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LITERATURA PORTUGUESA I
TROVADORISMO
(séc.XII-XV)

Da arte amatória medieval:


Cantares de Amigo

Prof. Stélio Furlan (UFSC)

Quando olhaste bem nos olhos meus


E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei, me debrucei
Sobre o teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pêlos, teu pijama
Nos teus pés ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete ao pé da porta
Reclamei baixinho...
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua...

Não seria errôneo afirmar que a composição de Chico Buarque de Holanda


intitulada “Atrás da porta” traz à baila temas caros à lírica amorosa dos Cancioneiros
medievais, em especial, às chamadas cantigas de amigo. Observe que a composição
revela um caso de despersonalização poética por meio da qual um compositor
masculino simula expressar os anseios de um sujeito poético feminino. Observe
também à recorrência ao lugar-comum do olhar como a causa do drama passional.
Acrescente-se o tom intimista, confessional com o qual se expressa dito desvario feito
2

de paixão e raiva, num verso-valise: “Te adorando pelo avesso”. Vale lembrar que nos
idos dos séculos XII e XIII chamava-se coyta a esse turbilhão sentimental e que a
reflexão sobre a tópica amatória acabou por se converter no motor do movimento lírico
trovadoresco. Em “Atrás da porta” a seleção vocabular valoriza a camada sonora do
poema. Observe que no texto poético se repetem palavras na mesma posição na estrofe:

Nos teus pêlos, teu pijama


Nos teus pés ao pé da cama

Tal processo compositivo se denomina anáfora. Já a repetição das consoantes “t” e “p”
(teus pêlos, teu pijama), que também contribui para a criação do efeito melódico no
corpo do texto, se chama aliteração.
Assim, as reiterações vocabulares, no caso, a repetição de um mesmo termo no
início dos versos ou de consoantes e vogais ao longo do poema, se favorecem a
musicalidade também contribuem para a criação de um efeito de reforço e de coerência
textual. Nesse sentido, conforme o grande desejo dos trovadores medievais, na
composição “Atrás da porta” se realiza o ideal poético trovadoresco da perfeita fusão de
motz el son, da palavra e música.
Interessante observar que o sentimento de perda da continuidade do relacionamento
amoroso remete a um dos primeiros textos poéticos da literatura portuguesa. Há quem
diga que a cantiga de amigo “Ai eu coytada “, de D.Sancho I (1154-1211), rei de
Portugal, dedicada à formosa Maria Paes Ribeira, merece o atributo de manuscrito
inaugural da literatura portuguesa. Observe como o trovador incorpora poeticamente o
ponto de vista feminino para descrever o sentido saudosismo da mulher perante a
ausência do amado:

Ai eu coitada!
Como vivo en gran cuidado cuidado: aflição
por meu amigo
que ei alongado! ei alongado: tenho esperado
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!

Ai eu coitada!
Como vivo en gran desejo desejo: recordação saudosa
por meu amigo
que tarda e non vejo!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
(SPINA, Segismundo.
A lírica trovadoresca, p.319)

A composição manuscrita se encontra registrada no Cancioneiro da Biblioteca


Nacional, sob n◦ 456. Logo no primeiro verso a mulher se diz coytada. Como dissemos, a
palavra coyta traduzia o tormento passional dos amantes. Ela sofre de saudade (en gran
desejo) de tanto esperar (que ei alongado) por seu namorado que se está numa cidade
distante (na Guarda). O fato de não vê-lo intensifica ainda mais a recordação saudosa.
3

A aparente simplicidade dessa cantiga é típica de uma das manifestações da poesia


lírica que se desenvolveu na península ibérica. De origem galego-portuguesa, nas cantigas
de amigo se percebe o papel ativo da mulher na busca de soluções para os seus anseios
erótico-sentimentais. A composição é válida para se pensar um tipo peculiar de cantigas de
amigo,

o das paralelísticas, que aliam uma simplicidade de motivos e recursos semânticos


ao elaborado arranjo da sua expressão, através de um esquema de repetitividade que
enriquece o sentido pelo tom de litania e sugestão encantatória, muitas vezes
magoada, perplexa ou interrogativa, que cria.1

