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As filhas de Pandora –

as mulheres, o tempo e a cultura


Ivia Alves, UFBA

O livro As filhas de Pandora, de Rosana Ri- pendente financeiramente. Ao final, encontram-


beiro Patricio, é um estudo crítico que destaca se, de uma forma ou de outra, sozinhas.
as “imagens de mulher na ficção de Sonia A ensaísta constrói uma estrutura no seu
Coutinho.” A ensaísta demonstra como a texto interpretativo que contempla os princi-
ficcionista vê, lê e registra as mudanças e pais constituintes da narrativa: 1) as protago-
questionamentos culturais de uma geração que nistas, em idade de trinta ou quarenta anos,
se identificou com as propostas feministas. E em suas crises; 2) investe também no afetivo
como, no decorrer do tempo, sem perder de de suas amigas (variantes do mesmo tema e
vista o tema central: a mulher de classe média da crise) que mesmo casadas se projetam no
em crise com os modelos e papéis tradicio- tédio; 3) analisa a narrativa em fragmentos,
nais e em busca de suas próprias soluções, seus com idas e vindas, que não segue a ordem
questionamentos entre o campo profissional cronológica dos fatos; 4) observa o uso fre-
e o campo afetivo vão se sucedendo. quente da intertextualidade (inclusive com re-
As personagens de Sonia Coutinho são de presentações de atrizes e modelos da juventu-
classe média, e se dividem em dois grupos di- de); 4) verifica que os textos de Coutinho, atra-
versos: aquelas que seguiram a condição de ser vés da narradora, questiona e desestabiliza a
mulher, ter família e filhos; e outro nicho, no categoria do narrador(a).
qual elas trabalham fora do espaço domésti- A ensaísta dá voz aos personagens quase
co, têm instrução superior e vivem a crise de sempre iniciando cada parte do seu longo es-
casamentos desfeitos ou insatisfatórios, ou tudo pela retrospectiva interiorizada dessas
mesmo escolheram ser solteiras. Desencanta- protagonistas que fazem um balanço de sua
das com a fantasia do final feliz dos romances vidas, focando suas experiências, seus traumas,
amenos sobre o casamento, chegam à conclu- suas famílias e modelos. Com isso, o estudo
são de que o modelo tradicional (o modelo mostra como elas vêm a tomar consciência
de suas mães) não lhes é adequado. Sentem- de suas não-identidades, do desencanto com
se, então, inadequadas ou sem possibilidades seus papéis sociais idealizados pela cultura oci-
de romper com os vínculos sociais e culturais dental burguesa capitalista, e como foram re-
a fim de partir para uma vida liberada, inde- primidos os seus desejos.

LÉGUA & ME I A : R E V I S T A DE LITERATURA E D I V E R S I D A D E C U L T U R A L , V . 7, N O ° 5, 2 0 09 — 129


Os procedimentos analíticos eleitos por de narradores/autores que constroem uma nar-
Rosana Ribeiro Patricio dão conta da vida das rativa acronológica, fragmentada, com várias
protagonistas, pois a análise em perspectiva inserções de pontos de vista diferentes, rompen-
psicanalítica contempla a formação traumáti- do com a narrativa linear, um narrador oniscien-
ca, os ditos e interditos, a internalização dos te e que controla a verdade e o ato de contar.
modelos paternos e maternos e o vazio exis- O leitor sai da leitura de As filhas de Pandora
tencial em que se encontram no momento, na mais consciente da complexa elaboração das
maturidade, momento no qual a narrativa de narrativas de Sonia Coutinho que, curiosamente,
cada romance ou do conto se inicia. A estudi- através de suas protagonistas vai coexistindo
osa explora, ainda, o uso, pela escritora, da com o tempo de amadurecimento da escrito-
intertextualidade profusa e cheia de alusões às ra. Mesmo caminhando no tempo e em tem-
culturas ocidental e afro-baiana inscritas como pos de mudanças, a dificuldade de suas pro-
um segundo patamar de interpretação e de tagonistas de acertar o passo com o presente
criação de significados e nexos. vai se tornando cada vez mais evidente e claro
Todos os três livros analisados apresentam que tal impedimento está na cultura na qual
inúmeras alusões, insinuações a outros textos foram engendradas, pois elas são marcadas
lidos ou do conhecimento do povo. Não é pela ruptura de dois mundos (modernidade e
por acaso que a geração de Sonia Coutinho contemporaneidade), de duas cidades urba-
foi a primeira a romper com a dicotomia: clas- nas (provinciana e cosmopolita) e de suas
se média (branca, letrada, burguesa) e o saber expressões culturais diferentes.
do povo (negra, ritos, mitos e hábitos orais, Como as narrativas de autoria feminina da
popular e pobre). É desse atrito entre as duas geração de Sonia Coutinho, suas protagonis-
culturas (hibridismo) que se forjam as mulhe- tas vivem o impasse e a crise, experimentam
res protagonistas, todas elas de origem baiana saídas diversas, mas elas, como sua autora, não
e migradas para o Rio de Janeiro, cidade cos- têm a chave do futuro. Como será a mulher,
mopolita e diversificada pelas várias culturas como estará realizado seu desejo? Ultrapassa-
ali existentes. Rosana Patrício aponta esse en- rão os impasses forjados pela cultura local e
trelaçamento entre a vida existencial das pro- ocidental? Este é um livro que não pretenden-
tagonistas na cidade cosmopolita e do lugar do dar respostas à crise da mulher emancipa-
de onde elas falam, lugar marcado pelo da e independente, interpreta esplendidamen-
hibridismo cultural baiano. te os impasses, a riqueza e a complexidade
Em seguida, os ensaios trabalham com a das narrativas de uma excelente escritora. Vale
desestabilização da narrativa, com o a pena ler os livros de Sonia Coutinho e
contradiscurso construído pelas narrativas de entendê-los pelos estudos analíticos de Rosana
autoria feminina e mesmo com os vários tipos Patrício.

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