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A pesquisa sobre a formação de professores como

metaformação

Alba Lúcia Gonçalves

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GONÇALVES, A. L. A pesquisa sobre a formação de professores como metaformação. In:


MORORÓ, L. P., COUTO, M. E. S., and ASSIS, R. A. M., orgs. Notas teórico-metodológicas de
pesquisas em educação: concepções e trajetórias [online]. Ilhéus, BA: EDITUS, 2017, pp. 75-100.
ISBN: 978-85-7455-493-8. Available from: doi: 10.7476/9788574554938.004. Also available in
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A PESQUISA SOBRE A FORMAÇÃO
DE PROFESSORES COMO
METAFORMAÇÃO
Alba Lúcia Gonçalves1

“Pesquisar a formação de professores em atuação é


pesquisar a minha própria formação.”

Aproximadamente por seis anos, trabalhei em um programa es-


pecial para a formação de professores em atuação denominado “Curso
de Formação de Professores para a Educação Infantil e Anos Iniciais do
Ensino Fundamental – PROAÇÃO”, desenvolvido pela Universidade
Estadual de Santa Cruz (UESC). Nesse período, convivi de maneira
muito intensa com os alunos e o seu processo formativo e, nessa cami-
nhada, cada vez mais, fui sendo implicada com/e nesse movimento.
Na minha trajetória como professora formadora, não de futuros
docentes, mas sim de professores que já estavam no exercício do traba-
lho docente, algumas inquietações foram se fazendo presentes no meu
dia a dia, a tal ponto que, posso afirmar, minha formação acadêmica
também foi se refinando e assumindo um caráter formativo-implicado
com a formação do outro e com a minha própria formação. Na con-
vivência com esses professores-alunos2, me percebi, e lançando mão
das lembranças, fui refazendo os caminhos trilhados durante a minha

1 Professora Adjunta da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC


2 Nesse texto denominamos de professor-aluno os professores da Educação Básica que
assumem o papel de aluno no Curso de Formação Inicial de Professores em Exercício
(N.A.).

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própria formação. Nossas histórias, a minha e a deles, apesar de terem
começado em épocas diferentes, traziam marcas bem semelhantes. As
questões, as dúvidas e as certezas presentes no trabalho com esses pro-
fessores foram construídas na transformação da vivência em experiên-
cia, pois ao estabelecer uma relação de alteridade com as suas histórias,
fui alterando meu olhar a respeito tanto da própria formação como
também dos sujeitos da formação, refazendo minhas trilhas formativas.
Imersa nessas reflexões, decidi investigar a formação de pro-
fessores. Para isto, tomei como objeto de análise a experiência vivida
por esses professores-alunos durante o curso, buscando, através do
diálogo, construir uma compreensão mais aprofundada a respeito da
formação de professores. Eu faço, portanto, parte do contexto da
pesquisa aqui relatada. Tenho e assumo minhas implicações enquan-
to escolha e vontade política para instituir, por meio dessa pesquisa, o
debate acerca da formação, trazendo ao cenário aqueles que viveram
a experiência formativa possível no/e durante o curso pesquisado.
Entendo que a interpretação que construí através dessa pes-
quisa foi mas uma compreensão a respeito do fenômeno estudado,
mas afirmo e assumo que essa é uma compreensão. O meu com-
promisso, portanto, passou a ser o de apresentar um ponto de vista
a mais a respeito da temática.
Após decidir o objeto a ser investigado, alguns cuidados preci-
savam ser tomados. Um deles era o de não cair na “sobreimplicação”
que, segundo Macedo (2012), favorece o ativismo e, às vezes, a mili-
tância cega e digressiva que no fazer da pesquisa leva para caminhos
que significam “não-pesquisa”. Busquei, então, cotidianamente, um
certo distanciamento, colocando minhas implicações em questão
para, assim, chegar à reflexão necessária que possibilitasse a aproxi-
mação da essência da pesquisa. Neste sentido, fez-se necessária uma
discussão teórica com autores que têm desenvolvido estudos acerca
da formação, de um modo geral, e da formação de professores em
atuação profissional, de maneira específica, para, então, entender o
lugar dessas pesquisas e suas relações com a produção do conheci-
mento a respeito dos professores da Educação Básica.

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Como centrei a pesquisa empírica no entendimento do lugar
das experiências individuais e coletivas dos sujeitos nos processos
formativos vivenciados no PROAÇÃO, senti que precisava explici-
tar melhor os conceitos de “formação” e de “experiência”.
Para delimitar o conceito de experiência, inicialmente tomei
Larrosa (2002) e Walter Benjamin (1994) como referenciais. O pri-
meiro autor tornou-se importante para a pesquisa, pois afirma ser
a experiência aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos
toca, não o que se passa, não o que acontece, ou o que se toca. Da
mesma forma, Walter Benjamin (1994) observa a pobreza de expe-
riências que caracteriza o nosso mundo, onde se passaram e passam
tantas coisas, sendo elas cada vez mais raras.
A partir dessas perspectivas, experiência e informação se
distinguem como coisas diferentes e, às vezes, até mesmo opos-
tas. O excesso de informação, por exemplo, pode acabar por não
deixar lugar para a experiência, tornando-se, portanto, quase que
o contrário da experiência, quase uma antiexperiência. Por outro
lado, a experiência, para tornar-se um elemento importante tan-
to na formação pessoal quanto na profissional do sujeito, precisa
ser refletida, tensionada, explicitada, e a falta de informação pode
comprometer esse debate e essa reflexão. O desafio é trazer infor-
mações que se constituam dispositivos necessários ao debate da/e
na experiência para que essa seja formativa.
Sob essa ótica, a formação terá que ser crítica/intercrítica, pois,
nesse movimento formativo, a crítica não se reduz a uma postura
que busca enxergar as “impurezas” de tal realidade, para, a partir daí,
estabelecer verdades a seu respeito. Uma postura formativa será sem-
pre um movimento intercrítico, conforme já explicitado por Macedo
(2010), que busca se aproximar das compreensões que foram ou são
possíveis de serem construídas naquele contexto, espaço, cenário e,
neste movimento interpretativo, vão-se construindo as compreensões
necessárias e possíveis. No caso específico da formação de professo-
res, terão que ser asseguradas as condições necessárias para que eles
sejam capazes de fazer a crítica numa postura intercrítica, isto é, se

