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LITERATURA PORTUGUESA I
TROVADORISMO
(séc.XII-XV)
de paixão e raiva, num verso-valise: “Te adorando pelo avesso”. Vale lembrar que nos
idos dos séculos XII e XIII chamava-se coyta a esse turbilhão sentimental e que a
reflexão sobre a tópica amatória acabou por se converter no motor do movimento lírico
trovadoresco. Em “Atrás da porta” a seleção vocabular valoriza a camada sonora do
poema. Observe que no texto poético se repetem palavras na mesma posição na estrofe:
Tal processo compositivo se denomina anáfora. Já a repetição das consoantes “t” e “p”
(teus pêlos, teu pijama), que também contribui para a criação do efeito melódico no
corpo do texto, se chama aliteração.
Assim, as reiterações vocabulares, no caso, a repetição de um mesmo termo no
início dos versos ou de consoantes e vogais ao longo do poema, se favorecem a
musicalidade também contribuem para a criação de um efeito de reforço e de coerência
textual. Nesse sentido, conforme o grande desejo dos trovadores medievais, na
composição “Atrás da porta” se realiza o ideal poético trovadoresco da perfeita fusão de
motz el son, da palavra e música.
Interessante observar que o sentimento de perda da continuidade do relacionamento
amoroso remete a um dos primeiros textos poéticos da literatura portuguesa. Há quem
diga que a cantiga de amigo “Ai eu coytada “, de D.Sancho I (1154-1211), rei de
Portugal, dedicada à formosa Maria Paes Ribeira, merece o atributo de manuscrito
inaugural da literatura portuguesa. Observe como o trovador incorpora poeticamente o
ponto de vista feminino para descrever o sentido saudosismo da mulher perante a
ausência do amado:
Ai eu coitada!
Como vivo en gran cuidado cuidado: aflição
por meu amigo
que ei alongado! ei alongado: tenho esperado
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
Ai eu coitada!
Como vivo en gran desejo desejo: recordação saudosa
por meu amigo
que tarda e non vejo!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
(SPINA, Segismundo.
A lírica trovadoresca, p.319)
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Esta passagem e outras informações sobre as cantigas de amigo encontram-se disponíveis em
<http://www.instituto-camoes.pt/cvc/literatura/cantigasamigo.htm>, acesso em 21 de fevereiro de 2014.
Consulte também o Portal Galego, que possui uma boa coletânea de cantigas, imagens de fólios e iluminaras
medievais, disponível em http://www.agal-gz.org/modules.php?name=Biblio, acesso em 22 de fevereiro de
2014 e o incontornável Projeto Littera, disponível em http://cantigas.fcsh.unl.pt/index.asp, que contém a
totalidade das cantigas galego-portuguesas.
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Nestas, a mulher é mais visível, mais situada em espaços concretos: a ermida, a ribeira, a fonte,
as torres, o bosque; pareem, e devem ser, todas jovens: a amiga, as irmãs, as amigas da amiga, a
própria mãe, que ainda disputa o namorado da filha. Destas cantigas desaparece a fórmula mia
senhor, já que é ela quem fala — ao amigo, à mãe, às amigas, às irmãs, às flores do verde pino,
às ondas do mar, aos objetos com que se orna — ou é dela que se fala. Pensamos nela como
jovem, graciosa, quase sempre em movimento: vai à fonte, vai à praia, vai dançar sob as
avelaneiras, vai às romarias, vai ao encontro do amigo, torce o sirgo, sobe às torres, pastoreia;
situamo-la no espaço e no tempo. Mais palpável, mais real, sentimos-lhe a presença, ouvimos-
lhe a voz.2
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Disponível em < http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/7Sem_04.html> acesso em
17/04/2014
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Eu ben vos digo que é san’ e vivo: é san’ e vivo: está saudável e vivo
ai, Deus, e u é?
Segundo a Arte de trovar, elaborada no século XIII, para classificar uma cantiga
dialogada basta observar a voz que inaugura o poema. No caso, a composição de D.Dinis
não resta dúvidas de que se trata de uma cantiga de amigo, pois a mulher fala na primeira
cobra (estrofe).
