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UNIDADE IV.

4 – FREGE : SOBRE O SENTIDO E A REFERÊNCIA

A Conceitografia, publicada em 1879 , apoia-se em uma compreensão inovadora e original em que a visão

aristotélico-tradicional de proposição como estrutura tripartite Sujeito-Cópula-Predicado é substituída pela

estrutura funcional, a saber , função-argumento , genericamente denominada concepção funcional da

proposição e do conceito. É esta compreensão que constitui a base da linguagem de simbólica de fórmulas

apresentada por Frege em sua obra inaugural.

Todavia, tal compreensão conduziu a três problemas correlatos , presentes na Conceitografia:

a) A obra inaugural de Frege não apresenta as condições que permitiram estender os conceitos matemáticos

de função e argumento, que se referem originariamente a números, (restritos, portanto , a uma aplicação

quantitativa) para objetos não numéricos, a saber, coisas muito distintas de números, como proposições e

sentenças, predicados e nomes próprios, constituindo o que foi denominado, mais tarde, por Russel, função

proposicional.

b) Em segundo lugar, a Conceitografia não responde a uma questão central: visto que a toda função , na

matemática, corresponde um valor (quantitativo) , qual é então o valor que corresponderia à função

proposicional?

c) Para resolver esses dois problemas referentes a seu principio de análise funcional das proposições e

sentenças, Frege terá de colocar em xeque uma noção central, mas confusa e obscura, da Conceitografia, a

saber, a noção de conteúdo conceptual (begrifflicher Inhalt) , concebendo-a de uma maneira nova, a saber,

a partir da distinção Sentido e referência.

TRILOGIA SEMÂNTICA

Tais problemas e dificuldades serão enfrentados e solucionados por Frege, doze anos após a publicação de

sua lógica, em três artigos : Função e conceito ( Funktion und Begriff), de 1891, tema de nossa próxima

anterior; Sobre o Conceito e o objeto ( Űber Begriff und Objekt) e Sobre o Sentido e a referência (Űber Sinn

und Bedeutung) , tema de aula posterior, ambos publicados em 1892.

Tais ensaios têm por objetivo imediato elucidar ideias semânticas fundamentais para desenvolver o projeto

logicista, caracterizando com precisão a linguagem da lógica e matemática. Como observa Soames, as ideias

contidas nesses artigos podem ser estendidas às linguagens naturais como Português e Inglês, fornecendo as

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condições para um sistemático estudo da linguagem, pensamento e significado; sinteticamente, estes ensaios

colocam as bases para uma semântica e sintaxe filosóficas, desenvolvidas plenamente no séc. XX.

Por essa razão, estes três escritos serão denominados por nós, “trilogia semântica”, porque eles marcariam

uma inflexão semântica na trajetória freguiana, em que o filósofo, sem abandonar seu projeto logicista e

buscando fundamentá-lo, volta-se para a linguagem natural ou linguagem da vida ( Sprache des Lebens),

considerando-a na perspectiva de seu significado e sua relação com o mundo.

Destacam-se nesses ensaios, como mostraremos posteriormente, duas influentes contribuições:

a) de início, a análise da estrutura lógico-proposicional, elaborada, como vimos, no livro Conceitografia e

no ensaio Função e Conceito, tendo, como temas centrais , as noções de “função” e “argumento”, em lugar

da tradicional visão aristotélica sujeito-cópula- predicado;

b) a célebre distinção entre sentido [Sinn] e referência [Bedeutung].

Talvez, na atualidade, estes textos semânticos – e não as obras de lógica e filosofia da matemática - estejam

recebendo mais atenção dos filósofos e linguistas.

Entre as obras desta trilogia semântica , a mais célebre e mais estudada é Sobre o Sentido e a Referência

SOBRE O SENTIDO E A REFERÊNCIA (ÜBER SINN UND BEDEUTUNG)

O ponto de partida de Sobre o sentido e a referência, (doravante SR), reside, como mostramos acima, em

um mesmo problema , ao mesmo tempo lógico , semântico e ontológico, que foi apresentado, pela primeira

vez, no §8 da Conceitografia, sobre a relação de igualdade ou de identidade Em uma nota, Frege observa

que usa esta palavra igualdade [Gleichheit] “no sentido de identidade [Identität]”, e entende “ a =b no

sentido de que a é o mesmo que b ou a e b coincidem” 1.

SR inicia-se com a afirmação de que “ a igualdade desafia a reflexão, dando origem a questões que não são

fáceis de responder ”. E as razões dessa dificuldade são as seguintes: a = a e a = b são, evidentemente,

sentenças de valor cognitivo diferentes, pois a = a sustenta-se a priori e , segundo Kant, deve ser denominada

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A identidade x=y é uma relação lógica fundamental , que podemos representar (x) (x=x) apresenta propriedades fundamentais: a) totalmente reflexiva, a saber, todo indivíduo enquanto indivíduo
[quatenus individuum] é idêntico a si mesmo, daí a definição da classe universal , ou seja, a classe que compreende todos os indivíduos possíveis: V=df [(x) : x=x)]. Uma tal classe universal é
determinada pela função de identidade de todo indivíduo x consigo ou com si mesmo. Inversamente, a função contraditória x é diferente de si mesmo, a saber, x ≠ 𝑥 , não podendo ser satisfeita por
nenhum indivíduo, determina a classe vazia ∆ = { x: (x ≠ 𝑥)]; b) simétrica, ou seja, vale nos dois sentidos , a saber, (x)(y) [(x=y) →(y=x)]; transitiva: (x)(y)(z) [(x=y). (y=z) →(x=z)]. Como afirma
Quine, “no entity without identity”.A introdução por Frege e Russell na linguagem simbólica do cálculo de predicados aumentou consideravelmente seu poder de análise de proposições e argumentos,
pois ela permite formular uma quantificação numericamente definida, situando-se no coração da definição de números e da formalização da aritmética. A identidade é um operador lógico essencial na
lógica simbólica das relações.
Os conceitos de objeto [gegenstand] em Frege e indivíduo [individual] em Russell, embora não definíveis em razão de sua simplicidade, é todo o que é idêntico a si mesmo, o mesmo que ele mesmo:
(x)(x=x). E o indivíduo ou objeto é o outro do outro: o diferente frente ao outro. Como observa Gabriel Tarde, todo existir é diferir , exceto de si mesmo. Como veremos em Frege, a identidade a = b e
a= a , são garantidas pelo fato de que os dois nomes a e b designam o mesmo objeto, mais precisamente, designam um único e mesmo objeto, ou seja, correferenciais. Na linguagem cotidiana, a palavra
“mesmo” significa geralmente a “semelhança” e não a “identidade”. Assim , quando se diz que “eles têm o mesmo carro”, significa que eles têm dois exemplares diferentes ou duas instanciações
diferentes [token] de um mesmo modelo ou tipo [type]

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analítica, enquanto que sentenças da forma a = b contêm, frequentemente, extensões muito valiosas de nosso

conhecimento, e nem sempre podem ser estabelecidas a priori.... Assim, se quiséssemos considerar a igualdade

como uma relação entre os objetos a que os nomes “a” e “b” se referem, então a = b não pareceria diferir de a

= a , caso a = b fosse verdadeira”.

A originalidade de Frege reside no fato de chamar a atenção para essa modalidade de identidade, a saber,

identidade entre nomes diferentes, que designam , todavia, o mesmo objeto ou indivíduo , e que se distingue

da identidade a = a . Frege observa que as sentenças a = a e a = b são ambas sentenças de identidade, e no

entanto, “evidentemente sentenças de valor cognitivo diferentes”. Enquanto a identidade “ a = a sustenta-se

a priori e , segundo Kant, deve ser denominada analítica”, as sentenças de identidade da forma a = b “contém,

frequentemente , “extensões muito valiosas de nosso conhecimento” e , além disso, “nem sempre podem ser

estabelecidas a priori”. Assim, se quiséssemos considerar a igualdade como uma relação entre os objetos a

que os nomes “a” e “b” se referem, então a = b não pareceria diferir de a = a , caso a = b fosse verdadeira. E

no entanto, elas diferem pois , como diz Frege, a identidade da forma a = b “extensões muito valiosas de

nosso conhecimento” e “nem sempre podem ser estabelecidas a priori”, podendo , por isso , ser denominada

“identidade informativa”. De onde vem essa diferença de valor cognitivo da identidade informativa, a = b, em

relação a identidade a = a , que apoia-se apenas na lei da identidade lógica?

IDENTIDADE LÓGICA

Em seu artigo, Frege irá ilustrar essa distinção através de um célebre exemplo extraído da astronomia, a saber,

os nomes estrela da manhã e estrela da noite, que designam o mesmo objeto, ou seja , o planeta Vênus.

A primeira identidade ou igualdade, entre nomes idênticos, é uma velha conhecida da filosofia , desde a

antiguidade grega, a saber, a lei da identidade ou princípio de identidade , segundo a qual tudo é idêntico a si

mesmo: é o caso do exemplo (o planeta) Vênus é Vênus, que podemos representar assim : Vênus = Vênus (que

podemos ler Vênus é igual a Vênus, ou Vênus é idêntico a Vênus, ou, simplesmente, Vênus é Vênus). Ou então

a estrela da manhã= a estrela da manhã, a estrela da tarde = a estrela da tarde, em que sinal “=” representa

a relação de igualdade ou identidade.