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responsabilizando pelo seu próprio processo construtivo em relação
ao outro, ao saber, à formação. A revalorização e a redescoberta do
potencial formativo das situações de trabalho podem, assim, propi-
ciar tanto a produção de estratégias, dispositivos e práticas de forma-
ção que valorizem fortemente a aprendizagem, pela via experiencial,
quanto o entendimento do papel central de cada sujeito num proces-
so de autoconstrução como pessoa e como profissional.
A pesquisa realizada, portanto, não se constituiu em uma
comparação entre o anunciado, proposto pelo curso, e o vivido,
mas sim em um estudo interpretativo das ações tomadas pelos
professores-alunos para instituir os seus processos formativos no
referido curso. Sendo assim, teve como movimentos centrais: 1)
a compreensão, por parte dos professores-alunos do PROAÇÃO,
das aprendizagens adquiridas por eles no curso; 2) a relação dessas
aprendizagens com o processo formativo vivido por esses atores so-
ciais no curso; 3) o lugar ocupado por suas experiências individu-
ais e coletivas nos “atos de currículo” (MACEDO,2013) do curso,
ficando clara a necessidade de aproximação da experiência desses
atores para entender suas aprendizagens.
A partir desses movimentos, fez-se necessário o levantamento
de algumas questões: as experiências são, realmente, contempla-
das no currículo do curso? Qual tem sido o debate formativo acer-
ca dessas experiências? Quais são os debates acerca do mundo do
trabalho desses sujeitos e seus espaços formativos nas itinerâncias
de suas vidas profissionais? Movida por essas inquietações, senti
a necessidade de compreender a proposta do curso, no sentido de
identificar as possibilidades de gerar, para esses professores(as) que
estão na posição de alunos(as), e, portanto, inseridos no mundo do
trabalho, novas necessidades de aprendizagens.
Outras questões que me inquietaram dizem respeito à com-
preensão que esses professores-alunos tinham das aprendizagens
adquiridas por eles no curso, e que relação estabeleciam entre elas e
o trabalho pedagógico desenvolvido, tanto na sala de aula como na
escola. Como professora do curso já havia observado que o mesmo

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provocava algumas mudanças nos professores-alunos. Essas mu-
danças, tal como foram explicitadas na tese de doutorado de Mo-
roró (2005), consistiram em melhorar a autoestima do sujeito, sua
relação com o estudo e em transformações na forma de condução
do ensino. Entretanto, que outras mudanças foram provocadas?
Nesse esforço de compreensão do vivido, um movimento re-
levante foi o da reflexão refinada e crítica por parte desses professo-
res-alunos, tanto no nível individual quanto no coletivo, sobre a sua
formação. Entendendo-a como “um acontecimento encarnado, impli-
cado e relevante” (MACEDO, 2010, p. 30), desde o início da pesquisa
uma necessidade imposta foi a de captar como os professores-alunos
avaliavam a sua própria formação (metaformação)3 e como relaciona-
vam sua formação com o mundo do trabalho docente (entrecurrícu-
lo)4. Meu desafio, agora, como pesquisadora, era o de me aproximar
da experiência desses atores para entender suas aprendizagens através
da escuta sensível de questões que, ao longo da pesquisa, foram se apre-
sentando como significativas para o seu processo formativo.
Outra decisão inevitável foi em relação à metodologia de pesqui-
sa a ser utilizada. Dentre os vários caminhos possíveis, a opção se deu a
partir da própria concepção de pesquisa, que, nesse caso, não poderia
considerar os atores sociais como meros fornecedores de informações
e sim como protagonistas do vivido e realizado em seus processos for-
mativos, sendo, portanto, coautores, os instituintes ordinários de suas
realidades (MACEDO, 2012). Isso fez com que, desde o início da pes-
quisa, apresentasse as minhas inquietações ao grupo e, conjuntamente,
definisse o olhar a respeito do caminho a seguir.
A etnometodologia se constituiu, então, como metodologia
eleita para o desenvolvimento da pesquisa. Isso por ser ela uma
teoria voltada para compreensão da ordem social a partir da

3 Compreensão que os atores sociais vão construindo em seus percursos a respeito da


sua própria formação (N.A.).
4 São conhecimentos tidos como não oficiais, institucionais, mas, que estão presentes a
partir das itinerâncias de formação descritos pelos sujeitos em formação (N.A.).

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valorização das ações cotidianas, coerente, portanto, com o meu
desejo de compreender o processo de formação desses protagonistas
por meio da escuta sensível de seus relatos.
Desta forma, o trabalho com entrevistas individuais se cons-
tituiu em um espaço narrativo de suas percepções e implicações, e
o grupo focal em lócus como o espaço de debate acerca dessas per-
cepções. Pretendo, assim, chegar a uma reflexão coletiva acerca do
vivido e de suas marcas individuais e coletivas na formação desses
homens e mulheres, professores da Educação Básica.
Como o objetivo desse texto é o de favorecer a compreensão
de como se deu a organização desse estudo, isto é, o próprio desen-
volvimento da pesquisa, sua metodologia e os processos de coleta
de informações realizados, bem como os procedimentos adotados
na organização e análise dessas informações, não detalharemos os
resultados da pesquisa, mas sim o seu processo de construção.

1 Ciência e pesquisa: minhas opções

As conversas mexeram comigo, comecei a reviver


alguns momentos e perceber como eles foram im-
portantes pra mim; o engraçado era que eu não
achava que você estivesse me fazendo perguntas
para depois analisar minhas respostas. Era um
papo... um diálogo entre eu, você e o curso. De-
pois vieram as reuniões em grupo. Encontrar meus
colegas e reviver juntos aqueles momentos foi de-
mais. Eu no início me perguntava sobre o que va-
mos conversar, já falei tudo. Mas, a cada reunião,
eu saía em parafuso. Continuava pensando nas
discussões, nas falas das colegas; elas traziam in-
formações que eu nunca tinha parado para pensar.
Isso foi forte (Professora-aluna Magda).

