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Pequena

Filocalia
Pequena

Filocalia
SeleçiW e organizaçiW dos textos:

Fr. José Luís de Almeida Monteiro, or


Diretor da Biblioteca do Saulchoir (Paris)

Higumene Arsenij Sokolov


Pároco da Igreja Ortodoxa Russa (Lisboa)

Departamento Editorial Paulinas

TraduçiW do original grego:


António José Dimas de Almeida

Capa:
Departamento Gráfico Paulinas

Pré-impressão:
Paulinas Editora - Prior Velho

ImpressiW e acabamentos:
Artipol - Artes Tipográficas, Lda. - Águeda

Depósito legal n.º 424 403/17

ISBN 978-989-673-578-4

©Abril 2017, Inst. Miss. Filhas de São Paulo


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www. paulinas. pt
Prefácio

A Filocalia ou o encantamento
pelo mistério de Deus

Os textos que os leitores de língua portuguesa vão des­


cobrir serão para muitos um encontro. O seu tradutor,
Dimas de Almeida, aprimorou ao longo de vários anos os
textos que foram selecionados de entre muitos outros que
não nos é possível publicar. Os textos tradicionalmente
reunidos sob o vocábulo de Filocalia, que agora saem à luz
em português, são um convite para ir mais longe no
conhecimento do Oriente cristão assim como também do
mundo ortodoxo. A publicação destes textos pertencentes
à grande tradição cristã é também em si um aconteci­
mento ecuménico. Só o conhecimento do outro no seu
enraizamento espiritual nos ajudará a medir a profundi­
dade e a riqueza dos dois pulmões do Cristianismo, como
o diria São João Paulo II, na sua vontade de nos convidar a
beber nas duas fontes milenares da tradição: a do Oriente
e a do Ocidente.
Mas o que é a Filocalia?
Este termo significa o «amor da beleza», mas uma beleza
não apenas estética mas antes a beleza divina e humana
proveniente e criadora duma escola mística da oração inte­
rior. Trata-se como o dirá Olivier Clément de «sugerir a ação
e a contemplação cujo objetivo é de descobrir o reino de Deus em si
6 PEQUENA FILOCALIA

mesmo, o tesouro escondido no campo do coração», fazendo


alusão à parábola evangélica descrevendo um homem, que
tendo encontrado um tesouro num campo, vende tudo o
que possui para adquirir esse tesouro.
A Filocalia é constituída, na sua forma original, por
uma coleção de textos ascéticos e místicos reunidos no sé­
culo xvn, por Macário de Corinto, que selecionou os
textos, e Nicodemos, o Hagiorita. Esta coletânea foi publi­
cada pela primeira vez em Veneza em 1782, devido ao con­
texto político criado, naquela época, pelo antigo Império
Otomano, aos cristãos de língua grega. Este conjunto de
textos constitui por assim dizer um breviário do hesicasmo
ou união do espírito com Deus, e exerceu uma grande in­
fluência no seio da espiritualidade ortodoxa moderna
desde meados do século xx. A Filocalia foi somente reedi­
tada no mundo grego em 1893 e em 1957. No mundo de
língua russa, a Filocalia espalhou-se mais rapidamente visto
que o monge Pa'issi V élitchovsky, a residir na Moldávia, a
traduziu para o eslavo e a mandou imprimir, desde 1793,
na Rússia.
Os textos da Filocalia são apresentados tradicionalmente
em ordem cronológica: textos monásticos originais, predo­
minando Evágrio, o Pôntico, que constitui a grande síntese
da época patrística, e autores seguintes como Máximo, o
Confessor, e culminando com São Gregório Palamas. O
apelo é dirigido a todos os cristãos chamados a aperfei­
çoar-se e a procurar a paz interior.
A Filocalia também parece ter surgido como um contra­
peso, como uma espécie de Enciclopédia da Luz Incriada,
em oposição à Enciclopédia francesa das Luzes, embora os
seus autores orientais tenham utilizado a metodologia oci­
dental na sua composição.
Porém, a Filocalia transborda das questões confessio-
PREFÁCIO 7

nais. Nestes textos podemos mergulhar nas origens da


Igreja indivisa, ou seja, antes das grandes divisões cristãs,
sendo um convite dirigido a todos os cristãos para se ali­
mentarem e beberem destas fontes. Os textos escolhidos
permitem-nos descobrir este imenso edifício espiritual.
No nosso tempo necessitamos mais do que nunca de um
itinerário de maturidade cristã que possa conduzir a uma
resposta exigente mediante um trabalho pessoal sobre si
mesmo. Ao longo deste universo que é a Filocalia isso é­
-no-lo revelado profundamente.
Estes textos abrem-nos várias portas e apenas quere­
mos aqui esboçar alguns desses temas fulcrais: o homem
é imagem de Deus e o seu mundo e a história encontram
o seu sentido pleno em Jesus de Nazaré; este caminho ex­
prime-se acolhendo e vivendo os mandamentos da Lei de
Deus e fazendo frutificar a graça batismal. Mas este cami­
nho exige uma prática e um combate espiritual, o qual
passa pela luta contra as paixões e, na Filocalia, a paixão
fundamental é a morte. A Filocalia enumera a lista tradicio­
nal proveniente do monaquismo primitivo: a avidez, a
luxúria, a avareza, a cólera, a tristeza, a preguiça, a vangló­
ria e o orgulho. Por outro lado, a fé constitui o primeiro e
o último pilar da vida espiritual. Esta fé sendo um encon­
tro é também uma colaboração entre o Espírito de Deus e
a liberdade humana. No seio deste encontro surge a crise
que deve conduzir à metanoia ou conversão à vontade de
Deus, e à tomada de consciência da morte espiritual na
qual vivemos mergulhados. Quando a vida espiritual se
enraíza de forma decisiva, a graça age eficazmente e as vir­
tudes libertam e transfiguram a energia bloqueada pelas
paixões. Este crescimento conduz à aquisição da humil­
dade sem a qual não se pode progredir no caminho para
Deus. Esta introduz-nos na paciência para esperar a hora
8 PEQUENA FILOCALIA

de Deus e para nos estabelecermos numa certa impassibi­


lidade, para vivermos no único necessário. Neste sentido,
a Filocalia abre-nos um caminho de liberdade, através
duma ascese que nos permite acolher a vida de Cristo e
eliminar as sementes de morte que entravam o cresci­
mento de Cristo na nossa vida. Muitos textos da Filocalia
reiteram, neste combate, a guarda do coração, para sairmos
da inconsciência, na qual o fluxo de pensamentos, ima­
gens e associações atravessam e debilitam a nossa inteli­
gência espiritual.
Podemos sublinhar que a Filocalia propõe, disseminada
ao longo de vários textos, um método de oração que é a
«oração de Jesus» , método que tem a sua origem nos primei­
ros tempos do monaquismo, através da repetição da ex­
pressão: <<Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador.» Esta expressão
será em parte modificada a partir do século v com Dia­
doco de Poticeia, no deserto de Gaza, na Palestina, e, mais
tarde, no deserto do Sinai. Esta oração assumirá então a
fórmula de súplica que se tornará clássica durante a Idade
Média, nos mosteiros ortodoxos do Monte Atos: «Senhor
Jesus Cristo, Filho de Deus Vivo, tem piedade de nós.» Esta prá­
tica sugere uma ligação entre a oração e a respiração. Já
São João Clímaco, na sua obra mestra, A Escada Espiritual,
dizia: «Que a memória de Jesus se una inteiramente à tua respira­
ção e tu conhecerás a significação do silêncio. »
Para além deste método que é a «oração de Jesus», o único
método de oração proposto pela Filocalia é a meditação da
Sagrada Escritura e em particular dos Salmos. Estes são o
alimento dos monges em todas as igrejas cristãs e tornam­
-se o grito e o êxtase de todos aqueles que os frequentam
e os saboreiam.
Em conclusão, diremos também que a teologia palamita
ou de São Gregório Palamas, no século xrv, ocupa, no
PREFÁCIO 9

conjunto da Filocalia, um lugar de relevo, assim como


outros autores desta mesma época. O mote central é a in­
sistência sobre as energias divinas e a deificação. A Filocalia
respira esse ar, insistindo ao mesmo tempo sobre a aproxi­
mação ou teologia negativa do mistério e sobre a realidade
da deificação ou divinização, termo que é utilizado seis
vezes por Nicodemo na primeira página do seu prefácio de
apresentação da Filocalia. A nossa gratidão ao pastor Dimas
de Almeida, pelo seu profundo e paciente labor e o nosso
aplauso à Paulinas Editora por ter abraçado este extenso
projeto de tradução e de edição.

FR. JOSÉ LUIS DE ALMEIDA MONTEIRO, O.P.


Diretor da Biblioteca do Saulchoir (Paris)
Nota do tradutor

Do deserto também vem


o que é belo

Corria o mês de setembro de 1962 na CASA LOCARNO


(Suíça), urna magnífica Casa criada anos antes pelo Conse­
lho Mundial de Igrejas para ser espaço ecuménico intere­
clesial. Num desses dias, urna senhora da Igreja Ortodoxa,
professora no Institut Saint Serge de Paris, conversando
cordialmente comigo, falou-me entusiasticamente de
Gregório Palarnas, e de corno ele tinha enriquecido, duran­
te os anos em que lá viveu, o Monte Atos (século xrv). E às
suas calorosas palavras juntou um gesto: ofereceu-me o
livro St Grégoire Palamas et la mystique orthodoxe, de Jean
Meyendorff. Jovem estudante de teologia que eu era, Gre­
gório Palarnas era para mim urna figura inteiramente des­
conhecida. Só mais tarde, muito mais tarde, me apercebi
da sua grandeza, sem nunca me ter passado pela cabeça
que um dia viria a ser em Portugal um seu tradutor.
Aqui confesso, pois: Palarnas foi para mim a porta de
entrada (e que porta!) no universo do hesicasrno, esse mo­
vimento monástico cujas origens remontam aos Padres do
Deserto. Isto é: comigo não foram os Padres do Deserto
que me conduziram ao Monte Atos, mas sim o Monte
Atos de Palarnas que me levou a trilhar os caminhos ana-
12 PEQUENA FILOCALIA

coréticos do Deserto. Oá em 2006 a Paulinas Editora


incluiu no livro Religiões - História, textos e tradições, por ela
publicado, uma tradução minha de um texto de Palamas, a
sua longa Homilia sobre a Sagrada Transfiguração do Nosso
Senhor e Deus e Salvador Jesus Cristo. E que homilia!)
Com efeito, o hesicasmo vivido no mais profundo dos
refolhos da alma por Palamas precede Palamas. E ele, se
pode ser visto como um doutor de «mística ortodoxa», é
apenas na medida em que, na dimensão plurifacetada do
seu pensamento, ultrapassa as fronteiras de uma escola
espiritual e faz reviver na sua vasta obra o Mistério cristão
na sua própria essência.
Quanta admiração não foi a minha ao traduzir estes
homens do Deserto! Fortes, fisicamente fortes na sua mís­
tica, foram muitas as vezes em que os vi como preciosos
vagabundos de um encontro consigo mesmos, peregrinos
da busca do essencial.
Com efeito, deles, da fecundidade do silêncio emerge a
«oração de Jesus», essa oração do coração, pessoal, íntima,
mistério em que o espiritual é carnal, explicitamente diri­
gida ao Verbo feito carne: nela, a memória do Nome ocupa
o lugar essencial. Que é preciso mais?
Num registo próprio de um João Clímaco (esse João
Clímaco de que o luterano Sõren Kierkegaard fez um dos
seus heterónimos!), poder-se-ia dizer que o hesicasta é
aquele cuja aspiração é sobretudo esta: circunscrever o
incorpóreo numa habitação de carne, a sua.
Como tradutor vivi a experiência da rica pluralidade do
universo espiritual habitado por esses predecessores, a
começar por Santo Antão (António, o Grande, 251-356) e
a continuar nos seus notáveis epígonos, ao longo de mil
anos. Uma via de realização espiritual enraizada na tradi-
NOTA DO TRADUTOR 13

ção cristã (geneticamente plural) que se oferece ao homem


na forma de uma antropologia de que não está ausente
uma certa tricotomia: corpo, alma, espírito. Os seus textos
são arrancados às profundezas do mistério que cada um
deles era, que cada um de nós é.
Tal é o tesouro da Philokalia, palavra que, tenhamos isso
presente, é o amor do que é belo. Ofereceu-se-me assim, no
meu trabalho de tradução, um vasto campo textual mar­
cado, profundamente marcado, por uma espiritualidade
onde a evasão do mundo, mesmo quando era negação
deste, era-o não verdadeiramente do mundo mas do
imundo. Defrontei-me, pois, com textos ascéticos e místi­
cos que atravessam dez séculos, toda uma cadeia textual
que liga os Padres do Deserto do século IV aos monges do
século XIV. Um milénio textual tornado alimento de todos
os que procuram Deus, independentemente da confissão
a que possam pertencer.
Philokalia, já se disse, significa amor do que é belo, e na
forma original que foi a sua teve como língua matricial o
Grego. Devemos, contudo, assinalar que a sua influência
não se limitou ao mundo dos helenofalantes. Vejamos:
«Paisii Velichkovskii (1722-1794), monge russo que visi­
tou o Monte Atos foi o primeiro a traduzir uma antologia
de textos extraídos da Philokalia: fê-lo em Eslavo, tendo o
seu trabalho sido publicado em Moscovo, em 1793, com o
título Dobrotolubiye, e reimpresso na mesma cidade em
1822. É nessa tradução que o Peregrino Russo lê a Philo­
kalia. » (G. F. H. Palmer, The Philokalia, Faber and Faber,
vol. 1, p. 12.)
A Philokalia grega foi publicada em 1782, em Veneza,
com o título PHILOKALIA TWN IERWN NEP TIKWN
SYNERANISTHEISA PARA TWN AGIWN KAI THEO-
14 PEQUENA FILOCALIA

PHORWN PATERWN, (S vols.), de que a tradução é: PHI­


LOKALIA DOS SANTOS PAIS NÉPTICOS COMPOSTA A
PARTIR DOS ESCRITOS DOS SAN TOS E TE ÓFOROS
PAIS. Esse é o texto matricial de onde parte a minha tra­
dução, texto editado em Atenas pela Casa Editora Aster,
em 1982.
Impõe-se-me sublinhar o valor religioso-cultural desta
edição da Pequena Filocalia. A Paulinas Editora, em Portu­
gal, no empenho posto na publicação desta obra, está a
proporcionar a todas as pessoas interessadas a leitura de
textos cuja relevância existencial nos atinge a todos, leito­
res de hoje. Entrarmos na leitura da Philokalia é entrarmos
num universo simbólico que é protesto contra todo o dia­
bólico promotor do nada. Dostoievsky, seu assíduo leitor,
compreendeu isso muito bem!
Uma palavra final: à Paulinas Editora, nomeadamente
na pessoa da Irmã Eliete Duarte, exprimo ainda toda a
minha admiração por ter, corajosamente, esperado oito
anos pela minha tradução.

DIMAS DE ALMEIDA
SANTO ANTÃO
Abade
SANTO ANTÃO, Abade (251-355), nascido em 251, aos 20 anos de­
dica-se a uma vida de ascese, primeiro numa aldeia, e depois
numa gruta perto do rio Nilo, em seguida em pleno deserto, junto
de umas ruínas abandonadas. Vai então constituir um grupo de
mosteiros de que ele se torna o pai ou abade. Mais tarde, Antão
ruma em direção ao Mar Vermelho, criando um mosteiro que con­
servará particularmente a sua memória e onde passará o resto da
sua vida. Morreu em 355. Conhecemos a sua obra graças à bio­
grafia que nos deixou Santo Atanásio, bispo de Alexandria, cida­
de onde surgiu a heresia do arianismo. Antão devido à sua práti­
ca espiritual é considerado o pai do monaquismo. O legado de
escritos de Antão consiste em 7 Cartas, dentre as quais o Tratado
sobre a conversão e a ascese. As outras seis são dirigidas aos seus
discí-pulos. A Vida de Antão dá um grande relevo ao demónio.
Este é apresentado como o Mestre do deserto. Nessa época em
que o Cristianismo se espalha cada vez mais, o deserto é o único
lugar que sobra ao demónio. Por isso, ele luta contra os monges
que vêm povoar o deserto. O combate do monge contra o demó­
nio deve ser situado na mesma linha que a narração da tentação
de Jesus. O monge continua por isso a ação redentora. Nesta luta,
o combate dirige-se contra as paixões, que são as doenças do
coração. Este combate através da oração torna-se uma imitação
de Cristo e um seguimento dos seus passos. Segundo Gregório
Nazianzeno, a Vida de Antão é como uma regra monástica sob a
forma de narração.
O carácter dos homens
e da vida virtuosa

1. Deve-se a um equívoco a opinião generalizada de que


os homens são por natureza criaturas dotadas de razão.
Contrariando, pois, uma tal opinião, podemos afirmar con­
victamente: carecem de razão aqueles cuj o saber não vai
além do proporcionado pelo manuseio dos textos dos
sábios antigos. Na verdade, um saber que nisso se esgota
de nenhum modo mostra estar animado por uma verda­
deira racionalidade. Racionais são, esses sim, aqueles que
são dotados de uma alma racional e, consequentemente,
capazes de discernir entre o bem e o mal, extraindo daí as
consequências necessárias. Homens desses fogem do mal
e consagram-se ao estudo do bem e do útil, impregnando
com isso a vida que vivem. E fazem-no rendendo muitas
graças a Deus. Por conseguinte, deles e só deles se deve
dizer que são verdadeiramente dotados de razão.

2. O homem inequivocamente dotado de razão perse­


gue apenas uma única coisa: obedecer e agradar ao Deus
do universo. Alimentando esse único propósito, disciplina
a sua alma, e em qualquer circunstância da sua vida dá
graças a Deus pela realidade e profundidade da providên­
cia com que dirige todas as coisas. Seria absurdo, com
efeito, agradecer a saúde do corpo aos médicos que nos
tratam com remédios amargos e desagradáveis, e recusar
18 PEQUENA FILOCALIA

dar graças a Deus pelas coisas que nos parecem penosas,


ignorando que tudo acontece como deve acontecer, e para
nosso bem, de acordo com a sua providência. Porque o
conhecimento de Deus e a fé nele são a salvação e a perfei­
ção da alma.

3. O autodomínio, a resignação, a temperança, a firme­


za, a perseverança, bem como outros semelhantes poderes,
grandes e santos, tudo isso de Deus recebemos para resis­
tir às dificuldades que nos sobrevêm. Se cultivarmos esses
poderes e deles dispusermos, não consideraremos ser difí­
cil, doloroso e intolerável o que possa abater-se sobre nós,
compreendendo que todo o infortúnio é humano e pode
ser dominado pelas virtudes que nos habitam. Os insensa­
tos, esses, não têm isso em conta, pois não compreendem
que todas as coisas acontecem, tal como devem acontecer,
para nosso bem, para que assim as virtudes brilhem e seja­
mos coroados por Deus.

4. Não percas de vista que a aquisição de coisas materiais


e o uso opulento que delas podemos fazer não passam de
uma aparência ilusória e passageira, e que um modo vir­
tuoso de vida, de acordo com a vontade de Deus, ultra­
passa toda a riqueza material. E se refletires seriamente
nisso, e constantemente o guardares na tua mente, deixar­
-te-ás de queixas e de lamentos, bem como de censuras ao
próximo. Em tudo darás graças a Deus, vendo que aqueles
que se apoiam na reputação e nas riquezas são piores do
que tu. Com efeito, o desej o, a vanglória, a ignorância,
constituem tudo j unto a pior paixão da alma.

5. É examinando-se a si mesmo que o homem dotado


de razão experimenta o que lhe convém e lhe é útil, o que
SANTO ANTÃO 19

é apropriado à alma e lhe é vantajoso, e também o que lhe


é estranho e prej udicial. D este modo evita aquilo que,
sendo não só estranho mas também nocivo à alma, o
separa da imortalidade.

6. Quanto mais frugal é a vida de um homem tanto


mais feliz ele é, pois não vive perturbado por um exército
de cuidados: escravos, trabalhadores, rebanhos. Com efei­
to, quando vivemos dependentes de tais coisas e assedia­
dos pelos problemas delas decorrentes, estamos a culpar
Deus. Ao vivermos uma tal cupidez estamos a cultivar a
morte e a permanecer como errantes nas trevas de uma
vida pecaminosa, incapazes de reconhecermos o nosso
verdadeiro eu.

7. Não se deve dizer que é impossível ao homem atingir


uma vida virtuosa, reconhecendo embora não ser isso fácil.
Como fácil não é àqueles que a atingem nela perseverarem.
Participam na vida virtuosa aqueles que, entre os ho­
mens, se consagram à piedade, e cuj a mente é obj eto do
amor de Deus. Com efeito, a mente do homem comum
está voltada para o mundo, vacila, nutre tanto pensamen­
tos bons como maus e é, por natureza, instável e atraída
pelas coisas materiais. Mas em virtude de ser obj eto do
amor de Deus, rej eita o mal que brota espontaneamente
como resultado da negligência humana.

8. Os homens incultos e ignorantes consideram a ins­


trução uma coisa não só indesej ável como ridícula, e re­
jeitam-na, pois ela evidenciaria a sua tacanhez e compro­
meteria o seu desej o de que as outras pessoas sej am
semelhantes a eles mesmos. Igualmente, os homens depra­
vados nos seus hábitos e estilos de vida esforçam-se para
20 PEQUENA FILOCALIA

provar que os outros são piores do que eles, e procuram


assim apresentar-se como irrepreensíveis quando compa­
rados com todos os pecadores que os rodeiam. A alma,
entregue à frouxidão, entra no desvario e perde-se na mal­
dade, pois é habitada pelo deboche, o orgulho, a avidez, a
cólera, a impetuosidade, a raiva, o homicídio, a lamenta­
ção, a inveja, a cupidez, a rapacidade, a dor, a mentira, a
concupiscência, a preguiça, a tristeza, a cobardia, a morbi­
dez, o ódio, a censura, a fraqueza, o erro, a ignorância, a
fraude, o esquecimento de Deus. É por estes males, e por
outros do mesmo jaez, que a sofredora alma, separada de
Deus, é castigada.

9. Aqueles que pretendem viver uma vida virtuosa e


santa não devem incorrer em condenação, pretendendo
ser detentores de uma piedade que não possuem. Mas, à
semelhança dos pintores e escultores, devem manifestar a
sua virtude e santidade através das suas obras, como ama­
dos por Deus, e rejeitar como armadilhas todos os praze­
res maus.

1 0 . Aos olhos dos que são dotados de um discerni­


mento espiritual sadio, ser rico e de boas famílias, mas ter
uma alma in culta e levar uma vida desprovida de toda a
virtude, é ser infeliz; ao contrário, é feliz aquele a quem a
sorte fez pobre e escravo, mas cuj a vida é marcada pela
cultura e pela virtude. Semelhantes a estrangeiros que se
perdem nos caminhos são aqueles que não procuram a
vida virtuosa: seduzidos e enganados pela cobiça, deixam­
-se levar pelos caminhos tortuosos da perdição.

11. Àqueles que são dotados da capacidade de cativar as


naturezas incultas, ao ponto de as levar a amar a instrução
SANTO ANTÃO 21

e a cultura - a esses devemos chamar criadores de homens.


Analogamente, o mesmo devemos dizer daqueles que en­
caminham os errantes, inspirando-lhes uma conduta vir­
tuosa agradável a Deus, pois também esses são criadores
de homens. Com efeito, a doçura e o autodomínio são, nas
almas, manifestações de felicidade e esperança . .

12. É preciso que o s homens pautem, sem tergiversar, o


seu comportamento e conduta segundo os ditames de
uma sã disciplina. Uma vez esse caminho encontrado
torna-se fácil conhecer as coisas de Deus. De facto, quan­
do um homem venera a Deus com todo o seu coração e
toda a sua fé, recebe da providência divina o poder de
dominar a cólera e a cobiça. Ora, tanto uma como a outra
são a fonte de todos os males.

13. Homem verdadeiro é aquele que é dotado de razão


e aceita ser corrigido. Aquele que não se corrige é inu­
mano, pelo que a inumanidade é o seu timbre. A esses é
preciso evitá-los : é , com efeito, impossível àqueles que
coabitam com o mal serem alguma vez contados entre os
imortais.

14. Se a razão está, na verdade, operante em nós, ela


torna-nos dignos de sermos chamados homens. Caso con­
trário, o que nos distingue dos animais destituídos de
razão não vai além da nossa forma física ou da nossa capa­
cidade de falarmos do modo que falamos. Que o homem
inteligente compreenda, pois, que é imortal. Com efeito,
compreendendo-se a si mesmo como um ser dotado de
imortalidade odiará toda a forma de cobiça, causa de
morte.
22 PEQUENA FILOCALIA

15. Cada artesão, ao utilizar a matéria com que trabalha,


revela a sua técnica. Um trabalha a madeira, outro o bron­
ze, outro a prata, um outro o ouro. Assim também nós -
auditores de discursos sobre a conduta feliz e virtuosa,
agradável a Deus - devemos mostrar que somos, sem
equívoco, homens dotados de razão, e que o somos pela
nossa alma e não apenas pela configuração do corpo. A
alma, verdadeiramente dotada de razão e amada por Deus,
conhece todas as coisas da vida, de um modo direto e ime­
diato. Ela ora a Deus com todo o amor, dá-lhe graças, faz
incidir sobre Ele todo o seu desejo e todos os seus pensa­
mentos.

16. Tal como os pilotos se deixam guiar por balizas para


dirigir o navio sem o lançar contra um recife ou uma só
rocha, assim também aqueles que aspiram à vida virtuosa
devem examinar diligentemente o que se lhes impõe fazer,
fugindo dos escolhos indesej áveis. Não devem perder de
vista que o seu bem está na observância das verdadeiras
leis (as leis divinas) , razão pela qual lhes é necessário cortar
pela raiz os maus pensamentos que assolam a alma.

17. Do mesmo modo que os pilotos e os quadrigários


atingem uma alta proficiência à custa do treino e da disci­
plina, assim tmabém aqueles que procuram uma vida de
santidade devem diligentemente estudar e praticar o que
está em consonância com a vontade de Deus. Com efeito,
aquele que a isso aspira e está persuadido de que tal é pos­
sível pode, animado por uma tal convicção, atingir a incor­
ruptibilidade.

18. Considera que são livres não aqueles a quem a sorte


fez livres, mas aqueles que verdadeiramente o são pela sua
SANTO ANTÃO 23

vida, isto é, pela forma como a vivem. É, com efeito, desca­


bido chamar verdadeiramente livres aos príncipes que
vivem na maldade e devassidão: eles são escravos das pai­
xões mundanas. A liberdade e felicidade da alma consistem
numa genuína pureza e no desapego das coisas transitó­
rias.

19. Não te esqueças de que te é sempre necessário dar


provas e ser um exemplo mediante a tua vida moral e as
tuas ações. Com efeito, não é pelas suas palavras mas pelos
seus atos que os doentes reconhecem os bons médicos e
veem neles benfeitores e salvadores.

20. As características de uma alma dotada de razão e


marcada pela virtude manifestam-se no olhar, no andar, na
voz, no riso, no modo como ocupa o seu tempo, nas com­
panhias que mantém. Porque tudo nela, ao transformar-se,
reflete a sua beleza interior. Porque a mente, amada por
Deus, guardiã das portas, vigilante e sóbria, barra a entrada
aos maus e infames pensamentos.

21. Examina-te, testa o teu carácter, guarda sempre na


tua mente a ideia de que as autoridades humanas têm
poder unicamente sobre o corpo e não sobre a alma. Por
isso, se te ordenam que cometas um homicídio, uma injus­
tiça, um ato de corrupção, ou uma qualquer outra loucura,
não lhes obedeças, mesmo se torturarem o teu corpo. Com
efeito, Deus criou a alma livre e dotou-a do poder de es­
colher entre o bem e o mal.

22. A alma dotada de razão procura com denodo livrar­


-se do erro, do orgulho, da fanfarronice, da fraude, da in­
veja, da rapacidade, de outras coisas do mesmo jaez. Tudo
24 PEQUENA FILOCALIA

isso são obras dos demónios e frutos de uma vontade per­


vertida. Mas tudo se consegue com êxito mediante um
diuturno estudo e uma prática consequente, quando o de­
sejo não é atraído pelos prazeres fáceis.

23. Aqueles que têm uma vida frugal e não procuram


tudo possuir escapam aos perigos e não necessitam de
guardas. Ao dominarem as paixões facilmente encontram
o caminho que conduz a Deus.

24. Os homens, quando guiados pela razão, não neces­


sitam de cultivar uma multiplicidade de relações. Bastam­
-lhes as relações úteis orientadas pela vontade de Deus. É
desse modo que reencontram a vida e são iluminados pela
luz eterna.

25. Aqueles que aspiram a uma vida de santidade, des­


frutando do amor de Deus, devem afastar-se do orgulho e
de toda a vanglória, bem como esforçar-se por corrigir a
sua vida e o seu modo de pensar. Com efeito, uma mente
firme é simultaneamente objeto do amor de Deus e cami­
nho que a Deus conduz.

26. Nenhum proveito há na aprendizagem das doutri­


nas se a vida da alma não for aceitável a Deus e vivida em
sintonia com a sua vontade. A causa de todos os males é o
erro, a fraude, a ignorância. Uma vida marcada por esses
desvarios manifesta o quão longe se está de Deus.

27. O empenho numa vida boa, concomitantemente com


o cuidado da alma, é o caminho para sermos bons e amados
por Deus. Com efeito, aquele que procura Deus encontra-o
SANTO ANTÃO 25

ao vencer as paixões mediante a persistência na oração. Um


homem desses não teme, de facto, os demónios.

28. Os desencaminhados pelas atrações mundanas,


meros teóricos de uma vida que devia ser boa, são seme­
lhantes aos enfermos que adquirem remédios e instru­
mentos terapêuticos mas não sabem servir-se deles nem se
inquietam com uma tal ignorância. Razão pela qual, ao
cairmos na prática de ações pecaminosas, não acusemos
disso os nossos pais ou outras pessoas, mas sim a nós
mesmos. Não percamos de vista que uma tal mediocridade
está em nós e não nos outros. Efetivamente, quando a
alma segue o caminho da indolência abre as portas à vul­
nerabilidade e fica impotente para resistir aos ataques da
tentação.

29. O homem incapaz de distinguir o bem do mal en­


cerra-se a si mesmo num universo estiolante e torna-se
inapto para julgar quem é bom e quem é mau. Ora, o ho­
mem que conhece Deus é um homem bom. Se alguém
não é bom é um cativo da ignorância e j amais atingirá o
conhecimento. Porque o ser-se bom é o caminho para se
conhecer Deus.

30. O homem bom e amado por Deus, só na presença


dos outros, num face a face com eles, aponta o mal que
neles há. Na ausência desses outros nunca os censura
nem permite que alguém os censure.

31. Que dos diálogos em que nos envolvemos sej a bani­


da toda a agressividade. Porque a modéstia e a tolerância
são adornos próprios de um homem inteligente. Mais
belos ainda do que os adornos de uma virgem. Uma mente
26 PEQUENA FILOCALIA

que usufrui do amor de Deus é uma luz verdadeira que


ilumina a alma, assim como o sol ilumina o corpo.

32. Q uando uma paixão tocar a tua alma, resiste ao


assédio! E lembra-te de que os defensores de um j ulga­
mento sem mácula, desejosos de guardar em segurança o
bem mais precioso que possuem - a integridade das suas
vidas - comprazem-se não na obtenção das efémeras
coisas materiais, mas sim na prática da doutrina reta e ver­
dadeira, pois é ela que lhes dá felicidade. Porque o rico
pode ser despojado e roubado por quem possui um poder
maior, mas a virtude da alma é um bem seguro e inviolá­
vel, capaz de salvar depois da morte aquele que a possui.
Os fantasmas das riquezas e dos prazeres, por mais que
nos queiram enredar nos seus labirintos do desnorte, reve­
lam-se impotentes para conduzir ao caminho da errância
aqueles que isso compreendem.

33. É indesej ável, e toca as raias do ridículo, que ho­


mens inconstantes e incultos queiram impor-se como se
fossem pessoas eminentes. Um homem eminente é aquele
que obedece a Deus e sabe guardar o silêncio. Quando fala
usa de sobriedade, dizendo apenas o que é necessário e
aceitável aos olhos de Deus.

34. Aqueles que almejam viver a virtude e experienciar o


amor de Deus cultivam as potencialidades da alma, pois ela
é a sua única posse e fonte de um deleite eterno. Quanto às
coisas que são passageiras, delas extraem o prazer possível,
segundo o dom e o querer de Deus. Mesmo quando lhes
são escassas, servem-se delas com alegria e gratidão.
Refeições copiosas alimentam o corpo e a matéria de que é
feito; mas o conhecimento de Deus, o autodomínio, a bon­
dade, a beneficência, a piedade, a doçura, deificam a alma.
SANTO ANTÃO 27

35. Os poderosos que nos obrigam a cometer ações iní­


quas, com o fito de nos atingirem na alma, nenhum domí­
nio têm sobre ela, pois foi criada para ser livre. Eles podem
aprisionar o corpo, mas não a vontade, pois o homem do­
tado de razão é dela senhor. Graças ao Deus que o criou,
manifesta ser mais forte do que toda a autoridade, toda a
coação, todo o poder.

36. Aqueles que consideram uma desgraça a perda da


fortuna, ou dos filhos, ou dos escravos (ou de qualquer
outro bem) devem operar uma conversão interior e apren­
der a contentar-se com o que Deus lhes dá. E, quando for
caso disso, retribuí-lo com solicitude e gratidão, sem se
sentirem afetados por isso, pois vistas bem as coisas é de
uma restituição que se trata: com efeito, aqueles que se
servem do que não lhes pertence, ao agirem assim limi­
tam-se a retribuí-lo.

37. Um homem bom não vende a sua liberdade interior


por dinheiro, mesmo quando a oferta é tentadora. Na ver­
dade, as coisas terrenas são como um sonho, e a riqueza
não passa de uma ilusão incerta e efémera.

38. Aqueles que são verdadeiramente homens devem


esforçar-se por viver no amor de Deus e na prática da vir­
tude: assim sendo, a sua vida brilhará entre os demais. Tal
como a púrpura espalhada, por pouco que sej a, sobre a
brancura de uma veste lhe infunde uma particular beleza,
caracterizando-a de um modo próprio, assim também
homens desses observarão de um modo seguro o cuidado
das virtudes da alma.

39. Os homens dotados de um coração sábio devem


não só examinar cuidadosamente a sua força física mas
28 PEQUENA FILOCALIA

também discernir até onde chegam os poderes da sua


alma. Ora, decorrente desse dever um outro surge: resistir
ao assédio das paixões, fortalecidos pelo modo como Deus
age neste mundo por Ele criado e palco da sua glória.
Comportando-se desse modo, viverão cada dia a riqueza
do amor de Deus que é sempre indizível e inefável. Por
conseguinte, ao viverem o júbilo de uma descoberta que é
nova em cada manhã, experienciam determinadas coisas,
desenvolvem outras, e cultivam ainda outras. Experien­
ciam e sentem um autodomínio capaz de fazer frente não
só ao poder sedutor de uma beleza enganadora mas tam­
bém a todo o tipo de concupiscência perniciosa à alma;
desenvolvem uma salutar resiliência face ao sofrimento e à
privação; cultivam uma perseverança capaz de resistir ao
insulto soez e à calúnia desprezível; et cetera.

40. É impossível ao homem tornar-se subitamente bom


e sábio. Uma tal bondade e sabedoria não lhe cai inopina­
damente do céu. Impõe-se-lhe uma disciplina de vida que
combata toda a negligência. Ora, para que tal aconteça é­
-lhe necessário estudo, perseverança, experiência, tempo,
prática, desejo ardente de uma ação inspirada pela virtude.
Amado por Deus, o homem bom e sábio conhece-o ver­
dadeiramente e empenha-se com afinco na prática de atos
generosos, em sintonia com a vontade divina. Mas confes­
semo-lo, porque confessá-lo é necessário: homens desse
quilate são raros.

41 . Aos homens menos capazes, que desesperam de si


mesmos, não lhes convém tratar com negligência e me­
nosprezo a conduta virtuosa amada por Deus, com o pre­
texto de se tratar de uma conduta para eles inatingível e
incompreensível. Pelo contrário, devem exercitar os pode-
SANTO ANTÃO 29

res de que dispõem e cultivá-los. Com efeito, mesmo


quando não podem atingir o mais alto nível no concer­
nente à virtude e à salvação, podem, mediante uma prática
animada pela força do desej o, tornar-se ou melhores do
que são, ou, pelo menos, não piores, o que já é, de algum
modo, positivo para a alma.

42. Pela sua natureza racional, o homem está unido ao


inefável e divino poder da razão; mas, pela sua naturexa
corporal, tem parentesco com os animais. São, com efeito,
em número limitado os homens que mantêm com o seu
Criador uma comunhão fecunda de onde emana uma vida
virtuosa. Mas são homens desses que, na verdadeira ace­
ção dos termos, mostram ser capazes de elevar até ao seu
Deus e Salvador pensamentos nimbados de uma autêntica
beleza, bem como de, coerentemente, viver isso numa prá­
tica quotidiana, quer ao nível das palavras quer ao nível
dos atos. Os outros, na sua maior parte, dão sinais de po­
breza no concernente à inteligência da alma, e manifestam
indícios de inconsciência da sua filiação divina e imortal; a
sua inclinação vai, de facto, para o corpo, vivendo um pa­
rentesco com ele, ferido desde já pelo que é efémero e
mortal. Não pensam senão nas coisas da carne, como ani­
mais destituídos de razão, prisioneiros dos prazeres sen­
suais, separados de Deus. E desse modo, voluntariamente,
interditam os céus à alma, precipitando-a no abismo.

43. Bem diferente, vimo-lo já, é o homem dotado de ra­


zão: profundamente empenhado em viver a comunhão
com Deus, jamais se enamorará do que quer que sej a de
terreno ou de abj eto. A sua mente está orientada para o
que é celestial e eterno, consciente de que é vontade de
Deus que o homem seja salvo. Ora, sabemo-lo muito bem,
30 PEQUENA FILOCALIA

é a vontade divina que está na origem de tudo o que é


bom, pois ela é a fonte das bênçãos eternas concedidas aos
homens.

44. Quando te encontras com alguém que contesta a


evidência e combate a verdade, põe um ponto final na
disputa e afasta-te de um tal homem cuja mente está petri­
ficada e faz dele um cativo de si próprio, incapaz de enxer­
gar mais longe. Com efeito, assim como uma má água
deteriora o melhor dos vinhos, assim também uma con­
versa nociva corrompe aquele que consagra a sua vida e o
seu pensamento à virtude que liberta.

45. Se fazemos tudo o que podemos para evitar a morte


do corpo, mais ainda nos devemos esforçar por evitar a
morte da alma. Para aquele que se encontra no caminho
da salvação, empenhado em salvar-se, o grande e temível
obstáculo a transpor não é outro senão a negligência e
preguiça da alma. Ambas estiolam o pensamento virtuoso.

46. Aqueles que são avessos à compreensão do que é


proveitoso e salutar são tidos por renitentes. Já aqueles que
compreendem a verdade mas, insolentemente, se deleitam
com querelas estéreis, têm a razão morta e um comporta­
mento selvagem. Não conhecem a Deus e a sua alma não
foi iluminada.

47. Deus, mediante o seu Logos, criou as diferentes es­


pécies de animais para satisfazer as nossas várias necessi­
dades: uns para a nossa alimentação; outros para o nosso
serviço. E criou o homem para ser guardador das suas
vidas, vendo neles motivos para estar agradecido. Que os
homens procurem, pois, não morrer sem terem contem-
SANTO ANTÃO 31

plado e sem terem compreendido Deus e as suas obras.


Com esse procedimento distinguir-se-ão dos animais des­
tituídos de razão.
O homem deve saber que D eus é omnipotente: ora,
nada pode opôr-se àquele que é omnipotente. A partir do
nada Ele fez e faz, pelo seu Logos, tudo o que quer para a
salvação do homem.

48. Os seres celestes são imortais em virtude de terem


dentro deles a bondade divina. Os seres terrestres, esses,
tornaram-se mortais em virtude do mal em que incorre­
ram no seu interior. Um mal que, fruto da negligência e da
ignorância, encontra terreno propício naqueles que são
destituídos de inteligência.

49. A morte, para aqueles que a compreendem, é uma


passagem para a imortalidade. Mas para os ignorantes, in­
capazes de a compreenderem, não deixa de ser morte.
Assim, a morte que se deve temer não é a corporal, mas a
inerente à perdição da alma, que não é senão ignorância
de Deus. É essa ignorância que é um desastre para a alma.

50. O mal é uma afeção inerente à matéria, pelo que não


é possível para um corpo vir à existência livre do mal. A
alma dotada de razão, ao compreender isso, luta para se
libertar desse peso da matéria que é o mal. Libertada desse
peso, a alma volta-se para o conhecimento do Deus do uni­
verso e, a partir daí, passa a ver o corpo como um inimigo e
adversário no qual não se fia. Deste modo, a alma é coroada
por Deus ao sair vencedora das paixões, do mal, da matéria.

51. Ao discernir o mal, a alma repudia-o tal como se re­


pudia um animal que exala um cheiro pestilento. Mas se é
32 PEQUENA FILOCALIA

ignorado, o mal submete ao seu domínio aquele que o


ignora, fazendo desse seu amante um escravo. Então esse
infeliz não vê nem compreende onde está o seu bem, pen­
sando ilusoriamente que o mal lhe é um belo adorno. E
com isso se alegra.

52. A alma pura, em virtude da sua bondade inata, re­


cebe de Deus a luz e o esplendor. Desse modo, a mente
compreende o que é bom e nutre pensamentos em conso­
nância com a vontade de Deus. Mas, quando a alma é
maculada pelo mal e Deus dela se afasta - ou antes, a alma
se afasta de D eus -, os demónios do mal invadem-na e
sugerem-lhe ações ímpias: adultérios, homicídios, roubos,
sacrilégios, e outras coisas do mesmo jaez, todas elas obras
demoníacas.

53. Aqueles que conhecem Deus estão prenhes da be­


nevolência gerada pela bondade. Aspirando às coisas celes­
tes, menosprezam as mundanas. Homens desse quilate
não agradam às multidões, nem tão pouco delas se agra­
dam. Consequentemente, muitos há entre os ineptos que
não somente os detestam como também os ridicularizam.
Eles, porém, modestamente suportam tudo isso, conscien­
tes de que aquilo que para muitos é mau, para eles é bom.
Com efeito, aquele cuja mente se abre às coisas do alto
crê em Deus, sabendo que todas as coisas são criações da
sua vontade; mas aquele cuj a mente permanece fechada
jamais crerá que o mundo é obra de Deus e que foi feito
para a salvação do homem.

54. Aqueles que estão cheios do maligno e ébrios da


ignorância não conhecem a Deus, pois a sua alma, falha de
sobriedade, é prisioneira da negligência. Ora, Deus é inte-
SANTO ANTÃO 33

ligível e, não obstante a sua invisibilidade, manifesta-se


claramente nas coisas visíveis, tal como a alma se manifes­
ta no corpo. E assim como é impossível ao corpo subsistir
sem a alma, assim também é impossível às coisas que exis­
tem como coisas visíveis subsistirem sem Deus.

55. Para que foi o homem criado? Foi-o para, mediante a


perceção das obras do seu Criador, o contemplar e glorifi­
car, reconhecendo-o como aquele que as fez para o seu
bem. E a inteligência, recetiva ao amor de Deus, é uma bên­
ção invisível. Deus concedeu-a àqueles que de um tal dom
são dignos, para viverem uma vida inspirada pela virtude.

56. É livre aquele que não se rende aos prazeres da con­


cupiscência e que, com sabedoria e castidade, domina o
corpo, contentando-se, numa atitude de ação de graças,
com os bens dados por Deus, ainda mesmo quando eles
possam não ser em abundância. Quando a mente (amada
por Deus) e a alma estão em harmonia uma com a outra, é
o corpo na sua totalidade que conhece a paz, mesmo
quando luta contra os desejos que o assaltam. Porque,
querendo-o a alma, toda a pulsão do corpo se extingue.

57. Aqueles que não se satisfazem com o que presente­


mente têm para viver, e mais e mais desej am possuir, estão
a escravizar-se a paixões que perturbam a alma e lhe im­
põem pensamentos e fantasias nefastos. E tal como uma
túnica demasiadamente grande incomoda os que correm
numa competição, assim também o insaciável desej o de
possuir mais riqueza impede as almas de combater o bom
combate e, consequentemente, de serem salvas.

58. Há circunstâncias que, na vida de um homem, são


sentidas como uma prisão e um castigo : acontece isso
34 PEQUENA FILOCALIA

quando ele, contra a sua vontade, é constrangido a vivê­


-las. Dá-te, pois, por satisfeito com o que presentemente
tens, pois, se é de mau grado que vives a tua circunstância,
estás, sem o saber, a punir-te a ti mesmo. Ora, para que te
sintas satisfeito, há unicamente um caminho: o do desa­
pego em relação às coisas materiais e mundanas.