Noutras palavras, dentre os temas desenvolvidos nas cantigas de amigo encontramos


situações da vida amorosa das moças casadoiras. A mulher expressa os seus ciúmes e
dúvidas ou faz confidências dos seus sucessos amorosos.
As cantigas de amigo também podem ser dialogadas, embora o sujeito poético feminino
não dirija necessariamente o seu lamento para o destinatário do seu amor (o amigo), mas
para a mãe ou amigas ou mesmo para elementos inanimados (árvores, ondas).
Afora o tipo de voz que inicia as cantigas, o espaço é decisivo para a sua classificação.
As canções de amor são identificadas por traduzirem o ponto de vista de um sujeito poético
masculino e pelo cenário palaciano. Já as cantigas de amigo se ambientam fora do palácio e
do templo: ora no campo, sob frondosas avelaneiras ou pinheiros, ora junto ao mar, ora
próxima a uma fonte ou às margens do rio.
Enfim, não se pode esquecer que essas duas modalidades da lírica medieval se
destinavam ao canto e a dança. O esquema paralelístico e o estribilho ou refrão são os
elementos formais que punham em evidência essa relação. Segundo Spina, o esquema
paralelístico diz respeito a um processo repetitivo que constitui o fundamento da poesia
popular, sendo que na sua base “estão presentes a música e a dança alternada a dois coros”
(1996, p.396). A presença do coro é sugerida pelo refrão ou estribilho: “um fragmento
poético no corpo da composição, ao qual regressa constantemente o coro (às vezes cantados
por um solista), entre a execução de uma estrofe e outra” (1996, p.400).
É o que ocorre na cantiga de D. Sancho, tanto pela presença do refrão (Muito me tarda/o
meu amigo na Guarda!), quanto pelo recurso à estrutura simples da forma paralelística:
“Como vivo en gran cuidado/ Como vivo en gran desejo”. A repetição de versos
semelhantes, apenas com alterações nas palavras finais, permite que a ideia principal se
reproduza ao longo do poema e facilita a sua memorização.

Cantigas de Amigo: condições de possibilidade

1
Esta passagem e outras informações sobre as cantigas de amigo encontram-se disponíveis em
<http://www.instituto-camoes.pt/cvc/literatura/cantigasamigo.htm>, acesso em 21 de fevereiro de 2014.
Consulte também o Portal Galego, que possui uma boa coletânea de cantigas, imagens de fólios e iluminaras
medievais, disponível em http://www.agal-gz.org/modules.php?name=Biblio, acesso em 22 de fevereiro de
2014 e o incontornável Projeto Littera, disponível em http://cantigas.fcsh.unl.pt/index.asp, que contém a
totalidade das cantigas galego-portuguesas.
4

No artigo “À guisa de Sherezade”, a propósito das cantigas de amigo, Cleonice


Berardinelli escreve:

Nestas, a mulher é mais visível, mais situada em espaços concretos: a ermida, a ribeira, a fonte,
as torres, o bosque; pareem, e devem ser, todas jovens: a amiga, as irmãs, as amigas da amiga, a
própria mãe, que ainda disputa o namorado da filha. Destas cantigas desaparece a fórmula mia
senhor, já que é ela quem fala — ao amigo, à mãe, às amigas, às irmãs, às flores do verde pino,
às ondas do mar, aos objetos com que se orna — ou é dela que se fala. Pensamos nela como
jovem, graciosa, quase sempre em movimento: vai à fonte, vai à praia, vai dançar sob as
avelaneiras, vai às romarias, vai ao encontro do amigo, torce o sirgo, sobe às torres, pastoreia;
situamo-la no espaço e no tempo. Mais palpável, mais real, sentimos-lhe a presença, ouvimos-
lhe a voz.2

As cantigas de amigo são classificadas conforme o tratamento do assunto e de acordo


com o cenário. Assim, se as cantigas referem o convite à dança elas são nomeadas de
baylias, se referem visitas a santuários elas são chamadas de romarias; se o cenário for o
campo elas são chamadas de pastorelas; se ambientadas às margens do oceano ou de um
rio elas são designadas barcarolas ou marinhas; enfim, as cantigas dialogadas nas quais os
amantes lastimam o alvorecer de um novo dia, anunciado pelo cantar de uma ave ou de um
vigia noturno, são chamadas de albas.
Segundo Tavani (apud MACHADO, 1996, p.538) há cerca de 1679 composições
preservadas nos cancioneiros da época. Cancioneiros são coletâneas de textos poéticos
manuscritos, compostos em galego-português, entre os finais do século XII e meados do
século XIII.
Dentre as mais importantes dessas composições encontra-se, por certo, uma cantiga de
amigo do rei D. Dinis (1261-1325), com registros no Cancioneiro da Biblioteca Nacional e
no Cancioneiro da Ajuda. A julgar pelo ambiente rústico, junto ao campo, a composição
pode ser classificada como uma pastorela.