Buscando delimitar a minha postura teórico-metodológica de


investigação, parti de alguns pressupostos sobre os quais enxerguei

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a pesquisa qualitativa ancorada nos princípios da etnometodologia
como sendo a postura teórica que melhor se adequa ao objeto de es-
tudo que investigo, pois, esse, ao mesmo tempo em que está inserido
em uma realidade histórica e multirreferenciada, também consiste em
“uma interpretação singular” dessa mesma realidade, deixando à mos-
tra essa natureza multirreferenciada da realidade e as suas contradições.
Apoiada nos estudos de Macedo (2006), concordo com a sua
defesa da etnometodologia enquanto orientação teórica fundante.
Desta forma, minha opção pela etnometodologia se deu por acre-
ditar que este procedimento nos possibilitaria uma melhor com-
preensão do processo formativo dos professores-alunos, haja vista
o trabalho voltado para os microcontextos de formação vividos por
eles no interior do curso, por meio das aulas dos professores, das
reuniões de estudos, das atividades de formação em serviço, en-
tre outras vivências ocorridas no cotidiano dos estudos, como as
conversas com os autores estudados, com os docentes e, entre eles,
como forma de apreender o que se passa nos “entrelugares” do dia
a dia da formação desses professores-alunos.
Estudos apontam que a teoria da etnometodologia surgiu
como uma corrente da sociologia americana nos anos 1960, nos
Estados Unidos, e, posteriormente, difundiu-se pela Europa, parti-
cularmente nas universidades inglesas e alemãs. A obra de Harold
Garfinkel, Stuties in Ethnomethodolgy (1967), é considerada o mar-
co inicial desta corrente. Essa publicação provocou discussões e re-
viravoltas acadêmicas tanto na América do Norte como na Europa,
pois rompeu efetivamente com a sociologia tradicional. Neste texto,
o autor revela que, ao deixar a Universidade de Ohio em 1954, havia
trabalhado na análise das fitas gravadas durante as deliberações de
um tribunal do júri, e que, dessa forma, ele pôde descrever os proce-
dimentos adotados pelos jurados em seus etnométodos. No dizer de
Macedo (2009), estas maneiras de ser, as formas e os jeitos como os
atores sociais compreendem, mobilizam e implementam suas ações,
interpretando-as e descrevendo-as para todos os fins práticos, é que
fundamentam o estudo da etnometodologia.

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Posso afirmar que a etnometodologia se fundamenta no es-
tudo do raciocínio prático do cotidiano, buscando evidências para
reconstruir uma explicação da realidade observada. Na concepção
de Coulon (1995, p. 15), “trata-se da análise das maneiras habituais
de proceder mobilizadas pelos atores sociais comuns a fim de reali-
zar suas ações habituais”. Portanto, o objetivo da etnometodologia
é a busca empírica dos métodos que constituem o conjunto dos
etnométodos que os indivíduos utilizam para comunicar-se, tomar
decisões, raciocinar, isto é, o conjunto de procedimentos que são
usados para produzir e reconhecer o seu mundo, de forma que se
saiba como eles constroem as suas atividades no cotidiano.
Os trabalhos de Macedo (2009), Coulon (1995) e Garfinkel
(2005) me permitiram entender que a etnometodologia não pode
ser confundida exclusivamente com uma metodologia ou mesmo
com um método de pesquisa. Ela se destaca por ser uma teoria
social voltada para o interesse da compreensão da ordem social, a
partir da valorização das ações cotidianas dos atores envolvidos nos
processos sociais. Daí poder falar de pesquisa inspirada na etnome-
todologia. Neste sentido, ela é uma perspectiva de pesquisa, uma
nova postura intelectual (COULON, 1995, p. 7).
Nesta direção, a valorização do ator social tem uma relevância
fundamental dentro da etnometodologia. Garfinkel (2005) atende
às necessidades de muitos pesquisadores que não se interessam pelas
teorias positivistas, que dão ênfase às pesquisas quantitativas e aos
conhecimentos científicos, desprezando todo conhecimento popu-
lar. Macedo (2009, p. 68) afirma que, para Garfinkel, “[...] o ator
social não é um idiota cultural”. Ele tem, portanto, seus valores e
conhecimentos que não podem e nem devem ser desprezados pelas
ciências. Santos (2008, p. 111) sustenta essa nossa posição quando
diz que “é fundamental transformar ausências em presenças reco-
nhecendo nas práticas cotidianas inovações emancipatórias”.
Macedo (2009) assinala que etnometodologia e educação
fundem-se num encontro tão seminal quanto urgente, em face
da inércia compreensiva fundada pelas análises “duras”. Toman-

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do o viés interpretacionista, os etnometodólogos interessados no
fenômeno da Educação buscam o traching dos etnométodos pe-
dagógicos, isto é, uma pista através da qual tentam compreender
uma situação dada, bem como praticam afilature, ou seja, o es-
forço de penetrar compreensivamente no ponto de vista do ator
pedagógico, nas suas definições das situações, tendo como orienta-
ção forte o fato de que a construção do mundo social pelos mem-
bros é metódica, apoia-se em recursos culturais partilhados, que
permitem não somente o construir, mas, também, o reconhecer.
O autor esclarece que o objetivo da etnometodologia é a
busca empírica dos métodos ou procedimentos, entendidos como
as realizações práticas que os indivíduos utilizam para dar sentido
e, ao mesmo tempo, construir suas ações, seus etnométodos, pro-
duzindo, assim, os fatos sociais. Também acrescenta que foi a partir
da introdução da etnometodologia no âmbito das pesquisas que se
ampliaram os pensamentos sociais e se inverteram as posições na
busca pela compreensão do objeto de estudo. Este posicionamen-
to possibilita a interlocução com a abordagem multirreferencial,
a qual admite a busca pela compreensão do objeto-pesquisa por
meio da observação, da escuta, do entendimento, da procura, da
implicação, da incorporação do sujeito e da história do sujeito com
a realidade investigada.
Correia (2006) corrobora com essa ideia afirmando que, nes-
se aspecto, reside uma inter-relação da concepção teórica da et-
nometodologia com a abordagem multirreferencial, já que ambas
procuram ultrapassar os limites de uma disciplina única, de uma
teoria, e buscam, no pensar diferente das disciplinas, dos proce-
dimentos, das teorias, das concepções, a compreensão do objeto
estudado. É uma ampliação de olhares epistemológicos.
Essa ampliação de olhares para a leitura do objeto, proposta por
Ardoino (1998), pode se constituir na articulação e no diálogo entre a
multirreferencialidade e a etnometodologia. Segundo Coulan (1995),
as duas noções podem dialogar na prática concreta da pesquisa e não
apenas em debates teóricos, como se poderia pensar inicialmente.