Trata-se da identidade entre dois nomes iguais , que designam ou se referem ao mesmo indivíduo ou objeto

[denominados , por isso, correferenciais], a saber, o planeta Vênus. Grosso modo, trata-se da identidade de

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um indivíduo consigo ou com si mesmo. Essa identidade é muito importante, por se tratar de uma lei lógica

fundamental, a lei da identidade: a identidade consigo ou com si mesmo é condição necessária, embora não

suficiente, para que qualquer objeto ou indivíduo – inclusive cada um de nós – possa ser e existir. Todavia,

tal identidade entre nomes iguais tem uma limitação essencial: nada nos informa sobre os indivíduos que eles

representam . Assim, ao dizer Vênus=Vênus, estrela da manhã= estrela da manhã, estrela da tarde = estrela

da tarde, nada informo sobre Vênus, estrela da manhã , etc.

É que tal identidade entre nomes iguais, embora seja muito importante, é uma identidade que não amplia

nosso conhecimento e por isso, é uma identidade não-informativa ou trivial . Em razão disso, é denominada

identidade lógica, constituindo o principio fundamental da lógica desde os gregos, a saber, o princípio da

identidade, podendo ser representado, na lógica de predicados com identidade, assim: a=a, ou (x) (x =x) ,

que podemos ler todo individuo é igual a si mesmo. .

A IDENTIDADE INFORMATIVA

Toda a importância de Sentido e referência é apresentar e explicar uma modalidade de identidade , que talvez

não tenha sido alvo de atenção pela filosofia até então, a saber, a identidade entre nomes diferentes como

estrela da manhã e estrela da tarde, que se referem ou designam o mesmo indivíduo, a saber , o planeta Vênus.

Podemos representar esta identidade assim: Estrela da Manhã = Estrela da Tarde, ou seja, o astro luminoso

que vejo no céu pouco antes do alvorecer é o mesmo que vejo no céu pouco antes do anoitecer. [Outras

denominações são frequentemente empregadas: a) Vênus ao amanhecer/Vênus antes da aurora / Eósforo /

Fósforo / Lúcifer/Estrela Matutina/Estrela d’Alva; b) Vênus ao entardecer/Vênus após o crepúsculo

/Héspero/ Vesper/Estrela Vespertina]

Durante muitos séculos, a humanidade ignorou esta identidade, conhecendo-a somente na Mesopotâmia, ou

talvez, bem posteriormente, na Grécia antiga.

A importância desta identidade entre nomes diferentes, que se referem ao mesmo indivíduo, ou seja,

correferenciais, reside no fato de que de que amplia nosso conhecimento , dando-nos uma informação nova

sobre aquele astro luminoso no céu ao amanhecer e entardecer, a saber, que são o mesmo corpo celeste, mais

exatamente, o mesmo planeta.

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Em razão disso, é essa relação de identidade peculiar é denominada identidade informativa (porque amplia o

nosso conhecimento e nos dá uma informação nova, até então desconhecida)2.

COMPARANDO IDENTIDADE LÓGICA E IDENTIDADE INFORMATIVA

O enunciado A estrela da manhã é a estrela da tarde é uma relação de identidade que nos dá uma informação

sobre um fato astronômico muito importante, que só podemos conhecer empiricamente e que jamais poderia

ser logicamente deduzido do princípio de identidade pura a estrela da manhã é a estrela da manhã, sem

outras premissas.

Trata-se , como nos mostrou Frege brilhantemente, de duas sentenças ou relações de identidade distintas, mais

exatamente, com um diferente valor cognitivo.

A sentença a estrela da manhã é a estrela da manhã, ou simplesmente, a estrela da manhã = a estrela da

manhã, é apenas uma instância ou um caso particular do princípio lógico de identidade a = a. Tal relação de

identidade “sustenta-se (gilt) a priori , e , segundo Kant, deve ser denominada de analítica” e , portanto, não

amplia o nosso conhecimento sobre a estrela da manhã ou nada acrescenta a ele. Por outras palavras, é uma

identidade lógica e pura de um nome consigo mesmo e por isso, uma verdade lógica, que nada afirma sobre

fatos. Isso significa que, para justificar a verdade desta identidade, não é necessário fazer nenhuma referência

a fatos ou coisas designados pelo nome estrela da manhã.

VALOR COGNITIVO ( ERKENNTNISWERT).

Já a sentença A estrela da manhã (der Morgenstern/the Morning Star) é a estrela da tarde ( der

Abendstern/the Evening Star), ou, simplesmente, a estrela da manhã = a estrela da tarde, contêm, ao

contrário, valiosa extensão ( wertvolle Erweiterungen) de nosso conhecimento , que não pode ser estabelecida

a priori” , pelo fato de não ser uma verdade lógica nem um caso particular do princípio de identidade lógica

, e sim uma relação de identidade que enuncia uma informação que poderíamos perfeitamente desconhecer, a

2 Procurei apresentar a distinção freguiana de um modo mais didático. Todavia, mais fiel ao texto de Frege seria observar que a originalidade de Frege situa-se no fato de se
interessar não pela relação de identidade entre nomes iguais como a=a (que estudamos anteriormente na lógica das relações), e sim por uma relação de identidade nova para
nós, a saber, a identidade entre nomes diferentes, como a=b, que , no entanto, nomeiam ou designam o mesmo indivíduo. Somente algumas páginas depois, Frege irá mencionar
estrela da manha e estrela da tarde. Segundo Frege, podemos ler a relação a=b como “a é o mesmo que b ou a e b coincidem (zusammenfallen)", ou simplesmente, a é b.
Estas letras minúsculas, como a, b, c ... são denominadas , como vimos na lógica relacional, constantes individuais, porque designam indivíduos determinados. Por isso, tais
letrinhas podem ser denominadas nomes próprios lógicos, distinguindo-se dos nomes próprios gramaticais, como Maria, João, Pedro, etc.
Frege enfatiza, inicialmente, a diferença entre estas duas relações de identidade, mostrando que a=a é uma relação de identidade meramente lógica, tautológica e trivial, que
não nos dá uma informação nova nem amplia nosso conhecimento sobre o individuo nomeado. Por isso, podemos recorrer a uma terminologia kantiana e dizer que enquanto
a identidade lógica a=a é meramente analítica e não ampliativa.
Bem distinta, no entanto, é a relação de identidade que será o tema central de SR, a saber , a relação de identidade entre nomes diferentes, como a = b, que designam o mesmo
indivíduo. Enquanto a relação a=a – que enuncia o principio de identidade – nos parece evidente e necessariamente verdadeira , a outra relação de identidade , a = b, nos
surpreende, por estabelecer uma relação de identidade entre nomes diferentes. Além disso, trata-se de uma identidade peculiar, porque nos dá uma informação nova ou amplia
nosso conhecimento sobre o objeto ou seu conteúdo. Para empregar uma terminologia kantiana, diríamos que se trata de uma identidade sintética e ampliativa. Como é possível
uma identidade entre diferentes? E como ela pode ampliar nosso conhecimento, nos trazendo novas informações? Evidentemente, a resposta não pode estar no individuo
designado ou nomeado por a e b, posto que é o mesmo indivíduo.
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saber , que a estrela da manhã é mesma que a estrela da tarde, ou a estrela que se vê de manhã é a mesma

que se vê de tarde, ou seja, o mesmo corpo celeste, a saber, Vênus.

QUADRO COMPARATIVO

Frege enfatiza este caráter ampliativo ou informativo, em relação à identidade-exemplo, Estrela da Manhã=

Estrela da Tarde, ao afirmar que este juízo de identidades entre nomes diferentes “é , em sentido kantiano,

um juízo sintético"3. E poderíamos acrescentar: um juízo sintético a posteriori, pois se origina da experiência

e , sobretudo, seu valor de verdade verdadeiro ou falso somente pode ser decidido empiricamente.

Podemos então apresentar um quadro comparativo entre estas duas identidades, igualmente importantes, mas

distintas:

A ESTRELA DA MANHÃ= A ESTRELA DA MANHÃ A ESTRELA DA MANHÃ = A ESTRELA DA TARDE


Não ampliativa ( não amplia nosso conhecimento sobre a Ampliativa (amplia nosso conhecimento sobre a estrela da manhã e
estrela da manhã) sobre a estrela da tarde)
Não informativa Informativa
Analítica Sintética
A priori ( não é avaliada pela experiência, pois é verdadeira A posteriori ( dependemos da experiência para descobri-la e para
e sempre será , independentemente de qualquer experiência) avaliá-la como verdadeira)
Lógica Empírica
Como observa Frege, em uma carta a Russell, em 1902, “as palavras “Estrela da Manhã” e “Estrela da Tarde” designam o
mesmo planeta , Vênus; mas para reconhecer [erkennen] isso, um ato especial de recognição[Erkenntnisthat] é necessário; não
pode ser simplesmente inferido do princípio de identidade”

32 = 32 E 23 + 1 = 32 : VALOR COGNITIVO ANALÍTICO E A PRIORI

Como nos mostra o exemplo “Estrela da Manhã” e “Estrela da Tarde”, Frege ilustra a diferença de valor

cognitivo recorrendo a pares sentenciais de identidade, em que uma é analítica e a priori, a outra sintética e a

posteriori.