― Ai flores, ai, flores do verde pino, pino: pinheiro


se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é? u: onde

Ai flores, ai flores do verde ramo,


se sabedes novas do meu amado?
ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,


aquel que mentiu do que pôs comigo? pôs: combinou
ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,


aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?
― Vós me preguntades polo voss’ amigo?

2
Disponível em < http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/7Sem_04.html> acesso em
17/04/2014
5

Eu ben vos digo que é san’ e vivo: é san’ e vivo: está saudável e vivo
ai, Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss’ amado?


E eu ben vos digo que é viv´e sano
ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san´e vivo,


e seerá vosc´ant’ o prazo saído: e seerá vosc´ant’ o prazo saído/passado: estará
ai, Deus, e u é? convosco no prazo marcado ou combinado

E eu ben vos digo que é viv´e sano,


e será vosc´ant’ o prazo passado:
ai, Deus, e u é?

(MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa


através dos textos, p.25)

Segundo a Arte de trovar, elaborada no século XIII, para classificar uma cantiga
dialogada basta observar a voz que inaugura o poema. No caso, a composição de D.Dinis
não resta dúvidas de que se trata de uma cantiga de amigo, pois a mulher fala na primeira
cobra (estrofe).
Em tom confessional, se encadeia uma sequência de interrogações que exprimem a
sensação da distância indefinida e a sua angústia diante da condição do amado: se está são e
vivo, onde se encontra e se ele mentiu sobre o encontro marcado com ela.
Na segunda parte da cantiga, as flores do pinheiro respondem às indagações da donzela
saudosa e referem que o seu amado está vivo, saudável e, por fim, reitera que ele voltará no
prazo combinado.
Curioso notar a escolha do pinheiro como interlocutor. O apelo simbólico ao robusto
pinheiro não parece gratuito. No oriente, o “verde pino” é visto como símbolo da
imortalidade, da longevidade e do bom agouro. Na Roma antiga, o pinheiro era a árvore
consagrada à deusa Cibele, por ser a madeira de que se faziam as flautas, instrumentos
usados no culto da Mãe dos Deuses. Divindade que personificava a Terra, Cibele ficou
associada à fecundidade.
Acrescente-se que o pinheiro se tornou árvore-símbolo do reinado de D.Dinis
cognominado “O Lavrador” ou “O Rei-Agricultor” pelo incentivo à agricultura. Em seu
governo (1279-1325) foi semeado o pinhal de Leiria do qual se extraiu a matéria prima para
a construção das naus que singrariam mares nunca dantes navegados.
Trocando em miúdos, talvez se possa dizer que assim como havia a esperança de que as
naus que partiam para navegar mares desconhecidos retornassem à pátria, as mágicas flores
do verde pino D.Dinis mais não faziam que afirmar, em tom de bom agouro, o desejo e a
certeza do regresso do amigo aos braços da amada.
No que diz respeito à análise dos processos compositivos basta retomar o que dissemos
sobre a composição de D.Sancho I a respeito da presença do paralelismo rigoroso, que
consiste na repetição de versos com a mesma estrutura sintática ou semântica, e do refrão,
por conta da repetição do mesmo verso no final de cada estrofe, embora valha notar o
refinamento poético que reveste a aparente simplicidade da cantiga de D.Dinis.
Nas cantigas de amigo mais de uma vez encontramos o tema da saudade ou indiferença
do amado que geram a coyta, o tormento passional feminino. Mas encontramos também a
6

celebração da alegria de viver o amor. Sabe-se que a representação de três mulheres


dançando é um lugar-comum da pintura europeia da Antiguidade Clássica até Picasso. No
medievo, este tema é retomado numa bailia de um compositor galego, chamado Airas
Nunes, escrita no final do século XIII. A composição é também um convite à dança, como
se reitera ao final de cada estrofe:

Bailemos nós já todas três, ai amigas,


so aquestas avelaneiras frolidas, aquestas: estas; frolidas: floridas
e quen for velida, como nós, velidas, velida: bela
se amig’ amar, se amig’ amar: se amar seu namorado
so aquestas avelaneiras frolidas
verrá bailar. verrá: virá

Bailemos nós já todas três, ai irmanas,


so aqueste ramo d’estas avelanas,
e quen for louçana como nós, louçanas, louçana: graciosa
se amig´ amar,
so aqueste ramo d’estas avelanas,
verrá bailar.
Por Deus, ai amigas, mentr’al non fazemos, mentr’al non fazemos”: enquanto outra
so aqueste ramo frolido bailemos coisa não fazemos
e quen ben parecer como nós parecemos, quen ben parecer: quem for bela
se amig’ amar,
so aqueste ramo so lo que nós bailemos aqueste: aquele
verrá bailar.

[SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca, p.339]

No aspecto formal, esta cantiga não difere das duas anteriores por conta da estrutura
paralelística e de refrão e das reiterações vocabulares (velida, como nós, velidas). A esses
elementos responsáveis pelo efeito musical e coesão temática, pode-se acrescentar as rimas
internas, entenda-se a semelhança de sons no interior dos versos, ou melhor dizendo, entre
a terminação do verso e palavras que se encontram no interior deste. Basta ler em voz alta o
verso “e quen ben parecer como nós parecemos” para compreender de que maneira as
rimas internas acentuam a sonoridade da cantiga.
Airas Nunes descreve um quadro muito atraente e festivo, no qual três belas moças
dançam sob uma avelaneira ou aveleira florida. O estudo da simbologia floral é muito
importante para a compreensão do que se sugere nas entrelinhas. A avelaneira era
considerada árvore oposta ao pinheiro. Curioso notar que na composição de D. Dinis a
moça se dirige ao pinheiro, símbolo da constância e da fidelidade, por extensão, do amor
correspondido e leal.
Já as três formosas moças dançando sobre a avelaneira indicia uma preparação para o
ato amoroso como se sugere no verso “mentr’al non fazemos”. Vale lembrar que na
simbólica dos povos germanos e nórdicos a avelaneira é a árvore da fertilidade e possuía o
poder mágico de influenciar na boa gestação e em partos felizes.3

3
Chevalier e Geerbrandt, no Dicionário de símbolos, referem que Iduna, deusa da vida e da fertilidade para os
germanos do norte era representada por uma avelã e também mencionam que, num conto islandês, uma
7

Assim, nessa composição se exibe uma atmosfera de sensualidade, jovialidade e alegria.


Numa palavra, joy. Derivada do provençal, cuja arte poética marcou profundamente a
poesia galego-portuguesa, a joy era o amor sensual, a alegria de viver no amor, o resultado
do amor mútuo entre o amigo e mulher, o trovador e a dama. No caso da baylia de Airas
Nunes é tanto um estado de espírito quanto “uma ação, isto é, uma espécie de alegria ativa”
(Spina, 1996, p.386). Logo, por conta da celebração do desejo amoroso, sabemos que nem
só mediante a alusão à coyta se descreve o feminino nas cantigas medievais.

A revivescência do medievo

Cumpre notar que ao longo do século XIX e inícios do século XX ocorre uma
verdadeira revisitação do medievo. Se a Era Clássica escolheu o passado greco-latino como
modelo, não é menos certo dizer que o Romantismo escolheu para si o passado medieval
como forma de assegurar uma identidade.
Nas suas grandes linhas, enquanto estética do século XIX, o Romantismo se relaciona
com a reação aos preceitos clássicos e à busca da autognose nacional. Daí a valoração do
medievo, berço da nação lusitana, porque não dizer, da ideia de ocidente? O gosto pelo
medievo se constata tanto na arquitetura com a (re)construção de templos góticos, como
também nos motivos poéticos e procedimentos compositivos da literatura medieval.
Dois exemplos: Alexandre Herculano, principal escritor do movimento romântico em
Portugal, escreveu um romance histórico, intitulado Eurico, o presbítero [1844],
ambientado no século VIII, que revive o clima das novelas de cavalaria e o espírito das
Cruzadas típicas da prosa medieval. Um de seus versos é auto-explicativo: “Eu, o cristão,
trovador do exílio” (A Vitória e a Piedade, Porto, 1833). A sua vez, Almeida Garrett, em
Folhas Caídas (1853), melhor livro de poemas do romantismo português, retoma o lirismo
fluente de ritmos populares das composições medievais. Um dos mais notáveis poemas de
Garrett é, por certo, “Barca Bela”:

Pescador da barca bela,


Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?