59. Tal como recebemos de Deus a visão a fim de reco­


nhecermos as coisas visíveis - o branco como branco, o
preto como preto - assim também recebemos d'Ele a razão
a fim de podermos discernir o que é bom para a alma. Ora
o desejo irracional, cego como é, ao aprisionar o homem
na concupiscência barra-lhe o caminho da salvação da
alma e priva-o da união com Deus.

60. Quando agimos de acordo com a natureza não es­


tamos a pecar. Pecamos quando deliberadamente nos em­
penhamos numa ação j ustamente designada como peca­
minosa. Comer não é pecado: pecado é comer sem dar
graças, isto é, de um modo egoísta, sem decência e sem
temperança. Obviamente, temos de comer, pois manter a
vida do corpo é uma coisa necessária: há que mantê-la,
porém, sem a cumplicidade dos maus pensamentos. O
olhar, se puro, tão pouco é um pecado. Pecado é olhar de
um modo repassado de inveja, de arrogância, de desejo in­
saciável; é escutar de uma maneira agreste e não pacífica; é
levar a língua a dizer coisas desbragadas em vez de reservá­
-la para a ação de graças e oração; é servirmo-nos das
mãos para matar e roubar, em vez de com elas trabalhar­
mos para aj udar os outros. Os nossos membros pecam,
com efeito, ao fazermos o mal em vez do bem. O que no
fundo, bem vistas as coisas, não passa de um comporta­
mento que nega a vontade de Deus para afirmar a nossa.
SANTO ANTÃO 35

61 . Se duvidas da presença vigilante de Deus onde quer


que nos encontremos, então tem presente isto: se tu que
és pó podes ao mesmo tempo conhecer e observar uma
diversidade de lugares, quanto mais Deus o pode, Ele que
vê o universo como um grão de mostarda, e que providen­
cialmente cria e nutre todas as coisas como quer!

62. Quando fechas a porta da tua habitação e ficas só,


não te esqueças de que o anjo destinado por Deus a cada
homem - anj o a que os gregos chamam divindade inte­
rior - está contigo. Este anjo nunca dorme, e é impossível
enganá-lo. Está sempre contigo, vê todas as coisas e a
obscuridade não o perturba. Tem, pois, isto presente: com
ele e nele é Deus que está presente em toda a parte. Na
verdade, não há nenhum lugar, nem coisa alguma, em que
Deus não esteja: a todos os seres sustenta nas suas mãos, e
nada há maior do que Ele.

63. Se os soldados são leais a César porque ele os alimen­


ta, muito maior deve ser a nossa lealdade quando se trata de
Deus: que incessante seja, pois, a nossa ação de graças a Ele
dirigida, Ele que tudo criou por amor do homem.

64. A gratidão e uma conduta em sintonia com a vir­


tude são frutos da ação do homem que agradam a Deus.
Ora os frutos nascidos da terra não amadurecem de um
momento para o outro, mas exigem tempo, chuva, cuida­
dos. Analogamente, os frutos provindos do homem não
brilham senão à custa de ascese, de estudo, de tempo, de
perseverança, de autodomínio, de paciência. E se, em vir­
tude do que fazes, alguém for levado a pensar que és um
homem devoto, desconfia de ti mesmo enquanto estás no
corpo! E não percas de vista que essa devoção que te atri-
36 PEQUENA FILOCALIA

buem pode não ser uma coisa agradável a Deus. Interioriza


isto: não é fácil a ninguém manter-se sem pecado até ao
fim da sua carreira terrena.

65. Nada é mais precioso ao homem que a palavra. O


seu poder é tal que nos capacita para o serviço de Deus,
com ação de graças. E, nessa perspetiva, que belo é o seu
poder! Mas se dela nos servimos para caluniar e blasfemar,
estamos a condenar a nossa alma. É próprio de um ho­
mem insensato, quando apanhado em falta, invocar o seu
nascimento ou um qualquer outro motivo; ora, em vez de
se comportar desse modo, devia antes consciencializar-se
de que foi mediante uma escolha livre que deu azo a pala­
vras e ações más.

66. Se, com o fito de evitar a censura das pessoas com


quem nos relacionamos nos empenhamos em pôr entra­
ves às paixões corpóreas, quanto maior não deve ser o
nosso empenho em debelar as paixões da alma! Com
efeito, quando, face a face, formos julgados por Deus, não
desejaremos ser vistos como indignos e ridículos. Em vir­
tude de sermos livres, ainda mesmo quando nos invade o
desejo de realizar más ações podemos resistir-lhe e não as
praticar. Tenhamos presente isto, pois trata-se de uma
coisa essencial: está no nosso poder levar uma vida de
acordo com a vontade de Deus. Não nos demitamos por­
tanto de nós mesmos e sigamos em frente, pois nunca nin­
guém, contra a nossa vontade, poderá levar-nos a fazer o
mal. É travando esse combate contra o mal que nos torna­
mos dignos de Deus, e que vivemos como os anjos no Céu.

67. Se assim o queres, és escravo das paixões. E se assim


o queres, és livre, e as paixões não te escravizam. Porque
SANTO ANTÃO 37

D eus te criou livre, ao venceres as paixões da carne és


coroado com a coroa da incorruptibilidade. Com efeito, se
não houvesse paixões também não haveria virtudes, nem
haveria coroas dadas por Deus àqueles que delas são
dignos.

68. Aqueles que conhecem o bem e, não obstante, são


incapazes de reconhecer o que lhes é útil, são cegos espiri­
tuais e têm petrificado o seu poder de discernimento. Que
não nos deixemos, pois, influenciar por eles, não aconteça
que também nós nos tornemos assim cegos, e caiamos nos
mesmos erros, levados pelo desvario do desnorte.

69. Não devemos vituperar aquele que peca, mesmo


quando o que ele faz é vituperável e merece punição. Pelo
contrário, por amor da justiça devemos trazê-lo de volta, e
só num caso extremo exercer a punição (quer diretamente
na sua pessoa, quer de outro modo) . Não devemos, tão
pouco, ficar irritados, nem a excitação se deve apoderar de
nós. Não nos esqueçamos de que a ira encontra terreno
fértil na paixão, com o que nos cega e nos torna incapazes
de julgarmos de acordo com a justiça. Tudo isso não signi­
fica, porém, que devamos ser levados a aprovar sem discer­
nimento aqueles que mostram uma misericórdia descabida.
Os fazedores do mal não devem escapar-se impunes, mas a
indispensável ação punitiva deve ser feita em nome do bem
e da justiça, e não sair ditada por uma paixão colérica.

70. Entrar na posse da sua própria alma significa a aqui­


sição do que é seguro e inviolável. Ora isso só se alcança
mediante uma conduta irrepreensível e a vivência de uma
gnose em sintonia com a virtude e com a prática das boas
obras agradáveis a Deus. Por contraste, a riqueza é um guia
38 PEQUENA FILOCALIA

cego e um conselheiro sem inteligência, e aquele que a usa


mal, para seu belo prazer, está a perder-se a si mesmo ao
ser levado pela sua alma feita cativa da insensatez.

71 . Impõe-se-nos como um dever cuj o cumprimento


nos liberta nada adquirir que seja supérfluo. E se já somos
proprietários de algum bem, então compenetremo-nos de
que todas as coisas são, nesta vida, corruptíveis e, como tal,
efémeras. Por conseguinte, não devemos inquietar-nos
com nada que nos aconteça.

72. Tem presente que os sofrimentos físicos são natu­


rais para o corpo. São-no na medida em que, na sua mate­
rialidade, o corpo é corruptível. Por outro lado, ao defron­
tar-se com esses sofrimentos, a alma disciplinada deve
revestir-se de perseverança e paciência, e não censurar
Deus por ter criado o corpo.

73. Aqueles que competem nos Jogos Olímpicos não


são coroados imediatamente depois de terem vencido os
primeiros adversários, ou os segundos, ou os terceiros, mas
somente depois de terem derrotado todos os competi­
dores. Assim, mutatis mutandis, aqueles que almej am ser
coroados por Deus devem treinar as suas almas de um
modo sábio, não somente no que concerne às suas rela­
ções com o corpo, na sua integridade, mas também no que
tem a ver com ganhos, perdas, inveja, manjares, vanglória,
injúrias, mortes, e outras coisas que tais.

74. Não é para sermos louvados pelos homens que de­


vemos trilhar em sintonia com a virtude o caminho da ver­
dadeira vida. Devemos trilhá-lo tendo em vista a salvação
SANTO ANTÃO 39

da alma, pois a morte está quotidianamente perante nós e


as coisas humanas são imprevisíveis.

75. Está ao nosso alcance viver com sabedoria. Já não o


está, porém, enriquecer. Porquê, então, levar a nossa alma
a trilhar o caminho da perdição, com o fito de adquirir
uma riqueza que, só por decisão nossa, é inalcançável?
Porquê um tal desvario prisioneiro do esquecimento de
que a primeira de todas as virtudes é a humildade, e a pri­
meira de todas as paixões é a glutonaria?

76. As pessoas dotadas de sabedoria não perdem de


vista que aos pequenos e transitórios sofrimentos desta
vida suceder-se-ão depois da morte as maiores alegrias e
delícias eternas. Por conseguinte, se um homem cai ao
lutar contra as paixões, e deseja, não obstante, ser coroado
por Deus, não deve perder o ânimo nem permanecer na
sua queda, desesperado de si mesmo. Deve, isso sim, le­
vantar-se e recomeçar o combate, intimamente convicto
de que alcançará a vitória. O ânimo nunca o abandonará
até exalar o último suspiro. Com efeito, os golpes que o
corpo recebe são a salutar arma usada pelas virtudes, e
trazem a salvação à alma.

77. As provações, por mais duras que possam ser, fazem


com que os homens íntegros que travam esse combate al­
cancem a coroa que Deus lhes outorga. É -lhes, pois, ne­
cessário, ao longo da vida, empenharem-se na mortifica­
ção dos membros em relação às coisas mundanas. É que,
uma vez morto, um homem j á não se preocupa nunca
. .

mais com essas coisas.

78. Não convém que a alma, dotada de razão e empe­


nhada no treino espiritual, se torne errante, caia no des-
40 PEQUENA FILOCALIA

norte, e venha assim a sentir medo ao ser confrontada com


as provações da vida. Quando isso acontece, é o escárnio
que a atinge pela sua cobardia. É que a alma, quando per­
turbada com a imaginação das coisas mundanas, esquece
o que deve a si mesma e perde-se no labirinto desse seu
desnorte. Tenhamos, pois, isto bem presente: são as virtu­
des da alma centrada em si mesma que nos conduzem aos
bens eternos, enquanto os males praticados pelos homens
são a causa dos castigos.

79. O homem, um ser dotado de razão, é assediado


pelos sentidos da sua natureza racional quando estes fo­
mentam as paixões da alma. Ora, sabemo-lo muito bem,
os sentidos do corpo são cinco: a visão, o olfato, a audição,
o gosto, o tato. E a infeliz alma, essa, cai cativa ao sucum­
bir às quatro paixões seguintes (ou até mesmo só a uma
delas) : a vanglória, a frivolidade, a cólera, a cobardia.
Assim, quando se trata de um homem prudente, capaz de
refletir de um modo seguro, o combate que tem inevitavel­
mente de travar, domando e vencendo as paixões, é um
combate travado sob o signo da vitória. A sua alma conhe­
cerá a paz e, uma vez vencedor, será coroado por Deus.

80. Entre os que chegam a uma estalagem, só alguns


dispõem de uma cama, enquanto os outros têm de se
deitar no chão, onde ressonam tanto como os que estão
deitados em camas. Na manhã seguinte, quando partem
todos, nenhum deles leva consigo a não ser os seus per­
tences. Passa-se o mesmo com todos os que vêm a este
mundo. Ora, mutatis mutandis, tanto aqueles que viveram
pobremente, como aqueles que usufruíram de muita ri­
queza e ostentação, todos sem exceção saem deste mundo
como se sai de uma estalagem: unicamente o valor das
SANTO ANTÃO 41

obras praticadas - boas ou más - os acompanha, isto é, o


que cada um deles fez durante a sua vida.

81. Se ocupas uma posição de autoridade não ameaces


levianamente ninguém com a morte: sabes perfeitamente
que também tu estás, por natureza, sujeito à morte, e que a
alma se despe do corpo como da sua derradeira túnica. Por
conseguinte, sê gentil e artífice do bem, dando em todas as
coisas graças a Deus. Com efeito, quem não é compassivo
não é virtuoso.

82. Escapar à morte é algo que tem tanto de impossível


quanto de inconcebível. S abem-no todos aqueles q ue,
dotados de razão, praticam as virtudes e vivem em sintonia
com a vontade de Deus. Homens desse quilate acolhem a
morte sem gemidos, sem medo, sem lamentos, conscientes
de que ela, na sua inevitabilidade, os liberta dos males
desta vida.

83. Não lancemos o opróbrio sobre aqueles que, trans­


viados e cativos desse seu desnorte, dizem não a uma con­
duta virtuosa querida por Deus e menosprezam a doutrina
verdadeira e divina. Mostremos-lhes, antes, misericórdia,
pois são incapazes de discernir o que é j usto, dada a ce­
gueira em que têm mergulhada tanto a mente como o
coração. Tomam o mal por bem, prisioneiros de uma igno­
rância que os leva ao caminho da perdição. Infelizes como
são � possuidores de uma alma obtusa, não conhecem
Deus e, não o conhecendo, não o louvam.

84. Furta-te a falar da piedade e da vida virtuosa, quando


se trata de um auditório excessivamente numeroso. Não
digo isto levado pela malevolência, mas sim pela convicção
42 PEQUENA FILOCALIA

de que correrias o risco de ser tachado de ridículo pelos


néscios. Com efeito, «O semelhante alegra-se com o seme­
lhante». Ora, aqueles que são capazes de escutar instru­
ções desta natureza são em pequeno número. São mesmo
raros. É melhor, portanto, falares em pequenos auditórios
da vontade de Deus para a salvação do homem.

85. A alma compadece-se do corpo, mas o corpo não se


compadece da alma. Assim, quando o corpo é mortificado,
a alma sofre com ele. E quando o corpo é vigoroso e sau­
dável, a alma partilha o seu bem-estar. Mas quando a alma
pensa, o corpo não está nisso envolvido e não pensa com
ela. Com efeito, o pensamento é um estado de alma. Tam­
bém o são a ignorância, o orgulho, a perfídia, a cupidez, o
ódio, a inveja, a cólera, o desprezo, a vanglória, o calculis­
mo, o dissentimento, a apatia. Todos esses estados são ati­
vados pela alma.

86. Que a tua meditação das coisas de Deus te leve a ser


piedoso, bom, prudente, generoso, altruísta, doce, cordial,
afável, magnânimo, et cetera. Efetivamente, manter a alma
inviolável implica estar em sintonia com a vontade de
Deus no exercício da virtude, não julgar ninguém, de nin­
guém dizer «aquele é mau e pecador». Em vez disso é mui­
to melhor ocuparmo-nos dos nossos próprios males e
examinarmos a nossa conduta, se ela agrada ou não a
Deus. Com efeito, o que é que tem a ver connosco a mal­
dade de outrem? O outro é o outro e tu és tu.

87. Lá onde está um homem verdadeiro está alguém


que se empenha com denodo em ser piedoso. Ora é piedo­
so aquele que não cobiça o que pertence aos outros. Mas
até, bem vista a questão, nenhuma das coisas criadas é per-
SANTO ANTÃO 43

tença de alguém. Esforça-te, pois, por te libertares delas! E


tem presente isto: a tua vocação é ser imagem de D eus.
Ora um homem torna-se imagem de Deus quando, coe­
rentemente, vive em sintonia com a sua vontade. E viver
assim supõe uma quotidiana prática, só possível quando
se renuncia às coisas mundanas. Ora aquele cuj a in­
teligência é querida por D eus sabe que todo o bem da
alma e toda a piedade é daí que provêm. Além disso, o ho­
mem que vive o amor de D eus não condena ninguém
pelos pecados que ele próprio comete. Agir assim é timbre
de uma alma na qual a salvação está vivamente operante.

88. Aqueles que, recorrendo à violência, intentam


adquirir bens efémeros e acariciam o desej o de praticar
obras perversas, ignorando a morte e a perdição da sua
alma, incapazes de discernir o que lhes é benéfico, não
compreendem que os homens, depois da morte, são julga­
dos pelo mal que cometeram.

89. O mal é uma afeção inerente à matéria, mas Deus


não é a causa do mal. Ele deu aos homens o conhecimen­
to, a ciência, o discernimento do bem e do mal, a liberda­
de. São a negligência e a preguiça dos homens que geram
as paixões malignas. Deus não é, pois, a sua causa. Os de­
mónios caíram no mal ao terem-no livremente escolhido.
Acontece o mesmo com a maior parte dos homens.

90. O homem que vive uma piedade genuína não per­


mite que o mal entre na sua alma, pois faz desta uma ver­
dadeira cidadela. Por conseguinte, se o mal não a invade
ela não fica refém nem do perigo ameaçador nem da infe­
licidade destruidora. Artimanhas do demónio e golpes da
sorte são impotentes para subjugar homens desse quilate,
44 PEQUENA FILOCALIA

pois Deus é o seu castelo forte. E assim defendidos vivem,


semelhantes a Deus, longe de toda a infelicidade. Se são
elogiados, riem-se daqueles que os elogiam. Se são vitupe­
rados, não respondem aos que os inj uriam. Ficam, com
efeito, indiferentes àquilo que deles se possa dizer.

91. O mal está intrinsecamente ligado à natureza, assim


como a ferrugem o está ao ferro, ou a suj idade ao corpo.
Mas não é o ferreiro o criador da ferrugem, como não são
os pais os criadores da suj idade. Mutatis mutandis, não se
pode dizer de Deus ter sido Ele o criador do mal. Mas dele
pode-se dizer que nos dotou da capacidade de conhecer as
coisas e de discernir o que está em jogo nos desafios da
vida, motivo pelo qual devemos assumir a nossa responsa­
bilidade, combatendo o mal e promovendo o bem. Trata­
-se nisso de um combate que parte de uma tomada de
consciência mediante a qual o mal aparece aos nossos
olhos como aquilo que é: uma força demoníaca capaz de
destruir a vida e de inocular a morte. Assim, quando vires
alguém supostamente feliz por ser poderoso e rico, não o
invejes! Repito: de nenhum modo o invej es! É o demónio
que, nas suas artimanhas, suscita em ti essa ilusão de feli­
cidade. Por conseguinte, que de imediato a imagem da
morte aflore aos teus olhos! Se assim for não cobiçarás, e o
sortilégio das riquezas não fará de ti um cativo do desejo
de posse.

92. O nosso Deus atribuiu a imortalidade às coisas ce­


lestes, mas revestiu de mutabilidade e de caducidade as
coisas terrestres. No universo inscreveu a vida e o movi­
mento, tendo criado tudo para o homem. Por conseguinte,
não te deixes seduzir por este mundo passageiro, matriz de
imagens que o demónio tenta insidiosamente inocular em
SANTO ANTÃO 45

ti ao assediar a tua alma com uma legião de pensamentos.


Impõe-se-te resistir ao império da perversidade. Por con­
seguinte, sempre que sintas esse assédio, evoca de imediato
a beleza dos bens celestes e diz a ti mesmo: «Se eu assim
quiser, tenho o poder necessário para vencer esta batalha
contra a paixão; mas só alcançarei a vitória se não me trans­
formar no centro dos meus próprios desejos.» Não te furtes,
pois, a um tal combate: é empenhando-te nele sem desfale­
cimentos que alcançarás a salvação da tua alma.

93. A vida é a conexão entre a mente, a alma e o corpo.


Pelo contrário, a morte desagrega, desune, estiola, destrói o
que está unido. E com essa sua força destruidora reduz a
nada o conhecimento estruturante desses três elementos.
Mas não percamos de vista isto : tudo é salvo por Deus,
mesmo quando há dissolução.

94. A mente não se confunde com a alma. É um dom


de Deus que opera colaborando na salvação da alma. Ora,
a mente amada por Deus é aquela que, com sageza, toma a
dianteira e orienta a alma, levando-a a menosprezar tudo
o que é efémero, material, corruptível, e a apaixonar-se por
tudo o que é eterno, incorruptível, imaterial, como se fosse
um homem que, na sua individualidade, dirigisse o seu
próprio corpo. Um homem que, por intermédio dela,
observasse e contemplasse as realidades celestes e divinas,
bem como, de igual modo, todas as outras coisas. Por con­
seguinte, tenhamos isto presente : a mente amada por
D eus desempenha um papel essencial de benfeitora da
alma, cooperando na sua salvação.

95. A alma, estando como está no corpo, expõe-se ao


risco das trevas e da perdição quando passa pelo cadinho
46 PEQUENA FILOCALIA

da dor ou pelo gozo do prazer. A dor e o prazer são como


os humores do corpo. Mas a mente que é amada por Deus
contra-ataca afligindo o corpo e salvando a alma, qual
médico que corta e cauteriza.

96. As almas não guiadas pelas rédeas da razão e não


governadas por uma mente dotada da capacidade de pres­
sionar, de atacar e de vencer as paixões (isto é, a dor e o
prazer) , são almas que, semelhantes a animais irracionais,
caminham para a perdição, vítimas do seu próprio des­
norte. Temos assim a razão arrastada pelas paixões, qual
condutor de quadriga que perde o domínio dos cavalos.

97. A grande doença da alma - sua ruína e perdição -


consiste no não conhecimento do Deus que criou o uni­
verso para o homem, a quem conferiu o dom da mente e
da razão. Dotado desse dom divino, o homem voa para se
unir a Deus, conhecê-lo, glorificá-lo.

98. A alma está no corpo, a mente na alma, a razão na


mente. Quando Deus, através desses elementos, é conhe­
cido e louvado, imortaliza a alma, revestindo-a da incor­
ruptibilidade própria das delícias eternas. É , com efeito,
na sua infinita bondade que D eus deu o ser a todas as
criaturas.

99. Desse modo, benevolente e bom, Deus não só criou


o homem livre como lhe deu o poder de (se o homem
assim o quiser) viver em sintonia com a sua vontade. Ora,
o homem vive uma vida de acordo com a vontade divina
quando o mal nele não habita. E se há homens que são
dotados do discernimento necessário para louvar as coisas
belas (bem como as virtudes próprias da santificação) e
SANTO ANTÃO 47

condenar as infâmias de uma vida perversa, quanto maior


não é o discernimento de Deus que, na sua providência
infinita, desvenda o que está oculto e abre caminho para a
salvação do homem!

100. Os bens recebe-os o homem daquele que é o Bem


em si mesmo: Deus. Criado por Deus, o homem foi cons­
tituído o destinatário de tais bens. Os males, esses, é o ho­
mem que os provoca. E é do seu interior que provêm a
malícia, a cobiça, a insensibilidade. Impõe-se, pois, ao ho­
mem travar um permanente combate para que nenhuma
delas o habite.

101. A alma que caiu na irracionalidade, ainda que imor­


tal e senhora do corpo, torna-se deste escrava através dos
prazeres sensuais. Não compreende que os deleites do
corpo lhe são nocivos e, no desnorte da sua loucura, não
pensa senão neles.

1 02. D eus é bom, o homem é mau. Nada é mau no


Céu, nada é bom na terra. Mas o homem dotado de razão
escolhe o melhor e reconhece o Deus do universo. Dá-lhe
graças, louva-o e, diante da morte, sente aversão pelo
corpo. Não permite que os sentidos deem largas aos seus
desejos, pois sabe que são eles os artífices da perdição.

103. O homem mau deleita-se com o excesso, mas inco­


moda-se com a j ustiça. Não tem em conta que a vida é
incerta, instável, impermanente, e que a morte é inflexível
e inexorável. Ora, quando um ancião cai na desvergonha -
manifestando assim a sua insensatez e falta de inteligência
- torna-se madeira apodrecida que para nada de bom
serve.
48 PEQUENA FILOCALIA

1 04. A intensidade com que saboreamos o prazer e o


j úbilo é inversamente proporcional ao modo como vive­
mos as coisas tristes da vida. Aquele que nunca conheceu
o que é a sede, não experimenta satisfação quando bebe.
Aquele que nunca teve sono, não sente prazer q uando
dorme. Aquele que nunca se defrontou com a tristeza, não
tem o sentido da alegria. Mutatis mutandis, não desfrutare­
mos dos bens eternos se não menosprezarmos os bens
temporais.

105. A palavra está ao serviço da mente. Com efeito,


aquilo que a mente congemina, a palavra interpreta.

106. A mente vê todas as coisas, até mesmo as celestes.


E nada a entenebrece, exceto o pecado. Para uma mente
pura nada é incompreensível, tal como para a palavra nada
é indizível.

107. Em virtude do corpo, o homem é mortal; mas em


virtude da mente e da palavra é imortal. Mesmo quando te
calas, pensas; e quando pensas, falas. Com efeito, no silên­
cio a mente gera a palavra. E a palavra que é dita como
ação de graças dirigida a Deus exprime-se como salvação
do homem.

108. Aquele que ao falar diz coisas irracionais, procede


como se estivesse privado da mente, pois fala sem nada
compreender. Não percas, pois, de vista o caminho assina­
lado pela racionalidade, pois é o caminho que se te impõe
seguir para a salvação da alma.

109. A palavra ditada pela mente é como se fosse um


acólito para a alma, e, por isso, é um dom de Deus. Mas a
SANTO ANTÃO 49

palavra que não passa de um blablablá que se perde a in­


vestigar as dimensões do céu e da terra, e as distâncias
entre ambos, ou então as grandezas do sol e das estrelas, é
uma palavra estéril, muito própria de um homem que la­
bora em vão, completamente incapaz de superar a vacui­
dade do que diz. É como pretender tirar água com uma
peneira. Assentemos nisto : aos homens não é possível
resolver questões dessa natureza.

110. Ninguém que olha para o céu pode compreender as


coisas celestes a não ser o homem que, empenhado na
procura de uma vida virtuosa, conhece e louva Aquele que
criou o céu para vivermos e sermos salvos. Um homem
assim vive no amor divino e sabe que nada existe sem
Deus que está presente em cada uma das partes e no todo,
dado ser infinito. E é um tal homem, e só ele, que é capaz
de compreender o que está por detrás do celestial, isto é,
essa outra coisa.

111. Assim como o homem sai nu do seio materno, assim


também a alma sai nua do corpo. Uma alma sai pura e lu­
minosa; uma outra maculada pelas faltas cometidas; uma
outra negra, com todos os seus pecados. Ora, a alma que é
dotada de razão e amada por Deus reflete e medita no j ul­
gamento que se segue à morte, o que a leva a viver uma
vida piedosa para não cair, condenada pelas suas faltas. Os
descrentes, esses, com a alma desprovida de inteligência,
vivem na impiedade, irmã gémea da insensatez, e nutrem­
-se do pecado, desprezando as coisas do além.

112. Tal como, uma vez saído do seio materno deixas de


te lembrar do que era esse seio, assim também uma vez
saído do corpo deixas de te lembrar do que era esse corpo.
50 PEQUENA FILOCALIA

113. Tal como, uma vez saído do seio materno te tornas


mais forte e cresces corporalmente, assim também ao dei­
xares o corpo, se fores puro e imaculado, ficarás mais forte
e revestir-te-ás da incorruptibilidade, pois a tua habitação
passará a ser a celeste.

114. Tal como o corpo tem de nascer quando a sua ges­


tação termina no seio materno, assim também a alma tem
de sair do corpo quando atinge o tempo que, no corpo, lhe
foi destinado por Deus.

115. O que fizeres da tua alma enquanto ela estiver no


corpo, será o que ela fará de ti quando sair do corpo.
Com efeito, aquele que, aqui em baixo, se sente feliz ao
dar largas aos deleites do corpo, sentirá a sua própria in­
felicidade depois da morte. Esse tal, carecido de inteligên­
cia e encerrado na sua insensatez, condena a sua própria
alma.

116. Tal como o corpo não pode sobreviver se sair im­


perfeito do seio materno, assim também a alma, se sair do
corpo sem ter atingido o conhecimento de Deus e vivido
uma vida íntegra, não pode ser salva e viver a união com
Deus.

117. O corpo unido à alma passa das trevas do seio


materno para a luz do dia. Mas a alma unida ao corpo está
ligada às trevas do corpo. É -nos necessário, portanto, pra­
ticar uma ascese do corpo, disciplinando-o, pois é ele o
adversário e inimigo da alma. Com efeito, enquanto a
abundância e o prazer dos alimentos despertam nos
homens as paixões do mal, a temperança, essa, desarma as
paixões e salva a alma.
SANTO ANTÃO 51

118. Enquanto para o corpo a visão está nos olhos, para


a alma está na mente. Tal como um corpo sem olhos é
cego (incapaz, portanto, de usufruir da luz e de ver o sol a
iluminar a terra e o mar) assim também a alma privada da
mente e atraída para uma conduta não virtuosa é cega: não
conhece nem louva o D eus criador do universo, mos­
trando-se assim inapta para ser revestida da incorruptibili­
dade e usufruir dos bens eternos.

119. A ignorância acerca de Deus funciona como uma


anestesia da alma, fazendo com que ela mergulhe no labi­
rinto do desnorte. Torna-a louca, já que o mal nasce da
ignorância. Mas, pelo contrário, o bem vivido pelos ho­
mens emana do conhecimento de Deus e salva a alma. Se,
pois, te empenhas em não dar lugar aos teus caprichos e
vives de um modo sóbrio, experimentarás quotidiana­
mente a comunhão com Deus e a tua mente concentrar­
-se-á na prática das virtudes. Mas se dás vazão aos teus
caprichos, na procura insaciável do prazer, viverás no des­
vario resultante da ignorância de Deus, e acabarás por te
perder como um animal destituído de razão, na infeliz
inconsciência dos males que te esperam depois da morte.

120. A providência divina manifesta-se segundo o prin­


cípio da necessidade, tal como o quotidiano nascer e pôr
do sol, ou o facto de a terra produzir frutos. Mutatis mutan­
dis, da lei se diz ser ela decretada segundo a necessidade
humana. Ora todas as coisas foram criadas para satisfazer
as necessidades do homem.

121. Visto Deus ser bom, tudo o que faz fá-lo por amor
do homem. Pelo contrário, tudo o que o homem faz - tan­
to o verdadeiro bem como o mal que julga ser bem - fá-lo
52 PEQUENA FILOCALIA

por amor de si mesmo. Para não ficares chocado com a


prosperidade dos maus, tem presente que, tal como as
cidades sustentam os carrascos sem que isso implique lou­
varem a atividade por eles realizada (atividade de que se
servem para castigar os transgressores) , assim também
Deus permite que os maus oprimam o mundo a fim de,
por seu intermédio, corrigir os ímpios. Mas no tempo do
fim submetê-los-á ao julgamento, pois toda a provação
que, na sua maldade,infligem aos outros está nos antípo­
das do que é verdadeiramente serviço de Deus.

122. Aqueles que veneram os ídolos, se soubessem e


vissem com o coração o que veneram, não se afastariam
assim - infelizes deles - da piedade. Contemplassem eles a
harmonia, a ordem, a providência das coisas que D eus
criou e continua a criar, e conheceriam Aquele que tudo
isso fez por amor do homem.

123. O homem, mau e inj usto como é, pode matar.


Deus, porém, não cessa de dar a vida, mesmo àqueles que
dela são indignos. Com efeito, na sua infinita bondade
criou o mundo. Começou assim o mundo a existir por
amor do homem e para sua salvação.

124. É p róprio da natureza do homem desej ar com­


preender o que é o corpo (corpo corruptível e efémero)
pois cada homem vive a experiência de que é habitado por
uma alma (alma divina e imortal) criada pelo sopro de
Deus e unida ao corpo para ser provada e seguir o cami­
nho da deificação. Assim, aquele que compreende isso faz
da sua vida um santuário de retidão agradável a Deus. Não
obedece aos caprichos do corpo e, vendo D eus com a
mente, vive a experiência indizível da contemplação. E ,
SANTO ANTÃO 53

desse modo, vivendo ainda as contingências desta vida, vê


desde já os bens eternos por Deus outorgados à alma.

125. Deus, sempre bom e magnânimo, deu ao homem o


poder de fazer o bem e o mal. Dotou-o para isso da cons­
ciência, a fim de, pela contemplação do mundo e do que
está no mundo, conhecer Aquele que tudo fez por amor
dos homens. O ímpio, porém, vive uma profunda contra­
dição: tendo-lhe sido dado o poder de querer, quer, mas
não compreende e vive no desnorte desse desencontro
entre a vontade e a compreensão. Porque lhe é possível
também não crer, errar, construir um mundo de ideias
contrárias à verdade. Tal é o poder que o homem tem de
se decidir quer pelo bem quer pelo mal.

126. Isto faz parte da ordenação de Deus: que a alma, à


medida que o corpo cresce, se vá deixando encher com a
mente, de tal modo que o homem, ao ter de escolher entre
o bem e o mal, siga o caminho verdadeiro que é o do cum­
primento da vontade divina. Ora, a alma que não escolhe o
bem mostra com esse seu procedimento estar privada da
mente e, por conseguinte, prisioneira do labirinto da irra­
cionalidade. Podemos assim dizer que embora todos os
corpos tenham uma alma, nem todas as almas estão dota­
das de mente. Com efeito, a mente, obj eto do amor de
Deus, assume-se como mente nos homens que, dotados
de sageza, são santos, justos, puros, bons, misericordiosos,
piedosos. Daí se conclui que a mente é para o homem um
socorro incontornável no seu caminho para Deus.

127. Uma só coisa não está ao alcance do homem: ser


imortal. É -lhe possível, porém, unir-se a Deus se chegar à
compreensão de que isso está ao alcance do seu poder. Se,
54 PEQUENA FILOCALIA

com efeito, quer, concebe, crê, ama, o homem pode, ao


longo de uma vida ditada pela virtude, tornar-se um com­
panheiro de Deus.

128. O olho contempla as coisas visíveis; a mente apre­


ende as invisíveis. A mente, amada por Deus, é, efetiva­
mente, a luz da alma, e aquele em quem ela assim brilha
tem o coração iluminado e vê Deus.

129. Nenhum homem bom é indigno. Pelo contrário,


aquele que não é bom é, na sua maldade, um prisioneiro
dos caprichos do corpo, e os atos por si praticados estão fe­
ridos de desonra. Ora, a virtude cardinal do homem, que faz
deste um homem bom, implica a desvalorização da carne.
Esse desprendimento do que é efémero, corruptível, mate­
rial - atingido por nossa livre vontade e não por coação - faz
de nós herdeiros dos bens eternos e incorruptíveis.

130. Aquele cuja mente é luminosa não perde nunca de


vista que cada homem é passível de corrupção. Ora, aquele
que assim se conhece e reconhece sabe também que todas
as coisas são criaturas de Deus, criadas para a salvação do
homem. Ter assim uma noção correta acerca das coisas,
bem como alimentar sobre elas uma crença justa, está ao
alcance do poder do homem. Ora um homem desses sabe,
e sabe-o convictamente, que aqueles que são capazes de
menosprezar as coisas mundanas não necessitam, para
isso, de fazer muito esforço ; e sabe ainda que homens
desse quilate recebem de Deus, depois da morte, a bênção
e a paz eternas.

131. Tal como o corpo sem a alma está morto, assim


também a alma privada da mente é estéril e inapta para a
comunhão com Deus.
SANTO ANTÃO 55

132. É só o homem que Deus escuta, e é só ao homem


que Deus se manifesta. Deus ama o homem, e onde quer
que o homem esteja Deus também está. Só o homem é o
digno adorador de Deus. É por amor do homem que D eus
se transfigura.

133. Por conseguinte, é por amor do homem que Deus


criou todas as coisas: a terra, o céu, a beleza das estrelas.
Os homens, esses, cultivam a terra para eles mesmos.
Assim, aqueles que são insensíveis à providência de Deus
têm uma alma que, sendo destituída de compreensão espi­
ritual, faz deles cativos da mediocridade.

134. Tal como tudo que é celeste, o bem não se vê. O


mal, porém, vê-se tal como tudo que é terreno. O bem é
aquilo que não tem comparação. Mas o homem inteli­
gente e capaz de discernir escolhe o melhor. De facto, em
toda a obra da criação o homem é o único ser para quem
D eus e as criaturas são inteligíveis. Daí que uma vida
assim vivida esteja grávida do que é belo.

135. A mente manifesta-se na alma, a natureza no corpo.


A alma é divinizada através da mente, mas a natureza do
corpo torna-a negligente. Assim, se a natureza está pre­
sente em todos os corpos, já a mente não o está em todas
as almas. Motivo pelo qual nem todas as almas são salvas.

136. A alma está no mundo porque é gerada; a mente,


pelo contrário, transcende o mundo porque não é gerada.
Assim, pois, a alma que conhece o mundo e quer ser salva
vive sem cessar consciente destas coisas: o tempo do com­
bate e da provação é agora; o combate a travar não é outro
senão o da verdade, pelo que lhe está vedado fazer batota
56 PEQUENA FILOCALIA

com o Juiz; a salvação ou perdição resultam do modo


como ela, alma, reage à sedução do prazer, pelo que se lhe
impõe viver uma vida virtuosa, liberta do império da
paixão.

137. Deus estabeleceu na terra o nascimento e a morte; e


no Céu a providência e o destino. Tudo o que fez fê-lo
providencialmente, por amor do homem e para sua salva­
ção. Senhor de todas as coisas, Deus criou para os homens
o céu, a terra, todos os elementos do mundo. A ação de
Deus, no ato com que cria, tem assim em vista proporcio­
nar aos homens o usufruto do mundo.

138. O que é mortal está subordinado ao que é imortal.


O imortal, contudo, está ao serviço do que é mortal: assim,
os elementos do mundo estão ao serviço do homem
graças ao amor com que o Deus criador ama o homem.

139. Aquele que, por ter nascido pobre, é impotente para


prej udicar quem quer que sej a não merece ser contado
entre os que praticam a piedade. Mas aquele que dispõe
do poder de prejudicar outrem e, não obstante, se recusa a
fazê-lo (tratando até, pelo amor de Deus, com redobrada
doçura os mais humildes) esse, sim, merece os bens pro­
metidos como recompensa, não só nesta vida mas também
depois da morte.

140. Graças ao amor de Deus, nosso Salvador, há


muitos caminhos de salvação, todos implicando a conver­
são, mediante a q ual as nossas almas são conduzidas
aos Céus. Efetivamente, cada alma recebe quer a recom­
pensa pela sua virtude, quer o castigo pela sua vida peca­
minosa.
SANTO ANTÃO 57

141. O Filho está no Pai, o Espírito está no Filho, o Pai


está em ambos. É pela fé que o homem conhece todas as
coisas que, não obstante a sua invisibilidade, são inteligí­
veis. Fé que supõe o assentimento voluntário da alma.

142. Aqueles que, por uma particular necessidade, ou


pela força das circunstâncias, são obrigados a lançar-se à
água e a nadar em caudaloso rio, salvam-se se estiverem
sóbrios e vigilantes. De facto, mesmo sentindo-se à deriva,
no caso de as correntes serem violentas, salvam-se agar­
rando-se a qualquer coisa que flutue. Pelo contrário, aque­
les que estiverem embriagados, mesmo sendo exímios
nadadores, vencidos pelo vinho afundam-se na corrente e
desaparecem do mundo dos viventes. Do mesmo modo a
alma, lançada nos redemoínhos e turbilhões das correntes
desta vida, necessita saber (não obstante ser divina e imor­
tal) que a sua ligação à matéria (efémera, frágil e mortal
como esta é) arrasta inevitavelmente consigo a provação.
Não pode, com efeito, manter-se íntegra se se ignora a si
mesma. Uma outra coisa deve ter sempre presente: o hori­
zonte da salvação desvanece-se para ela, dando lugar ao da
perdição, caso se deixe levar pelos prazeres do corpo que
aniquilam o que nela pode haver de belo. Q uando isso
acontece, ela, ébria de ignorância, lança sobre si mesma o
opróbrio, incapaz de se assumir como aquilo que, lá no
fundo de si mesma, verdadeiramente é. Com efeito, qual
corrente de um rio tumultuoso, o corpo arrasta-nos não
poucas vezes para prazeres que são ilícitos por serem des­
truidores do que é belo.

143. A alma dotada de razão, ao escolher convictamente


o que é bel o, mostra ser capaz de dominar, qual exímio
cavaleiro a quem o cavalo se submete, o ardor e o desejo,
58 PEQUENA FILOCALIA

paixões cativas da irracionalidade. Subjugá-las, controlá­


-las, dominá-las, significa para a alma ser coroada e julgada
digna da vida no Céu. Lá, ela recebe de Deus, seu criador,
a recompensa da sua vitória conseguida no meio das mais
variadas vicissitudes.

144. A alma cujo comportamento é norteado pela razão,


ao constatar a prosperidade dos maus e indignos, não se
perturba com isso. A sua reação é, até mesmo, diametral­
mente oposta à daqueles que, na sua insensatez, interpre­
tam esse facto como perturbante. Uma tal alma tem, com
efeito, a perceção clara não só da impermanência de todas
as coisas materiais (da fortuna, da incerteza da vida pre­
sente, da brevidade da existência) como também da inte­
gridade do j ulgamento futuro q ue sobre todos, bons e
maus, se abaterá. Por conseguinte, crê firmemente que
D eus não falhará, proporcionando-lhe ao longo da sua
vida tudo aquilo de que necessita.

145. A vida do corpo com as delícias proporcionadas pela


riqueza e pelo poder é um caminho aberto para a morte da
alma. Por outro lado, o sofrimento, a paciência, a pobreza,
(todas essas coisas assumidas com ação de graças) têm
como resultado a vida e as delícias eternas da alma.

146. A alma que age em sintonia com a razão menos­


preza este mundo material e esta efémera vida. Escolhe as
delícias do Céu e a vida eterna que de Deus recebe como
recompensa pela sua conduta virtuosa.

147. Aqueles que envergam roupas emporcalhadas


sujam as vestes de quem por eles se roça. Mutatis mutandis,
os perversos com o seu comportamento indigno, quando
SANTO ANTÃO 59

se relacionam com pessoas simples e nelas inoculam ideias


maldosas, maculam a alma com a baixeza das palavras que
vomitam.

148. O pecado começa com o desnorte da concupiscên­


cia capaz de levar a alma à perdição. Pelo contrário, a salva­
ção é assumida e toma forma concreta quando a alma, grá­
vida de amor, percorre o caminho conducente ao Reino
dos Céus.

149. Tal como o ferro quando negligenciado (isto é, não


tratado nem utilizado) é carcomido pela ferrugem e perde
a utilidade e a beleza, assim também a alma, quando entre­
gue à inércia, negligencia a santidade da vida, pratica ações
perversas, não se converte a Deus. Desse modo, cativa da
preguiça e vítima da incúria (isto é, sob o império do mal
que tudo corrói) acaba por se autodestruir, perdendo a
beleza que é timbre do caminho da salvação.

150. É animados de uma profunda convicção que con­


fessamos que Deus é bom, impassível, imutável. Ora bem:
quando fazemos uma declaração desse teor (convictos de
estarmos a falar de atributos divinos que são do domínio
do racional e verdadeiro) pode alguém perguntar como é
que, sendo assim, ainda tem sentido falarmos de um Deus
que não só se alegra com os bons e acolhe os arrependi­
dos, mas também se afasta dos maus e manifesta ira com
os prevaricadores. Ora, àqueles que assim nos interpelam
respondemos que Deus nem se alegra nem se irrita. Com
efeito, tanto a alegria, como a tristeza, como a ira, são pai­
xões. Além disso, tão pouco poderíamos honrá-lo com
presentes, pois se assim fosse Ele seria influenciado pelo
prazer da oferta. Por conseguinte, não está no nosso poder,
60 PEQUENA FILOCALIA

a partir das coisas humanas, condicionar a liberdade divina


(trata-se de uma liberdade infinita!) transferindo para
Deus os nossos conceitos de bem e de mal. Tenhamos
bem presente isto: Deus é bom, sempre bom, sem sombra
de variação, e dele não recebemos senão o bem, nunca o
mal, e em tudo isso Ele é sempre igual a si mesmo. Portan­
to, no que nos concerne, isto é, na nossa condição huma­
na (e na semelhança que com Ele temos) se perseveramos
no bem unimo-nos a Ele e vivemos assim uma indizível
comunhão. Mas se profanamos essa semelhança, entre­
gando-nos ao mal, separamo-nos d'Ele. Impõe-se-nos,
portanto, viver virtuosamente, pois só assim a nossa vida
terá sentido, o sentido encontrado numa tal união. Fixe­
mo-nos, pois, nisto: se a nossa vida não é assim caracteri­
zada pela virtude tornamo-nos cativos do mal, fazemos
d'Ele um adversário e damos lugar à sua ira. Não nos es­
queçamos de que uma vida prisioneira da mentira e alie­
nada à perversidade impede o brilho divino em nós e abre
a porta aos demónios nossos torturadores. E ainda: se,
graças à oração e à prática do bem, alcançamos o perdão
das faltas cometidas, isso não significa que conquistámos
Deus, nem que Ele mudou. Significa, sim, que ao reagir­
mos ao mal com a integridade de uma vida virtuosa e com
o nosso regresso a Deus, passamos a usufruir de novo da
sua bondade. Por conseguinte, dizermos que D eus se
afasta dos maus equivale a dizermos que o sol se esconde
daqueles que, tendo olhos, não veem.

