Você está na página 1de 3

Alceu Maynard Araújo

A Congada nasceu em Roncesvales


(especial para a Revista do Arquivo Municipal)

Separata da Revista do Arquivo nº CLXIII

Prefeitura do Município de São Paulo - Secretaria de Educação e Cultura - Divisão do Arquivo Histórico -
São Paulo 1959

Obra que recebeu o Primeiro Prêmio "Câmara Municipal de São Paulo", em 1959, em concurso literário
promovido pelo Departamento Municipal de Cultura de São Paulo.

As melodias cujas letras e partituras ilustram este trabalho foram recolhidas pelo maestro Manoel Antônio
Franceschini, que Autorizou sua publicação.

Estudo ilustrado pela festa do Divino Espírito Santo realizada em Nazaré Paulista nos dias 27, 28 e 29 de
junho de 1947, que contou com a participação de três ternos de congada os Congado - das cidades vizinhas de
Piracaia e Camanducáia, esta última pertencente ao estado de Minas.

Segundo Alceu Maynard Araújo, "a Congada é o teatro popular de rua, é a ribalta onde se pode presenciar
a multissecular porfia entre cristãos e mouros infiéis, tornando-se nesta região o atrativo maior das festas do
Divino Espírito Santo. É na Congada que se pode sentir como foi grande a contribuição hispânica ao nosso
folclore. É um pouco da luta contra a África branca chegando até nós através de Castela., que deu uma direção
nova aos impulsos guerreiros dos congos ou dos próprios mouros, transformando o ódio racial em lição
evangélica. A Congada, tese guerreira que recorda a reconquista da península ibérica, é empregada como
elemento catártico, sublimando ódios, dirigindo-os para algo construtivo um auto popular da luta de cristãos e
mouros que termina com a blandícia daqueles, trazendo para seu redil o adversário."A seguir, o estudioso observa
que, apesar da violência dos instrumentos que acompanham esse tipo de cantochão azabumbado, a música está
impregnada da ternura e do misticismo da liturgia da Congada.

Depois de descrever detalhadamente os elementos constituintes dos ternos de congueiros, o significado da


roupagem usada pelos participantes, a função da música, o sentido do cerimonial empregado pelos grupos, os passos
da coreografia e a execução da dança, Maynard Araújo explica que a Congada uniu o sincretismo guerreiro ao
cristianismo, sublimando o primeiro em cerimônia religiosa: "Sobre as ruínas de tribos negras, em geral inimigas
entre si, criou-se uma forma de solidariedade, uma confraria que tinha sua grande festa ou oportunidade de
aparecer na Congada."

Entretanto, faz questão de ressaltar o Autor, "o folclore negro artificial no Brasil é um teorema de
composição de forças. O próprio perigo da união dos negros contra o branco tinha lugar no folclore. Neste podia-
se sentir a luta entre o senhor de engenho e o jesuíta, porque o fazendeiro permitia a dança sensual na senzala onde
estavam presentes os ritos da procriação, para aumentá-la em seu proveito econômico, e o jesuíta proibia-a,
incrementando a de cunho religioso a Congada. Catolicismo dos jesuítas versus catolicismo sensual dos senhores
fazendeiros. Para a manutenção desse folclore precisava prender-se a um grupo, daí as confrarias que respondiam
à necessidade de associação do negro. Seus grupos se formavam para uma grande cooperação sob todos os pontos
de vista: econômico, familiar, religioso etc. A confraria corresponde a uma necessidade de agrupamento, como a
Irmandade de São Benedito ou de N.S. do Rosário."

Maynard Araújo mostra que, à época do estudo, a Congada, que havia sido uma cerimônia
folclórica inventada pelo catolicismo romano, era agora rechaçada pela Igreja, mas que se mantinha
presente nas festas populares graças ao espírito de solidariedade dos negros elementos étnicos que
compunham a quase totalidade dos ternos de congueiros ou congado.

A Embaixada um dos elementos da Congada divide-se em dois grupos distintos, os


Cristãos e os Mouros. Os primeiros são chefiados pelo imperador Carlos Magno, "o primeiro rei
cristão", ou "o nosso Rei de Congo", como dizem os congueiros; os segundos são comandados por
Ferrabrás, acompanhado de seus "turcos".

"A parte dramática por excelência da Congada é a Embaixada, que se torna o ponto central
desse bailado popular" explica Maynard Araújo. "Nela reencontramos aqueles personagens
lendários que nos séculos distantes estiveram presentes na Canção de Rolando e agora são vistos
nas praças de algumas cidades interioranas paulistas a bailar, a falar, interpretados por negros na
grande maioria, mulatos e alguns caboclos: Carlos Magno na Congada de Piracaia é um negro
grande e ágil, voz atenorada, destro no manejo da espada; Roldão, Oliveiros, Rogério Denôa,
Ricardo ou Ricarte, Gui de Borgonha são negros ou mulatos. Os mouros não falam o vasconço, mas
dizem muitas palavras incompreensíveis. Os cristãos dizem palavras duras e ríspidas aos mouros, a
Ferrabrás um gigante negro, cuja voz estentórica é ouvida a distância nas vielas de Nazaré
Paulista, porém após a conversão se torna humilde. Na parlenga, dirigem-se ostensivamente ao
Almirante Balão, a Ferragum ou ao traidor Galalão, nome este que trai sua origem francesa
Ganelon aquele barão, um dos pares de França, que traiu o rei. Este nome rememora velha
tradição, quando lá pelos idos de 637, os doze chefes enviados por Dagoberto contra os vasconços,
que embora tivessem obtido êxito, foram traídos, e, no vale do Subola, o duque de Harembert e
outros chefes brancos pereceram. O Galalão de nossa Congada é o mesmo Ganelon das Chansons
de gestes"

