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INTERTEXTUALIDADE IRÔNICA EM Jn 3:7-4:2  

Lucas Alamino Iglesias Martins1  


Luciano Geraldo Mateus da Silva2  

Resumo: A presente pesquisa objetiva examinar alguns aspectos literários do


livro de Jonas, bem como verificar as relações intertextuais entre o texto de Jn
3:7-4:2 e Êx 32-34, analisando os aspectos irônicos presentes nas conexões entre
as duas narrativas, principalmente, na relação entre os profetas Jonas e Moisés,
onde se destaca a forma irônica com a qual o autor apresenta as ações de Jonas.  

Palavras-chave: Relação Intertextual, Narrativa, Conexão, Jonas, Moisés, Ironia.  

IRONIC INTERTEXTUALITY IN Jn 3:7-4:2  

Abstract: This research aims to examine some literary aspects in the book of
Jonah, as well to verify intertextual relations between the text of Jn 3: 7-4:2 and Ex
32-34, analyzing the ironic aspects present in the connections among these two
narratives, mainly, in the connection between the prophets Jonah and Moses,
where it stands out the ironic form that the author presents Jonah’s actions.  

Keywords: Intertextual Relation, Narrative, Connection, Jonah, Moses, Irony.  

                                                                                                                       
1
Possui graduação em Teologia pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (2011), Pós-
Graduação em Teologia Bíblica pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (2012), Mestre
e Doutorando em Estudos Judaicos e Árabes pela Universidade de São Paulo. Atualmente é
professor do Centro Universitário Adventista de São Paulo. Tem experiência na área de Teologia.
Atua, principalmente, na seguinte linha temática: Bíblia Hebraica, Hebraico Bíblico, Teologia da
Aliança, Profetismo, Intertextualidade Bíblica e Diálogo Inter-Religioso.  
2
Graduando nos cursos de Teologia e Letras pela Universidade Adventista de São Paulo (UNASP-
EC).  

 
 

1 INTRODUÇÃO  

O livro de Jonas é, tanto em sua forma como em seu conteúdo, identificado


por muitos eruditos como um livro único na literatura profética (NOGALSKI, 1993,
p. 248; ALLEN, 1976, p. 175). De forma geral, os livros proféticos da Bíblia
Hebraica são coleções de palavras do profeta e um registro de sua mensagem.
Pouca ênfase é dada para informações particulares do profeta. No entanto, o livro
de Jonas apresenta uma pregação de apenas cinco palavras, enquanto o que
acontece com o profeta ocupa a maior parte do livro (BODA, 2012, p. 455).

Jonas é também uma obra que se destaca na literatura profética por conta de
sua riqueza literária, “repleta de tramas, ironias e temas fascinantes” (KIM, 2007,
p. 497). Além disso, Paul Kim acrescenta que, recentemente, os estudiosos dos
“Doze Profetas” (referindo-se aos “profetas menores”) tem dedicado maior
atenção aos aspectos que transcendem cada livro em si, analisando palavras-
chave, alusões e temas que fazem conexão com outros livros da Bíblia Hebraica
(KIM, 2007, p. 497-498).

Nesse sentido, Kim nos orienta quanto à importância de se analisar as


relações intertextuais considerando o texto em sua forma presente, pois desta
maneira é revelado os trocadilhos e ecos da rede literária que envolve o livro de
Jonas (KIM, 2007, p. 498).

Aderindo a esta percepção de Kim, este trabalho objetiva analisar as possíveis


relações intertextuais presentes na perícope sob análise (Jn. 3:7-4:2), assim
como, analisar algumas características literárias do livro de Jonas e sua relação
com a perícope em questão. Maior atenção será destinada a ironia, e a possível
utilização da intertextualidade na narrativa como um instrumento irônico.

A presente pesquisa está dividida em quatro partes principais. Na primeira,


será realizada uma breve análise das seguintes características literárias:
omissões de informações e ironia. Logo em seguida, será desenvolvida uma
análise da estrutura da perícope escolhida. A terceira parte é um breve estudo
sobre algumas palavras-chave que exercem um papel importante na perícope e,

 
 

por fim, será realizado um exame das relações intertextuais presentes na mesma.

2 CARACTERÍSTICAS DA NARRATIVA
 
Limburg (1993, p. 22-23) observa que, além de Jonas, somente oito livros na
Bíblia Hebraica começam com a conjunção hebraica vav (‫ )ו‬e o verbo - ‫ ָהי ָה‬-
“ser”/“acontecer”. Em todos os casos, aparecem, introduzindo um livro narrativo
ou uma seção narrativa dentro de algum livro. Deste modo, o autor argumenta
que “o vayehí no início do livro de Jonas sugere ao leitor ou ouvinte que uma
narrativa – ou história – vem a seguir”3. O livro também incorpora elementos da
poesia, estilo utilizado para descrever a oração feita pelo profeta dentro do grande
peixe (Jn 2). Contudo, o recurso utilizado na maior parte do livro é a narrativa.  

Para Frank Page (1995, p. 204), existe uma aproximação entre a narrativa
de Jonas e as narrativas dos profetas contidas nos livros históricos (cf. 1Rs 17-
19). Uriel Simon argumenta que a semelhança entre os registros das aventuras de
Jonas e dos profetas Elias e Eliseu, por exemplo, talvez pudesse ter incorporado
Jonas no livro de Reis (SIMON, 1999, p. xiv). Porém, segundo o autor, a diferença
entre Jonas e esses profetas, está no fato de a missão de Jonas destinar-se para
uma cidade gentílica muito distante, e não a Israel, como é o caso de Elias e
Eliseu4.  

Embora existam muitas relações entre as narrativas de Jonas e outras


narrativas da Bíblia Hebraica, o foco da primeira seção desta pesquisa está nos
aspectos literários internos ao texto de Jonas. Apesar de não se propor aqui um
estudo extensivo sobre todos os aspectos literários encontrados no livro, duas
características serão destacadas a seguir: omissão de informações e ironia.  

2.1 OMISSÃO DE INFORMAÇÕES

                                                                                                                       
3
Js 1:1; Jz 1:1; 13:2; 17:1; 19:1; 1 Sm 1:1; 2 Sm 1:1; Rt 1:1; Est 1.1.  
4
A preocupação dos livros históricos está ligada com os acontecimentos diretamente relacionados
a história de Israel. Isto não significa que “gentios” ocupam um papel inferior dentro história
Israelita. Temos vários exemplos (Urias, Rute, Raabe, etc) que mostram o contrário, não-Israelitas
que se tornam importantes no desenvolvimento das narrativas. No caso de Jonas, toda a narrativa
é desenrolada sem referências claras a nação Israelita.  

 
 

De acordo com Meir Sternberg (1985, p. 235), omissão de informações5


pode envolver um evento, motivo, traços de caráter, estrutura de enredo, entre
outros elementos. O autor oculta alguns detalhes para revelar mais tarde,
trazendo compreensão ou um novo conhecimento ao leitor sobre os eventos
passados. Yairah Amit, em seu livro “Reading Biblical Narratives”, destina um
tópico para explicar e exemplificar o uso deste recurso nas histórias da Bíblia. A
autora utiliza o termo “Analepsis” para se referir a estas “voltas no tempo” por
meio do narrador. Segundo Amit (2001, p. 110), a história bíblica reivindica ser
uma narrativa histórica o que faz estar naturalmente com uma sequência
cronológica (passado, presente e futuro). Todavia, qualquer desvio desta
sequência é sempre funcional e significante (AMIT, 2001, p. 110)6.  

Esta característica da narrativa aparece algumas vezes no livro de Jonas.


Como exemplo, podemos mencionar Jonas descendo até o barco e comprando
sua passagem para fugir da presença de YHWH (Jn. 1:3). Ali, nenhum diálogo
aparece entre ele e os marinheiros. Porém, após sua confissão religiosa em Jn. 1:
9 é revelado que os marinheiros já sabiam que ele estava fugindo da presença de
YHWH, “porque ele lho havia declarado” (Jn. 1: 10). O mesmo pode ser
observado na oração do profeta em 4:2. Ali o narrador quebra a continuidade da
narrativa para voltar no tempo e explicar o motivo da fuga do profeta, motivo este
que até então permanecia oculto.  

Em vista disso, surge o questionamento sobre a função destas omissões


ao longo da história. De acordo com Landes (1967, p. 14), esta característica é
trabalhada como7:  

[...] um marcante instrumento narrativo que o narrador tem usado ao


construir sua história, isto é, sua deliberada omissão de certos eventos
de sua própria sequência cronológica, apenas, para introduzi-los mais

                                                                                                                       
5
O autor utiliza a palavra “gap” para explicar a falta de informação (omissão de informações)
dentro das narrativas bíblicas. Para Sternberg “A gap is lack of information about the world - an
event, motive, causal link, character trait, plot structure, law of probability - contrived by a temporal
displacement” (1985, p. 235).  
6
Segue o texto da autora na íntegra:“The biblical story, which claims to be a historical narrative, is
naturally bound to the chronological sequence, yet nevertheless, it contains some deviations from
it, and they are always significant and functional”.  
7
Todas as citações que estão em língua estrangeira, são traduções do autor deste trabalho.  

 
 

tarde onde a presença deles é vista como possuindo maior força e


8
impacto .  

O autor em comento argumenta que as omissões realçam o efeito


dramático sobre o leitor. Pelo fato de nada ser indicado em Jn. 1:2-3 sobre o
motivo da fuga para Társis, o leitor é levado a conjecturar e supor o verdadeiro
motivo da fuga9. Da mesma forma, a falta de informação acerca do diálogo entre
Jonas e os marinheiros em Jn. 1:3 intensifica no leitor o movimento de escape do
profeta. Landes (1967, p. 14) pontua que qualquer pausa para descrição naquele
momento teria interrompido a “continuidade regular” da narrativa, a qual,
“prontamente pincela o momento decisivo da rápida fuga de Jonas da presença
do Senhor”.  

