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Guavira no11

POESIA E PINTURA ABSTRATA:


A MÚSICA DAS CORES

Jacineide TRAVASSOS1

RESUMO: Neste artigo procuramos abordar a evolução da doutrina horaciana da Ut Pictura Poesis, o flerte
entre as artes, privilegiando a relação entre o espaço e o tempo através de uma análise comparativa entre a
poesia e a pintura abstrata. Ressaltamos as virtualidades das palavras e das cores, investigando a relação
imagem-som e imagem-movimento. Concluímos, em nossa análise, que há uma homologia estrutural entre as
artes em questão no tocante à espacialidade e temporalidade, sendo esta também uma categoria da música. Os
instrumentos teóricos, que adotamos para empreender esse comparativismo, são referentes à crítica de orientação
estética, literária e semiótica.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Pintura. Estética. Semiótica da Cultura. Intersemiose.

Introdução

Sabemos que para investigar a relação entre linguagem e realidade na poesia e na


pintura, temos que alargar o conceito de texto e entendê-lo semioticamente como discurso,
processo que abarca todas as artes. O texto, no âmbito semiótico, é fenômeno translinguístico
e Jean Molino (1989, p.25), como lingüista, também nos adverte que a base para a resolução
da aporia, com respeito à necessidade de se instituir um modelo geral de texto, consiste em
atribuir um sentido metafórico e heurístico à sua noção. Pergunta-se Molino: “O historiador
de arte em frente a um quadro, o arqueólogo frente a um monumento, o geógrafo frente a uma
paisagem, o sociólogo frente a um movimento social estão na mesma posição de um intérprete
junto a um texto?” (MOLINO, 1989, p.26). Molino diz ainda que poderíamos, como boa
medida, acrescentar que o físico está diante da natureza como diante de um livro escrito,
segundo a fórmula de Galileu, em signos matemáticos.
Antes de Jean Molino, Iuri Lotman (1996, p. 149) - no início do século XX - ressaltou
o talento poliédrico de Lomonossóv, um dos fundadores da semiótica da Cultura, para quem
“o elo que une domínios diferentes da vida no planeta é a linguagem” (MACHADO, 2003, p.
24). Segundo Irene Machado (2003), a semiótica da cultura funda, com base no legado de
Lomonossóv, o moderno conceito de texto como um novo domínio de idéias científicas onde
operam as mais radicais formas de semioses. Os semioticistas russos defendem a concepção
do texto como unidade básica da cultura, e não do sistema lingüístico. Nesse sentido, uma
dança, uma cerimônia, uma obra de arte e muitos outros produtos e manifestações culturais
são considerados texto.
Os teóricos que tratam da intersemiose lançam luz sobre as mesmas questões
abordadas por Molino. Julio Plaza (1987), autor d’A Tradução Intersemiótica, aponta
Jakobson como o primeiro a discriminar os tipos de tradução: a interlingual, a intralingual e a
intersemiótica. Esta última que nos interessa particularmente, também denominada
transmutação, foi por ele definida como aquela que consiste na interpretação dos signos não

1
Universo - Universidade Salgado de Oliveira - Pós-graduação em Literatura Brasileira e Arte –Recife – PE -
Brasil - CEP: 51150-001. E-mail: jacineidetravassos@hotmail.com.

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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses.
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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verbais, ou de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a
dança, o cinema, a pintura e vice-versa. Diz Dominique Maingueneau que:

a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de troca entre


vários discursos [...]. A prática discursiva se define pela unidade de um conjunto de
enunciados, e também é uma prática intersemiótica que integra produções na
dependência de outros domínios semióticos (pictural, musical, etc.).
( MAINGUENAU, 1984, p.1-13)

Etienne Souriau (1983, p.11-13), em seu livro intitulado A Correspondência das Artes
– Elementos de Estética Comparada, partindo de um aforismo de Victor Hugo: “O vento são
todos os ventos” cria a paráfrase: “A arte são todas as artes”. Porém, Souriau afirma que a
pesquisa, neste domínio, só será interessante se banir e interdisser severamente as metáforas
imprecisas, as analogias confusas que são evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma
arte a linguagem de outra. A respeito desta mesma questão, diz-nos Karel Boullart, professor
da Universidade de Gand:

As intuições mais corriqueiras a respeito das ‘correspondências’ das artes tendem,


em sua maioria, a cair na metáfora. Diz-nos que existem sonetos esculpidos e
romances de composição arquitetônica, mas um soneto não é uma escultura e um
romance não é uma catedral. Mesmo um poema manifestamente composto, segundo
o princípio ‘música antes de mais nada’ (Verlaine) não é música propriamente dita:
é, em primeiro lugar e fundamentalmente, um poema. (BOULLART, 1987, p.72)