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Minha escolha pela multirreferencialidade se deu pelo fato
desta abordagem utilizar a “interpretação/compreensão/explicação,
rompendo com a expectativa construída ao longo da história das ci-
ências macrossociais, da explicação assentada na análise lapidante”
(MACEDO, 1999, p. 58). Meu movimento foi sempre na direção
da compreensão do processo formativo dos professores-alunos no
curso de formação de professores em atuação. Essa compreensão
foi pela escuta sensível desses atores sociais e, sendo assim, eles são
coautores desta pesquisa e não apenas informantes.
Minha postura ética foi no sentido de promover, por meio
da pesquisa, uma discussão implicada acerca da formação inicial
de professores em exercício. Um dos primeiros desafios foi romper
com julgamentos já estabelecidos entre o bem e o mal, o certo e o
errado, com aqueles que acreditam e se apaixonam por esses tipos
de cursos e com aqueles que rejeitam totalmente essa modalidade
de formação de professores. Sendo assim, não foi minha intenção
ficar presa a apenas uma teoria, pois acredito que nenhuma, iso-
ladamente, poderia dar conta de compreender o objeto estudado,
sendo necessário pluralizar os olhares epistemológicos.
Nessa perspectiva, o encontro com a multirreferencialida-
de foi fundante na construção desse trabalho. Macedo (2000) foi
o primeiro brasileiro que uniu a etnometodologia e a abordagem
multirreferencial na construção e apresentação de sua tese “A et-
nopesquisa crítica e multirreferencial nas ciências humanas e na
educação”. Em seu trabalho, procurou organizar e sistematizar a
pesquisa fazendo o papel de sujeito que observa e sujeito observa-
do. O movimento vivido por esse pesquisador se deu ao procurar
romper com as concepções tradicionais de se fazer pesquisa, as quais
enaltecem o método, a objetividade, a quantificação e a obsessão
pelo medir, buscando expandir o presente no sentido de valorizar a
inesgotável experiência social no mundo de hoje em nossas escolas.
O autor ainda evidencia a construção do sentido do obje-
to estudado, levando em conta a subjetividade. Há, logicamen-
te, um esforço para examinar o sentido do lugar ocupado pelo

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prático pesquisador, como assinala, buscando compreender suas
ações e seus significados. As posições teóricas assumidas trazem as
discussões fazendo um entrelaçamento das correntes adotadas por
Coulan (1995), Ardoino (1998) e seus colaboradores.

Ele nos esclarece que o conceito de multirreferenciali-


dade é inicialmente forjado pelo trabalho de reflexão
crítica sobre a pretensão purista de uma única ciência
da educação. Foi com Jacques Ardoino, no seio dos
debates do Departamento de Ciências da Educação
da Universidade de Paris Vincennes à Saint-Denis,
inspirado nos movimentos emancipacionistas dessa
Universidade desde a sua fundação a partir dos movi-
mentos de maio de 1968 em Paris, que a perspectiva
multirreferencial vai afirmar a emergência impura,
paradoxal e mestiça das ciências da educação (MA-
CEDO, 1999, p. 123, grifos do autor).

A discussão da abordagem multirreferencial no âmbito da


educação vem romper com pressupostos teóricos positivistas a res-
peito dessa área. De acordo com Ardoino (1998), o surgimento
dessa abordagem no contexto educacional está ligado ao reconhe-
cimento da complexidade e da heterogeneidade no processo edu-
cativo. Os estudos que tenho realizado acerca dessa abordagem
mostram que ela está aberta à complexidade da realidade e à in-
teriorização significante do sujeito observador, e não é fechada em
si, mas está aberta às contribuições advindas das pesquisas e dos
estudos, outra característica próxima da etnometodologia.
Outra inspiração na compreensão da multirreferencialidade
veio de Morin (2000, p. 48), quando afirmou que “só podemos
entrar na problemática da complexidade se entrarmos na da sim-
plicidade, porque a simplicidade não é tão simples quanto pare-
ce”. Pensar, portanto, a formação de professores em atuação pode
parecer simples para quem tem um olhar simplificador, mas, sei,
ou passei a saber durante o desenvolvimento desta pesquisa, que
construir uma compreensão acerca da formação dos atores sociais
participantes do curso foi um ato complexo e difícil.

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Entendo que a abordagem multirreferencial assume a hipó-
tese da complexidade, uma vez que propõe uma leitura plural de
seus objetos, numa perspectiva teórica e prática, sob os diferentes
pontos de vista, reconhecendo a heterogeneidade no campo das
Ciências Humanas e das Ciências da Sociedade.
A opção pela multirreferencialidade deu-se por entender que
a discussão por ela implementada sobre a heterogeneidade como o
cerne da construção do conhecimento, constitui-se em um cami-
nho possível para a compreensão do processo formativo de homens
e mulheres que, implicados na sua própria formação, foram à uni-
versidade fazer um curso de graduação e produziram conhecimento
a respeito de si e do seu trabalho.
A ampliação de olhares para a leitura desse objeto, a forma-
ção de professores, só foi possível por meio da articulação e do
diálogo entre a multirreferencialidade e a etnometodologia.
Nesse processo, compreendi que tanto os resultados como a mi-
nha interpretação a respeito deles não podem ser considerados como
únicos. O processo investigativo vivenciado por mim estabeleceu uma
relação entre sujeitos, uma relação dialógica, na qual o pesquisador e
os pesquisados formaram partes integrantes da pesquisa e nela se res-
significaram e alcançaram a compreensão possível (MACEDO, 2009).
Tal pensamento se consolidou pelo fato de os atores sociais
participantes dessa pesquisa não terem sido considerados idiotas
culturais e sim aprendentes e ensinantes, em um ambiente forma-
tivo. Minha intenção não foi vê-los como meros informantes, e
sim como autores que se autorizam, nas narrativas, a expressar sua
experiência formativa vivida no referido curso (MACEDO, 2009).
Em relação ao tratamento dado às narrativas, meu papel foi
interpretar as diversas falas desses atores sociais e produzir este texto
como registro científico do conhecimento construído e expresso a
respeito da sua formação e dessa formação no curso do qual parti-
ciparam na condição de aluno. Minha vontade foi assumir o papel
do etnógrafo de campo (CLIFFORD, 1998), ou seja, aquele que
descreve e, também, vivencia a cultura do outro.

