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A mensagem presidencial sobre a pandemia mundial do COVID-19 e os distintos

pontos de vista dos gestores públicos do Brasil

Krishina Day Ribeiro – Professora permanente do Curso de Direito (ICJ/UFPA).


Doutoranda do NAEA/UFPA.
Raquel Serruya Elmescany – Doutoranda do NAEA/UFPA.

Apresenta-se uma reflexão acerca da mensagem presidencial relacionada a


pandemia mundial do COVID-19 e estabelece-se distinção a partir dos pontos de vista
dos gestores públicos do Brasil diretamente envolvidos no trato da questão. Oferece-se
uma leitura a partir da lógica de sistemas. Os principais achados da investigação situam-
se no âmbito da aplicação das Diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS) –
Report nº53 “Considerations for quarantine of individuals in the context of containment
for conronavirus disease (COVID-19) – OMS.
Referido relatório orienta acerca de normativas estratégicas a serem adotadas
pelos representantes dos estados nacionais – membros da federação no combate à
pandemia do COVID-19. O que se verifica, ao longo deste presente estudo, é que a
mensagem presidencial não observa as orientações e recomendações de quarentena
estabelecidas no relatório supracitado, desdiferencia-se do trabalho da equipe do
Ministério da Saúde e desqualifica o discurso dos representantes políticos da federação
brasileira. A presente reflexão alerta sobre a importância de desparadoxar a
improbabilidade da comunicação contida na mensagem presidencial, através das
comunicações oriundas dos meios de difusão representadas no símbolo #ficaemcasa.
Em tempos de quarentena assistiu-se em rede nacional de televisão, no último
dia 25 de março de 2020, ao pronunciamento do presidente da República Federativa do
Brasil, capitão reformado do exército brasileiro, Jair Messias Bolsonaro, que expôs o
seu entendimento sobre como gerenciar o país em cenário de crise provocada pelo
COVID-19. Na condição das autoras, de professora e pesquisadora da área de Direito e
Saúde, e de estudiosa do tema do Estado e Políticas Públicas, percebe-se a necessidade
de compreender melhor a situação e refletir sobre que estratégias os Estados e a União
devem adotar para o controle da pandemia do COVID-19, e qual a responsabilidade do
Poder Executivo Federal neste interím. Realiza-se essa análise a partir de uma distinção
entre dois grupos de comunicação, com entendimentos divergentes: o pronunciamento
do Presidente Jair Bolsonaro dado recentemente em cadeia nacional de televisão; e os
pronunciamentos de líderes políticos, representantes de estados e de organizações
sociais da federação.

1
No discurso do presidente Jair Bolsonaro em rede de televisão no dia 24 de
março do corrente ano, ele discorreu:

“O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós, e brevemente


passará”. [...] Depois, afirmou que “a vida deve continuar”, que “os
empregos devem ser mantidos”, assim como os sustentos das famílias.
“Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades
estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada,
a proibição de transportes, o fechamento do comércio e o
confinamento em massa”1.

A comunicação emanada pelo Presidente da República aponta para um retorno


às atividades rotineiras, ou seja, o afastamento da quarentena em prol da manutenção do
sistema econômico. Por outro lado, o sistema político, neste caso representantes de
governos estaduais e associações, afirmam outros pontos de vista sobre as estratégias
para enfrentar a pandemia COVID-192:

(...) Consideramos grave a posição externada pelo Presidente da


República hoje, em cadeia nacional(...) posição que está na contramão
das ações adotadas em outros Países e sugeridas pela própria
Organização Mundial da Saúde (OMS). Davi Alcolumbre (Presidente
do Senado Federal).
(...) O pronunciamento do Presidente foi equivocado ao atacar a
imprensa, os governadores e especialistas em saúde pública. Cabe aos
Brasileiros seguir as normas determinadas pela OMS e pelo Ministério
da Saúde em respeito aos idosos e a todos que estão em grupo de
risco(...). Rodrigo Maia (Presidente da Câmara dos Deputados
Federais).
Entre a ignorância e a Ciência não hesite. Não quebre a quarentena
por conta deste que será reconhecido como um dos pronunciamentos
políticos mais desonestos da história. Felipe Santa Cruz (Presidente da
OAB-Nacional).
(...) Nós buscamos, desde o início, as orientações dos técnicos, dos
médicos, das autoridades e também dos países que já passaram pelo
pior da crise. Helder Barbalho (Governador do Estado do Pará).
(...) A experiência internacional e as orientações da OMS na luta
contra o vírus devem ser rigorosamente seguidas por nós. As agruras
da crise, por mais árduas que sejam, não sustentam o luxo da
insensatez. #FiqueEmCasa. Gilmar Mendes (Ministro Gilmar
Mendes).