Em tom confessional, se encadeia uma sequência de interrogações que exprimem a
sensação da distância indefinida e a sua angústia diante da condição do amado: se está são e
vivo, onde se encontra e se ele mentiu sobre o encontro marcado com ela.
Na segunda parte da cantiga, as flores do pinheiro respondem às indagações da donzela
saudosa e referem que o seu amado está vivo, saudável e, por fim, reitera que ele voltará no
prazo combinado.
Curioso notar a escolha do pinheiro como interlocutor. O apelo simbólico ao robusto
pinheiro não parece gratuito. No oriente, o “verde pino” é visto como símbolo da
imortalidade, da longevidade e do bom agouro. Na Roma antiga, o pinheiro era a árvore
consagrada à deusa Cibele, por ser a madeira de que se faziam as flautas, instrumentos
usados no culto da Mãe dos Deuses. Divindade que personificava a Terra, Cibele ficou
associada à fecundidade.
Acrescente-se que o pinheiro se tornou árvore-símbolo do reinado de D.Dinis
cognominado “O Lavrador” ou “O Rei-Agricultor” pelo incentivo à agricultura. Em seu
governo (1279-1325) foi semeado o pinhal de Leiria do qual se extraiu a matéria prima para
a construção das naus que singrariam mares nunca dantes navegados.
Trocando em miúdos, talvez se possa dizer que assim como havia a esperança de que as
naus que partiam para navegar mares desconhecidos retornassem à pátria, as mágicas flores
do verde pino D.Dinis mais não faziam que afirmar, em tom de bom agouro, o desejo e a
certeza do regresso do amigo aos braços da amada.
No que diz respeito à análise dos processos compositivos basta retomar o que dissemos
sobre a composição de D.Sancho I a respeito da presença do paralelismo rigoroso, que
consiste na repetição de versos com a mesma estrutura sintática ou semântica, e do refrão,
por conta da repetição do mesmo verso no final de cada estrofe, embora valha notar o
refinamento poético que reveste a aparente simplicidade da cantiga de D.Dinis.
Nas cantigas de amigo mais de uma vez encontramos o tema da saudade ou indiferença
do amado que geram a coyta, o tormento passional feminino. Mas encontramos também a
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No aspecto formal, esta cantiga não difere das duas anteriores por conta da estrutura
paralelística e de refrão e das reiterações vocabulares (velida, como nós, velidas). A esses
elementos responsáveis pelo efeito musical e coesão temática, pode-se acrescentar as rimas
internas, entenda-se a semelhança de sons no interior dos versos, ou melhor dizendo, entre
a terminação do verso e palavras que se encontram no interior deste. Basta ler em voz alta o
verso “e quen ben parecer como nós parecemos” para compreender de que maneira as
rimas internas acentuam a sonoridade da cantiga.
Airas Nunes descreve um quadro muito atraente e festivo, no qual três belas moças
dançam sob uma avelaneira ou aveleira florida. O estudo da simbologia floral é muito
importante para a compreensão do que se sugere nas entrelinhas. A avelaneira era
considerada árvore oposta ao pinheiro. Curioso notar que na composição de D. Dinis a
moça se dirige ao pinheiro, símbolo da constância e da fidelidade, por extensão, do amor
correspondido e leal.
Já as três formosas moças dançando sobre a avelaneira indicia uma preparação para o
ato amoroso como se sugere no verso “mentr’al non fazemos”. Vale lembrar que na
simbólica dos povos germanos e nórdicos a avelaneira é a árvore da fertilidade e possuía o
poder mágico de influenciar na boa gestação e em partos felizes.3
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Chevalier e Geerbrandt, no Dicionário de símbolos, referem que Iduna, deusa da vida e da fertilidade para os
germanos do norte era representada por uma avelã e também mencionam que, num conto islandês, uma
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A revivescência do medievo
Cumpre notar que ao longo do século XIX e inícios do século XX ocorre uma
verdadeira revisitação do medievo. Se a Era Clássica escolheu o passado greco-latino como
modelo, não é menos certo dizer que o Romantismo escolheu para si o passado medieval
como forma de assegurar uma identidade.
