[...] Distinguindo-se da informação correta e do conhecimento científico, a
compreensão é um processo complexo, que jamais produz resultados inequívocos. Trata-se de uma atividade interminável, por meio da qual, em constante mudança e variação, aprendemos a lidar com a nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo. (p. 39) [...] Perdoar (sem dúvida uma das grandes capacidades humanas e, talvez, a mais ousada das ações do homem, já que tenta alcançar o aparentemente impossível -- desfazer o que foi feito – e tem êxito em instaurar um novo começo onde tudo parecia ter chegado ao fim) é uma ação única que culmina em um ato único... (p. 39) [...] As armas e a luta, entretanto, pertencem à atividade da violência, e a violência, distinguindo-se do poder, é muda; a violência tem início onde termina a fala. (p. 40) [...] A doutrinação é perigosa por nascer principalmente de uma deturpação não do conhecimento, mas da compreensão. O resultado da compreensão é o significado, que produzimos em nosso próprio processo de vida, à medida que tentamos reconciliar com o que fazemos e com o que sofremos. (p. 40) [...] A compreensão de questões politicas e históricas, tão profunda e fundamentalmente humanas, tem algo em comum com a compreensão de pessoas: só sabemos quem uma pessoa essencialmente é depois que ela morre. (...) Para os mortais, o final e o eterno começam somente depois da morte. (p. 40-41) [...] Não é porque alguma “ideia” nova veio ao mundo que a originalidade do totalitarismo é terrível, mas sim porque as próprias ações desse movimento constituem uma ruptura com todas as nossas tradições: elas claramente destruíram as categorias de nosso pensamento político e nossos padrões de juízo moral. (p. 41) [...] Uma vez que os movimentos totalitários brotaram no mundo não- totalitário (cristalizando elementos que ali encontrou, pois os governos totalitários não foram importados da Lua), o processo de compreensão é nítida e talvez primordialmente também um processo de autocompreensão... (p. 41) Conhecimento e compreensão não são a mesma coisa, mas interligam-se. A compreensão baseia-se no conhecimento e o conhecimento não pode se dar sem que haja uma compreensão inarticulada, preliminar. A compreensão preliminar aponta o totalitarismo como tirania, determinando que, ao lutarmos contra ele, lutamos pela liberdade... (p. 42) [...] A verdadeira compreensão sempre retorna aos juízos e preconceitos que precederam e orientaram a investigação estritamente cientifica. As ciências podem apenas iluminar, mas nunca provar ou refutar a compreensão preliminar da qual partem... (p. 42) [...] O totalitarismo, do mesmo modo, só se tornou um tópico de estudo corrente quando a compreensão preliminar reconheceu-o como questão central e como o mais significativo perigo da época... (p. 44) [...] Como Nietzsche teve oportunidade de observar, é da alçada do desenvolvimento da ciência “dissolver o ‘conhecido’ no desconhecido – mas a ciência quer fazer justo o oposto e inspira-se no instinto de reduzir o desconhecido a algo que é conhecido.” (p. 44) [...] Não se conhece civilização anterior à nossa em que as pessoas fossem suficientemente ingênuas para adquirir hábitos de compra segundo a máxima “o auto-elogio é a melhor recomendação”, pressuposto de toda a propaganda... (p. 45) [...] Do ponto de vista do senso comum, não precisamos do surgimento do totalitarismo para nos mostrar que estamos vivendo em um mundo desordenado, um mundo em que não podemos nos orientar seguindo as regras do que um dia já foi senso comum... (p. 45) [...] Em meio a intelligentsia, pode-se ate mesmo dizer que quanto mais inteligente um indivíduo vem a se.] Em meio a intelligentsia, pode-se ate mesmo dizer que quanto mais inteligente um individuo vem a ser, mais irritante é a estupidez que compartilha com todos os outros. (p. 45) [...] As leis estabelecem o domínio da vida pública e politica e os costumes estabelecem o domínio da sociedade. A falência das nações tem início com a destruição gradual da legalidade, seja porque o governo no poder abusa das leis, seja porque as leis nascem, de uma autoridade que se torna questionável... (p. 46) [...] Qualquer incidente pode destruir costumes e moralidade que não se fundem mais na legalidade; qualquer contingência pode ameaçar uma sociedade que não está mais garantida por cidadãos. (p. 46) [...] Os perigos poderiam vir de dentro, sob a forma do mau uso de poder, ou de fora, sob a forma de agressão... (p. 46) [...] a grande transformação deu-se dentro de uma estrutura politica cujas bases não estavam mais seguras, e, portanto, arrebatou uma sociedade que, embora fosse ainda capaz de compreender e de julgar, não mais poderia explicar suas categorias de compreensão e padrões de juízo, quando estes fossem seriamente desafiados... (p.47) [...