O contraponto das autoridades, que envolve componentes do legislativo federal e


dos governos estaduais, apresenta comunicação divergente. Ou seja, entende, mas não
aceita o posicionamento externado no pronunciamento presidencial, e aponta outros

1
G1 Política. Veja a repercussão do pronunciamento de Bolsonaro sobre o coronavírus em que ele contrariou
especialistas e pediu fim do “confinamento em massa” 24 de março de 2020. Disponível em
<https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/24/veja-repercussao-ao-pronunciamento-de-bolsonaro-em-que-ele-
pediu-volta-a-normalidade-fim-do-confinamento-e-disse-que-meios-de-comunicacao-espalharam-
pavor.ghtml>.Acesso em: 26 mar, 2020.
2
Ibid, s.n..

2
caminhos: do reconhecimento da ciência médica, da valorização do saber científico e
dos estudos da Organização Mundial de Saúde, como autoridade reconhecida em saúde
pública.
Há, em síntese, duas comunicações envolvidas: seguir com as rotinas normais,
resguardando apenas os grupos de risco (pronunciamento presidencial)3; ou seguir a
quarentena, priorizando a saúde pública (pronunciamento dos governadores e demais
autoridades). Portanto, há de se analisar a diferenciação dos discursos proferidos e seus
impactos no sistema judicial e de saúde.
Em tempos de informação diluída no espaço-tempo confirma-se que o
Transconstitucionalismo4 é o fenômeno que reconhece a multiplicidade de ordens
diferenciadas no interior do sistema jurídico, aplicável às questões que envolvem o
direito à saúde, em especial o direito à precaução em casos de pandemias, o que de
forma nenhuma implica fechar-se à cognição das comunicações do ambiente.
O sistema jurídico observa que por estar aberto às trocas comunicativas para
atualizar-se precisa informar-se – conhecer - compreender, realizando um circuito
comunicativo, a fim de tomar as acertadas decisões que o contexto de Pandemia
COVID-19 requer. Um ruído que pode ser observado nos diálogos do
Transconstitucionalismo frente ao enfrentamento do coronavírus é a circulação massiva
de informações inverídicas, em geral via redes sociais-whatsapp, de fontes
desconhecidas5, cujo objetivo suposto é disseminar o pânico na população.
Em escala mundial, quem desempenha o papel mais importante de disseminação
da informação verídica sobre doenças que desconhecem fronteiras é a Organização
Mundial da Saúde (OMS) em parceria com a Organização Pan-Americana de Saúde
(OPAS) 6.

3
O Governo Federal tem ido além nesta ideia, criando a campanha #OBrasilNãoPodeParar, cujo mote é a
manutenção da rotina do cidadão, resguardando isolamento vertical, ou seja, apenas daqueles pertencentes aos grupos
de risco de exposição ao coronavírus. Mais em: O Globo. Governo prepara campanha com o slogan ‘O Brasil Não
Pode Parar’. 26 de março de 2020. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/brasil/governo-prepara-campanha-
com-slogan-brasil-nao-pode-parar-1-24332284 >. Acesso em: 27 mar, 2020.
4
NEVES. M. (não) Solucionando problemas constitucionais. Transconstitucionalismo além das constituições.
Revista Lua Nova. Vol.23. 2014. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ln/n93/08.pdf. Acesso em 26 de março de
2020.
5
Em decorrência deste fenômeno, o Ministério da Saúde criou canal de comunicação via sítio eletrônico para
esclarecer e combater as fake news acerca da pandemia por coronavírus. Um exemplo é o da notícia falsa sobre uma
prevenção para coronavírus consistindo em gargarejo com água morna e sal ou vinagre, baseado em informações
inverídicas sobre o funcionamento do vírus. Em: Ministério da Saúde. Beber muita água e fazer gargarejo com água
morna e sal e vinagre previne coronavirus é fake news. Disponível em: < https://www.saude.gov.br/fakenews/46582-
beber-muita-agua-e-fazer-gargarejo-com-agua-morna-sal-e-vinagre-previne-coronavirus-e-fake-news >.
Acesso em: 26 mar, 2020.
6
Outros órgãos também assumem a mesma função: A Organização Internacional do Trabalho (OIT); o Fundo das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF); a Organização das Nações Unidas para Infância, a Ciência e a Cultura
(UNESCO); a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Ambas contribuem
igualmente para a precaução sanitária.