Além disso, Yairah Amit acrescenta que o silêncio do narrador atua na


caracterização dos personagens. A autora declara que ao invés de privar os
personagens da complexidade e profundidade, o silêncio do narrador envolve o
leitor em uma consideração independente que às vezes produz resultados
inesperados (AMIT, 2001, p. 78)10. Jonas é um personagem imprevisível ao longo
do enredo e muito dessa percepção é adquirida pelo leitor através da forma que
Jonas é apresentado pelo autor.  

Ainda que a omissão de informações possa gerar várias mudanças na


perspectiva do leitor, Sternberg (1985, p. 318) argumenta que a omissão
desenvolvida no livro de Jonas é singular, pois “este é o único caso bíblico onde
uma lacuna inesperada controla o progresso do leitor sobre todo um livro”11.  

                                                                                                                       
8
“[...]a striking narrative device the writer has used in constructing his story, namely, his deliberate
omission of certain events from their proper chronological sequence only to introduce them later
where their presence is seen to have much greater force and impact”.  
9
Ao criar no leitor este envolvimento com o texto, Landes argumenta que quando a omissão é
preenchida o leitor é surpreendido e percebe que sua suposição inicial estava errada. O autor
declara: “[...] given the unique and awesome nature of Yahweh’s command, the most obvious
reasons one might think of for wanting to turn in the opposite direction would hardly include the real
motivation we are presented in 4:2” (1967, p. 14).  
10
“The narrator’s silence, then, does not deprive his characters of complexity and depth; indeed, it
involves the reader’s independent consideration, which sometimes produces unexpected results”.  
11
“First, though not much longer than some of the other sequences through which we have been
twisting, it is the only biblical instance where a surprise gap controls the reader’s progress over a
whole book”  

 
 

Além da omissão de informação, outra característica que também marca o


livro de Jonas é a ironia. Embora ela esteja incorporada nas seções narrativas ela
não se restringe somente a esta forma. A poesia do cap. 2 também contém
características da ironia. Por isto, um novo tópico será desenvolvido acerca deste
aspecto literário.  

2.2 IRONIA

O livro de Jonas é identificado por vários estudiosos como uma obra


caracterizada também pelo humor. É presumível que o leitor ria ao se deparar
com imagens grotescas como animais vestidos de panos de saco, clamando à
Deus por terem sido privados de comida e bebida (SIMON, 1999, p. xxi). Para
Hans Wolff (1986, p. 84), “em nenhum outro livro da Bíblia encontramos todas as
diferentes variedades do estilo cômico, tão ricamente desenvolvido, como aqui”.
De acordo com o Wolff, é neste aspecto humorístico que a beleza da história e o
seu poder libertador são encontrados. West (1984, p. 235) observa que o livro de
Jonas é uma história caracterizada pela ironia e que é a utilização em grande
quantidade desse recurso que o distingue dos demais livros da Bíblia Hebraica.
Todavia, a maneira como a ironia é interpretada pelos estudiosos varia. Uriel
Simon (1999, p. xxi-xxii), por exemplo, reconhece que a ironia cumpre um papel
importante no livro de Jonas, no entanto ele é contrário a ideia de que através da
ironia Jonas seja ridicularizado, ou humilhado12.  

E. M. Good em seu livro “Irony in the Old Testament”, afirmou que “ironia,
assim como o amor, é mais facilmente percebida do que definida” (GOOD, 1981,
p. 13). No entanto, isto não anula a busca por alguns aspectos que possam ajudar
a perceber a ironia em um texto. Lilian Klein (1989, p. 195-196) observa alguns
elementos básicos da ironia baseando-se na obra de D. C. Muecke, “The
Compass of Irony”. Na análise da autora são identificados três requisitos da ironia:
(1) ela acontece em dois níveis, (2) existe oposição entre estes dois níveis, e (3)
há geralmente a presença do elemento de ignorância ou inocência. Os dois níveis
                                                                                                                       
12
Simon argumenta: “The Book of Jonah, the, is not an ironic satire. Furthermore, what irony it does
contain is not particularly biting. It looks down on the hero and painfully exposes his failures, but it
is forgiving: It sets the hero in his proper place without humiliating him and restores him to his
dignity without abasing him” (SIMON, 1999, p. xxii).  

 
 

e a respectiva oposição entre eles podem ser melhor compreendidos no seguinte


esquema13:  

Conhecimento = Ironista  

Ignorância = Vítima  

O “conhecimento” atua como o eixo de poder sobre o segundo nível


(ignorância). A mesma autora destaca que nesta “ironia vertical” não há uma
relação de troca entre os níveis, mas sim um movimento que segue do polo
superior ao inferior (KLEIN, 1989, p. 196). De acordo com este modelo, Deus
seria o arquétipo do “ironista”, pois ele é onipotente, onisciente, transcendente,
absoluto, infinito e livre. Ao passo que o homem seria o arquétipo da “vítima”,
apresentado sempre como limitado, cego, historicamente condicionado e não
consciente destas prisões (KLEIN, 1989, p. 196).  

A ironia de oposição (2), por sua vez, está baseada na incongruência


(KLEIN, 1989, p. 196). A oposição é articulada entre o que se espera e no que
realmente acontece no decorrer da narrativa. Além da incongruência, outra
característica que se destaca como elemento irônico é a inocência. Para Mona
West (1984, p. 236), a inocência é apresentada de forma discreta, estabelecendo
uma comunicação indireta com o(a) leitor/audiência, convidando-o(a) a participar
da ironia. De acordo com Lilian Klein (1989, p. 196), através destes dois
elementos “a ironia torna-se mais notável”.  

Elaborada com a intenção de ser reconhecida, a ironia requer,


naturalmente, uma relação que transcende os dois pólos básicos (ironista !
vítima) já mencionados. Segundo Carolyn Sharp (2009, p. 17), a “resposta do
leitor desempenha um papel inevitável na construção e percepção das
ironias[...]”14. Ela afirma:  

                                                                                                                       
13
Fizemos uma adaptação do esquema encontrado em (KLEIN, 1989, p. 196).  
14
“Reader response plays inevitable role in constructing and perceiving ironies, but it is both
intellectually unsound and unethical to argue that the testimony of authors and texts is fully and

 
 

Ironia convida a cumplicidade do leitor na rejeição do significado


superficial da matéria em comunicação, e convida à participação na
criação de um novo significado que simultaneamente depende e vai além
do que tem sido exposto. E se, de forma preocupante ou provocando, a
ironia ameaça a exclusão interpretativa de qualquer leitor não perspicaz
que falha em decifrar corretamente o convite do texto (SHARP, 2009, p.
15
24) .  

O reconhecimento da importante relação entre leitor e texto, nos direciona


para as diferentes formas com que a ironia interage com o leitor. Lilian Klein
organiza estas formas de ironia em um grupo chamado por ela de “ironia do
orador” (1989, p. 197)16. Embora cientes das variações, apenas uma destas
formas será enfatizada aqui porque melhor interage com o propósito e os limites
da presente pesquisa.  

A “ironia dramática”, pode ser identificada pela presença de “um ‘orador’ ou


um ‘protagonista’ que sabe menos do que a audiência e que não está consciente
de sua participação na ironia” (WEST, 1984, p. 236)17. Algo que diferencia a
“ironia dramática” é a constatação de que “apenas o leitor observa o jogo de ironia
entre os dois pólos” (KLEIN, 1989, p. 197)18. Neste caso, Lilian Klein (1989, p.
197) afirma que “a vítima da ironia dramática não compreende completamente as
implicações de suas próprias palavras (ou situações)”19.  

Tendo por base os elementos apresentados, podemos observar como


estes princípios são desenvolvidos no livro de Jonas. Primeiramente, várias

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       
only constructed by the reader”,  
15
“Irony invites the reader’s complicity in the rejection of the surface meaning of the matter being
communicated and invites participation in the creation of a new meaning that simultaneously relies
on and moves beyond that which has been stated. And whether ominously or teasingly , irony
threatens the interpretive disenfranchisement of any unperspicacious reader who fails properly to
decipher the text’s invitation”.  
16
A expressão utilizada pela autora é “speaker irony”, um termo de difícil tradução. Escolhemos
traduzir como “ironia do orador”.  
17
Texto na íntegra: “Dramatic irony may have a speaker or an ‘actant’ who knows less than the
audience and is not aware of involvement in the irony”.  
18
“Dramatic irony is distinguished from speaker and situation irony in that the reader alone
observes the play between two poles”.
19
“The victim of dramatic irony does not fully comprehend the implications of his own words (or
situation)”.  

 
 

incongruências são notáveis em todo o livro20. O profeta é apresentado como


“Jonas, filho de Amitai” (Jn 1:1). O nome Jonas significa “Pomba” e “filho de
Amitai” significa “filho da fidelidade” (HOLBERT, 1981, p. 63-64; WEST, 1984, p.
238). Logo no início do livro é criado no leitor a expectativa de que Jonas é o
protagonista ideal para a missão divina. Sendo o “filho da fidelidade”, espera-se
que ele seja caracterizado por nada menos do que obediência. Contudo, de forma
alguma isto acontece. Diante da missão de “levantar” (‫)קוּם‬, “ir” (‫ ) ָהלַך‬e “clamar”
(‫ ) ָק ָרא‬contra a grande cidade de Nínive (Jn 1:2), Jonas decide fugir para Jope,
mas de forma mais específica, ele foge da “presença do SENHOR” (v.3). Sua fuga
é descrita como “um contraste nítido com o chamado de Deus” (HOLBERT, 1981,
p. 64). Ao invés de “levantar”, o profeta inicia uma série de ações que seguem um
movimento de descida. No v.3, duas vezes aparecem o verbo “descer” (‫)י ַָרד‬,
enfatizando sua oposição imediata ao que lhe foi proposto. Ao tomar o navio rumo
a Jope ele “desce” até o porão e dorme21 enquanto os marinheiros clamam
“cheios de medo” (v.5). Mas o sono de Jonas não é um sono qualquer. A palavra
utilizada aqui para descrever o sono de do profeta (‫)רדַ ם‬
ָ aparece de forma
significativa em outros lugares da Bíblia Hebraica22. De acordo com Holbert (1981,
p. 65) “este é o sono mais profundo de todos, durante o qual, grandes ações
divinas são realizadas”23. Ele dorme “profundamente”, ecoando a mesma ideia de
descida. Ideia esta que alcança seu ápice na prece de Jonas (Jn 2:2-9) dentro do
grande peixe: “do ventre do abismo gritei” (Jn 2:1). James Ackerman (ALTER,
1997, p. 253), observa que a narrativa “parece estar descrevendo a fuga de Jonas
                                                                                                                       
