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PLANEJAMENTO URBANO

Morar, atuar e viver


No Brasil urbano dos anos 90, são muitos os, desafios para uma gestão
verdadeiramente democrática do espaço urbano. Por isso,
o planejamento, mais que um modelo de "boa cidade",
deve ser algo vivo, um local institucional onde sejam explicitadas as
contradições e as diferenças resultantes dos vários agentes
sociais. Todos devem conhecer e se apropriar do planejamento

RAQUEL ROLNIK*

Em fins da década de 80, é urbano o Brasil que, depois de trinta anos, elegeu
diretamente seu primeiro presidente.

Se em 1950 apenas 36% da população do país morava em cidades, em 1990


essa proporção chegará a 75%. Essa população urbana não está apenas
concentrada nas grandes metrópoles, mas se espalha através de uma vasta
rede de centros urbanos de todos os tamanhos, que cobre hoje quase toda a
extensão do país.

O movimento de conquista do território brasileiro pelo modelo urbano-industrial


é, sem dúvida, um dos grandes responsáveis por essa configuração. Se em
50/60 se acenava com a criação de um mercado unificado através de um
projeto de penetração no interior do País (que teve nas construção de Brasília
sua ponta de lança), em fins de 80 isso é uma realidade. O país é unificado
fisicamente (através das estradas, da circulação de mercadorias e, sobretudo,
da mídia, de sofisticados meios de comunicação).

Nestas décadas de urbanização acelerada, embora tenham crescido cidades de


todos os tamanhos, o ritmo de crescimento mais intenso se deu nos centros
urbanos de cinqüenta a cem mil habitantes e não nas metrópoles. O exemplo
de São Paulo é ilustrativo desse movimento. O eixo de expansão da indústria
paulista se deslocou da capital para a região metropolitana e, dali, para as
cidades médias do interior do Estado. A explosão urbana de Campinas ou São
José dos Campos é efeito imediato desse processo.

Por outro lado, transformações ocorridas na agricultura foram também


responsáveis pelo crescimento acelerado de cidades pequenas e médias. Na
região Sul, por exemplo (oeste do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e norte do
Paraná), a concentração da propriedade, a mecanização e o predomínio da
produção de grãos para exportação induziram fortes fluxos de migração para as
cidades das redondezas ou para as regiões Centro-Oeste e Norte - a chamada
frente de expansão. Nesta, ao longo de grandes rodovias se concentra a
população em áreas de mineração, em torno de pólos exportadores e junto de
grandes obras de infra-estrutura. Marabá, Altamira, Santarém, Vilhena, Ji
Paraná mostram que agora a fronteira também é urbana e se distribui ao longo
de uma rede de cidades.

Nessa trilha se produziu uma espécie de população errante pelo país e um


rastro alarmante de devastação ecológica e miséria urbana.

Em 1980, dos 120 milhões de brasileiros que responderam ao censo, trinta


milhões se encontravam fora de seu lugar de origem. A migração continuou,
portanto, sendo um fenômeno vivo e determinante do crescimento urbano, mas
seu desenho não corresponde mais à tradicional corrente do Nordeste e regiões
pobres do Sudeste para o Sul, especialmente para o eixo São Paulo-Rio. São
Paulo (município) não cresce mais por migração mas por crescimento
vegetativo. A seca nordestina do início dos anos 80 expulsou muita gente para
as cidades do próprio litoral do Nordeste; assim como as mudanças nas regiões
de trabalho na agricultura têm fixado trabalhadores rurais na periferia das
cidades do interior.

Por outro lado, as décadas de crescimento urbano acelerado correspondem -


até o início dos anos 80 - a um ciclo de crescimento econômico e expansão do
emprego no setor formal: na indústria de transformação, no setor de
transportes, nos ramos de produção de energia, na construção civil e
telecomunicações. Foram décadas também de modernização e ampliação de
mercados de consumo e, portanto, de geração de novos empregos no setor
terciário. Assim, uma grande população trabalhadora se constituiu nas cidades.

Estes movimentos - de crescimento econômico, expansão urbana e unificação


do mercado - foram de tal maneira acompanhados por um processo de
concentração de renda que hoje não há paralelo possível entre os níveis de
miséria urbana e os de emprego, isto é, fazem parte hoje da pobreza urbana
trabalhadores ou desempregados, migrantes ou nativos, vendedores
ambulantes ou operários industriais.