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2 Os dispositivos de coleta, organização e análise de
informações

A coleta de informações constituiu-se no resultado da minha


aproximação com esses atores sociais, no esforço de compreender os
etnométodos construídos e produzidos por eles durante a realização
do curso. Neste sentido, me apropriar do conceito de instrumentos
como dispositivos provocadores do diálogo tornou-se essencial para a
compreensão acerca da formação desses professores-alunos.
Sendo assim, utilizo como dispositivo para coleta de informa-
ções o questionário, a entrevista e o grupo focal. Essas escolhas foram
realizadas pelo fato de possibilitarem uma escuta sensível das histórias e
itinerâncias formativas dos diversos atores sociais participantes da pes-
quisa. Dessa forma, no esforço interpretativo, pude compreender, de
forma contextual e relacional, os limites e as possibilidades do curso de
formação de professores, ofertado pela Universidade Estadual de Santa
Cruz, ter-se constituído em um espaço formativo para os educadores
da educação básica que se dirigiram a essa instituição na crença de que
ali se tornariam melhores professores (as).
As informações dos atores sociais foram coletadas via subjetivi-
dade, através da observação. Entendo que mesmo não tendo sido um
dispositivo eleito, ela esteve presente em toda a minha trajetória no
campo, por meio do olhar atento aos gestos, falas, movimentos cor-
porais e outros que expressavam as ações e as reações dos atores sociais.
A pesquisa teve início com a aplicação do questionário. No
começo da pesquisa não era minha intenção utilizar esse disposi-
tivo, mas, em função do curso estar sendo finalizado e da minha
necessidade de obter algumas informações que me ajudariam na
organização da pesquisa, o apliquei. Elaborei esse instrumento com
questões abertas e fechadas que buscavam dois tipos de informa-
ções: os dados pessoais e os dados profissionais. Neste mesmo ques-
tionário, os atores sociais expressaram seu desejo e disponibilidade
para participar da pesquisa na fase das entrevistas. Dos 153 profes-
sores-alunos, 115 responderam ao questionário, correspondendo a

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75% de devolução. Essas informações foram organizadas e me per-
mitiram ter um perfil inicial acerca dos atores sociais, além de aju-
dar a selecionar os que participariam da seguinte etapa da pesquisa.
A definição da entrevista como outra etapa de coleta de dados
se deu em razão desse recurso possibilitar uma conversa individual
com cada ator social, participante da pesquisa, permitindo uma
maior proximidade entre pesquisador e ator social. Isso me possibi-
litou rever conceitos já estabelecidos. Esta interação foi importante,
pois esses atores sociais possuíam um conhecimento experiencial
acerca do fenômeno estudado, ou seja, a formação de professores
em exercício. Tal fato promoveu uma revisão e até mesmo a alte-
ração de alguns conceitos já definidos. Nas falas e entrefalas que
moveram nosso diálogo foi possível esse movimento.
Durante a realização das entrevistas, busquei sempre recons-
truir os processos interativos que produziram a construção dos di-
versos pontos de vista desses sujeitos a respeito do processo forma-
tivo vivido por eles no curso. Participaram das entrevistas quinze
professores-alunos.
Previ dois encontros com cada um dos entrevistados: no pri-
meiro, buscaria conhecer um pouco de sua história de vida, de sua
trajetória familiar e profissional e do seu tempo de formação na
UESC. No segundo, teria uma conversa acerca do curso propria-
mente dito. De posse do roteiro de entrevista, e com essa preocu-
pação, organizei minha ida a campo.
Passei a fazer os contatos por e-mail e telefone, convidando os
professores-alunos para nossas conversas. Como eram quinze pro-
fessores da rede municipal, mas que trabalhavam em instituições
diferentes, minha preocupação era que cada participante indicasse
o local mais apropriado para à realização das entrevistas. A consul-
ta foi feita e, no final, utilizei os espaços das unidades escolares, da
Casa do Educador e a residência de duas entrevistadas.
Durante a realização das entrevistas, foi possível observar e
conviver com o cuidado, a receptividade, a cordialidade e a alegria
de cada ator social. Eles estavam abertos e confiantes. Esse compor-

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tamento foi imprescindível para criar uma ambiência descontraída
e, ao mesmo tempo, não perder o rigor necessário nessa etapa da
pesquisa (MACEDO, 2009).
Os encontros entre uma sessão e outra da entrevista aconte-
ciam em um intervalo de três dias, o que alterava a rotina de trabalho
desses professores, mas, ao mesmo tempo, garantia tempo para que
“refrescassem” suas memórias em relação à materialidade do curso.
As professoras e os professores participantes da pesquisa
optaram por ser identificados no corpo do texto por seus nomes
verdadeiros, fato que, para o estudo, foi muito importante, pois
acreditamos que “o sujeito encarnado” “participa de uma dinâmica
criativa de si mesmo e do mundo com que ele está em permanente
intercâmbio” (NAJMANOVICH, 2001, p. 23). Ao trabalhar com
o princípio de que o outro é um sujeito ativo, participante da ação,
o seu nome marca a sua participação enquanto ser social e pro-
fissional, com uma história própria. Vale a pena destacar que, ao
questionar a possibilidade de utilizar seus nomes verídicos, uma das
professoras me disse que não via motivos para não ser identificada,
já que assume o que fala e faz – é um sujeito de seu tempo.
As entrevistas foram transcritas e me concentrei na leitura
das informações para encontrar nas narrativas, os aspectos anuncia-
dores do movimento formativo vivido no curso. Na leitura cuida-
dosa, ao mesmo tempo em que buscava pontos comuns nas falas,
também procurava os pontos singulares. Esse movimento me per-
mitiu encontrar conflitos vividos no desenvolvimento do curso, os
quais se tornaram temas para o debate no grupo focal.
Para a realização do grupo focal, realizei uma primeira reunião
com todos os participantes das entrevistas individuais para tomar as
decisões coletivamente a respeito da etapa seguinte da pesquisa.
No dia marcado, compareceram dez professores, definindo,
assim, a formação do grupo. O meu objetivo com a realização do
grupo focal era o de aprofundar o debate para compreender o pro-
cesso formativo desses professores, ex-alunos do curso, através de
conversas a respeito de quatro temáticas que se evidenciaram nas