Acreditamos que Molino, Lomonossóv, I. Lótman, Julio Plaza, Jakobson,


Maingueneau, Etiene Souriau e Boullart, implodem o paradigma tradicional do texto legando
o critério de textualidade e leitura, não só ao literário, mas também ao vasto domínio das
várias linguagens e sistemas de significação. Os teóricos que citamos enfatizam bastante o
fato de existir, em cada modalidade textual, qualias diferentes que alteram o seu modo de
significar. Daí a necessidade de nos afastarmos das metáforas e analogias imprecisas, cientes
que as artes dialogam entre si, mas conservam sua materialidade artística própria. Em nossa
investigação, afirmamos uma correspondência entre a poesia e a pintura, cientes de que há
uma identidade de estruturas em uma variedade de meios.
A intersemiose, o diálogo entre as artes, seja música, pintura ou cinema etc., jamais
trata-se de um anseio eminentemente da arte contemporânea. Muitos o quiseram: Os gregos,
Diderot (em carta endereçada a Abbé Batteaux escreveu: “Comparar as belezas de um poeta
com as de outro poeta é coisa que já se fez milhares de vezes. Mas congregar as belezas
comuns da poesia, da pintura e da música (…) eis o que resta fazer e o que vos aconselho a
acrescentar ao vosso Beaux-Arts réduit à un même principe.” 2 os poetas franceses, sobretudo
Baudelaire (Les Parfums, les couleurs et les sons se répondent), Rimbaud em Voyelles (A
noir, E blanc…), Verlaine (De la musique avant toute chose) e J. K. Huysmans (com seu
personagem Des Esseintes), que alegoriza a própria estética no seu romance simbolista A
Rebours. Outro exemplo dessa interatividade está em Scriabin n’O Poema do Êxtase
(interdiscursividade entre dança, música, cores, perfumes), lembramos ainda o ideário de uma
completa fusão entre escultura abstrata e tecnologia de construção expresso por J. J. P. Oud e
retomado na arquitetura por Walter Gropius e Le Corbusier. No âmbito das correspondências,

2
DIDEROT apud ASSEZAT, J et TOURNEUX, M (1875). Ouvres Complèts de Diderot. Paris, Garnier.

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sincronização dos sentidos e signos poderíamos citar exaustivamente, se é que já não o
fizemos.

Ut pictura poesis

Como vimos, a noção de parentesco entre as diversas linguagens artísticas constitui


um topos revisitado e remineralizado ao longo dos séculos, independente da qualia artística de
quem o realiza. A relação texto/tela, também não é uma prática recente, embora pouco
explorada ainda nos estudos contemporâneos. Jean Hagstrum (1958) em The Sister Arts of
Literary Pictorialism and English Poetry from Dryden to Gray, embora atenha-se à tradição
inglesa, retraça a história da interrelação entre a pintura e a poesia partindo de suas origens.
Segundo Hagstrum dois nomes apresentam-se como basilares nesta intersemiose: Horácio e
Simonides de Cós. Horácio, que criou a expressão Ut Pictura Poesis em sua Ars Poetica,
(anos 14 e 15 A.C.) postula: “Ut Pictura Poesis: erit quae, si propius stes, te capiat magis, et
quaedam, si longius abstes; hace amat obscurum, volet hacc sub luce videri, iudicis argutum
quae non formidat acumen.”( HORÁCIO, 1989, p.73)3
A teoria implícita no axioma horaciano orientou, por séculos, o caminho por onde
havia de trilhar as discussões sobre as artes, mantidas sob a custódia das relações entre as
representações imagéticas (pintura) e retóricas (poesia) fundadas sob a distinção valorativa:
signos naturais e signos artificiais, respectivamente. Como salienta João Alexandre Barbosa
(1994, p.11), esta concepção dominou, sobretudo, os períodos clássico e romântico na história
da arte e da literatura. As comparações entre poesia e pintura eram mote perpétuo. Plutarco
atribui a Simonides de Cós a formulação de que “a pintura é poesia muda e a poesia é uma
pintura falante.” Baumgarten adverte que “é próprio da pintura representar o que é composto;
e este procedimento é um procedimento poético.” (BAUMGARTEN, 1993, p.26)
Gotthold Efrain Lessing (1998) é apontado pelos historiadores da arte como o melhor
leitor de Horácio em sua época, pois, na verdade, Lessing o releu dando um grande passo
adiante de suas teorias. O seu tratado sobre as artes literárias e pictóricas data de 1766, foi
publicado sob o título de Laokoon, ou Os Limites da Pintura e da Poesia. Suas indagações a
respeito das artes são apresentadas a partir do famoso conjunto escultórico Laokoon, que
representava o sacerdote troiano homônimo e seus dois filhos no momento de suas mortes,
sob os encalços de duas serpentes que os enroscam e os mordem. Uma das versões sobre o
fato narra que tal castigo deveu-se ao fato de Laokoon haver tocado os preceitos de Apolo. A
obra é atribuída ao escritor grego Alexandre de Rodes em co-autoria dos filhos Atenodoro e
Apolidoro.
Laokoon, aponta Aguinaldo Gonçalves (1994, p.31) em seu Laokoon Revisitado.
Relações Homológicas Entre Imagem e Texto, pode ser definido como a “conjunção de várias
tendências que se unem para um único propósito”, ou seja, criticar o arqueólogo Johann
Joachim Winckelmann em suas Reflexões Sobre a Imitação das Obras Gregas na Pintura e