O Autor confessa que, ao estudar o assunto pela primeira vez, ficara em dúvida sobre a origem
do personagem Galalão. Seria esse nome uma deturpação de Galaor, herói da cavalaria andante
presente nas novelas de guerra, especialmente nas espanholas? Posteriormente, Maynard Araújo
descobriu que o Galalão de nossa Congada, pelo papel desempenhado na trama, é o mesmo Ganelon
das gestas medievais francesas.

O estudo da história dos fatos dramatizados na Congada e das canções de gestas levou
Maynard Araújo a importante constatação: a Congada não é de origem africana, mas sim uma
reminiscência da Chanson de Roland descoberta que é o núcleo central deste trabalho inovador nos
estudos de folclore brasileiro.

"O desfiladeiro de Roncesvales era caminho obrigatório a quem transitava entre o continente
europeu e a península ibérica" afirma o Autor. "Está no caminho que atinge a distante Santiago de
Compostela uma das meças do catolicismo romano mundial. Portanto, desde meados do século IX
os romeiros e peregrinos que por ali passaram contribuíram para a difusão dos fatos desenrolados.
Os trovadores transformaram os personagens dessa refrega em tipos épicos e essa canção de gesta
epopéia nacional francesa veio até nós através da península ibérica. As epopéias nacionais, as
canções de gesta floresceram ali pelos fins do século XI: canções líricas umas, épicas outras, nas
quais os trovadores medievais relatavam em longos poemas os feitos dos cavaleiros cristãos.
Inspiraram-se comumente em três ciclos: da França ou carolíngio, da Bretanha e clássica."

"No primeiro ciclo, a figura central é Carlos Magno" continua Maynard Araújo. "Foi de um
episódio da vida desse grande campeão catequizador que surgiu a Canção de Rolando: canção de
gesta que pertence à classe das épicas, tal qual as chaconas entoadas pelos cegos errantes, outros a
quem se deve a difusão das lendas criadas em torno dos personagens decantados. No reinado do
Batalhador da Cristandade, os fatos são de ordem militar e religiosa: ora é a conquista da
Lombardia e a submissão do ducado de Benavente, a guerra dos Saxões, a campanha contra os
Bavaros, ou a entrada religiosa para sua coração na basílica de São Pedro Carlos Magno foi
coroado imperador no dia de natal de 799, pelo papa Leão III. Tudo isso foi motivo para as canções
de gesta e outras manifestações de arte"
"Embora a moderna crítica histórica negue a vinda de Carlos Magno à Espanha, a poesia
francesa e a provençal nos legaram a Canção de Rolando, que descreve sua vinda à península ibérica
para combater os mouros infiéis tema presente na Congada , repetindo algo daqueles fatos decorridos
em 788, quando o emir de Saragoça e seus homens, sublevados contra Abderramane I, califa de
Córdova, pediram apoio ao imperador cristão", prossegue o Autor. "Então as embaixadas vão e vem,
confabulam cristãos com mouros. Carlos Magno, tendo que regressar à Gália por causa dos
levantamentos de saxões e outros povos por ele submetidos, ao passar nos desfiladeiros dos Pirineus
é atacado de surpresa pelos vascônços, dominadores das alturas do vale de Roncesvales, que
exterminam com os francos, inclusive com Rolando, que morreu motivado pelo esforço de tocar a
buzina para chamar ou avisar o imperador."

Segundo Maynard Araújo, "personagens e lendas se misturam. A lenda substitui os gascões


pelos sarracenos, já pela existência da velha contenda entre mouros e cristãos ela inventou a
infrangível amizade entre Rolando e Oliveiros; ela nos traz Fier-à-bras, herói sarraceno de uma
canção de gesta do século XII, dando-nos Ferrabrás, filho do Almirante Balão e rei de Alexandria;
ela nos coloca o cavaleiro que se apaixonou pela filha do emir, a bela Florípes o valoroso Gui de
Borgonha. É este Reginér? Será Reginaldo ou será reginense, povo antigo de Espanha? Sim, a nossa
Congada veio de lá, passou pela Espanha e Portugal, e, um dia, certamente os jesuítas, amantes do
teatro, coligiram fragmentos e recompuseram a trama, criando uma peça de teatro popular para
conversão, agora não de mouros, mas dos filhos do continente africano que para o Brasil vieram na
mais dura condição humana a de escravos, destituídos de tudo do muito que possuíam em África a
liberdade."

Maynard Araújo, neste trabalho inovador, mostra que os episódios lendários vividos em
Roncesvales se renovam, em parte, "na Congada e nas Cavalhadas levadas a efeito em terras
paulistas, bem como na literatura de cordel das feiras nordestinas, fixadoras em boa parte da farta
messe da poética oral dos trovadores, dos cantadores, dos poetas do sertão do Nordeste brasileiro."

Como cantam os batalhões de Congado saudando a população:

Que hora mais bunita


nosso bataião chegô
pá festejar o Sinhô Divino
qui o festero cunvidô, ai, ai.

Você também pode gostar