20
Para Carolyn Sharp (2009, p. 176-177) a ironia no livro de Jonas é desenvolvida através das
reviravoltas no enredo, incongruências, surpresas e confissões inesperadas.  
21
Elias Bickerman acrescenta: “For him, as for his hero and for religious persons of every
confession, it was unthinkable that a man in danger of death would neglect to pray[...]”. (2007, p.
37). Paul Kim afirma que na Septuaginta um elemento dramático ao sono do profeta é
acrescentado. O autor pontua: “In fact, Jonah’s sleeping inside the ship is dramatized by the LXX,
in which he is said to snore (καὶ ἔρρεγχεν) so loudly that captain could hear him in the midst of the
tumultuous storm” (KIM, 2007, p. 503).  
22
Holbert compara o sono de Jonas com outras menções da raíz (‫)רדַ ם‬ ָ na Bíblia Hebraica. Este é
o sono que Deus faz recair sobre Adão em Gn 2: 21 antes de retirar dele uma de suas costelas.
Este também é o sono que recai sobre Abraão antes de Deus fazer com ele uma Aliança (Gn
15:12). A mesma raíz também aparece no sono de Sísera, antes de ser brutalmente morto por
Jael (Jz 4:21). Relacionando a ocorrência desta significativa raíz (‫)רדַ ם‬
ָ com as demais ações
do profeta até aqui, sugerem que “Jonas tem aparentemente, tanto quanto é capaz sucedido em
fugir da presença de Deus”, (HOLBERT, 1981, p. 65).  
23
“In short, it is the deepest of sleeps, during which often great divine actions are undertaken”.  

 
 

da presença de YHWH como uma descida ao mundo inferior”.  

Jonas é apresentado também em contraste com os marinheiros. Na Bíblia


Hebraica, o papel profético se dá na função primária de ser “boca de Deus” (Êx
4:16, Jr 1:9), repetindo a mensagem que lhe fora dada. Porém, no capítulo 1, ao
invés de Jonas, o chefe dos marinheiros é quem repete a ordem de Deus.
“Levanta-te ( ‫)קוּם‬, invoca (‫ ) ָק ָרא‬o teu deus” (Jn 1:6), diz o capitão ao sonolento
profeta, repetindo dois verbos da ordem dada por Deus a Jonas em Jn. 1:2. Além
destas duas palavras contidas na ordem divina, uma terceira também é
acrescentada pelo autor na boca dos marinheiros ao dizerem: “vinde” (‫( ) ָהלַך‬Jn.
1:7). Para Holbert (1981, p. 66) esta repetição de palavras aponta para três
coisas importantes até agora na narrativa: (1) Reintera o enorme abismo entre as
ativas orações dos marinheiros e o sonolento e desobediente profeta de Yahweh.
(2) Através do capitão, Deus chama seu profeta de volta para sua missão,
ecoando o fato de ele não ter escapado de Deus. (3) Embora o capitão não tenha
ideia da significância de suas palavras, para nós, leitores oniscientes, elas
renovam o chamado divino para o profeta.  

O contraste entre Jonas e os marinheiros se acentua no capítulo 1. Isto


pode ser percebido através da ocorrência da palavra “temor” (‫ )י ֵָרא‬que se repete
seis vezes no capítulo. Todas as ocorrências aparecem em um contexto religioso
(1:5, 10[2x] e 16[2x]), apesar disso, apenas uma vez a palavra está relacionada
com o profeta, enquanto que, ironicamente, as outras cinco ocorrências aparecem
ligadas aos marinheiros24. Os marinheiros, por sua vez, não apenas “temem”, mas
“temem ao extremo ao SENHOR” (‫)י ְִר ָ ֣אה גְד ֹו ָ֔לה‬. O que podemos observar é um
modelo claro de oposição entre o que se espera de Jonas e como ele age
(ALTER, 1997, p. 253; HOLBERT, 1981, p. 66-69).  

John Holbert (1981, p. 69) destaca que enquanto o profeta desce para fugir

                                                                                                                       
24
Destaca-se também que a primeira ocorrência no v.5 é um “temor” que leva os marinheiros a
clamar “cada um a seu deus”, além disso, depois da confissão de Jonas em 1:9 todas as
ocorrências aparecem ligadas a Yahweh. Diferentemente dos marinheiros, o temor de Jonas à
Deus não o faz clamar. Somente no capítulo 2 é que ele irá fazer isso. No entanto, seu clamor não
está ligado aos marinheiros nem à nínive, é voltada apenas para si mesmo: “Na minha angústia
clamei ao SENHOR” (Jn 2:2).  

 
 

da presença do Senhor, os marinheiros crescem em nossa admiração e em seu


reconhecimento do verdadeiro poder do Senhor.  

Embora não seja nosso objetivo mencionar todas as incongruências que


envolvem o profeta, vale destacar que a oposição também é estendida na relação
entre Jonas e os ninivitas. Um detalhe que exemplifica esta oposição está
relacionado com a repetição do numeral “três” (‫)שָׁלוֹשׁ‬, juntamente com o adjetivo

“grande” (‫ )גָּדוֹל‬que colocam o peixe e a cidade de Nínive em paralelo:  

3 dias 3 dias e 3 noites  

‫ָהעִיר ַהגְּד ֹולָה‬ ‫ דָּ ג גָּד ֹול‬ 


(Grande Cidade – Nínive) (Grande Peixe)  

Apesar de serem percebidos elementos em comum, ao descrever a reação


dos ninivitas à pregação de Jonas o autor elabora uma diferença que, talvez, nos
sugira uma oposição entre os ninivitas e Jonas assim como já havia acontecido no
capítulo 1 com os marinheiros. Um dia de pregação foi suficiente para que uma
cidade inteira se convertesse, ao contrário do profeta que, aparentemente, precisa
de uma jornada de “três dias e três noites”25. O autor cria este paralelo e
contraste, ao que parece, justamente para retomar a ideia de que Jonas é menos
predisposto ao Deus Criador do que os gentios/pagãos.  
Sendo assim, os três dias na barriga do peixe poderiam simbolizar a
distância de Jonas com relação à YHWH, e ainda assim, a proximidade de YHWH
mesmo em tal distância. Os três dias requeridos para atravessar Nínive, da
mesma forma, transmite o retorno de Jonas à YHWH, e certamente sua distância

                                                                                                                       
25
Confira: LANDES, G. M. The “Three Days and Three Nights” motif in Jonah 2:1 JBL 86
(1967), p. 446-450. Neste artigo, o autor entra na discussão sobre o que a expressão “três dias e
três noites” de fato significa dentro da narrativa. Landes observa as outras ocorrências desta
expressão na Bíblia Hebraica, bem como na comparação com o mito sumeriano “The Descent of
Inanna to the Neither World”, e conclui que esta expressão parece indicar um período de tempo
concreto. Outro fator que poderia apoiar esta interpretação está na relação estrutural do livro, que
aponta uma relação entre os capítulos 3 e 1. Em ambos os casos, Jonas é “menos religioso” do
que gentios. Desta forma, a descrição do tamanho da cidade, não é utilizada apenas para
enfatizar o seu tamanho em si, mas também para criar um contraste com o profeta de Yahweh.
James Ackerman também enxerga uma relação entre “grande peixe” e a “grande cidade de
Nínive”, mas com implicações diferentes (cf. ALTER, 1997, p. 257).  

 
 

dEle mesmo em seu retorno (SWEENEY, 2000, p. 303-333)26.  

Para o leitor atento as incongruências não passaram despercebidas e


como Mona West e John Holbert observam, a esta altura o leitor já identificou
Jonas como o objeto da ironia (vítima) (WEST, 1984, p. 239; HOLBERT, 1981, p.
64)27. A partir desta identificação, podemos avançar para o segundo nível irônico
que gostaríamos de destacar no livro de Jonas: a ironia dramática. Como já
mencionado, a ironia dramática é identificada por um protagonista que sabe
menos que a audiência e que não entende o significado de suas próprias
palavras.  
Por meio da relação entre os discursos de Jonas e suas ações ao longo da
narrativa, podemos identificar um elemento de inocência, ou, ignorância que
acompanha as falas do profeta. O primeiro discurso do profeta é uma resposta a
uma série de perguntas realizadas pelos marinheiros: “Eu sou hebreu e eu temo
ao Senhor, o Deus do céu, que fez o mar e a terra” (Jn. 1:9). Ackerman observa
que “tirada do contexto, sua resposta em Jn. 1:9 soa como uma maravilhosa
confissão de fé. Mas ele omite toda confissão de desobediência [...]” (ALTER,
1998, p. 254).  
De qualquer maneira, é perceptível a incongruência na declaração de
Jonas sobre sua crença na onipotência do Deus criador. Esta incongruência pode
ter gerado certo humor para a audiência que já entendia não ser possível fugir da
presença do Deus Criador (WEST, 1984, p. 237). Porém, Jonas ironicamente,
foge do mesmo Senhor que ele considera onipotente para o mesmo mar que ele
confessa que o Senhor fez (HOLBERT, 1981, p. 68; CHISHOLM, 2002, p. 411).  
                                                                                                                       
26
Texto na íntegra:“Whereas the three days in the belly of the fish symbolized Jonah’s distance
from Yhwh, and indeed his nearness to Yhwh even at such a distance, the three days required to
traverse Nineveh likewise conveys Jonah’s return to Yhwh, and indeed his distance from Yhwh
even as he returns”.  
27
Embora Holbert argumente em favor da sátira, não há dúvidas de que Jonas é a vítima do
narrador, “Jonah, the prophet, no more, no less, is the target”. John A. Miles segue uma direção
contrária em seu artigo “Laughing at The Bible: Jonah as Parody”. De acordo com Miles, Jonas
não é o alvo do humor nem os hebreus e sim as escrituras hebraicas. O autor argumenta: “[...] the
proximate target of the humor of the Book of Jonah is not Jewish life but Hebrews letters [...]”
(MILES, 1975, p. 170). Miles aponta alguns paralelos entre Jonas, Jó e alguns profetas, no
entanto, a paródia parece ter sido realizada visando o profeta Elias. John Miles afirma: “In view of
the increasing importance of Elijah in the post-exilic period, it is likely that Elijah is a prophet the
parodist has particularly in mind” (MILES, 1975, p. 180). Contudo, nem Jonas nem Elias exercem
um papel de herói ou vilão dentro do livro.  