151. A alma piedosa conhece o Deus do universo. Com


efeito, a piedade não é outra coisa senão o cumprimento
da vontade de Deus. Nisso ela se resume e encontra o seu
verdadeiro sentido. O que supõe conhecê-lo e viver, em
SANTO ANTÃO 61

sintonia com isso, de um modo magnânimo, sage, doce,


generoso, sociável, atraente.

152. O conhecimento e o temor de Deus são a cura das


paixões que nos devastam acorrentando-nos ao mundo da
matéria. Com efeito, quando a alma é dominada pela igno­
rância de Deus, as paixões tornam-se incuráveis, estão per­
manentemente ativas, são um atoleiro, um verdadeiro can­
cro. Uma ignorância dessas é, efetivamente, semelhante a
uma praga que corrói a alma. Mas D eus não é disso a
causal A responsabilidade é nossa, pois Ele deu-nos, a nós
homens, a ciência e o conhecimento.

153. Por conseguinte, tendo assim dado ao homem, pro­


digamente, ciência e conhecimento, Deus quer purificá-lo
das paixões e do mal voluntário por ele praticado, bem
como revesti-lo, a ele que é mortal, da imortalidade.

154. A mente, numa alma pura e enamorada de Deus, vê


verdadeiramente o Deus não gerado, invisível, inefável, o
único que é puro para os puros de coração.

155. A coroa da incorruptibilidade e da virtude, numa pa­


lavra, a salvação do homem, consiste em suportar as adver­
sidades com coragem, gratidão, perseverança. Dominar a
cólera, a língua, o ventre, os prazeres, é de um grande so­
corro para a alma e faz com que verdadeiramente vivamos.

156. É a providência de Deus que dirige o mundo. Ne­


nhum lugar existe que esteja dela privado. A Providência é
o Logos absoluto de Deus, modelador da matéria de que é
feito o mundo. Ela, Provid�ncia, é o demiurgo-artífice de
todas as coisas existentes. Efetivamente, não é possível que
62 PEQUENA FILOCALIA

a matéria tenha sido ordenada sem o poder diretor do


Logos, que é a imagem, a mente, a sabedoria, a providência
de Deus.

157. A concupiscência que brota do consciente é a raiz


das paixões tenebrosas. E a alma que nestas mergulha não
se conhece, ignorando ter sido criada pelo sopro de Deus.
Vive assim no pecado, no desnorte de um labirinto insa­
nável, sem ter em conta, por falta de inteligência, os males
que a esperam depois da morte.

1 58. A recusa de D eus e o amor da vanglória consti­


tuem uma gravíssima e incurável enfermidade da alma.
Esta fica enredada nos labirintos de um desnorte que para
si mesma fabrica. E com isso torna-se artesã da sua pró­
pria perdição, já que aspirar ao mal é privar-se do bem.
Ora o bem, temo-lo já dito e redito, consiste em fazer
profusamente tudo o que é bom e agradável ao Deus do
universo.

159. O homem é o único ser capaz de acolher Deus. A


ele só, entre os viventes, Deus fala: de noite através dos
sonhos, de dia através da mente. Deste modo, sem cessar,
antecipadamente anuncia aos homens que disso são
dignos os bens que os esperam.

160. Não é difícil àquele que tem fé, e em consonância


com ela vive de um modo íntegro, atingir uma compreen­
são espiritual de Deus. Por conseguinte, se te anima o
desejo de o contemplar, olha para a providencial harmonia
que reina em todas as coisas que foram criadas e que con­
tinuam a sê-lo pelo seu Logos. É que todas elas existem
por amor do homem.
SANTO ANTÃO 63

161. Diz-se de um homem que é santo, quando vive de


um modo íntegro, de tal modo que o mal e os pecados não
o maculam. Por conseguinte, ser puro e livre do mal im­
plica um altíssimo grau de sucesso da alma, coisa essa
agradável a Deus.

162. O nome designa quer uma coisa quer uma pessoa


em particular. Seria, pois, do domínio do insensato admitir
que Deus, que é um e único, pudesse ter um outro nome.
Efetivamente, o nome Deus designa Aquele que não tem
origem, é incriado, e se revela Criador deste mundo, lugar
da nossa habitação. E tudo o que fez fê-lo por amor do
homem.

163. Se há más ações que te pesam na consciência, erra­


dica-as, e sentir-te-ás livre, e a tua alma viverá leve! Age de
acordo com o bem, consciente de que Deus é j usto e ama
o homem.

164. Ora, o homem conhece Deus e é por Ele conhecido,


quando faz tudo para nunca dele se separar, vivendo o seu
quotidiano na força dessa comunhão. E ao agir assim, o
homem mostra não estar separado de Deus, pois é bom em
todas as circunstâncias e não se deixa dominar por um
qualquer prazer. E isso não por lhe faltarem os meios, mas
sim por sua própria determinação e autodomínio.

165. Faz o bem àquele que te faz o mal, e terás em Deus


um amigo. Não atues como um delator do teu amigo. Em
vez disso pratica o amor, a sobriedade, a perseverança, o
autodomínio, e outras coisas semelhantes a estas. E tem
sempre presente no teu espírito isto: o conhecimento de
Deus consiste em segui-lo na via da humildade e de outras
64 PEQUENA FILOCALIA

virtudes afins. Obras destas, contudo, não são de esperar


de um qualquer. Só uma alma dotada de conhecimento
espiritual vive a um nível desses.

166. Por causa daqueles que, cativos de uma ímpia igno­


rância, ousam dizer que as plantas e os vegetais têm alma,
escrevo este capítulo destinado aos mais simples. Digamo­
-lo, pois, com toda a clareza: as plantas têm vida física, mas
não alma. D iferente delas, o homem é designado como
animal dotado de razão por ter mente e ser capaz de dar
guarida ao conhecimento. Q uanto aos outros animais,
tanto os que vivem ao nível do solo como os que voam,
são dotados de voz, pois têm um espírito e uma alma.
Todos os seres que crescem e minguam são seres viventes,
porque vivem e desenvolvem-se. Contudo, isso não signi­
fica necessariamente que todos eles tenham uma alma.
Podem distinguir-se quatro espécies entre os seres vivos.
Uns são imortais e têm uma alma, que é o caso dos anjos.
Outros têm uma mente, uma alma e um espírito, que é o
caso dos homens. Outros têm um espírito e uma alma,
que é o caso dos animais. Outros ainda têm somente a
vida, e esse é o caso das plantas. A vida destas processa-se
não só sem alma, como também sem espírito, sem mente,
sem imortalidade. Mas todas as outras espécies não podem
existir sem vida. Sublinhe-se ainda que todas as almas sem
exceção alguma - e consequentemente a alma humana -
estão animadas de um contínuo movimento.

167. Quando a ideia de um prazer invade a tua imagina­


ção, num persistente assédio, sê vigilante e de nenhum
modo te deixes levar por ela! Faz uma pausa, lembra-te da
morte, considera o quanto é melhor para ti te libertares
dessa errância do prazer. E triunfarás!
SANTO ANTÃO 65

168. Tal como a paixão decorre do nascimento (efetiva­


mente, o que se torna vida está votado à corrupção) , assim
também o mal decorre da paixão. Não digas, pois, que Deus
não pôde erradicar o mal: o homem que fala desse modo
não passa de um insensato e o seu comportamento é o de
um tresloucado. A ser assim, teria sido necessário que Deus
erradicasse a matéria, pois trata-se de paixões próprias do
mundo material. Tenhamos presente que a lógica divina é
diferente: Deus erradicou o mal de entre os homens
dotando-nos de mente, de ciência, de conhecimento, de
discernimento do belo, a fim de que, conscientes de quanto
o mal nos é pernicioso, possamos dele fugir. Mas o homem
insensato segue o mal e vangloria-se disso: assemelha-se
assim a alguém que, apanhado numa rede, trava contra ela
um combate inglório, incapaz de erguer a cabeça e de con­
templar e conhecer Deus, esse Deus que criou todas as
coisas para a salvação e divinização do homem.

169. As criaturas, mortais como são, sabem que têm de


morrer, o que provoca nelas ressentimento. Ora a imortali­
dade é dada às almas santificadas pelo bem que nelas habita.
Por outro lado, as almas cativas da insensatez, infelizes delas,
sendo habitadas pelo mal, têm como destino a morte.

170. Quando, com ação de graças, te recolhes ao leito,


lembra-te das bênção divinas e de toda a providência que
nelas se reflete. Alegra-te e enche a tua mente de bons
pensamentos. Então, o sono do teu corpo será a vigília da
tua alma. Fechar os olhos supõe uma verdadeira visão de
Deus, e o teu silêncio, grávido do bem, ao fazer ouvir o
louvor divino, dá glória ao Deus do universo. Com efeito,
quando o homem repudia o mal, a sua ação de graças é em
si mesma mais agradável a Deus do que um magnificente
sacrifício. A Ele a glória pelos séculos dos séculos. Ám en.
SANTO EVÁGRIO
O Monge
SANTO EVÁGRIO, o Monge (345-399), nascido em lbora, na pro­
víncia do Ponto, na Turquia atual, por volta do ano 345, Evágrio
juntou-se a São Basílio e foi ordenado diácono por Gregório de
Nissa, irmão de São Basílio. Veio, no entanto, a preferir o contac­
to espiritual e teológico de Gregório Nazianzeno. Mais tarde, vi­
veu em Jerusalém junto da mística Melânia. Por volta do ano 383,
vai para o deserto de Nítria e em seguida para o lugar conhecido
como as Células, em convivência com vários amigos, entre os
quais Macário. O patriarca Teófilo deu apoio a este grupo, en­
quanto Evágrio era vivo, e, depois deste falecer, vieram a sofrer
muita hostilidade. A memória de Evágrio também foi afetada,
tendo desaparecido os seus escritos em grego. Apenas se conser­
varam os seus escritos em arménio e em siríaco. Evágrio deixou­
nos obras como o Tratado Prático, o Tratado Gnóstico, os Capítu­
los do Conhecimento e o Tratado da Oração. Evágrio é uma teste­
munha fundamental da espiritualidade dos Padres do Deserto dos
quais elabora uma síntese notável e profunda.
O discernimento das paixões
e dos pensamentos

Epítome

1. Entre os demónios que se nos opõem na prática da


vida ascética destacam-se, no combate que travam, os que
se ocupam dos apetites da gula, os que suscitam pensa­
mentos de avidez, os que nos incitam a procurar a adula­
ção dos homens. Todos os outros vêm após estes, atacan­
do por sua vez as pessoas já por estes atingidas.
Com efeito, não ficamos à mercê do espírito da luxúria
senão depois de ficarmos reféns da gula; nem a cólera se
apodera de nós se não estivermos lutando pela comida, ou
pelos bens materiais, ou pela adulação dos homens. E ao
demónio da tristeza só escapamos se a privação dessas
coisas não nos levar a cair no sofrimento. Tão-pouco es­
capa alguém ao orgulho - esse fruto primigénio do diabo -
sem primeiro ter erradicado a avidez, raiz de todos os
males, se é verdade que - di-lo Salomão - a pobreza faz um
homem humilde (Pv 1 0 ,4) . D igamo-lo sucintamente: um
homem só soçobra ao poder de um demónio depois de ter
sido ferido por aqueles que ocupam as linhas da frente.
Esse o motivo por que o diabo, naquele tempo, instilou no
Salvador estas três provocações: primeiro, exortando-o a
fazer das pedras pães; em seguida, prometendo-lhe o
mundo inteiro se, prostrado, o adorasse; finalmente, desa-
70 PEQUENA FILOCALIA

fiando-o a lançar-se do pináculo do templo, com a pro­


messa de que com esse gesto de obediência seria glo­
rificado por nada sofrer. Mas o S enhor, mostrando-se
superior a todas essas insídias, ordenou ao diabo que desa­
parecesse da sua frente (Mt 4, 1 - 1 0) . Ensina-nos deste modo
que só é possível afastar o diabo se, com desprezo, repu­
diarmos essas três provocações.

2. Todos os pensamentos de origem demoníaca insti­


lam na alma ideias relativas a obj etos sensoriais; daí que a
mente, com tais ideias nela gravadas, transporte consigo as
formas desses objetos. E deste modo, a partir da recogni­
ção do objeto que se lhe apresenta, a mente reconhece o
demónio que se aproxima. Por exemplo, se a face de al­
guém que me prej udicou ou insultou aparece na minha
mente, reconheço nisso que se aproxima o pensamento
demoníaco do ressentimento. Se é a recordação das rique­
zas ou das honrarias que sobrevém, então, de novo, será
claro o que me perturba. E, quando se trata dos outros
pensamentos, as coisas passam-se do mesmo modo: a
partir do objeto configurado na tua mente poderás inferir
qual é o demónio que, insidiosamente presente, o insinua.
Não pretendo com isto dizer que todas as lembranças
dessas coisas provêm dos demónios. É , com efeito, tam­
bém a própria mente, ativada pelo homem, que natural­
mente faz emergir as imagens dos acontecimentos ocorri­
dos. Falo, sim, de todas as lembranças que suscitam cólera
ou desejo em oposição à natureza. Com efeito, em virtude
da perturbação provocada por esses dois poderes, a mente
comete adultério e luta, incapaz de acolher a imagem do
Deus seu legislador. É que a luminosidade de uma tal ima­
gem só se lhe manifesta durante o tempo da oração, quan­
do não está cativa das representações sensoriais das coisas.
SANTO EVÁGRIO 71

3. O homem é incapaz de afugentar as lembranças pas­


sionais se estiver desatento ao desejo e à cólera. O desejo é
dissipado mediante os j ejuns, as vigílias, o dormir em con­
tacto com o solo; a cólera, essa, é apaziguada mediante a
longanimidade, o não ressentimento, a não malícia, os atos
de compaixão. De facto, destas duas paixões nascem quase
todos os pensamentos demoníacos que conduzem a men­
te à ruína e perdição.
É impossível vencer estas paixões a não ser mediante um
desprendimento total dos manjares, das riquezas, das hon­
rarias, e até do nosso próprio corpo, visto ser ele frequente­
mente flajelado por aqueles pensamentos demoníacos.
Há em tudo isso, pois, uma necessidade: imitar aqueles
que se encontram no mar, homens. Se assim não for tere­
mos já recebido deles o nosso galardão. É que um outro
naufrágio, pior do que o primeiro, abater-se-á sobre nós: o
provocado pelo vento contrário, o do demónio da vanglória.
Motivo pelo qual o Senhor, nos Evangelhos, instrui a
mente, nosso piloto, dizendo: «Guardai-vos de dar a vossa
esmola diante dos homens para por eles serdes vistos; se
assim não for nenhuma recompensa tereis da parte do
vosso Pai, o que está nos Céus » . E diz ainda: « Quando
orardes, não deveis ser como os hipócritas, que gostam de
orar nas sinagogas e às esquinas das ruas, de modo a
serem vistos pelos homens. Na verdade vos digo: obtive­
ram já o seu galardão. E, quando j ej uardes, não tenhais
uma face sombria, como fazem os hipócritas. Com efeito,
desfiguram as suas faces, com o fito de os homens se aper­
ceberem de que estão j ej uando. Na verdade vos digo: j á
obtiveram o seu galardão» (Mt 6,2. 5 . 1 6) . Em tudo isso, pois,
estej amos atentos ao modo como o médico das almas
exerce a sua terapêutica: à cólera trata-a com atos de com­
paixão; à mente purifica-a com a oração; ao desejo debi-
72 PEQUENA FILOCALIA

lita-o com o j ej um. Desse modo, o novo Adão é formado,


renovado à imagem do seu Criador, de modo que nele não
há (graças à impassibilidade) «macho e fêmea», nem (gra­
ças à unicidade da fé) «grego e judeu, circuncisão e incir­
cuncisão, bárbaro e cita, escravo e livre. Mas Cristo é tudo
e em todos» (cf. Gl 3,28; Cl 3, 1 0-1 1 ) .

Os sonhos

4. Impõe-se-nos agora investigar o modo corno, me­


diante as imagens que nos sobrevêrn durante o sono, os
demónios imprimem figuras e formas na nossa mente.
Com efeito, o que é habitual acontecer é a mente receber
essas figuas e formas ou mediante os olhos no ato de ver,
ou mediante os ouvidos no ato de ouvir, ou mediante
algum outro sentido; ou ainda a partir da memória, a qual,
ao ventilar coisas de que fez a experiência mediante o
corpo, as imprime na mente. Assim, parece-me, é ao venti­
larem a memória que os demónios imprimem na mente
essas coisas. E isso acontece no sono, quando a atividade
dos nossos sentidos corporais fica suspensa.
Sendo assim, impõe-se-nos perguntar corno é que os
demónios ventilam a memória. Será através das paixões?
Claro que sim, pois aqueles que se encontram num estado
de pureza e de impassibilidade já não são afetados dessa
maneira.
Mas há também urna atividade simples da memória que
provém ou de nós mesmos ou dos santos poderes, graças à
q ual nos relacionamos com os santos, conversando e
comendo com eles. Note-se ainda que no decurso do sono
a memória ventila, sem a participação do corpo, as ima­
gens que, com a participação do corpo, a alma recebe. E
SANTO EVÁGRIO 73

isso é claro: experimentamo-lo frequentemente durante o


sono quando o corpo está tranquilo.
E tal como é possível lembrarmo-nos da água não só
quando temos sede mas também quando não a temos,
assim também é possível lembrarmo-nos do ouro não só
quando o desejamos com cupidez, mas também quando o
desejamos de um modo diferente. O mesmo ocorre quan­
do se trata das outras coisas. Se assim, pois, podemos esta­
belecer uma distinção entre imagem e imagem, podemos
também reconhecer os perversos estratagemas dos demó­
nios. Sem perdermos de vista que eles, nas artimanhas de
que são pródigos, utilizam igualmente coisas exteriores
para produzirem imagens, tal como o ruído das ondas em
alto mar.

5. Quando a faculdade da ira se manifesta em nós de


um modo contrário à natureza, está a fazer o j ogo dos
demónios, e é deles uma excelente aliada nas suas malfei­
torias. Daí que, noite e dia, eles se esforcem por despertá­
-la. Mas quando a veem cativa da doçura, imediatamente
tentam daí desvinculá-la sob um qualquer pretexto apa­
rentemente j usto, com o fito de - uma vez ela violenta­
mente agitada - a usarem nos seus vergonhosos propósi­
tos. Daí se nos impõe, pois, não ser ela despertada nem por
justas nem por injustas razões. Tão-pouco devemos amea­
çar com uma perigosa espada aqueles que, na sua vulnera­
bilidade, capitulam: é que não poucas vezes acontece a
muitos serem influenciados pelas razões mais triviais. É
óbvio que ao falarmos deste modo não somos movidos
senão pelo desejo de sublinhar o quanto é importante a
capacidade da compreensão.
Diz-me: por que motivo travas tu inopinadamente um
combate? Sim, porque ages tu desse modo se em tão baixa
74 PEQUENA FILOCALIA

conta tens comida, riquezas, glória? Que te leva a alimen­


tar o cão se a tudo renunciaste? Se este ladra e ataca
outros homens, então é claro que há ainda bens que ele
quer guardar. Mas, pela minha parte, estou persuadido de
que isso põe em causa a oração pura, arruinada que fica
pela ira. E além disso espanta-me o teu esquecimento dos
santos: de David que clama: «Faz cessar a cólera e aban­
dona a ira» (SI 37,8) ; do Eclesiastes que nos exorta: «Remo­
ve a ira do teu coração e afasta o mal da tua carne» (Ecl
1 1 , 1 0) . O apóstolo Paulo, esse, por seu lado, admoesta os
homens a, sempre e em todas as circunstâncias, «levanta­
rem mãos santas, sem ira nem contenda» (1 Tm 2,8) . E por­
que não aprendemos com o misterioso e antigo costume
dos homens, que consiste em pôr os cães fora de casa
durante o tempo que dura a oração? Com isso se indica
que não deve haver sombra de cólera naqueles que oram.
E ainda as Escrituras: «Ü seu vinho é a cólera das serpen­
tes» (Dt 32,33) . Daí que os nazireus se abstenham do vinho.
Acerca da não necessidade de nos preocuparmos com
o que devemos vestir ou comer, penso ser supérfluo escre­
ver. É o próprio Salvador quem, nos Evangelhos, assim se
exprime: «Não andeis ansiosos quanto à vossa vida, acerca
do que deveis comer, ou beber, ou vestir» (Mt 6,25) . Uma tal
ansiedade é própria dos gentios e dos não-crentes, que re­
jeitam a providência do Senhor e negam o Criador. Entre
os cristãos um tal comportamento é tido como inteira­
mente rej eitável, pois creem que mesmo dois pássaros -
que se vendem por uma pequena moeda - estão sob o cui­
dado dos santos anj os (vd . Mt 1 0 , 2 9) . Outro, porém, é o
comportamento dos demónios: depois de infundirem pen­
samentos impuros avançam suscitando ansiedades desse
tipo, de modo que «Jesus afastou-se dali», por causa da
legião de ansiedades que povoa a nossa mente (vd. Jo 5 , 1 3) .
SANTO EVÁGRIO 75

Com isso a Palavra torna-se infrutífera, asfixiada pelas


nossas preocupações.
Repudiando, pois, esses pensamentos, confiemos ao
Senhor a nossa ansiedade, dando-nos por satisfeitos com
o que no presente temos; e vivendo uma vida pobre, inclu­
sive no vestuário, despoj emo-nos quotidianamente de
tudo aquilo que nos enche de vanglória. Se alguém pensa
ser vergonhoso envergar uma roupagem pobre, que olhe
para o santo Paulo que «no frio e na nudez», perseverante­
mente, aguardou a «coroa da justiça» (2Cor 1 1 ,27; 2Tm 4,8) .
Ora, já que o apóstolo nomeou este mundo como um an­
fiteatro e um estádio (vd. 1 Cor 9,24) , como pode alguém, ves­
tido com pensamentos ansiosos, correr para «O prémio
decorrente da chamada do alto que Deus nos dirige» (Fl
3 , 1 4) , ou «lutar contra os principados, contra as domina­
ções, contra os poderes deste mundo de trevas»? (Ef 6, 1 2) .
E u , instruído pelo conhecimento d o que se passa visivel­
mente, não vejo como isso sej a possível. Com efeito, tal
como um corredor é claramente tolhido pelo vestuário, -
podendo até este tornar-se para ele uma ameaça -, assim
também a mente o é pelos pensamentos ansiosos, se de
facto é verdadeira a sentença que diz «a tua mente está lá
onde está o teu próprio tesouro», em sintonização com es­
toutra «lá onde está o teu tesouro estará também o teu
coração» (Mt 6,2 1 ) .

6. No fluir dos pensamentos não há só aqueles que su­


primem, há também os que são suprimidos. Se os maus
pensamentos suprimem os bons, estes, por sua vez, supri­
mem os maus. É assim que o Espírito Santo tem em conta
a que pensamento damos prioridade, e nos condena ou
aprova segundo esse critério.
O que pretendo dizer é, de certo modo, o seguinte: se
76 PEQUENA FILOCALIA

tenho um verdadeiro e genuíno pensamento de hospitali­


dade, é devido ao Senhor que o tenho. Mas um tal pensa­
mento, ao sobrevir o ataque do tentador, é suprimido, e a
hospitalidade passa a ter como motivo o prestígio. Desse
modo, o pensamento da hospitalidade é-me ditado pelo
desejo de ser visto como hospitaleiro pelos homens. Mas
também este pensamento, por sua vez, é suprimido ao so­
brevir um pensamento melhor que me leva a praticar esta
virtude tendo em conta o S enhor e não com o fito de,
esforçadamente, obter a admiração dos homens.

7. Graças a uma prática diuturna da observação, temos


aprendido a estabelecer uma distinção entre pensamentos
angélicas, pensamentos demoníacos e pensamentos estri­
tamente humanos. Os pensamentos angélicas ocupam-se
da natureza das coisas e procuram o seu sentido espiritual.
Por exemplo: por que motivo existe o ouro, disperso à ma­
neira da areia, nas regiões baixas da terra, de tal modo que
só à custa de muita labuta e esforço pode ser encontrado,
e uma vez encontrado é lavado com água, submetido ao
fogo, posto nas mãos dos artesãos que o trabalham para
com ele fazer o castiçal do tabernáculo, e os incensórios, e
as taças (vd. Ex 25,22-39) , das quais - graças ao nosso Salva­
dor - o rei da Babilónia já não bebe (vd. Dn 5 ,2.3)? Cleópas,
esse, por seu lado, sentia que o coração lhe ardia graças a
estes mistérios! (vd. Lc 24,32) Já um pensamento demoníaco
ignora completamente tudo isso, prisioneiro que é de uma
arrogância filha da insensatez. Mais não pode fazer senão,
impudentemente, insinuar a aquisição de ouro material,
acenando com a riqueza e a glória que dele advirão. O
pensamento humano, finalmente ele, nem procura adqui­
rir ouro nem está empenhado em dilucidar de que é ele
símbolo: limita-se a levar à mente a imagem bruta do ouro
SANTO EVÁGRIO 77

desprovida de paixão ou de cupidez. Ocorre o mesmo


raciocínio em relação às outras coisas, sem empenho
algum numa boa interpretação.

8. Um demónio há - enganador é o seu nome - que


visita os irmãos, sobretudo de madrugada. É ele que con­
duz a mente do anacoreta, levando-a de cidade em cidade,
de aldeia em aldeia, de casa em casa, com o intuito de con­
seguir encontros singelos; mas a mente, vítima do engano
e rendida à sedução, persiste em longos encontros com
conhecidos, dando assim lugar à corrupção (para a qual os
outros com quem se encontra também contribuem) da
sua própria condição. E, a pouco e pouco, cada vez mais se
afasta do conhecimento de D eus e da virtude, mergu­
lhando no esquecimento da sua vocação. Por conseguinte,
impõe-se ao anacoreta não claudicar na vigilância, pois
não sabe nem de onde um tal demónio vem nem para
onde vai. Uma coisa, porém, é certa: não é ao acaso nem
sem um propósito diabólico que ele seduz o anacoreta le­
vando-o a realizar um tão longo périplo: o seu desejo, ao
agir assim, é corromper a condição do anacoreta, com o
fito de levar a sua mente - excitada por tudo isso e intoxi­
cada com os seus muitos encontros - a cair rapidamente
vítima quer do demónio da luxúria, quer do da cólera,
quer do da acédia, todos estes demónios que, mais do que
quaisquer outros, destroem a qualidade da sua condição e
pervertem o que poderia haver de belo na sua vida.
Nós, porém, se temos a intenção de conhecer sem
equívocos a astúcia desse demónio, de tal modo que pos­
samos resistir, não nos apressemos a falar-lhe, nem diga­
mos a outros o que está acontecendo connosco. Não fale­
mos do modo como ele nos constrange a fazer essas visitas
na nossa mente, nem como, a pouco e pouco, a vai domi-
78 PEQUENA FILOCALIA

nando. Agíssemos nós desse modo e faríamos com que ele


fugisse de nós em virtude de não aceitar ser visto fazendo
essas coisas. E nós nada mais saberíamos das coisas que
nos temos esforçado por aprender, tornados cativos de
uma sedução que nos empobreceria de um modo asfixian­
te. Deixemo-lo, portanto, - durante mais um dia ou dois -,
desempenhar o seu papel: compreenderemos assim a sua
intriga e, uma vez desmascarado, poderemos expulsá-lo
com a força de uma palavra esclarecida.
Mas tendo em conta que, durante a tentação, a tua
mente está enevoada, incapaz de se aperceber do que está
acontecendo, depois de o demónio ter entrado em deban­
dada senta-te e evoca em ti mesmo as coisas que te acon­
teceram: de onde partiste, aonde foste, em que lugar foste
possuído pelo espírito da luxúria, ou da acédia, ou da
cólera, e como é que ocorreram as coisas em que estiveste
envolvido. Examina a fundo tudo isso e confia-o à memó­
ria, para que tenhas com que envergonhar o demónio
quando ele de ti se reaproximar. Confronta-o com a deso­
cultação do que ele procurou ocultar-te, e não mais ele te
dominará. Se queres, pois, enfurecê-lo confunde-o mal ele
se aproximar, proclamando alto e bom som o nome do
primeiro, do segundo e do terceiro lugar em que ele te
introduziu. Com efeito, ele revela muita irritabilidade, in­
capaz de suportar a vergonha. E a prova de que lhe falaste
de um modo pertinente está nisto: sentes-te livre dos pen­
samentos que em ti ele inocula, incapaz como é de resistir
depois de ser claramente denunciado e desmascarado. É
preciso que a máscara lhe caia!
À derrota de um demónio dessa estirpe segue-se, além
de um profundo sono, uma letargia acompanhada de
grande frialdade nas pálpebras, incessantes bocejos e incó-
SANTO EVÁGRIO 79

modo pesadelo nos ombros. Tudo coisas que o Espírito


Santo dissipa mediante a oração ardente.

9. O ódio que pelos demónios podemos nutrir contri­


bui em não pequena escala para a nossa salvação, ajudan­
do-nos a viver uma vida de santidade, na força do Espírito
divino, propiciada na comunhão com D eus. Um ódio
desses é, porém, sempre vulnerável, pois os espíritos
amantes dos prazeres anulam-no e encorajam a alma a re­
gressar à convivência com as suas antigas e nada recomen­
dáveis amizades. Mas a tais amizades - ou antes a essa gan­
grena de tão difícil tratamento - o médico das almas
cura-as mediante o desencanto. Permite, com efeito, que
noite e dia sejamos por elas tentados, de tal modo que a
alma regressa ao seu ódio original, instruída para, à seme­
lhança de D avid, dizer ao Senhor: «Odiava-os com um
ódio total, e tornaram-se para mim inimigos» (SI 1 3 9,22) .
Com efeito, um homem desses é capaz de odiar assim os
demónios seus inimigos quando não peca nem em ato
nem em pensamento - o que é apanágio de uma acrisolada
impassibilidade.

10. E que direi eu do demónio que reduz a alma à in­


sensitividade? Até temo escrever sobre isso! Com efeito, a
alma, no momento em que ele está presente, perde a con­
dição que lhe é própria, e com essa perda é o temor de
Deus que se esvai e uma vida de piedade que se esfuma. O
pecado deixa então, aos olhos da alma, de ser visto como
pecado, a transgressão não é mais pensada como aquilo
que é, o julgamento e o castigo eterno não passam de pací­
ficas palavras que se dissipam na voragem da memória. E
troça dos tormentos infligidos pelo fogo. Não deixa de
80 PEQUENA FILOCALIA

confessar Deus, mas ignora os seus mandamentos, cativa


como está da mais funesta das irresponsabilidades.
Tu, porém, ouve isto, com os ouvidos bem abertos: tu
podes, muito bem, bater piedosamente no peito, enquanto
ela, sem disso se aperceber, é levada ao pecado. Tu citas as
Escrituras, mas ela, insensível, nada ouve. Tu apontas-lhe
as suas vergonhas, que até aos mais marcados pela vida
fazem corar, e ela ignora o que dizes. Tu alegas a sua de­
sonra, provocadora de repulsa, e ela mantém a sua indife­
rença, como um porco que fecha os olhos e investe contra
a paliçada . Pobre alma, cativa de um assédio que torna
estéril tudo aquilo que nela podia ser belo!
Trata-se, com efeito, de um demónio que se infiltra ma­
treiramente com os pensamentos de vanglória que asso­
lam a alma. Por isso, «se esses dias não fossem abreviados
nenhum ser vivente seria salvo» (Mt 24,22) . Este é, efetiva­
mente, um dos demónios que raramente assediam os
irmãos que vivem numa comunidade. E o motivo é expli­
cável: enq uanto esses irmãos ao serem oprimidos por
infortúnios vários, quer se trate de doenças, quer de pri­
sões, quer de ameaças de morte, vivem situações propícias
ao afugentamento desse demónio (pois a alma, a pouco e
pouco compungida, é levada à compaixão e com isso a
cegueira demoníaca dissipa-se) , nós, no deserto, não pas­
samos por essas coisas e é raro termos doentes entre nós.
Foi para afugentar sobretudo esse demónio que o Senhor
nos ordena no Evangelho que não nos esqueçamos dos
doentes e visitemos os prisioneiros. Porque, - assim diz
ele -, «estava doente e fostes ver-me» (Mt 25 ,36) .
Não percamos, contudo, de vista isto: se um anacoreta,
assediado por esse demónio, não nutre pensamentos im­
puros nem, atacado pela acédia, deixa a sua cela, isso deve­
-se a ter recebido, vindas dos céus, perseverança e casti-
SANTO EVÁGRIO 81

dade. Fortalecido pelo poder do alto, sente-se feliz pelo


modo como vive uma tal impassibilidade. Aqueles, porém,
que professam praticar a piedade, mas voluntariamente se
relacionam com pessoas mundanas, esses devem precaver­
-se cuidadosamente contra esse demónio.
Quanto a mim, envergonho-me diante dos homens de
dizer ou de escrever mais a seu respeito.

O demónio da acédia

11. Todos os demónios, com uma única exceção, ensi­


nam a alma a amar o prazer: o demónio da acédia é essa
excepão, pois constrói para si um outro esquema de atua­
ção. Empenha-se, efetivamente, em corromper os pensa­
mentos daqueles em quem entra, bem como em cortar e
secar todo o prazer da alma, instilando nela a inércia, a
tibieza, a preguiça. De facto, no homem assim colonizado
até os ossos secam (Pv 1 7,22) . Faz parte de uma tal estratégia
demoníaca atacar o anacoreta dando-lhe uma falsa sensa­
ção de imunidade e autossuficiência, iludido como fica de
ser capaz de manter uma distância entre ele e as coisas
deste mundo, numa sensação de superioridade no que
concerne o prazer, do qual se afasta. Mas ao persistir e in­
sistir gera no anacoreta pensamentos insinuantes cuj o
móbil é levar a alma à capitulação e à fuga. O santo Job sen­
tiu e experimentou isso mesmo, ele que, atormentado por
esse demónio, exclamou: «Oxalá me pudesse destruir a mim
mesmo, ou então pedir a um outro que o faça!» (Job 30,24) .
Símbolo deste demónio é a víbora. Quando usado à
medida da necessidade humana, o seu veneno é um antí­
doto contra o veneno de outros animais, mas quando
usado sem conta, peso e medida torna-se mortal para o ser
82 PEQUENA FILOCALIA

vivente. Foi a esse demónio que Paulo entregou o trans­


gressor de Corinto, motivo que o levou a empenhar-se de
novo prontamente em escrever aos Coríntios: «Redobrai
de amor para com ele . . . para que ele não sej a devorado por
uma tristeza excessiva» (2Cor 2 , 7-8) . O Apóstolo sabia,
porém, que esse espírito que aflige os homens pode tam­
bém proporcionar-lhes um bom arrependimento. Daí que
também S. João, o Batista, dissesse aos que eram incitados
por esse demónio e procuravam refúgio em Deus: «Raça
de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira futura? Pro­
duzi frutos dignos de arrependimento e não vos iludais a
vós mesmos dizendo: "Temos Abraão como nosso pai! "»
(Mt 3 ,7-9) . Tem, pois, presente isto: todo aquele que imita
Abraão, e sai da sua terra e da sua parentela, torna-se mais
forte do que este demónio! (cf. Gn 1 2 , l s)

12. Se alguém domina a cólera domina os demónios.


Pelo contrário, aquele que dela é escravo é alheio à vida
monástica e um estranho para os caminhos do nosso Sal­
vador. Com efeito, do Senhor se diz que «ensina os cami­
nhos aos doces. » (cf. Sl 25,9). Por esse motivo a mente dos
anacoretas dificilmente é aprisionada quando trilha com
firmeza o caminho da doçura. É que, efetivamente, nenhu­
ma outra virtude há tão temida pelos demónios como a
doçura. O grande Moisés possuía-a, ele que foi chamado o
mais doce de todos os homens (cf. Nm 1 2,3) . E David, esse
servo do Senhor experimentado na vida, mostrou ser ela
uma virtude digna da memória divina quando diz de si
mesmo: «Lembra-te, Senhor, de David e de toda a sua do­
çura» (cf. S I 1 3 2 , 1 -2) . É, porém, o nosso Salvador, ele pró­
prio, quem nos exorta a sermos seus imitadores na doçura,
ao dizer: «Aprendei de mim, que sou doce e humilde de
coração, e encontrareis descanso para as vossas almas» (Mt
SANTO EVÁGRIO 83

Assim, pois, se alguém se abstém de alimentos e be­


1 1 ,29) .
bidas, mas é feito prisioneiro da cólera em virtude de maus
pensamentos, esse tal é semelhante a um navio que navega
tendo o demónio por piloto. Por conseguinte, tenhamos
sempre presente este imperativo: mantém dominado o teu
cão de guarda, e treina-o para destruir apenas os lobos
sem devorar as ovelhas. Mostra assim a maior doçura para
com todos os homens.

A vanglória

13. Entre todos os pensamentos, o da vanglória é o


único que exerce um domínio ilimitado, presente quase
em toda a parte, cavilosamente abrindo as portas a todos
os outros demónios, qual traidor que entrega uma cidade.
Ao agir desse modo não só vilipendia a mente do anacore­
ta, enchendo-a com muitas palavras e noções, como tam­
bém polui as orações com que ele diligentemente se es­
força por curar os traumas da alma. E assim, todos os
outros demónios até então inativos se mancomunam para
dar força a esse mau pensamento, e através dele voltam a
entrar nas almas, fazendo com que as últimas coisas sejam
piores do que as primeiras (cf. Mt 1 2,45) .
De um tal pensamento nasce outro: o do orgulho que,
desde os céus, proj eta na terra o selo da semelhança e a
coroa da beleza. Por conseguinte, que não te seduzam as
imagens do engano, nem te torne cativo um tal pensa­
mento! Abandona-o sem delongas, de molde a não entre­
gares a tua vida a outros e a tua existência aos ímpios.
Livra-te com denodo da impiedade! (cf. P v 5 , 9) . E tem pre­
sente isto : orar intensamente e abster-se de fazer ou de
dizer voluntariamente o que quer que seja favorável a um
84 PEQUENA FILOCALIA

tal demónio, afugenta-o. Não abandones, pois, a escola da


oração, nem afrouxes a disciplina do rigor!

14. Quando a mente do anacoreta atinge apenas um pe­


queno grau de impassibilidade, não se fica por meias
medidas: monta o cavalo da vanglória e lança-se de ime­
diato em direção às cidades, empaturrada que está com os
louvores da glória. Mas por um desígnio providencial, o
espírito da luxúria apodera-se dela e encerra-a numa po­
cilga. O anacoreta aprende assim a não deixar o leito antes
de recuperar a saúde, e a não imitar os enfermos desobe­
dientes que, antes de estarem completamente curados,
permitem-se caminhadas e banhos prematuros, com o que
voltam a adoecer. Fiquemos, pois, tranquilos e mante­
nhamo-nos vigilantes dentro de nós mesmos, a fim de,
crescendo na virtude, podermos resistir com tenacidade ao
mal. Não percamos de vista isto: é crescendo no conheci­
mento que cresceremos na contemplação, pois conhecê­
-la-emos de variadas maneiras, atingindo assim uma visão
mais clara da luz do nosso Salvador.

15. Está fora do meu alcance descrever todas as malfei­


torias dos demónios : assalta-me, com efeito, a vergonha
quando evoco em detalhe as suas artimanhas, e além disso
temo ferir na sua sensibilidade os mais simples dos meus
leitores. Não obstante, exorto-te a escutar os malefícios do
espírito da luxúria. Quando alguém atinge a impassibili­
dade, na parte da alma onde se geram os apetites, e os pen­
samentos vergonhosos perdem com isso a sua força, é a
altura em que esse demónio insinua imagens de homens e
mulheres divertindo-se uns com os outros, e faz do ana­
coreta um espectador de atos e de gestos libidinosos.
Trata-se, porém, de uma tentação que pode não ser dura-
SANTO EVÁGRIO 85

doira, pois a oração intensa e uma dieta frugal, acompa­


nhadas de vigílias e de exercícios de contemplação espiri­
tual, dissipam-na como se de uma nuvem sem água s e
tratasse. Vezes há, porém, e m que ela toca a carne, infla­
mando-a de um modo irracional: nesses casos serve-se de
toda a sua malícia para operar mil outros artifícios que não
convém tornar públicos nem transmitir por escrito.
É útil, no combate a tais pensamentos, fazer desenca­
dear em nós uma viva ira contra esse demónio. Com efeito,
ele teme-a, e teme-a sobremaneira, pois ela é capaz de
arruinar os seus desígnios. É esse o sentido do «irai-vos e
não pequeis» (SI 4,5) . Quando se trata da alma e dos com­
bates por ela travados, é um bom remédio: ajuda-a de um
modo particular a resistir à insídia inerente às tentações.
Pode acontecer, porém, o demónio da luxúria agir mimeti­
camente, pois não lhe é completamente estranho insinuar,
ele também, imagens quer dos nossos pais quer de amigos
ou conhecidos a serem vítimas das injustiças de homens
perversos. Ao fazê-lo provoca a ira do anacoreta, ao ponto
de o levar a dizer ou praticar alguma coisa má contra esses
personagens imaginários. É necessário, pois, que o ana­
coreta esteja atento, e extirpe rapidamente do espírito tais
imagens, de molde a não ficar reduzido, no momento da
oração, a um mero tição fumegante. Em tentações desse
tipo os coléricos sucubem, sobretudo aqueles que facil­
mente se inflamam. Esses tais não atingiram ainda a
oração pura nem, por consequência, o conhecimento do
nosso Salvador Jesus Cristo.

16. O Senhor confiou ao homem pensamentos dignos


deste mundo, assim como se confiam ovelhas ao bom
pastor. Ora, está escrito que Ele dotou o homem, no seu
coração, do entendimento necessário para lidar com tais
86 PEQUENA FILOCALIA

pensamentos (cf. Heb 1 0, 1 6) . E, para o ajudar, concedeu-lhe


juntamente com a ira a força do desejo a fim de, mediante
a ira, afugentar os pensamentos próprios dos lobos e, me­
diante o desejo, o levar, amorosamente, a acarinhar as ove­
lhas, mesmo quando há tempestade e somos açoitados por
chuvas e ventos. Além disso, deu-lhe ainda uma lei para
poder apascentar as ovelhas, tal como lhe deu verdes
pastos e águas tranquilas (cf. SI 23) , um saltério e uma cítara,
uma vara e um bordão, a fim de ser alimentado e vestido a
partir desse rebanho, e poder colher a erva das montanhas.
Está, com efeito, escrito «quem é que apascenta um reba­
nho e não se alimenta do seu leite?» (1 Cor 9,7) . O anacoreta
deve, pois, velar, noite e dia, pelo seu rebanho, para que ne­
nhum cordeiro sej a presa dos animais selvagens ou dos
ladrões. Aconteça uma tal coisa num qualquer vale, e ele
deve imediatamente arrancar o animal da boca do leão ou
do urso (cf. 1 Sm 1 7,34s) .
Pode mesmo acontecer, se o ódio tomar conta de nós,
que o pensamento que nutrimos acerca de um irmão se
torne presa dos animais selvagens; ou então que o pensa­
mento acerca de uma mulher seja licencioso; ou ainda que
o pensamento acerca do dinheiro e do ouro seja alimen­
tado pela cupidez. Note-se que até mesmo os pensamen­
tos acerca dos santos carismas podem ser feridos pela van­
glória. Sim, a beleza que há nos pensamentos justos não
têm a garantia absoluta de imunidade. E passa-se o mesmo
com os outros pensamentos quando as paixões deles se
apoderam.
Não percamos, pois, de vista tudo o que dissemos. Im­
põe-se-nos, com efeito, uma estrita observância, não só
durante o dia como também de noite, durante as vigílias.
O quanto as imaginações libidinosas nos levam a perder o
que já tínhamos adquirido ! A esse respeito se exprime o
SANTO EVÁGRIO 87

santo Jacob: «Não te trouxe uma ovelha vítima de animais


selvagens; sou eu quem pagava as que eram roubadas de
dia e de noite; eu era devorado pelo calor durante o dia e
pelo frio durante a noite, e o sono afastava-se dos meus
olhos» (Gn 3 1 ,3 9-40) .
Se uma certa indolência ou indiferença se apodera de
nós como consequência do trabalho, subamos decidida­
mente à rocha da gnose e toquemos a harpa, dedilhando
as cordas com as virtudes outorgadas pelo conhecimento.
E apascentemos de novo o rebanho no sopé do monte
S inai, a fim de que o D eus de nossos pais nos interpele
também da sarça (cf. Ex 3 , l ss) e nos dê a saber as razões dos
sinais e dos prodígios.