Essa rede urbana multicentrada e moderna, marcada pela miséria da


concentração de renda, sob que política urbana se produziu?

O quadro da rede brasileira de cidades reflete claramente o projeto urbano da


ditadura militar. O conceito-chave desse projeto é o da integração nacional:
completar a ocupação e unificação do país, sob uma territorialidade capitalista.
Para isso, grandes projetos de ligação rodoviária (Transamazônica; Santarém -
Cuiabá; Transpantaneira; Porto Velho - Manaus) pretenderam penetrar no
centro e chegar às fronteiras do país. Ao mesmo tempo, pólos econômicos
foram criados (como a exploração do minério de Carajás ou o pólo petroquímico
baiano de Camaçari e o complexo siderúrgico de Vitória) e investiu-se pesado
em infra-estrutura (hidrelétricas, pontes, portos, que são exatamente os
setores de emprego formal que mais cresceram no país no período de 60-80).

Esse investimento se deu basicamente através da centralização de recursos em


nível federal e da internacionalização da economia (por meio da associação com
capital estrangeiro ou do endividamento externo). O modelo se completou com
a concentração de renda: mantendo-se baixos os níveis salariais, não dividindo
"o bolo".

Tudo isso produziu a rede diversificada de centros urbanos no país. Ao mesmo


tempo significou a produção no quadro de cada cidade, de uma espécie de
"cidade paralela" - precária, clandestina, ilegal, infra-equipada - são as favelas
e periferias do país.

A precariedade e a clandestinidade de vasta porção do território urbano não são


privilégios das grandes metrópoles. Elas estão em toda parte, abrigando os
metalúrgicos do ABC, os caboclos da Zona Franca de Manaus ou até os bóias-
frias que trabalham sazonalmente, cortando a cana para abastecer os motores
do país de álcool.
Esses assentamentos precários, marginais, da cidade não correspondem
portanto a uma transitoriedade, desajuste ou marginalidade de seus
moradores. São ilegais porque estão fora do mercado imobiliário formal e
desobedecem às leis que regulam e normatizam o uso do solo urbano; são
precários porque excluídos dos grandes benefícios do urbano moderno. Por
outro lado, sua clandestinidade delimita uma situação permanente de
oposição/confronto com a cidade legal, que muitas vezes pode se articular com
outras formas de oposição às regras do jogo, como as lutas do movimento
sindical, produzindo alianças desestabilizadoras. A presença da periferia na
cidade representou a contradição da urbanização modernizadora.

Para compreender melhor o fenômeno do ponto de vista da política urbana é


preciso analisar em que consistiu a intervenção do Estado em nível intra-urbano
no período.

Em primeiro lugar, os governos da ditadura militar realizaram uma espécie de


"operação desmonte" do poder e autonomia locais. Toda possibilidade de
intervenção municipal na cidade foi limitada pela centralização de recursos e
poder em nível federal, ao mesmo tempo que se estruturava todo um sistema
centralizado e tecnocrático de trato com o urbano.

A viabilização dos recursos federais para os investimentos urbanos se deu


basicamente através da criação do Banco Nacional da Habitação. Com o
Sistema Financeiro de Habitação e o Sistema Brasileiro de Poupança e
Empréstimo considerável volume de recursos foi concentrado e utilizado para
financiar esse projeto - o que ocorreu a partir da centralização da poupança
voluntária (cadernetas de poupança) e compulsória (Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço) do país.

No entanto, a intermediação obrigatória dos agentes financeiros (sociedades de


crédito imobiliário e bancos privados) drenou boa parte dos rendimentos dos
sistemas para os agentes financeiros envolvidos. Por outro lado, pela natureza
da forma de captação dos recursos, mesmo os financiamentos em prazos mais
longos e com taxas de juros inferiores às praticadas pelo mercado privado eram
ainda proibitivos para a parcela da população de mais baixa renda (de zero a
cinco salários mínimos mensais), em que se concentrava a maior parte do
déficit habitacional. Assim, de provedor de habitação, o BNH acabou se
tornando financiador da promoção imobiliária, que produzia para o mercado
formal da construção de renda média e alta, com alto subsídio estatal.