89
entrevistas individuais, a saber: a relação teoria e prática na forma-
ção de professores em atuação, a relação de pertencimento junto à
instituição formadora, o lugar das experiências pessoais e profissio-
nais no curso e a relação estabelecida entre formação e a atividade
profissional exercida agora.
Neste sentido, como afirma Gatti (2005), procurei criar as
condições para que cada participante do grupo se situasse, explici-
tasse seu ponto de vista, fizesse as análises que julgasse necessárias e
abrisse perspectivas diante da temática sobre a qual estávamos con-
versando coletivamente. Enfim, meu desafio foi criar condições para
que o debate, mais geral, a respeito da formação de professores acon-
tecesse, e que nesse cenário os participantes do grupo pudessem, re-
almente, emitir seu juízo de valor a respeito das questões anunciadas
nas entrevistas individuais sobre a participação deles no curso.
No primeiro encontro, as pessoas foram chegando e conversan-
do entre si, tentando saber como tinham sido as entrevistas individuais
e quais as expectativas para a continuidade da pesquisa. Todos e todas
estavam empolgados e querendo saber das novidades. Após a recepção
individual, sentamos à mesa e começamos nossa reunião. Expliquei
que o encontro tinha dois objetivos, um era construirmos os próximos
passos da pesquisa e organizar a agenda de encontros, e o segundo
era entregar a cada um a transcrição das entrevistas individuais para
que eles fizessem a leitura e, se assim desejassem, acrescentassem ou
retirarssem alguma informação dada nas entrevistas. Neste momento,
entreguei as cópias das transcrições das entrevistas para cada ator social
que realizou a leitura imediatamente. Como estavam muito animados
com a leitura, parei a nossa conversa para deixar que ela acontecesse.
Este momento foi muito rico, pois na medida em que realizavam as lei-
turas, eles iam fazendo comentários e acrescentando mais informações.
Após esse momento, começamos o planejamento da próxima
etapa da pesquisa. Fiz uma breve apresentação a respeito do grupo
focal, esclareci as funções das pessoas que trabalhariam nas reuni-
ões, ou seja, dos membros do grupo, o animador, o narrador (que
ao longo do debate faria as anotações) e, por fim, a assistente, que

90
filmaria os encontros. Outra definição foi a respeito da periodici-
dade das reuniões. Ficaram agendados encontros semanais, às quar-
tas-feiras, no final da tarde. Todos os presentes preferiram manter o
local em que estávamos para os próximos encontros. Em relação ao
tempo de duração das reuniões, o grupo concordou que cada en-
contro aconteceria em uma hora e trinta minutos, mais ou menos.
As reuniões do grupo focal seriam filmadas, e após a conclusão dos
encontros, entregaria a mídia com a filmagem para que assistissem
e acompanhassem a fidedignidade das transcrições.
O ambiente escolhido para as reuniões foi organizado com
bastante cuidado. Havia uma mesa grande com cadeiras suficien-
tes para todos(as); cada um tinha um crachá com seu nome bem
visível, papel e lápis para quem quisesse fazer anotações. Foram
providenciados café, água, suco e biscoitos para o lanche. Ao todo,
foram realizadas quatro reuniões com os participantes do grupo
focal, tempo considerado suficiente para que as questões levanta-
das se esgotassem. No final da última reunião, tomamos decisões a
respeito da continuidade da pesquisa, e nosso acordo foi o de apre-
sentar minhas análises para o grupo e promover um debate final a
respeito dos resultados.
As reuniões começavam com a apresentação, pelo animador,
da questão a ser debatida. A primeira questão foi: “Qual é o lugar da
teoria na formação de professores em atuação?” Pontuei que este tema
foi eleito por ter surgido a partir das entrevistas individuais. Após a
pergunta, percebi que eles pararam um pouco, como se estivessem
respirando fundo e buscando as lembranças do curso para se
situarem. Em seguida, uma das professoras começou a falar. No início
estavam meio constrangidos e se comportavam como se estivessem
falando para mim, mas, aos poucos, as tensões foram cedendo lugar
à descontração e o debate aconteceu com certa tranquilidade. O
tempo passou, não percebemos. No final da reunião, eles/elas falaram
sobre suas impressões iniciais, o medo, a vergonha e a incerteza; mas
na medida em que o debate acontecia iam sendo tomados (as) pela
temática e se afastaram desses sentimentos.

91
Na segunda reunião, o debate foi a respeito do sentimento
de pertencimento deles com relação à universidade. A questão nor-
teadora foi: “Ter entrado para a Universidade por meio do PROA-
ÇÃO fez com que você se sentisse pertencente ao quadro de alunos
da universidade?” Eles narraram seus sentimentos, discordaram do
posicionamento uns dos outros e foram apresentando seus argu-
mentos, foram conversando naturalmente e, assim, o debate fluiu.
Na terceira reunião, a temática discutida foi a respeito da ex-
periência. Nas entrevistas individuais, todos afirmaram que a experi-
ência profissional havia entrado no curso, mas eles não tinham muita
clareza a respeito do lugar que ela tinha ocupado na formação. As
leituras das entrevistas apontaram a necessidade de uma discussão
mais profunda a respeito do próprio conceito de experiência, para
então compreendermos o seu lugar na formação de professores em
atuação. A conversa se deu a partir da seguinte questão: “Por que a
experiência de vocês entrou para o currículo do curso?”
Na quarta e última reunião, com a presença reduzida dos
professores-alunos, nossa conversa foi a respeito de como se sen-
tiam naquele dia, tanto nas atividades profissionais quanto na vida
pessoal; eu queria compreender o impacto da formação na vida
desses atores sociais. A questão foi: “O que vocês estão fazendo hoje
e quais as implicações de vocês nesse fazer?”
As informações foram organizadas durante a realização da
pesquisa em três tempos: o do questionário, o das entrevistas e o
do grupo focal. As informações coletadas através do questionário
foram agrupadas em três temas: dados pessoais, dados profissionais
e continuidade da pesquisa. Esse perfil dos atores sociais foi com-
plementado com as entrevistas individuais. Em seguida, organizei
as informações contidas nas entrevistas. Como as narrativas eram
muito amplas, fiz o exercício de separá-las e agrupá-las por temáti-
ca. Esse movimento só foi possível após várias e exaustivas leituras.
Foi com elas que enxerguei as temáticas maiores que continham as
narrativas. Para chegar às temáticas, primeiramente reafirmei mi-
nha questão de pesquisa e os objetivos; a partir daí fui realizando