17. Mediante a contemplação de todas as eras da criação,


a nossa natureza espiritual, morta pela maldade, recebe
uma nova vida dada por Cristo. E através do conhecimen­
to espiritual (essa bendita gnose!) que Ele de si mesmo dá,
o Pai revivifica a alma que morreu na morte de Cristo.
D i-lo S. Paulo à sua maneira: «Se morremos com Cristo,
cremos que viveremos também com Ele» (2Tm 2 , 1 1 ) .

1 8 . Quando a mente se despoja d o homem velho, e s e


reveste j ubilosamente do homem novo (esse milagre do
Espírito que nos cria e recria!), experiencia o indizível, que
não é outro senão o indizível vivido pelo orante que vê no
momento da oração a sua própria natureza semelhante à
safira ou a uma cor celeste. É profundamente significativo
que a isto a Escritura chama o lugar de Deus, visto pelos
antigos no monte Sinai (cf. Ex 24, 1 0) .

1 9 . Entre o s impuros demónios, alguns tentam o ho­


mem na sua condição de homem; outros atormentam-no
88 PEQUENA FILOCALIA

como se de um animal irracional se tratasse. Os primeiros,


quando nos assediam, inoculam em nós pensamentos de
vanglória, ou de orgulho, ou de inveja, ou de censura, tudo
coisas que não atingem nenhum dos seres irracionais. Já
os outros, no seu assédio, desencadeiam a cólera e o desejo
de um comportamento contrário à natureza. Trata-se em
ambos os casos de afeções que, quando se manifestam em
nós, se ocultam sob a nossa natureza racional e espiritual.
Por esse motivo, o Espírito Santo comunica-nos pensa­
mentos coadj uvantes: «Eu disse: vós todos sois deuses, e
filhos do Altíssimo, mas como homens morrereis, e como
príncipes soçobrareis» (SI 82, 6-7) . Por outro lado, àqueles
que se movem irracionalmente, que diz Ele? Oiçamo-lo:
«Não sejas irracional como um cavalo ou um macho, cujas
mandíbulas devem ser açaimadas com um cabresto ou um
freio, caso corras o risco dos seus ataques» (SI 32,9) . Ora, se
«a alma que peca morrerá» (Ez 1 8 ,4) , então é do domínio do
óbvio que os homens, ao morrerem, são sepultados por
homens, enquanto os animais irracionais, uma vez mortos
e caídos por terra, são devorados pelos abutres ou pelos
corvos, dos quais as crias ou «invocam» o Senhor, ou se
embebem no sangue. «Que aquele que tem ouvidos para
ouvir, ouça!» (Mt 1 1 , 1 5 ) .

20. Quando um inimigo se aproxima de ti e te deixa fe­


rido, podes ser levado pelo desejo de voltar contra o seu
coração a sua espada. E podes até mesmo nutrir um tal
sentimento de vingança lembrando-te de palavras da Es­
critura (cf. SI 37, 1 5) . Ora bem, não te precipites! Dilucida em
primeiro lugar e por ti mesmo, de um modo responsável, o
pensamento com que ele te feriu, e tenta assim compreen­
der o que nesse pensamento há para ter provocado em ti
um tão grande tormento da mente. S uponhamos, por
SANTO EVÁGRIO 89

exemplo, que és assediado pelo pensamento do amor do


dinheiro. Nesse caso, distingue os elementos que entram
em jogo: a mente (hospedeira do pensamento), a ideia do
ouro, o próprio ouro, a paixão da cupidez. Em seguida in­
terroga-te no que é que, em tudo isso, está o pecado. Esta­
rá na mente? Mas como pode ser isso, se ela é imagem de
Deus? ! Na ideia do ouro? Mas como é que uma pessoa
inteligente pode admitir uma tal coisa? ! É então o ouro
que é pecado? Mas a ser assim, por que foi ele criado? ! De
tudo isso se pode concluir que a causa do pecado é um
quarto elemento, que não consiste numa coisa existente
nela mesma, nem na ideia de coisa. Ora esse quarto ele­
mento consiste num prazer inimigo do homem, gerado
pelo livre-arbítrio, que constrange a mente a fazer um mau
uso das coisas criadas por Deus. Está em causa, pois, um
prazer que, segundo cremos, a lei de Deus interdita. Pois
bem: se dilucidares cuidadosamente o que está em causa,
esse pensamento dissipar-se-á, dissolvido na tua própria
reflexão, e o demónio fugirá de ti, já que a tua mente é con­
duzida às alturas mediante um tal conhecimento reflexivo.
Se, porém, não quiseres servir-te da sua própria espada
para o atacar, poderás lançar mão da tua funda: com ela
arremessa contra ele uma pedra tirada da tua sacola de
pastor (cf. 1 Sm 1 7) . E interroga-te nestes termos: - Como é
possível que anjos e demónios intervenham no nosso
mundo, enquanto nós não podemos aceder aos seus mun­
dos, pois não está ao nosso alcance nem fazer com que os
anj os se aproximem mais de Deus, nem tornar ainda mais
impura a impureza dos demónios? ! E ainda: como é que
lúcifer, o astro da manhã, se precipitou dos céus sobre a
terra (cf. Is 1 4, 1 2) vendo o mar como um vaso de unguentos e
o tártaro do abismo como uma presa? ! Ele que faz ferver o
90 PEQUENA FILOCALIA

abismo como uma marmita e lança o desconcerto entre


todos os seres, pondo em cena as patranhas da sua malícia!
Uma tal reflexão fere gravemente o demónio e põe em
debandada todo o seu corpo de batalha. Mas isso só é pos­
sível àqueles que passaram de algum modo por um pro­
cesso de purificação e atingiram uma determinada visão da
essência interior das coisas criadas. Os impuros, esses, in­
capazes dessa reflexão, encontram-se desarmados p ara
travar o combate necessário; e mesmo se tivessem sido
instruídos por outros, nada entenderiam em virtude do pó
e do tumulto produzidos pelas paixões durante o combate.
É , com efeito, necessário que as tropas inimigas se aquie­
tem para que Golias, e só ele, defronte o nosso David (cf.
1 S m 1 7) . Por conseguinte, no combate travado contra os
pensamentos impuros não percamos de vista essa dupla
necessidade: a análise do pensamento que nos ataca e a
demanda das questões relativas à nossa essência interior.

21. Quando os pensamentos impuros batem em deban­


dada, perguntemo-nos por que razão ocorre uma tal fuga.
Capitula o inimigo perante a impossibilidade de um pen­
samento desses se tornar ação? Ou será em virtude do
grau de impassibilidade por nós atingido, o que reduz o
inimigo à impotência? Por exemplo, se um anacoreta se
crê detentor do governo espiritual de uma cidade, não é
por muito tempo que um tal pensamento o habita, pois na
prática trata-se de algo irrealizável. Mas se, por hipótese,
acontece isso e alguém se torna o guia espiritual de uma
cidade sem que tal coisa o afete, então significa que goza
da bem-aventurança da impassibilidade. Critério seme­
lhante pode ser aplicado a outros pensamentos. Devemos,
pois, conhecer estas coisas a fim de avaliarmos o nosso
empenho e a nossa força, e assim discernir se atravessá-
SANTO EVÁGRIO 91

mos ou não o Jordão e nos encontramos próximo da ci­


dade das palmeiras, ou se, pelo contrário, estamos ainda no
deserto e somos fustigados pelo inimigo.
Com efeito, assim me parece, o demónio da cupidez é
extraordinariamente complexo, dotado como é da habili­
dade de se travestir no exercício dos seus enganos. Não
poucas vezes, sentindo-se frustrado pelo rigor que pomos
na nossa ascese, encarna o papel de sábio administrador e
amigo dos pobres: exorta-nos a preparar a receção de es­
trangeiros cuj a chegada é improvável, ou a enviar provi­
sões a necessitados; faz-nos, mentalmente, visitar prisões
na cidade e resgatar os cativos; insinua que devemos ligar­
-nos a mulheres ricas e nomeia aqueles que devem benefi­
ciar dos seus favores; a outros, abastados, exorta-os a
renunciar ao mundo. Deste modo, tendo assim ludibriado
a alma, mergulha-a em cúpidos pensamentos e entrega-a
ao demónio da vanglória. E com isso é o desnorte com­
pleto que sobrevém!
Trata-se de um demónio que se insinua na imaginação
de um grande número daqueles que, na prática dessas
obras de misericórdia, louvam o Senhor. Leva, por exem­
plo, alguns, a pouco e pouco, a pensar que têm méritos
para ser ordenados sacerdotes, predizendo para breve a
morte do sacerdote em função. E, insinuando essa ideia,
exorta-os a não desertar. Assim, a nossa perturbada mente,
sob a pressão desses pensamentos, por um lado insurge-se
contra todo aquele que (tal como ela imagina) se opõe a
essa ideia da ordenação, e, por outro lado, acolhe cordial­
mente todo aquele que apoia essa ideia, concedendo-lhe
até favores. Aos opositores, em pensamento, gostaria de
poder livrar-se deles, entregando-os aos juízes e recomen­
dando a sua expulsão da cidade.
Assim, nesse turbilhão interior de pensamentos irrom-
92 PEQUENA FILOCALIA

pe o demónio do orgulho, provocando o aparecimento de


sinais luminosos na atmosfera da cela, lançando dragões
alados e, por fim, esforçando-se por nos fazer perder o uso
da razão. Mas de nós se espera que, tendo impetrado a
erradicação de tais pensamentos, vivamos com ação de
graças na pobreza. Com efeito «nada trouxemos para este
mundo, e óbvio é que nada podemos dele levar. Mas se
temos alimento e vestuário, contentemo-nos com isso»
( 1 Tm 6,7-8) . Lembremo-nos ainda das palavras de Paulo :
«Ü amor do dinheiro é a raiz de todos os males» ( 1 Tm 6, 1 0) .

22. Todos os pensamentos imp uros resultantes das


nossas paixões não nos abandonam enquanto elas dura­
rem, e acabam por conduzir a mente à ruína e perdição.
Com efeito, tal como a ideia do pão persiste no faminto
por causa da fome, e a ideia da água no sedento por causa
da sede, assim também as ideias das outras coisas mate­
riais, bem como os pensamentos vergonhosos, (ideias e
pensamentos gerados por um excesso de alimentos e de
bebidas) , persistem em nós por causa das paixões.
No concernente aos pensamentos de vanglória, e a
outros que tais, passa-se o mesmo. Não é possível à mente,
atordoada por pensamentos desse jaez, aparecer perante
Deus e cingir a coroa da justiça. Abatida com tais pensa­
mentos, a mente é semelhante não só ao infeliz do Evan­
gelho, que recusou o banquete do conhecimento de Deus
(Lc 1 4, 1 8) , como também ao homem que, com as mãos e os
pés amarrados (cf. Mt 2 2 , 1 3 ) , foi lançado nas trevas exterio­
res (com efeito, o Senhor, que o tinha convidado, julgou-o
indigno para o banquete do casamento, pois a veste que
envergava não era senão tecida com pensamentos dessa
estirpe) . Efetivamente, a veste nupcial requerida não é
SANTO EVÁGRIO 93

outra senão a impassibilidade da alma racional que renun­


ciou aos desejos mundanos.
A razão pela qual o conhecimento de Deus é anulado
pelas ideias das coisas sensoriais que fazem ninho na
mente, foi já exposta nos capítulos sobre a oração.

23. Entre os demónios que se opõem à prática da ascese


- dissemo-lo já no princípio - há três grupos que ocupam
posições de vanguarda, vindo atrás deles todo o exército
inimigo. Esses três grupos lutam na linha da frente e,
mediante pensamentos impuros, seduzem as nossas almas
levando-as à prática do mal. Trata-se de demónios que nos
instigam à luxúria alimentar e à concupiscência, indu­
zindo-nos também a procurar a glória humana. Por con­
seguinte, tenhamos isto presente: se, de facto, desej amos a
oração pura guardemo-nos da cólera, e se procuramos a
moderação dominemos o ventre. Não empaturres de pão
o estômago e sê comedido quanto à água. Empenha-te
com afinco na oração e afugenta de ti todo o rancor. Que
as tuas palavras provenham do Espírito S anto e que a
porta das Escrituras se abra para ti. Se assim for atingirás a
impassibilidade do coração, e ao orares verás a tua mente
brilhar qual estrela refulgente.
A oração
Cento e cinquenta e três capítulos

Ardia eu na febre das paixões impuras e eis que, tal


como das outras vezes, a receção da tua piedosa carta me
restaurou. Lê-la foi um verdadeiro refrigério, um recon­
forto para a minha atormentada mente, submetida como
tem estado a tão execráveis vergonhas. Vejo-te neste teu
gesto como um feliz imitador daquele que foi o nosso
grande precetor e mestre, o bem-aventurado Macário. No
que nada há de surpreendente, pois tem sido sempre assim
o teu comportamento, à semelhança do bem-aventurado
Jacob (cf. Gn 29,20-30) . Com efeito, mutatis mutandis, como
paga dos teus diligentes esforços para ganhar Raquel foi-te
dada Lea, e só tempos depois, isto é, cumpridos mais sete
anos, obtiveste a tão desejada Raquel.
No que me concerne, devo confessar nada ter apanha­
do depois de uma noite inteira de labuta (cf. Lc 5 ,5) . Con­
tudo, confiante na tua palavra, lancei a rede e apanhei uma
grande quantidade de peixes, não muito grandes, assim
julgo, mas em elevado número, pois eram cento e cin­
quenta e três (cf. Jo 2 1 , 1 1 ) : envio-tos, tal como mo solicitaste,
no cesto do amor, na forma de cento e cinquenta e três
capítulos.
Nutro por ti uma não pequena admiração e alegra-me
sobremodo o subido interesse que mostras por textos
sobre a oração semelhantes a este. Com efeito, não te satis-
SANTO EVÁGRIO 95

fazem aqueles que estão ao alcance de qualquer um e que


pouco mais são do que tinta no pergaminho: mostras, isso
sim, um particular interesse por aqueles que o amor e a
generosidade gravam na mente. Ora, sendo que todas as
coisas, no dizer de Jesus, o sage, se processam aos pares (cf.
Sir 42 ,24) , peço-te que ao aceitares a letra deste meu escrito
tenhas em conta e compreendas o seu espírito, pois cada
palavra escrita pressupõe a mente: de facto, onde não há
mente não há palavra escrita. Analogamente, a oração su­
põe, ela também, dois modos: um ativo, o outro contem­
plativo. O mesmo se aplica aos números: literalmente são
quantidades, mas podem também significar qualidades.
Dividi, efetivamente, este meu texto sobre a oração em
cento e cinquenta e três capítulos, e com isso ofereço-te
um cardápio inequivocamente evangélico (cf. Jo 2 1 , 1 1 ) . Nele
saborearás o encanto inerente a um número simbólico
que combina duas figuras: uma triangular, outra hexago­
nal. Representa-se assim simultaneamente o conhecimen­
to espiritual da Trindade e a circunscrição do mundo cria­
do em seis dias. Enquanto o número cem é, em si mesmo,
quadrado, o cinquenta e três é triangular e esférico, o vinte
e oito é triangular, e o vinte e cinco esférico: com efeito,
cinco vezes cinco é, sabêmo-lo, vinte e cinco. Tens assim,
no número vinte e cinco, não somente a figura quadrada
relativa ao quaternário das virtudes, mas também o círculo
relativo ao conhecimento verdadeiro deste mundo, por
causa do curso circular dos tempos. Eles, de facto, desen­
rolam-se semana após semana, mês após mês, ano após
ano, estação após estação, tal como o vemos pelo movi­
mento do sol e da lua (e temos assim o verão a seguir-se à
primavera, et cetera) . O triângulo poderia igualmente expri­
mir a ideia da Trindade Santa. Segundo uma outra inter­
pretação, se considerarmos triangular o cento e cinquenta
96 PEQUENA FILOCALIA

e três, podemos ver nele a prática, a contemplação natural,


a teologia; ou ainda a fé, a esperança, o amor; ou então o
ouro, a prata, as pedras preciosas. E já basta quanto a esse
número.
Quanto a estes capítulos, não os desprezes na sua humil­
de aparência. Faço-te este pedido porque não ignoro o
quanto sabes contentar-te não só com o muito mas também
com o pouco. Tens, sem dúvida, presente no teu espírito a
lembrança daquele que não rejeitou as duas moedinhas da
viúva, aceitando-as até com um maior reconhecimento do
que o expresso em relação às ofertas ricas de muitos
outros (cf. Lc 2 1 ,3) .
Manifestando benignidade para com os teus verdadei­
ros irmãos, ama-os sem desfalecimento. E exorta-os a
orarem por qualquer um que estej a enfermo para que,
curado, se levante do catre, o tome em suas mãos, e cami­
nhe pela graça de Cristo (cf. Ez 2 , 1 1 - 1 2) . Ám en.

1. Q uando desej amos obter o bom perfume fazemos


uma mistura, em partes iguais, segundo a lei (cf. Ex 30,34) ,
d e incenso puro, bálsamo, mirra, ónix. É o quaternário das
virtudes que, sendo íntegras e iguais, não trairão a mente.

2. A alma purificada pela observância dos mandamen­


tos confere à mente a firmeza necessária para viver a con­
dição do orante.

3. A oração (tenhamos isto bem presente na mente) é


uma convivência da mente com Deus. Por conseguinte,
quão grande não tem de ser a estabilidade da mente para
que um tal convívio se mantenha vivo e, sem intermediário
algum, se manifeste fecundo para a criação da tão desejada
atitude orante!
SANTO EVÁGRIO 97

4. Se Moisés, ao tentar aproximar-se da sarça ardente,


teve de tirar as alparcas dos pés (Ex 3,5), como é que tu, que
alimentas o desejo de ver Aquele que é infinitamente mais
alto do que o mais alto de todo o pensamento e de todo o
sentimento, não te libertas dos pensamentos passionais? !

5 . Que na tua oração implores sobretudo o dom das


lágrimas, de modo a, mediante o luto, amaciares a dureza
da tua alma e, confessando ao Senhor a tua iniquidade,
seres por Ele perdoado. Manifestarás assim a integridade
do teu desejo e a sensatez da tua ação.

6. Ora com lágrimas: se assim orares serás ouvido nas


tuas petições, pois uma tal oração é para o Senhor um mo­
tivo de alegria. E ao viveres uma tal comunhão, dom do
Espírito, estás a ser um orante.

7. Quando, ao orares, as lágrimas te escorrem pela face,


não te enalteças por isso, como se fosses superior à maior
parte dos teus semelhantes. Nenhum motivo há, com
efeito, para o enaltecimento : simplesmente a tua oração
obteve resposta a fim de confessares os teus pecados e al­
cançares, com as lágrimas, a boa vontade do Senhor. Sem
te esqueceres de que o antídoto das paixões não deve
transformar-se para ti numa paixão, a fim de não irritares o
doador da graça.

8. Muitos daqueles que choram os seus pecados, sem


compreenderem o significado das lágrimas, estão cativos
da loucura e do desvario. Sem compreenderem o verda­
deiro labirinto em que se encontram.

9. Que da tua oração empenhada brote uma vida cora­


josa! Não ficarás assim cativo de preocupações e de ansie-
98 PEQUENA FILOCALIA

dades que, ao serem umas e outras fontes de perturbação,


minam insidiosamente o vigor de que precisamos para
viver.

10. Quando os demónios te veem ardorosamentre en­


tregue à oração, começam por inocular em ti imagens de
determinados obj etos ditos necessários; em seguida, in­
centivam a persistência dessas imagens, levando a mente a
procurá-los; por fim, fazem com que ela, frustrada por não
os encontrar, fique triste e deprimida. E quando ela se
reconcentra na oração, voltam a enchê-la com a lembrança
de tais obj etos, com o fito de, assim extraviada, levá-la à
perda dos frutos da sua prática orante.

11. Faz com que, no momento da oração, a tua mente


fique surda e muda! Se com denodo isso fizeres, verás com
alegria brotar de ti a verdadeira oração!

12. Se uma qualquer provocação ou ameaça te atinge e,


irritado, tentas retribuir na mesma moeda, lembra-te da
oração e de como tu mesmo serás j ulgado pélo modo
como te comportas. E se assim agires verás como de ime­
diato se apaziguará a onda tumultuosa que te invadiu.

13. Tudo o que fizeres para te vingar de um irmão que te


fez mal, tornar-se-á para ti uma pedra de tropeço no mo­
mento da oração.

14. A oração é um rebento da doçura que nos leva a


exorcizar a cólera.

15. A oração é um fruto da alegria e da ação de graças,


vividas na comunhão com Deus.
SANTO EVÁGRIO 99

16. A oração é ausência de tristeza e um não à medio­


cridade.

17. «Vai, vende tudo quanto tens e dá-o aos pobres, e em


seguida toma a cruz e nega-te a ti mesmo» (cf. Mt 1 9 , 2 1 ;
1 6,24) . Deixa-te impregnar pelo alcance dessas palavras! E
se assim for, orarás sem distração, experienciando o inefá­
vel da comunhão com Deus, e tudo terás de acréscimo.

18. Se é teu desejo orar com dignidade, nega-te a ti mes­


mo em cada momento. E quando te sobrevêm vicissitudes
e és acossado pela provação, por mais adversas que sejam,
defronta-as sabiamente, fazendo delas um motivo para a
oração. E serás invadido pela força do Espírito.

19. Vive com sabedoria as vicissitudes que sobre ti se


abatem. Vivendo-as assim, delas extrairás um benfazej o
fruto quando t e entregas à oração.

20. Para que a tua oração possa brotar do modo dese­


j ado impõe-se-te não seres motivo de tropeço para nin­
guém. Correrás em vão se assim não for.

21 . Tem presente no mais profundo de ti mesmo as


palavras do Evangelho: «Deixa a tua oferta diante do altar
e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão» (Mt 5,24) . E
se assim viveres a espiritualidade ínsita na Palavra do Se­
nhor, a tua oração brotará límpida e pacífica e conhecerás
a paz, pois o rancor entenebrece a mente do orante e ma­
cula as suas petições.

22. Aqueles que acumulam no seu interior malqueren­


ças e rancores são semelhantes a pessoas que tiram água
de um poço para a despejar num tonel esburacado.
1 00 PEQUENA FILOCALIA

23. Se és um perseverante orarás sempre com alegria.

24. Atenção! Mesmo quando oras de um modo correto


podem surgir pensamentos que te levem a admitir que
tens um legítimo direito à cólera. Ora a cólera contra o
próximo não é justa. Se fores diligente na procura, encon­
trarás um modo de resolver as coisas sem te encolerizar.
Usa, pois, todos os meios de molde a não te deixares levar
por acessos coléricos, que te levariam ao impasse de um
labirinto de perdição.

25. Tem cuidado, não te tornes tu mesmo incurável ao


pretender curar outrem! Foge de uma tal deriva! Ela é pe­
rigosa, pois acaba por comprometer fatalmente a oração.

26. Se disseres não à cólera obterás misericórdia e mos­


trarás o quanto és sensato. Tem presente que a sensatez é
apanágio de um autêntico orante.

27. Armado assim contra a cólera sairás triunfante dos


ataques da avidez: vitória essencial, pois é a avidez que ali­
menta a cólera, levando-nos ao entenebrecimento da visão
espiritual e, conseq uentemente, à desolação do estado
orante.

28. Não ores unicamente com gestos e atitudes exterio­


res. Mais do que isso faz com que a tua mente viva, com
temor e tremor, o sentimento da oração espiritual.

29. Ocasiões h á em que, ao te entregares à oração, esta


brota de imediato escorreita; em outras ocasiões, porém,
não obstante todos os esforços, não logras atingir o alvo.
Que vej as nisso um estímulo para te empenhares ainda
SANTO EVÁGRIO 101

mais, procurando sempre e denodadamente salvaguardar


o dom da oração.

30. Quando um anjo nos visita, de imediato se eclipsa


tudo aquilo que nos perturba, e a mente, assim tranquila,
ora jubilosamente. Por vezes, ao contrário, debaixo dos ha­
bituais e impiedosos ataques dos inimigos, a mente sente­
-se pressionada, sem ter um momento de repouso. Deve-
-se isso ao facto de ela se encontrar afetada por paixões di-
versas a que sucumbiu no passado. Não obstante, se se
empenhar com denodo na procura acabará por encontrar;
e se bater vigorosamente, abrir-se-lhe-á (cf. Mt 7,8) .

31 . Não ores pelo cumprimento dos teus desejos, pois


eles podem muito bem não estar em sintonia com a von­
tade de Deus. Em vez disso, segundo o ensino recebido,
ora antes : Que a tua vontade se cumpra em mim! (cf. Lc
22,42) . Em tudo, pois, orarás desse modo, pedindo que a
sua vontade se faça, pois Ele quer o que é bom e provei­
toso para a tua alma, coisa que tu nem sempre procuras.

32. Não poucas vezes, nas minhas orações, pedia que se


cumprisse o que considerava bom para mim. Fazia-o de
um modo obstinado, violentando estupidamente a von­
tade de Deus, sem me render à aceitação do que Ele sabia
ser bom para mim. Passei assim por deceções as mais va­
riadas, pois não pedia que se cumprisse em mim a vontade
divina. E desse modo o que acabava por receber era, de
facto, dececionante.

33. Unicamente um é bom: D eus. Por conseguinte,


coloquemos nas suas mãos tudo o que tem a ver com a
nossa vida e veremos como tudo decorrerá bem. Efetiva-
1 02 PEQUENA FILOCALIA

mente, Ele que é bom não deixará de nos proporcionar


dons excelentes.

34. Não te aflij as se não receberes imediatamente de


Deus o que lhe pedes: é sinal de que Ele tenciona conce­
der-te algum bem como resposta à tua perseverança na
oração. Na verdade, que haverá de mais elevado do que a
experiência orante, na qual falamos a Deus e vivemos com
Ele uma tão grande intimidade? !

35. A oração sem distraimento é a mais elevada intele­


ção da mente.

36. A oração é a ascensão da mente para Deus.

37. Se orar é o teu anseio, renuncia a tudo para tudo obter.

38. Ao orares, ora em primeiro lugar para seres purifi­


cado das paixões; em segundo lugar para seres libertado da
ignorância e do esquecimento; finalmente, para te veres
livre das tentações e de todo o tipo de desamparo.

39. Na tua oração procura unicamente a j ustiça e o


Reino de Deus, isto é, a virtude e o conhecimento espiri­
tual - e tudo o mais te será acrescentado (cf. Mt 6,33) .

40. É justo que ores não somente pela tua própria puri­
ficação mas também pela daqueles que são teus próximos.
Se assim fizeres imitarás os anjos.

41 . Interroga-te, ao orares, se verdadeiramente estás


diante de Deus, ou se foste vencido pelo desejo de seres
louvado pelos outros, sob pretexto de longas orações.
SANTO EVÁGRIO 1 03

42. Quer ores com os irmãos, quer o faças só, empe­


nha-te em não orar por mera rotina, mas sim consciente
da tua oração.

43. Uma tal atitude orante implica reverência e com­


punção da alma, pois a confissão dos pecados cometidos
processa-se com gemidos inaudíveis.

44. Se a tua mente divaga ao orares, isso significa que


ela não ora como um monge, comportando-se ainda de
um modo mundano, empenhada meramente em embele­
zar o tabernáculo exterior.

45. Ao orares, disciplina a tua memória de tal modo que


ela, em vez de te influenciar com as suas lembranças, te
leve antes a uma tomada de consciência do momento
orante, pois a mente, nessas alturas, mostra ser presa fácil
da pilhagem por ela mesma desencadeada.

46. Ao orares, a memória desperta em ti fantasias as


mais variadas: quer em relação a coisas já passadas, quer a
acontecimentos recentes, quer até mesmo ao rosto de al­
guém que te irritou.

47. O demónio mostra ser extremamente invej oso do


homem que ora, e serve-se de todas as artimanhas para o
levar ao fracasso, fazendo assim com que não atinj a o alvo
almej ado. Desse modo reaviva sem cessar na sua memória
a lembrança das coisas, e atiça através da carne todas as
paixões, de molde a impedi-lo de percorrer o caminho
belo que conduz a Deus.

48. Quando, não obstante todas as suas artimanhas, o


demónio se vê impotente para impedir a oração do justo,
1 04 PEQUENA FILOCALIA

retrai-se, para logo se vingar no homem que orou: encole­


riza-o, com o que destrói os bons efeitos da oração; ou ex­
cita-o com a lembrança de desejos impudicos, com o que
degrada a sua mente.

49. Quando tiveres orado como se impõe, prepara-te


para os ataques do demónio. Fica, portanto, virilmente de
pé, pronto a defender os frutos da tua oração. Foi para isso
que desde o princípio foste destinado: trabalhar e cuidar
(cf. G n 2 , 1 5 ) . Por conseguinte, depois de teres trabalhado,
não entregues ao descuido o resultado do teu trabalho. Se
não observares um tal princípio, a tua oração não passará
de uma oração inútil.

50. Toda a guerra travada entre nós e os demónios tem


como cenário a oração espiritual. Ela é, com efeito, para
eles uma coisa hostil e odiosa, enquanto para nós é salví­
fica e doadora de paz.

51 . Que visam os demónios ao nos levarem a cair na


tentação da glutonaria, da luxúria, da avareza, da cólera, do
rancor, e das outras paixões? Indubitavelmente visam im­
pedir a nossa mente de orar como se impõe, assediando-a
com pensamentos desse jaez. Com efeito, quando as pai­
xões da parte irracional da mente se tornam dominantes,
impedem-na de operar racionalmente no cumprimento da
sua função.

52. Ao praticarmos as virtudes fazemo-lo animados


pelo desej o de chegarmos à contemplação das essências
interiores inerentes aos seres criados; e, a partir daí, atin­
girmos a contemplação do Logos que lhes deu o ser - esse
Logos que, na hora da oração, se manifesta ao orante.
SANTO EVÁGRIO 1 05

53. O estado próprio do orante é o da impassibilidade


que, graças a um intenso amor, eleva a mente, sedenta de
sabedoria, ao domínio do noético.

54. Aquele que desej a orar de um modo íntegro deve


dominar não apenas a cólera e a cobiça: deve ainda liber­
tar-se de todo o pensamento passional.

55. Quem ama a Deus vive naturalmente em comunhão


com Ele, corno com um pai, o que supõe viver liberto de
todo o pensamento passional.

56. Termos atingido a impassibilidade não supõe, só por


si, termos começado a orar: é que podemos nutrir exclusi­
vamente pensamentos desapaixonados e, não obstante,
rneditá-los distraidamente, ficando assim longe de Deus.
Não esqueçamos que nos é pedido urna concentração
total.

57. O facto de a mente não ficar enamorada dos pensa­


mentos (sejam eles desapaixonados ou não) não significa,
só por si, ter ela já atingido o lugar da oração. Ela pode,
com efeito, ficar-se pela contemplação dos objetos, inqui­
rindo unicamente acerca das razões destes. Quando isso
acontece, a contemplação - desapaixonada seja ela - não
vai além das coisas criadas, e a mente, por ela impressio­
nada, mantém-se longe de Deus.

58. Se a mente não se elevar para além da contemplação


do mundo criado será incapaz de contemplar devidamente
o lugar da soberania de Deus. Efetivamente, ao ficar assim
ocupada com o conhecimento das coisas inteligíveis, não
1 06 PEQUENA FILOCALIA

irá além de um mero reconhecimento da multiplicidade


que os caracteriza.

59. Se queres orar, só com Deus o poderás fazer, pois é


Ele quem dá a oração ao orante. Invoca-o, portanto, dizen­
do: - Santificado seja o teu nome, venha o teu reino (isto é,
o Espírito Santo) e o teu Filho unigénito -, pois assim nos
ensinou Ele, quando nos disse para adorarmos o Pai em
espírito e em verdade.

60. Aquele que ora em espírito e em verdade deixou já


de glorificar o Criador a partir das criaturas: ao louvar a
Deus é de Deus que parte.

61 . Se és teólogo orarás verdadeiramente; e se oras ver­


dadeiramente és teólogo.

62. Quando a tua mente, no seu ardoroso desej o de


Deus, se liberta da carne e rejeita os pensamentos prove­
nientes quer dos sentidos, quer da memória, quer do tem­
peramento, enchendo-se assim de reverência e de alegria -
quando isso acontece, estás na fronteira da oração.

63. O Espírito Santo, cheio de compaixão pela nossa


fraqueza, visita-nos ainda mesmo antes de estarmos purifi­
cados. E se nessa visita encontra a nossa mente, por pouco
que seja, em estado orante, manifesta-se nela dissipando a
falange dos pensamentos e cogitações que a assediam. E,
manifestando-se desse modo, condu-la à vivência do amor
que é próprio da oração espiritual.

64. Enquanto os variados poderes se servem das mu­


danças ocorridas no corpo para fazerem aflorar à mente
SANTO EVÁGRIO 1 07

pensamentos, ideias, especulações, o Senhor atua de um


modo diferente: é à mente que Ele se manifesta para, se­
gundo a sua vontade, nela incutir a gnose. E ao atuar
assim, é por intermédio da mente que acalma os impulsos
incontrolados do corpo.

65. Todo aquele que aspira à oração verdadeira, mas dá


largas à cólera ou ao rancor, torna-se inimigo de si mesmo.
É semelhante a um homem que, cheio do desej o de ter
uma visão clara, arranca os seus próprios olhos.

66. Se verdadeiramente aspiras à oração, não faças nada


que com ela seja incompatível. E Deus aproximar-se-á de
ti e contigo caminhará.

67. Quando oras não modeles no teu interior nenhuma


imagem da divindade, nem permitas que a tua mente seja
influenciada por uma qualquer forma divina. Em vez
disso, procura o imaterial através do imaterial. E se assim
for, poderás compreender.

68. Põe-te de pé atrás contra as armadilhas dos demó­


nios, pois são múltiplas e sibilinas as artimanhas de que
eles se servem! É que, por vezes, eles, ao orares pura e cal­
mamente, instilam em ti, de um modo inopinado, uma
imagem desconhecida e estranha, levando-te a imaginar
que a divindade está presente e localizada desse modo. Na
sua insídia, tentam persuadir-te de que o obj eto assim
objetivado a teus olhos é a divindade. Ora esta não possui
nem quantidade nem figura.

69. Quando o demónio se vê impotente para, durante a


oração, ativar à sua maneira a memória, invejoso como é,
1 08 PEQUENA FILOCALIA

violenta a constituição do corpo, de molde a provocar na


mente o aparecimento de um qualquer fantasma desco­
nhecido, dando-lhe desse modo forma. E assim a pobre
mente, objeto dos ataques insidiosos dos pensamentos, é
facilmente subj ugada. E é-o de tal modo que (não obs­
tante tender à gnose imaterial e sem forma) se deixa enga­
nar, tomando a fumaça pela luz.

70. Sê vigilante quando oras, impedindo que os pensa­


mentos invadam a mente, pois ela deve manter-se firme na
quietude almejada. E então, Aquele que se compadece dos
ignorantes visitar-te-á e conceder-te-á o dom abençoado
da oração.

n. Serás incapaz de orar de um modo puro se não te li­


bertares das preocupações com as coisas materiais e dos
cuidados constantes. É que a oração supõe a supressão
dos pensamentos.

72. É -nos impossível correr com as pernas amarradas.


Assim também a mente submetida às paixões é incapaz de
discernir os contornos da oração espiritual, já que, asse­
diada de todos os lados pelos pensamentos apaixonados,
claudica na busca da quietude.

73. Quando a mente atinge o estado próprio da oração


pura, livre das paixões, o ataque dos demónios já não con­
siste em lhe insinuar pensamentos sinistros, mas sim pen­
samentos relativos ao que é bom. Capciosamente, suge­
rem-lhe uma visão enganosa da glória de D eus, numa
forma agradável aos sentidos, procurando assim levá-la a
pensar que j á atingiu na íntegra a meta da oração. Ora
admitir isso é - nas palavras de um venerável gnóstico -
SANTO EVÁGRIO 1 09

próprio da paixão inerente à vanglória e obra de um de­


mónio cujo toque faz palpitar as veias do cérebro.

74. Penso que o demónio, ao agir desse modo, provoca,


a seu bel-prazer, uma mudança da luz que circunda a
mente. Serve-se da paixão da vanglória que leva a mente a
acolher o pensamento de que a ciência divina (ciência pri­
mordial) tem uma forma e ocupa um certo lugar. Ora, em
virtude de não se ver a si mesma atingida por paixões im­
puras e carnais, ela convence-se de que se encontra num
estado de pureza, livre de uma qualquer ação inimiga.
Pensa por conseguinte ser divina a aparição nela produ­
zida pelo demónio. Com efeito, este serve-se do terrível es­
tratagema que consiste - dissemo-lo já - em provocar atra­
vés do cérebro reações luminosas às quais dá forma. E não
poucas vezes forma religiosa.

75. Quando o anjo de Deus vem até nós expulsa com


uma só palavra, do nosso interior, toda a ação adversa e
orienta a luz da mente. Introduz-nos assim numa atividade
liberta da ilusão. Inclusive da ilusão religiosa.

76. Q uando o Apocalipse de João nos fala do anj o a


quem foi dado incenso para oferecer com as orações dos
santos (cf. Ap 8,3), está a referir-se a uma graça operada atra­
vés do anjo. Efetivamente, não só nos dá a saber no que
consiste a oração verdadeira, como ainda transmite fir­
meza à nossa mente, livrando-a de toda a agitação sem
quebranto nem acédia.

77. As taças cheias de incenso que os vinte e quatro


anciãos ofereciam são designadas como as orações dos
santos. Pelas taças no seu conjunto e por cada uma delas
110 PEQUENA FILOCALIA

em particular, devemos entender o amor de Deus, isto é, a


caridade perfeita e espiritual que permeia a oração feita em
espírito e em verdade.

78. Se quando oras te parece que já não necessitas da


compunção das lágrimas pelos teus pecados, cai em ti e
considera o quanto uma tal atitude é sinal do teu afasta­
mento de Deus, quando precisamente se te impõe estar
nele e nele permanecer. E se nisso refletires, as lágrimas
correr-te-ão expressivas.

79. Indubitavelmente, se tiveres consciência dos teus li­


mites, a compunção ser-te-á mais fácil, e tal como Isaías (cf.
Is 6,5) reconhecer-te-ás indigno e impuro, possuidor de
lábios impuros, no meio de um povo de impuros lábios,
isto é, de inimigos. E, consciente disso, ousarás apresentar­
-te ao Senhor do universo.

80. Se a tua oração for autêntica, experimentarás um


inefável sentimento de plenitude: os anjos escoltar-te-ão,
como a Daniel, e iluminar-te-ão dando-te o conhecimento
das essências das coisas criadas.

81. Não percas de vista que os santos anjos nos encora­


j am a orar e permanecem ao nosso lado, j ubilosamente
orando por nós. Portanto, se cairmos na negligência e
dermos guarida a pensamentos alienígenas, irritamo­
-los sobremaneira, pois enq uanto eles lutam com de­
nodo por nós, nós nem sequer nos empenhamos em su­
plicar a Deus por nós mesmos. Ao menosprezarmos os
serviços que estão prontos a prestar-nos, abandonamos
Deus seu Senhor e entramos em conluio com os demó­
nios impuros.
SANTO EVÁGRIO 111

82. Deves orar como se impõe, sem perturbação; e sal­


modiar de um modo atento e harmonioso. Agindo desse
modo serás como a águia planando nas alturas.

83. Salmodiar acalma as paixões e apazigua a intempe­


rança do corpo; orar leva a mente a exercer uma atividade
que lhe é própria.

84. A oração é a atividade que se processa em sintonia


com a dignidade da mente ou, dito de outro modo, é o
modo mais elevado como esta se exprime.

85. Se a salmodia se inscreve no campo da sabedoria


multiforme (cf. Ef 3 , 1 0) , a oração é o prelúdio da gnose ima­
terial e múltipla.

86. A gnose é excelente, pois colabora com a oração,


despertando a potência intelectual da mente, levando-a à
contemplação da gnose divina. Bendita é, pois, a gnose!

87. Se ainda não possuis o carisma da oração ou da


salmodia, obstina-te em possuí-lo. E conseguirás o que
almejas.

88. E está escrito, lá no Evangelho, que Jesus lhes


contou uma parábola para sublinhar a necessidade de ora­
rem com perseverança e sem desfalecimento (cf. Lc 1 8 , 1 -8).
Por conseguinte, não percamos a esperança nem caiamos
no desencoraj amento por não termos ainda recebido o
dom da oração: no fim, acabaremos por recebê-lo! E con­
cluiu assim a parábola: «Embora eu não tema a Deus nem
tenha em conta os homens, já que esta viúva me incomo­
da, vou fazer-lhe j ustiça. Assim, pois, Deus fará j ustiça
112 PEQUENA FILOCALIA

prontamente àqueles que a Ele clamam dia e noite» (cf. Lc


1 8 ,4) . Tem, pois, bom ânimo e sê perseverante, sem desfale­
cimento, na santa oração.

89. Não programes a tua vida segundo as tuas preten­


sões, mas sim segundo o bom desígnio de Deus. Se assim
for livrar-te-ás do desvario e orarás com o coração repleto
de gratidão. E quanta alegria não sentirás por não seres um
cativo do desnorte!

90. Mesmo quando te parece que estás em comunhão


com Deus, guarda-te do demónio da luxúria, pois ele é ex­
tremamente enganador e invejoso. É grande a sua preten­
são de introduzir a desordem na tua mente, procurando
afetá-la no seu dinamismo, sobriedade e vigilância. Trata­
-se de um demónio que se multiplica esforçadamente com
o fito de a desencaminhar para longe de Deus. Não supor­
ta vê-la em comunhão com Deus, numa atitude de temor
respeitoso.

91 . Quando te entregas à oração, prepara-te para fazer


frente aos assaltos dos demónios, suportando corajosa­
mente os seus golpes, pois eles lançar-se-ão sobre ti como
animais selvagens e maltratarão todo o teu corpo.

92. Prepara-te, qual lutador experimentado, para não


vergar, mesmo q uando, inopinadamente, vires um fan­
tasma. Não te deixes perturbar até mesmo quando vires
uma espada brandida contra ti, ou um repentino relâmpa­
go a atingir-te no rosto. Tão-pouco percas o ânimo diante
de um espectro hediondo e sangrento. Mantém-te firme e
prossegue na tua bela confissão, e verás que podes supor­
tar de ânimo pronto a aparição dos teus inimigos.
SANTO EVÁGRIO 113

93. Quem resiste na luta obterá a recompensa propor­


cionada por uma reconfortante alegria. E quem mantém a
perseverança no meio das vicissitudes obterá o merecido
galardão. Resiste, pois, no meio dos variados ataques das
forças do mal, fortalecido pela força do Espírito que inun­
da o teu coração!

94. Acautela-te, não venhas a ser seduzido por uma qual­


quer visão enganadora de origem demoníaca. Mantém-te
atento! Recorre à oração! Invoca Deus! Quando a inteleção
necessária provém d'Ele, obterás a desej ada iluminação.
Mas quando a sua proveniência é outra, Ele expulsará de ti
o sedutor. Não percas a confiança: os demónios não preva­
lecerão se te entregares a uma súplica ardente e sem recuo.
De um modo invisível, no oculto, o poder de Deus fustiga­
-los-á e expulsá-los-á para bem longe.

95. Deves estar consciente deste ardil: em virtude de


haver ocasiões em que os demónios, estrategicamente, se
dividem em dois grupos, podes muito bem ser levado a
pedir socorro contra um desses grupos. Ora bem, ao agires
assim o outro grupo entra em cena sob formas angélicas e
expulsa o outro grupo, levando-te, ardilosamente, a ver
nessas formas santos anjos.

96. Empenha-te em viver com humildade e coragem: se


assim fôr, as maldições dos demónios não alcançarão a tua
alma, e nenhum flagelo se abaterá sobre a tua tenda, pois
Ele dará ordens aos seus anjos para te protegerem e guar­
darem. Proteção e guarda que te manterão ao abrigo de
todos os ataques dos inimigos.

97. O caminho conducente à oração pura não está livre


de ruídos demoníacos, de vozes histriónicas, de vitupérios
1 14 PEQUENA FILOCALIA

agrestes. Mas no meio de tudo isso não soçobrarás nem


perderás o sangue-frio se disseres a Deus: «Nenhum mal
temerei porque Tu estás comigo» (SI 23 ,4) .

98. No meio da tentação, e no confronto com a borras­


ca, ora! Ora de um modo breve e intenso!