 
 

Na oração do capítulo 2, também percebemos que suas palavras são no


mínimo estranhas considerando o resto da narrativa. No ventre do grande peixe,
Jonas argumenta que Deus é o culpado por ele estar naquela condição: “Pois [tu]
me lançastes no profundo, no coração dos mares[...]” (2:3). E para enfatizar sua
própria inocência, é utilizado no v.4 o verbo (‫ )גּ ַָרשׁ‬na voz passiva (Nifal): “Eu tenho
sido lançado de diante dos teus olhos” (HOLBERT, 1981, p. 71, grifo nosso). Mas
não foram os marinheiros que lançaram Jonas ao mar (Jn. 1:15) conforme ele
mesmo havia pedido (Jn. 1:12)? No v.8 o profeta faz uma declaração que o
contrasta com os idólatras. De acordo com Jonas, aqueles “que se entregam à
idolatria vã abandonam aquele que lhes é misericordioso (‫”) ָ֫חסֶד‬. No entanto,
olhando para o que acontece antes e depois da oração de Jonas, constatamos
que é somente ele quem abandona o ‫ ָ֫חסֶד‬divino. Quem são aqueles que “se
entregam à idolatria vã”? Mais uma vez o incoerente profeta é acusado por suas
próprias palavras (HOLBERT, 1981, p. 73). Ackerman (ALTER, 1997, p. 254)
acrescenta: “É Jonas que desertou o seu Deus; e mais tarde descobriremos que a
razão principal para sua fuga é o hesed superabundante de Deus (4:2)”. Leslie
Allen (1976, p. 199) argumenta que a hesed - ‫ ָ֫חסֶד‬é um dos temas que ligam as
duas orações do profeta (2:1-9 e 4:2-3). Na primeira oração, a misericórdia
concedida à ele é motivo de louvor, todavia, ironicamente, quando a mesma
misericórdia é concedida aos ninivitas, se torna para Jonas um motivo de grande
aflição (ALLEN, 1976, p. 199).  
Até mesmo quando Jonas parece ter conhecimento sobre o que será dito,
mesmo ele declarando saber (“pois eu sabia” (4:2) - ‫) ִכּ֣י י ָדַ֗ עְתִּ י‬, suas palavras, à
vista do leitor, soam como algo completamente incompreensível. Na relação
intertextual com Êxodo 32-34 um contexto será apresentado que intensifica ainda
mais a ironia sobre a curiosa reação de Jonas diante da graça divina. No entanto,
isto será melhor desenvolvido na última seção deste artigo.  

3 ESTRUTURA DA PERÍCOPE - Jn 3:7 - 4:2  

De acordo com Leslie Allen (1976, p. 197), “o livro de Jonas é um modelo

 
 

de artisticidade literária, marcado pela estrutura simétrica e balanceada”. Isto


pode ser percebido na maneira cuidadosa com que o livro é dividido. Muitos
estudiosos têm concordado com a divisão do livro em duas partes principais (Jn 1-
2 e 3-4), marcadas pela correspondência do início de cada seção (SWEENEY,
2000, p. 307). As palavras e expressões que se repetem nas duas seções formam
um paralelismo, e tornam a relação mais nítida. A expressão “veio a palavra do
SENHOR à Jonas”- ‫ וַ ֽיְהִי דְּ בַר־י ְהוָה ֶאל־י ֹונָה‬- se repete no início da segunda seção
(3:1). Além disso, podemos considerar a cuidadosa repetição dos principais
verbos contidos na ordem divina: “levanta” (‫)קוּם‬, “vai” (‫)לְֵך‬, “e clama” (‫) ִוּ ְק ָרא‬
também presente nas duas seções (ALLEN, 1976, p. 198).  

Este paralelismo não é encontrado somente no início de cada seção.


Várias relações podem ser encontradas entre os temas presentes nas duas partes
do livro. Por exemplo, observa-se o papel que a natureza exerce nas seções: “na
cena [seção] um, vento, tempestade, mar, terra, e peixe; na cena dois, gados e
rebanhos, planta, verme, sol e vento” (TRIBLE, 1994, p. 109, grifo nosso).  

Phyllis Trible, autora que propõe uma orientação dos eventos do livro de
Jonas, segue o mesmo padrão de outros estudiosos quanto à divisão do livro em
duas partes (Jn 1-2 e 3-4). A autora chama essas partes de “cenas”, e acrescenta
uma série de subdivisões que compõem a estrutura geral de cada cena. Estas
subdivisões são nomeadas de “episódios” e é desta forma que Trible organiza os
acontecimentos do livro de Jonas.  

A primeira parte da perícope sob análise desta pesquisa se encontra no


segundo episódio da segunda cena. O segundo episódio abrange os versos 5 ao
10 do capítulo 3. A segunda parte, por sua vez, se encontra no terceiro episódio,
também da segunda cena e abrange os versos 1 ao 5. O esquema a seguir
permite que estas divisões e subdivisões sejam mais visíveis (cf. TRIBLE, 1994,
p. 187-205):  

Episódio Dois (3:5-10):  

1. Resposta popular (3:5)  

 
 

2. Resposta real (3:6-9)  


a. Resposta individual (3:6)  
b. Resposta oficial (3:7-9)  
3. Resposta divina (3:10)  
Episódio Três (4:1-4 e 5)  
1. Jonas e YHWH (4:1-4)  
a. Reação de Jonas (4:1)  
b. Oração de Jonas (4:2-3)  
c. Pergunta de YHWH (4:4)  
2. Jonas sozinho (4:5)  

Tendo esta divisão como base, a perícope sob análise (Jn 3:7-4:2) desta
pesquisa está inserida na subdivisão da “resposta individual” do rei de Nínive e
segue até a “oração de Jonas”.  

Observando esta perícope de um ponto de vista mais geral, Trible


argumenta que há uma conexão entre os eventos do capítulo 3 (Jonas e os
Ninivitas) e do capítulo 1 (Jonas e os marinheiros). A autora argumenta que “no
esquema de Jonas, os episódios focalizados nos marinheiros balanceiam os
episódios focalizados nos Ninivitas” (TRIBLE, 1994, p. 190)28.  

Em ambos os casos há, por exemplo, o tema do livramento. Para os


marinheiros, o livramento está conectado com o fim da grande tempestade, para
os Ninivitas com Deus se arrependendo do mal. Também nos dois casos aparece
um movimento que parte de um nível de ignorância em direção a um nível maior
de conhecimento que surpreende o leitor. No episódio envolvendo os marinheiros
há uma religiosidade crescente que se intensifica a medida que a tempestade
avança e, principalmente, após ouvirem o nome de YHWH, o Deus criador. Os
Ninivitas por sua vez, apresentam um reconhecimento muito mais exagerado.
Toda a cidade crê em Deus imediatamente após o anúncio de destruição e até
                                                                                                                       
28
“In the design of Jonah the episodes focused on the sailors balance the episodes focused on the
Ninevites”.  

 
 

mesmo os animais estão sob o decreto do rei de humilhar-se perante Deus


(TRIBLE, 1994, p. 190). Além disso, os estrangeiros sempre aparecem em
grupos, cada um sendo representado por seu líder. Primeiro aparecem os
marinheiros e o capitão do navio; em seguida, os ninivitas aparecem juntamente
com seu rei.  

Para Simon, o papel de Jonas na narrativa também parece estabelecer


uma relação bem próxima entre as duas seções. Ele declara: “[...] na primeira
parte, o profeta foge para evitar o cumprimento da ordem divina, enquanto que na
segunda parte, tendo sido compelido para cumpri-la, ele se rebela contra o
resultado” (SIMON, 1999, p. xxv)29. Jonas, em certo sentido, é o motivo pelo qual
a calamidade atinge os estrangeiros. A crise envolvendo os marinheiros se dá
porque Jonas está fugindo da presença de YHWH. A crise envolvendo os
Ninivitas acontece por causa do anúncio de Jonas para eles (TRIBLE, 1994, p.
191).  

As duas orações do profeta (2:1-9/4:2) também estão relacionadas. “E


orou” - ‫ ַויּ ִתְ ַפּ ֵ֨לּל‬- esta expressão se repete exatamente em 4:2 e 2:1. Ambas
aparecem, respectivamente, depois do convívio de Jonas com os estrangeiros
pagãos. O uso desta expressão na narrativa cria um foco duplo sobre Jonas.  

Além disso, há uma série de paralelos no que diz respeito ao conteúdo das
duas orações. George M. Landes pontua pelo menos três relações principais: (1)
ambas fazem referência a uma angústia anterior experimentada por Jonas, (2)
ambas estão preocupadas com a ação de livramento ocasionada por YHWH, (3)
ambas concluem com uma resposta do orador à ação misericordiosa de Deus
(LANDES, 1967, p. 17).  