Nas suas grandes linhas, enquanto estética do século XIX, o Romantismo se relaciona
com a reação aos preceitos clássicos e à busca da autognose nacional. Daí a valoração do
medievo, berço da nação lusitana, porque não dizer, da ideia de ocidente? O gosto pelo
medievo se constata tanto na arquitetura com a (re)construção de templos góticos, como
também nos motivos poéticos e procedimentos compositivos da literatura medieval.
Dois exemplos: Alexandre Herculano, principal escritor do movimento romântico em
Portugal, escreveu um romance histórico, intitulado Eurico, o presbítero [1844],
ambientado no século VIII, que revive o clima das novelas de cavalaria e o espírito das
Cruzadas típicas da prosa medieval. Um de seus versos é auto-explicativo: “Eu, o cristão,
trovador do exílio” (A Vitória e a Piedade, Porto, 1833). A sua vez, Almeida Garrett, em
Folhas Caídas (1853), melhor livro de poemas do romantismo português, retoma o lirismo
fluente de ritmos populares das composições medievais. Um dos mais notáveis poemas de
Garrett é, por certo, “Barca Bela”:
duquesa estéril passeia num bosque de aveleiras para consultar os deuses que a tornam fecunda, enfim, que
“quebrar avelãs” é um eufemismo para o ato sexual (2003, p.102-103).
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Oh pescador,
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Leia mais sobre a biografia e a textualidade de Teixeira de Pascoaes e sobre outras figuras da cultura
portuguesa no site do Instituto Camões, disponível em http://www.instituto-camoes.pt/cvc/figuras/index.html,
acesso em 22 de fevereiro de 2014.
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As propostas do Saudosismo foram divulgadas pela Revista "A Águia" (1910-1932, 200 números). Trata-se
de uma revista luso-brasileira que, no Brasil, contou com a colaboração de Coelho Neto, João do Rio, Emílio
de Meneses, Lima Barreto e Ronald de Carvalho (colaborador assíduo da Águia e da Revista Orpheu, marco
inaugural do modernismo em Portugal).
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Conclusão
Resta finalizar esse passeio pelos bosques da poética trovadoresca com uma cantiga de
Stella Leonardos, publicada no livro Amanhecência, de 1972, “obra de amor às líricas
raízes de nossa língua”.9 Ela recorta versos da canção de amor de Nuno Femandez Torneol
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Em alusão aos filhos que D.Dinis teve com várias senhoras, dentre as quais Grácia Froes, Aldonça
Rodrigues Talha e Marinha Gomes.
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Consulte o verbete “Intertextualidade”, no E-dicionário de termos literários, disponível em
http://www.edtl.com.pt/ , acesso em 17/03/2014.
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Sobre o Neotrovadorismo vale consultar o ensaio “Saudosismo e Neotrovadorismo
(Afonso Lopes Vieira, Guilherme de Almeida e Álvaro Cunqueiro)”, de Maria do Amparo Tavares Maleval,
disponível em http://repositorio.lusitanistasail.org/maleval01.htm, acesso em 17/03/2014.
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Escritora de intenso fôlego poético, sua textualidade é associada à terceira geração do Modernismo
brasileiro. Entre os seus livros premiados vale mencionar Geolírica (1966), Cantabile (1967), Amanhecência
(1974) e Romanceiro da Abolição (1986). A propósito das revivescências do medievo, recomendo o artigo
“Eco dos clássicos na poesia de Maria Teresa Horta”, de Marlise Vaz Bridi, disponível em
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/viewFile/5124/3761, acesso em
17/03/2014..
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(trovador que viveu em meados do século XIII) "E assi morrerei por quen/” e os insere no
corpo de seu poema como se fosse um estribilho:
Barinel
Bibliografia