99. Se, inopinadamente, fores assaltado pela ameaça de


que os demónios estão prestes a saquear a tua mente, lan­
çando nela o pânico, não temas nem te espantes. O seu
obj etivo ao ameaçarem-te desse modo é verificar se ainda
deles te ocupas ou se, pelo contrário, já os votaste a um
desprezo total. Essa é a coisa que eles mais temem.

100. Se, quando imerso em oração, vives a experiência


da presença do Deus Omnipotente, Criador de todas as
coisas, por que motivo dás tu então lugar ao absurdo que
consiste em minimizar o temor de Deus (temor salvífico) ,
e em maximizar o medo de mosquitos e baratas (que nada
valem) ? Pois não ouviste Aquele que diz não só «Ao Se­
nhor teu Deus temerás», mas também «Sobre eles cairão
o pavor e o temor» ? ! (Dt 1 0,20; Ex 1 5 , 1 6) .

1 01 . Enquanto o p ã o alimenta o corpo e a virtude a


alma, a oração, essa, alimenta a mente.

1 02. Quando te vês a ti mesmo no lugar sagrado da


oração, ora não como o fariseu mas como o publicano.
E se assim fizeres, serás também j ustificado pelo Senhor
(cf. Lc 1 8 , 1 0- 1 4) .

1 03. Quando oras, empenha-te c o m denodo em não


orares contra ninguém. Se não te empenhares nisso, de-
SANTO EVÁGRIO 115

molirás o que desejas edificar e tornarás abominável a tua


oração.

104. Que o devedor de dez mil talentos, no modo como


atua, te sirva de lição: se não perdoares ao teu devedor, tão
pouco tu obterás o perdão. Está, com efeito, escrito: «En­
tregar-te-á aos verdugos» (Mt 1 8 ,24-35) .

105. Não fiques prisioneiro das vulnerabilidades pró­


prias do corpo quando oras: que a picadela de um piolho,
de uma pulga, de um mosquito, ou de uma mosca, não te
roube o que há de melhor na tua oração.

106. Ouvimos uma vez contar que um homem santo foi


feito, em certa vez, objeto dos ataques do maligno. Sempre
que orava estendendo as mãos, o inimigo metamorfo­
seava-se em leão e alçava contra ele as garras dianteiras,
cravando-as nas duas faces do santo, sem largar a presa até
esta baixar os braços. O santo, porém, resistia aos ataques,
sem nunca claudicar, até ao final das orações.

107. Tal foi também o caso de João, cognominado o Pe­


queno (rigorosamente devíamos chamar-lhe Grande, pois
foi-o como monge) , que levava uma vida de hesicasta num
fosso: graças à sua intimidade com Deus, permaneceu
inquebrantável enquanto o demónio, sob a forma de uma
serpente enrolada à volta do corpo, lhe torturava a carne e
açoitava a face, desferindo o seu repelente bafo.

108. Também tu, sem dúvida, deves ter lido as vidas dos
monges de Tabenesa, e conhecido o passo em que o abade
Teodoro faz um discurso aos irmãos. Enquanto ele falava,
duas víboras meteram-se debaixo dos seus pés. Ele, porém,
116 PEQUENA FILOCALIA

sem se perturbar, fez com os pés como que um arco para


as alojar até ter terminado a alocução. Aí chegado, deu-as a
ver aos irmãos, narrando-lhes o episódio.

109. Lemos ainda, acerca de um outro irmão, cuj a espi­


ritualidade era de fino quilate, atacado também nos pés
por uma víbora assassina. Foi-o enquanto orava. em certo
dia. Pois bem, imperturbável, manteve erguidos os braços
até ter terminado a oração, sem nenhum dano ter sofrido,
pois mais do que se amar a si mesmo a Deus amava.

110. Por conseguinte, que os teus olhos não se distraiam


durante a oração: liberta-te dos cuidados do corpo e da
alma, e concentra-te na mente. E viverás a experiência de
ser livre.

111. Um outro santo que vivia o hesicasmo no deserto,


orando fervorosamente, foi assaltado pelos demónios que,
durante duas semanas, fizeram dele uma bola de j ogar.
Gozavam-no, lançavam-no ao ar e apanhavam-no numa
rede. Mesmo assim, nem por um momento conseguiram
os seus intentos, já que a mente desse santo permaneceu
inviolada e a sua oração continuou fervorosa.

112. Ainda um outro, transbordando de amor por Deus


e de zelo pela oração, ao caminhar no deserto foi sur­
preendido por dois anjos que o ladearam e com ele come­
çaram a fazer caminho. Ele, porém, não lhes deu aten­
ção, pois não queria perder a parte melhor, levado pela
palavra do Apóstolo: «Nem os anj os, nem os principa­
dos, nem as potestades poderão separar-nos do amor de
Cristo» (Rm 8,38-39) .
SANTO EVÁGRIO 117

113. O monge torna-se semelhante aos anjos na medida


em que for um orante íntegro, pois ao sê-lo a sua oração
brota com a limpidez própria da .autenticidade.

114. Se és habitado pelo desejo de ver a face do Pai que


está nos Céus, não sej as levado por nada deste mundo a
ver uma forma ou uma figura no decurso da oração.

115. Não nutras o desejo de ter uma visão sensorial dos


anj os, ou das potestades, ou de Cristo, pois ela introduzir­
-te-ia no reino do desvario! Um tal reino tem como marca
a perdição do desnorte, pelo que estarias a dar guarida a
forças demoníacas, abrindo as portas ao lobo em vez de
acolher o pastor.

116. A origem das ilusões da mente é a vanglória, pois é


ela que a leva a cair na tentação de circunscrever a divin­
dade ao domínio das figuras e das formas.

117. No que me concerne voltarei a exprimir uma vez


mais o seguinte pensamento: feliz a mente que, no decurso
da oração, atinge um estado livre das formas.

118. Feliz a mente que, ao orar, cresce sempre e de novo


no amor que por Deus sente.

119. Feliz a mente que, ao orar, se torna imaterial e livre


do instinto de posse.

120. Feliz a mente que, ao orar, atinge a quietude perfeita.

121. Feliz o monge que tem todos os homens por Deus,


depois de Deus.
118 PEQUENA FILOCALIA

122. Feliz o monge que, jubilosamente, considera a sal­


vação e a evolução de todos como se fossem suas.

123. Feliz o monge que se vê a si mesmo como «escória


de todos» (vd. 1 Cor 4, 1 3) .

124. Monge é aquele que está separado de todos e


unido a todos.

125. É monge aquele que se considera um com todos,


pois tem o hábito de se ver em cada um.

126. O homem que, fecundamente, consagra sempre a


Deus o seu primeiro pensamento, é capaz de alcançar a
oração perfeita.

127. Foge da mentira e evita juramentos se, na verdade,


queres orar como um monge. Caso contrário, é de um
modo vão que pretendes ser o que não és.

128. Se queres orar «em espírito» não tenhas aversão


por ninguém. E nenhuma nuvem te entenebrecerá duran­
te a oração.

129. Confia a Deus as necessidades corporais, pois ao


viveres assim a tua fé estás a dar um sinal de que também
lhe confias as espirituais.

130. Quando receberes as coisas que te estão prometi­


das, reinarás sobre tudo. Vive, pois, desde já, na força que
te é dada pela promessa. Experienciarás assim uma vida
triunfante, e sentirás já na pobreza do presente a alegria
dos tempos futuros.
SANTO EVÁGRIO 119

131. Não fuj as da pobreza e da vicissitude, pois são


ambas alimentos que emprestam asas à oração.

132. Que as virtudes do corpo te sirvam para alcançar as


da alma; e as da alma as do espírito; e as do espírito as da
gnose imaterial e essencial.

133. Quando oras para vencer o assédio de um pensa­


mento, e te persuades de que a vitória está ao alcance da
mão, não cantes vitória antes do tempo. Que tipo de vitó­
ria é essa que julgas ser assim acessível? Atenção! Examina
de onde ela vem, não te aconteça vires a cair numa embos­
cada, tornando-te pelo equívoco um traidor de ti mesmo.

134. Ocasiões há em que, ao orares, os demónios incutem


em ti determinados pensamentos para, logo de seguida, te
levarem a rej eitá-los. Trata-se de um ludíbrio demoníaco,
pois logo de seguida eles retiram-se astuciosamente, dei­
xando-te vítima da sua armadilha, imaginando que já come­
çaste a vencer o assédio dos pensamentos e a pôr em de­
bandada a falange dos demónios. Lamentável logro esse!

135. Se oras para vencer uma paixão assediante ou um


demónio intempestivo, tem presente as palavras daquele
que diz: «Perseguirei os meus inimigos e alcançá-los-ei; e
não retrocederei sem os ter derrotado; esmagá-los-ei e não
subsistirão, cairão debaixo dos meus pés . . (Sl 1 8 ,3 8 - 3 9) .
. »

Repete essas palavras sempre que necessário, pois desse


modo revestir-te-ás da humildade tão necessária na luta
travada contra os inimigos.

136. Não penses que podes adquirir a santidade sem pri­


meiro teres por ela combatido até ao sangue. Efetivamente,
1 20 PEQUENA FILOCALIA

impõe-se-nos, segundo o Apóstolo divino, resistir ao pe­


cado até à morte, quais lutadores impolutos (cf. Ef 6 , 1 1 - 1 7;
Heb 1 2,4) .

137. Quando fazes bem a outrem podes tornar-te alvo da


injustiça de um terceiro e, possuído por um sentimento de
inj ustiça, seres levado a dizer palavras lamentáveis ou a
realizar um gesto deplorável contra o próximo. Ora, ao
reagires desse modo, estás a dilapidar, de um modo infeliz,
o que de um modo tão feliz havias ganho. É j ustamente
isso que os demónios intentam, motivo pelo qual se te
impõe estar incansavelmente atento.

138. Responde sempre de um modo sensato aos penosos


assaltos dos demónios, o que implica enveredar pelo ca­
minho que te permita escapar à servidão por eles imposta.

1 39. D urante a noite, os demónios, cheios de manha,


visam particularmente, com um ataque direto, atingir o
mestre espiritual. Com um tal procedimento fazem tudo
para o perturbar, enfraquecendo-o na dedicação e na per­
severança características do seu agir. Já durante o dia
recorrem a uma tática diferente: os seus ataques são desfe­
ridos por intermédio dos homens, à força de vitupérios,
calúnias, ameaças.

140. Não te furtes aos pisões: deixa-os pisotear, bater,


esticar, alisar, pois desse modo as tuas vestes tornar-se-ão
alvas.

141 . Enquanto não renunciares às paixões, e a tua mente


não seguir o caminho da santidade e da verdade, não
encontrarás no teu peito o perfume do bom odor.
SANTO EVÁGRIO 121

142. Anseias ser orante? Se sim, emigra daqui d a terra e


passa a ter a tua habitação nos céus. E isso não apenas
com palavras, mas de um modo particular através da prá­
tica angélica e da gnose divina.

143. Se é apenas nas aflições que te lembras do Juiz e de


como Ele é temível e imparcial, então ainda não apren­
deste a servi-lo com temor e a alegrar-te nele com tremor
(cf. S I 2 , 1 1 ) . Que tenhas, pois, bem presente isto : também
quando nos encontramos num estado de paz espiritual e
de felicidade, devemos sentir-nos movidos a prestar-lhe
um culto de que as marcas essenciais são a piedade e a re­
verência. Assim, pois, que no meio da provação o espírito
sep o mesmo.

144. É avisado o homem que, no caminho conducente à


perfeita penitência, assume a lembrança dolorosa dos seus
próprios pecados e não olvida a sanção do fogo eterno que
sobre eles impende.

145. Aquele que, ainda prisioneiro do pecado e protago­


nista de acessos de cólera, ousa impudicamente elevar-se
ao conhecimento das coisas divinas, ou até mesmo aceder
à oração imaterial, deve ter presente a admoestação apos­
tólica, bem como compreender o quanto lhe é perigoso
orar com a cabeça descoberta (equivalente a rapada) : está,
com efeito, escrito que a alma orante deve cobrir a cabeça
com o sinal de autoridade, por causa dos anjos presentes
na assembleia (cf. l Cor 1 1 ,4s) . E ao ter em conta essa
admoestação, comportar-se-á com a reverência e a humil­
dade que se impõem.

146. Tal como olhar fixamente o sol com olhos nus em


pleno meio-dia nenhum benefício traz a quem sofre da
1 22 PEQUENA FILOCALIA

visão, assim também nenhuma utilidade tem para a mente


apaixonada e impura a contrafação da oração genuína,
que se quer em espírito e em verdade. Uma tal contrafação
não pode deixar de atrair sobre o orante a indignação da
divindade.

147. Se aquele que se dirige ao altar com a sua oferta


não é recebido pelo Senhor incorruptível (que de nada
necessita) sem primeiro se ter reconciliado com o próximo
ofendido (cf. Mt 5 ,23-24) , algo de semelhante ocorre também
quando se trata de oferecermos a Deus o incenso espiri­
tual sobre o altar imaterial: quanta sobriedade, quanta vigi­
lância, quanta sensatez nos são exigidas!

148. Não te deleites nem com a palavrosidade nem com


a gloríola. De contrário terás os demónios a agirem insi­
diosamente não só nas tuas costas mas abertamente na tua
cara. E então converter-te-ás para eles, no momento da
oração, em objeto de troça e de escárnio, pois conduzirão
os teus pensamentos a uma degradante vagabundagem.

149. Tu que te empenhas em ser verdadeiramente um


orante, se esse teu empenho nada ficar a dever à nobreza
do teu desej o, alcançarás o que desej as. É que a oração
implica o esforço da concentração. A um tal esforço não te
poderás, pois, furtar.

150. Tal como a visão é o melhor de todos os sentidos,


assim também a oração é a mais divina de todas as virtudes.

151. A excelência da oração reside mais na qualidade do


que na simples quantidade. Temos disso a confirmação na
história dos dois homens q ue sobem ao templo (cf. Lc
SANTO EVÁGRIO 1 23

1 8, 1 0) , e na injunção subjacente à sentença: «Vós, quando


orardes, não caiais em vãs repetições» (Mt 6,7) .

152. Enquanto a tua atenção não transcender o estrita­


mente corporal, bem como enquanto a tua mente não for
além das coisas exteriores, não descortinarás a essência da
oração. Motivo pelo qual te encontras ainda longe da via
feliz que a ela conduz.

153. Quando, ao orares, fores surpreendido pela alegria


que transcende uma qualquer outra alegria, os teus olhos
ter-se-ão aberto e serás sem equívoco um orante.
SÃO JOÃO CASSIANO
JOÃO CASSIANO (360-433), nascido na região da Cítia, na actual
Roménia, no seio de uma família abastada, Cassiano recebeu uma
esmerada educação tendo entrado muito jovem num mosteiro de
Belém. Juntos, ele e um dos seus amigos, Germano, vão visitar os
mosteiros egípcios para melhorar o seu conhecimento da vida mo­
nástica: primeiro, na Tebaida, em seguida, no deserto de Ceie,
que será a mais longa etapa destes dois companheiros. Devido a
conflitos locais, por volta do ano 390. com Teófilo, bispo de Ale­
xandria, Cassiano e Germano tiveram de deixar definitivamente o
Egipto. Cassiano vai então até Constantinopla onde recebe a in­
fluência de São João Crisóstomo que o ordena diácono, apesar da
sua pouca apetência para cargos eclesiásticos. Recebe, entretan­
to, a missão de levar uma carta ao papa Inocêncio 1 ( 401-417) e.
por esse motivo, viaja para Roma onde conhece o futuro papa
Leão 1 (440-461) . No decorrer dessa estadia será ordenado pres­
bítero e deu-se a morte do seu amigo e asceta Germano. Cassiano,
por volta do ano 415, terá fundado dois mosteiros na região de
Marselha, um de homens, outro de mulheres. Nesse período, por
volta dos anos 420-425, redige as Conferências e as Instituições.
Os temas principais são o monaquismo, os seus costumes e os
seus modelos de inspiração. Estes textos, do único autor de ori­
gem ocidental presente na Filoca/ia, mas nela incluídos devido ã
sua presença no seio do monaquismo egípcio, terão uma influên­
cia decisiva no monaquismo ocidental latino. Cassiano devido ãs
suas origens, no cruzamento do Oriente e do Ocidente, tanto es­
creve em grego como em latim. Como discípulo de Evágrio narra.
nas suas obras, a doutrina do seu mestre, mas com mais cambian­
tes. A vida espiritual é para ele voltada para a união com Deus
como caridade. A caridade é assimilada ã pureza do coração.
Ao bispo Castor,
sobre os oito pensamentos de malícia

Na sequência do nosso primeiro tratado sobre a obser­


vância nos mosteiros cenobitas, empenhamo-nos agora -
fortalecidos pelas vossas orações - na redação de um texto
sobre os oito vícios: glutonaria, impudicícia, avareza, cóle­
ra, tristeza, acédia, vanglória, orgulho.

A continência do estômago

Trataremos primeiro da continência do estômago (que


se opõe à glutonaria) , bem como do jejum e da qualidade
e quantidade dos alimentos. Não falaremos a partir de nós
mesmos, mas sim, segundo as tradições dos santos Pais.
Ora, estes não nos deixaram uma única regra no concer­
nente ao j ej um, nem um modo único de tomarmos as
refeições, nem a prescrição de doses uniformes, pois nem
todos temos o mesmo vigor, ou a mesma idade, ou a
mesma saúde, ou a mesma constituição física. O objetivo
é, contudo, um único: evitar a saciedade e fugir das come­
zainas. Eles estavam convictos de que o jejum de um dia
era mais proveitoso e favorável à pureza do que um j ejum
prolongado de três ou quatro dias, ou mesmo de uma
semana. Admitiam, com efeito, que um jejum prolongado
pode vir a ser pior do que atingirmos a saciedade. De facto,
1 28 PEQUENA FILOCALIA

como efeito de uma abstinência imoderada, o corpo fica


enfraquecido e deixa de se empenhar em liturgias espiri­
tuais, enquanto na sequência da ingestão de uma refeição
farta, na alma, é suscitada acédia ou desmazelo.
Além disso, achavam que nem para todos é benéfico
ingerir unicamente legumes verdes ou secos, ou alimentar­
-se exclusivamente de pão seco. E há aqueles que depois
de comerem quase um quilo de pão continuam com fome,
enquanto outros se sentem saciados com um escasso meio
quilo ou até mesmo com menos de um quarto de quilo.
Como já disse, os Pais transmitiram-nos a todos uma
única regra de continência: não sermos traídos nem pela
saciedade do estômago nem pelo prazer da boca. Com
efeito, não é somente a qualidade das iguarias que habi­
tualmente excita os desej os próprios da impudicícia : é
também a sua quantidade. Não se trata apenas da comida
com que o estômago fica repleto: mais do que isso está em
jogo a impudicícia daí resultante. E não é apenas o excesso
de vinho que embriaga a razão: também a água em dema­
sia, bem como o excesso de todas as comidas, podem tor­
ná-la pesada e sonolenta. A ruína dos sodomitas não foi
provocada pela embriaguez do vinho ou pelo excesso das
iguarias : foi-o, sim, no dizer do profeta (Ez 1 6 ,49) , pela
abundância do pão.
A debilidade corporal não é um obstáculo para a pureza
do coração quando proporcionamos ao corpo o que essa
debilidade exige e não o que a sede de prazer reclama. De­
vemos utilizar os alimentos na medida em que deles ne­
cessitamos para viver e não até ao ponto de sermos preza
dos assaltos da sofreguidão. O uso moderado e sensato
dos alimentos, com o objetivo de proporcionar ao corpo a
saúde desejada, bem como a energia daí resultante, não é
inimigo da pureza. Uma medida adequada e uma regra
SÃO JOÃO CASSIANO 1 29

exata no concernente à temperança foram estatuídas e


transmitidas pelos Pais: quando se come devemos contro­
lar o apetite de molde a não ficarmos empanturrados.
Quando, procurando nós a satisfação dos nossos desejos,
o apóstolo Paulo nos exorta a não nos entregarmos às
coisas da carne (Rm 1 3 , 1 4) não está a interditar a procura
das coisas boas necessárias à vida - está, sim, a dizer um
não ao submundo da concupiscência. Contra essa con­
cupiscência que mata, o Apóstolo está a proclamar a be­
leza da vida.
Além disso, quando se visa a pureza perfeita da alma, a
abstinência dos alimentos, só por si, sem o concurso das
outras virtudes, é insuficiente. E aqui emerge a humildade
- vivida na prática da obediência e no trabalho fatigante do
corpo - como essencial para uma vida conseguida. Assim,
ao repudiarmos a avareza (repúdio que supõe não só uma
abstenção das riquezas, como também uma fuga do desejo
de as adquirir) estamos a abrir caminho para a pureza da
alma. Efetivamente, o repúdio da cólera, da acédia, da van­
glória, do orgulho, conduz à pureza geral da alma. Quando
se trata, porém, da sua pureza particular, obtida por meio
da castidade, é a abstinência e o j ejum que mostram ser
particularmente eficazes. É com efeito impossível àquele
que empanturra o estômago combater na mente o espírito
da impudicícia. Esse o motivo pelo qual o nosso primeiro
combate deve ser domar o estômago e submeter o corpo à
ascese, não somente através do j ej um, mas também me­
diante a vigília, a oração, a leitura. O coração fica assim
concentrado no temor da geena e no desejo do Reino dos
Céus.
1 30 PEQUENA FILOCALIA

A impudicícia e a concupiscência da carne

O nosso segundo combate é contra o espírito da impu­


dicícia e concupiscência da carne, que começa a atormen­
tar o homem logo desde tenra idade. Trata-se de um
grande e estrénuo combate, pois implica combater em
duas frentes. Enquanto o combate travado contra os
outros vícios se desenrola apenas na alma, já este envolve
simultaneamente a alma e o corpo. Com efeito, o j ej um
corporal revela-se insuficiente para a vivência tanto da cas­
tidade perfeita como da pureza genuína: são necessárias
ainda a contrição do coração, a perseverança na oração
dirigida a Deus, a meditação incessante das Escrituras, a
fadiga, a atividade manual - tudo coisas que, ao reprimi­
rem as pulsões contínuas da alma, a libertam das fantasias
indecorosas. A humildade da alma, essa, é sempre e em
todas as circunstâncias uma exigência inescapável, pois
sem ela não podemos dominar a impudicícia e os outros
vícios.
Impõe-se-nos, portanto, antes de mais nada, guardar
desveladamente o coração, impedindo que nele façam
ninho os pensamentos impuros. Porque, como diz o
Senhor, «é do coração que saem os maus pensamentos, os
homicídios, os adultérios, as impudicícias e tudo o mais»
(Mt 1 5 , 1 9) . Com efeito, o jejum é-nos ordenado não apenas
para disciplinar o corpo, mas também para manter a mente
sóbria e vigilante: é que esta, obnubilada pelo excesso dos
alimentos, fica incapaz de vigiar os pensamentos. Por con­
seguinte, impõe-se-nos mostrar o maior zelo no j ej um
corporal, mas não só: é também para nós um imperativo o
discernimento do valor dos alimentos e da prática da me­
ditação espiritual, pois a não ser assim ficamos inaptos e
ineptos para nos elevarmos ao cume da verdadeira casti-
SÃO JOÃO CASSIANO 131

dade e pureza. É -nos assim indispensável purificar, antes


de mais nada, segundo a palavra do Senhor, o interior do
cálice e do prato, de tal modo que o exterior fique também
puro (cf. Mt 23,26) .
Por isso, em sintonia com as palavras do apóstolo Paulo
(cf. 2Tm 2,5), se estamos empenhados em combater o bom
combate contra o espírito da impudicícia, não ponhamos a
nossa confiança nem na nossa força nem na nossa ascese,
mas sim no socorro de Deus, nosso Senhor. E a coroa da
vitória nos será concedida. Não há, com efeito, repouso
para o homem atacado por um tal espírito, enquanto não
crer verdadeiramente que não é nem pela sua aplicação
nem pelo seu esforço, mas sim pela proteção e aj uda de
Deus, que se libertará dessa doença e atingirá o cume da
castidade. Aprende-se assim a viver na força do Espírito
que se renova em cada manhã.
Uma tal vitória está para além dos poderes naturais do
homem, e só aquele a quem foi dado o poder do alto para
esmagar aos pés os prazeres e as provocações da carne
está, de certo modo, liberto de um comportamento carnal.
Por conseguinte, é impossível ao homem elevar-se, como
se fosse um anjo, com asas próprias, até ao cume e atingir
a recompensa celeste : é preciso q ue a graça de Deus o
arranque ao pântano da servidão terrena. Com efeito, ne­
nhuma outra virtude, a não ser a castidade, é capaz de fazer
dos homens, ligados como estão à carne, seres semelhan­
tes aos anj os. É mediante uma tal virtude que, vivendo
ainda na terra, eles têm já - para usar palavras do Apóstolo
- a sua cidadania nos Céus (cf. Fl 3 ,20) .
O sinal de que já atingimos perfeitamente uma tal vir­
tude está no facto de a nossa alma passar a ignorar, duran­
te o sono, as imagens indecorosas produzidas pela fanta­
sia. Efetivamente, ainda que imagens desse j aez possam
132 PEQUENA FILOCALIA

não ser tidas como pecado, não deixam, contudo, de ser


um sinal de enfermidade de uma alma ainda cativa da
paixão. Por esse motivo devemos crer que as fantasias in­
decorosas que nos sobrevêm durante o sono são uma
prova da nossa negligência passada expressa assim como
enfermidade. Enfermidade que, oculta nas profundezas da
alma, se manifesta na emissão que ocorre durante o tempo
em que dormimos. Por esse motivo, o médico das nossas
almas colocou o remédio nas ocultas regiões da alma, lá
onde se encontram, e Ele sabia-o bem, as causas da enfer­
midade: «Aquele que tiver», diz Ele, «olhado uma mulher
para a desejar, já cometeu adultério com ela no seu cora­
ção» (Mt 5,28) . Ao falar assim, o Senhor, mais do que con­
denar os olhos curiosos e lascivos, condena sobretudo a
alma oculta no nosso interior. Essa alma que dá mostras
de fazer um mau uso dos olhos que nos são dados para o
bem. É por isso que o Livro dos Provérbios, prenhe de sa­
bedoria, não diz «Guarda cuidadosamente os teus olhos»,
mas sim «Guarda cuidadosamente o teu coração» (Pr 4,23)
com o que impõe o remédio adequado, sobretudo àquele
que se serve dos olhos de um modo libidinoso.
Eis, pois, a precaução primordial que o nosso coração
deve tomar como primeiro passo para a nossa purificação:
quando, devido às artimanhas insidiosas do diabo, se in­
troduz na nossa mente a imagem de uma mulher (trate-se
ou não de uma mãe, de uma irmã, ou de uma outra mu­
lher piedosa) expulsemo-la imediatamente do nosso cora­
ção, não aconteça que, ao persistir ela na nossa mente, esta
seja levada pelo demónio, pérfido e maligno, a dar guarida
aos pensamentos indecorosos e funestos resultantes de
uma tal imagem. Foi por isso que Deus, logo nas origens,
ordenou a Adão que estivesse vigilante no concernente à
cabeça da serpente (Gn 3 , 1 5 ) , isto é, ao assédio dos maus
SÃO JOÃO CASSIANO 1 33

pensamentos. É que, com efeito, é através deles que o


diabo, insidiosamente, tenta infiltrar-se nas nossas almas.
Ora se essa vigilância claudica, a cabeça da serpente entra,
isto é, a nossa mente é submetida ao saque e, por arrasto, o
corpo é levado na onda do prazer. E , a partir daí, estão
criadas as condições propícias para se fazer o que não nos
é nem lícito nem conveniente.
O estrénuo combate que nos é imposto implica, inelu­
tavelmente, «logo cedo pela manhã, destruir todos os
ímpios da terra» (SI 1 0 1 ,8), isto é, discernir à luz do divino
conhecimento os pensamentos que conduzem ao pecado
e, em sintonia com o ensino do Senhor, exterminá-los da
terra do nosso coração (Mt 1 5 , 1 9) . É enquanto são ainda pe­
quenos que é preciso destruir os filhos de Babilónia (por
outras palavras, os pensamentos perversos) e quebrá-los
contra a pedra (SI 1 37,9) que é Cristo. Se assim não agirmos,
com a nossa complacência eles tornam-se grandes e quase
inexpugnáveis: só com um indizível esforço, gemidos do­
lorosos e incansável trabalho conseguiremos dominá-los.
Além dessas palavras da divina Escritura, é bom evocar­
mos também outras dos santos Pais. S. Basílio, bispo de
Cesareia da Capadócia, disse um dia: «Não conheço mu­
lher e, contudo, não sou virgem» (Carta XLII, 4) . Ele bem
sabia que o dom da virgindade consiste menos em nos pri­
varmos corporalmente de uma mulher do que em guardar
a castidade e a pureza da alma. Castidade e pureza que são
por nós vividas quando o temor de Deus inspira a nossa
vida. Os Pais dizem também que tanto uma como a outra
só são verdadeiramente assumidas por nós quando, sem
evasivas, no mais fundo do coração, vivemos de um modo
humilde. Com efeito, alcançarmos um verdadeiro conhe­
cimento espiritual implica mantermos as profundezas da
alma livres da paixão da impudicícia.
1 34 PEQUENA FILOCALIA

E para explicitarmos no que consiste a recompensa re­


sultante de um viver casto, socorremo-nos uma vez mais
de palavras do apóstolo Paulo, em j eito de peroração :
«Procurai a paz com todos e a santidade sem a qual nin­
guém verá o Senhor» (Heb 1 2 , 1 4) . Que nesse passo é da
santidade que se trata, mostra-o a sequência do texto:
«Que ninguém seja impudico nem profanador como o foi
Esaú» (Heb 1 2 , 1 6) . E quanto mais a vivência da santidade é
celeste e angélica tanto mais ela se torna alvo dos mais
virulentos ataques dos adversários. Por esse motivo temos
o dever de nos aplicar não somente na continência do
corpo, como também na contrição do coração e nas fre­
quentes penitências próprias de um orante, com gemidos
inexprimíveis. Só assim, mediante o orvalho da presença
do Espírito Santo, poderá ser extinto o fogo que arde na
fornalha da nossa carne que o rei da Babilónia atiça quoti­
dianamente com o fole da concupiscência (cf. Dn 3 , 1 9) . Há
nisto, pois, um grande combate a travar, para o q ual a
grande arma ao nosso alcance é a vigília intensamente vi­
vida com Deus: na verdade, assim como a vigilância diurna
prepara a santidade noturna, assim também a vigília no­
turna com D eus proporciona à alma a pureza diurna.
Santidade e sanidade tocam-se numa mútua fecundação.

A avareza

O nosso terceiro combate é contra o demónio da ava­


reza. Estamos aqui no domínio de algo que é estranho à
nossa natureza e que, num monge, tem como origem a
falta de fé. De um modo diferente, os vícios que atiçam as
outras paixões (refiro-me à cólera e à concupiscência) e
que parecem ter a sua origem no corpo, são de certo modo
SÃO JOÃO CASSIANO 1 35

inatos, motivo pelo qual é preciso muito tempo para os


vencer. A doença da avareza, essa, dado sobrevir do exte­
rior, pode mais facilmente ser erradicada, se nisso nos em­
penharmos diligentemente. Mas, se negligenciada, acaba
por se tornar mais perigosa do que as outras paixões e
mais difícil de erradicar, pois é «a raiz de todos os males»,
nas palavras do apóstolo Paulo (lTm 6 , 1 0) .
E não vemos nós o s movimentos naturais d o corpo não
apenas nas crianças que ainda não atingiram a capacidade
de discernir o bem e o mal, mas também já naquelas que
ainda mamam? ! Sem estarem ainda verdadeiramente mar­
cadas pela volúpia, mostram já na sua carne movimentos
naturais. Similarmente, discernimos nelas o ferrão da ira
quando as vemos irritadas contra quem lhes bate. E se
assim falo não é para responsabilizar a natureza pelo pe­
cado - Deus me livre de tal! - mas sim para mostrar que o
apetite e o desejo podem (em determinadas circunstâncias,
e quando não provindos de Deus) fazer com que, pela ne­
gligência, movimentos naturais do corpo sej am transfor­
mados em atos contranatura. Com efeito, o movimento do
corpo foi-nos dado pelo Criador para a procriação e a con­
tinuidade da espécie, e não para a impudicícia. A ira, essa,
pode ser salutar: é-o desde que seja para nos empenhar­
mos no combate contra o vício, e não para nos enfurecer­
mos contra os nossos irmãos.
De modo nenhum devemos ver a natureza como má
quando a utilização que dela fazemos é má, responsabili­
zando por isso o Criador. É assim como o que se passa
com aquele a quem demos uma barra de ferro para a utili­
zar em algo necessário e útil, e em vez disso serve-se dela
para cometer um homicídio.
Falamos deste modo para mostrar que a paixão da ava­
reza não tem como origem elementos naturais, mas sim
136 PEQUENA FILOCALIA

unicamente uma vontade má e corrompida. Com efeito,


trata-se de uma enfermidade que, ao encontrar a alma tíbia
e carente de fé no início da ascese, insinua motivos justos
e aparentemente razoáveis para a preservação do que nessa
ascese ela, ilusoriamente, j ulga ter atingido. Torna assim a
alma cativa de dilemas obsessivos e, como tal, doentios.
No espírito do monge insinua uma velhice prolongada e a
enfermidade do corpo, alegando que o que é dado pelo
mosteiro é insuficiente, não só para um enfermo como
também para uma pessoa saudável. Instila na mente do
monge a obsessão de que, no mosteiro, um enfermo, longe
de receber os cuidados necessários fica entregue a si pró­
prio e, a não ser que seja possuidor de algum dinheiro, está
destinado a uma morte miserável. Finalmente a insinuação
de que não é possível continuar durante muito tempo no
mosteiro por causa do peso da observância e do rigor do
abade. E uma vez o espírito do monge levado, desencami­
nhadamente, a admitir aforrar algum dinheiro, pouco que
seja, ei-lo persuadido a aprender, sem o conhecimento do
abade, um trabalho com o qual possa aumentar o dinheiro
posto de reserva. E aí temos o nosso monge (infeliz dele!)
cativo da incerta esperança de, como resultado desse seu
trabalho, vir a obter no futuro a desejada segurança. Obce­
cado pelo pensamento do ganho, não tem em conta nada
que se lhe possa opor: nem o desespero que dele se poderá
apoderar no caso de se defrontar com uma infelicidade,
nem as trevas da tristeza que sobre ele se poderão abater
se for privado do ganho com que contava. Para ele, o ouro
ocupa o lugar de Deus, tal como o estômago é um deus
para outros. Por causa disso, o bem-aventurado apóstolo
Paulo refere-se a essa enfermidade não só como «a raiz de
todos os males» , mas ainda como «uma idolatria» ( 1 Tm
6 , 1 0) . Podemos assim ver até que grau de desvario pode
SÃO JOÃO CASSIANO 137

uma tal enfermidade conduzir o homem: à desmedida ido­


latria dos bens materiais que o aprisiona na teia infernal de
uma frustração permanente.
Como consequência desse seu afastamento do amor de
Deus, o avarento começa a amar a criatura em vez do Cria­
dor: fá-lo ao amar as figuras gravadas no ouro. Assim, cego
por tais pensamentos, e avançando na senda do mal, deixa
de seguir o caminho da obediência: irrita-se, indigna-se,
resmunga por tudo e por nada, contradita e, sem respeitar
ninguém, é levado até ao precipício como um cavalo de­
senfreado. D esagradado com a comida da comunidade,
protesta, alegando não poder mais suportá-la. Além disso,
insinua não estar Deus somente naquele lugar, alega não
estar a sua salvação dependente daquele sítio, evoca correr
riscos de se perder se não abandonar aquele mosteiro. Va­
lendo-se do dinheiro aforrado, no qual se apoia levado por
um juízo corrompido, sente-se como se tivesse asas e ru­
mina o abandono do mosteiro. Consequentemente, replica
com insolência e aspereza às ordens que lhe dão e (com­
portando-se como se fosse um hóspede ou um estranho)
negligencia e despreza os esforços que se fazem para me­
lhorar a vida em comunidade, censurando tudo e todos.
Em seguida procura motivos para a sua irritação e desa­
pego, a fim de não dar mostras de que, ao abandonar o
mosteiro, o faz irrefletidamente e sem razão. Envereda
assim pelo caminho da autojustificação, e se pode levar um
outro a sair também (ludibriando-o com cochichos e pro­
postas irresponsáveis) não hesita em fazê-lo de molde a ter
um cúmplice da sua queda.
Assim, inflamado com o ardor do seu pecúlio, o monge
avarento avança no seu desígnio: cada vez menos se sente
em paz no mosteiro, e cada vez mais se descobre incapaz
de viver sob uma regra. Por conseguinte, quando o demó-
138 PEQUENA FILOCALIA

nio, esse lobo voraz, inocula nele o desejo de se separar do


rebanho, ei-lo reduzido à condição de uma presa pronta a
ser devorada. E aí o temos negligente nos trabalhos que,
no mosteiro, se fazem a horas fixas, e zeloso nos que, noite
e dia, realiza na cela. Lamentável enfermidade essa que o
impede de observar as orações habituais, bem como o
estabelecido no concernente aos jejuns e às vigílias: tendo
feito dele um prisioneiro da paixão da avareza, persuade-o
a investir todo o seu zelo no trabalho manual.
Trata-se de uma enfermidade que se manifesta sob três
formas, todas elas reprovadas de igual modo quer pelas
divinas Escrituras quer pelos ensinamentos dos Pais. A
primeira delas induz os infelizes a adquirir e a amealhar
riquezas que não tinham no mundo. A segunda faz deles
permanentes lamentadores das riquezas a que tinham
renunciado e incita-os a reaver o que haviam oferecido a
Deus. A terceira, infetando o monge logo desde o princípio
com a falta de fé e de ardor, impede-o de se despojar com­
pletamente dos bens deste mundo Uá que o enche de
medo perante o desafio do despojamento) e leva-o a duvi­
dar da providência de Deus. Ei-lo assim infiel às promes­
sas que fez ao renunciar ao mundo. Dessas três formas po­
demos encontrar exemplos de condenação nas Santas
Escrituras. Guiezi, por ter querido adquirir riquezas que
antes não possuía, acabou privado do dom da profecia que
o mestre queria deixar-lhe em herança, e em vez de uma
bênção herdou uma lepra incurável, sentenciada na mal­
dição do profeta (cf. 2Rs 5 , 2 7) . Judas, esse, tendo querido
reaver bens aos quais tinha renunciado ao pôr-se a seguir
Cristo, não somente foi levado a traí-lo e a perder o seu
posto de apóstolo, como ainda pôs fim à sua vida corpórea
mediante uma morte violenta (cf. Mt 27,5) . Ananias e Safira,
SÃO JOÃO CASSIANO 139

esses, tendo retirado para si uma parte dos bens, foram, no


dizer do apóstolo, punidos de morte (cf. At 5 , 1 - 1 0) .
O grande Moisés faz, n o dizer d o Deuteronómio, esta
advertência - de que o sentido é eminentemente espiritual
- dirigida àqueles que, pretendendo embora renunciar ao
mundo, continuam ligados às coisas terrenas por causa do
medo causado pela falta de fé: «Se há um homem tímido,
de coração medroso, que não parta para o combate; que se
ponha a caminho e regresse a casa, não aconteça que, com
o seu medo, aterrorize o coração dos seus irmãos» (Dt 20,8) .
Que haverá de mais claro que um tal testemunho? Com
essas palavras torna-se-nos claro que aqueles que renun­
ciam ao mundo devem levar até ao fim uma tal renúncia, e
só depois partir para o combate. E isso de tal modo que,
renunciando a um início cobarde (e, por conseguinte,
marcado desde logo pelo estigma do desaire e votado à
corrupção) não afastem os outros da perfeição evangélica
ao inspirarem-lhes medo.
Está claramente dito na divina Escritura que « coisa
melhor é dar do que receber» (At 20,35) afirmação que esses
tais compreendem mal, violentando o texto, levados pela
velhacaria que os caracteriza e pela avidez que está pegada
à sua pele. Desse modo falseiam o sentido das palavras e
do ensinamento do Senhor que diz: «Se queres ser perfeito
vai, vende tudo o que possuis e dá-o aos pobres, com o
que terás um tesouro nos céus; e de seguida vem e segue­
-me» (Mt 1 9 , 2 1 ) . Preferem a fruição das suas riquezas ao
despoj amento exigido pela ordem do Senhor. E assim
agindo mais não fazem do que dar aos indigentes um
pouco do seu supérfluo. Homens desses deveriam estar
conscientes de que não renunciaram verdadeiramente ao
mundo nem abraçaram a perfeição monástica. Deveriam
corar de vergonha por não assumirem a penúria do Após-
1 40 PEQUENA FILOCALIA

tolo e por não praticarem a ajuda aos indigentes mediante


o trabalho manual. Se o seu desejo de cumprir a profissão
monástica fosse um desejo verdadeiro, o seu caminho teria
sido outro: depois de terem distribuído toda a sua antiga
riqueza, e sentido a glória do Apóstolo «na fome e na sede,
no frio e na nudez» (2Cor 1 1 , 2 7) , experienciariam j unta­
mente com ele «o belo combate» (2Tm 4,7) .
Efetivamente, se Paulo tivesse julgado necessário, para
atingir a perfeição, manter os seus antigos pergaminhos,
não teria menosprezado as origens nobres que eram as
suas: com efeito, tem por irrelevante o status que era o seu,
inclusive a sua condição de cidadão romano (cf. At 22,25) . E
aqueles que, em Jerusalém, eram possuidores de casas e de
campos, e depositaram aos pés dos apóstolos o valor da
sua venda (cf. At 4,34-35), não teriam assim agido tivessem
os apóstolos julgado ser melhor, na senda da perfeição, o
comportamento oposto. O desafio consistia em assumir
um estilo de vida onde a subsistência se alcança mediante
o trabalho realizado, experimentando desse modo as dores
que os outros homens experimentam. Ele, Paulo, ensina
isso de um modo muito claro na carta aos Romanos (vd.
1 5 , 2 5 - 2 7) : «Agora parto para Jerusalém para servir os
santos» Tratava-se para o Apóstolo de levar até Jerusalém a
coleta levantada nas igrejas gentílicas para socorrer os cris­
tãos pobres naquela cidade. Tinha sido do agrado das
comunidades cristãs da Macedónia e da Acaia que assim
fosse. E Paulo empenha-se totalmente nesse serviço. E
observa, em jeito de conclusão: «Agradou-lhes, com efeito,
e eles são seus devedores» (ibidem) .
O próprio Apóstolo - tantas vezes aprisionado e tantas
vezes feito protagonista de acidentes em viagens, e nessas
circunstâncias impossibilitado de prover com as suas
mãos, como era seu costume, à sua subsistência - declara
SÃO JOÃO CASSIANO 1 41

ter recebido dos irmãos vindos da Macedónia essa subsis­


tência: «Pois os irmãos vindos da Macedónia é que prove­
ram às minhas necessidades» (2Cor 1 1 ,9) ; e escrevendo aos
Filipenses: «Vós sabeis, vós também Filipenses, que quan­
do parti da Macedónia nenhuma igreja me assistiu na per­
muta de dar e receber a não ser vós: em Tessalónica, por
duas vezes, me enviastes o auxílio de que tinha necessi­
dade» (FI 4, 1 5- 1 6) . Será então sensato o comportamento dos
avarentos, pobres deles, prisioneiros da sua avareza? E
ainda: terão esses cristãos sido mais abençoados do que o
Apóstolo, por terem provido às necessidades dele com os
recursos de que dispunham? D igamo-lo sem tibiezas :
seria necessária muita insensatez para responder afirmati­
vamente às duas coisas. E, por conseguinte, não passaria
de um refinado estulto aquele que não fosse capaz de ver
mais longe.
Por esse motivo, se queremos seguir o preceito evangé­
lico e imitar a Igrej a na sua integridade, tal como ela foi
fundada inicialmente sobre os Apóstolos, não nos fiemos
nas nossas próprias opiniões e não interpretemos mal as
coisas que, fielmente, nos têm sido transmitidas. Portanto,
rej eitando os pontos de vista próprios da mediocridade e
resultantes de uma fé tíbia, sigamos com rigor o Evange­
lho ! Poderemos assim caminhar na senda dos Pais, sem
nunca nos afastarmos da disciplina do mosteiro e sem dei­
xarmos de manter, de um modo genuíno, a nossa renúncia
ao mundo.
Vem a propósito, e é mesmo um imperativo, evocarmos
as palavras de um santo. Conta-se que S. Basílio, bispo de
Cesareia, interpelou nestes termos um certo ex-senador
cuj a renúncia ao mundo era por demais equívoca, pois
mantinha para si uma parte das suas riquezas: tu perdeste o
senador e não ganhaste o monge!
1 42 PEQUENA FILOCALIA