3
HORÁCIO (1989). “Arte Poética”. In: Crítica e Teoria Literária na Antiguidade. Rio de Janeiro, Ediouro, p.73,
tradução de David Jardim Júnior: Um poema é como um quadro: quanto mais perto estiverdes dele, mais vos
impressionará, mas deveis ficar a uma boa distância; esse precisa de um canto bastante escuro, mas aquele
necessita de luz plena, e resistirá ao cuidado exame do crítico de arte; esse só vos agradará a primeira vez em
que for visto, mas aquele vos deleitará tantas vezes quanto seja olhado.

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na Escultura (Gedanken Über die Nachahmung der Grie Chischen Werker der Malerei und
Bildhaverkunst, 1755). Podemos inferir, pela sua linha de abordagem, que Winckelmann
também se baseia na Arte Poética de Horácio, assim como no Tratado Sobre o Sublime de
Longino, privilegiando a obra escultórica como base de seus estudos. Porém seus argumentos
revelam frágeis noções e impressionismos sobre a literatura e as artes visuais, sobretudo
quando compara o Laokoon com a Eneida de Virgílio e o Filoctetes, de Sófocles. De modo
contrário porta-se Lessin (1998, p.145) posto que desloca o comparatismo entre a pintura e a
poesia do campo movediço da dicotomia: signos naturais vs. signos artificiais para a questão
do espaço e do tempo.
Lessing possibilitou-nos pensar as artes pictóricas e poéticas a partir do uso
diferenciado de seus meios de expressão: pintura (mímese do visível, dos corpos), poesia
(mímese das ações). Enfim, Lessing estabeleceu a pintura como a arte do espaço, por
excelência, e a poesia arte do tempo. Embora estas noções representassem um avanço para a
época (daí a nossa obrigação de revisitá-las), hoje tornou-se inconcebível tal distinção, seja no
campo da física, como bem nos demonstra Einstein, seja no campo das artes, à luz das
diversas correntes da filosofia, citamos a Poética do Espaço de Gaston Bachelard como
exemplo e, sobretudo sob o prisma da semiótica.
Mukarovsky (1990, p.81) critica Lessing por pensar que as artes são limitadas pelo
caráter de seus materiais e por acreditar que os artistas não devem tentar ultrapassar os limites
impostos por eles. Deste modo, considera que sua idéia base, hoje, encontra-se ultrapassada.
A. Gonçalves, ao revisar o Laokoon, credita razão aos argumentos de Mukarovsky. Diz que
“se aproximarmos a câmara às conquistas da pintura e da poesia anteriores ao romantismo,
notaremos que já para aquela época tal idéia não procedia.” (GONÇALVES, 1994, p.32).
Adverte que, da maneira como Lessing conjecturou a respeito da poesia e da pintura, os
signos assumem, em sua teoria, um alto grau de superficialidade; são postos apenas quanto
imitadores de corpos e ações. Sabemos que as artes não seguem este caminho ao correr dos
tempos.
Diz Northop Frye que há um grau de razoabilidade incontestável que fale-se do ritmo
“quando se desenvolve no tempo, e desenho, quando se distribui no espaço” (FRYE, 1993,
p.81). Mas salienta que:

[...] todas as artes possuem um aspecto temporal e um espacial, embora estas


categorias se desenvolvam de acordo com as possibilidades materiais de cada arte e
seu modo de estruturação. Referindo-se à literatura, especificamente, ressalta que as
obras literárias também se movem no tempo, como a música, e se estendem em
imagens, como a pintura. (FRYE, 1993, p.81)

A Ut Pictura Poesis é comum a muitas épocas. Segundo Mario Praz, em seu texto
Literatura e Artes Visuais, “desde os tempos remotos tem havido mútua compreensão e
correspondência entre a pintura e a poesia”. (PRAZ, 1982, p.2) Diz-nos que idéias foram
expressas por meio de pinturas, não só nos hieróglifos egípcios, como através de uma “longa e
assaz copiosa” tradição simbólica, parte da qual foi brilhantemente evocada por Edgar Wind
(1958), em seu livro acerca dos mistérios pagãos da Renascença (Pagan Misteries in the
Renaissance).
No Renascimento, a relação poesia/pintura parecia inevitável, a exemplo do pintor
Botticelli e dos poetas Policiano e Ficino, que compunham influenciando-se mutuamente.
Muitos poetas, como Ariosto e Aretino, valeram-se de técnicas pictóricas para escrever.
Pintores, tais como os simbolistas Gustave Moreau, Rodolph Bresdin, Odilon Redon, o

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expressionista Munch, entre muitos outros, extraíram idéias e imagens dos escritos de poetas e
romancistas. Mas, em se tratando de um estudo intersemiótico, devemos afastar-nos das
metáforas e analogias imprecisas, cientes que as artes dialogam entre si, porém conservam sua
materialidade de linguagem e artística.

Poesia e pintura abstrata

Vimos que, dentro do enfoque da teoria de Lessing, com base na teoria clássica da
mímese, o espaço é o lugar ocupado pelos corpos, pelos elementos estruturais da pintura:
ponto, linha, superfície e volume. De acordo com a semiótica, lembramos que o espaço deixa
de ser simplesmente um lugar ocupado pelas coisas e ganha força de linguagem. Devemos
revisitar a importantíssima teoria de Lessing, mas não podemos aceitar, ao modo de
Mukarovsky, Frye e A. Gonçalves, no domínio das artes, a separação rígida das categorias de
espaço e tempo.
Bem sabemos que a poesia, a literatura, é imagem-som. Assim, temos uma só
dimensão espácio-temporal na poesia de Ungaretti:

ROSA EM CHAMAS
sobre um oceano
de campainhas
subitamente
flutua outra manhã

(UNGARETTI, 2003, p.153)4

Vejamos outro exemplo em Guilherme de Almeida:

INFÂNCIA

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora”

(ALMEIDA, 2004, p.26)

Em Ungaretti a Imagem “oceano de campainhas” é indicadora de uma grande


hiperestesia, pois a água torna-se metaforicamente sonora, ao passo que indica também
passagem de tempo: “flutua outra manhã”. No haicai de Guilherme de Almeida, igualmente
hiperestésico, a “amora e o sol”, degustados em simultâneo, instauram o movimento do
tempo, a captação do instante passado no tempo presente, como bem indica a expressão
“chamava-se ‘Agora’”. Guilherme de Almeida tenta captar, pintar ou fotografar o instante da
infância passada, ao modo de uma recordação lírica, como a concebeu Emil Staiger (1975, p.
59-60): fusão do passado com o presente e fusão do eu com o outro. Do mesmo modo, em
homologia estrutural com a poesia, dá-se com a pintura abstrata. Sendo o ponto índice de uma
linha e formador dinâmico de outras figuras na tela, como demonstra-nos Kandinsky,
admitimos, também, uma temporalidade na realização da dinâmica interna do quadro:

4
Texto original. ROSE IN FIAME : Su un oceano/ Dis scampanelli/ Repetina/ Un lattra matina

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(Fig.1. Kandisnky, Improvisação Sonhadora)5

Ao estudar semioticamente a tela Improvisação Sonhadora, de Kandisnsky, diz Walda


Leite que “o objeto é percebido, não como parte do espaço, mas por sua continuidade”.
(LEITE, 1985, p.20) Adverte, ainda, que, desta maneira, o objeto passa a ser signo, pois
mantém uma profunda dialética com o tempo, que, no caso, “é criado pela repetição de traços
que espacializam a diacronia do movimento”. (LEITE, 1985, p.21) Lembramos também que o
elemento temporal pode ser reconhecido através da dimensão longitudinal dos elementos
estruturadores do quadro. Leiamos um trecho de O cão Sem Plumas (Paisagem do
Capibaribe) de João Cabral de Melo Neto:

A cidade é passada pelo rio


como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava


a língua mansa
de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
nada sabia da chuva azul,
da fonte cor de rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro
dos peixes de água,

5
1915,óleo sobre tela, pode ser visto em Munique no Staatsgalerie moderner Kunts.