Além desse setor, os municípios e Estados também se tornaram os "clientes" do


banco, com a obtenção de financiamentos para a produção de infra-estrutura
urbana, sobretudo nas áreas de saneamento e sistema viário.

Essa política teve como efeito encarecer o custo da terra urbana, incentivando a
especulação imobiliária e produzindo cada vez mais a ocupação de uma parte
da cidade - como as favelas - totalmente à margem do mercado. Ao mesmo
tempo, foram esses recursos que pagam as empreiteiras que construíram os
grandes projetos, financiaram a infra-estrutura, construíram as Ipanemas e
Barras o as parcelas "modernas" de rede urbana do país.

No nível do discurso, a política urbana passava pela retórica do planejamento


urbano, que seria capaz de levar a cabo o projeto de integração modernizadora,
dando conta de enfrentar a contradição representada pela ilegalidade que esta
produzia. O conceito-chave desse planejamento no período autoritário é de
"desenvolvimento integrado", que constituiu palavra de ordem para o
planejamento municipal. Foi nessa época que se produziram os Planos Diretores
de Desenvolvimento Integrado, obrigatórios para a obtenção de recursos
federais para investimentos urbanos, cada vez mais inacessíveis para as
administrações locais, na medida em que se processava a centralização política
e financeira do país.

Durante esse período, com o esvaziamento do Legislativo e a desarticulação da


sociedade civil, o planejamento foi cada vez mais se tecnificando e isolando,
enquadrado e limitado pela visão centralizada e tecnocrática que dominava o
sistema de planejamento e a gestão do país como um todo. O isolamento do
planejamento e a sua separação da esfera da gestão provocaram uma espécie
de discurso esquizofrênico nas administrações - de um lado, os planos
reiteravam os padrões, modelos e diretrizes de uma cidade racionalmente
produzida; de outro, o destino da cidade ia sendo negociado, dia-a-dia, com os
interesses econômicos, locais e corporativos através de instrumentos como
cooptação, corrupção, lobby ou outras formas de pressão utilizadas pelos que
conseguiam ter acesso à mesa centralizada de decisões.

O produto dessa intervenção esquizofrênica é o quadro que apresentamos no


início: cidades informatizadas, conectadas nos circuitos internacionais de
consumo, se ligam à rede de cidades do planeta. Essa cidade globalizada
penetrou em todos os cantos, sobretudo com a multiplicação das imagens das
TVs. Complexas e modernas, são nossas cidades um desastre do ponto de vista
ecológico e social: a ocupação predatória do território foi responsável pelo
quadro precário do espaço construído - hoje está tudo poluído, erodindo,
desbarrancando e inundando ao menor sinal de chuva.

A precariedade ecológica atinge a cidade como um todo, porém assume forma


mais trágica nas favelas e periferias.

Até meados da década de 70, boa parte dos trabalhadores urbanos


autoconstruiu sua casa através do acesso ao lote popular, muitas vezes
clandestino. Ao se transferir para um barraco no lote que pagaria em
prestações mensais durante anos, se livraria do aluguel. Ao levantar um
segundo cômodo para alugar e assim poder ir construindo a casa, oferecia uma
alternativa de moradia a outro trabalhador, que ainda não possuía um lote.
Assim, ao longo do anos 60-70, foi se gerando uma periferia autoconstruída e
sem ultra-estrutura.

Esse padrão se expandiu até o final dos anos 70, quando o "milagre brasileiro"
entra em crise, o projeto do governo militar é questionado e se inicia a
transição democrática. Do ponto de vista econômico, as curvas de crescimento
que se mantiveram ao longo da década de 70 começam a estagnar, assim
como despontam os primeiros sinais de aumento da taxa de desemprego e dos
índices de inflação. A partir da crise econômica internacional e da política
recessiva adotada pelo governo, os salários vão perdendo cada vez mais seu
poder de compra, o que é reforçado (na lógica da receita do FMI) pela
contenção do crédito.