3
De acordo com esta entidade, a Pandemia COVID-19 confirmou-se em 11 de
março de 20207, caracterizada pelo Regulamento Sanitário Internacional da OMS como
“distribuição geográfica de uma doença”. Reconhece-se assim a responsabilidade de se
determinar uma situação de emergência de saúde pública que depende de uma série de
recomendações temporárias adotadas pelos Estados nacionais para prevenir ou reduzir a
propagação mundial da doença, propondo-se também uma série de interferências no
comércio e tráfego internacionais8.
Detectou-se que a pandemia por coronavírus está ocorrendo mundialmente em
amplas áreas, como demonstrado pelo Mapa 1, ultrapassando fronteiras internacionais,
afetando uma grande quantidade de pessoas.

Mapa 1 – COVID-19 no mundo.

Fonte: Microsoft (Disponível em: < https://www.bing.com/covid >. Acesso em: 26 mar, 2020).

O coronavírus tem gravidade diferenciada a depender do grupo de risco afetado.


Enquanto que pessoas mais jovens podem desenvolver poucos, ou nenhum sintoma, os
idosos e pessoas com condições pré-existentes estão mais vulneráveis à doença. Uma
em cada cinco pessoas contaminadas precisa de atendimento médico. Há de se levar em
consideração, de igual forma, a dinâmica exponencial do contágio, considerando que é
uma doença altamente contagiosa de pessoa para pessoa, o que requer isolamento
social9. Portanto, a pandemia por coronavírus exige providências do setor público para
7
G1 Política. OMS declara pandemia de coronavírus. 11 de março de 2020. Disponível em: <
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/11/oms-declara-pandemia-de-coronavirus.ghtml >.
Acesso em: 26 mar, 2020.
8
BRASIL. OPAS. Folha Instrutiva COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus) 25 de março de2020.
Disponível em: <https://www.paho.org/bra/index.php?
option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=87>. Acesso em: 26 mar, 2020.
9
Disponível em: < https://www.who.int/news-room/q-a-detail/q-a-coronaviruses >. Acesso em: 26 mar, 2020.

4
garantir a saúde dos cidadãos e evitar o esgotamento do sistema de saúde, considerando
a capacidade de atendimento médico limitada, frente à alta taxa de contágio da doença.
Logo, quando o Presidente Jair Bolsonaro discursa pelo fim da quarentena
praticada em alguns Estados, revela desconsideração às diretrizes científicas – e não
políticas – comunicadas pela OMS/OPAS, como se pretende demonstrar neste escrito.
Vale lembrar o que o Ex-Presidente dos EUA Barack Obama, citado pelo Governador
de Goiás (Ronaldo Caiado – DEM), em transmissão nacional, disse: “Tanto na vida
como na política, a ignorância não é uma virtude”10.
Nesse sentido, a teoria sistêmica traz como problemas os paradoxos da
modernidade, onde as comunicações podem ser compreendidas, eivadas de equívocos,
aceitas ou não-aceitas11,12. O paradoxo da comunicação a torna improvável. No caso do
não-reconhecimento da estratégia de isolamento adotada pelos demais Países como
recomenda a OMS, é improvável que o Presidente cuide de seu povo, elemento
fundamental do Estado, sem o qual o mesmo inexiste, o que dá função ao serviço
público.
Soma-se a tal consideração, a importância das contribuições científicas, como
bem afirmou Felipe Santa Cruz, o presidente da OAB-Nacional: “entre a ignorância e a
Ciência não hesite”. Pressuposto tal, que fundamenta, desde os gregos o princípio da
precaução. A ideia de saúde nasce na cultura grega conhecida como hygeia, o estado
daquele que está bem com a vida. Advém daí a ideia de Platão sobre saúde, a
importância do equilíbrio interno entre seres humanos, a organização social e a
natureza13.
Não é de hoje que a Saúde Pública enfrenta crises epidemiológicas, a qual
depara-se, em contraface, com a economia. A ênfase dada pelo presidente Jair
Bolsonaro está na contra-mão das ações adotadas em outros Países e sugeridas pela
própria Organização Mundial da Saúde (OMS), como bem enfatiza o senador Davi
Alcolumbre.
Uma das doenças enfrentadas pelo Brasil que recebeu atenção interna e
internacional, durante as décadas 80-90, foi a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
– SIDA (ou mais comumente, Aids, sua sigla inglesa). Desde a época do contágio da