Impõe-se-nos, pois, diligentemente, erradicar da nossa


alma a raiz de todos os males, isto é, a avareza, conscientes
de que, se a raiz se mantém, os ramos facilmente brotam.
Ora, atingirmos uma tal virtude não é fácil sem vivermos
em comunidade, pois só comunitariamente poderemos ser
libertados da preocupação com as coisas necessárias.
Lembrando-nos, pois, do castigo infligido a Ananias e a
Safira (cf. At 5 ,5ss) , renunciemos a guardar para nós o que
quer que seja que possuamos. E temendo também o que
aconteceu a Guiezi, que pela sua avareza foi punido com
uma lepra incurável (cf. 2Rs 5 ,27) , fujamos do acúmulo de ri­
quezas que anteriormente, no mundo, não possuíamos. E,
finalmente, tendo presente a morte de Judas (enforcou-se!)
- (cf. Mt 27,5 ) , sejamos vigilantes, a fim de nunca readquirir­
mos bens a que renunciámos. E, mais do que tudo, tendo
sempre presente a perspetiva da morte, vivamos atentos,
não aconteça que o Senhor venha à hora em que não o es­
perávamos e encontre a nossa consciência maculada pela
avareza. Ele dir-nos-ia então as palavras dirigidas ao rico do
Evangelho: «Insensato, esta noite mesmo ser-te-á pedida a
tua alma: para quem será o que amealhaste? !» (Lc 1 2,20)

A cólera

O nosso quarto combate é contra o demónio da cólera:


impõe-se-nos, com a ajuda de Deus, extirpar das profun­
dezas da alma esse veneno mortal! Com efeito, enquanto
ela habitar o nosso coração e cegar os seus olhos com
pesadas trevas, não poderemos discernir o que nos con­
vém, nem compreender a ciência espiritual, nem tomar a
decisão justa, nem viver a verdadeira vida. É que a nossa
mente será tomada de profundas trevas, incapaz de con-
SÃO JOÃO CASSIANO 1 43

templar a luz divina. Está dito, com efeito: «Ü meu olho foi
turvado pela cólera» (SI 6,8) . Ficaremos longe da sabedoria
divina, não obstante sermos tidos por sábios por toda a
gente, pois está escrito: «Que a cólera não tome conta de
ti, pois ela campeia no seio dos tresloucados» (Ecl 7,9) . Nem
poderemos assumir as orientações pseudossalvíficas pro­
venientes de um perturbado discernimento, mesmo quan­
do os homens nos têm por prudentes, pois está também
escrito : «A cólera do homem não cumpre a j ustiça de
Deus» (Tg 1 ,20) . Tão-pouco poderemos alardear modera­
ção e dignidade, ambas merecedoras de todo o louvor, pois
está igualmente escrito: «Um homem encolerizado perde
a dignidade» (Pr 1 1 ,25) . Por conseguinte, aquele que quer
atingir a perfeição e desej a travar disciplinadamente o
combate espiritual, deve ser alheio aos acessos de cólera, e
escutar a admoestação apostólica: «Que toda a espécie de
azedume, fúria, cólera, gritaria, blasfémia, seja de vós extir­
pada, j untamente com toda a maldade» (Ef 4,3 1 ) . Ao dizer
«toda» está a excluir todo e qualquer pretexto para nos en­
colerizarmos, que pudesse ser por nós evocado como ne­
cessário ou razoável. Por conseguinte, aquele que pretenda
corrigir o irmão que peca, ou intente puni-lo, deve esfor­
çar-se por se manter calmo, não aconteça que, ao querer
curar o outro, acabe ele próprio por contrair a enfermidade
e ouvir a inj unção do Evangelho : «Médico, cura-te a ti
mesmo! » (Lc 4,23), e ainda: «Por que motivo reparas no ar­
gueiro que está no olho do teu irmão e não vês a trave que
está no teu? ! » (Mt 7,3) .
Com efeito, independentemente da causa dos acessos
de cólera, esta, fogosa como é, cega os olhos da alma e im­
pede que se contemple o sol da justiça. Aquele que coloca
sobre os olhos placas de ouro ou de chumbo fica, em
qualquer dos casos, privado da sua capacidade de visão,
1 44 PEQUENA FILOCALIA

pois o ouro, não obstante o seu valor, produz do mesmo


modo cegueira. Similarmente, mutatis mutandis, quando a
cólera toma conta de nós, na sua fogosidade obscurece a
nossa visão espiritual. Na realidade, as coisas são mesmo
assim, independentemente da causa (razoável ou não, justa
ou inj usta) que a motiva. A nossa capacidade de nos enco­
lerizarmos só pode ser tida como aceitável quando se trata
de nos insurgirmos contra os pensamentos apaixonados e
voluptuosos. O Profeta no-lo ensina com as palavras: «En­
colerizai-vos e não pequeis» (SI 4,4) , isto é, encolerizai-vos
contra as vossas paixões e contra os pensamentos perver­
sos, e não pequeis levando à prática as suas insinuações. É
nesse sentido que, obviamente, devemos interpretar as pa­
lavras: «Ü que dizeis nos vossos corações vivei-o em espí­
rito de compunção no vosso leito» (SI 4,4) , isto é, quando
pensamentos perversos entram no vosso coração, expul­
sai-os com cólera, e a vossa alma conhecerá a paz como se
estivesse num leito repousante, vivendo desse modo a
compunção e o arrependimento. O bem-aventurado após­
tolo Paulo está em sintonia com essa interpretação quan­
do, ao utilizar o testemunho desse passo da Escritura,
ajunta: «Que o sol não se ponha sobre a vossa cólera, nem
deis lugar ao diabo» (Ef 4,26) , isto é, que a vossa cumplici­
dade com os maus pensamentos, ao provocar a ira de
Cristo, não o leve - Sol da justiça que é - a ocultar-se do
vosso coração. Ora, uma tal ocultação, criadora de uma
ausência, seria propícia à manifestação do diabo em vós.
Desse Sol, a Palavra do Senhor, mediante o Profeta, diz:
«Para aqueles que temem o meu nome levantar-se-á o Sol
da j ustiça com as suas asas salvíficas» (MI 4,2) . E se inter­
pretássemos literalmente as palavras do Apóstolo, diríamos
que um acesso de cólera não pode durar para além do pôr
do sol. Sendo assim, que diremos daqueles que, cegos pela
SÃO JOÃO CASSIANO 1 45

loucura da paixão e insatisfeitos com o pôr do sol como


limite, prolongam a sua cólera durante dias seguidos, abs­
tendo-se de falar com os outros? A cólera por eles interio­
rizada já não se exprime na violência das palavras, mas sim
numa outra forma de violência: a do mutismo no trato
com os outros. Ora um tal comportamento não faz senão
aumentar o veneno do rancor que os corrói e que os leva à
perdição. Ignoram que a cólera de que devemos abster-nos
não é somente a que se traduz em ato mas também a que
nos condiciona em pensamento. Com efeito, ela faz com
que a mente, cega pelas trevas do rancor, perca a luz do
conhecimento e do discernimento, ficando assim incapaz
de ser habitação do Espírito. Motivo pelo qual o Senhor
ordena no Evangelho que deixemos a nossa oferta diante
do altar e nos reconciliemos primeiro com o nosso irmão
(cf. Mt 5 ,23-24) . A não ser assim, prisioneiros da cólera e ru­
minando rancor, tornamos inviável a aceitação da oferta.
Na mesma perspetiva, o Apóstolo exorta-nos a orar inces­
santemente, levantando onde quer que estej amos mãos
puras, sem cólera nem altercação ( 1 Tm 2,8) . De uma tão ca­
lorosa exortação uma alternativa emerge: ou deixamos de
orar (mas nesse caso pecamos contra o mandamento
apostólico) ou tomamos a sério a observância desse man­
damento e cumprimo-lo (o que implica orar sem cólera
nem rancor) .
Acontece frequentemente menosprezarmos irmãos
contristados ou perturbados, alegando que a sua tristeza
não tem como causa uma falta por nós cometida. Motivo
pelo qual o médico das almas, querendo extirpar radical­
mente do nosso coração os preconceitos da alma, nos or­
dena que deixemos a nossa oferta diante do altar e nos re­
conciliemos primeiro com o nosso irmão, quer sej amos
nós que estamos zangados com ele, quer seja ele que está
1 46 PEQUENA FILOCALIA

zangado connosco. E isso independentemente de quem


possa ter ou não razão. Devemos começar por resolver a
situação através de um pedido de perdão, e só em seguida
apresentar a oferta.
Mas por que motivo havemos de continuar a insistir nos
preceitos evangélicos, quando até mesmo a lei antiga (que a
um primeiro olhar pode parecer menos rigorosa) ensina o
mesmo? ! Vej amos: «Não odeies o teu irmão no teu cora­
ção» (Lv 1 9 , 1 7) , ou: «ÜS caminhos daquele que guarda
rancor conduzem à morte» (Pr 1 2,28) . E não se perca de vista
que uma tal lei, exprimindo-se como se exprime, está não
somente a interditar o ato como também o pensamento.
Por conseguinte, é preciso que aqueles para quem as leis
divinas são santas lutem com todas as suas forças contra o
espírito colérico, isto é, contra essa enfermidade que corrói
o nosso interior; e que aqueles que se encolerizam contra
os outros não trilhem o caminho da fuga que conduz ao
isolamento nem tão-pouco se tornem cativos de um labi­
rinto de desnorte que asfixia. Não fariam mais do que
iludir-se a si mesmos, pensando que desse modo ficariam
imunes à cólera resultante da influência nefasta dos outros.
Efetivamente, é levados pelo orgulho, numa fuga à nossa
responsabilidade (incapazes de reconhecer a nossa própria
negligência) que desejamos separar-nos dos irmãos. Ora,
durante todo o tempo em que atribuímos aos outros as
causas da nossa fraqueza, seremos incapazes de viver a lon­
ganimidade no quotidiano da vida. Com efeito, o essencial
do nosso progresso e da nossa paz não nos advém da pa­
ciência do nosso próximo para connosco, mas sim da nossa
capacidade de sermos longânimos para com ele. Se pro­
curarmos o deserto para nos isolarmos, com o fito de fugir­
mos do combate essencial pela vivência da longanimidade,
todos os vícios que connosco para lá tivermos transpor-
SÃO JOÃO CASSIANO 1 47

tado, sem terem sido domados, connosco permanecerão


mantendo a sua virulência, mesmo quando não se manifes­
tam abertamente à luz do dia. De facto, para aqueles que
não se libertaram das paixões, o isolamento e o retiro não
são garantia de cura: podem, efetivamente, não apenas
mantê-las, mas até mesmo dissimulá-las, e isso de tal modo
que os pobres fugitivos se tornam até incapazes de se aper­
ceber de que paixões são prisioneiros. O isolamento insi­
nua neles a ilusão da virtude, persuadindo-os de que já são
longânimos e humildes. É suficiente, contudo, haver al­
guém que os provoque para que se apercebam do que con­
tinuam a ser: basta, com efeito, que surj a uma dessas cir­
cunstâncias perturbadoras e de imediato as ocultadas
paixões irrompem à superfície. E fazem-no quais cavalos
sem freio que saltam da estrebaria com uma impetuosidade
e ferocidade inusitadas, depois de terem estado muito tem­
po sujeitos ao descanso e à inação, transportando com eles
o cavaleiro. Com efeito, as nossas paixões ganham redo­
brada impetuosidade quando nos isolamos, quebrando
assim a relação com os outros. E até mesmo aquela fímbria
de paciência e de longanimidade, que imaginávamos pos­
suir, enquanto estávamos juntos com os irmãos, acaba por
se dissipar: perdemo-la em virtude da negligência causada
pela ausência do convívio e pelo isolamento.
Tal como os mais venenosos dos bichos selvagens, em
repouso no deserto, nas suas tocas, mostram toda a sua
agressividade ao atacarem quem se aproxima, assim tam­
bém os homens submetidos às paixões, que vivem calma­
mente não por uma disposição virtuosa, mas sim pela ne­
cessidade imposta pelo deserto, lançam o seu veneno
sempre que deitam a mão a alguém que se aproxima e os
provoca. Por esse motivo, aqueles que procuram a perfei­
ção inerente à doçura devem esforçar-se no sentido de não
1 48 PEQUENA FILOCALIA

somente não se encolerizarem contra os homens como


também não se irarem contra os animais, nem mesmo
contra as coisas. Efetivamente, lembro-me de que, quando
vivi no deserto, me irritava contra os cálamos que por
vezes achava demasiado grossos, e outras vezes demasiado
finos, ou então contra um bocado de madeira que não
conseguia cortar tão rapidamente quanto o desejava, ou
ainda contra a pederneira quando, apressado para acender
o fogo, a faísca tardava a cintilar. Era assim que a minha
cólera incidia até mesmo nas coisas inanimadas.
Por conseguinte, se queremos viver na bem-aventu­
rança do Senhor, impõe-se-nos, como já foi dito, erradicar
não somente a cólera em ato, mas também em pensamen­
to. De facto, mais importante do que dominar a nossa
língua, quando somos acometidos de um acesso colérico
(fugindo de proferir palavras iradas) , é purificar o nosso
coração de todo o rancor, e deixar de ruminar pensamen­
tos maus contra um irmão. Porque o ensino do Evangelho,
na sua centralidade, confronta-nos com um incontornável
imperativo: a erradicação do pecado naquilo que o gera,
mais do que a erradicação dos frutos. Uma vez a raiz da
cólera extirpada do coração, nem o ódio nem a inveja po­
derão vir a traduzir-se em atos. Com efeito, daquele que
odeia o irmão dizemos ser «homicida» (cf. 1Jo 3 , 1 5) , pois
mata-o com a virulência de um ódio assassino. Os homens
não o veem derramar sangue com uma espada, mas Deus
vê que ele mata em espírito com o ódio que o habita. E o
Senhor que distribui coroas e castigos julga-nos com toda
a retidão auscultando as profundezas do nosso ser: ações,
pensamentos, intenções, nada escapa à profundidade do
seu olhar. Ele mesmo o declara por intermédio do Profeta:
«Eis que venho para lhes retribuir de acordo com as suas
ações e os seus pensamentos» (vd. Is 66 , 1 8) . O Apóstolo,
SÃO JOÃO CASSIANO 1 49

esse, diz também: «E os seus pensamentos serão para eles


acusação, ou até mesmo defesa, no dia em que Deus j ul­
gará o que está oculto nos homens» (Rrn 2 , 1 5 - 1 6) .
E é o próprio Senhor Jesus quem nos ensina a renunciar
à cólera. É, com efeito, Ele mesmo quem declara no Evan­
gelho: «Aquele que se encolerizar contra o seu irmão será
réu de juízo» (Mt 5 ,22) . Esse é o texto que além de ser ates­
tado pelos melhores manuscritos é também suportado pelo
contexto, de onde se infere que as palavras «sem causa»
devem ser tidas por uma interpolação posterior. Efetiva­
mente, o desígnio do Senhor implica que extirpemos pela
raiz a chispa da cólera! Daí resultará não acalentarmos pre­
texto algum para a irritação, não nos aconteça que, ao se
desencadear a cólera por um bom motivo, ela se transforme
numa insensatez incontida e desenfreada. O remédio per­
feito contra uma tal enfermidade, ei-lo: assumirmos que em
nenhuma circunstância nos é permitido dar vazão à cólera,
quer se trate de coisas justas ou de coisas injustas. É que em
virtude de a cólera entenebrecer o espírito, acontecem em
nós coisas lamentáveis: o discernimento extingue-se; a opi­
nião justa esboroa-se; a justiça esvai-se. Assim, mais do que
de tudo, devemos dela fugir a fim de que a nossa alma não
se transforme num deserto feito da ausência do Espírito
Santo. E que não se nos desvaneça a incerteza do momento
da morte: de nada nos servirão castidade, renúncia aos bens,
jejuns, vigílias, se no inopinado dia do julgamento formos
achados grávidos de cólera e de ódio!

A tristeza

O nosso quinto combate é contra o demónio da tris­


teza, que rouba à alma a luz da contemplação espiritual,
150 PEQUENA FILOCALIA

impedindo-a da prática das boas obras. Com efeito, quan­


do um tal demónio se apodera da alma, lançando sobre ela
as suas trevas, impede-a de orar com fervor e de se aplicar
com proveito e com perseverança na leitura das Santas
Escrituras. Incapacita o homem de ser doce e conciliante
no trato com os irmãos, pois incute nele um visceral ódio
a quem quer que seja que se empenhe em viver verdadei­
ramente. A tristeza, com efeito, ao afetar totalmente todas
as pretensões salutares da alma, e ao castrar o seu vigor e a
sua constância, torna-a louca e paralisa-a, acabando por
amordaçá-la com o desespero.
Por esse motivo, se queremos travar o combate espiri­
tual e, com a aj uda de Deus, vencer os demónios da malí­
cia, preservemos com extremo cuidado o nosso coração
dos ataques do demónio da tristeza . É que, tal como a
traça rói a roupa, e o caruncho carcome a madeira, assim
também a tristeza devora a nossa alma. Devora-a ao levar­
-nos a fugir dos encontros salutares e dos bons conselhos
dos nossos melhores amigos, a quem respondemos de um
modo ríspido. Ela tolhe a alma por todas as partes e enche­
-a de amargura e de tédio. Enfim, leva-a a fugir dos ho­
mens, como se eles fossem os responsáveis pela perturba­
ção na qual mergulha e pela qual é responsável. Impede-a,
assim, de reconhecer que a sua enfermidade não lhe vem
do exterior, mas está lá no seu interior. E isso torna-se evi­
dente quando as tentações, que atacam na prática do quo­
tidiano, fazem com que ela surja à luz do dia. Efetivamen­
te, nunca um homem é vítima de danos causados por
outrem quando no seu interior não se encontram as cau­
sas das paixões. Por conseguinte, Deus, criador de tudo e
médico das almas - o único a conhecer exatamente as feri­
das da alma - não nos ordena que renunciemos ao conví­
vio com os outros, mas sim que erradiquemos do nosso
SÃO JOÃO CASSIANO 151

interior a s causas d o mal. E l e sabe que a saúde d a alma


não se obtém separando-nos dos outros, mas sim convi­
vendo com homens piedosos. Não pensemos que ao
abandonarmos os irmãos (mesmo quando levados a isso
por alguma aparentemente boa razão) criamos só com isso
condições para erradicamos os motivos da nossa tristeza:
limitamo-nos simplesmente a permutá-los. Não esqueça­
mos que o mal que está em nós acabará como tal, em cir­
cunstâncias diferentes, a revelar-se como aquilo que é :
como mal.
Por essa razão, todo o nosso combate deve ser travado
contra as paixões que estão dentro de nós. Uma vez estas
expulsas do nosso coração, com a graça e a ajuda de Deus,
poderemos viver não apenas com outros homens, mas até
mesmo com animais selvagens, segundo o que está dito
pelo bem-aventurado Job : «Üs animais selvagens viverão
em paz contigo» Ob 5 ,23) . Mas primeiro, e antes de mais
nada, devemos combater o demónio da tristeza: há que ex­
pulsá-lo da nossa alma, pois é ele que a lança no deses­
pero. Foi ele, efetivamente, que impediu o arrependimento
não só de Caim, o fratricida, como também de Judas, o
traidor.
A única forma de tristeza que devemos cultivar é a que
é inerente ao arrependimento pelos pecados cometidos, e
que é animada pela força da esperança em Deus. Dela fala
o Apóstolo ao dizer: «A tristeza, segundo Deus, produz um
arrependimento que leva à salvação» (2Cor 7, 1 0) . De facto, a
tristeza que é salvífica nutre a alma de esperança - a espe­
rança inerente ao arrependimento - e está permeada de
alegria. Motivo pelo qual ela torna o homem ardoroso, ar­
tífice do bem, afável, humilde, doce, não ressentido, persis­
tente no sofrimento, resiliente nas atribulações que, na
providência de Deus, nos sobrevêm. É dessa tristeza, e só
152 PEQUENA FILOCALIA

dessa, que brotam nas nossas vidas os frutos do Espírito


Santo: alegria, amor, paz, longanimidade, bondade, fé, tem­
perança (Gl 5 ,22-23) . Nos antípodas dessa está a outra tris­
teza, geradora dos frutos maus: tédio, impaciência, cólera,
ódio, quezília, desânimo, menosprezo da oração. Impõe­
-se-nos, portanto, fugir dessa tristeza como se foge da
impudicícia, da avareza, da cólera e de outras paixões que
tais. Ela cura-se, porém, mediante a oração, a esperança
em Deus, a meditação das divinas Escrituras, o convívio
com homens piedosos.

O tédio ou acédia

O nosso sexto combate é contra o demónio do tédio


(acédia) que caminha lado a lado com o demónio da tris­
teza. Trata-se de um demónio temível, implacável, que sem
cessar faz guerra aos monges. É ele que ataca o monge à
hora sexta (meio-dia) , tornando-o não apenas indolente e
timorato, mas também rancoroso: começa a odiar o mos­
teiro, os irmãos que nele vivem, toda e qualquer ocupação,
e até mesmo a leitura das divinas Escrituras. Instila no
monge a ideia de mudar para outro sítio, convencendo-o
de que, se não o fizer, cairá numa banalidade frívola, e todo
o esforço feito até então não será mais do que uma perda
de tempo. Sobretudo por volta da hora evocada acima, fá­
-lo sentir fome, tanta fome como se já estivesse há três dias
sem comer, e tivesse já feito uma longa caminhada, ou rea­
lizado um penoso trabalho. Em seguida, insinua nele a
ideia de que a única forma de se libertar dessa enfermidade
e desse fardo consiste em saídas incessantes para ir ver
outros irmãos, com o pretexto quer do proveito espiritual,
quer da visitação aos enfermos. Se fracassa no seu desejo
SÃO JOÃO CASSIANO 153

de fazer cair o monge nessas armadilhas, fá-lo cair num


profundo sono, e desse modo procura enfraquecê-lo mais
e mais. Quando as coisas chegam a esse ponto, os únicos
meios de que o monge dispõe para o expulsar são: oração,
fuga à tagarelice, meditação da Escritura, resiliência nas
provações. Se não seguir por aí, o monge não passará de
um joguete, alvo para as mais variadas tropelias, acabando
por cair rotundamente numa instabilidade doentia, numa
errância alienante, numa negligência irmã gémea da pre­
guiça. E passamos a vê-lo a andar de mosteiro em mostei­
ro, possuído por uma única preocupação: a de encontrar
um onde haja comida e bebida. Com efeito, o espírito do
monge feito prisioneiro da acédia nada mais imagina a não
ser derivativos desse tipo. Cativo das coisas mundanas, o
seu mundo passa a ser cada vez mais o das ocupações no­
civas até ao ponto da rutura com a vida monástica.
Dessa enfermidade, grave em extremo, o divino Após­
tolo, sabendo e querendo erradicá-la das nossas almas,
aponta, qual sábio médico, as causas que a motivam: «Or­
denamos-vos, irmãos, no nome do Senhor Jesus Cristo,
que vos mantenhais distantes de todo o irmão que vive de
uma maneira desregrada, e não segundo a tradição que
vós de nós recebestes. Sabeis bem, com efeito, como é pre­
ciso que sigais o nosso exemplo, pois não vivemos de um
modo desregrado no vosso meio, e de ninguém recebemos
gratuitamente o pão que comemos, pois na fadiga e no
cansaço trabalhámos de noite e de dia, para não sermos
pesados a ninguém. Não que não tivéssemos direito a isso,
mas agimos desse modo para vos dar, na nossa própria
pessoa, um exemplo a seguir. Foi assim que, estando entre
vós, vos demos esta ordem: se alguém não quer trabalhar,
então que não coma! Temos, com efeito, ouvido falar de
certas personagens que, entre vós, levam uma vida desre-
1 54 PEQUENA FILOCALIA

grada, não trabalham, e se entregam à vagabundagem. A


pessoas dessa espécie ordenamos e exortamos, no Senhor
Jesus Cristo, o seguinte: que tranquilamente trabalhem e
comam o pão por eles próprios ganho» (2Ts 3 , 6 - 1 2 ) .
Não percamos, pois, de vista como o Apóstolo, de um
modo impregnado de sabedoria, nos mostra as causas da
acédia. Atribui, efetivamente, o epíteto de «desregrados»
àqueles que não trabalham, e com uma só palavra abre um
amplo campo de significado. De facto, aquele que é desre­
grado não teme a Deus, deixa-se levar pelos seus próprios
devaneios, é propenso às injúrias, incapaz de se concentrar
- numa palavra, é cativo da acédia. O Apóstolo ordena que
nos separemos deles, isto é, que deles nos afastemos como
se de uma praga se tratasse. E ao dizer deles que não cami­
nham «segundo a tradição que vós de nós recebestes», está
a sublinhar que são arrogantes e iconoclastas das tradições
apostólicas. E diz-nos ainda de si-mesmo: «de ninguém re­
cebemos gratuitamente o pão que comemos, pois na fadi­
ga e no cansaço trabalhámos de noite e de dia, para não
sermos pesados a ninguém» . Note-se, pois: aquele que é
reconhecido como doutor das nações e arauto do Evange­
lho, e que foi elevado até ao terceiro céu, trabalhava noite
e dia, esforçadamente, até ao esgotamento, para não ser
pesado a ninguém. E, não obstante, era um bom conhece­
dor das palavras de Jesus segundo as quais os pregadores
do Evangelho devem viver do Evangelho. Que se dirá
então de nós, que temos o trabalho por um fardo e pro­
curamos o bem-estar do corpo? Que se dirá então de nós,
a quem não foi cometida nem a tarefa do anúncio do
Evangelho, nem a responsabilidade da condução das igre­
j as? Que se dirá então de nós, parece que preocupados
apenas com o destino da nossa alma? Ora é ele ainda, o
mesmo Apóstolo, quem interpela os ociosos (consciente
SÃO JOÃO CASSIANO 155

dos danos que eles causam, não só a si mesmos como


também aos outros) afirmando a seu respeito, não sem um
grãozinho de ironia: «sem nada fazer e sempre atarefados».
Com efeito, da ociosidade provém a ingerência nas vidas
alheias; dessa ingerência o desregramento; do desregra­
mento todo o tipo de mal. Mas prescreve-lhes também
um remédio: «A pessoas dessa espécie ordenamos e exor­
tamos, no Senhor Jesus Cristo, o seguinte: que tranqui­
lamente trabalhem e comam o pão por eles próprios
ganho. » E adverte com severidade: «se alguém não quer
trabalhar, então que não coma!»
Instruídos por esta doutrina apostólica, os santos Pais
do Egito estatuíram que em nenhuma circunstância este­
jam os monges ociosos, sobretudo durante o tempo da sua
juventude. Eles sabem que é pelo trabalho, perseverante­
mente realizado, que não só expulsamos a acédia como
também obtemos a nossa subsistência e prestamos ajuda
aos indigentes. Com efeito, eles não trabalham somente
para suprir as necessidades próprias: mediante o trabalho
que executam obtêm os recursos necessários para prestar
apoio aos hóspedes, socorrer os pobres, auxiliar os prisio­
neiros. Estão persuadidos de que uma vida de serviço
assim concebida é em si mesma uma oferenda santa agra­
dável a Deus. E os Pais dizem ainda isto: aquele que traba­
lha luta não poucas vezes, é verdade, contra um demónio e
por ele é atormentado; mas aquele que vive na ociosidade,
esse, inescapavelmente, fica prisioneiro de milhares de
demónios.
Além disso, é bom evocar o que o abade Moisés (um
dos mais experientes dos Pais) me disse um dia. Fui pro­
curá-lo para pedir ajuda, pois ainda era eu um novato no
deserto e já o demónio da acédia me assediava. Disse-lhe
que, na véspera, muito ele me tinha atormentado, e que, já
156 PEQUENA FILOCAL.IA

sem forças, só tinha conseguido libertar-me com uma


visita ao abade Paulo. Perante isto, o abade Moisés retor­
quiu: «Tu não te libertaste verdadeiramente! Ficaste, pelo
contrário, ainda mais cativo. Que fiques, pois, a saber isto:
os ataques desse demónio vão-se intensificar contra ti,
pois vai-te tratar severamente como desertor. Impõe-se-te,
por conseguinte, defrontá-lo denodadamente. E só o ven­
cerás mediante uma inquebrantável persistência, um alto
empenho na oração, um quotidiano trabalho manual.»

A vanglória

O nosso sétimo combate é contra o demónio da van­


glória, uma paixão que se reveste das formas mais diversas
e atua sibilinamente. Mesmo o mais experimentado dos
homens não consegue dominá-lo com facilidade. Quando
se trata das outras paixões, os seus ataques são mais desca­
rados, pelo que podemos combatê-las mais claramente: a
alma reconhece o inimigo e rejeita-o de imediato, com re­
pulsa e oração. Mas a malícia própria da vanglória, reves­
tindo como reveste as mais diversas formas Gá o dissemos)
oferece particulares dificuldades ao inescapável combate.
Insidiosa e sibilinamente, ela lá está na multiplicidade das
nossas circunstâncias e ações: na fala, nos temas tratados,
na entonação da voz, no silêncio, na oração, na leitura, no
recolhimento, na perseverança. Em tudo isso ela se esforça
ardilosa mente com o fito de ferir o soldado de Cristo.
Quando se reconhece incapaz de seduzir um homem atra­
vés da sumptuosidade das vestes, tenta ludibriá-lo até
mesmo com a mais miserável das farpelas. Quando não
consegue bajulá-lo com o aceno das honrarias, leva-o ao
orgulho de ter suportado a desonra. Quando não pode
SÃO JOÃO CASSIANO 157

persuadi-lo a sentir-se vaidoso pela eloquência com que


fala, procura seduzi-lo com um silêncio que faz passar por
recolhimento. Quando se vê inapta para o levar a gloriar-se
com um bom regime alimentar, esgota-o com um j ej um
feito para ser publicamente louvado. Numa palavra: uma
qualquer obra, uma qualquer ocupação, proporciona a
esse malicioso demónio uma oportunidade para o ataque.
Ele chega mesmo ao ponto de insinuar que qualquer
um de nós é membro do clero. Lembro-me, efetivamente,
de um caso ocorrido com um presbítero, quando eu habi­
tava S cété. D irigindo-se esse presbítero à cela de um
irmão, com o obj etivo de o visitar, ao aproximar-se da
porta ouviu-o falar no interior. Pensando que ele repetia
algum passo da Escritura, ficou a escutá-lo. Só então se
apercebeu de que esse irmão estava tomado por um acesso
de vanglória: via-se a si mesmo como diácono e imaginava
estar a despedir os catecúmenos. Apercebendo-se do que
se passava, o presbítero bateu à porta e entrou. O irmão
veio ao seu encontro, saudou-o segundo o costume, e per­
guntou-lhe se havia já muito tempo que estava à porta. O
presbítero respondeu-lhe com um sorriso: «Cheguei exa­
tamente no momento em que tu despedias os catecúme­
nos.» Ao ouvir estas palavras, o irmão caiu aos pés do pres­
bítero e pediu-lhe que orasse por ele a fim de ser libertado
de uma tal vacuidade.
Evoquei este acontecimento para mostrar até que grau
de inconsciência um homem desce quando um tal demó­
nio o seduz e conduz. Aquele cujo combate visa a perfei­
ção, e deseja conquistar a coroa da justiça, deve, pois, es­
forçar-se com denodo para vencer essa besta multiforme,
tendo sempre presentes as palavras de David: «Ü Senhor
reduz a pó os ossos daqueles cujo intento se limita a agra­
dar aos homens» (Sl 53 ,5) . Por conseguinte, o que combate
158 PEQUENA FILOCALIA

em nome de Cristo nada deve fazer com o desejo de ser


louvado pelos outros. Um homem desses nada mais deve
procurar a não ser a recompensa vinda de Deus; assim,
repudiando sempre os pensamentos de autoelogio que lhe
sobrevêm no coração, deve considerar-se como nada
diante de Deus. Poderá desse modo, com a graça divina,
ser libertado do demónio da vanglória.

O orgulho

O nosso oitavo combate é contra o demónio do orgu­


lho. Trata-se de um demónio intratável, mais sinistro e
cruel que todos os precedentes. Ataca sobretudo aqueles
que já atingiram um grau elevado no caminho da perfei­
ção e se esforçam por chegar ao cume das virtudes. Qual
enfermidade virulentamente infeciosa e fatal que destrói
não apenas um membro, mas todo o corpo, o orgulho des­
trói a alma na sua totalidade e não apenas uma parte dela.
Quando se trata das outras afeções, a alma não é atin­
gida na sua totalidade. Cada afeção ataca a alma num âm­
bito de combate restrito: limita-se, com efeito, a um ataque
que visa só a virtude que, em particular, considera como o
inimigo a abater. Ora, não se passa o mesmo quando é o
orgulho que impera: esse entenebrece totalmente a alma e
condu-la à completa ruína. Para melhor compreendermos
o que estamos a dizer, notemos isto: a glutonaria visa atin­
gir a temperança; a impudicícia, a castidade; a avareza, o
despoj amento; a cólera, a doçura; as outras espécies de
perversidade, as virtudes opostas. Mas o orgulho, na sua
perversidade, quando se apodera da infeliz alma destrói-a
inteiramente, arrasando-a até aos fundamentos, à seme-
SÃO JOÃO CASSIANO 159

lhança do mais cruel dos tiranos que, ao conquistar uma


grande cidade, não deixa pedra sobre pedra.
Dessa aniquilação total é triste testemunha o tal anjo
que, arrastado pelo orgulho, decaiu dos Céus. Ele, que
tinha sido criado por Deus e provido de toda a virtude e
sabedoria, entrou em rebelião: recusou ver nesses atribu­
tos a graça do Senhor, para ver neles apenas manifestações
da sua própria natureza. Motivo pelo qual se julgou igual a
Deus. Ora é essa pretensão que o Profeta reprova com as
palavras : «Tu disseste no teu coração : "Habitarei numa
montanha elevada, colocarei o meu trono nas nuvens e
serei semelhante ao Altíssimo" . Mas tu és um homem e
não um Deus» (Is 1 4, 1 3) . Um outro profeta interpela assim:
«Porque te vanglorias tu da maldade, ó tirano ? ! » , e conti­
nua a interpelação no mesmo tom (SI 52,3-9) .
Tomemos, pois, consciência d o que está e m jogo, e dei­
xemo-nos encher de temor, desse temor que é o princípio
da sabedoria. E, numa vigilância de todos os momentos,
defendamos o nosso coração dos insidiosos e mortais ata­
ques desse demónio. E quando tivermos alcançado algu­
ma virtude, não deixemos de repetir para nós próprios as
palavras do Apóstolo: «Não eu, mas a graça de Deus que
estava comigo» (1 Cor 1 5 , 1 0) , bem como as palavras do
Senhor: «Sem mim nada podeis fazer» ao 1 5 ,5) , e ainda as
do Profeta: «Se o Senhor não edificar a casa, em vão traba­
lham os edificadores» (Sl 1 27, 1 ) , sem esquecer as do Após­
tolo: « Isso não depende da vontade nem do esforço do
homem, mas da misericórdia de Deus» (Rm 9 , 1 6) . Com
efeito, seja qual for a intensidade do seu zelo e o ardor do
seu desejo, aquele que está ligado à carne e ao sangue não
poderá atingir a perfeição a não ser pela misericórdia e
graça de Cristo. Como diz S. Tiago: «todo o dom excelente
vem do alto» (Tg 1 , 1 7) ; e o Apóstolo: «que tens tu que não
1 60 PEQUENA FILOCALIA

tenhas recebido? E, se o recebeste, porque te vanglorias,


como se o não tivesses recebido? » (1 Cor 4,7) . A interpelação
da divina Escritura atinge-nos, pois, profundamente, atin­
gindo o seu ponto alto com as palavras: como te podes tu
vangloriar dos dons de um outro como se fossem teus?
Ora, que a salvação nos vem da graça e misericórdia de
Deus é algo testemunhado pelo salteador crucificado: re­
cebeu o Reino dos Céus não como uma recompensa dada
à virtude, mas sim como uma pura dádiva da graça divina
(cf. Lc 23,43 ) . Vivendo essa dimensão profunda da graça de
Deus, os nossos Pais transmitiram-nos o ensino de que
não se pode chegar à perfeição da virtude a não ser me­
diante a humildade, humildade que não é uma conquista
nossa, mas sim um dom da fé, do temor de Deus, da do­
çura, de um total despojamento. É assim, pois, que atingi­
mos o perfeito amor através da graça misericordiosa de
nosso Senhor Jesus Cristo, a quem sej a a glória pelos sé­
culos dos séculos. Ámen.
SÃO MARCOS
O Asceta
SÃO MARCOS, o Asceta (século v) , viveu por volta dos anos 430,
sendo designado como Marcos, o Asceta, ou Marcos, o Monge,
ou ainda, Marcos, o Ermita. Pouco se conhece da sua vida. No
essencial foi um elo importante na transmissão do pensamento he­
sicasta (a oração interior) . A Filocalia conservou dele três das
suas obras, em particular as que sublinham a condição da ascese
radical, 200 capítulos sobre a lei espiritual e 226 sobre aqueles
que pensam ser justificados pelas obras. Marcos terá sido discí­
pulo de São João Crisóstomo e contemporâneo de São Nilo e de
Isidoro de Pelusa, ascetas de renome como ele.
Duzentos textos
sobre a lei espiritual

1. Em virtude de manifestardes frequentemente o desejo


de conhecer não só o significado da expressão «a Lei é es­
piritual», elaborada pelo Apóstolo (cf. Rm 7, 1 4) , mas também
o tipo de conhecimento e de prática que caracterizam aque­
les que estão empenhados na sua observância, dessas coisas
falaremos na medida em que soubermos e pudermos.

2. Comecemos com uma confissão: cremos que Deus é


o princípio, o meio e o fim de todo o bem. Ora é impossí­
vel para nós ter fé no bem, ou cumpri-lo, a não ser em
Cristo Jesus, na força que nos é dada pelo Espírito Santo.

3. Todo e qualquer bem é-nos dado providencialmente


pelo Senhor, e aquele que nisso crê não ficará defraudado.

4. Uma fé firme é semelhante a uma sólida torre. E para


aquele que crê, Cristo é tudo.

5. Que a procedência de todos os teus desígnios sej a


Aquele que é a fonte d e todo o bem, d e tal modo que os
teus projetos se cumpram segundo Deus.

6. Aquele que é humilêie e cuj as obras estão impregna­


das do Espírito, ao ler as divinas Escrituras aplica a si
mesmo e não a outrem tudo o que lê.
1 64 PEQUENA FILOCALIA

7. Pede a Deus que abra os olhos do teu coração, a fim de


poderes tomar consciência do valor da oração e da leitura
quando são intensamente vividas na prática do quotidiano.

8. Aquele que tem um carisma outorgado pelo Espírito,


isto é, a capacidade de se compadecer daqueles que o não
têm, salvaguarda um tal carisma no exercício da compai­
xão. Mas aquele que se vangloria de o ter, perde-o, pois su­
cumbe ao assédio dos pensamentos com que cultiva uma
indesejável ostentação.

9. A boca do humilde fala a verdade. Mas aquele que a


contradiz é semelhante ao servo que esbofeteou o Senhor
(cf. Jo 1 8 ,22) .

10. Não te faças discípulo daquele que se autoelogia!


Com efeito, ao rejeitares segui-lo não aprenderás o orgulho
mas sim a humildade. E começarás verdadeiramente a viver.

11. Não te orgulhes do teu conhecimento das Escrituras,


a fim de não ficares possuído pelo espírito de blasfémia.

12. Não tentes resolver um assunto tortuoso pela via da


polémica estéril. Adota, antes, os meios propostos pela Lei
espiritual, que implicam paciência, oração, esperança. E se
assim for não soçobrarás.

13. O cego grita: «Filho de David, tem piedade de mim!»


( L c 1 8 , 3 8 ) . Ele ora com o corpo. Não dispõe ainda do
conhecimento espiritual.

14. Aquele que momentos antes era cego, levanta os


olhos e, vendo o S enhor, proclama-o já não «Filho de
SÃO MARCOS 1 65

David», mas «Filho de Deus». E prosta-se para o adorar


(cf. ]o 9,38) .

15. Não sintas orgulho com as lágrimas que vertes na


oração, pois foi Cristo quem tocou os teus olhos e te deu
uma visão espiritual.

16. Aquele que, à semelhança do cego, lança fora o seu


manto e se aproxima do Senhor, torna-se seu discípulo e
proclamador da verdadeira doutrina.

17. A malícia, quando incentivada pelos pensamentos,


endurece o coração, petrificando-o. Mas quando domi­
nada pela temperança e pela esperança, torna-o doce. E
desse modo, em vez de um coração de pedra terás um
coração de carne.

18. Há um quebranto do coração que, por ser doce, o


conduz à compunção. Mas há um outro, violento e peri­
goso, que o destroça.

19. As vigílias, a oração, a persistência no confronto com


os acontecimentos, são tudo coisas que quebrantam
o coração sem o ferir. S ão-lhe até benéficas e salutares
desde que, por espírito de avidez, não seja rejeitada a sua
contribuição.

20. Um coração amante do prazer aprisiona a alma e


mantém-na cativa na hora da morte. Pelo contrário, um
coração amante da disciplina é uma porta aberta.

21. Um coração duro é uma porta de ferro à entrada da


cidade. Mas àquele que é experimentado e aplicado, uma
1 66 PEQUENA FILOCALIA

tal porta abrir-se-lhe-á por si mesma, como aconteceu


com Pedro (cf. At 1 2 , 1 0) .

22. Numerosas e muito diferentes entre s i são a s ma­


neiras de orar. E, contudo, nenhuma delas é nociva, pois
se o fosse já não seria oração. Seria obra de Satanás.

23. Um dia, um homem possuído pelo desejo de fazer


mal começou por orar, pois todos os dias orava. A oração
fazia, com efeito, parte da sua rotina. Naquele dia, porém,
sobreveio-lhe providencialmente um obstáculo. E já não
fez o que intentava fazer: em vez disso rendeu graças.

24. David, possuído pelo desejo de matar Nabal, o Car­


melita, ao lembrar-se de que a retribuição pertence a Deus,
renunciou ao seu desígnio e prostrou-se numa fervorosa
oração de ação de graças (cf. 1 Sm 25) . Pelo contrário, sabe­
mos o que ele fez quando se esqueceu de Deus e não se
deteve no seu desígnio. Foi-lhe necessária a admoestação
de Natan, o Profeta, que o levou a cair em si e a tomar
consciência do que tinha esquecido (cf. 2 Sm 1 2) .

25. Intensifica a tua oração nos momentos e m q u e te


lembras de Deus. E o Senhor, nas alturas em que dele te
esqueceres, fará desse esquecimento uma viva lembrança.

26. Quando lês as divinas Escrituras, não percas de vista


o significado do que nelas está oculto. Com efeito, nelas se
diz que «tudo o que foi escrito no passado foi escrito para
nossa instrução» (Rm 1 5 ,4) .

27. A Escritura diz que a fé é o fundamento do que se


espera (cf. Heb 1 1 , 1 ) , e tem por reprovados aqueles que não
reconhecem que Cristo está em nós.
SÃO MARCOS 1 67

28. Tal como o pensamento encontra a sua expressão


nas palavras e nas obras, assim também a recompensa fu­
tura traduzir-se-á tendo em conta as boas ações que
brotam do coração.

29. Escusado é dizer que um coração misericordioso


será obj eto de misericórdia. E que, pelo contrário, um
coração petrificado atrairá sobre si uma resposta pétrea.

30. A Lei da liberdade (cf. Tg 1 ,25) introduz-nos no campo


da doutrina verdadeira, onde decorre o ensino com que
somos ensinados. Muitos lêm-na como um mero conheci­
mento teórico, e poucos a compreendem. É que com­
preendê-la implica uma prática: a prática dos mandamentos.

31. Não procures, no domínio das virtudes humanas, a


perfeição que caracteriza a Lei da liberdade (ibidem) . É que,
no domínio das virtudes humanas, a perfeição que se julga
ter atingido não passa de uma ilusão. Aqueles que deman­
dam a perfeição não a encontram senão lá, onde ela está
oculta: na cruz de Cristo.

32. A Lei da liberdade só se dá a ver quando se atinge o


verdadeiro conhecimento. Compreendê-la, porém, supõe
uma prática: a prática dos mandamentos que decorre da
vivência da compaixão de Cristo.

33. Quando, por uma tomada de consciência, somos


compelidos ao cumprimento dos mandamentos divinos
na sua integralidade, compreendemos que a Lei do Senhor
é perfeita. E, como tal, outorga vida (cf. Sl 1 9,7) . Ela é posta
em prática quando o nosso agir se processa no sentido do
1 68 PEQUENA FILOCALIA

bem, mas no dia a dia esse seu cumprimento só se realiza


graças à misericórdia de Deus.

34. Aqueles que se excluem do imperativo divino no


cumprimento de todos os mandamentos de Cristo, limi­
tam-se a fazer uma leitura carnal da Lei de Deus. Nem a si
mesmos se compreendem nos seus discursos de autojusti­
ficação (cf. 1 Tm 1 ,7) , o que é revelador do equívoco em que
vivem. Vítimas de um tal equívoco, são incapazes de uma
autocrítica, pois estão convictos de que cumprem a Lei
mediante as obras que praticam.