O impacto da crise sobre o urbano se manifestou através do esgotamento do


padrão periférico de crescimento. Tal esgotamento se explica, por um lado,
pela diminuição relativa da oferta de lotes populares decorrente de diminuição
de loteamentos clandestinos em função de legislações mais restritivas e da
própria inelasticidade dessa oferta, à medida que aumentava a distância entre
a periferia e as zonas concentradoras de emprego. Por outro lado, a crise é
diretamente decorrente da recessão e diminuição do poder de compra dos
salários em conjunturas altamente inflacionárias, o que reduz a capacidade de
comprometimento do trabalhador com a poupança inicial e prestações do lote.

Tudo isso aumentou consideravelmente a demanda pelas outras formas de


habitação popular: a favela e os cômodos de aluguel. Apenas para citar o
exemplo de São Paulo, em 1973, 1% da população do município habitava em
favelas (14.650 barracos); em 1980, o número de barracos aumentaria para
71.259, para atingir 150.497 em 1987 (o número de favelados cresceu 1039%
e a população, 59% no período).

O esgotamento do padrão periférico está também relacionado à crise de


financiamento da construção que ocorreu com a falência do modelo do SFH,
que, alicerçado no princípio de correção monetária, entrou em colapso com a
recessão e alta inflacionária. Diminuiriam seus recursos (com os saques de
poupança e FGTS), os agentes financeiros começariam a quebrar, pressões
para a renegociação da dívida de municípios, Estados e mutuários começariam
a ocorrer e, assim, o sistema se imobilizaria.

Nesse momento, com a crise econômica e o questionamento da ordem política


institucional do país, a questão urbana se politizaria, entrando em cena na
disputa pelo espaço atores invisíveis na política urbana até então.

A politização do urbano remonta à própria constituição de um território popular.


Durante os anos de expansão das periferias, em cada bairro novo precário que
se formava, micromovimentos reivindicatórios se organizavam para conseguir
água, luz ou extensão de linha de ônibus para o local. O interlocutor desses
movimentos foi, desde sempre, o poder público, de quem se esperava obter as
melhorias desejadas. Toda uma rede de intermediações políticas se constituiria
a partir daí, marcando o renascimento do clientelismo e populismo como forma
de relação da sociedade civil com seus representantes, quando começava a se
dar a abertura democrática. Sob essa perspectiva, bens e serviços urbanos se
transformam em estratégicas moedas de barganha, capazes de assegurar votos
ou determinar esferas de controle político.

Essa politização significou que a intervenção do poder público na cidade passou


a ser pautada também - dependendo evidentemente do arco de alianças que
sustentava cada administração - no atendimento às reivindicações formuladas
pelos movimentos sociais, como resposta às pressões "da base".

É importante ressaltar que a politização da questão urbana no nível da gestão


não implicou politização do planejamento. Na verdade os grandes embates na
política urbana na década de 80 se deram em questões imediatas e
particulares, respondendo a interesses locais e corporativos. Os princípios e
pressupostos gerais do planejamento municipal não se deixaram contaminar
por esses embates, até porque a sofisticação dos métodos e instrumentos de
planejamento dos anos 70 se deu sobre uma concepção de cidade e de
cidadania recorrente. Esta concepção remonta ao final do século XIX, momento
que marca a passagem da cidade escravocrata para a cidade do trabalho
assalariado e da indústria.

CIDADE E CIDADANIA

Na cidade do trabalho assalariado, o trabalho é livre, mas a terra é mercadoria


cuja única forma de apropriação é o contrato monetário de compra e venda.
Assim, a terra é previamente dividida em lotes metricamente mensuráveis. Por
outro lado, sob o império de produção e circulação de mercadorias, o espaço
público - notadamente a rua - é capturado pela circulação, perdendo seu
caráter de espaço da vida social. O contraponto desse processo é a separação
entre a casa e a rua, que, a partir da tirania da intimidade burguesa, passam a
ser dois termos em oposição. A forma loteamento, a contraposição casa/rua e a
rua como domínio exclusivo do tráfego - elementos tão determinantes na
estruturação da cidade - têm sua origem nessa forma particular e
historicamente datada de apropriação do espaço.