Todavia, diferença de valor cognitivo e a extensão de conhecimento de uma sentença de identidade não

implica necessariamente que seja empírica e a posteriori. Como observa Frege, no início de SR, a identidade

“ a = a sustenta-se a priori e , segundo Kant, deve ser denominada analítica”; diferentemente, as sentenças da

forma a = b “contém, frequentemente , “extensões muito valiosas de nosso conhecimento” e , além disso,

“nem sempre podem ser estabelecidas a priori”. Por outras palavras, diferença no valor cognitivo não consiste

em diferença entre analiticidade e sinteticidade.

3Isso nos mostra que Frege concorda com a importante distinção kantiana entre juízos analíticos e sintéticos , sem questioná-la, atribuindo-lhe um papel fundamental tanto na
sua filosofia da linguagem quanto filosofia da aritmética.
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Em uma carta a Russell, de 28/12/1902, já mencionada no quadro comparativo acima, Frege observa que as

equações 32 = 32 e 23 + 1 = 32 não têm o mesmo valor cognitivo , embora o valor de verdade seja o mesmo.

Ambas as equações são analíticas e a priori, na concepção freguiana. Pois a verdade de seus conteúdos pode

ser inferida de leis lógicas e definições somente. Todavia, tal como no exemplo astronômico, elas diferem em

valor cognitivo. A razão é que a primeira equação pode ser inferida da lei de identidade apenas; a segunda,

não. Conhecer somente a lei de identidade é condição suficiente para dizer que 32 = 32 é verdadeira; todavia,

não é suficiente para eu julgar o valor de verdade de 23 + 1 = 32, visto ser necessário outras razões e outras

premissas para inferir que tal equação é verdadeiro. Mas essas outras razões , para determinar a verdade dessa

equação , não são a posteriori nem empíricas. Sinteticamente, a equação 23 + 1 = 32 possui valor cognitivo e

contém uma extensão do nosso conhecimento, embora não seja nem empírica nem a posteriori como Estrela

da Manhã = Estrela da Tarde.

O PROBLEMA CENTRAL : VALOR COGNITIVO E IDENTIDADE INFORMATIVA

Todavia, a importância de Frege não reside apenas em chamar nossa atenção para esta modalidade de

identidade informativa até então ignorada pela filosofia, mas principalmente apresentar uma explicação e

justificação para essa identidade informativa ou ampliativa.

Reside aqui o problema central de Sobre o sentido e a referência: o de explicação e fundamentação – ou seja,

a apresentação das condições de possibilidade – dos juízos de identidade com valor cognitivo, que ampliam

nosso conhecimento , e por isso podem ser denominados identidade informativa.

MODO DE APRESENTAÇÃO ( ART DES GEGEBENSEINS) OU MODO DE DETERMINAÇÃO (

BESTIMMUNGSWEISE)

E a solução de Frege encontra-se no fato do nome próprio, como estrela da manhã ou estrela da tarde, não

apenas designar algo, mas também na maneira como designa alguma coisa (in der Weise wie es etwas

bezeichnet) ou no modo de apresentação do objeto designado (in der Art des Gegebenseins des Bezeichnetes).

Assim, o nome estrela da manhã não apenas designa o planeta Vênus, mas o apresenta de um modo

determinado, como a mais brilhante estrela no céu da manhã, antes do alvorecer, enquanto estrela da tarde

designa também o planeta Vênus, mas o apresenta de maneira diferente, a saber, como a mais brilhante estrela

no céu da tarde, após o pôr do sol ou após o crepúsculo

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SOLUCIONANDO O PROBLEMA DA IDENTIDADE INFORMATIVA

Assim, a=a ou estrela da manhã = estrela da manhã não são identidades informativas, mas apenas identidades

lógicas ou triviais, por que tais signos designam o mesmo objeto do mesmo modo , ao passo que a = b ou

estrela da manhã = estrela da tarde são identidades ampliativas porque determinam ou apresentam o mesmo

objeto de modos diferentes. Por outras palavras, ambas as sentenças de identidade têm o mesmo valor de

verdade, porque os sinais designam o mesmo objeto, a saber, o planeta Vênus, mas diferem em valor

cognitivo, mas o apresentam de modos diferentes.

Isso permitirá a Frege explicar com precisão por que as frases de identidade a = a e a = b têm valores cognitivos

diferentes, ou seja, uma é trivial, enquanto a outra é informativa ou ampliativa. E desse modo , a diferença

pode entrar na identidade do objeto: embora um objeto qualquer seja sempre idêntico a si mesmo, ele pode

ser apresentado (ou ser dado ) de modos diferentes4.

A DISTINÇÃO ENTRE SENTIDO E REFERÊNCIA

Frege poderá , então, apresentar a célebre distinção entre sentido e referência5. Segundo Frege,“ é , pois ,

plausível (es liegt nun nahe) (grifo nosso) pensar que exista , unido a um sinal, além daquilo por ele designado

( Bezeichneten) , que pode ser chamado de sua referência (Bedeutung) , ainda o que eu gostaria de chamar de

o sentido ( Sinn) , onde está contido o modo de apresentação ( die Art des Gegebenseins) do objeto."

Desta forma, Frege ira situar , na mediação entre o nome e o objeto que ele designa, algo novo , a saber , o

sentido deste nome ou do signo linguístico, e irá definir o sentido de um nome como modo de apresentação

4 Em SR, Frege ilustra este fato – mesmo objeto designado por diferentes nomes que o apresentam de maneiras distintas, ampliando nosso conhecimento objetivo sobre ele
– por meio de um exemplo extraído da geometria: "Sejam a, b e c as linhas que ligam os vértices de um triângulo com os pontos médios dos lados opostos. O ponto de interseção
de a e b é o mesmo que o ponto de interseção de b e c . Temos, assim, diferentes nomeações para o mesmo ponto , e estes nomes (ponto de interseção de a e b, ponto de
interseção a e c, ponto de interseção de b e c) indicam (deuten) os modos pelos quais esses pontos são apresentados (die Art des Gegebenseins) . E, em consequência, a
sentença contêm um genuíno conhecimento" .Assim ab = bc =ca : trata-se de uma identidade entre nomes diferentes que designam o mesmo objeto, a saber, o ponto o ponto
de interseção , que podemos chamar ponto z. . No entanto, cada um destes nomes apresenta este mesmo ponto z de modos diferentes. No primeiro caso, o ponto z é apresentado
como interseção das linhas a e b; no segundo caso, como interseção das linhas b e c; e , finalmente, como interseção das linhas c e a . " que a referência das expressões o ponto
de interseção de a e b e o ponto de interseção de b e c seria a mesma , mas não os seus sentidos". Por outras palavras, ab, bc e ac referem-se ao mesmo ponto de interseção ,
mas o apresentam ou o determinam de três modos diferentes: como interseção das linhas ab, bc e ac.

5 A diferença sentido e referência é apresentada, pela primeira vem, em um texto anterior a SR, cujo título é Função e conceito, de 1891; “ Ao dizermos ‘a estrela vespertina
é um planeta cuja revolução é menor que a da terra’, o pensamento que expressamos é diferente do da sentença (Satz) ‘a estrela matutina é um planeta cuja revolução é menor
que a da terra’ , pois quem não souber que a estrela matutina é a estrela vespertina , pode considerar uma das sentenças verdadeira e a outra como falsa. E , no entanto, ambas
as sentenças devem ter a mesma referência, pois apenas se trocaram as palavras estrela vespertina e estrela matutina , que têm a mesma referência, isto é , são nomes próprios
do mesmo corpo celeste. Temos de distinguir assim sentido (Sinn) de referência (Bedeutung)” (grifo nosso).

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do objeto que o nome designa. E isso que permite , finalmente, explicar a identidades informativas ou

ampliativas como estrela da manhã = estrela da tarde ou de equações como 23 + 1 = 32

O SENTIDO IDENTIFICA A REFERÊNCIA

Como observa A. Miller, o sentido de uma expressão é aquele “ingrediente” [ingrediente] de seu significado

[meaning] que permite identificar o seu valor semântico [semantic value], isto é , sua referência. Ou , como

observa Soames, o sentido é a condição cuja satisfação por parte de um objeto é necessária e suficiente para

que tal objeto seja o referente de um termo. Nessa direção , diz-se que o sentido de um termo “fixa" ou

“determina” a referência.

UMA MESMA REFERÊNCIA, DIFERENTES SENTIDOS

Percebe-se que qualquer objeto ou referência pode ser determinado por diferentes sentidos e apresentado de

diferentes maneiras. É o caso, por exemplo, do numero 4; diferentes expressões numéricas podem se referir a

esse mesmo número, apresentando-o, todavia, de diferentes maneiras e com diferentes sentidos: como adição

(3+1), subtração (5-1), divisão (8/2), multiplicação (2x4) , etc.

SINTETICAMENTE

Em SR, Frege observa que “ um nome próprio [palavra, sinal , combinação de sinais, expressão] expressa seu

sentido [drückt aus seinen Sinn] e refere-se ou designa sua referência [ bedeutet oder bezeichnet seine

Bedeutung]. Por meio de um sinal [Zeichen] expressamos seu sentido e designamos com ele sua referência.