A reação de Jonas (Jn. 4:1) após a conversão de Nínive também chama


atenção. O profeta fica extremamente irado (‫ ) ָר ָ ֣עה גְד ָֹול֑ה‬por causa do livramento
da cidade. Esta reação sentimental de Jonas ecoa e contrasta a reação dos
marinheiros no capítulo 1. Ante o livramento da tempestade eles reverenciam as
                                                                                                                       
29
“in the first part, the prophet runs away to avoid fulfilling the divine injuction, whereas in the
second part, having been compelled to implement it, he rebels against its outcome”.  
 

 
 

ações de Deus: “temeram ao extremo” (Jn. 1:16 - ‫)י ְִראָ ֥ה גְד ָֹול֖ה‬.  

Esta noção de exagero (adjetivo gadol) se repete em outros lugares do


livro e exerce, juntamente com a repetição de algumas palavras, um papel muito
importante no livro de Jonas. É uma análise mais direcionada a algumas dessas
palavras que será desenvolvida em seguida.  

4 PALAVRAS-CHAVE  

Com base nas características já mencionadas até aqui, percebemos que o


autor do livro de Jonas narra os eventos de forma artística a fim de fazer com que
o leitor interaja com as complexidades da história. Esta articulação realizada pelo
autor também pode ser percebida através da escolha e uso de algumas palavras.
Essas palavras carregam dentro do enredo a características da ambiguidade, ou,
um significado dual e exercem um papel importante na história.  

A primeira palavra a ser destacada é o adjetivo “grande” (‫ )גָּדוֹל‬que aparece


14 vezes nos 39 versos do livro. Este adjetivo pode significar duas coisas:
“grande” - em extensão ou tamanho - ou “importante” (BODA, 2012, p. 459). Para
a compreensão da narrativa, isto se torna significativo. Através desta possibilidade
(“importante”), podemos perceber que a cidade de Nínive, a qual 4 vezes aparece
relacionada com a palavra gadol (Jn 1:2; 3:2-3, 4:11), é descrita pelo narrador não
somente em termos de tamanho físico, mas também em sua importância para
Deus (BODA, 2012, p. 459; STUART, 1987, p. 437). Leslie Allen concorda que a
expressão “grande cidade” carrega esse duplo sentido. Para Allen (1976, p. 203),
essa expressão, soa como um sino através do livro de Jonas, sinalizando sua
última ocorrência em 4:1130.  

Vários estudiosos analisam a expressão “grande cidade de Nínive”


questionando a possibilidade de uma cidade na antiguidade ser tão grande (“de
três dias para percorrê-la”) quanto apresentado pelo narrador. Contudo, segundo
Hans Wolff, o debate acerca da possibilidade de tal descrição não é uma

                                                                                                                       
30
Texto na íntegra: “This phrase, too, tolls like a bell through the book of Jonah (1:2; 3:2, 3; 4:11),
to be given a twist in its last occurrence.”  

 
 

preocupação do narrador. Para Wolff (1986, p. 148), “o leitor não deveria fazer
aritmética. Ele deveria se perder em admiração, para que então ele possa
absorver os eventos que se seguem de uma forma apropriada”31.  

O mesmo pode ser observado através da palavra ra’ (‫ ) ָרע‬que aparece 9


vezes em todo o livro. Dentre as ocorrências desta palavra, apenas duas vezes
ela aparece como adjetivo, significando “mal/violência” (Jn 3:8, 10). Nas demais
ocorrências de ra’ ela aparece como substantivo, podendo significar “problema,
dificuldade, miséria, etc.” (BODA, 2012, 459; STUART, 1987, p. 437). A
percepção desta variedade de significado no uso desta palavra é muito
importante, pois apresenta logo de início que “Deus está tão preocupado com as
misérias de Nínive quanto está irado com seu mal, e a audiência do livro não teria
esperado até o final de Jonas 3 para ter uma ideia deste fato” (BODA, 2012, p.
459)32.  

Outra palavra que parece “jogar” com seu significado dentro do enredo se
encontra entre as cinco palavras do sermão de Jonas à cidade de Nínive (Jn 3:4).
A palavra “subvertida” nehpaket - ‫ נֶהְפָּ ֽכֶת‬da raíz hpk ‫ ָהפַך‬- aparece uma única vez
em todo o livro, no tronco nifal (voz passiva) feminino singular (DAVIDSON, 2014,
p. 538), podendo significar, portanto, “ser subvertida/arruinada” (Gn 19:25, 29; Dt
29:23; Isa 13:19 Jr 20:16; 49:18; 50:40; Am 4:11; Lm 4:6) ou “voltar-se/mudar-se”
trazendo a ideia de mudança de disposição (1 Sm 10:6, 9; Jr 31: 13; Ne 13:2; Êx
14:5; Os 11:8; Est 9:22) (DAVIDSON, 2014, p. 210; WOLFF, 1986, p. 149;
BANKS, 1966, p. 80). De acordo com Wolff (1986, p. 149) “na brevidade precisa
da mensagem de Jonas cada palavra tem peso”33. O autor ainda argumenta que a
última palavra do discurso do profeta tem um peso ainda maior, contudo,
exercendo uma declaração objetiva de destruição. Embora Wolff concorde com a
possibilidade do verbo hpk estar ligado ao arrependimento, segundo ele, o uso de
hpk nestes termos não faria muito sentido com o que acontece no restante da

                                                                                                                       
31
“The reader is not supposed to do arithmetic. He is supposed to be lost in astonishment, so that
can take in the events that follow in appropriate way”.  
32
“God is as concerned about Nineveh’s miseries as he is angry at its evils, and the book’s
audience did not have to wait until the end of Jonah 3 to gain a sense of that fact”.  
33
“In the concise brevity of Jonah’s message every word has weight”  

 
 

narrativa (WOLFF, 1986, p. 149).  

Phyllis Trible em seu livro “Rethorical Criticism: Context, Method and the
Book of Jonah” (1994), assim como Wolff (1986, p.149), observa que o anúncio do
profeta, “ainda quarenta dias e Nínive será subvertida” (Jn. 3:4) parece sugerir um
juízo claro. No entanto, a autora em comento acrescenta que deve-se considerar
que embora as palavras de Jonas não incluam um clamor por arrependimento ou
condições para mudança da sentença divina, aos ouvidos dos ninivitas as
palavras do profeta são entendidas como uma possibilidade de livramento
(TRIBLE, 1994, p. 190)34. Segundo Trible (1994, p. 190) “neste caso, a audiência
dentro da história, e não o autor do lado de fora, controla o significado do texto”35.
Ela afirma:  

Através de atos de penitência e arrependimento, Nínive muda, assim


como Jonas predisse, mas não como ele intencionou. Paradoxalmente,
sua profecia é ambas as coisas, verdadeira e falsa. Perspectiva e
interpretação fazem a diferença. Da perspectiva dos ninivitas, a profecia
oferece esperança, embora não a garantia de arrependimento humano e
divino. Da perspectiva de Deus, o arrependimento deles invalida o mal
divino para trazer libertação. Da perspectiva de Jonas, a libertação divina
muda sua profecia para desacreditá-la. A mudança faz ele irar-se e o
leva para um confronto com Deus no próximo episódio (TRIBLE, 1998, p.
36
190) .  

Importante considerar também que em momento algum da narrativa temos


uma exposição de quais são as palavras que Jonas deveria proferir à cidade de
Nínive. A falta de especificação das palavras que compõem a pregação de Jonas

                                                                                                                       
34
Trible enfatiza que em nenhum momento da história Deus diz para o profeta qual deve ser as
palavras de sua pregação. Sendo assim, como deve-se receber as palavras de Jonas? Por conta
dessa omissão, é alimentado no leitor uma dúvida sobre a veracidade das palavras do profeta
(TRIBLE, 1994, p. 180). Assim, o leitor é convidado para explorar os significados possíveis.  
35
“In this case, the audience within the story, and not the author outside, controls the meaning of
the text”.  
36
“Through acts of penance and repentance Nineveh overturns, as Jonah predicted but not as he
intended. Paradoxically his prophecy is both true and false. Perspective and interpretation make
the difference. From the Ninevites’ perspective the prophecy offers the hope, though not the
guarantee, of repentance human and divine. From God’s perspective their repentance overturns
divine evil to bring deliverance. From Jonah’s perspective, the divine deliverance overturns his
prophecy to discredit it. The reversal makes him angry and so leads to a confrontation with God in
the next episode”.  

 
 

pode colocar em dúvida a fidedignidade da pregação do profeta (TRIBLE, 1998, p.


180). Dessa maneira, a omissão da mensagem de YHWH, parece reforçar o
caráter desconhecido (ambíguo) do significado de hpk. Em outras palavras,
duvidando da mensagem “Será que a mensagem de Jonas é verdadeira?”
também questionamos o que acontecerá com Nínive. Afinal, em quarenta dias,
Nínive será subvertida ou convertida?37  

Além da expectativa que acompanha a ambiguidade presente em hpk - ‫ָהפַך‬


- para Jack M. Sasson (2008, p. 7-29), no uso desta palavra o leitor abre um
elemento importante para a trama: a falha de Jonas em entender as sutilezas de
seu próprio Deus levará para um enfrentamento ainda maior no capítulo quarto.  

A análise deste enfrentamento, juntamente com uma análise da reação


dos ninivitas ante a ideia de destruição fazem parte da próxima seção desta
pesquisa. No entanto, maior ênfase será destinada à relação destes eventos com
a narrativa de Êxodo 32-34.  

5 RELAÇÃO INTERTEXTUAL ENTRE Jn 3:7 - 4:2 E Êx 32-34  

Nenhum texto é uma ilha. De acordo com o postulado dialógico de Bakhtin,


“um texto (enunciado) não existe nem pode ser avaliado e/ou compreendido
isoladamente: ele está sempre em diálogo com outros textos” (KOCH et al., 2012,
p. 9). Robert Alter assume que toda literatura é necessariamente alusiva. Se
tratando de Bíblia Hebraica, é ainda mais evidente que as repetições estão
baseadas em “tradições nacionais autoritativas, fixadas em formulações verbais,
as quais escritores posteriores respondiam por meio de incorporação, elaboração,
debate ou paródia” (ALTER, 1992, p. 50).  