Essas transformações trouxeram o tema da modernização e controle do espaço


urbano, produzindo-se então os primeiros códigos de, posturas municipais.
Naquele primeiro momento do planejamento, o debate sobre a organização do
espaço era travado em torno de princípios higienistas, formulados pelos
médicos, e da mecanização dos equipamentos urbanos, defendida pelos
engenheiros e industrialistas. Tratava-se de adaptar a cidade à indústria, às
relações de trabalho assalariadas e às novas concentrações demográficas,
produzindo ao mesmo tempo um padrão de civilidade e respeitabilidade
burguesas, que serviria como referência para o estabelecimento de uma
legislação urbana. Não há como negar um conteúdo marcadamente ideológico
nem definição de formas permitidas e proibidas de apropriação do espaço: o
modelo de cidade, assim como o de casa ou de rua, produzido então sob o
pretexto de responder às necessidades humanas abstratas, teve como
paradigma a segregação e a diferenciação hierárquica dos espaços. A estas se
associa imediatamente um diferencial de preço para o mercado imobiliário, que
se encarrega de reiterada e reproduzir esses: "padrões". Indissociável do
nascimento de um modelo de cidade "legal" está a emergência do tema da
cidade "clandestina", ou seja, dos setores do território urbano que não se
enquadram nos princípios estabelecidos na legislação.

A essas proposições iniciais de ordenação urbana corresponderia um sistema de


planejamento e gestão no qual a administração municipal dialoga com as elites
dirigentes (principalmente com médicos, engenheiros, juristas, políticos e
produtores de equipamentos e serviços) para "remodelar" a cidade. E o tema
do controle das porções da cidade que fogem aos padrões é formulado como
"problema urbano", que cabe à administração pública equacionar e resolver.

É importante ressaltar aqui que o movimento de institucionalização da


propriedade privada, como forma básica de apropriação do espaço, e a
privatização da concepção de habitar têm como correlato uma forma de relação
do cidadão com a cidade, onde o espaço público é conceituado como
propriedade privada do poder público e nunca como responsabilidade coletiva
dos cidadãos. Assim, um poder municipal se instaura para normatizar e
fiscalizar, sob o signo da higiene e beleza. Essa concepção de cidade e de
gestão urbana atravessou o século e continua pautando a ação das
administrações municipais.

Versões mais modernas do planejamento introduziram novas variáveis na


mesma equação. A expansão da indústria automobilística, a verticalização e os
grandes movimentos de migração interna, que se intensificaram no final dos
anos 50, foram os elementos que trouxeram novos temas para o planejamento
das cidades.

A produção em massa de automóveis, caminhões e ônibus hegemonizou a


temática da localização e circulação, provocando a canalização de boa parte dos
investimentos públicos na construção de vias, passagens de nível e meios de
transporte, grandes indutores de urbanização. A verticalização deslocou o
debate das densidades humanas da esfera médica para a arquitetônica e
introduziu um sobrediferencial no preço da terra urbana: o potencial de metros
quadrados de solo criado vertical. Finalmente, a intensa migração, tematizada
através de noções de "marginalidade" e "incitamento" urbanos, introduziu a
questão dos limites para a expansão e dos programa de intervenção
"saneadora" nos espaços marginais.

Do ponto de vista dos municípios, os conceitos de "higiene" e "beleza", que no


início do século constituíram o paradigma para o estabelecimento das normas
urbanas, foram substituídos pela idéias de "eficiência" e "funcionalidade". O
planejamento das cidades, expresso em planos de obras públicas e na
legislação urbanística, deveria fazê-la funcionar como uma máquina.

É importante ressaltar que essas transformações não significaram uma ruptura


radical no modo de intervenção do poder municipal na cidade, na medida em
que a visão da cidade como corpo/máquina cujos problemas, doenças e
disfunções devem ser "curados" pelo poder público atravessou as décadas de
sua história, até mesmo quando no final da década de 60 se inaugura o setor
específico de Planejamento Urbano na gestão.

Secretarias, institutos e departamentos de planejamento urbano se


disseminaram pelas cidades do país, com a missão de promover, seu
"desenvolvimento integrado e equilibrado", ou seja, seu crescimento e
modernização, de forma racional e controlada a priori - para que não se
produzisse o desvio, a forma de apropriação do espaço imprevisto e em
desacordo com as normas. Foi nesse período que entraram em cena os planos
diretores e os novos instrumentos de intervenção no espaço, como o
zoneamento.