Conforme nota 28 de Alcoforado, na sua tradução de SR, “Frege explicita aqui o significado de três verbos :

‘expressar’ [ausdrücken, isto é, a relação que se entre uma expressão e seu sentido], ‘referir’ e

‘designar’[bedeuten, bezeichnen, isto é , a relação que se dá entre uma expressão e seu objeto]. Também fica

claro na passagem acima que o substantivo Bedeutung, será usado tanto para designar a relação de referir

como a própria coisa referida [referentum]. Podemos destacar:

a) O principal aspecto do sentido de um nome próprio é o modo de apresentação;

b) Diferenças quanto ao valor cognitivo são condicionadas por diferenças no modo de apresentação, ou seja,

no sentido;

c) Dois nomes próprios distintos com o mesmo sentido, têm a mesma referência; todavia, dois nomes próprios

com a mesma referência, podem diferir no sentido;

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d) A mudança de sinais com a mesma referência em um sinal complexo não muda sua referência;

e) Para Frege , a distinção entre sentido e referência se aplica a todos os termos singulares ou nomes próprios,

como para os termos da equação , que vimos acima, 23 + 1 = 32 , que são verdades a priori e analíticas para

Frege.

PLATONISMO SEMÂNTICO

Como explicar ainda que uma sentença como O Etna é maior que o Vesúvio, apresentado em seu escrito

póstumo Lógica na matemática , seja compreendida da mesma maneira, tenha o mesmo sentido e seja avaliada

do mesmo modo, a saber, como verdadeira, por cada um de nós, não obstante as inúmeras diferenças físicas

e sobretudo psíquicas entre nós? Por que , ao ouvir a sentença acima, apreendemos o mesmo sentido, embora

os acontecimentos psíquicos e representações em cada um de nós sejam tão diferentes?

Em um texto de 1915, “Minhas concepções lógicas fundamentais”, Frege observa que um “pensamento

verdadeiro [ Frege denomina pensamento( Gedanke) o sentido das proposições] já era verdadeiro antes de ser

apreendido por alguém. Um pensamento não necessita de um ser humano como portador [Träger]. O mesmo

pensamento pode ser apreendido por diversos seres humanos. O julgar não modifica o pensamento

reconhecido como verdadeiro”.

Na 11ª. sentença de “Dezessete sentenças básicas da lógica”, de 1906, Frege diz: “[ O pensamento] ‘2 vezes

2 são 4’ permanece verdadeiro mesmo que todos os homens chegassem a asserir, por força de uma evolução

darwiniana, que 2 vezes 2 sejam 5. Toda verdade é eterna e independe do fato de ser pensada por alguém e

da constituição psicológica daquele que pensa”. Por outras palavras, as verdades não só são eternas como

também independem de nós e de nossas consciências.

E isso é o que pode ser caracterizado como “platonismo semântico” que pode ser caracterizado como a teoria

segundo a qual termos e sentenças expressam conceitos e proposições que são entes intemporais, só acessíveis

por uma intuição suprassensível.

O TERCEIRO REINO

Frege entende, observa P. Alcoforado em uma nota às “17 sentenças”, que pensamentos verdadeiros são entes

eternos existentes em um terceiro reino, como ele o chama, que não é nem mental nem físico, distinto de

ambos por ser intemporal e similar a ambos por ser em certo sentido factual. Todas as variedades dos entes

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somente podem estar distribuídas : 1) no primeiro reino, a saber , no espaço físico exterior; ou 2) no segundo

reino, que é o mundo interior de nossa consciência; ou 3) em um terceiro domínio no qual se encontram os

números, conceitos, relações, funções , pensamentos ( isto é, sentido das sentenças ) e os sentidos das demais

expressões.

ANTIPSICOLOGISMO SEMÂNTICO

Desta visão objetiva do sentido das palavras e dos pensamentos das sentenças, constituindo um terceiro reino,

fora do espaço e do tempo – muito diferente, portanto, do reino psíquico e temporal dentro de nós e do reino

da natureza fora de nós , das coisas no espaço e no tempo – decorre o antipsicologismo semântico de Frege.

Na última sentença de “Dezessete sentenças básicas da lógica”, de 1906, Frege afirma “que as leis lógicas não

podem ser justificadas por meio de uma investigação psicológica”: as leis da lógica são leis normativas ( e

não descritivas) as mais gerais que versam sobre juízos ( e não sobre os fatos do mundo ) e prescrevem de

maneira absoluta como devemos pensar ( e não como de fato pensamos ) e têm como objeto de estudo o

verdadeiro e o falso.

Como nos mostra Dummett, se os sentidos das palavras e das sentenças (Frege denomina pensamento

[Gedanke] o sentido das sentenças) não são conteúdos mentais [na visão de Frege] , então eles não devem

ser analisados nem explicados em termos de operações mentais individuais. Sinteticamente, poderíamos dizer

que nossa subjetividade e nossa mente podem apreender e expressar sentidos, mas não são constitutivas dos

sentidos que as palavras expressam, visto que a existência deles independeria de nossas mentes. A isso ,

Dummett se refere como a ” expulsão (extrusion) dos pensamentos da mente” Por isso, segundo Frege, a

filosofia, que se ocupa dos sentidos e significados das palavras, dever ser separada , do modo preciso, da

psicologia. Sobre críticas a esse platonismo semântico, cf. nota de rodapé6

NOME PRÓPRIO ( EIGENNAME) DESIGNA UM OBJETO

Como observa Alcoforado, o que caracteriza o nome próprio é o fato de “ designar ou se referir a um objeto

determinado , e de um modo determinado", como Aristóteles por exemplo, que Frege considera como um

6
A CRÍTICA AO PLATONISMO SEMÂNTICO DE FREGE : MITOLOGIA DO TERCEIRO REINO
O platonismo semântico de Frege não se impôs , todavia, ao movimento analítico posterior e muitos autores , como Dummett, vão criticar duramente este realismo freguiano , referindo-se a ele como
uma “mitologia ontológica” ou “ mito do terceiro reino”. Apesar disso, a expulsão do sentido e do pensamento da mente, proposto por Frege, vai impor ao pensamento analítico posterior - durante
décadas - uma direção e um caminho imperioso : o afastamento da interioridade e subjetividade, do psicológico e mental para situar-se na "exterioridade e objetividade da linguagem falada e escrita.
Desta forma, durante muito tempo, as condições de possibilidade e limites dos sentidos linguísticos não vão ser buscados na interioridade da mente individual e sim naquilo que é público, universal e
exterior à mente individual: a linguagem. Mais precisamente, nas leis lógicas e sintáticas assim como nas regras de uso de uma linguagem pública que nos possibilita falar e nos comunicarmos, “
governadas pelo acordo na comunidade linguística sobre os padrões de uso correto e critérios de verdade das sentenças”.

11
genuíno nome próprio (eigentlicher Eigenname). Por outras palavras, o que caracteriza o nome próprio é

referir-se a um objeto (Gegenstand) e expressar um sentido sobre esse objeto, apresentando-o de um modo

determinado.

NOMES PRÓPRIOS E DESCRIÇÕES DEFINIDAS

Visto que nomes próprios referem-se sempre a objetos, então eles podem ser denominados nomes de objetos.

E na medida em que expressões linguísticas, denominadas descrições definidas, como a Estrela da Manhã,

o discípulo de Platão, quem descobriu a forma elíptica das órbitas planetárias, também designam objetos

determinados e de um modo determinado, Frege irá denominá-los também, do mesmo modo que se

denominam Platão , Aristóteles, Sócrates , a saber , nomes próprios

OBJETO ESCAPA À DEFINIÇÃO

Diferentemente das termos predicativos, como (...) é um planeta, que expressam conceitos e relações, os

nomes próprios, como Vênus não designam nem conceitos nem as relações, mas tão somente objetos.

Mas o que é um objeto? É impossível, segundo Frege, “ uma definição regular (schulgemäβe Definition) [de

objeto]”, já que nos deparamos com algo cuja simplicidade não admite nenhuma análise lógica. Embora

escape a toda definição, o uso e a extensão do termo “objeto” em Frege são bastante amplos, pois um objeto

tanto pode ser um ente físico , como a Lua ou Vênus, quanto lógico , como os números e os valores de verdade.

OBJETO E ARGUMENTO DE UMA FUNÇÃO

Em Função e conceito, como veremos mais tarde, Frege distingue objeto e conceito, afirmando, que este

termo [objeto] escapa a toda definição e , por isso , somente podemos dizer o que ele não é , ou seja, defini-

lo negativamente: um objeto é tudo o que não é função , ou seja, tudo o que não” é conceito nem relação e

por isso, como mostraremos , somente pode exercer o papel de argumento ou valor de uma função.

Por outras palavras, Nomes próprios são sempre argumentos , nunca funções. Isso significa que nomes e

sinais , na medida em que designam objetos , somente podem desempenhar o papel de argumentos , nunca os

de função. Por outras palavras, somente podem ser sujeitos lógicos e nunca predicados lógicos. Estes últimos

[os predicados lógicos] são conceitos e relações; como vimos em Funçao e conceito, os conceitos são funções

de um só argumento como x é um planeta (funções unárias); ao passo que as relações são funções de dois ou

mais argumentos, como x é o mesmo que y ou x=y. É o que mostraremos na próxima aula.

12
NOMES PRÓPRIOS SEM REFERÊNCIA

Além disso, o fato de um nome próprio expressar ou possuir um sentido não implica que tenha referência: há

nomes , com sentido, mas sem referência , ou seja , sem um objeto que satisfaça esse sentido. Como observa

Frege, “ pode-se talvez admitir que uma expressão sempre tenha um sentido, caso seja gramaticalmente bem

construída, e desempenhe o papel de um nome próprio. Mas com isso não se quer dizer que sempre exista

uma referência correspondente ao sentido”. É o caso, por exemplo, dos nomes corpo celeste mais distante da

Terra ou o maior número primo que têm sentido, “mas é muito duvidoso que tenha uma referência”.