10
G1.Política. Caiado rompe com Bolsonaro. 24 de março de 2020. Disponível em
<https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/03/25/caiado-rompe-com-bolsonaro-a-ignorancia-nao-e-uma-
virtude.ghtml> Acesso em: 26 mar, 2020.
11
LUHMANN,N. Introdução à Teoria de Sistemas. Rio de Janeiro: Vozes. 2009, p.297.
12
VIDAL, J.P. Por meio da Teoria: enfoques neosistêmicos e pós-estruturalistas. Belém: Paka-Tatu, 2017.
13
DALLARI. S.G. Uma Nova Disciplina: o Direito Sanitário. Revista de Saúde Pública. 1988, vol.22, n.04.
disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v22n4/08.pdf> . Acesso em 26 de março de 2020.

5
SIDA que os governos dão atenção aos cuidados relativos a doenças que se propagam
em altas taxas.
À época do surgimento da SIDA, os cuidados individuais foram predominantes
para evitar a contaminação e o Estado, inicialmente, atuou de forma subsidiária.
Posteriormente, atuou de forma efetiva com a quebra de patentes para a produção
interna de coquetel antiviral, e estabelecimento de uma política pública. Mas o cenário
da SIDA era o de uma epidemia, ou seja, ocorrência da doença em comunidade ou
região geográfica específica de disseminação pelo vírus da imunodeficiência humana
(HIV) envolvendo diversos aspectos das relações humanas, notadamente relações
sexuais e transfusão sanguínea14.
Contemporaneamente, a saúde pública insere-se em estruturas estatais de
prevenção, que passam a estabelecer suas prioridades levando em consideração a análise
econômica, mas também os dados epidemiológicos, sobretudo e inclusive, ao se tratar
de uma pandemia.
A pandemia COVID-19 caracteriza-se pelo surto em regiões geográficas, que se
não forem tomadas as devidas precauções, incorre-se em risco à vida de muitas pessoas,
capaz de levar os estabelecimentos de saúde pública ao colapso. O ministro da saúde
Luiz Henrique Mandetta explica que “Você pode ter o dinheiro, o plano de saúde, mas
simplesmente não há sistema para você entrar”: isso é um colapso do sistema de
saúde15.
Em matéria de direito à precaução, o conhecimento especializado advém do
Transconstitucionalismo, haja vista este ser um fenômeno sistêmico, que carrega
consigo a multiplicidade de emanações normativas, as quais contribuem para o
aprendizado do sistema, que reconhece as interdependências com o ambiente. Tais
interdependências no cenário de pandemia COVID-19, advém das comunicações
emanadas pela OMS.
O Princípio da Precaução, que significa “ter cuidado e estar ciente”, recupera a
visão dos gregos antigos e objetiva em situações de risco potencial desconhecido apoiar-
se no desenvolvimento científico, buscando soluções para agir com segurança16.

14
GRECO. D. A Epidemia da Aids: impacto social, econômico, científico e perspectivas. Revista Estudos
Avançados. São Paulo. Vol.22 nº64. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142008000300006>. Acesso em 26 de março de 2020.
15
Estadão. Em abril o sistema de saúde entrará em colapso’, diz Mandetta. 20 de março de 2020. Disponível em <
https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,em-abril-o-sistema-de-saude-entrara-em-colapso-diz-
mandetta,70003241718 >. Acesso em 26 de março de 2020.