} “O homem, este ser flexível que, em sociedade, liga-se aos pensamentos e expressões de outros, é tão capaz de conhecer sua própria natureza, quando esta lhe é mostrada, quanto o é de perde-la, a ponto de sequer chegar a sentir quando a estão roubando... (p. 47) Em nosso contexto, a substituição peculiar e engenhosa do senso comum por lógica rigorosa, característica do pensamento totalitário, é particularmente digna de nota. A lógica não é idêntica ao raciocínio ideológico, mas indica a transformação totalitária das respectivas ideologias... (p. 48) [...] Em outras palavras, onde quer que o senso comum, o sentido político por excelência, deixe de atender nossa necessidade de compreensão, é muito provável que aceitemos a lógica como seu substituto, pois a capacidade de raciocínio lógico é também comum a todos nós... (p. 48) [...] O novo é o domínio do historiador que, ao contrário do cientista natural, preocupado com acontecimentos sempre recorrentes, lida com eventos que sempre ocorrem somente uma vez... (p. 49) [...] A causalidade é entretanto uma categoria totalmente estranha e falseadora no que diz respeito às ciências históricas. Não só é verdade que o real significado de todo evento transcendente qualquer número de causas passadas que possamos atribuir a ele (...), mas também que próprio passado só vem a ser com o próprio acontecimento... (p. 49) Todo aquele que, nas ciências históricas, acredita honestamente na causalidade nega o objeto de estudo de sua própria ciência... (p. 50) [...] Tais generalizações e categorizações extinguem a luz “natural” que a própria história oferece; e justamente por isso destroem a verdadeira estória, com sua singularidade e seu significado eterno, que cada período histórico tem a nos contar... (p. 50) Assim como em nossas vidas pessoais nossos piores medos e maiores esperanças jamais nos preparam bem para o que de fato acontece (...), também os eventos na história humana relevam, cada um, uma paisagem inusitada de feitos, sofrimentos e novas possibilidades humanas, que, juntos transcendem a soma total de todas intenções voluntarias e a significância de todas as origens... (p. 50) [...] Pois o que quer que o historiador chame de fim, seja o fim de um período, de uma tradição, ou de toda uma civilização, ele é um novo começo para aqueles que estão vivo... (p. 50-51) [...] Se a criação do homem coincide com a criação de um começo no universo (...), então o nascimento dos homens individuais, sendo novos começos, reafirma o caráter original do homem, de uma forma que a origem jamais pode tornar-se inteiramente uma coisa do passado... (p. 51-52) [...] Um ser cuja essência é o começo pode trazer dentro de si um teor suficiente de origem para compreender sem categorias preconcebidas e para julgar sem conjunto de regras comuns que é a moralidade... (p. 52) [...] O coração humano, tão afastado do sentimentalismo quanto da burocracia, é a única coisa no mundo que irá incumbir-se da responsabilidade imposta a nós pelo dom divino da ação, o dom de ser um começo e portanto ser capaz de fazer um começo... (p. 52) [...] Distinta da fantasia que sonha algo a imaginação se interessa pela escuridão especifica do coração humano e pela peculiar densidade que cerca tudo o que é real... (p. 53) Somente a imaginação nos permite ver as coisas em suas perspectivas próprias; só ela coloca a uma certa distância o que está próximo demais para que possamos ver e compreender sem tendências ou preconceitos... (p. 53) Sem esse tipo de imaginação, que na verdade é compreensão, jamais seríamos capazes de nos orientar no mundo. Ela é a única bussola interna que possuímos. Somos contemporâneos somente até o ponto em que chega nossa compreensão... (p. 53)