NOMES PRÓPRIOS APARENTES [SCHEINEIGENNAMEN]: ULISSES E A ODISSÉIA

Tais nomes próprios sem referência são denominados por Frege isto é , nomes próprios aparentes. Neles, o

sentido , em vez de nos conduzir à referência do nome, desempenha, paradoxalmente, o papel inverso, ou seja,

o de impedir que o nome tenha uma referência e que possamos alcançá-la.

Frege apresenta em , Sentido e Referência, uma interessante reflexão sobre sentenças como nomes próprios

aparentes, tomando , como exemplo, a poesia, mais precisamente, o poema épico , a Odisséia de Homero, de

onde extrai a frase : “Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca”. Sobre essa importante

análise, confira a nota de rodapé 7.

7 Palavras com sentido mas sem referência: a poesia. Para determinar a natureza da referência de sentenças, Frege toma, como nova premissa de seu raciocínio,
paradoxalmente, um contra-exemplo: sentenças com sentido, mas sem referência. Do mesmo modo que existem partes de sentenças , a saber, nomes que “possuem sentido
mas carecem de referência” , também “poder-se-ia esperar que tais sentenças [ sem referência] existam”.
Tais sentenças são aquelas “ que contêm nomes próprios sem referência”. A presença de um nome próprio sem referência , em uma sentença, determina que a sentença em que
ele ocorre não tenha referência. Como exemplo, Frege apresenta uma sentença extraída de um poema épico, a Odisséia de Homero: Ulisses profundamente adormecido foi
desembarcado em Ítaca”. Tal sentença “tem obviamente um sentido. Mas , assim como é duvidoso que o nome Ulisses, que aí ocorre tenha uma referência, assim também é
duvidoso que a sentença inteira tenha uma”. Segundo Alcoforado, “ no domínio da ficção, as expressões (nomes próprios, termos conceituais e sentenças) carecem normalmente
de referência. Mas, em princípio, operam como se tivessem uma. Frege denomina esses nomes próprios , sem referência, (...) de ‘imagens’ (Bilder) ou ainda de ‘nomes próprios
aparentes’(Scheineigennamen), e caso se tratem de sentenças , ele as denomina de ‘pensamentos aparentes’ (Scheingedanken)” .
A existência de nomes e frases aparentes é importante porque demonstra que o sentido é irredutível à referência e que a expressão dele encontra sua condição de possibilidade
última somente nas palavras e no modo como estão concatenadas, e não nos fatos. Essa autonomia do sentido em relação aos fatos já havia sido apontada, como vimos
anteriormente, , por Platão em Sofista , permitindo a superação do paradoxo sofista e assegurando a possibilidade lógica do falso e também, por correlação, do verdadeiro.
Além disso, ao afirmar a independência do sentido em relação à referência, Frege apresenta uma fundamentação lógico-semântica da obra de arte e da arte em geral: elas
somente são possíveis na medida em que a linguagem tem o imenso poder de expressar , criar e imaginar sentidos que transcendem a referência e os fatos. O que mostraremos
a seguir pode ser denominado , grosso modo, a estética de Frege, ou seja, uma filosofia de arte e de suas condições de possibilidade.
Frege observa que “quando ouvimos um poema épico, além da eufonia da linguagem, estamos interessados (grifo nosso) apenas no sentido das e nas imagens e sentimentos
que esse sentido evoca”. No entanto, fora do domínio da ficção, não nos interessa apenas o sentido e o pensamento somente não nos é suficiente. Por quê? Frege responde :
“ porque estamos preocupados com seu valor de verdade”, ou seja, com o valor de verdade do pensamento ou do sentido. É essa preocupação com o valor de verdade que “
nos faria abandonar o encanto estético por uma atitude de investigação cientifica”.
E até mesmo diante de um sentido poético e ficcional como Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca alguém poderia ir além do sentido e interrogar pela
verdade ou falsidade dele. Por exemplo, questionando, antes de tudo, se Ulisses foi ou não uma personagem histórica. Nesse caso, saber se o nome Ulisses tem ou não
referência , e não somente um sentido, é crucial para determinar o valor de verdade da sentença “pois é da referência deste nome que o predicado é afirmado ou negado”.
E, partindo da referência do nome , Frege irá inferir ou concluir que a sentença – e não apenas o nome – também tem referência: “ o fato de que nos preocupamos (bemühen)
com a referência de uma parte da sentença indica (ist ein Zeichen dafür) que admitimos (anerkennen) e exigimos (fordern) uma referência para a própria sentença”. Com isso,
Frege justifica sua hipótese inicial de que a sentença declarativa, além de pensamento ou sentido, tem também referência
Vamos resumir então os passos da argumentação até agora:1) Frege parte da assunção ou pressuposto de que toda sentença declarativa contém um pensamento e conclui daí,
inicialmente, que o pensamento não é a referência e sim o sentido da sentença; 2)em seguida, mostra que o sentido suscita a preocupação pelo valor de verdade dele; 3) este
interesse pelo valor de verdade, por sua vez, leva ao questionamento sobre a referência de uma parte da sentença; 4) finalmente, esse questionamento sobre a referência de uma
parte da sentença implica reconhecer que a sentença toda – e não apenas uma parte – possui também referência. E Frege resume agora todo esse movimento argumentativo
: “ é pois a busca (Streben) da verdade , onde quer que seja , que nos dirige do sentido para a referência”, ou seja, é a busca da verdade que se coloca como mediadora entre o
sentido e a referência.
De fato, isso parece ir ao encontro de nossa experiência comum: ao compreendermos o sentido de uma sentença , como Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado
em Ítaca, nos questionamos inicialmente : será que isso é verdade?. Em seguida, somos levados a perguntar: será que Ulisses existiu realmente (ou seja, esse nome tem uma
referência)? E finalmente: supondo que Ulisses tenha existido, será que ele de fato foi desembarcado em Ítaca e estava profundamente adormecido? ( isto é, ele satisfaz esse
predicado?).
13
SENTENÇAS COM NOMES SEM REFERÊNCIA NÃO TÊM VALOR DE VERDADE

Sinteticamente, uma sentença que contenha uma expressão , como um nome aparente, sem referência ou valor

semântico, embora tenha ou faça pleno sentido, não tem, todavia, referência e, portanto, não tem valor de

verdade; por outras palavras, uma tal sentença não é verdadeira nem falsa: é o caso de “Ulisses profundamente

adormecido foi desembarcado em Ítaca; ou então , “O maior número primo é [não é ] ímpar”, ou “o atual rei

da França é sábio”.

A existência de nomes e frases aparentes é importante porque demonstra que o sentido é irredutível à

referência e que a expressão dele encontra sua condição de possibilidade última somente nas palavras e no

modo como estão concatenadas, e não nos fatos. Essa autonomia do sentido em relação aos fatos já havia sido

apontada, como vimos anteriormente, por Platão em Sofista , permitindo a superação do paradoxo sofista e

assegurando a possibilidade lógica do falso e também, por correlação, do verdadeiro.

UM PRINCÍPIO GERAL DE ANÁLISE DA LINGUAGEM

Percebemos como Frege , já nas primeiras páginas de Sobre o sentido e a referência, forja um principio de

análise – o da distinção referência/sentido – que não se limita aos termos singulares , ou seja, a expressões

linguísticas que se referem a objetos ou indivíduos determinados sobre os quais se diz algo [ a saber, o sentido

e o predicado], como os nomes próprios [Searle, por exemplo] e as descrições definidas [ A Estrela da Manhã

, por ex.]. Para muito além dos termos singulares, o par conceitual sentido e referência impõe-se como um

princípio comum de análise da linguagem e dos fenômenos linguísticos em geral, estendendo-se aos

predicados e sentenças, generalizado para todos os sinais, a saber, não apenas termos singulares, como

nomes próprios e descrições definidas , mas estendendo-se também aos predicados e às sentenças, abrangendo

, dessa forma, todos os fenômenos da linguagem.

Assim , a distinção sentido e referência, correlato ao de função e argumento, irá compreender toda a

linguagem, determinando de uma maneira nova não apenas o método de análise da linguagem ,mas também

o seu modo de ser e sua essência na contemporaneidade.

PREDICADOS OU PALAVRAS PARA CONCEITOS [BEGRIFFSWÖRTER]

Dessa forma, Frege parece ter justificado que a sentença, e não apenas o nome, também tem referência. Mas as razões apresentadas por Frege são suficientes? Vamos conceder
que sim; resta, todavia, uma questão, a mais importante: o que é a referência de uma sentença? Para o senso comum, a referência seriam o fato ou estado de coisas que
correspondem ou não à sentença, tornando-a assim verdadeira ou falsa, da mesma forma que a referência de um nome é o objeto que ele denota ou designa.

14
Nesse tópico , vamos tratar primeiramente dos predicados ou expressões predicativas. Em Frege, predicados

são denominados Begriffswörter, [ou seja, palavras-conceito ou palavras para conceitos] , distinguindo-se dos

dos termos singulares, como os nomes próprios [Eigennamen] e descrições definidas.

O predicado é , essencialmente, na visão freguiana , a expressão linguística que resulta da remoção , em uma

sentença simples ou elementar, de pelo menos um termo singular.

PREDICADOS MONÁDICOS, DIÁDICOS, ...