35. Há ações que embora se revistam das aparências do


bem são praticadas por pessoas cuja intenção não é o bem.
Outras ações têm a aparência do mal, mas aqueles que as
praticam estão animados do desejo de fazer o bem. Diga­
mo-lo, por conseguinte, sem tergiversar: ao falarmos deste
modo falamos de coisas que implicam não apenas o
campo das ações, mas também o campo das palavras. Há,
com efeito, aqueles que desvirtuam o sentido das suas
ações quer por inexperiência quer por ignorância. Mas há
também outros que são animados pelo desígnio de fazer o
mal. Outros ainda, pelo contrário, são movidos pelo desejo
da piedade, propiciadora de uma vida santa.

36. O ingénuo experimenta uma grande dificuldade


na prática de uma introspeção genuína. É , efetivamente,
incapaz de ver no interior de si mesmo aquele que ao
elogiar outrem mais não faz do que ocultar a calúnia e a
censura que nele próprio grassam; tal como é incapaz
de ver aquele que dissimula sob uma aparência de hu­
mildade o orgulho que o possui. Uma coisa, porém, é
certa: aqueles que têm por hábito lançar mão de sofismas
SÃO MARCOS 1 69

para transmutar a verdade em mentira, acabarão por ser,


mais tarde, denunciados e refutados pelas suas próprias
ações.

37. Aquele que pratica uma ação que só aparentemente


é boa prevarica e ofende o próximo. Pelo contrário, aquele
que se abstém de uma tal ação está no caminho do eno­
brecimento.

38. Há ocasiões em que se é censurado sem motivo :


trata-se das censuras inspiradas pelo desejo de uma vin­
gança pessoal. Outras ocasiões há, porém, em que a cen­
sura é legítima: trata-se da censura que tem a sua inspira­
ção no temor de Deus e na verdade. Com efeito, viver no
temor de Deus é experienciar uma sabedoria que dá sen­
tido à vida.

39. Deixa de censurar aquele que renunciou ao pecado


e passou pelo arrependimento. E se alegas que o censuras
em nome de Deus, então começa por confessar os teus
próprios pecados.

40. Deus é a origem de toda a virtude, tal como o Sol é


a origem da luz do dia.

41 . Quando pensas de ti mesmo ser um praticante da


virtude, lembra-te daquele que diz «Sem mim nada podeis
fazer» Go 1 5 ,5 ) .

42. As aflições trazem consigo a bênção; a vanglória e o


prazer sensual, pelo contrário, são portadores de males.

43. Aquele que é vítima da inj ustiça dos homens não


fica prisioneiro do pecado. Mas não só: a provação por que
1 70 PEQUENA FILOCALIA

passa funciona para ele como uma preciosa ajuda, tanto


maior quanto maior for a injustiça sofrida.

44. Aquele que com fé se entrega a Cristo, aguardando


a recompensa, sente as suas forças renovadas e é capaz de
resistir corajosamente à inj ustiça com que é injustiçado. E
quanto maior for a sua fé, maior será a sua capacidade de
resistir.

45. Aquele que é capaz de orar pelos homens que lhe


fazem mal vence os demónios. Mas é vítima destes aquele
que paga o mal com o mal.

46. O ataque q ue da parte dos homens sobre nós se


abate é preferível ao ataque que nos é infligido pelos de­
mónios. Mas aquele que tem no Senhor o seu castelo forte
é capaz de vencer tanto uns como os outros.

47. Tenhamos sempre presente isto: de um modo pro­


videncial, as bênçãos que experimentamos na vida pro­
cedem invariavelmente do S enhor. Mas que isso assim
sej a é algo q ue, de um modo estranho, passa desaper­
cebido a muitos: aos ingratos, aos inconscientes, aos pre­
guiçosos.

48. Todo o vício coexiste com o prazer interdito, e toda a


virtude conduz à vivência de uma bênção espiritual. O vício,
ao impôr-se, excita mais e mais o que lhe é afim; a virtude,
ao ser assumida, incrementa o que lhe é conatural.

49. Os vitupérios provenientes dos homens afligem o


coração dos que são alvejados. Mas purificam aquele que a
eles resiste.
SÃO MARCOS 171

50. A ignorância, na sua cegueira, leva-nos a rejeitar o


que é benéfico. E o ignorante, na sua insolência, empresta
força aos tentáculos do mal.

51 . Que os tempos de calmaria não te façam esquecer


que as atribulações podem surgir de um momento para o
outro. Prepara-te, pois, para elas. E como terás de prestar
contas, foge da cupidez.

52. Se pecaste secretamente, não procures negá-lo. É


que, com efeito, tudo está a nu e a descoberto aos olhos do
Senhor, a quem devemos prestar contas.

53. Dá-te a ver ao Senhor, assumindo os pensamentos


que são os teus. De facto, o homem só vê a face, mas Deus
vê o coração.

54. Que o teu pensamento e a tua ação tenham um


único sentido e um único propósito: Deus. Efetivamente,
aquele que no seu desnorte viaj a sem um destino perde o
seu tempo.

55. Em virtude de a j ustiça de Deus ser inexorável,


aquele que peca acintosamente com dificuldade alcança o
perdão para os pecados que cometeu.

56. A intensidade com que um acontecimento penoso


leva um homem sensato a lembrar-se de Deus é inversa­
mente proporcional à intensidade do desânimo que o
mesmo acontecimento provoca naquele que se esquece de
Deus.

57. Que todo o sofrimento involuntário seja para ti uma


ocasião que te leve a uma maior comunhão com Deus. Se
1 72 PEQUENA FILOCALIA

assim for, não deixarás passar infrutífera uma tal experiên­


cia e viverás um arrependimento doador de vida.

58. O esquecimento em si mesmo nada gera. A sua


força <lanosa resulta das fraquezas da nossa negligência.

59. Não digas : «Quem me socorrerá? Que posso eu


fazer quando não quero demitir-me de uma vida respon­
sável e, não obstante esse meu não querer, demito-me? ! »
Que essas tuas palavras não t e sirvam d e alibi, d e fuga à
realidade. E a realidade é esta: faltaste ao teu dever.

60. Faz o bem que tens presente na lembrança, pois ao


fazê-lo tomarás consciência do bem de que te esqueceste.
Atenção ! É -te necessário travar q uotidianamente um
combate em defesa da tua mente, de tal modo que ela não
fique cativa de uma não só estéril como também daninha
confusão proveniente do esquecimento.

61 . A Escritura diz: «O inferno e a perdição estão a nu


diante do Senhor» (Pr 1 5 , 1 1 ) . Ora, ao exprimir-se desse
modo, a Escritura está a falar da ignorância filha da preguiça
e do esquecimento proveniente de um coração distraído.

62. Tenhamos, pois, presente isto: o inferno é a igno­


rância. Por conseguinte, a ignorância é infernal e intrinse­
camente tenebrosa. O terreno que aí se pisa é, pois, o de
uma perdição que, sendo provocada pelo esquecimento,
abre o espaço para a morte.

63. Ocupa-te das tuas faltas e não vivas obcecado pelas


faltas do teu próximo. Se assim for não estarás longe do
lugar onde a tua mente sente o apelo da liberdade.
SÃO MARCOS 1 73

64. A negligência situa-se nos antípodas do bem que


está ao nosso alcance praticar, e é visceralmente incompa­
tível com ele.

65. Todas as vicissitudes que suportamos por amor a


Deus são fundamentalmente uma obra de piedade. Efe­
tivamente, o amor verdadeiro prova-se no cadinho da
adversidade.

66. Se disseres que é possível atingirmos a virtude sem


passarmos pela experiência penosa inerente às atribula­
ções, o teu discurso é uma fuga à realidade. Com efeito, é
impensável a vivência da virtude quando tudo à nossa
volta é um mar de rosas.

67. Se estiveres consciente do que implica a saída de


uma atribulação, será para ti claro que uma tal saída é im­
possível sem a destruição do pecado. Só com a demolição
deste se torna viável a ocorrência daquela.

68. Os conselhos dos que nos são próximos não dei­


xam, por vezes, de ser úteis. Uma coisa, porém, é certa:
nada é mais útil a cada um do que a sua capacidade de
pensar por si próprio.

69. Procuras o caminho da cura? Então está atento à


tua consciência: faz tudo o que ela te sussurra e encontrar­
-te-ás no caminho do bem.

70. Os segredos de cada um, tal como a consciência, são


º
do conhecimento de De us. Que ambos - Deus e a cons­
ciência - nos guiem pelo caminho do aperfeiçoamento.
1 74 PEQUENA FILOCALIA

n.Nós homens fazemos o que está ao alcance do nosso


poder. E fazemo-lo segundo a medida da nossa vontade.
Não nos esqueçamos, porém, de que é Deus quem indica
o caminho a seguir, de acordo com aquilo que é justo e
bom.

72. É teu desejo agir de tal modo que, segundo a justiça,


suscites a admiração dos outros? Então procura, antes de
mais nada, a atitude de uma autocrítica.

73. O que tivermos suportado em ultrajes no combate


pela verdade que está em Cristo, será amplamente re­
conhecido pelos muitos que a tal forem sensíveis. Note-se,
contudo: é preferível que ao agirmos no sentido do bem
sejamos a isso levados pela expetativa das bênçãos ineren­
tes à vida futura.

74. Quando, numa situação penosa, um homem se em­


penha em socorrer outro homem, quer em palavras quer
em atos, é necessário que ambos reconheçam o que é
essencial reconhecer: em todo o socorro prestado a graça
de Deus esteve presente. Aquele que se mostra incapaz de
reconhecer as coisas desse modo será ultrapassado por
quem as reconhece.

75. Louvar o próximo, quando há motivo para isso, é


uma coisa boa. Mas aquele que o faz hipocritamente, não
se coibirá de cobrir de ultrajes esse mesmo próximo quan­
do as circu nstâncias a isso se prestarem. Ora, ao agir
assim, tornar-se-á ele mesmo um motivo de opróbrio.

76. Aquele que, carecido de discernimento, ignora ne­


gligentemente as ciladas que os seus inimigos lhe armam,
SÃO MARCOS 1 75

facilmente nelas cairá imolado. Mutatis mutandis, aquele


que indolentemente ignora as causas das paixões, delas
fica prisioneiro por pouca coisa que seja.

77. Do amor do prazer nasce a negligência. D a negli­


gência o esquecimento. Do esquecimento o desnorte. Ora
tal não deve acontecer, pois Deus deu a todos o conheci­
mento do que nos é bom.

78. Quando se trata da necessidade de exortar o pró­


ximo, cada um fá-lo unicamente na medida dos seus
conhecimentos. Mas D eus, esse, está presente e atua
naquele em quem a capacidade da escuta encontra corres­
pondência na capacidade da fé.

79. Durante a minha vida já vi homens não doutos vive­


rem como humildes. Quando isso acontece, esses homens
tornam-se verdadeiramente sábios. Mais sábios até do que
os sábios.

80. Não acontece isso com o ignorante que, tendo ou­


vido o elogio de que os anteriores foram alvo, não imitou a
sua humildade. Em vez disso, gloriando-se da sua ignorân­
cia, cobriu-se de orgulho. E cavou para si o desnorte.

81. Aquele que despreza as aquisições da razão e se van­


gloria da sua ignorância, não é somente ignorante no que
diz. É -o também na sua incapacidade de julgar. Constitui­
-se desse modo um catavento de si mesmo.

82. Tal como a eloquência no discurso é uma coisa e a


capacidade de julgar é outra, assim também coisas diferen-
1 76 PEQUENA FILOCALIA

tes são a tibieza e a estupidez: um discurso pode ser tíbio


sem ser estúpido.

83. Ignorância de palavras não implica forçosamente, só


por si, uma vida de onde a piedade emigrou. Com efeito,
aquele que é verdadeiramente piedoso não será afetado
por isso. Nem tão-pouco o dom da eloquência se manifes­
tará negativamente na vida do homem humilde que vive
de um modo genuíno a sua humildade.

84. Não digas: «Como não sei o que devo fazer, não sou
responsável por não o ter feito. » De facto, se começares
por fazer o que sabes ser bom, o que deves fazer a seguir
tornar-se-te-á claro. Compreenderás as coisas uma a uma,
na sequência que é a delas, assim como ao visitarmos uma
casa se passa de um quarto a outro quarto. Não é indis­
pensável, nem sequer importante, para ti, saberes o que
virá depois, antes de fazeres o que vem primeiro. Efetiva­
mente, a ciência incha quando é inoperante, mas o amor
edifica porque a tudo resiste (cf. 1 Cor 8 , 1 ; 1 3 ,7) .

85. L ê atentamente a s palavras d a divina Escritura, de


tal modo que elas fecundem a tua mente e encontrem a
devida expressão na tua prática quotidiana. Foge dos dis­
cursos vãos, de molde a não trilhares o caminho da vacui­
dade dos pensamentos.

86. Aq uele que negligencia a ação e se apoia unica­


mente num conhecimento teórico tem nas mãos um
caniço em vez de uma espada de dois gumes. Desse modo,
ao soar a hora do combate, quando se lhe impõe lançar-se
contra o inimigo, ver-se-á incapaz de o fazer, pois um tal
SÃO MARCOS 1 77

caniço (no dizer da Escritura) penetrará a sua mão, ino­


culando nela o seu veneno natural (2Rs 1 8,2 1 ) .

87. É o olhar de Deus que determina a medida e o peso


de cada pensamento, pois nem tudo se equivale. É , com
efeito, possível pensar acerca da mesma coisa quer de um
modo apaixonado, quer de um modo objetivo.

88. Observar os mandamentos não é garantia de uma


vida sem provações. Assim, que aquele que observa um
mandamento fique atento: pode muito bem seguir-se-lhe
uma inopinada provação. Tenhamos, pois, presente isto: o
amor a Cristo passa pelo cadinho da adversidade.

89. Nunca alimentes a presunção de que podes minimi­


zar o significado dos pensamentos. A sua importância é
tão notória que nenhum deles escapa à providência de
Deus.

90. Quando tomas consciência de que um pensamento


te leva a incensar a glória humana, tem presente isto: nessa
autoglorificação do humano está tristemente presente a
urdidura da desgraça.

91. O inimigo, bom conhecedor da justiça salvífica ine­


rente à lei espiritual, intenta antes de mais nada, e sobre­
tudo, ganhar para si a adesão da nossa mente. Uma vez um
tal desígnio conseguido, obriga-nos a suportar tanto as
duras provações próprias do arrependimento, como os
infortúnios resultantes dos seus ataques no caso de resis­
tirmos. Leva-nos mesmo, por vezes, a uma atitude de resis­
tência, com o fito de não só intensificar as provações que
1 78 PEQUENA FILOCALIA

desta resultam, como também, por fim, na hora da morte,


jogando com a debilidade que nos atinge, minar a nossa fé.

92. No confronto com a hostilidade de determinados


acontecimentos, há aqueles que corajosamente resistem.
Não percamos, porém, de vista que sem a oração persis­
tente e um arrependimento que se renova no quotidiano,
ninguém escapa à derrocada ameaçadora.

93. Os males, numa mancomunação ameaçadora, refor­


çam-se entre si. Pelo contrário os bens, numa fraternidade
salutar, multiplicam-se mutuamente. Daí a força que nos
dão e a coragem que nos outorgam para avançarmos na
senda do que é bom e belo.

94. O diabo, esse príncipe dileto dos corruptores, leva­


-nos astuciosamente à desvalorização das pequenas faltas.
Se não agisse assim como trapaceiro que é, ser-lhe-ia im­
possível alcançar o seu obj etivo final: levar-nos a cair na
grande falta.

95. A raiz do desejo perverso está no louvor que os ho­


mens nos tributam. Mutatis mutandis, a raiz da honestidade
está na atitude que podemos assumir, atitude que se
traduz numa censura impiedosa da malícia, não apenas
daquela proveniente dos outros, mas também daquela que
se gera dentro de nós.

96. De nada nos serve termos renunciado a tudo quan­


do não cortámos o elo que nos liga ao prazer. O que fazía­
mos com as riquezas continuamos a fazê-lo quando j á
nada temos.
SÃO MARCOS 1 79

97. Inversamente o asceta, ao adquirir riquezas, torna­


-se em espírito um irmão desse que acabámos de evocar.
Com efeito, têm ambos uma mesma mãe: a paixão da
posse que torna cativa a mente de um e a de outro. Mas já
não têm, verdadeiramente, o mesmo pai: têm-no diferente,
por diferente ser o egoísmo de cada um.

98. Há ocasiões em que um homem foge de uma deter­


minada paixão. Pode, porém, fazê-lo com o fito de se en­
tregar a um prazer em larga escala. Ignorantes da sua moti­
vação profunda, há aqueles que o louvam. Mas em tudo
isso acontece o seguinte: não é só a ignorância dos outros
que se manifesta, manifesta-se também a do próprio. Com
efeito, ele é um ignorante que se ignora a si mesmo. Mo­
tivo pelo qual a sua mudança de paixão não passa de um
derivativo vácuo. E ele, pobre dele, continua um homem
enredado.

99. A fonte de toda a malícia é a vanglória, essa vaga­


bunda do prazer. Por conseguinte, aquele que não a detes­
ta é incapaz de sair vitorioso no combate contra a paixão.

100. É -nos dito, num tom de salutar advertência, que a


raiz de todos os males é o amor do dinheiro (cf. 1 Tm 6, 1 0) .
Por conseguinte, n a ótica d e uma tal injunção, podemos
afirmar, sem hesitação, que a avareza é a parideira de muita
coisa intrinsecamente má.

101 . Há, portanto, três paixões que cegam a mente: a


avareza, a vanglória, a sensualidade.

102. Ora essas três paixões são, no dizer da Escritura, as


três filhas diletas de uma sanguessuga, amadas carinhosa­
mente por uma mãe insensata (cf. Pr 30, 1 5 - 1 6) .
1 80 PEQUENA FILOCALIA

103. São elas que, numa espécie de trindade maléfica,


embotam em nós tanto a gnose como a fé, essas duas
acompanhantes da nossa natureza.

104. S ão ainda elas que estão na origem do terror, da


cólera, das guerras, dos homicídios e dos outros males que
têm prevalecido entre os homens.

105. Devemos, por conseguinte, odiá-las, vendo nelas


aquilo que elas são : mães dos males e madrastas das
virtudes.

106. É por causa delas que nos foi ordenado não amar o
mundo nem o que no mundo está. Tenha-se, porém, pre­
sente que um tal interdito de nenhum modo implica odiar
as criaturas de Deus. Um ódio dessa estirpe atingiria o pa­
roxismo da insensatez, pois seria a negação do Evangelho.
Com um tal interdito o que se pretende é mergulhar no
âmago das causas dessas três paixões e cortá-las pela raiz.

1 07. E não nos esqueçamos da advertência essencial:


todo aquele que vai combater de nenhum modo se pode
embaraçar com as coisas desta vida (cf. 2Tm 2,4) . De onde se
deduz ser insensato aquele que, não obstante estar ma­
niatado por tais coisas, nutre a ilusão de que vai sair vence­
dor das paixões. Um homem desses assemelha-se àquele
que pretende extinguir um incêndio lançando mão de . . .
palha!

108. Aquele que, movido pelo desejo do dinheiro, ou da


fama, ou do prazer, cria um conflito com o próximo, dá
com isso sinais de viver numa profunda ignorância de
SÃO MARCOS 181

Deus. Ignora, lamentavelmente ignora, que Deus, n a sua


providência, conduz a nossa história com justiça.

109. Quando ouves o Senhor dizer: «Se alguém não re­


nuncia a tudo o que tem não é digno de mim» (Lc 1 4,33) ,
não percas de vista que Ele não fala somente das riquezas.
Esta sua admoestação reveste-se de um alcance muito
mais amplo: está em jogo tudo aquilo que conduz ao mal.

110. Aquele que não conhece a verdade e vagueia assim


nas trevas da ignorância, é incapaz de crer. Efetivamente,
é próprio da nossa natureza que o conhecimento pre­
ceda a fé.

111. Tenhamos isto sobremaneira em conta: tal como no


mundo das coisas visíveis Deus age j ulgando cada uma
delas segundo o seu valor, assim também no mundo dos
nossos pensamentos Ele atua sopesando cada um deles,
com o que desvela quer o seu valor quer a sua vacuidade,
quer a sua nobreza quer a sua indignidade. Esse é o agir de
Deus, independentemente do nosso agrado ou desagrado.
É que os seus caminhos são sempre mais elevados que os
nossos caminhos, e os seus pensamentos infinitamente
mais elevados que os nossos pensamentos.

112. Nem sempre aquele que vive escandalosamente no


pecado passa por grandes tormentos do coração e da alma.
Não obstante viver como um inconvertido, pode nada
sofrer até à hora da morte. Uma coisa, porém, é certa:
quando ela chegar, o julgamento abater-se-á sobre ele. E
uma outra coisa é igualmente certa: o j ulgamento divino,
pois é dele que se trata, não enferma de uma qualquer in­
justiça. Será o julgamento justo do Deus justo.
1 82 PEQUENA FILOCALIA

113. O orante genuíno, fortalecido pela oração, é capaz


de resistir no combate que trava no quotidiano da vida.
Com efeito, a oração faz dele protagonista de uma resiliên­
cia que se manifesta sem desfalecimento, mesmo nas cir­
cunstâncias mais difíceis. Ora, nos antípodas de um tal
orante está aquele que, na vacuidade da não-oração, é um
ressentido com as agruras da vida.

114. Quando fores alvo do vitupério, da perseguição, da


injúria, não fiques maniatado por aqueles que fizeram de
ti uma espécie de bode expiatório de uma maldição pre­
sente. Volta-te para o futuro e acabarás por descobrir que
as vicissitudes por que agora passas transformar-se-ão
para ti numa fonte de numerosos bens. E isso não somen­
te aqui neste mundo mas também no mundo futuro.

115. Analogamente ao absinto que, na sua amargura, faz


bem aos que têm falta de apetite, os infortúnios por que
passamos fazem bem aos de mau carácter. Efetivamente,
tanto num caso como no outro temos remédios que
atuam à sua maneira: a uns leva-os a passar melhor fisica­
mente; a outros leva-os a um salutar arrependimento.

116. Se o mal te aflige e não queres sofrê-lo, então re­


nuncia totalmente a infligi-lo a outrem. Não te esqueças
disto: uma coisa não vai sem a outra. E lá está a Escritura
que, a este respeito, toma a forma de uma séria advertên­
cia: o que cada um semeia isso também colhe (cf. Gl 6,7) .

117. Por conseguinte, ao colhermos involuntariamente o


mal que voluntariamente semeámos, uma coisa podemos
a partir daí reconhecer: quão grande e maravilhosa é a jus­
tiça de Deus!
SÃO MARCOS 1 83

118. Registando-se, porém, não poucas vezes, um inter­


valo de tempo maior ou menor entre a sementeira e a
colheita, a retribuição pode ocorrer mais tarde. Motivo pelo
qual nem sempre tomamos consciência da sua justiça.

119. Quando pecas não é a tua ação que deves incrimi­


nar, mas sim o teu pensamento. Na verdade, não se tivesse
a tua mente antecipado, o teu corpo não a teria seguido.

120. O pecador que peca no oculto, às escondidas, hipo­


critamente se mancomunando com esse oculto, manifesta
uma perversidade maior do que a daqueles que escanca­
ram a sua inj ustiça à luz do dia. Motivo pelo q ual será
maior a condenação que sobre ele impenderá.

121 . Aquele cuj a mente é uma oficina onde se forj am


ídolos e se tecem sedutores caminhos para o mal é um ho­
mem que, no dizer da Escritura, se assemelha a uma ser­
pente que se atravessa no caminho com o fito de morder o
cavalo no pé.

122. Aquele que, hipocritamente, louva outrem, quando


fala com uma determinada pessoa, mas censura esse ou­
trem quando fala com outra pessoa, é um infeliz seques­
trado que tem como sequestradores a vanglória e a inveja.
E, quando é a censura que brota da sua boca, o seu inten­
to é construir um discurso com o qual se afirma superior.

123. Pensar que podemos pacificamente apascentar


juntos cordeiros e lobos, é do domínio do impensável. Ora
bem, mutatis mutandis, aquele que ludibria o próximo e per­
corre as sendas da corrupção, não pode esperar ser tratado
misericordiosamente.
1 84 PEQUENA FILOCALIA

124. Aquele que oculta indignos desejos pessoais sob a


capa de um piedoso discurso de aconselhamento espiri­
tual, não é outra coisa senão um adúltero. Começa logo
por ser denunciado pela Sabedoria (cf. Pr 6,32) , e não escapa
ao sofrimento que a desonra inflige.

125. Tal como a água e o fogo são incompatíveis entre si,


assim também o são a autojustificação e a humildade.

126. Aquele que se descobre pecador e procura o perdão


dos pecados, trilha com amor o caminho da humildade.
Mas aq uele que do alto da sua soberba condena o pró­
ximo, com uma tal atitude não faz outra coisa senão con­
firmar e agravar as suas próprias faltas.

127. Uma pequena falta que tenhamos cometido, por


mais pequena que seja, exige ser obliterada. Se assim não
for, a sua persistência terá como resultado arrastar-nos
para maiores males.

128. Se é o caminho da salvação que queres trilhar,


então impõe-se-te amar não uma palavra qualquer mas
sim a Palavra da verdade. E não te esqueças de que é na
força desse teu empenho que se j oga a força desse teu
amor. E que nunca minimizes a importância que pode ter
uma crítica a ti dirigida. Dito de outro modo: que, leviana­
mente, nunca rejeites acriticamente uma crítica!

129. É essa Palavra da verdade que, no passado, levou à


conversão a raça de víboras, fazendo-a trilhar um novo
caminho, já não o conducente à cólera futura mas sim o
caminho doador de vida (cf. Mt 3,7) .
SÃO MARCOS 1 85

1 30. Todo aquele que acolhe uma tal Palavra, acolhe


Deus, o Verbo. É -nos dito com efeito : «Aquele que vos
acolhe, a mim acolhe» (Mt 1 0,40) .

131. O paralítico que é apeado através do teto (cf. Me 2,4)


personifica em registo simbólico um pecador condenado
pelos piedosos em nome de Deus, mas divinamente per­
doado graças à fé dos que se empenharam em transportá-lo.

1 32. Não censures o próximo ! No lugar da censura


põe outra coisa: a tua oração por ele. E assim ele será
restaurado.

133. Aquele que verdadeiramente se arrepende torna-se


um alvo da mofa dos insensatos. Mas que ele se alegre: um
tal comportamento da insensatez deve ser interpretado
como a prova de que o seu arrependimento é genuíno e,
como tal, agradável a Deus.

134. O combatente que se empenha num combate sabe


por experiência própria o quanto lhe é necessário nunca
perder o autodomínio. O mesmo acontece a um soldado
de Cristo: é-lhe pedida a ma1 or disciplina, sem fuga algu­
ma, até que o Senhor extermine a súcia da Babilónia (cf. Is
1 4,22 ; Jr 27, 1 6) .

135. Nunca te esqueças de que são doze as paixões in­


famantes. Se voluntariamente te enamoras só que sej a de
uma, ela ocupará integralmente o lugar das outras onze.

1 36. O pecado é um fogo ardente. Se o privas de le­


nha extinguir-se-á. Mas quanto mais o alimentas mais ele
arde.
1 86 PEQUENA FILOCALIA

137. Se te deixares inebriar com a adulação acabarás por


receber a desonra. Lá diz, com efeito, a Escritura: «Aquele
que a si mesmo se eleva será humilhado» (Lc 1 4,41 ) .

138. Quando libertamos a mente d e toda a malícia vo­


luntária há ainda um outro combate a travar: o que se de­
senrola contra as presunções que nos assediam e perante
as quais podemos facilmente capitular.

139. A presunção, nesse caso, manifesta-se como uma


espécie de reminiscência involuntária que nos assalta pro­
vinda de um passado irredento. Aq uele que a combate
pode impedi-la de se converter em paixão. Mas aquele que
dela é inteiramente senhor pode extirpá-la de um modo
radical.

140. A presunção, nessa perspetiva, é um movimento


que assola o coração, sem se exprimir forçosamente
na forma de uma imagem. Aqueles que numa situação
dessas revelam ter, graças à experiência vivida, o discer­
nimento necessário, são dotados da capacidade de a
manter controlada. Analogamente ao modo como se pode
controlar a vertigem decorrente de um precipício numa
montanha.

141. Quando os pensamentos nos assolam entretecidos


por imagens, a nossa prontidão- para os acolhermos é
muito maior. Com efeito, a presunção não nos torna cul­
pados enquanto não nos rendemos à força das imagens.
Algumas pessoas conseguem escapar a uma tal força sedu­
tora: e conseguem-no como se fossem «tições tirados do
fogo» (Zc 3,2) . Outras há, porém, a quem o fascínio cega até
ao ponto de tudo terem queimado.
SÃO MARCOS 1 87

142. Não digas «lá não querer não quero, mas o que não
quero isso acontece». Com efeito, não obstante dizeres «de
nenhum modo quero», lá bem no fundo de ti mesmo
acolhes de bom grado as causas do que dizes não querer.

143. Aquele que procura o louvor dos outros, e age em


conformidade com isso, ama sobretudo a paixão, e na
paixão ama-se a si mesmo. E aquele que ao ser atribulado
mais não faz do que deplorar a provação, ama sobretudo o
prazer.

144. O pensamento daquele que vive numa procura per­


manente do prazer oscila à semelhança do fiel de uma
balança: umas vezes verte lágrimas, num lamento mais do
que suspeito, por causa dos seus pecados; outras vezes
ataca o próximo e opõe-se-lhe, com o intento de justificar
oa seus próprios prazeres e desmandos.

145. É feliz aquele que se sente livre para examinar tudo


e reter o que é bom: um homem desses não fica prisio­
neiro do mal.

146. Um homem dotado do dom da paciência é um ho­


mem capaz de se abrir ao outro e, como tal, capaz de com­
preender. Ocorre o mesmo com aquele que sabe escutar
palavras de sabedoria e se deixa impregnar pelo sopro do
espírito que as anima. É que compreender supõe inesca­
pavelmente ser sábio.

147. Ora, quando Deus desaparece do horizonte da me­


mória é a capacidade de compreender que se esvai. Efeti­
vamente, a presença de Deus no exercício da memória é
1 88 PEQUENA FILOCALIA

essencial para que o conhecimento deixe de ser espúrio e


passe a ser genuíno.

148. Na medida em que um coração duro é uma forta­


leza de difícil acesso, é extremamente salutar um tipo de
discurso que o amacie e o coloque no caminho da vivência
do temor. É que sem o temor e tremor, um coração desses
permanece impenetrável às exigências inerentes ao arre­
pendimento. Não nos esqueçamos de que essas exigências
transportam consigo um elemento doloroso.

149. O homem em quem a doçura dos sentimentos é


uma realidade sente-se atraído por um discurso que trans­
mita confiança. Com efeito, ele não questiona a paciência
de Deus, pois sente até à medula do osso a longanimidade
divina, e pauta a sua vida em sintonia com a tranquilidade
que dessa confiança tranquila lhe advém. Daí não serem
frequentes as transgressões que comete.

150. Ao homem poderoso não critiques a vanglória que


é uma característica da sua maneira de ser. Não desistas,
contudo, de lhe chamar a atenção para o grande risco que
corre com esse seu comportamento: a desonra que o
ameaça no mundo futuro. E ele, se for atinado, não des­
prezará uma tal advertência.

151 . Aquele que odeia ser criticado, encerrando-se na


sua torre de marfim, mostra com o seu procedimento estar
cativo de uma maneira de ver as coisas que é para ele se­
dutora. E não compreende que ao ser sedutora está a ser
redutora. Rendido a uma tal sedução, assume-a volunta­
riamente na forma de uma paixão que o deixa cego para a
realidade. Com efeito, o seu olhar tornou-se cativo de um
SÃO MARCOS 1 89

preconceito esterilizante. Pelo contrário, aquele que re­


conhece a pertinência de uma crítica mostra com isso que
a paixão nutrida pelo preconceito, mais do que ser da
ordem do voluntário, é da ordem da presunção.

1 52. Não dês ouvidos ao que te dizem aqueles que


sentem um prazer estranho em falar das más ações dos
outros. S e acolheres esses colportores das fraquezas
alheias acabarás tu próprio por não te livrares dos traços
que as más ações imprimirão em ti.

1 53. Q uando te delicias ao ouvir falar das faltas dos


outros estás, no fundo, a cair numa grave infidelidade a ti
mesmo, pois é contra ti próprio e não contra outrem que
te deves insurgir. Tem presente isto: toda a escuta perver­
tida arrasta consigo a perversão do auditor.

154. Quando te encontras com homens que falam muito


sem nada dizer, não comeces a julgá-los levianamente. De
uma coisa deves estar consciente : há nessa pobreza de
ideias uma certa responsabilidade tua, já que a vacuidade
das suas palavras pode muito bem ser devida, pelo menos
em parte, a uma tua dívida antiga.

155. Quando alguém te louva hipocritamente, fica de pé


atrás perante uma tal adulação. Não te espantes se essa
mesma pessoa, chegado o momento, denigra o teu nome.

156. Na vida terás provações, grandes ou pequenas. Pois


bem, suporta-as sem perder de vista que a elas se sucede­
rão as bênçãos futuras. E se assim agires, mesmo se claudi­
cas num ou noutro momento, nenhum quebranto do
coração ou da alma comprometerá o teu combate.
1 90 PEQUENA FILOCALIA

157. Quando, por ele te ter socorrido num determinado


momento, louvas um homem chamando-lhe bom (sem
com isso te estares a referir a Deus) tem presente isto: esse
mesmo homem, um dia mais tarde, poderá muito bem
aparecer a teus olhos como mau.

158. Todo o bem procede do Senhor. Efetivamente, na


sua providência, Ele manifesta-se como fonte e doador do
bem. E todos aqueles que acolhem o bem e o concretizam
na sua vida são seus servidores.

1 59. Aceita com equanimidade a mescla do bem e do


mal. Não queiras armar-te em juiz, como se te competisse
a ti estabelecer a linha de separação entre ambos. Não te
esqueças de que é com uma tal mescla que se confronta e
defronta a quotidianidade da vida de cada homem. E tem
sempre presente isto: é a Deus que cabe a tarefa de corri­
gir os desequilíbrios das coisas. Por conseguinte, não sejas
levado pela tentação de querer endireitar o mundo!

160. A instabilidade dos pensamentos manifesta-se em


cada um de nós e produz mudanças na nossa humana
condição. Nessa perspetiva, Deus imputa aos pensamen­
tos que relevam da nossa vontade consequências que lhes
são afins mas não, necessariamente, resultantes de uma
nossa escolha.

161. Aquilo que é sensorial encontra-se numa linha de


continuidade com o que é inteligível, isto é, com o que
releva do domínio da razão. Trata-se de um processo ine­
rente à nossa humana condição, portador, segundo a Pro­
vidência divina, do que nos é necessário. É assim que se
processa o nosso quotidiano viver.
SÃO MARCOS 191

162. O s pensamentos e a s palavras d e u m coração cativo


do prazer propagam-se como a peste. E todos nós sabe­
mos que, de acordo com o cheiro e o aspeto do fumo li­
bertado, podemos reconhecer a natureza da madeira.

163. Que o teu empenho na reflexão se mantenha inal­


terado. Se assim for não te consumirás com as tentações.
Mas cuidado! Se assim não for a tua negligência sair-te-á
cara: o abandono da reflexão porá em marcha muitas e
indesej áveis coisas que, em tropel, te assaltarão. Prepara-te
para o embate!

164. Ora com fé para que a tentação, insidiosa como é,


não se abata sobre ti. Mas se ela te sobrevier não percas de
vista que ela é tua e não de outrem. Assume-a, pois, e não
faças do outro um bode expiatório. É assim que a deves
defrontar.

165. Liberta a tua mente de toda a cobiça. Assim liberto,


sentir-te-ás preparado para lutar contra as artimanhas e
arremetidas do diabo.

166. As artimanhas do diabo são por natureza insi­


nuantes. E quanto mais o são mais se revelam capazes de
nos aprisionarem. Ora o homem que tem a pretensão
de conhecer por dentro todos os seus meandros, e pensa
ser por isso perfeito, não tem a consciência do que está
em j ogo. Manifesta ser um homem que se perdeu de si
mesmo.

167. A destreza com que a mente se liberta dos cuidados


corpóreos é tanto maior quanto maior for a lucidez com
que ela desmonta os embustes dos inimigos.
1 92 PEQUENA FILOCALIA

168. Os pensamentos cegam todos aqueles que com eles


mantêm um requintado namoro. Assim, homens possuí­
dos por um tal fascínio, se ainda não perderam a capaci­
dade de ver as obras do pecado, já perderam, porém, a
lucidez para discernir as suas causas. Ei-los vítimas do des­
vario resultante da sua negligência!

169. No que concerne à observância de um mandamento,


pode perfeitamente ocorrer um quiproquó, isto é, haver
alguém que dá todas as aparências de o observar (e chegar
até a ser tido como um fiel observante) quando na realidade
o que faz é servir uma paixão. Ora, ao agir desse modo des­
trói com os maus pensamentos a bondade da ação.

170. Quando te aproximas do átrio do pecado, não


digas: «ele não me vencerá». Pobre de ti: vítima de uma in­
sensatez orgulhosa, manifestas com a tua inconsciência a
incapacidade de compreender que quanto maior for essa
tua aproximação tanto maior será a tua derrota!

Tudo o que existe ou acontece começa por ter um


171 .
peq ueno princípio. Posteriormente cresce, sendo o seu
crescimento tanto maior quanto mais substancial é o ali­
mento que lhe é proporcionado.

172. O embuste tecido pela malícia é uma ardilosa rede


de mil malhas. Assim, pois, que aquele que mesmo só par­
cialmente se deixa por ela prender não nutra uma qual­
quer ilusão: se for débil na vigilância e frouxo na luta aca­
bará inevitavelmente por ficar inteiramente peado.

173. Não nutras apetência pelas narrativas dos infortú­


nios dos homens que são teus inimigos. Aqueles que com
SÃO MARCOS 1 93

elas se deleitam perderam a consciência do que é ser-se


humano, e acabam por colher os frutos amargos que no
seu íntimo desejam para os outros.

174. Não penses que todos os infortúnios resultam do


pecado. Alguns até agradam a Deus, mesmo quando são
inequívocas provações. Com efeito, não está apenas escri­
to: «os ímpios e os iníquos serão dizimados» (cf. Sl 37,28) . A
Escritura, na sua riqueza sempre edificante, declara tam­
bém: «aqueles que, piedosamente, querem viver em Cristo,
serão perseguidos» (2Tm 3 , 1 2) .

175. E m tempos sombrios, quando o s infortúnios mais


variados nos atingem, sê vigilante: é particularmente em
tempos desses que a atração do prazer se manifesta em
força. Efetivamente, o prazer surge como um lenitivo em
tempos difíceis, e facilmente nos deixamos por ele seduzir.

176. Alguns apodam de sábios aqueles que, de um modo


expedito, identificam as coisas próprias do mundo senso­
rial. Ora um tal discernimento, só por si, não é sinónimo
de sabedoria. Há que dizê-lo: verdadeiramente sábios são
aqueles que, capazes de um tal discernimento, não se
ficam por aí e mostram ser também dotados da capacidade
de controlar a sua própria vontade.

177. Não dês ouvidos ao teu coração antes de teres dele


erradicado o mal. É que ele está sempre pronto a acomo­
dar a si os interesses de tudo o que lhe confiamos.

178. Tal como há serpentes nos bosques, e também as


há ocultas nas nossas casas, assim também há paixões no
nosso íntimo geradas pela razão. Outras há, porém, pró-
1 94 PEQUENA FILOCALIA

prias do modo como agimos: neste caso, é possível para


elas passarem por um processo de metamorfose.

179. Quando constatas que lá bem no fundo de ti mes­


mo há pulsões ocultas que procuram instilar na mente­
-em-estado-de-hesicasmo uma paixão, tem presente isto:
foi a própria mente que, antes, a suscitou, a introduziu no
coração, a tornou operante.

180. Para que uma nuvem se forme é necessário que o


sopro do vento intervenha. Pois bem, analogamente, muta­
tis mutandis, para que uma paixão irrompa é indispensável
o trabalho do pensamento.

181. Se deixarmos de dar vasão às vontades da carne, no


dizer da Escritura, as pulsões ocultas no fundo de nós
mesmos facilmente cessarão. Trata-se de um estrénuo
combate de onde não poderemos sair vitoriosos sem a
ajuda do Senhor.

182. As imagens que ao serem assumidas pela mente nela


se fixam são mais nocivas e resistentes do que aquelas que
emergem enquanto nos entregamos à prática de pensar.
Estas últimas precedem aquelas e são delas a causa.

183. Há um tipo de malícia que se instala no coração e


que tem como irmã mais velha a jactância. Um outro tipo
há que se dedica a atacar a razão, servindo-se das coisas do
dia a dia.

1 84. D eus, na sua providência, j ulga os nossos atos


segundo as intenções que nos animam. Está, com efeito,
dito: «Que o Senhor te conceda segundo o teu coração»
(SI 20,5) .
SÃO MARCOS 1 95

185. O homem que não é perseverante quando confron­


tado com o desafio de examinar a consciência, tão pouco é
capaz de aceitar com santidade as dores corpóreas quando
estas o atacam.

186. A consciência é o livro da natureza. Assim, pois, o


homem dotado da capacidade de aplicadamente o ler vive
salutarmente a experiência do socorro divino.

187. O homem que não está disposto a sofrer volunta­


riamente por amor da verdade, conhecerá uma amarga
deceção: involuntariamente passará pela experiência dolo­
rosa de um castigo mais penoso.

1 88. O homem que conhece a vontade de Deus e a


cumpre tanto quanto pode será abençoado: através das
pequenas dores escapará às grandes.

189. O homem que está possuído pela presunção de que


é capaz de vencer as tentações sem oração e sem perseve­
rança está a viver um fatal equívoco. Mais tarde ou mais
cedo despertará para a dura realidade de que não só não as
expulsou como ainda se descobre cada vez mais nelas
enredado.

190. O Senhor oculta-se nos seus próprios mandamen­


tos. Por conseguinte, é na medida em que os cumprem que
o encontram aqueles que o procuram.

191. Não digas: «Cumpri os mandamentos e apesar disso


não encontrei o Senhor. » Insensato és se o disseres, pois
mostras desse modo um lamentável desprezo pelas pala­
vras da Escritura que, sem equívoco, proclama: «Ü que
1 96 PEQUENA FILOCALIA

procura o Senhor encontrará o conhecimento com justiça.


E todo aquele que o procura com retidão encontrará a
paz» (cf. Pr 1 6,8) .

192. Alcançar a paz implica uma coisa cujo alcance é de­


terminante: deixarmos de ser prisioneiros das paixões. É
esse o caminho a seguir, e para o trilharmos é necessário
sermos robustecidos com a energia do Espírito Santo.

193. Não confundamos a observância dos mandamen­


tos com a virtude. Trata-se de coisas diferentes, ainda que
uma promova a outra.

194. No que é que consiste a prática dos mandamentos?


É óbvio: consiste, pura e simplesmente, em fazermos o que
nos está ordenado fazer. Daí resulta que a virtude emerge
quando o que se faz está em sintonia com a verdade.

195. Tal como a riqueza material, sendo uma, aparece­


-nos repartida de formas diferentes, assim também a vir­
tude, sendo uma, exprime-se numa variedade de obras e,
por conseguinte, numa pluralidade de formas.

196. Aquele que passa os dias circunscrito aos limites do


raciocínio, sem passar à ação, incapaz de uma qualquer
outra coisa que não seja uma conversa fiada, é um homem
que respira iniquidade. Ora, os frutos resultantes de um
tal desatino irão, no dizer da Escritura, para casas alheias
(cf. Pr 5, 1 0) .

197. É consensual dizer-se que o ouro predomina sobre


tudo o mais. Mas uma outra coisa é verdadeira e, como tal,
SÃO MARCOS 1 97

está grávida da verdade: as coisas espirituais, essas, a tudo


superam, sendo como são regidas pela graça de Deus.

198. Atinge-se uma boa consciência através da oração, e


a oração pura através da consciência. Necessitam, de facto,
uma da outra, sendo fecunda uma tal interligação.

199. Jacob, sabemo-lo, mandou fazer para José uma


túnica policromática (cf. Gn 37,3) . E ao homem que é doce
de coração o Senhor concede o conhecimento da verdade.
É disso que a Escritura nos fala ao declarar: «Ü Senhor en­
sinará aos homens doces os seus caminhos» (SI 25,9) .