Não vês que a última estrela


No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

Deita o laço com cautela,


Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,


Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,

duquesa estéril passeia num bosque de aveleiras para consultar os deuses que a tornam fecunda, enfim, que
“quebrar avelãs” é um eufemismo para o ato sexual (2003, p.102-103).
8

Oh pescador,

Pescador da barca bela,


Inda é tempo, foge dela,
Foge dela
Oh pescador!

(GARRETT, Almeida. Folhas Caídas. Livro II, 1853)

A retomada dos processos de composição da arte poética medieval se observa pela


escolha da chamada medida velha, no caso, os versos redondilhos (os dois primeiros versos
das estrofes possuem sete sílabas poéticas). Note-se ainda que este poema reitera um
mesmo verso, à guisa de refrão, como remate de cada estrofe. Enfim, a repetição de versos
com a mesma identidade semântica, na primeira e na última estrofe lembra a estrutura
paralelística das cantigas trovadorescas.
Para Garrett, a reação romântica contra a literatura clássica de feições greco-latinas
“trouxe a renascença da poesia nacional e popular”. Segundo ele, “nenhuma coisa pode ser
nacional se não for popular” (apud FERREIRA, s/d, p.5). Assim, Garrett deixa bem claro
que essa retomada é uma contribuição à busca da cor local, ou dos matizes da identidade
pátria.

Em Portugal, no início do século XX, a revalorização de aspectos da poética medieval


ganhou novo viço com o Saudosismo lusitano pela corrente literária conhecida por
Neotrovadorismo. A palavra "Saudade", constante na literatura portuguesa dos suspiros das
donzelas medievais ao dias atuais, foi tomada pelo mentor do Saudosismo, Teixeira de
Pascoaes4, como a "realidade essencial", o "sangue espiritual da Raça". Ele aprofunda o
sentido da palavra Saudade tomando-a como "a feição original do gênio português",
noutras palavras, eleva a Saudade à condição símbolo da identidade nacional.5
Ligado ao movimento saudosista português, Afonso Lopes Vieira (1878-1946),
participa dessa valorização das tradições locais. Em busca da alma nacional, resgatou os
trovadores medievais não sem laivos de ironia. Vide alguns versos do poema Pinhal do Rei
(1940):
Catedral verde e sussurrante, aonde
a luz se ameiga e se esconde
e aonde, ecoando a cantar,
se alonga e se prolonga a longa voz do mar:
ditoso o "Lavrador" que a seu contento
por suas mãos semeou este jardim;
ditoso o Poeta que lançou ao vento
esta canção sem fim...

4
Leia mais sobre a biografia e a textualidade de Teixeira de Pascoaes e sobre outras figuras da cultura
portuguesa no site do Instituto Camões, disponível em http://www.instituto-camoes.pt/cvc/figuras/index.html,
acesso em 22 de fevereiro de 2014.
5
As propostas do Saudosismo foram divulgadas pela Revista "A Águia" (1910-1932, 200 números). Trata-se
de uma revista luso-brasileira que, no Brasil, contou com a colaboração de Coelho Neto, João do Rio, Emílio
de Meneses, Lima Barreto e Ronald de Carvalho (colaborador assíduo da Águia e da Revista Orpheu, marco
inaugural do modernismo em Portugal).
9

Ai flores, ai flores do Pinhal florido,


que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
rei D. Dinis, bom poeta e mau marido, 6
lá vem as velidas bailar e cantar. velidas: belas, formosas

(VIEIRA, Afonso Lopes. Ilhas de Bruma, disponível em http://www.portugal-


linha.pt/literatura/alvieira/poemas.html, acesso em 22 de fevereiro de 2014)