Por exemplo, na sentença elementar relacional Sócrates é mestre de Platão podemos remover o nome próprio

“Sócrates”, obtendo o predicado “ ...é mestre de Platão”, denominado tecnicamente predicado monádico; ou

então , podemos remover o nome próprio “Platão”, obtendo o predicado “Sócrates é mestre de ...”, também

monádico, ou por fim, podemos remover ambos os nomes próprios, obtendo o predicado “ é mestre de”,

denominado predicado diádico.

Por outras palavras, são “predicativas” ou “palavras-conceito”, expressões como “ ... é sábio”; “...é uma

mulher”, “... é capital da Inglaterra”, “...ama ...” e “... é maior que ...”. Tais expressões distinguem-se em

predicados-propriedade ou não relacional , como “... é uma mulher”, ou predicado relacional, como “... é

maior que”.

Ao especificar predicados, em vez de usar reticências ou ( ) como nós, para assinalar os lugares vazios a ser

preenchidos por diferentes argumentos ou objetos, Frege emprega letras gregas como 𝜉[𝑥𝑖]e 𝜁[𝑧𝑒𝑡𝑎], por

exemplo, 𝜉 é filósofo ou 𝜉 é 𝑚𝑒𝑠𝑡𝑟𝑒 𝑑𝑒 𝜁

REFERÊNCIA DOS PREDICADOS: CONCEITO E RELAÇÃO

A referência de um predicado não relacional , como “ [...] é sábio”, é o que Frege denomina conceito [Begriff]

, ou às vezes, propriedade [Eingenschaft], enquanto a referência de um predicado relacional como “ ... é maior

que ...” é denominada “relação” [Beziehung].

Como vimos no texto-aula “Função e Conceito” , Frege compreende “conceito” como uma função , mais

precisamente, uma função proposicional [empregando a terminologia de Russell], que se pode representar

como uma caixa preta [blackbox], em que se introduz um Input, a saber, um argumento, obtendo-se um

Output, a saber, um valor; isso faz faz do conceito , na concepção freguiana, uma função de objetos em

valores de verdade.

15
CONCEITO: FUNÇÃO DE OBJETOS EM VALORES DE VERDADE

Sinteticamente, um predicado monádico, como “ ... é um planeta”, tem por referente o conceito no sentido

freguiano, a saber, uma função de objetos em valores de verdade [ou seja , um processo de fazer corresponder

valores de verdade a objetos, como argumentos], cuja extensão é um conjunto de pares ordenados,

correspondente ao percurso de valores da função.

EXTENSÃO FUNCIONAL DO CONCEITO

Assim o conceito “ [...] é um planeta do sistema solar” é uma função conceitual cuja extensão é o conjunto de

pares ordenados {<Mercúrio, verdadeiro>, <Saturno, verdadeiro> , <Júpiter, verdadeiro>...}. Em resumo,

portanto, a referência de um predicado, a saber, o conceito, é uma função de objetos em valores de verdade.

Deve-se chamar a atenção para o fato de que , em Frege, a extensão de um conceito, enquanto função de

objetos em valores de verdade, é diferente de extensão enquanto classe ou conjunto de objetos que satisfazem

um conceito. Frege chama atenção para isso em sua resenha crítica da “Filosofia da Aritmética I”

[Philosophie der Aritmetik I] de Husserl, publicada em 1894, enfatizando que a extensão de um conceito não

é um agregado ou coleção ou conjunto composto por objetos que caem sob um conceito: “a extensão de um

conceito não é uma coleção no sentido de Husserl. Um conceito sob o qual um só objeto cai tem uma

determinada extensão, tal como um conceito sob o qual nenhum objeto cai, ou um conceito sob o qual caem

infinitamente muitos objetos caem, mas nesses casos não há coleção alguma de acordo com o Sr. Husserl”.

Por isso, enquanto vigora, entre muitos autores, a compreensão de extensão de um predicado como sendo o

conjunto de objetos que caem sob um determinado conceito, em Frege, diferentemente, a extensão de um

predicado é o conjunto de pares ordenados que corresponde ao percurso de valores do conceito-função de

objetos em valores de verdade.

Como observa Branquinho, o referente de um predicado para Frege é uma função , uma entidade incompleta

e não saturada, um mero processo de computar objetos [valores de verdade] como valores para dados objetos,

como argumentos; para outros, diferentemente de Frege, a extensão de um predicado é um objeto, uma

entidade completa e saturada, a classe daqueles objetos que caem sob um conceito.

SENTIDO DO PREDICADO: MODO DE APRESENTAÇÃO DO CONCEITO

16
Como vimos, Frege compreende “conceito” como função unária cujo valor é sempre um valor de verdade.

E isso pode ser estendido também para conectivos lógicos e quantificadores, pois estes também podem ser

considerados como denotados por funções.

Expressões predicativas têm não apenas referência, mas também sentido. O sentido de um predicado podemos

compreender, em analogia com o sentido de termos singulares, como o modo de ser dado do referente, a saber,

o modo de ser dado do conceito na acepção freguiana, ou seja, funcional.

Assim, as expressões predicativas “um ser vivo com rins” e “um ser vivo com coração” têm a mesma

referência, a saber, o conceito ou função de objetos em valores de verdade com mesma extensão. Todavia ,

o modo de apresentação desse conceito ou sua compreensão é muito diferente, quando se trata de animais com

rins e animais com coração.

DISTINÇÃO CONCEITO E OBJETO

Frege estabelece a distinção lógico-linguística entre dois tipos de expressões , os predicados, cuja

denominação freguiana é Begriffswörter, [ou seja, palavras-conceito ou palavras para conceitos] e os nomes

próprios [Eigennamen].

Predicados referem-se ou designam conceitos e relações, enquanto nomes próprios designam objetos ou

indivíduos. Para alguns, conceitos, relações e objetos são a contraparte metafísica ou ontológica das

expressões linguísticas predicativas e singulares. Enquanto o referente de um termo singular é o objeto ou

indivíduo por ele designado, o referente de um predicado monádico, como “ é um planeta” é o conceito no

sentido freguiano, entendido como uma função de objetos em valores de verdade [a saber , um processo de

fazer corresponder valores de verdade a objetos, como argumentos], cuja extensão é um conjunto de pares

ordenados, correspondente ao percurso de valores da função.

SENTIDO E REFERÊNCIA DAS SENTENÇAS DECLARATIVAS

Como indicamos, o par sentido e referência não se limita à análise de termos singulares e predicados, mas mas

será estendido a todas as sentenças assertivas ou declarativas formadas por nomes próprios, como Vênus, e

predicados lógicos, como (...) é um planeta, , dando origem à sentença completa Vênus é um planeta.

De fato, o objetivo de Frege em seu artigo não é a investigação de nomes, e sim a investigação das sentenças

declarativas ou assertivas nas quais pelo menos um dos constituintes é um nome : por isso, diz Frege,

17
“passemos a investigar qual seja o sentido e a referência de uma sentença assertiva (Behauptungsatz)

completa.” Perceba que Frege não irá investigar essa oposição nas sentenças enquanto tais [ por exemplo

sentenças imperativas ou interrogativas], mas tão somente das sentenças que são assertivas ou declarativas e

que , por isso, possuem um valor de verdade verdadeiro e falso.

SENTIDO (SINN) DA SENTENÇA (SATZ) : O PENSAMENTO (GEDANKE) OU A PROPOSIÇÃO

Vimos que o nome próprio, segundo Frege, expressa um sentido, que é o modo de apresentação ou o modo

de determinação do objeto que o nome próprio designa ou ao qual se refere. A sentença declarativa, tal como

o nome próprio, também expressa um sentido que , todavia, é denominado por Frege pensamento: toda

sentença declarativa , diz Frege, “contém um pensamento (Gedanke)”.

A palavra sentença (Satz), diz Frege, “é usada de diversos modos (...) . Contudo, não é propriamente a

sentença que importa quando falamos, mas o sentido ou o conteúdo vinculado à sentença e que se procura

comunicar (...). É assim que se associam a sentença e o sentido da sentença, [isto é] , o sensível e o não

sensível. Chamo pensamento o sentido de uma sentença dotada de sentido”

PENSAMENTO OU PROPOSIÇÃO SÃO CONTEÚDOS OBJETIVOS: PLATONISMO SEMÂNTICO

Tal como o sentido expresso pelo nome próprio, Frege enfatiza, em uma nota, que entende “por pensamento

não o ato subjetivo de pensar , mas seu conteúdo objetivo (objektives Inhalt) , que pode ser propriedade

comum de muitos”.

Vemos aqui que a natureza do pensamento de uma sentença é idêntica à do sentido de um nome próprio:

ambos designam um conteúdo objetivo, comum a muitos, e, tal como a referência, é irredutível ao nosso ato

de pensar e às nossas representações.

Os sentidos , como, por exemplo, “é alemão”, são objetos públicos, observa Soames, disponíveis para

distintos sujeitos pensantes; do mesmo modo o teorema matemático “o quadrado da hipotenusa de um

triângulo retângulo é igual à soma dos quadrados dos catetos” , objeto de crença de todos os que creem no

teorema de Pitágoras. Isso , a saber, o pensamento ou a proposição, é o que permanece idêntico nas diferentes

traduções do teorema de Pitágoras em sentenças de diferentes línguas. Para Frege, pensamentos, proposições,

predicados e conceitos, sentidos são objetos abstratos , imperceptíveis a nossos sentidos, apreensíveis somente

pelo intelecto.