92
as leituras e, ao mesmo tempo, destacando as falas mais presentes
nos diálogos. Como resultado, encontrei as categorias: o sujeito da
experiência, as condições objetivas da formação de professores em
atuação e o curso como espaço formativo.
Após a organização dessas informações, foi possível voltar à
literatura acerca da formação de professores em atuação e, então,
organizar a realização do grupo focal. As informações coletadas nas
reuniões do grupo me permitiram acompanhar o que os professores-
-alunos foram construindo a respeito da sua formação, e, também,
definir as categorias empíricas de análise. Cabe ressaltar que minha
pretensão era a de construir a compreensão do processo de formação
vivido pelo grupo e, sendo assim, utilizei as narrativas como espaços
de descrição das suas vivências no curso, pois acredito que esses rela-
tos constituem-se, até certo ponto, na própria história desses sujeitos
e da sua formação. Neste sentido, meu foco não foi o de chegar a
resultados ou a compreensões já fixadas a respeito da formação de
professores em atuação, e sim trazer à tona, por meio da voz desses
atores, uma nova compreensão desse processo.
Macedo (2009, 2006) afirma que o movimento de análise
começa com o exame atento e extremamente detalhado das infor-
mações coletadas no campo de pesquisa. Essa tarefa foi exercida
com rigor. As falas dos professores-alunos foram registradas por
meio de gravador de áudio e das filmagens que foram transcritas
na íntegra, e em seguida entregues a esses atores sociais para que
as conferissem. Após sua autorização, realizei uma leitura exaustiva
dessas informações e fiz o confronto entre elas, a questão da pesqui-
sa e seus objetivos. Neste movimento, ao mesmo tempo indagava
sobre a importância das informações coletadas e separava as que
considerava relevantes para a análise. Selecionei, assim, as partes da
descrição consideradas essenciais para a compreensão do processo
formativo vivido pelos atores sociais no curso.
Enxerguei como necessária uma busca histórica a respeito da
formação de professores. Precisava situar, historicamente, o mo-
mento em que surge a formação de professores em atuação, no

93
Brasil, e como esses elementos apresentados por esses atores so-
ciais se constituem demandas para se pensar a formação de pro-
fessores em atuação. Outra necessidade foi compreender como se
estabeleceram as condições objetivas para que eles participassem
do curso. Esses estudos me permitiram entrar no contexto para
construir uma “triangulação ampliada” (MACEDO, 2009) neces-
sária, a princípio, à compreensão e discussão das informações. Após
realização desses estudos, foi possível encontrar, nessas unidades de
significação, as chamadas categorias empíricas e realizar a interpre-
tação compreensiva desse objeto de pesquisa, a saber: a formação
de professores.
Desta forma, não posso dizer que houve um único momen-
to de análise das informações reunidas através dos questionários,
das entrevistas e do grupo focal, e através do retorno constante à
produção científica e teórica sobre a formação de professores e o
seu contexto sócio-histórico, mas sim que esta esteve presente em
toda a pesquisa. Este movimento permitiu selecionar as informa-
ções consideradas essenciais ao diálogo entre teoria e empiria, a
respeito da formação de professores em atuação e, assim, definir as
categorias que utilizei na análise final.
O próprio relatório final da pesquisa, a partir dessa compreen-
são da análise como um movimento interpretativo contínuo e inaca-
bado, se constituiu como um produto final aberto. Isto é, “produto”
porque permitiu a compreensão a respeito do fenômeno estudado, e
“aberto” porque essa compreensão não é a única. Tal postura impõe
ao pesquisador a necessidade de manter-se atento ao exame deta-
lhado acerca das informações coletadas, procurando entender suas
relações com as questões e os objetivos já definidos para a pesquisa
e, a partir desse exercício, avaliar a relevância das informações para
o desenvolvimento do estudo. Outro esforço importante é o de en-
xergar as informações que vão além do previsto e que se constituem
em um conhecimento indispensável para que possa se aproximar do
fenômeno estudado, pois, como afirma Macedo (2006, p. 209), “O
pesquisador postula que a significação real e profunda do material

94
analisado reside além do que é expresso. Trata-se de descobrir o sen-
tido velado, em opacidade, das palavras, das frases e das imagens que
constituem o material analisado”.

Considerações finais

Um saber que só vê sua finalidade não consegue


perceber que tudo o que se quer do final está
justamente no meio do caminho (GHEDIN e
FRANCO, 2006).