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da brisa na água

[...]

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes
jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro

[...]

(MELO NETO, 1994, p.105-106)

Cabral, como assinala Secchin (1985, p.77), vai gradualmente combatendo o caráter
impositivo da metáfora em um processo contínuo de remineralização da palavra, propõe a
imagem do cão como rio, depois atribui ao cão e ao rio o que é próprio de um pano sujo e do
pássaro: “plumas”. A ideia de temporalidade já se manifesta no elemento “rio” que se muta e
simbiotiza-se, por alusão, com os elementos da paisagem por onde passa. A fanopeia é
evidenciada na gradação de cores do poema: azul, cor de rosa e negro. As cores suaves, azul-
rosa, são signos de uma amenidade que o rio Capibaribe não conhece. Domina o grito social
da paisagem de um homem-anfíbio que vive na miséria. A cor que evidencia esse elemento é
o negro, esta assinala a vida de lama do homem na lama. O rio-ser-paisagem instaura o
sublime negativo.
O Cão Sem Plumas assinala o caráter impermanente e mutável do tempo, do sentido
das palavras e de todas as coisas, o “rio” não é o solista dessa música das palavras, mas se
funde com o ser, com elementos vegetais, minerais e da cultura, antes aparece como um
substantivo-caleidoscópico que se repete dando ritmo, sonoridade, instaurando um poema-
jazz, onde tudo está em tudo. Essa repetição também assinala o poeta não só como um ser
engajado, mas como trabalhador das palavras. Podemos dizer, ao modo de Haroldo de
Campos, que Cabral é um geômetra engajado. Contemplemos Mondrian:

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(Fig.2. Mondrian, Broadway Boogie-Woogie)6

Segundo Meyer Shapiro (2001, p.73-84), Mondrian, na tela em questão, caminha em


direção à nova tendência voltada para a simetria, clareza e a legibilidade de uma arte que se
materializa no questionamento e recombinação da sua própria matéria: cores primárias -
branco, azul, vermelho e amarelo - linhas verticais e horizontais, enfim, ao abstrato, à “pintura
pura”, ao neoplasticismo. A relação dessa tela com o abstrato e com a música é evidente, as
unidades, verticais e horizontais, de cada conjunto de cores foram meticulosamente
recombinadas e embaralhadas, ao modo da palavra “rio” no Cão Sem Plumas de João Cabral
de Melo Neto, permanecem o geometrismo das figuras oblongas e quadradas mas sempre
caleidoscopicamente recombinadas de modo a instaurar, simultaneamente, ordem e
movimento. Vale ressaltar que o uso dos arranjos de cores primárias, na sua fase
neoplasticista, estabelece ainda uma ligação com a sua fase neo-impressionista. Ressalto que
ao criar suas telas de modo abstrato, Mondrian, como Cabral, não abdica do seu grito social,
pois jamais recusa a realidade mas a aparência da realidade. Desse modo, exorta seu
espectador a olhar a vida e a tela criticamente, mais uma vez trata-se de um geometrismo
engajado
O título da tela, Broadway Boogie-Woogie, já insinua um diálogo com a música e a
dança, enfim com as categorias do movimento e da temporalidade. Como assinala Meyer
Shapiro “[...] mesmo sem sabê-lo, provavelmente pensaríamos em música ao olhar esta tela
maravilhosamente viva, colorida e repleta de jazz.” (SHAPIRO, 2001, p.79) Não esqueçamos
também que a poesia é a dança das palavras, expressão do pensamento por imagem-som.

Conclusão

Como atestam os teóricos da literatura, à época do seu surgimento, no século XIX, a


literatura comparada que era concebida como subsidiária da historiografia literária punha em
relação apenas duas literaturas diferentes e preocupava-se, sobretudo, com a migração de um
elemento literário de um campo a outro, ou seja, com as influências que exercia uma literatura
6
Mondrian: Broadway Boogie-Woogie, 1942-43. Coleção, TheMuseum of Modern Art, Nova York. Doação
anônima.