16
11 REICHARDT, F. V. e SANTOS, M. R. A. A (In)eficácia do Princípio de Precaução no BrasilRevista de
Estaudos Avançados.SãoPaulo.v.33, n.95, 2019 .Disponível <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0103-40142019000100259&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 26 de março de 2020.

6
Inclusive porque a Sociedade funciona de maneira sistêmica, não adianta salvar a
economia e permitir que o sistema de saúde vá a falência e pessoas morram. Deve-se
fazer o sistema econômico funcionar em conjunto com o sistema sanitário. Por tal
motivo, a OMS publicou o Report nº53 “Considerations for quarantine of individuals in
the context of containment for conronavirus disease (COVID-19)” – OMS, o qual
orienta diretrizes a serem adotadas pelos representantes dos Estados Nacionais como
estratégias de combate a pandemias.
Neste documento há considerações para a quarentena de indivíduos no contexto
de contenção por doença coronavírus, destinada a orientação aos Estados-membros
sobre as medidas de quarentena para indivíduos, aos responsáveis pelo estabelecimento
de políticas locais ou nacionais e medidas de prevenção e controle da infecção nesses
locais17:
A quarentena de pessoas é a restrição de atividades ou a separação de
pessoas que não estão doentes, mas que podem ser ter sido expostas a
um agente infecioso ou doença, com o objetivo de monitorar seus
sintomas e garantir a detecção rápida dos casos. A quarentena difere-
se de isolamento, que é a separação de pessoas doentes ou infectadas
de outras pessoas para evitar que se espalhe a infecção ou
contaminação. [...]
Autoridades devem prover às pessoas diretrizes claras, atualizadas,
transparentes e consistentes, com informações confiáveis sobre as
medidas de quarentena.
O engajamento construtivo com as comunidades é essencial para que
as medidas de quarentena sejam aceitas.
As pessoas em quarentena precisam de assistência médica, apoio
financeiro, social e psicossocial e necessidades básicas (água e outros
itens essenciais). As necessidades dos grupos vulneráveis devem ser
priorizadas.
[...] A quarentena usada no início do surto pode atrasar a introdução
da doença em um país ou área, atrasar o pico de uma epidemia numa
área onde a transmissão está em andamento, ou ambos.
(WHO, Considerations for quarantine of individuals in the context of
containment for coronavirus disease COVID-19. p. 1. Tradução
nossa).

O Princípio Sanitário da Precaução pressupõe assim, receber informações


públicas de órgãos do sistema mundial sobre doenças que possam colocar em risco a
segurança das pessoas em territórios nacionais e usá-las para agir com cautela
prevenindo danos. Impõe também situações de vigilância, tanto para planejar, quanto
para sanear consequências. E por fim, visa impulsionar a responsabilidade política dos
impactos econômicos de agir, mas também de se omitir, diante da calamidade pública
que as doenças podem causar.
17
OMS. Report 53 COVID-19. Considerations for quarantine of individuals in the context of containment for
coronavirus disease (COVID-19). Disponível em https://www.who.int/publications-detail/considerations-for-
quarantine-of-individuals-in-the-context-of-containment-for-coronavirus-disease-(covid-19) Acesso em: 26 mar,
2020.