Dentro da perícope, sob análise, iremos observar a relação intertextual


presente em dois versos (Jn. 3:10 e 4:2) e sua respectiva correspondência com a
renovação da aliança no livro de Êxodo (Êx 32-34). Muitos estudiosos têm
                                                                                                                       
37
Para Bickerman, o narrador cria no leitor a expectativa de destruição. Ele afirma: “Now the reader
expects to be told of a rain of fire and sulphur on the new Sodom, but once again the author
introduces a new reversal of the situation” (BICKERMAN, 2007, p. 38).  

 
 

identificado esta relação textual e se dedicado na interpretação da mesma,


apontando para as mais variadas formas de seu uso. Nesta última seção,
queremos enfatizar o caráter irônico que acompanha o diálogo entre estas duas
narrativas da Bíblia Hebraica, destacando que o diálogo entre os dois textos se
dá, principalmente, através de repetições de palavras e na função dos
personagens envolvidos.  

Em seu artigo intitulado “Jonah Read Intertextually”, Paul Kim faz uma
análise das implicações intertextuais do livro de Jonas em paralelo à outras
histórias. Ele explora quatro conexões demonstrando como a mudança de motivo,
ações, temas, entre as histórias, conduzem o leitor a perceber a ironia no caráter
distinto (oposto) dos eventos presentes em Jonas38. Como consequência dessa
percepção, Kim observa que alguns estudiosos têm rotulado Jonas numa espécie
de “paródia profética” anti-Abraão (Jn 4:5; Gn 19: 27-28), anti-Elias (Jn 1:3; 4:1-9;
1 Rs 19: 3-10) e anti-Noé (KIM, 2007, p. 503). Embora não seja uma preocupação
deste trabalho categorizar a relação entre Jonas e Moisés, iremos analisar a ironia
nos contrastes entre estas narrativas, conforme sugeridos pela intertextualidade.  

Relação 1  

Jn 3: 10  

‫ִי־שׁבוּ ִמדַּ ְר ָכּ֣ם ה ָָר ָ ֑עה ַויּ ָ ִ֣נּחֶם ָה ֱאֹל ִ֗הים עַל־ה ָָר ָע֛ה‬
֖ ָ ‫שׂי ֶ֔הם כּ‬
ֵ ‫ֽת־מ ֲע‬
֣ ַ ֶ‫ַו ַיּ ְ֤רא הָ ֽ ֱאֹלהִים֙ א‬
‫שׁר־דִּ בֶּ ֥ר ַלעֲשׂ ֹות־ל ֶ ָ֖הם וְֹל֥ א ע ָָשֽׂה׃‬
ֶ ‫ ֲא‬ 

“Viu Deus o que fizeram, como se converteram do seu mau caminho; e Deus se
arrependeu do mal que tinha dito que faria e não o fez” (ARA).  

Êx. 32:14  

                                                                                                                       
38
Por exemplo, comparando Jonas e Noé e a repetição do tema da destruição no prazo de
“quarenta dias”, Kim afirma: “Here the thematic irony is that, whereas these forty days were period
of the destruction in Genesis, this period turns out to be the time of repentance and deliverance in
Jonah” (KIM, 2007, p.501). Outro exemplo da interpretação de Kim está na relação entre
embarcação nas duas histórias. Ele afirma: “The irony is that whereas Noah was safe in the ark,
Jonah became the cause of danger in the ship. Noah was rescued in the end, yet Jonah was
thrown out of the ship” (KIM, 2007, p. 502).  

 
 

‫ַל־ה ָר ָ֔עה ֲא ֶ ֥שׁר דִּ ֶ ֖בּר ַלע ֲ֥שׂ ֹות ְלע ַֽמּ ֹו׃‬
֣ ָ ‫ְהו֑ה ע‬
ָ ‫ ַויּ ָ ִ֖נּחֶם י‬ 

“Então, se arrependeu o SENHOR do mal que dissera havia de fazer ao povo”


(ARA).  

Os textos correspondentes desta primeira relação são uma descrição da


resposta divina diante dos pedidos do rei de Nínive e Moisés. No entanto, não é
apenas neste verso que os textos dialogam. Há uma série de paralelos no
contexto das duas passagens que fortalecem a conexão entre as duas histórias.  

Depois de o povo de Israel ter quebrado a aliança construindo para si um


bezerro de ouro, a fúria de Deus se acendeu contra seu povo. Como resultado,
através de um intenso diálogo com Moisés, Deus os ameaça destruir. Não
obstante, Moisés intercede pelo povo e pede para que Deus se volte de sua ira
(‫)שׁוּב ֵמחֲר ֹון ַאפֶָּך‬, arrependa-se do mal que havia intencionado (‫ ) ְו ִהנּ ֵ ָ֥חם עַל־ה ָָר ָ ֖עה‬e se

lembre (‫ )זָכַר‬de que eles são herdeiros das promessas feitas aos patriarcas (Êx.
32: 12-13). Imediatamente, o narrador descreve que a intercessão de Moisés foi
efetiva (DOZEMAN, 1989, p. 220), pois no v. 14 é dito: “Então se arrependeu o
SENHOR do mal que dissera que havia de fazer ao povo”.  

No caso dos ninivitas, a resposta divina é antecedida por uma enorme


comoção diante do anúncio de um juízo iminente (Jn 3:4). Embora não haja um
diálogo direto entre o rei de Nínive e Deus, é possível notar, através da repetição
de algumas palavras, uma relação bem próxima entre o pedido do rei e a resposta
divina39. Após estabelecer o decreto obrigando o jejum e o ato de clamar, no v.9
há uma súplica do rei para que Deus se arrependa de sua ira (‫ְשׁב ֵמח ֲ֥ר ֹון ַא ֖פּ ֹו‬
֛ ָ ‫)ו‬
contra seu povo. Em vista disso, Deus se arrepende do desastre pronunciado
(‫) ְו ִהנּ ֵ ָ֥חם עַל־ה ָָר ָ ֖עה‬40.  

                                                                                                                       
39
As palavras repetidas que destacamos: “caminho” ( ‫)דָּ ַרך‬, “voltar” ( ‫)שׁוּב‬, “mau” ( ‫) ָרע‬, “arrepender”
( ‫)נָחַם‬, “Deus” (‫)אֱֹלהִים‬. Estas palavras aparecem tanto no pedido do rei de Nínive (Jn. 3:9) quanto
na reação divina no v.10.  
40
Sweeney acrescenta que a reação divina à conversão de Nínive se assemelha ao relato criativo
de Gn. 1. “[...]Jon 3:10 relates Yhwh’s observation of the Ninevites’ repentance and Yhwh’s
decision not to carry out the punishment. The wording of the verse deliberately plays upon the
formulaic statements concerning Yhwh at creation, viz., “When G—d saw what they did (literally,

 
 

Hans Wolff e Douglas Stuart, sustentam que esta combinação de frases é


encontrada apenas em Êx 32:12 e Jn 3:9. Todavia, há uma diferença
determinante no uso da tradição de Moisés no livro de Jonas, pois, em Êxodo, isto
é aplicado para Israel, aqui em Jonas, para a gentia Nínive (WOLFF, 1986, p. 154;
STUART, 1987, p. 496).

Wolff ainda observa uma relação entre a progressão presente nas duas
histórias e o oráculo profético de Jeremias, indicando a condicionalidade do juízo
divino sobre qualquer nação (Jr 18:7-8). Para o autor, o texto de Jeremias é o
único que contém a mesma progressão de três períodos aplicados para uma
nação não israelita: palavra de julgamento, arrependimento e retração (WOLFF,
1986, p. 154)41.  

Stuart acrescenta que este texto de Jeremias é o locus classicus do Antigo


Testamento, ensinando sobre as possibilidades que compõe o alerta profético
(STUART, 2002, p. 495). Desta forma, ainda que a utilização da tradição de Êx.
32 em Jn. 3:10 seja, em certo sentido, inovadora (aplicando-se a Nínive), o texto
de Jr 18:7-8 mantém a dinâmica aplicável a Nínive.  

É importante ressaltar também que o uso do intertexto de Jn 3:10,


naturalmente, sugere uma ligação com o papel do profeta, como no caso de Êx
32:14. Contudo, ecoando o capítulo 1 e a proeminência do líder estrangeiro sobre
o profeta de Israel, é o rei de Nínive quem suplica a Deus para que Ele se volte de
sua decisão, e não Jonas. Cumprindo assim uma das funções proféticas de
interceder pelo povo diante de Deus. Uriel Simon argumenta que, desta maneira,
“além de Jonas fugir de sua missão específica à Nínive, ele também se rebela
contra o duplo papel profético: falar em nome do SENHOR para os seres
humanos e falar em nome dos seres humanos diante do SENHOR” (SIMON,
1999, xxxvi). Jonas se cala ao invés de assumir seu dever profético.  
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       
“their deeds,” ʾet maʿăśêhem) …” (cf. for example, Gen 1:31, “and G—d saw everything that he
had made [ʿāśâ], and indeed, it was very good”) so that Yhwh’s action in forgiving the Ninevites
might be compared to Yhwh’s observation of the goodness of creation (cf. SWEENEY, 2000, p.
303-333).  
41
Apesar de que Leslie Allen e Thomas Dozeman não concordam com esta mesma progressão de
três períodos, eles relacionam Jn 3:10 com o texto de Jr 18:7-8. Dozeman considera as cinco
vezes em que os verbos ( ‫ )שׁוּב‬e ( ‫ )נָחַם‬aparecem combinados no livro de Jeremias e descreve as
implicações de cada uso (DOZEMAN, 1989, p. 221).  