O poema homenageia o plantio do pinhal de Leiria, na bela metáfora da “Catedral verde


e sussurante”, pelo venturoso Rei D. Dinis. As conexões com o lirismo medieval se tornam
mais nítidas pela recriação do verso “― Ai flores, ai, flores do verde pino,” do Rei-
Lavrador. Os teóricos da literatura chamam intertextualidade a remissão a outros textos, e
nele encontram um dos componentes fundamentais da produção literária. Dizem que “todo
texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um
outro texto.”7 “Pinhal do rei” é uma abordagem criativa da tradição literária, com um
inegável tom jocoso. Se alude a elementos das cantigas de amigo (lá vem as velidas bailar
e cantar), não deixa de inserir uma pitada satírica, própria das cantigas de escárnio e
maldizer o que reforça uma conexão de leitura com os trovadores medievais.
Já o chamado Neotrovadorismo é considerado uma das correntes poéticas mais
importantes das letras galegas. A sua nomeação é decorrência da publicação do livro Nao
senlleira, em 1933, de Bouza Brey, cuja publicação foi elogiada pela habilidade de recriar
com perfeição o universo poético medieval, em especial o ritmo das antigas e lindas
cantigas de amigo.8
No Brasil, dentre os vários nomes que podem ser citados, vale dizer que a poesia
Guilherme de Almeida e de Stella Leonardos, também mereceram a atenção da crítica pela
maestria com que recriaram o lirismo trovadoresco medieval.

Conclusão

Resta finalizar esse passeio pelos bosques da poética trovadoresca com uma cantiga de
Stella Leonardos, publicada no livro Amanhecência, de 1972, “obra de amor às líricas
raízes de nossa língua”.9 Ela recorta versos da canção de amor de Nuno Femandez Torneol

6
Em alusão aos filhos que D.Dinis teve com várias senhoras, dentre as quais Grácia Froes, Aldonça
Rodrigues Talha e Marinha Gomes.
7
Consulte o verbete “Intertextualidade”, no E-dicionário de termos literários, disponível em
http://www.edtl.com.pt/ , acesso em 17/03/2014.
8
Sobre o Neotrovadorismo vale consultar o ensaio “Saudosismo e Neotrovadorismo
(Afonso Lopes Vieira, Guilherme de Almeida e Álvaro Cunqueiro)”, de Maria do Amparo Tavares Maleval,
disponível em http://repositorio.lusitanistasail.org/maleval01.htm, acesso em 17/03/2014.
9
Escritora de intenso fôlego poético, sua textualidade é associada à terceira geração do Modernismo
brasileiro. Entre os seus livros premiados vale mencionar Geolírica (1966), Cantabile (1967), Amanhecência
(1974) e Romanceiro da Abolição (1986). A propósito das revivescências do medievo, recomendo o artigo
“Eco dos clássicos na poesia de Maria Teresa Horta”, de Marlise Vaz Bridi, disponível em
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/viewFile/5124/3761, acesso em
17/03/2014..
10

(trovador que viveu em meados do século XIII) "E assi morrerei por quen/” e os insere no
corpo de seu poema como se fosse um estribilho:

Barinel

Vagas van e vagas ven.


Meu coraçon valedor: valedor: vigoroso, audaz, ativo
valha-mi Deus que amo ben.
"E assi morrerei por quen
non quer meu mal,
non quer meu ben".
Vagas van e vagas ven?
Meu coraçon: val amor, val: vale; forma do presente do indicativo de valer
todolo mar de amar ben. Todolo: todo o

"E assi morrerei por quen


non quer meu mal,
non quer meu ben".
LEONARDOS, Stela. Amanhecência, 1974.

O resultado final dessa colagem sugere a manutenção da coyta pela falta de


correspondência amorosa e a alegria de amar o amor do sujeito poético feminino.
A composição é bastante sugestiva e convida o leitor ao encanto numeroso da leitura, a
começar pela seleção vocabular. O termo “vagas”, num sentido primeiro, significa ondas e
remete ao título do poema, Barinel, pequena embarcação que possui apenas um mastro com
vela quadrangular fixa. Mas também pode significar ausência, saudade, carência, agitação.
Não se pretende aqui buscar o significado último do poema, afinal, como escreveu
Fernando Pessoa, “Sentir? Sinta quem lê!”. Em suma, já não mais um trovador simula
expressar os sentimentos femininos, mas agora é a própria poetisa, cuja voz se confunde
com a do sujeito poético da cantiga, que expressa os movimentos do seu coração:
Vagas van e vagas ven?
Meu coraçon: val amor,
todolo mar de amar ben.

Bibliografia

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