É interessante observar que a sofisticação dos métodos e discurso do plano


modificou a visão privatista do espaço e de sua gestão, que constituiu, desde o
início do século, um paradigma para as normas e padrões urbanísticos. E
exatamente por isso que os princípios e pressupostos gerais do planejamento
'superiores' abstratos e presos às amarras da 'cidade legal' não se deixaram
contaminar pelos conflitos urbanos que se acirraram no final dos anos 80. Até
porque as questões que a cidade real coloca - pontuais e imediatas - nunca se
formularam explicitamente enquanto princípios e padrões alternativos.

Este é, evidentemente, o sistema de planejamento e gestão que mais se presta


ao clientelismo e à corrupção - um intrincado complexo de regras de jogo
gerais que nenhum cidadão domina (planos globais e regionais, código de
obras, lei de zoneamento, legislação de parcelamento etc.) e a guerra de
influências nas decisões do dia-a-dia. Por todas estas razões, hoje é
fundamental repensar o sentido e a forma de intervenção do poder público na
cidade, repensando o planejamento, a gestão e seus instrumentos.

PLANEJAMENTO MUNICIPAL
E REFORMA URBANA

A produção de um novo quadro jurídico institucional, aberta pelo processo


constituinte, e a possibilidade de redemocratização do país trazem à tona a
oportunidade de revisão das formas e conteúdos do planejamento. O tema de
reforma urbana, que ressurge no final da década no bojo do debate constituinte
na área das entidades e movimentos populares, questiona e politiza o
planejamento, na medida em que traz para o centro do debate os temas da
função social da propriedade, da justa distribuição dos bens e serviços, da
gestão democrática e da recuperação ambiental da cidade. Não se trata apenas
da introdução de novos ingredientes às velhas fórmulas mas de reconceituação
própria prática e metodologia do planejamento como instrumento de
democratização da gestão.

Para isso, antes de mais nada, é preciso romper a distância que separa a esfera
técnica do planejamento da esfera política da gestão; os conflitos e embates do
cotidiano das grandes diretrizes e princípios de organização da cidade. Do
ponto de vista da estratégia dos governos municipais essa diretriz se traduziu
mediante a descentralização do planejamento, capaz de se deslocar de um
plano abstrato e superior para se envolver diretamente na cidade real. Significa
também a possibilidade concreta de abertura da discussão a respeito dos
padrões e normas de apropriação do espaço para a interlocução dos agentes
diretamente envolvidos em sua disputa.

Sob essa perspectiva, o plano (especialmente o de longo prazo) deixa de


representar o papel mágico de consertar a desordem, promovendo o
"desenvolvimento harmônico". É preciso ter bem claro que o espaço urbano é
produzido por uma multiplicidade de agentes públicos e privados -, e que
nenhum plano estratégico (por mais bem elaborado tecnicamente que seja)
conseguirá instituir uma transformação estrutural na cidade. A distribuição da
renda, a transformação do modelo industrial e privatista de ocupação do
território, a reversão da hegemonia do uso da terra como reserva de valor não
serão mudanças instituídas por planos, mas pelos impulsos e movimentos de
mudança que ocorrem e ocorrerão na sociedade. Por isso, o planejamento,
mais do que um modelo de "boa cidade", deve ser um espaço institucional no
qual possam ser explicitados pela sociedade seus movimentos de
transformação.

Para isso, em primeiro lugar, é preciso que os agentes sociais que produzem e
disputam o espaço urbano conheçam e se apropriem do planejamento,
explicitando suas posições a respeito das regras básicas do jogo para a
produção e uso da cidade.

Isto só é possível se o ponto de partida for a problematização dos conflitos hoje


emergentes, que se situam no âmbito da gestão.

Isso passa necessariamente também pela democratização da informação, isto


é, pela difusão por parte do governo municipal, em linguagem simples e
acessível, do conteúdo de seus arquivos.

Do ponto de vista dos movimentos populares identificados com a reforma


urbana, esse processo implica a necessidade de superação do plano das
reivindicações, procurando a formulação de políticas alternativas que apontem
para um uso socialmente justo e ecologicamente equilibrado da cidade e da
propriedade urbana.