7
Segundo Moacir Sciliar, o conceito de saúde reflete a conjuntura social,
econômica, política e cultural. Ou seja, saúde não representa a mesma coisa para todas
as pessoas. Dependerá da época, do lugar e da classe social. Dos valores individuais, das
concepções científicas e filosóficas18.
Neste cenário atual, saúde é controlar a pandemia do COVID-19, seguindo as
instruções científicas estabelecidas no Relatório nº53 da OMS, afirmando-se o princípio
da Precaução como dever do Estado, atuando com restrições a circulação e ajuntamento
de pessoas, bem como criando estratégias de apoio e solidariedade à economia da
nação, que também passará, diante do cenário de crise, por restrições.
Ademais estabelece a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB)
que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (art.196), “que são de relevância
pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da
lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle” (art.197) delimitando-se
expressamente a responsabilidade estatal. É a partir disto que se depreende que, por
meio da função pública estatal, cabe ao Poder Executivo, através do Ministério da
Saúde, fixar diretrizes e parâmetros para a prestação do serviço público, não podendo
mostrar-se contrário ao problema de saúde da população, sob pena de incidir em
inconstitucionalidade19.
Envolto as considerações sistêmicas de um caso prático da realidade do Brasil,
observa-se que a atuação presidencial expressa no discurso estudado atua na contramão
das diretrizes da OMS, trazendo novamente o paradoxo da improbabilidade: a
comunicação é improvável20, e um dos motivos é porque pode ser rejeitada. É
improvável que, com tal conduta presidencial (de considerar uma pandemia de COVID-
19 como “gripezinha”), o presidente cumpra o seu dever de cuidar da saúde dos seus
cidadãos.
A desparadoxação da improbabilidade da comunicação, oriunda de um
movimento transconstitucionalista, no caso de o Presidente não aceitar as diretrizes de
orientação da OMS sobre como os Estados devem atuar politicamente para enfrentar
uma pandemia, está exatamente nas comunicações oriundas dos meios de difusão
generalizados simbolicamente.
Surge assim uma luz que se acende nesse cenário. Os meios de difusão são
capazes de dissolver as dificuldades de informação, possibilitando que sejam aceitas as
orientações de estratégias da OMS a serem adotadas no caso de pandemia, ainda que o
18
SCILIAR, M. O Conceito de Saúde. Revista Physis. Vol.17, n.01. Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/physis/v17n1/v17n1a03.pdf> Acesso em: 26 mar, 2020.
19
DALLARI, S.G. e NUNES JÚNIOR, V.S. Direito Sanitário. São Paulo: Editora Verbatim, 2010.
20
LUHMANN. N. A improbabilidade da comunicação. 1999. p.41.

8
direcionamento discursivo presidencial aponte o contrário. E fica claro, com a fala e a
implementação de estratégias dos governos estaduais a rejeição à conduta presidencial,
e a adoção às orientações da OMS “(...) buscar a orientação de médicos, técnicos e
autoridades”(Fala do governador do Pará, Helder Barbalho); “as agruras da crise, por
mais árduas que sejam, não sustentam o luxo da insensatez. #Ficaemcasa”(Fala do
ministro Gimar Mendes do STF).
A Procuradoria Geral da República em Memorando Conjunto no. 38/2020 de 25
de março de 202021 por meio das Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério
Público Federal e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, apresentou proposta
de Recomendação ao Governo Federal, na pessoa do sr. Presidente da República, no
sentido de que:
[...] a implementação e a execução de ações de saúde, como também, a
veiculação de pronunciamentos e informações correlatas, por toda e qualquer
autoridade do Poder Executivo Federal, seja realizada de forma coerente e em
sintonia com as orientações emanadas das autoridades sanitárias nacionais e
da Organização Mundial de Saúde, bem como em consonância com o Plano
Nacional de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo
Coronavírus COVID-19, do Ministério da Saúde, compatíveis com o estado
de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – ESPII,
declarado pela OMS (p. 4).

No entanto, o pedido feito por subprocuradores, foi arquivado pelo Procurador-


Geral da República, Augusto Aras, sob o argumento do não cabimento, citando que “o
MPF deve manter-se afastado de disputas partidárias internas e externas” 22. Todavia, a
situação vem se alterado nos estados da federação, a exemplo do Rio de Janeiro em que
o Ministério Público Federal impetrou Ação Civil Pública nº500.2814-
73.2020.402.5118 na Justiça Federal23, com o fim de anular a Medida Provisória nº926
de 20 de março de 2020, e dois decretos: o Decreto n° 10.282, de 20 de março de 2020
alterado pelo Decreto n° 10.292, de 25 de março de 2020.
Propôs-se a anulação da MP nº920/20 por alegação da conversão da lógica da
lei, pois parâmetro normativo para disposição de serviços essenciais constam da Lei
7.783/1989, mas tal MP nº926/20 dispõe ser competência do Presidente da República, a

21
BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria Geral da República. Recomendação no. 38/2020. Disponível
em < http://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/recomendacoes/memorando-conjunto-38-2020-pfdc-2ccr-4ccr-
6ccr-7ccr-mpf>. Acesso em: 26 mar, de 2020.
22
O Globo. Aras Arquiva pedido de subprocuradores para enquadrar conduta Bolsonaro sobre coronavírus. 27 de
março de 2020. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/brasil/aras-arquiva-pedido-de-subprocuradores-para-
enquadrar-conduta-bolsonaro-sobre-coronavirus-24334565 >. Acesso em: 27 mar, 2020.
A decisão na íntegra disponível em < https://www.conjur.com.br/dl/decisao-juiz-loterica-igreja2.pdf>.
23

Acesso em: 28 mar, 2020.