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A REFERÊNCIA DA SENTENÇA : VALOR DE VERDADE ( WAHRHEITSWERT)

Do mesmo modo que o nome apresenta sentido e referência , Frege também irá inferir ou concluir que a

sentença declarativa – e não apenas o nome –, tem também, além de sentido ou pensamento, referência.

Mas qual é então a referência da sentença? Como vimos, o sentido da descrição definida “a Estrela da Manhã”

é uma condição a ser satisfeita por um único objeto é suficiente para que tal objeto seja o referente dessa

expressão; por analogia, podemos dizer que o pensamento ou proposição expressos por uma sentença é uma

condição a ser satisfeita pelo mundo ou parte dele para que a oração tenha uma referência, a saber, o

Verdadeiro. E quando a condição proposicional não é satisfeita pelo mundo , diz-se que o referente da sentença

é o Falso.

Isso não torna a resposta de Frege menos surpreendente, pois, segundo o filósofo, “ somos levados

(gedrängt) a reconhecer o valor de verdade de uma sentença como sendo sua referência”.

Disso resulta que a referência de uma sentença não é nem o fato nem o estado de coisas representados pela

sentença, e sim o valor de verdade dela: “ Por valor de verdade de uma sentença, diz Frege, entendo a

circunstância (Umstand) de ela ser verdadeira ou falsa. Não há outros valores de verdade. Por brevidade,

chamo a um de o verdadeiro (das Wahre) e a outro de o falso (das Falsche)”. Por outras palavras, os dois

valores de verdade são denominados por Frege, platonicamente, “ o verdadeiro” e “o falso”, para enfatizar

sua natureza de objetos abstratos

O VERDADEIRO OU O FALSO NÃO SÃO CONCEITOS (BEGRIFFE) E SIM OBJETOS (

GEGENSTÄNDE)

Em Função e conceito, de 1891, (artigo que veremos na próxima aula), anterior, portanto, a SR , Frege já

aplica os conceitos de sentido e referência às sentenças declarativas e apresenta as diferenças esses dois

conceitos.

Ali, Frege enuncia de modo explícito que a referência de uma sentença declarativa – qualquer sentença – é

o valor de verdade dessa sentença , da mesma forma que a referência da expressão 2+2 é o número 4 e a

referência da expressão a capital da Inglaterra é Londres., assim como a referência do nome próprio Estrela

da Manhã é o planeta Vênus.

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Por outras palavras, em Função e Conceito, já estão anunciadas as principais teses de Sobre o sentido e a

referência:, a saber:

a) a referência de uma sentença são os seus valores de verdade (o verdadeiro ou o falso);

b) o verdadeiro e o falso não são conceitos nem predicados e sim objetos como números ou Londres ou Vênus.

SENTENÇAS DECLARATIVAS E NOMES PRÓPRIOS

Na medida em que a referência das sentenças , como mostramos acima, é um objeto, a saber, o verdadeiro

ou o falso, então as sentenças também podem ser consideradas nomes próprios, pois estes, como vimos ,

também designam ou se referem a objetos.

Como observa Alcoforado, a teoria freguiana da sentença pode ser sintetizada nos seguintes aspectos:

a) de um ponto de vista estrutural, a mais simples das sentenças é constituída , de um lado, de um nome de

um objeto, por exemplo, Vênus, e , de outro, por um termo predicativo, como (...) é um planeta, que formam

uma sentença declarativa ou assertiva simples , de sentido completo, a saber, Vênus é um planeta.

b) Do mesmo modo que o nome próprio ou nome de objeto expressa um sentido e designa um objeto, também

a sentença declarativa, do ponto de vista semântico, expressa um sentido, que Frege denomina pensamento, e

possui uma referência, ou seja, designa ou se refere a um objeto , que em seu entender é um valor de verdade,

o verdadeiro e o falso.

c) Nesse aspecto, por expressar um sentido e referir-se a um objeto, a sentença pode ser considerada um nome

próprio plurivocabular ( ou seja, constituído , pelo menos, por um nome próprio e um predicado) que expressa

um pensamento e refere-se a um objeto, a saber, o valor de verdade.

ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS ESTRANHAS

Daí algumas consequências estranhas:

a) A primeira delas é que, como mostramos acima, para Frege “toda sentença assertiva deve ser considerada

como um nome próprio; e sua referência, se tiver uma é ou o verdadeiro ou o falso.”. A sentença é assim

reduzida ao nome próprio; por consequência , a sentença tem por referência um objeto; ora, a referência de

uma sentença, como nos mostra Frege, é o seu valor de verdade; logo, o verdadeiro e o falso são objetos e o

nome próprio deles é a sentença verdadeira ou falsa.

20
Sobre o espanto que isso produz, diz Frege: “Chamar os valores de verdade de objetos pode parecer um

devaneio arbitrário ou mero jogo de palavras, sem consequências profundas. O que eu denomino de objeto só

pode ser propriamente discutido quando vinculado ao conceito e à relação. Reservarei isto para um outro

artigo”.

b)A segunda consequência é que, observa Frege, “ se o valor de verdade de uma sentença é sua referência,

então, de um lado, todas as sentenças verdadeiras têm a mesma referência e , de outro, o mesmo ocorre com

todas as sentenças falsas. Vemos , a partir disso, que na referência da sentença tudo que é específico é

desprezado”.

No entanto, não são muitos os filósofos convencidos de que sentenças são nomes próprios de valores de

verdade . Por exemplo, Michael Dummet, em seu “ Frege: Philosophy of language” afirma , criticando Frege,

que “ se sentenças são meramente um caso especial de nomes próprios complexos, se o Verdadeiro e o Falso

são meramente dois objetos particulares em um universo de objetos, então, depois de tudo, não há nada de

único sobre sentenças; qualquer coisa de especial que tenha sido pensado sobre elas deve ser atribuído aos

mesmos objetos, a saber, o Verdadeiro e o Falso”.

JUSTIFICANDO O VERDADEIRO E O FALSO COMO REFERÊNCIAS DAS SENTENÇAS

Essa compreensão controversa de que a referência das sentenças declarativas são os valores de verdade

verdadeiro ou falso não será apenas afirmada ou asserida por Frege, mas também justificada por ele. Para isso,

ele vai se apoiar no Princípio de substituição salva veritate de Leibniz .

PRINCÍPIO DA SUBSTITUIÇÃO SALVA VERITATE (PRINCÍPIO DE LEIBNIZ)

Para justificar sua hipótese de que a referência de uma sentença é o valor de verdade verdadeiro ou falso ,

irá submetê-la ao teste da substituição salva veritate (literalmente , com a verdade salva)8, cuja origem

remonta a Leibniz . Vamos falar um pouco sobre esse principio da substituição salva veritate.

Tal princípio foi apresentado por Leibniz como Definição 1 , tanto no capítulo XIX quanto no capitulo XX

de Scientia Generalis. Characteristica.(Leibniz, Phil. Schriften, VII, pp. 228, 229, ed. C.I. Gerhardt).

9 O princípio da substituição salva veritate é também conhecido como regra da substituição de idênticos: “ se, em uma frase qualquer dada , substituirmos uma ou mais
ocorrências de um termo singular por um termo singular com a mesma referência (ou denotação), então o valor de verdade da frase original será preservado após as
substituições”.
E o filósofo DenisVernant, em sua Logique Standard , mostra que o mesmo princípio corresponde a uma regra importante da lógica de relações denominada eliminação da
identidade: se em uma premissa é dada uma relação de identidade e , em outra premissa, é asserida alguma coisa de um dos termos da identidade, então é possível asserir a
mesma coisa do segundo termo da identidade. Assim : 1. Estrela da Manhã = Estrela da Tarde; 2. Ora, A Estrela da Manhã não é uma estrela. Logo, A Estrela da Tarde não
é uma estrela (1,2 – Id ou E = ).
21
Frege cita a formulação de Leibniz deste princípio: “São iguais os termos que podem ser substituídos uns

pelos outros, desde que se conserve o mesmo valor de verdade (salva veritate)”. Por outras palavras, segundo

a interpretação freguiana, “dois termos são iguais quando podem ser substituídos um pelo outro, sem alterar a

verdade de qualquer proposição em que ocorram”.

Assim , o valor de verdade da sentença A Estrela da Tarde é um planeta cuja revolução é menor que a da

Terra permanece inalterado ou salvo, se substituirmos uma palavra dessa sentença , como A Estrela da Tarde,

por uma outra palavra que tenha a mesma referência, como A Estrela da Manhã9.

Assim, a referência de uma sentença é identificada ao valor de verdade, porque ambos permanecem

inalterados, sendo , desse modo, salvos ou preservados quando uma parte da sentença é substituída por outra

que tenha a mesma referência.

Apoiando-se neste princípio de substituição salva veritate, Frege conclui que , “ se nossa suposição é correta,

de que a referência de uma sentença é seu valor de verdade, então este tem de permanecer inalterado, se uma

parte da sentença for substituída por uma expressão que tenha a mesma referência. E isto é de fato o que

ocorre”.

A razão é que a referência de uma sentença (ou seja, seu valor de verdade) é condicionada tão somente pela

referência ou extensão (e não pelo sentido) de seus termos: se dois termos têm a mesma referência ou

extensão , isto é, se são co-referenciais ou co-extensionais , embora com sentidos distintos, então são

intersubstituíveis ou substituíveis entre si , preservando a referência (o valor de verdade) da sentença. E por

isso a referência permanece a mesma ou inalterada10.