 
 

Apesar de Moisés ter o seu pedido atendido (Êx 32:14), ele percebe no
restante do capítulo 32 a indignação de Deus quanto à atitude do povo. O diálogo
entre Deus e Moisés continua, e a narrativa avança para a seu clímax em Êx 34,
onde Moisés presencia a revelação de Deus e o firmamento de uma nova aliança
entre Deus e Israel. Comentando acerca desta seção do livro de Êxodo (32-34), T.
Dozeman destaca o aspecto determinante da narrativa como sendo o
misericordioso caráter divino. Ele pontua:  

“de fato, é a habilidade de YHWH de arrepender-se do mal em Êxodo 32


que permite que a história continue e alcance sua culminação em Êxodo
34. Assim, a estrutura da narrativa sugere que a habilidade divina de
evitar uma destruição justificável e prolongar a vida, está
inextrincavelmente relacionado com o gracioso caráter de YHWH”.
42
(DOZEMAN, 1989, p. 221) .  

De forma semelhante a Israel ao povo de Nínive é concedido a


possibilidade de continuar existindo e nos dois casos esta possibilidade repousa
sobre o mesmo fundamento: o caráter de Deus. Todavia, dentro da narrativa do
livro, Jonas já havia sido objeto da misericórdia de Deus e O louvado por isto (Jn
2:6-9). Por esse motivo, a reação de Jonas se torna ainda mais intrigante: “[...]
desgostou-se Jonas extremamente e ficou irado” (4:1). O que esperar de Jonas
diante da misericordiosa ação divina, que como hebreu ele experimentava, mas
que agora também fora estendida para a recém-convertida Nínive?  

Robert B. Chisholm argumenta que a resposta de Jonas (Jn 4:1-2) ao


livramento de Nínive é irônica em alguns aspectos. O primeiro deles está na
repetição da raíz ‫ רעע‬que aparece no mal que Deus condena em Nínive (“sua
malícia” - ‫ )רעע‬em Jn 1:2, nos “maus caminhos” (‫ )רעע‬dos quais Nínive se

converte, e que também aparece, ironicamente, na reação de ira (‫ )רעע‬do profeta


(Jn 4:1). Isto ecoa o capítulo 1, onde Jonas é identificado como a causa do mal
(‫ )רעע‬que sobrevém aos marinheiros (1:7). A ironia reside na suposição de que no

                                                                                                                       
42
“In fact, it is the ability of Yahweh to repent of evil in Exodus 32 that allows the story to continue
and reach its culmination in Exodus 34. Thus, the very structure of the narrative suggests that the
ability to avert justified destruction and to prolong life is inextricably related to the gracious
character of Yahweh”.  

 
 

início do livro, Nínive é caracterizada como perversa, mas caminhando para a


conclusão, percebemos ser esta uma característica mais aplicável a Jonas
(CHISHOLM, 1990, p. 127)43.  

Outros aspectos irônicos estão presentes na reação de Jonas em 4:2, onde


pela segunda vez ele ora, e onde finalmente revela o motivo pelo qual se deu sua
tentativa de fuga para Társis. Além do mais, Jonas utiliza a fim de explicar-se,
uma ampliação da fórmula que revela o caráter gracioso e compassivo de YHWH
presente em Êxodo 34:6 (DOZEMAN, 1989, p. 207). É o uso desta fórmula no
livro de Jonas que iremos analisar agora.  

Relação 2  

Jn 4:2

‫ַויּ ִתְ ַפּ ֵ֨לּל ֶאל־י ְה ֜ ָוה וַיּ ֹא ַ֗מר ָא ָנּ֤ה י ְהוָה֙ הֲֹלוא־ ֶז֣ה דְ ב ִָ֗רי עַד־הֱי ֹותִ ֙י עַל־אַדְ ָמתִ֔ י עַל־כֵּ ֥ן‬
‫שׁה ִכּ֣י י ָדַ֗ עְתִּ י ִכּ֤י ַאתָּ ה֙ אֵ ֽל־חַנּ֣ וּן ו ְַר ֔חוּם ֶ ֤א ֶרְך ַא ַ֙פּי ִם֙ ו ְַרב־ ֶ֔חסֶד‬
ָ ‫ִק ַ ֖דּ ְמתִּ י ִלב ְ֣ר ֹ ַח תַּ ְר ִ ֑שׁי‬
‫ ְונ ָ ִ֖חם עַל־ה ָָר ָעֽה׃‬ 

“E orou ao SENHOR e disse: Ah! SENHOR! Não foi isso o que eu disse, estando
ainda na minha terra? Por isso, me adiantei, fugindo para Társis, pois sabia que
és Deus clemente e misericordioso, e tardio em irar-se, e grande em benignidade,
e que te arrependes do mal” (ARA).  

Êx 34:6

‫ְהו֣ה ׀ י ְה ֔ ָוה אֵ ֥ל ַר ֖חוּם ְוחַנּ֑ וּן אֶ ֶ֥רְך ַא ַ ֖פּי ִם‬


ָ ‫ַויַּע ֲ֨ב ֹר י ְהוָ ֥ה ׀ עַל־ ָפּנָי ֮ו ַויּ ִ ְק ָר ֒א י‬
‫ב־חסֶד ֶו ֱאמֶ ֽת׃‬
֥ ֶ ‫ ו ְַר‬ 

“E, passando o SENHOR por diante dele, clamou: SENHOR, SENHOR Deus

                                                                                                                       
43
Phyllis Trible, em sua análise deste verso (4:1), acrescenta outros dois contrastes. Ela
argumenta que a repetição da raíz ‫ ח ָָרה‬tanto em Jn 3:9 (“furor de sua ira” - ‫ ) ֵמח ֲ֥ר ֹון א ַ֖פּ ֹו‬quanto em
4:1 sugere um jogo de palavras que contrasta firmemente o caráter de Jonas e o de Deus, pois é
exatamente do que Deus se afasta que agora inflama Jonas. Ela também pontua que o último
contraste tem que ver com a relação entre Jonas e os ninivitas. Eles se convertem de seus maus
caminhos (3:10); Jonas, se inflama (‫ )ח ָָרה‬com o mal (‫( )רעע‬TRIBLE, 1994, p. 197).  

 
 

compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade” (ARA).  

Em seu discurso Jonas faz uso de uma fórmula do caráter gracioso e


compassivo de YHWH (cf. DOZEMAN, 1989, p. 207). Esta fórmula aparece em
alguns outros textos da Bíblia Hebraica44, mas nossa ênfase será na ocorrência
da mesma em Êx 34:6 onde ela é primeiramente introduzida como uma revelação
de YHWH e supostamente como a base para as demais ocorrências (DOZEMAN,
1989, p. 207; CHISHOLM, 2002, p. 414).  

Esta revelação do caráter de YHWH é fundamental para a narrativa do


Sinai porque ela permite que a renovação da aliança aconteça após os incidentes
ocasionados pelo bezerro de ouro (DOZEMAN, 1989, p. 218). Após a intercessão
de Moisés (Êx 32: 30-33), YHWH decide: “meu Anjo irá adiante de ti” (v. 34).
Embora haja uma resposta da parte de Deus, não há menção de que o povo fora
perdoado (v. 32) e no início do capítulo 33 há uma linguagem de aparente
descaso da parte de Deus. Moisés então suplica: “como se há de saber que
achamos graça aos teus olhos, eu e teu povo?” (Êx 33: 16). O desenrolar da
narrativa conduz para a revelação de Deus em Êx 34:6-7 e a segurança de que tal
caráter possibilita um recomeço na relação entre Deus e Israel.  

Apesar de ser uma repetição que parcialmente ocorre em outros contextos,


à luz de Jonas, ela se destaca pela curiosa inovação em seu uso. Geralmente
utilizada em contexto de adoração, esta declaração é agora utilizada pelo autor de
Jonas e colocada na boca do profeta para expressar sua ira contra Deus
(WOLFF, 1986, p. 167). Nesta mesma direção Leslie Allen pontua que “as
palavras que em outro lugar do Antigo Testamento evoca louvor dos homens, é
tornada aqui, ofensivamente, uma causa para descontentamento” (ALLEN, 1976,
p. 229)45. Na boca de Jonas, tais palavras soam de forma atrevida, como um
desafio ao próprio caráter de Deus. Para Jacques Ellul (1971, p.74), ao citar as
mesmas palavras que o SENHOR citou a Moisés “Jonas coloca Deus contra
Deus, a palavra de Deus contra o mandamento de Deus, e tudo para justificar ele
                                                                                                                       
44
Nm. 14:18; Sl 86:15; 103:8; 145:8; Na. 1:3; Ne 9:17; Jl 2:13. Dentre estas ocorrências, destaco o
texto de Joel 2:13, que assim como o texto de Jonas 4:2, acrescenta a última linha ( ‫) ְונ ָ ִ֖חם עַל־ה ָָר ָעֽה‬.  
45
“[...] words that elsewhere in the OT calls forth men’s praise are here offensively made a cause
for complaint”.  

 
 

mesmo”.  

Nesta segunda oração, Jonas finalmente explica sua fuga do chamado


divino. Ao explicar-se ele o faz justificando-se: “por isso (‫ )עַל־כֵּ ֥ן‬me adiantei” (Jn
4:2). Seu discurso é marcado pela ênfase na primeira pessoa do singular. Cinco
palavras neste verso possuem esta terminação. Incluindo o verso 3, são ao todo
nove referências egocêntricas; o “eu” parece envolver toda a confissão de Jonas
quanto ao caráter misericordioso de YHWH. No entanto, para Trible (1994, p. 200-
201), até mesmo estas “palavras de justificação própria, ironicamente, testificam a
misericórdia divina”46. Por mais que exista esta ênfase egocêntrica, o narrador faz
Jonas afirmar que as preocupações de YHWH são universais (ALLEN, 1976, p.
228) e de que ele sabia, desde o começo, que isto poderia incluir Nínive.  

Há um aspecto que coloca as reclamações de Jonas em questão: a


aparente ignorância que acompanha esta declaração (4:2). Seu argumento é
baseado no credo que marca a misericórdia de Deus para com Israel (ALLEN,
1976, p. 228). Para Robert Chisholm, no uso deste credo, podemos perceber mais
uma vez (cf. Jn 1:9) a ironia que envolve o argumento do profeta. Deus decidiu
mostrar misericórdia para os dois, mas “Jonas estava disposto a aceitar isto no
caso de Israel (e no seu mesmo), mas não no caso dos Ninivitas” (CHISHOLM,
1990, p. 128).  

