
to representa, ou pode representar a di- o educador, no caso o professor de teatro na constituição subjetiva e de formação
versidade, a peculiaridade e particula- 6 Na teoria de Bourdieu, associados ao conceito de capital cultural, estão o
na escola, produzir uma autorreflexão de
capital simbólico e o capital social. Segundo definições de Tomaz Tadeu do aluno. Ou seja, o professor quando
ridade de opiniões, crenças, modelos de (2000, p. 24-25): “O capital cultural pode se apresentar de forma objetivada seu trabalho é o que lhe confere a condição capaz de refletir e identificar as relações
vida, etc. jamais uma norma padrão. Será (objetos culturais como obras de arte, livros, discos); institucionalizada
de ‘intelectual transformador’. Questionado
(títulos, certificados e diplomas); ou incorporada (disposições e capacidade de poder, subordinação e exclusão que se
o processo artístico capaz de dar vazão a culturais internalizadas)”; o capital simbólico é “a autoridade, a legitimidade
quanto à aprendizagem que ‘cala’ as vozes
e o prestígio sociais conferidos ao agente possuidor de capital econômico,
essa variedade? Que voz do estudante é social ou cultural”. E o capital social “refere-se às conexões sociais – redes dos alunos, que não ‘dá voz’, Giroux (1999, 7
essa? Uma voz institucionalizada? A voz de amizade, parentesco, influência e troca de favores – através dos quais as
p. 25) posiciona-se da seguinte forma: “Será
Grupo de Estudos Pedagogia do Teatro e Teatro como
classes sociais dominantes garantem suas posições de dominação”. Pedagogia DAC/UFSC e UDESC, 2007/2008.

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estabelecem na sala de aula pode propor a lentidão, escutar aos outros, culti- REFERENCIAL
atitudes/papéis/enquadramentos que var a arte do encontro, calar muito,
possam romper ou gerar um conflito nes- ter paciência e dar-se tempo e espa-
ço. (BONDÍA, 2001, p.24). BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais/Artes. Brasília: MEC,
tas ‘identificações marcadas’, posto que o 1997.
próprio conceito de identidade já não é
mais visto como algo unificado. O sujeito desta experiência é definido BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira
A ênfase no engajamento do pro- segundo sua passividade, disponibilidade de Educação. n. 19, p. 20-28, Jan/Fev/Mar/Abr, 2002.
fessor em questões de ordem cultural e e abertura ao acontecimento da experiên- CABRAL, Biange. O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos históricos. (39- 48).
social é indispensável para a escola, ou cia. Contudo, Jorge Larrosa Bondía (2002, URDIMENTO, Revista do Programa de Pós-Graduação em Teatro/UDESC. 2009.
seja, o educador não pode ignorar como p. 25) destaca que tal passividade não é EDGAR, Andrew; SEDGWICK, Peter. Teoria social de A a Z. São Paulo: [s. n.], 2003.
essas questões dão condições a alguns e contrária ao sujeito ativo, mas anterior à FUSARI, Maria de Rezende; FERRAZ, Maria Heloísa. A arte na educação escolar. São Paulo:
excluem outros no processo educacional. própria oposição passividade-atividade. Ed. Cortez, 1993.
Moacyr Gadotti (1998) posiciona-se da se- Trata-se, portanto, de uma passividade que
GADOTTI, Moacyr. História das Ideias Pedagógicas. São Paulo: Ática, 1998.
guinte maneira: concerne à paciência, atenção e disponibili-
dade à experiência. Na experiência teatral GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em educa-
na escola, é necessário que o professor seja ção. Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
Dadas as diferenças em formação
e informação que a criança recebe, capaz de colocar-se também como sujeito _____________ Os professores como intelectuais: rumo a uma nova pedagogia crítica da aprendi-
conforme sua posição na hierar- desta experiência, para que possa construir zagem. Tradução de Daniel Bueno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
quia social, ela traz um determina- um saber junto aos seus alunos, e isto po- HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
do ‘capital cultural’ para a escola. derá ser possível, mediante sua capacidade _____________ Quem precisa de Identidade? Artigo in Identidade e diferença, org. Tomaz
Já que na escola a cultura burguesa de olhar para seu papel e função dentro da
constitui a norma, para as crianças Tadeu da Silva. Petrópolis: Vozes, 2000.
escola e as possibilidades de o teatro existir
das classes dominantes a escola SACRISTÁN, Gimeno. A Educação obrigatória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001.
dentro dela como uma experiência.
pode significar continuidade, en- ___________ Educar e conviver na cultura global. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.
quanto que para os filhos da classe
dominada a aprendizagem se torna TADEU, Tomaz. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autên-
uma verdadeira conquista. (GA- tica, 2000.
DOTTI, 1998, p. 189) _______________ (org) O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994.

Estas relações, estabelecidas no interior


da vida escolar, reforçam a importância de
reavaliar a experiência pedagógica, local e
particular ao grupo de indivíduos que par-
ticipam na construção de um saber, o sa-
ber da experiência, conforme Jorge Larrosa
Bondía (2001):

A experiência, a possibilidade de
que algo nos aconteça ou nos toque,
requer um gesto de interrupção, um
gesto que é quase impossível nos
tempos que correm: requer parar
para pensar, parar para olhar, parar
para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais
devagar; parar para sentir, sentir
mais devagar, demorar-se nos deta-
lhes, suspender a opinião, suspen-
der o juízo, suspender a vontade,
suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza,
abrir os olhos e os ouvidos, falar
sobre o que nos acontece, aprender

100 Raquel Guerra A voz social no contexto escolar: identidade, subjetividade e diferença 101

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