9
definição do que se pode caracterizar como serviços essenciais, contrariando lei federal
já vigente no ordenamento legal. Ademais, o Decreto 10.292/2020 (incisos XXXIX e
XL) ao definir como livres do isolamento as atividades religiosas de qualquer natureza e
casas lotéricas, infringiria legislação federal vigente no ordenamento. Assim entendeu o
representante do sistema judicial no estado do Rio de Janeiro:
[...] o decreto coloca em risco as medidas de isolamento e
achatamento da curva de casos do COVID-19 que são fatos
notórios e amplamente noticiados pela imprensa que vem,
registre-se, desempenhando com maestria a isenção de seu
direito de informar. Tais medidas são essenciais para que o
Sistema de Saúde – público e privado não entre em colapso com
imprevisível extensão das consequências trágicas.
[...] o acesso a igrejas, templos religiosos e lotéricas estimula a
aglomeração de pessoas, e não é por outra razão que medidas
extremas foram tomadas mundo a fora [...] Que a União se
abstenha de editar novos decretos que tratem de atividades e serviços
essenciais, [...] sem observância da lei e recomendações técnicas e
científicas [...] que o Município de Duque de Caxias se abstenha de
adotar qualquer medida que assegure ou autorize o funcionamento dos
serviços e atividades mencionadas no incisos XXXIX e XL do §1º do
art.3º do Decreto 10.292/20”(p.07)

No presente momento, presidente Jair Bolsonaro passou a propugnar pelo


isolamento vertical que consiste em isolar grupos específicos de pessoas, dentre os quais
idosos, diabéticos, cardíacos e pessoas com comprometimento pulmonar. Desafiando a
opinião majoritária dos epidemiologistas. Incentivando que comércios, lojas, escolas e
demais estabelecimentos reabram com o objetivo da economia voltar a circular. Mesmo
havendo a possibilidade das taxas de contaminação da doença aumentar
progressivamente.
A tese defendida neste ensaio é a de que a responsabilidade do Poder Executivo
consiste em promover estratégias entre os Estados da Federação para combater a
pandemia COVID-19 trazendo sentido à comunicação emitida em
transconstitucionalidade pela OMS. Ressoando nos discursos dos representantes dos
Estados nacionais, bem como verificado nas estratégias dos governadores dos estados
brasileiros e órgãos da magistratura estadual. Por tais motivos, entende-se que o
presidente da República do Brasil deve atuar em consonância com as Diretrizes da

10
OMS, seguindo a recomendação do afastamento social; com o Ministério da Saúde, que
realiza assistência médica, apoio psicossocial; e também, em sólida cooperação com os
estados da federação.
Pelo exposto, conclui-se que a estratégia da OMS que recomenda a quarentena
como medida de restrição, separando pessoas que não estão doentes do risco de serem
contaminadas, não pode ser desconsiderada pelo chefe do Executivo, pois tal medida
objetiva, conforme o Report 53 estabelece, atrasar a doença ou o pico da pandemia.
Fato este que vem sendo amplamente emitido pelas comunicações da mídia escrita e
falada em jornalismo compromissado com notícias esclarecedoras sobre a pandemia
COVID-19. Por outro lado, em relação aos prejuízos econômicos da sociedade, não
pode o presidente em tela omitir-se em estabelecer soluções criativas à recuperação de
setores da economia, sobretudo o setor da economia informal, os vendedores
ambulantes e pequenos comerciantes, que dependem das suas vendas diárias para
sobreviver24.

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Acerca disso, atuou o Congresso Nacional, por meio da Câmara dos Deputados, ao propor auxílio financeiro
emergencial a trabalhadores autônomos, desempregados e microempreendedores de baixa renda. A proposta ainda
precisa ser aprovada pelo Senado e ser sancionada pelo Presidente da República. Em: BBC. Coronavírus: saiba as
regras aprovadas pela Câmara para acessar o auxílio emergencial de R$600. 27 de março de 2020. Disponível em: <
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52059036 >. Acesso em: 27 mar, 2020.

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