O que nos surpreende ainda mais é que sua declaração é consciente: “pois
eu sabia” (Jn 4:2). Jonas está decidido de que sabe o que está fazendo (talvez
isto o torne ainda mais ignorante). A palavra “sabia” - ‫ י ָדַ֗ עְתִּ י‬- aparece circundada
por duas partículas - ‫ ִכּ֣י‬- que de acordo com Trible, produz uma ênfase através do

ritmo47 (TRIBLE, 1994, p. 200). Este verbo ‫ י ָדַ ע‬aparece de forma significativa em
Êxodo 33 e o seu uso em comparação com o uso de Jonas fortalece o contraste
entre os dois profetas. Em seu diálogo com YHWH, várias vezes Moisés expressa
o desejo de saber o que fazer (33:5, 12, 16): “rogo-te que me faças saber (‫)י ָדַ ע‬

                                                                                                                       
46
“These self-justifying words ironically testify to divine mercy.”  
47
Outra sugestão dada por ela é que em outras ocorrências como em Gn 22:12; Êx 18:11 e 1 Rs
17:24, parece apontar para uma expressão clímax (TRIBLE, 1994, p. 200).  

 
 

neste momento o teu caminho, para que eu te conheça (‫[ )י ָדַ ע‬...]” (Êx 33:13).  

Na narrativa de Moisés “saber” ou “conhecer” está relacionado com um


“não saber” (os caminhos de YHWH) que conduz a uma aproximação do divino.
Moisés sobe no Monte Sinai e ali Deus revela Seus atributos. Na narrativa de
Jonas, o profeta demonstra que os caminhos do Senhor já são conhecidos por ele
e isto o leva a um movimento de descida para fugir da presença do SENHOR (Jn
1:3). Para Simon (1999, p. xxxvii), “ele reprova o Céu anunciando que não
considera o divino atributo da misericórdia algo louvável”48.  

Outra relação contrastante do verbo ‫ י ָדַ ע‬pode ser encontrada na


comparação entre os discursos de Jonas e do rei pagão. Sua afirmação “eu sei”,
forma um contraste com a expressão do rei de Nínive “quem sabe?” (3:9). O rei
de Nínive parece estar a favor da soberania de Deus quanto a sua maneira de
lidar com a misericórdia, ao passo que Jonas confronta a decisão divina.  

Ao retornar à trajetória de Jonas no decorrer do livro, é notável como o


autor elabora um personagem que tem em sua disposição “credos”, mas que não
possui um comportamento tão religioso quanto os gentios:  

“como no capítulo 1, Jonas termina em um distante segundo lugar


quando comparado com os pagãos e seu temor à Deus. Os Ninivitas
responderam imediatamente e positivamente à revelação de Deus, em
contraste ao rebelde Jonas, que obedeceu a Deus apenas depois de
sujeitado às mais drásticas medidas divinas. Jonas foi presunçoso
quanto a graça de Deus; o rei de Nínive humildemente submisso à
soberana autoridade de Deus, reconhecendo que Deus não era obrigado
a poupar a cidade (cf. 3:9)”. (CHISHOLM, 1990, p. 126-127).  

Em vista de tantas incongruências que envolvem Jonas, Edwin M. Good


nos lembra de que a participação do leitor é crucial na construção da ironia. Uma
vez que a ironia é crítica, o leitor percebe as incongruências na maneira com que
as coisas lhe são apresentadas pelo ironista (autor), seja de forma implícita ou
explícita (GOOD, 1981, p. 30).  

                                                                                                                       
48
“He reproves Heaven by stating that he does not consider the divine attribute of mercy to be
praiseworthy”.  

 
 

Ao fazer o uso de frases que remetem à narrativa da renovação da aliança


(Êx 32-34), o autor de Jonas coloca na boca do profeta e do rei de Nínive,
palavras que extrapolam seu significado próprio. À luz da relação intertextual elas
soam como uma “espada de dois gumes”, e as implicações de tais palavras são
expandidas pelo leitor que possui um contexto mais amplo de conhecimento.  

Uma vez que as incongruências foram reconhecidas na relação entre os


textos de Jn 3:7-4:2 e Êx 32-34, torna-se necessário avançar em direção ao que
está sendo criticado através da ironia. De acordo com Good, a crítica do ironista
advém de uma espécie de ideal de como as coisas deveriam ser. Desta forma, o
ironista tenta formar uma conexão entre leitor e ironia, baseando-se em sua
posição quanto à verdade (GOOD, 1981, p. 31; WEST, 1984, p. 240).  

James Ackerman sugere que uma das críticas principais de todo o livro
está relacionada com as incongruências que acompanham as ações de Jonas.
Para o autor: “a história satirizou Jonas como um profeta cuja piedade está fora
de sincronia com seu comportamento” (ALTER, 1997, p. 258). Todavia, através da
intertextualidade, pode-se acrescentar ainda que a crítica do autor à Jonas não se
dá apenas no nível de seu comportamento, mas também naquilo que ele deveria
fazer e não faz.  

Embora o texto de Jonas em momento algum o chame de profeta, desde o


início da narrativa, Jonas é caracterizado como tal. É ele quem recebe a “palavra
do SENHOR” duas vezes (Jn 1:1; 3:1). É ele o único personagem que dialoga
com Deus livremente. É ele quem usa credos e tradições (1:9; 4:2). Mas ao
mesmo tempo ele é também o único que deseja fugir da presença do SENHOR
(1:3), que desobedece a uma ordem divina e parece não se importar tanto com a
vida daqueles que o cercam (1:6; 3:4; 4:10-11).  

Como já foi mencionado na análise da primeira relação intertextual (Jn 3:7-


10), Jonas deveria cumprir o papel profético de interceder por outros seres
humanos diante de Deus, mas é o rei de Nínive quem assume este papel. Na
relação com a narrativa de Êxodo 32 o rei gentio parece ser apresentado pelo
autor como “Moisés”, um intercessor de seu próprio povo. Desta maneira, ao

 
 

trocar as figuras o autor forma um contraste surpreendente. Jonas é um profeta


disfuncional, cujo papel pode ser facilmente substituído por um rei pagão.  

Além disso, Jonas extrapola os limites do chamado profético. Ele usa a


palavra de Deus contra o próprio Deus e isto com objetivo de protestar contra a
misericórdia divina. O que é ainda mais intrigante é que ele o faz em plena
consciência (Jn 4:2). É justamente essa “consciência” que parece ser criticada na
segunda relação intertextual.  

Apesar de Jonas pela primeira vez declarar saber o que está fazendo, há
ainda um tom de ignorância em seu discurso. Ao protestar contra a misericórdia
de Deus ele acaba se colocando em uma situação complicada. Isto se dá por
duas razões. Primeiramente, no livro como um todo Jonas mesmo é objeto da
misericórdia divina. Mesmo em desobediência ele é favorecido por Deus diversas
vezes. Além do mais, à luz da narrativa de Êxodo, seu protesto se torna ainda
mais injustificável, pois naquela ocasião, seu povo só não fora destruído por
causa do mesmo atributo divino: a misericórdia.  

Em última análise, o que o autor parece estar criticando é a reação de


Jonas diante da maneira com que Deus lida com a Sua misericórdia. Até mesmo
quando Jonas tenta dar razão ao seu protesto ele acaba sendo ridicularizado sob
a vista do leitor. Afinal, quem concordaria com alguém que tem mais misericórdia
de uma planta do que de uma cidade inteira? Todo este uso da ironia talvez
sugira que o não reconhecimento de Jonas como profeta no livro seja intencional,
uma forma sutil de sublinhar o papel tragicômico que envolve Jonas em sua
tentativa de fugir do gracioso YHWH.  

6 CONCLUSÃO  

A presente pesquisa foi direcionada para alguns aspectos literários do livro


de Jonas e teve como interesse principal verificar o uso da intertextualidade como
instrumento de ironia.

Nessa pesquisa foi realizada uma breve análise sobre duas características

 
 

literárias desenvolvidas no livro de Jonas. Através dessa análise, nota-se como


elas são importantes para perícope em questão, pois tanto a omissão de
informações quanto a ironia, identificadas logo nos primeiros eventos do livro,
preparam o leitor para os eventos que tomam forma em Jn. 3:7-4:2.

Em seguida, analisamos a estrutura da perícope escolhida, conforme


sugerida por Phyllis Trible. Por se tratar de um livro pequeno, também
examinamos como o livro de Jonas é divido, destacando algumas relações entre
as duas partes principais desta divisão e como a estrutura do livro também
fortalece o contraste entre Jonas e os líderes dos povos pagãos representados
pelos marinheiros e ninivitas.

No tópico intitulado “palavras-chave” foi realizado uma breve análise de


algumas palavras que parecem “jogar” com seus significados dentro da narrativa.
Dentre estas palavras, destacamos a última palavra do sermão profético em Jn.
3:4, onde o autor convida sua audiência para controlar o significado da mensagem
profética. Dessa maneira, cria-se no leitor (audiência) a expectativa do que
sucederá.

Por fim, foi examinada a relação intertextual entre a perícope em questão e


a narrativa de Êx 32-34. Ali destacamos o uso inovador que o autor de Jonas faz
do texto de Êxodo a fim de caricaturar o disfuncional profeta de Israel, cujo papel
profético é substituído pelo rei de Nínive. Além do mais, na segunda relação
intertextual analisada, Jonas é apresentado em agudo contraste ao profeta
Moisés, principalmente no que tange a revelação do caráter gracioso de YHWH.
Sendo assim, pode-se afirmar que o autor do livro de Jonas se utiliza da
intertextualidade como um instrumento irônico, envolvendo o profeta em um
contexto mais amplo para ratificar a ironia presente nas ações e falas do profeta,
sendo estas não apenas internas ao texto de Jonas, mas também externas ao
mesmo, como exemplificado no diálogo com o texto de Êxodo.

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