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nacional sobre outra. O comparatismo literário mantinha-se, desta forma, sob uma forte base
de valor axiológico e resultava em um dado ecumênico falho. Visto que, como assinalou P.
Brunel (1990, p.2), Pichois e Rosseau, “a reivindicação nacionalista é condenável pois sendo
política, é freqüentemente acompanhada de pretensões a superioridades étnicas.” De início o
comparatista prestou-se a julgar a originalidade de cada literatura.
No século XX, o conceito de originalidade foi intensamente refutado por teóricos
como Tinianov, Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva, entre outros, sendo substituído pela noção de
intertextualidade. Sabendo-se, hoje, que a literatura nasce da literatura e que esta trata-se de
um único palimpsesto raspado e reescrito sem cessar ao longo dos tempos, a literatura
comparada ampliou seu método de abordagem e comprova que a obra literária produz-se em
um constante diálogo de textos, por retomadas e trocas. Deste modo, supera a função, a priori,
niveladora e internacionalista, convertendo-se em uma disciplina que põe em relação
diferentes áreas das ciências e das artes, expandindo-se no vasto domínio das relações
intersemióticas. Como chama-nos a atenção Jean Molino, Maingueneau, Boullart, entre outros
teóricos que citamos, temos que alargar o conceito de texto, para além de suas propriedades
puramente linguísticas, sistematizá-lo enquanto fenômeno traslingüístico, se pretendemos
realizar uma exegese eficaz da relação entre as artes.
A interdisciplinaridade, no que se reporta ao comparatismo, não é novidade no campo
das relações interartísticas – se lembrarmos o já citado estudo de G. E. Lessing com o seu
Laokoon, ou os Limites da pintura e da poesia (1766) já tão distante de nós – mas as relações
mútuas entre as artes têm sofrido muitas restrições. Há ainda resistências em admitir-se que a
comparação dá-se, também, no ultrapassar as similaridades, que o comparatismo pode operar-
se pelo confronto de elementos, por vezes mesmo, díspares. Tais questões não estão
suficientemente avançadas no estado atual dos estudos em pauta e inúmeras pesquisas ainda
estão por fazer.
O estudo da literatura comparada alcança, atualmente, o terreno das artes que
constituem, por si, partes de uma totalidade: a Estética. O comparatista sem deixar de ter a
literatura como principal objeto de investigação, deve interrogá-la, entendendo-a não como
um sistema fechado em si mesmo, mas na sua implicação com outros códigos, sejam eles
picturais, musicais, cinematográficos etc.
No estudo da representação literária calcado na abordagem intersemiótica – como o
que empreendemos através das poesias e telas abstratas que estudamos – a pesquisa é
interessante se banir e transcender, como nos disse Souriau, as metáforas imprecisas que são
evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma arte a linguagem da outra. É preciso
estarmos atentos ao fato de que pode haver similaridade entre a tradução de uma idéia artística
em literatura, pintura, música, cinema, etc, mas cada linguagem traz consigo recursos
peculiares e trata o assunto de modo específico. As várias artes possuem cada qual seu código
artístico, sua evolução individual, de ritmo diferente. Daí a riqueza da comparação entre elas.
Temos que ser rigorosos metodologicamente, se objetivamos consistência em um campo que,
a princípio, parece ser vago e de difícil acesso.
Com base nas análises que fizemos, inferimos que há uma conjunção retórica entre a
poesia e a pintura abstrata. Ambas se valem da imagem para instaurar a espacialidade.
Afirmamos ainda que o texto poético, através da sequencialidade e da recordação lírica,
dialoga com a categoria temporal. A pintura abstrata instaura o tempo por meio do movimento
das formas e cores. Fica evidente que as artes em questão, ao agenciarem a temporalidade,
assumem um parentesco também com a música. Enfim, poesia é sobretudo imagem-som e
pintura abstrata imagem-movimento, ambas música das cores.

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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira no11

POETRY AND ABSTRACT PAINTING: THE MUSIC OF COLOURS

ABSTRACT: In this article we address the evolution of the Horatian doctrine of Ut Pictura Poesis, the flirtation
between the arts, focusing on the relationship between space and time through a comparative analysis between
poetry and abstract painting. We emphasize the virtues of words and colours, investigating the image-sound and
image-movement relation. In conclusion, in our analysis, there is a structural homology between poetry and
abstract painting in relation to the spatiality and temporality, which is also a category of music. The theoretical
tools we apply to undertake comparative studies are critical guidance regarding aesthetics, literature and
semiotics.

KEYWORDS: Poetry. Painting. Aesthetics. Semiotics of Culture. Intersemiosis.

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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
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Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).

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