Ao tomar como foco de investigação os processos formativos


dos professores da Educação Básica, a pesquisa se inseriu no campo
dos estudos que têm ganhado visibilidade entre as pesquisas educa-
cionais e por trazer a necessidade de buscar, no cotidiano desses pro-
cessos, o conhecimento a respeito de seus protagonistas, das apren-
dizagens realizadas e de seus desdobramentos na vida dos sujeitos;
estudos como esse têm sido fundamentais para construir uma nova
lógica a respeito do trabalho docente e do papel do professor na reor-
ganização das relações de trabalho. Sendo assim, ao buscar compre-
ender, de forma contextual e relacional, o movimento formativo dos
professores/alunos que frequentaram o curso de formação de profes-
sores em atuação, procurei identificar nessa formação as mediações
estabelecidas com a experiência desses atores sociais.
A opção metodológica me permitiu uma aproximação maior
e mais significativa com os protagonistas sociais e, por conseguinte,
as impressões e implicações com a sua formação. Meu desafio foi
captar o movimento formador desses professores/alunos por meio
das entrevistas individuais e das sessões de grupo focal realizadas
com o coletivo desses atores sociais. Meu compromisso não foi o de
apresentar resultados fechados e, portanto, inquestionáveis. Acredi-
to que os resultados estão na leitura desses escritos que vamos rea-
lizar com nossas implicações e inspirações, mas reconheço que esse

95
conhecimento construído por mim, na condição de pesquisadora,
constituiu-se em um produto aberto, cujo legado está no compro-
misso político e ético de apresentar os resultados encontrados com
as implicações e limitações inerentes de quem os interpreta.
Nos estudos que realizei sobre formação, ficou clara a necessidade
de pensar a formação de professores a partir de um conceito mais amplo
desse termo. Foi possível perceber que o movimento formativo vivido
pelos atores sociais oscilou entre dois conceitos: um mais ampliado, pre-
sente nas discussões fomentadas por alguns professores formadores, prin-
cipalmente os da disciplina Estágio, os quais viam a formação como uma
atividade pela qual se busca, com o outro, as condições para que o saber
recebido do exterior seja internalizado para ser transformado em um
novo saber, chegando a uma nova forma enriquecida, com significado
para uma nova atividade. O outro conceito, velado, entende a formação
como a aprendizagem de um conjunto formulado de saberes, tendo em
vista a preparação técnica do professor-aluno para a atuação profissional.
Percebi, que nesse embate e vivência, os professores-alunos foram (re)
elaborando o seu próprio processo formativo.
Durante a realização da pesquisa, os atores sociais vivenciaram
momentos significativos em seu processo formativo. Primeiro, no
movimento de compreensão do que era a experiência. O debate
ocorrido no grupo focal foi decisivo para que eles, por meio
das reflexões acerca das suas narrativas, fossem se afastando da
compreensão inicial da experiência como vivência e percebessem
que toda experiência contém uma vivência que escolhemos ou
aceitamos como fonte de aprendizagem. Isso implica na interação
que o sujeito precisa estabelecer com esse vivido para que se
torne uma experiência. À medida que foram desenvolvendo essas
reflexões, outras foram se estabelecendo em razão da necessidade
de compreender o lugar que a experiência ocupou no processo
formativo vivenciado no curso.
Nesse movimento, foi possível perceber, por meio dos de-
poimentos, que os atores sociais demonstravam um novo olhar a
respeito da prática educativa. Eles já traziam para os debates uma

96
consciência política e ética em relação ao seu trabalho, uma visão
mais crítica acerca dos conhecimentos que estavam trabalhando
com seus alunos e verbalizavam as implicações políticas e sociais
do seu próprio trabalho. Isso sinalizava a compreensão da prática
docente a partir de suas implicações sociais.
Essas, portanto, poderiam ser as conclusões que arrolaria
sobre a pesquisa. Entretanto, penso ser importante defender três
ideias fundamentais para a construção do sentido da investigação.
Essas, portanto, poderiam ser as conclusões que arrolaria sobre a
pesquisa.
A primeira delas diz respeito ao caráter formativo da pesqui-
sa. Ao finalizar essa investigação, reconheço que os estudos e as me-
diações realizadas por meio dos dispositivos usados para estabelecer
os diálogos com os atores sociais constituíram-se em um espaço
político e ético de escuta sensível, o que nos levou a perceber que a
dinâmica da pesquisa, em si mesma, constituiu-se um espaço for-
mativo, possibilitando aos atores sociais não apenas a narração dos
fatos já vividos, mas também a reflexão a respeito do vivido. Esta
postura e dinâmica permitiram que eles (re)elaborassem suas com-
preensões sobre a formação. Não apenas aquela construída durante
o curso, mas também a vivida no momento atual. Nos encontros,
tanto individuais como coletivos, existia a autoria do sujeito, a nar-
ração do vivido, sua problematização e impressões estavam ali, ou
seja, eles eram protagonistas desta caminhada. Sua voz estava ali e
se misturava a outras para se construir uma compreensão a respeito
do vivido no curso. Esse processo resultou em uma nova formação
para esses atores sociais, tensionando suas experiências.
A segunda ideia que defendo é a de que o alcance da forma-
ção não estava propriamente no curso, e sim nas estratégias que,
durante o processo formativo, foram se constituindo para assegurar
essa formação. As narrativas dos professores-alunos mostraram que
as estratégias se forjaram em duas esferas: uma na própria vivência
do/e no curso, e outra na dinâmica da vida pessoal e profissional.

97
Na primeira delas, a reunião, sob um mesmo contexto de
uma diversidade de professores-alunos com histórias e experiências
diferentes, por si só, já oportunizou uma formação a todos que
participavam. Na segunda ideia, a mobilização das famílias, das es-
colas, dos professores formadores e dos próprios professores-alunos
para assegurar a frequência e o desempenho no curso também ge-
rou novas aprendizagens e novas transformações. Essas estratégias
foram geradas pelo curso e esse foi o seu alcance formativo.
Finalmente, a terceira ideia defendida é a de que, apesar do
aparente antagonismo existente entre a formação inicial em atuação
desejada para impactar na melhoria do desempenho da educação
básica e a busca (nessa formação) da compreensão dos processos
de aprendizagem dos professores envolvidos, apesar de distintos,
são movimentos que se complementam. De acordo com Pineau
(2003), toda formação terá sempre a capacidade de transformar em
experiência significativa os acontecimentos cotidianos sofridos no
horizonte de um projeto pessoal e coletivo. Neste caso, a formação
é algo que se processa, é uma atitude ou uma função que se cultiva
e pode, eventualmente desenvolver-se.
Reafirmo, assim, a partir das três ideias apresentadas, a inten-
ção deste trabalho: a de se constituir como um registro reflexivo acer-
ca do movimento formativo de homens e mulheres, reconhecendo
que o outro, por ser humano, sempre terá o direito à formação.

98
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