Do ponto de vista dos governos municipais identificados com essa luta, trata-se
de romper com a concepção de planejamento como modelo de ordenamento
racional do território, na direção de políticas que apontem para a função social
da cidade e da propriedade, das práticas democráticas de gestão.

Isso pode ser traduzido em agenda para as atuais administrações municipais


em três frentes: político-institucional, normativa e financeira.

A frente político-institucional passa, como já apontamos acima, pela


descentralização, pela abertura de canais de participação popular direta como
espaço complementar às instituições da democracia representativa. A
participação popular ampla (e não apenas da população organizada) deve ser
efetiva e não se restringir a um papel consultivo ou de referendum no processo
de formulação, definição e controle das políticas públicas, desde as questões
específicas dos bairros às questões e diretrizes mais globais da cidade. Assim, a
participação popular envolve os aspectos de planejamento, gestão e controle de
questões locais e globais.

Do ponto de vista normativo, um elemento fundamental é o reconhecimento da


existência de formas múltiplas e diversificadas de apropriação da cidade. Para
tanto, a administração municipal deve deixar de encarar a informalidade, a
ilegalidade e a clandestinidade (presentes, por exemplo, em favelas e cortiços)
como desvios a serem administrados pelo poder público para captar seu
conteúdo de contradição em relação à ordem urbana estabelecida. Assim se
possibilita a emergência de formas diversificadas de apropriação do espaço, se
afastando da homogeneização totalitária e abrindo espaço para maior
autonomia e controle locais.

Por outro lado, a revisão das normas urbanísticas no sentido de sua


explicitação, simplificação e abertura para a heterogeneidade deve ser
condicionada às potencialidades do meio físico e ao interesse social, na direção
da reversão do padrão predatório, voltado para o lucro imediato.

Finalmente, essas diretrizes se articulam com uma política redistributiva na


geração e aplicação de recursos públicos. Afirmamos acima que a concentração
de renda é um dos limites mais claros para a transformação estrutural da
cidade. Por isso mesmo a distribuição de renda deve ser um dos pilares da
política urbana.

Isso é perfeitamente possível hoje através de mecanismos de transferência de


renda imobiliária dos mais ricos para os mais pobres. A viabilização dessa
política se dá através da adoção de critérios diferenciados de cobrança de taxas
e impostos municipais, de acordo com a situação sócio-econômica dos bens e
serviços urbanos.

Por outro lado, isso se dá também através da adoção de uma política de solo
criado - mediante a qual os ganhos imobiliários decorrentes do adensamento do
uso do solo retomem à comunidade sob a forma de remuneração do custo da
infra-estrutura e de equipamentos públicos dela decorrentes e de subsídio para
habitação e urbanização dos territórios populares.

Se hoje as possibilidades de financiamento da gestão municipal são limitadas


pelo estado de penúria e endividamento dos cofres públicos, o setor imobiliário
(entre outros que se localizam na cidade) se encontra altamente capitalizado. É
necessário portanto a formulação de uma política urbana que canalize esses
recursos privados - para a produção de espaço e equipamentos públicos.
Do ponto de vista da concepção de cidadania, o conjunto dessas diretrizes abre
espaço para a emergência de uma relação cidadão/cidade, em que a definição,
a construção e a manutenção do espaço e equipamento públicos se definem
como responsabilidade coletiva. Esta concepção se situa num campo
diametralmente oposto ao de um Estado totalitário, produzindo de forma
centralizada um projeto de cidade onde tudo já se encontra previamente
normatizado, que para se realizar pressupõe certamente o controle minucioso
pela força.

É uma obrigação e um desafio, para uma gestão que se quer democrática,


encontrar seus próprios caminhos de tradução dessas diretrizes. Mas a
obrigação e o desafio não são só dos Executivos municipais mas também
responsabilidade dos cidadãos, de seus representantes eleitos na Câmara
Municipal, dos moradores, movimentos, usuários e produtores do espaço
urbano interessados e comprometidos com esta cidade – transformar o
planejamento em algo vivo, quadro de referência e patamar de negociação
possível hoje para a cidade de amanhã.

*Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista. Atualmente é diretora de


Planejamento da Secretaria de Planejamento da Prefeitura de São Paulo.

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