PRINCÍPIO DA COMPOSICIONALIDADE REFERENCIAL

O princípio da substituição salva veritate, exposto acima, é correlato ao “ princípio de composicionalidade

referencial”, a saber, uma expressão empregada por alguns autores, baseando-se em Frege, para designar,

10. Segundo Vernant, este princípio já teria sido formulado por Aristóteles em Refutações Sofísticas 24, 39ª e em Tópicos L.7, ch.1, § 15: “ A duas coisas que são indistinguíveis
e uma em essência , concede-se geralmente que pertencem os mesmos atributos
10
PRINCIPIUM INDISCERNIBILIUM
A substituição salva veritate está em correlação com outro principio fundamental de identidade, cuja origem também remonta a Leibniz10, a saber, o Principium Indiscernibilium. Em Novos Ensaios
sobre o entendimento humano (Nouveaux Essais sur l’entendement humain), escrito por Leibniz [1646-1716], mais precisamente no Livro Segundo, cap XVII, intitulado O que é identidade ou diversidade,
Teófilo, em seu diálogo com Filaleto, narra a seguinte passagem : “Lembro-me que uma grande princesa [ Sofia de Hanover, amiga e protetora de Leibniz], dotada de espirito sublime, disse um dia
passeando no seu jardim que não acreditava houvesse duas folhas perfeitamente semelhantes. Um gentil-homem de espírito, que estava em sua companhia, acreditou que seria fácil encontrar uma :
todavia, embora procurasse muito, convenceu-se pelos próprios olhos que sempre se podia notar alguma diferença.”
E no Prefácio dos Novos Ensaios, Leibniz observa que duas coisas individuais não podem ser completamente semelhantes, devendo sempre diferir uma da outra mais do que número (...) . E em sua
Correspondence avec Arnauld, Lettre X, Leibniz enuncia não é possível que existam dois indivíduos inteiramente semelhantes ou diferentes solo número ( apenas numericamente),.
Daí o princípio de identidade, que remonta a Leibniz, também denominado princípio da indiscernibilidade dos idênticos: se dois indivíduos são idênticos, então possuem as mesmas propriedades (isto
é, não podem ser conceitualmente discernidos ou distinguidos). Na lógica relacional , tal princípio pode ser simbolizado assim: (Q) (x) (y) [ (x = y ) → (Qx→Qy].
Dai também o princípio converso conhecido como identidade dos indiscerníveis: se dois indivíduos são indiscerníveis (ou seja, não podem ser conceptualmente discernidos ou distinguidos), então são
idênticos. Este principio da identidade dos indiscerníveis, pode ser representado simbolicamente assim: (Q) (x) (y) [(Qx→Qy) → (x=y)]

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grosso modo, o princípio de que a referência de uma sentença simples ou complexa, é determinada pela

estrutura da sentença e pela referência de seus constituintes, de modo que se substituirmos termos ou orações

por outros correferenciais, a referência da sentença é preservado.

PRINCÍPIO DA COMPOSICIONALIDADE SEMÂNTICA (PRINCIPIO DE FREGE)

Além do princípio da substituição, Frege irá emprega um outro princípio, correlato e igualmente importante

: o princípio da composicionalidade do sentido ou composicionalidade semântica. Tal princípio tem sua

origem na obra freguiana e por isso é também denominado Princípio de Frege.

Grosso modo, podemos enunciá-lo assim: o sentido de uma expressão linguística complexa – como Estrela

da Manhã ou uma sentença completa como A Estrela da Manhã não é uma estrela – é condicionado pelos

sentidos de suas partes constituintes.

Numa formulação mais técnica, esse princípio enuncia que o significado de uma expressão complexa, como

uma sentença, é determinado por sua estrutura e pelos significados de seus constituintes.

Frege irá utilizá-lo em seu argumento: “ [quando substituímos um termo por outro de mesma referência]

vemos que, em tal caso, o pensamento (ou seja, o sentido da sentença) muda; assim , por exemplo, o

pensamento da sentença A estrela da manhã é um corpo iluminado pelo sol é diferente do da sentença A

estrela da tarde é um corpo iluminado pelo sol.”

SALVA VERITATE ¹ SALVA SIGNIFICATIONE

A substituição de um nome por outro de mesma referência preserva apenas a referência da sentença , mas não

o pensamento ou sentido dela , que se modifica. Por outras palavras, a substituição de um nome por outro de

mesma referência é salva veritate, mas não salva significatione .

A razão é que o pensamento ou conteúdo de uma sentença resulta da composição dos sentidos de seus termos:

se o sentido de um deles muda, quando substituído por outro, muda também o sentido da sentença

(inversamente, se substituirmos um termo por outro de mesmo sentido, o pensamento da sentença é preservado

ou salvo). Por isso, “alguém que não soubesse que a Estrela da Tarde é a Estrela da Manhã poderia sustentar

um pensamento como verdadeiro e o outro como falso.”

APLICANDO A SUBSTITUIÇÃO SALVA VERITATE A SENTENÇAS COMPOSTAS

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Até agora, observa Frege, demonstramos que o valor de verdade de uma sentença , por exemplo A Estrela da

Manhã é Vênus , permanece o mesmo quando nela substituímos uma expressão como A Estrela da Manhã

por outra de mesma referência, como A Estrela da Tarde; por outras palavras, quando substituímos um nome

por outro de mesma referência.

No entanto, existem sentenças – denominadas por Frege “compostas” (Satzgefüge) e denominadas “

complexas ou moleculares ” pelos lógicos atuais – cujas partes ou constituintes são também sentenças – como

a condicional Se o Sol já nasceu, então o céu está muito nublado .

Neste exemplo, como em muitos outros, a sentença complexa é constituída por pelo menos duas sentenças

independentes (O Sol já nasceu e O céu está muito nublado), articuladas por um conector lógico (neste

exemplo, se ...então ). As sentenças negativas como “não é verdade que Sócrates é espartano” também são

consideradas complexas , pois resultam da ação do operador lógico de negação (não é verdade que ) sobre a

sentença simples (Sócrates é espartano).

Frege irá examinar o principio da substituição salva veritate aplicado a essas sentenças complexas, ou seja,

quando substituímos , em uma sentença complexa, uma sentença constituinte (por ex. o Sol já nasceu) por

outra sentença ( por ex., o Sol já se pôs) que tenha a mesma referência , isto é, o mesmo valor de verdade..

Sobre isso , Frege diz que , se nossa concepção for correta, o valor de verdade de uma sentença complexa

(como Se o Sol já nasceu, então o céu está muito nublado) deve permanecer o mesmo quando substituirmos

uma sentença componente (o Sol já nasceu) por outra sentença que tenha o mesmo valor de verdade (por

exemplo, o Sol já se pôs). É o que mostraremos inicialmente11.

PRINCÍPIO DA EXTENSIONALIDADE (FREGE-RUSSEL)

Isso significa que a referência ou o valor de verdade destas sentenças complexas, submetidas ao princípio da

substituição, é condicionado apenas pelo valor de verdade ou referência das constituintes, e não pelo

pensamento ou sentido expresso por elas. Em outras palavras, a intensão ou sentido das constituintes não

determina em nada o valor de verdade da complexa , pois este é determinado apenas pela referência ou

extensão , ou seja, os valores de verdade das constituintes.

11No entanto, mostraremos também, mais tarde, os casos de sentenças complexas, analisados por Frege, que são exceções à substituição salva veritate, ou seja, complexas
cujo valor de verdade não é preservado quando se substitui uma componente por outra de mesma referência ou mesmo valor de verdade

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Estão submetidas ao princípio da substituição salva veritate e ao princípio da extensionalidade as proposições

ou sentenças compostas ou complexas estudadas pela lógica proposicional e de predicados: as complexas

conjuntivas , negativas , condicionais , disjuntivas e bicondicionais.

Por isso, estas sentenças complexas são funções de verdade e podem ser denominadas verofuncionais , ou

seja, o valor de verdade da complexa é uma função dos valores de verdade das constituintes: para cada valor

de verdade das constituintes, tem-se um e somente um valor de verdade da composta. Isso terá consequências

importantes que serão desenvolvidas pela história da lógica posterior a Frege.

O PRINCÍPIO DA EXTENSIONALIDADE E O CÁLCULO LÓGICO.

A primeira delas é poder calcular , com o mesmo rigor e necessidade do cálculo matemático, o valor de

verdade das complexas a partir dos valores de verdade das constituintes. Na medida em que não estão

envolvidos valores numéricos ou quantitativos, mas apenas valores lógicos, a saber, o verdadeiro e o falso,

este cálculo é denominado cálculo lógico.

É esse cálculo que está presente , por exemplo, nas chamadas tabelas de verdade, como as que Wittgenstein

apresenta no Tractatus. No cálculo lógico, como vimos acima, excluímos de nossa consideração a intensão

das sentenças, ou seja, o pensamento ou sentido que elas expressam e é como se o sentido fosse colocado

entre parênteses; consideramos apenas a extensão das sentenças , ou seja, a referência ou valor de verdade

delas.

Assim , duas sentenças podem diferir em intensão (expressam sentidos ou pensamentos diferentes) e , no

entanto, ter a mesma extensão (ou seja, o mesmo valor de verdade) e são denominadas assim coextensionais

ou corrreferenciais.

Dessa forma, o cálculo lógico encontra seu fundamento no princípio de extensionalidade, formulado por

Russel e Whitehead nos Principia Mathematica : o valor de verdade da sentença complexa é exclusivamente

função dos valores de verdade das sentenças constituintes.

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