200. O imperativo d o bem interpela-nos n o quotidiano


da vida. Que a ele, pois, não nos furtemos numa possível e
deplorável evasão. E que em tempo de abundância sej a­
mos generosos na utilização da medida do dom. Está, com
efeito, dito que aquele que olha para trás não é apto para o
Reino dos Céus (cf. Lc 9,62) .
SÃO HESÍQUIO DE BATOS
O Sinaíta
SÃO HESÍQUIO DE BATOS, o Sinaíta (ou Presbítero) , autor de 203
capítulos sobre a vigilância e a virtude, supõe-se que terá vivido
no decorrer do século V I I , no mosteiro da Sarça Ardente ou Mos­
teiro de Santa Catarina, no seio do deserto do Sinai. Estes capítu­
los utilizam as obras de São João Clímaco e o pensamento de São
Máximo, o Confessor, daí a actual datação. O ensinamento central
deste autor é o da necessidade absoluta para qualquer vida espi­
ritual da prática da sobriedade ou vigilância, a única capaz de
libertar progressivamente a alma das diversas paixões e de a con­
duzir, pela purificação e pela unificação, até à quietude (ou hesi­
casmo) divina no contacto permanente com Deus.
Textos acerca
da sobriedade vigilante

DE HESÍQUIO, PRESBÍTERO, A TEODULO

Discurso soteriológico, em forma resumida,


acerca da sobriedade vigilante e da virtude,
para o bem da alma e sua salvação

Princípio e fundamento verdadeiro da iluminação da alma.


A refutação e a oração.

1. A sobriedade vigilante é uma prática espiritual que,


com a ajuda de Deus, e quando diuturna, liberta inteira­
mente o homem. Liberta-o duplamente: não só dos pen­
samentos e das palavras impregnadas de paixão, mas tam­
bém das ações ditadas pela perversidade. Proporciona
assim, quando levada a cabo de um modo empenhado, um
conhecimento seguro de Deus, esse Deus de quem o mis­
tério é inescrutável. E faz isso até ao limite do possível: até
ao ponto em que o mistério continua a sê-lo.
A sobriedade vigilante torna-se assim para nós uma
forma de ascese que viabiliza a observância dos manda­
mentos divinos, tanto os relativos ao Antigo Testamento
como os relativos ao Novo Testamento. E, desse modo,
202 PEQUENA FILOCALIA

torna-nos participantes da multiplicidade dos bens divinos


próprios do mundo futuro que, expectantes, aguardamos
fortalecidos pelo Espírito do Senhor. É ela que exprime do
modo mais profundo a pureza do coração. Ela que, por ser
grande e bela, é capaz de neutralizar toda a nossa inclina­
ção para cairmos numa negligência estiolante. Ela que é
hoj e coisa pouco comum entre os monges. É dela que
Cristo fala quando, de um modo particular, proclama
serem felizes, muito felizes, aqueles cujo coração é puro:
efetivamente, a eles é feita a promessa de verem a Deus
(Mt 5 , 8) . Nisso reside a sua bem-aventurança e daí brota a
exigência com que nos confronta: adquiri-la só é possível
quando estamos dispostos a pagar um preço elevado. Diu­
turnamente vivida, torna-se um guia capaz de nos condu­
zir no caminho exigente que, por ser justo, agrada a Deus.
Somos assim levados a viver a inefável experiência da con­
templação, cuja indizível beleza só é atingível e saboreada
graças ao ensino que ela, sempre ela, nos proporciona. Ao
seguirmos um tal caminho estamos a ser por ela ensina­
dos a pôr a trabalhar, de um modo conveniente, as três
partes da alma e, concomitantemente, a aprender o modo
como podemos defender com segurança os nossos senti­
dos. Quotidianamente é ela, sobriedade vigilante, que in­
centiva de um modo único, nas nossas vidas, o cresci­
mento das quatro virtudes cardinais. E fá-lo por permitir a
estas participarem na atividade que lhe é própria.

2. Moisés, o grande legislador (ou antes, o Espírito San­


to por ele) querendo mostrar-nos o quanto uma tal virtude
está nimbada pelo que é irrepreensível, puro, universal,
elevado, responsável, perfeito, Moisés, o grande legislador,
advertiu: «Tem cuidado contigo mesmo, não vá uma pala­
vra insólita tornar-se pecado no teu coração» (Dt 1 5 ,9) . Ele
SÃO HESÍQUIO 203

chama «palavra insólita» ao assédio de um único pensa­


mento, reflexo de alguma ação má odiada por Deus, pa­
lavra instilada pelo diabo no nosso coração, à qual os
Pais chamam provocação. Tenhamos bem presente isto: a
partir do momento em que ela entra no campo próprio da
mente, os nossos pensamentos tornam-se seus acólitos e
entram num diálogo apaixonado com ela.

3. A sobriedade vigilante é a convergência de todas as


virtudes e de todos os mandamentos de Deus. É também
chamada hésychia do coração, e uma vez chegada à perfei­
ção (isto é, quando já não é afetada por nenhuma imagem)
torna-se ela mesma custódia da mente.

4. O cego de nascença não vê a luz do sol. Analogamen­


te, aquele cujo caminho está nos antípodas da sobriedade
vigilante é incapaz de ver, em todo o seu esplendor, as cin­
tilações da graça divina. Está cativo das ações e das pala­
vras perversas, pois os seus pensamentos têm o estigma do
desvario. Dito de outro modo: o seu mundo não é outro
senão o das coisas odiadas por Deus. E desse cativeiro não
se liberta. Homens desses, ao deixarem esta vida, não pas­
sarão impunemente diante dos guardiães do inferno.

5. A concentração da mente é uma incessante hésychia


do coração, invulnerável ao assalto de todo e qualquer
pensamento inoportuno. Num tal estado, a alma sente-se
salvaguardada: ela, com efeito, de um modo interminável e
ininterrupto, respira no hesicasmo o sopro da liberdade,
nessa sua incessante invocação de Cristo Jesus, Filho de
D eus e D eus juntamente com o Pai. Alista-se com Ele
para, corajosamente, combater os inimigos. Confessa-lhe
os seus pecados, a Ele, o único que tem o poder para os
204 PEQUENA FILOCALIA

perdoar. Vocacionada para ser o que é, enlaça sem cessar


Cristo, o único que conhece o oculto de cada coração. E
esforça-se para não tornar pública, num lamentável exibi­
cionismo, a doçura que com isso experimenta e o combate
interior que trava, não vá o maligno instilar nela (sem ela
saber) a perversidade da malícia. É que, se isso aconte­
cesse, teríamos, inevitavelmente, a destruição de uma tão
bela obra.

6. A sobriedade vigilante implica, rigorosamente, uma


concentração: a que se traduz num pensamento inque­
brantável posto por vigia à porta do coração. Um tal pen­
samento é capaz de detetar os pensamentos que sobrevêm:
observa-os, escuta-os, desmascara- os na sua atividade
homicida. E assim agindo desmonta as demoníacas arti­
manhas com que visam ludibriar a mente através da ima­
ginação. Trata-se de uma vigilância que, ao ser por nós
diligentemente levada a cabo, nos proporciona a experiên­
cia do combate espiritual que, com conhecimento de
causa, a mente deve travar.

7. O temor (na dupla forma em que se pode manifestar:


temor da condenação e temor de Deus, princípio da sabe­
doria) vivi do como experiência de um confronto com
Deus, bem como as provações que sobre nós se podem
abater para nos instruir, são coisas capazes de gerar a so­
briedade vigilante. Podem fazer isso quando se vive um es­
tado de concentração da atenção, numa contínua atividade
do nosso intelecto que, esforçadamente, se empenha em
secar a fonte dos maus pensamentos e das más ações. É
para podermos alcançar a sobriedade vigilante, dando
assim consistência à nossa vida, que Deus nos deixa viver
a experiência do abandono, e permite que sejamos tenta-
SÃO HESÍQUIO 205

dos com tentações e provas as mais imprevistas. Vivem


particularmente essa experiência (que pode ser dolorosa)
aqueles que, tendo saboreado o repouso inerente a um tal
bem, acabam por o negligenciar. Tenhamos presente isto: é
a perseverança que gera o hábito, e é este que proporciona
à sobriedade vigilante a natural intensificação de si pró­
pria. Ora uma tal intensificação, no combate que trava,
gera de um modo pacífico a contemplação, uma contempla­
ção impregnada da incessante oração de Jesus. E é assim
que acontece a experiência da quietude da mente, livre de
todas as imagens: é a serenidade suscitada por Jesus.

8. A contemplação vivida na força do Espírito mani­


festa-se na firmeza com que invoca Cristo no combate que
trava contra os adversários, e concretiza-se no modo como
se refugia junto dele. Bem-aventurada contemplação essa,
pois é semelhante a um indomável e belo animal que, cer­
cado por uma matilha de cães, resiste qual fortaleza. Ela
prevê, com a sua capacidade intelectiva, as emboscadas in­
sidiosas próprias dos inimigos invisíveis. E porque contra
eles invoca sem cessar Jesus - o dispensador da paz - ela
permanece invulnerável. O exército inimigo fica reduzido
à impotência que é a sua.

9. Se, aliada à experiência necessária, tens a capacidade


da contemplação e da vigilância (uma diuturna vigilância
que começa logo com a aurora) sabes o que quero dizer.
Mas se assim não é, impôe-se-te desde já começar a trilhar
esforçadamente o caminho da sobriedade vigilante. E serás
então capaz de compreender.

10. Os mares são feitos de muita água. Pois bem: aquele


que se empenha não só em concretizar mas também em
206 PEQUENA FILOCALIA

dar vigor à sobriedade vigilante tem de ter presente que o


caminho a trilhar é caracterizado pela moderação e por um
profundo hesicasmo da alma. Sem isso nunca atingirá o
surpreendente abismo das contemplações extraordinárias
e inefáveis, nem viverá a humildade sem a qual a retidão
e o amor serão incessantemente coisas adiadas. Ora em
tudo isso a oração de Jesus, feita com fervor incessante,
será sempre a força que nos permite nunca ceder ao de­
sencorajamento.

1 1 . Cristo disse: «Não é aquele que me diz " S enhor,


Senhor" que entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele
que faz a vontade de meu Pai» (Mt 7,2 1 ) . Ora, esta é a von­
tade de meu Pai: que todo aquele que o ama aborreça o
mal e siga o caminho do bem. E disto podemos estar
certos: ao agirmos desse modo estaremos no caminho da
vida! Portanto, como orantes da oração de Jesus Cristo, de­
vemos travar um combate sem tréguas contra os maus
pensamentos. E se assim for, como combatentes desse
combate estaremos a fazer a vontade de Deus.

12. O Senhor Jesus, Deus incarnado, dá-nos com a sua


vida um modelo de toda a virtude, um exemplo para todos
aqueles que lhe abrem o coração e o seguem. E com isso
coloca-nos no caminho em que nos libertamos do opró­
brio resultante da antiga queda. E Ele fez isso ao viver a
vida que viveu, uma existência na carne nimbada pela vir­
tude. As suas obras são para nós revelação, tendo sido para
as realizar que subiu ao deserto, foi batizado, jejuou. Um
jejum essencial, pois é através dele e com ele que trava o
combate da mente no decisivo frente a frente com o diabo
que dele se aproximou como se fosse um simples homem.
Assim, através do modo como viveu, o Senhor ensina-nos,
SÃO HESÍQUIO 207

a nós também (que não passamos de servos inúteis) o


modo como nos é necessário travar o inelutável combate
contra os espíritos do mal: com humildade, jejum, oração,
numa palavra, com a prática diuturna da sobriedade vigi­
lante. Ele próprio, porém, nenhuma necessidade tinha
dessas coisas. Com efeito, Ele é Deus e Deus dos deuses.

13. Falar-te-ei agora, numa linguagem direta e sem flo­


reados, dos modos segundo os quais, na minha perspetiva,
se pode viver a sobriedade vigilante, com a necessária puri­
ficação da mente que nos permite não ficar cativos de pen­
samentos passionais. Efetivamente, estou persuadido de
que não é boa neste meu tratado a utilização das muitas
palavras. Nem boa nem útil. Há que fugir de uma verbor­
reia que, na hora do combate, não só não teria utilidade
alguma como seria ainda um empecilho particularmente
para os mais simples. Não esqueçamos a exortação apos­
tólica que supõe uma inteligência do texto lido: «Meu filho
Timóteo, sê atento ao que tu lês ! » ( 1 Tm 4, 1 3 ) .

14. A sobriedade vigilante começa por se exprimir numa


vigilância rigorosa da imaginação. Uma tal vigilância
impôe-se imperiosamente, pois Satanás desdobra-se ardi­
losamente nas mais variadas provações e provocações,
sendo que para tal é a imaginação que ele visa. Se apanha
esta desguarnecida, ei-lo a suscitar os mais perigosos pen­
samentos, num insano assalto à mente com o fito de a
enganar lançando mão da mentira.

15. Na sequência dessa primeira fase, temos uma outra


que consiste em cultivar o mais profundamente possível o
silêncio do coração. É um coração assim silencioso, em
208 PEQUENA FILOCALIA

estado de hesicasmo, liberto de todo o pensamento, que


nos torna verdadeiramente orantes.

16. Uma terceira fase consiste numa profunda concen­


tração, na qual, humildemente, invocamos sem cessar a
ajuda do Senhor Jesus Cristo.

17. Uma quarta fase consiste em ter na alma a lembran­


ça constante da morte.

18. É uma prática tecida e entretecida desse modo, meu


filho, que faz de nós guardiães das portas e nos permite
assim afastar os pensamentos maus. Quanto ao apelo a
olharmos para o céu e a considerarmos a terra como nada,
explicar-me-ei algures mais detalhadamente, se assim
Deus for servido. Procurarei explicitar então em que sen­
tido uma tal atitude é em si mesma uma ação de elevado
valor.

19. Se menosprezarmos as causas das paixões que nos


tornam cativos, e se descurarmos a prática da contempla­
ção espiritual, não lhe consagrando o tempo necessário
(com o que ela deixará de ser para nós a obra essencial) ,
então facilmente recairemos nas paixões carnais. E o fruto
que dessa recaída acabaremos por colher será bem amar­
go: um entenebrecimento da mente que se traduz numa
errância no labirinto das coisas materiais. É o desnorte que
sobre nós se abate.

20. O homem empenhado em travar o combate no in­


terior de si mesmo, deve em cada momemto, como um
bom soldado de Jesus, estar revestido das quatro coisas se­
guintes: humildade, concentração, refutação, oração. Hu-
SÃO HESÍQUIO 209

mildade, porque o combate que trava o defronta não com


inimigos vulgares, mas sim com demónios orgulhosos,
pelo que lhe importa ter a ajuda de Cristo, essa ajuda que
dá força ao nosso coração, pois «O Senhor odeia os orgu­
lhosos» (Pr 3 ,34) . Concentração, porque lhe é essencial
guardar sempre o coração puro, não cativo de nenhum
pensamento, ainda mesmo quando se trata de um pensa­
mento bom. Refutação, porque se lhe impõe contestar
com a máxima presteza e inclemência o maligno, mal ele
se manifeste. Lá diz a Escritura: «Responderei àqueles que
me ultrajam; não estará a minha alma submetida a Deus?»
(SI 62,2) . Finalmente oração, porque o orante passa pela ex­
periência do clamor a Cristo que se exprime com «gemi­
dos inefáveis» (Rm 8,26) . Vive assim, o orante, a experiência
inefável do pós-refutação, e, como soldado de Jesus, verá a
imagem do inimigo dissipar-se, como se de poeira ou de
fumo se tratasse, expulsa pelo nome venerável de Jesus.

21 . Aquele de quem a oração não é pura (e tenhamos


sempre presente isto : pureza implica não se ficar cativo
dos pensamentos) está desarmado para o combate. A ora­
ção que com ardor procuramos está lá, incansavelmente
ativa, nas profundezas inacessíveis da alma. Como orantes
somos movidos pela invocação de Cristo: é essa invocação
que fustiga e aniquila o inimigo que secretamente nos
combate.

22. A tua mente é chamada ao discernimento. Com


efeito, discernir é para ela uma tarefa incontornável, pois
há que ter um olhar penetrante e intenso, a fim de serem
reconhecidos e denunciados os demónios invasores.
Quando os tiveres identificados, deves de imediato, me­
diante a refutação, esmagar a cabeça da serpente. E simul-
210 PEQUENA FILOCALIA

taneamente, com gemidos, invocar Cristo. Conhecerás


assim, e experimentarás, o socorro invisível de Deus, tudo
isso acompanhado pela clarividência de um coração reto.

23. Tal como aquele que segura um espelho e nele se vê,


se está no meio de outras pessoas não se vê só a si mas vê
também os outros que se debruçam sobre esse único es­
pelho, assim também aquele que incessantemente se de­
bruça sobre o seu coração, vê nele não apenas a sua própria
condição, mas também a negritude facial dos demónios.

24. Não há dúvida de que a mente, sozinha, entregue a


si própria, é incapaz de vencer a imaginação demoníaca.
Oxalá nunca dela se apodere o desej o de ser vitoriosa
nesse estado. É que, velhacos como são, os demónios
fingem estar derrotados, para logo de seguida armadilha­
rem insidiosamente o nosso caminho, provocando-nos os
mais variados tropeços, inchados como estamos da nossa
vanglória . D iante da invocação de Jesus Cristo, porém,
ficam reduzidos à impotência, incapazes de nos ludibria­
rem com as suas múltiplas artimanhas. Nem por um só
momento isso conseguem.

25. Sê atento e vigilante de modo a não pensares como


o antigo I srael e não seres entregue, tu também, aos inimi­
gos espirituais. Libertado dos Egípcios pelo Deus do uni­
verso, a Israel meteu-se-lhe na cabeça a funesta ideia de
que um ídolo fundido poderia socorrê-lo (cf. Ex 32,4) .

26. Nesse ídolo fundido t u deves ver a nossa mente en­


ferma. Ora, durante todo o tempo em que, salutarmente,
invoca Jesus Cristo contra as forças demoníacas, a mente é
capaz de as expulsar e, com uma habilidade de experiência
SÃO HESÍQUIO 211

feita, capaz d e provocar uma tal debandada dos poderes


invisíveis e hostis. Mas se, pelo contrário, insensatamente,
deposita toda a confiança em si mesma, faz um vôo picado,
qual ave rapace. E as consequências serão desastrosas. Lá
diz, com efeito, a Escritura: «Em Deus esperou o meu
coração. Fui socorrido. E a minha carne refloriu» (SI 28,7) .
Outro não há, a não ser o Senhor, que possa ser o meu so­
corro. É Ele, o Senhor, o meu castelo forte: é Ele quem me
defende e me dá as forças necessárias para assim, fortale­
cido, combater a hoste dos incontáveis maus pensamen­
tos! Mas, pelo contrário, aquele que põe toda a confiança
em si mesmo e não no S enhor sofrerá uma aparatosa
queda.

27. ó tu, se é tua intenção combater o bom combate,


então inspira-te no modelo da aranha, pois esse pequeno
animal é figura do hesicasmo do coração. Serás assim aju­
dado a atingir o necessário hesicasmo mental. Tem em
conta isto: a aranha caça as moscas pequenas. E tu, se te
encontras em estado de hesicasmo, e te esforças no inte­
rior da tua alma à semelhança da aranha, não cessarás de
exterminar os filhos de Babilónia, isto é, o enxame dos
maus pensamentos. E no decurso dessa incontornável
imolação (um extermínio inescapável!) pela boca de David,
o Espírito Santo dirá de ti seres bem-aventurado!

28. Tal como é impossível ao Mar Vermelho aparecer


no firmamento no meio das estrelas, e a um homem que
caminha na terra não respirar o ar da terra, assim também
é impossível purificar o nosso coração e libertá-lo do cati­
veiro dos pensamentos passionais (expulsando dele os ini­
migos insinuantes) sem a invocação contínua de Jesus
Cristo.
212 PEQUENA FILOCALIA

29. Se a humildade é verdadeiramente vivida por ti na


tua condição humana; se o sentimento de que és mortal te
acompanha na quotidianidade da tua vida; se és capaz de
te censurar a ti mesmo, refutando o diabo e invocando
Jesus Cristo; se envergas a armadura da fé e caminhas
sóbria e diuturnamente pelo caminho estreito, vivendo a
alegria e a doçura da contemplação, - se isso é assim, então
atingirás as mais santas alturas espirituais dos inefáveis
mistérios de Cristo. E Ele te iluminará com a sua luz nas
profundezas da vida, Ele em quem estão «os tesouros
ocultos da sabedoria e do conhecimento» (Cl 2 , 3 ) , e em
quem «habita corporalmente toda a plenitude da Divin­
dade» (Cl 2 , 9) . Com efeito, o Senhor Jesus fará com que
sintas na tua alma a efusão do Espírito Santo, esse Espírito
que ilumina a mente do homem, dotando-o de um novo
olhar: a ousadia de um olhar de homem que vê o mundo
com um rosto descoberto. Lá diz, com efeito, a Escritura:
«Ninguém confessa "Jesus é Senhor" a não ser pelo Espí­
rito Santo» (1 Cor 1 2 ,3) . Ora uma tal confissão está mistica­
mente ligada a uma descoberta: a descoberta inefável e
indizível do Senhor a quem procuramos.

30. Aqueles que têm a instrução em alta conta e nela se


empenham gostosamente não podem ignorar a força des­
truidora que leva os demónios invejosos a tudo fazerem
com o obj etivo de desfigurar uma tal instrução: levados
por uma corrosiva inveja ocultam, conspurcam, recalcam
todo o combate que travamos em nós e fora de nós em de­
fesa da intelegibilidade. Com efeito, esses seres perversos
invejam-nos sempre que nós travamos o combate da inte­
legibilidade e colhemos os seus frutos, que não são outros
senão os do conhecimento e da aproximação de D eus.
Aproveitam-se da nossa negligência para, inopinadamente,
SÃO HESÍQUIO 213

se apoderarem da nossa mente e assim nos levarem a me­


nosprezar a contemplação. A luta que travam contra nós é
sempre uma luta perversamente marcada por um único
móbil: impedir o nosso coração de estar atento, pois eles
sabem o quanto é vital para o enriquecimento da alma a
atenção do coração. Quando passarmos por circunstâncias
dessas e o ignóbil assédio nos for movido, tenhamos pre­
sente isto: sozinhos e entregues à nossa vulnerabilidade
não poderemos resistir-lhes vitoriosamente. Impõe-se-nos
a invocação do Senhor Jesus que nos permitirá a contem­
plação espiritual. Voltemo-nos, pois, para Ele, e ganhare­
mos forças para o nosso combate, e a nossa mente reani­
mar-se-á. Não esqueçamos, pois: é a orientação dada pelo
Senhor (orientação que humildemente devemos aceitar)
que nos permitirá vencer.

31 . Nós os que vivemos num mosteiro devemos, volun­


tariamente e com um coração dedicado, cortar cerce toda a
afirmação da nossa vontade diante do superior. Por conse­
guinte, com a ajuda de Deus cultivemos o espírito da doci­
lidade que é alheio à afirmação impositiva de uma vontade
própria. Convém-nos uma tal arte de viver a fim de não
cairmos em acessos de cólera nem sermos levados insen­
satamente e contranatura a uma fogosidade intempestiva.
É que, se isso acontecesse, deixaríamos de ser livres, pois
ficaríamos maniatados a um indesejável combate que nada
de bom produziria. Com efeito, a nossa vontade, quando
não sensatamente domada, insurge-se indevidamente
contra aqueles que tentam quebrantá-la. Uma fogosidade
lamentável e um ardor contraproducente viriam à superfí­
cie, ficaríamos desnorteados, e acabaríamos por perder a
noção de qual é o verdadeiro combate a travar. E a capaci­
dade de conhecer, até então esforçadamente adquirida,
214 PEQUENA FILOCALIA

acabaria por se esvair. O ardor só é desejável quando vivi­


do sadiamente e está em jogo, vervadeiramente em jogo,
um combate que se imponha travar contra as forças da
destruição. E esse combate é essencialmente contra os
pensamentos que, por serem demoníacos, acorrentam-nos
ao mundo onde a perversidade reina. Um furor insensato
pode muito bem abrir as portas para que também os bons
pensamentos sej am levados pelo arraste. É que o ardor
incontido, só por si, pode destruir todo o tipo de pensa­
mentos, tanto os maus como os íntegros, caso estes este­
j am presentes. A capacidade da indignação foi-nos dada
por Deus como um elmo e como um arco, mas com uma
condição: a de não se manifestar, indistinta e simultanea­
mente, nas duas direções. Se uma tal condição não for res­
peitada, a inevitável consequência será calamitosa. Conhe­
ço um cão que, arrogante como os lobos, estraçalha as
ovelhas.

32. Impõe-se-nos fugir da linguagem desbragada como


se foge do veneno do áspide, bem como evitar os encon­
tros excessivos como se evitam as serpentes e toda a raça
de víboras. E o motivo é este: trata-se de coisas que, rapi­
damente, podem conduzir a um completo esquecimento
do que está na verdade em jogo e que não é outra coisa
senão o incontornável combate interior. E, inerente a esse
combate, fazer com que a alma continue, sem claudicar, a
ser habitada pelo júbilo celeste, júbilo que emana de um
coração puro. Com efeito, ao cairmos no esquecimento, o
caminho fica aberto ao lamentável processo da obliteração
da atenção : é que o esquecimento combate a atenção
assim como a água combate o fogo. Efetivamente, o esque­
cimento trava contra a atenção uma encarniçada peleja.
Não apenas ocasionalmente, mas em cada instante. E
SÃO HESÍQUIO 215

como consequência, eis-nos num perigoso declive : do


esquecimento passamos à negligência, da negligência ao
desprezo, do desprezo ao descuido, do descuido a todo o
tipo de cobiça desenfreada. Por conseguinte, em vez de
avançar recuamos, à semelhança do cão que regressa ao
seu vómito. Impõe-se-nos, pois, fugir da linguagem des­
bragada, assim como se foge de um veneno mortífero. Pois
bem, que retenhamos isto : o mal inerente ao esqueci­
mento (e suas consequências) cura-se mediante uma dis­
ciplina rigorosa da mente, acompanhada da invocação de
nosso Senhor Jesus Cristo. É que, na verdade, sem Ele
nada podemos fazer (cf. Jo 1 5 ,5 ) .

33. É do domínio do insólito e do foro do inadmissível


uma pessoa ser amiga de uma serpente e transportá-la no
seu seio. Ora, igualmente o é alguém acariciar o corpo de
muitas maneiras, cuidar dele, amá-lo desmedidamente, e
ao mesmo tempo aplicar-se na prática da virtude celeste.
Com efeito, enquanto a serpente fere naturalmente aquele
que a aquece, o corpo macula com o prazer aquele que se
desvela nos cuidados que lhe presta. Há que açoitá-lo
quando prevarica, fustigá-lo mesmo impiedosa e dura­
mente, tratá-lo como se fora um escravo fugitivo e embria­
gado. Que a flagelação possa levá-lo ao conhecimento do
Senhor, o Senhor que também por nós foi flagelado. Que
essa argila em forma de corpo, perecível, escrava noctívaga,
não enverede pela vadiagem ao esquecer-se da vida incor­
ruptível que a dirige.
Por conseguinte, até à tua morte não ponhas a tua con­
fiança na carne. Lá diz a Escritura: «A vontade da carne é
inimiga de Deus, pois não está submetida à lei divina. E a
carne milita contra o Espírito. Aqueles que vivem na carne
216 PEQUENA FILOCALIA

não podem agradar a Deus. Ora nós mesmos não estamos


na carne, mas sim no Espírito» (Rm 8,7-9) .

34. A prudência dá-se a ver como capacidade de con­


trolar o ardor, levando-o a empenhar-se no combate espi­
ritual e na autocrítica; a sabedoria, essa, exprime-se ao
levar a razão a ser sóbria e vigilante, e a agir com um tal
acerto que possa abrir o caminho à contemplação espiri­
tual; a justiça, por seu lado, afirma-se ao dirigir o desejo,
orientando-o para a prática da virtude e, portanto, para
Deus; a coragem, essa, assume-se como aquilo que é, ao
governar e submeter a exame os cinco sentidos, com o
objetivo de os levar a não macularem nem o nosso homem
interior (isto é, o coração) nem o nosso homem exterior
(isto é, o corpo) .

35. Quando a Escritura afirma: «Sobre Israel o seu es­


plendor» (cf. S l 6 8 , 34-3 5 ) , está a referir-se à mente. Temos
assim, portanto: que se produza uma iluminação da mente
capaz, na medida do possível, de a levar a experienciar a
beleza da glória de D eus. E quando declara « ( . . . ) e nas
nuvens o seu poder» (ibidem) , subentende um poder comu­
nicado às almas iluminadas que em cada manhã con­
templam Aquele que está à direita do Pai e que as cobre
com o seu explendor - assim como o sol que, ao atra­
vessar as nuvens, revela ao olhar deslumbrado uma beleza
indizível.

36. Aquele que vive no pecado, no dizer da Escritura,


entra na errância de um desnorte que o priva do senti­
mento profundo da j ustiça. Paralelamente, a mente que
peca cai em profundo entenebrecimento e destrói os man­
jares de uma eternidade que acaba por se ocultar.
SÃO HESÍQUIO 217

37. Que possamos reconhecer isto: não somos mais


fo rtes que Sansão, nem mais sábios que Salomão; tão
pouco o nosso conhecimento é superior ao do divino
David; e quando se trata do amor a Deus, não o amamos
mais do que Pedro, o príncipe dos Apóstolos, o amou. Por
conseguinte, enveredemos pelo caminho da sensatez e não
coloquemos a nossa confiança em nós mesmos. Com
efeito, lá está a Escritura a sublinhar tantas vezes, e de
tantos modos, o quanto há de desnorte na nossa tendência
para confiarmos em nós mesmos: uma tal confiança corre
sempre o risco de provocar quedas aparatosas! Que Ele, o
Senhor, nos livre de uma tão perigosa insensatez!

38. Com Cristo aprendemos a humildade; com David a


humilhação; com Pedro o choro decorrente do infortúnio.
Importa, porém, acrescentar ainda uma coisa mais : não
recusemos reconhecer a nossa falta quando for caso disso
(mas nesse caso não são muito edificantes nem Sansão,
nem Judas, nem Salomão) .

39. Sendo que os seus poderes são da ordem do demo­


níaco, o diabo ronda à nossa volta, qual leão rugindo, pro­
curando a quem possa devorar. Ora, tendo isso em conta,
há uma permanente advertência que incessantemente te é
dirigida, e que assim se pode exprimir: impõe-se-te culti­
var uma permanente atenção do coração, uma sobriedade
a toda a prova, uma vigilância sem desfalecimento, uma re­
cusa da perversidade insinuante. Tudo isso acompanhado
da oração dirigida a Cristo Jesus, nosso Deus. Na verdade,
ao longo de toda a tua vida, no meio das adversidades que
possam abater-se sobre ti, não encontrarás um socorro
mais forte do que aquele que Jesus te pode dar. Fora dele
não há socorro autêntico. É que só Ele, o Senhor, como
218 PEQUENA FILOCALIA

D eus que é, conhece verdadeiramente os labirintos do


mal, esses domínios do demoníaco com as suas ignomí­
nias, as suas fraudes, as suas artimanhas.

40. Que a alma ponha, pois, a sua confiança em Cristo,


que o invoque e não tema. Que o medo sej a expulso! E
que ela, alma, esteja segura disto: de que não combate só,
entregue a uma solidão destruidora, pois combate com ela
aquele que é o Rei poderoso, Jesus Cristo, Criador de
todos os seres, tanto dos corpóreos como dos incorpóreos
(dito com outras palavras: tanto dos seres visíveis como
dos invisíveis) .

41 . Sabemo-lo : quanto mais chuva cai, mais a terra


amolece. Analogamente, mutatis mutandis, o santo nome de
Cristo, quando invocado frequentemente, enche de pro­
fundo júbilo a terra do nosso coração.

42. É bom e salutar que aqueles que ainda não expe­


rienciaram as dimensões múltiplas da espiritualidade
saibam que são muitos e variados os inimigos que nos
assediam. Temo-los incorpóreos, invisíveis, malévolos,
hábeis na gestão do mal, dotados de uma perversa agili­
dade, treinados no combate da aniquilação. E não se trata
de inimigos recentes: vêm todos de muito longe, desde os
tempos de Adão. E nós, sem agilidade, pesados de um peso
que nos atrai para a materialidade da terra, vemo-nos inca­
pazes de os vencer. Mas que saibamos também isto: pode­
mos, com a força do alto, ser colocados no caminho em
que somos salutarmente surpreendidos pela vitória sobre
eles, atingível mediante a sobriedade vigilante contínua da
mente, acompanhada da invocação de Jesus Cristo, nosso
Deus e nosso Criador. Que a oração de Jesus Cristo seja
SÃO HESÍQUIO 219

verdadeiramente, para aqueles que ainda não experiencia­


ram as dimensões múltiplas da vida espiritual, um pro­
fundo incitamento para viverem e conhecerem a beleza do
bem. E que ela seja também, para aqueles já experimen­
tados, uma prática propiciadora do discernimento ne­
cessário na vivência do quotidiano. Isso permitir-lhes-á
reencontrarem sempre e de novo o repouso dado pelo en­
contro com o bem. Temos em tudo isso uma preciosa pe­
dagogia a viver por uns e por outros.

43. Tal como uma criança sem malícia se delicia ao ver


atuar um ilusionista, e na sua inocência fica cativada com
uma tal capacidade de criar ilusões, assim também a nossa
alma, simples e boa, porque criada pelo S enhor, sente
prazer ao ser assediada pelas imagens suscitadas pelo
diabo. Ludibriada desse modo, presa de um encantamento
demoníaco, corre atraída pelo mal como se este fosse um
bem, qual pomba que se precipita na direção daquele que,
astuciosamente, arma ratoeiras aos seus filhotes. E ocorre
nela, alma, uma coisa verdadeira e profundamente deplo­
rável: procede a uma amálgama ao misturar aquilo que são
os seus pensamentos com aquilo que são as imagens sus­
citadas pela provocação demoníaca. Uma vez essa amálga­
ma processada, se lhe acontece ver um rosto de uma bela
mulher, ou quaisquer outras coisas que os mandamentos
de Cristo rigorosamente interditam, ela desej a segui-los
com o fito de ela mesma se apoderar do que de belo viu.
Uma vez satisfeito esse desiderato, um pequeno passo a
separa do que se lhe segue, o passo da aceitação e consen­
timento; e, uma vez dado esse, passa ao ato, no qual en­
volve o corpo, cometendo a falta que em pensamento
tinha visto.
220 PEQUENA FILOCALIA

44. E assim temos encenados e cumpridos os desígnios


do maligno que, servindo-se de flechas desse jaez, enve­
nena não importa que alma. A partir do que se acaba de
dizer, podemos compreender a razão pela qual é impru­
dente, extremamente imprudente, deixar os pensamentos
entrar no nosso coração. Temos de ser cautelosos, muito
cautelosos, logo desde o início, durante todo o tempo em
que a mente não tenha ainda atingido uma grande expe­
riência do combate. Com efeito, é logo desde o começo
que a nossa alma se deixa seduzir pelas provocações de­
moníacas. E uma vez ocorrida a vitória da sedução, sobre­
vém o estado em que a alma se compraz em assumir as
provocações. Ora impõe-se-nos (e isso logo desde o início,
desde que elas brotam e começam a atacar) desmascará-las
e erradicá-las. E este é um combate da mente. Com efeito,
esta, uma vez entregue a essa obra de erradicação do que é
infame (obra de que não está ausente uma certa beleza) ,
com o passar do tempo vai-se exercitando mais e mais,
compreendendo o que está em jogo e disciplinando-se a si
própria ao travar esse combate incessante. Trata-se, com
efeito, de um combate onde a capacidade de discernir é
verdadeiramente essencial, já que se nos impõe avaliar cri­
ticamente os pensamentos. No dizer do profeta, trata-se de
apanhar as raposas, processo no qual a mente deverá estar
capacitada para, com conhecimento de causa, emitir sobre
eles, pensamentos, um j uízo crítico. De onde emerge a
necessidade de denunciar aqueles que são de estirpe
demoníaca.

45. Tal como é impossível ao fogo e à água passarem


juntos pela mesma conduta, assim também é impossível ao
pecado entrar no coração sem primeiro bater à sua porta
sob a forma de uma fantasia provocada pelo maligno.
SÃO HESÍQUIO 221

46. Em primeiro lugar irrompe a provocação sob a


forma de tentação. Em segundo lugar ocorre uma amál­
gama: a que resulta de uma mistura dos nossos pensa­
mentos com os dos demónios. Em terceiro lugar surge o
consentimento: a provocação-tentação abre caminho com
o predomínio dos pensamentos que querem o mal. Em
quarto lugar sobrevém o ato sensível, isto é, o pecado. Não
obstante tudo isso, se a mente está atenta e vigilante, e de
imediato rejeita a provocação-tentação (e só poderá fazê­
-lo com as forças que lhe advêm da invocação do Senhor
Jesus) as coisas ficam por aí. Em virtude de o maligno ser
uma mente incorpórea, não pode ludibriar as almas a não
ser através da sedução das fantasias-imagens, juntamente
com os pensamentos. Era dessas provocações-tentações
malignas que David falava quando escreveu: «Cedo, na
manhã, matei» (SI 1 0 1 , 8 ) , et cetera. O grande Moisés, esse,
adverte-nos contra uma atitude complacente que tudo
relativiza: são, com efeito, dele estas palavras : «Não pac­
tueis com eles! » (Ex 23,32) .

47. Acontece algo que não podemos ignorar, na com­


plexidade que é a sua: durante o desenrolar do combate
que travamos contra as forças demoníacas, há não poucas
vezez duas mentes que estão como que entrelaçadas, a do
demónio e a nossa. Razão pela qual é necessário, em cada
momento, invocar Cristo, a partir das profundezas do
nosso ser, pedindo-lhe que expulse a mente do demónio e
nos dê, no seu amor por nós, a vitória.

48. Que aquele que segura um espelho e nele faz incidir


o seu olhar seja para ti um modelo inspirador do hesicas­
mo do coração. Verás então inscritos na mesma mente o
mal e o bem.
222 PEQUENA FILOCALIA

49. Sê sempre vigilante de molde a não dares guarida no


teu coração a nenhum pensamento, seja ele insensato ou
sensato. Se essa for a tua prática não terás dificuldade em
reconhecer a tribo alienígena, isto é, os primogénitos dos
egípcios.

50. Quão excelente e deliciosa virtude é a sobriedade vi­


gilante! Quando somos por ti guiados, ó Cristo Deus, ela é
luminosa, doce, bela, resplandecente, encantadora! E
quando ela nos desperta a nós humanos, a nossa mente
avança humilde. Ela, com efeito, estende os seus ramos até
ao mar e ao abismo das contemplações, e os seus rebentos
até aos rios dos belos e divinos mistérios. Ela dessedenta a
mente desde há muito fustigada impiedosamente pela
mordedura dos pensamentos demoníacos e pela hostili­
dade da carne: numa palavra, pela morte!

51 . A sobriedade vigilante é análoga à escada de Jacob,


no cimo da qual está Deus, e pela qual os anjos sobem (cf.
Gn 2 8 , 1 2 ) . Na verdade, ela extirpa de nós todo o mal. Su­
prime a tagarelice, a inj úria, a maledicência, e todos os
outros males desse jaez. Ela não tolera ser - por pouco que
seja - privada por eles da doçura que lhe é inerente.

52. Procuremo-la, pois, meus irmãos, com todo o nosso


coração. Que ela esteja no centro do que a contemplação
pura vivida pela nossa mente em Cristo Jesus nos dá a ver.
Por conseguinte, sem esquecer que temos pecado, tenha­
mos presente a nossa vida passada, a fim de, quebrantados
e humilhados, podermos receber neste combate espiritual
o socorro incessante de Jesus Cristo nosso Deus. Tenha­
mos presente que, ao lutarmos pela vivência da pureza do
coração, não podem o orgulho, a vanglória, o egoísmo,
SÃO HESÍQUIO 223

prevalecer. É que, se prevalecerem ficaremos privados do


socorro de Jesus e viveremos nas trevas do desconheci­
mento de Deus. Com efeito, lá está a palavra da promessa
a lembrar-nos sempre e de novo que a pureza do coração é
o terreno propício para o conhecimento de Deus.

53. Além dos outros benefícios que decorrem da essen­


cial vigilância do coração, a mente (na medida em que esti­
ver empenhada na edificação de si mesma) não perde de
vista o benefício decorrente da necessária libertação dos
cinco sentidos corpóreos, no concernente ao insidioso ca­
tiveiro que representam os males que os atacam do exte­
rior. Efetivamente, todo aquele que se empenha com uma
dedicação total em manter viva a virtude interior inerente à
sobriedade vigilante, e que alimenta um vivo desej o de
acolher a beleza de um bom pensamento, não tolera que
os seus cinco sentidos comprometam a riqueza interior
dessa vivência. E podem compromete-la quando, à sua
maneira, não só promovem como incentivam o ataque
desferido pelos pensamentos materiais portadores de uma
vacuidade estiolante. Um tal homem, zeloso dessa sua
interioridade, ver-se-á compelido a combater esses pensa­
mentos, consciente do quanto eles têm de enganador. E
compreenderá perfeitamente que um tal combate tem de
ser travado, inescapavelmente travado, no interior de si
mesmo.

54. Que a tua mente se mantenha viva e capaz da


contemplação. Se assim for, de uma coisa poderás estar
seguro: as provocações-tentações deixarão de ser para ti
motivo de sofrimento. Mas se, pelo contrário, caíres na ne­
gligência e assim te afastares de uma tal disciplina, então
prepara-te para suportares o infortúnio que daí resultará.
224 PEQUENA FILOCALIA

55. É do domínio do conhecimento comum que o


amargo absinto faz bem àqueles que sofrem de falta de
apetite. Pois bem: mutatis mutandis, também as provações
podem ter um funcionamento pedagógico para aqueles
cujo comportamento é reprovável.

56. Não te esqueças disto: se não queres sofrer o mal,


então recusa ser artífice do mal. É que, inescapavelmente,
quando se pratica um o outro sobrevém. Pois o que um
homem semear, isso também colherá (cf. GI 6,7) . E que, ao
colhermos o mal que começámos por semear, não envere­
demos pelo caminho das recriminações! Em vez disso, dei­
xemo-nos impregnar pela maravilha que é a j ustiça de
Deus!

57. Há particularmente três paixões dotadas do sortilé­


gio de cegar a mente. São elas: o amor do dinheiro, a van­
glória, o prazer.

58. São essencialmente essas três paixões que embotam


o conhecimento e a fé. Conhecimento e fé que fazem parte
da nossa natureza.

59. Por causa delas a nossa vida de homens tem sido


gravemente atingida. E tem-no sido na medida em que por
sua causa temos sido vítimas da ira, da cólera, da guerra,
de todos os males que daí decorrem.

60. Aquele que não conhece a verdade, tão-pouco pode


verdadeiramente crer. É que o conhecimento precede
naturalmente a fé. E, com efeito, o que está dito na Escri­
tura está-o para que o possamos compreender. E o com­
preender, na sua essência, implica uma prática.
SÃO HESÍQUIO 225

61 . Temos indubitavelmente um caminho a percorrer,


que não é outro senão o que o Senhor quer que percorra­
mos. O que implica segui-lo como Senhor das nossas
vidas. Metamos, pois, mãos à obra, e descobriremos que
esse caminho nos surpreende em cada dia, marcado como
está por uma diversidade de experiências. É assim que
viveremos a esperança, a fé, o conhecimento, a libertação,
os carismas, a confissão do coração, as lágrimas, tudo
coisas que pela oração recebemos. E não apenas essas
bênçãos, mas ainda outras : a perseverança nas atribula­
ções, o perdão sincero concedido ao próximo, o conheci­
mento da lei espiritual, o descobrimento da j ustiça de
Deus, a receção do Espírito Santo, o carisma dos tesouros
espirituais, e tudo o mais que Deus promete aos homens
fiéis já aqui na terra e também no século vindoiro. Pode­
mos viver tudo isso: com efeito, criados à imagem e seme­
lhança de Deus, a sua graça operante no mais profundo de
nós mesmos outorga-nos na fé a humildade inerente à
oração, e abre-nos a mente para a vivência própria da
beleza da contemplação. Que queremos mais, uma vez que
nisso temos tudo? !

62. Recebemos da experiência um benefício incontesta­


velmente grande. Mas para tal, empenhados em purificar
o nosso coração, impõe-se-nos continuamente invocar o
Senhor Jesus contra os inimigos espirituais. E se refletires
um pouco constatarás que o modo como eu falo está em
consonância com o testemunho da Escritura. Com efeito,
ela diz: «Prepara-te, Israel, para invocar o nome do Senhor
teu Deus» (Am 4, 1 2 ) . O Apóstolo, esse, exorta: «Orai inces­
santemente! » ( l Ts 5 , 1 7) . E o nosso Senhor fala: «Vós sem
mim nada podeis fazer. Aquele que permanece em mim, e
Eu nele, esse produz muitos frutos», e ainda «aquele que
226 PEQUENA FILOCALIA

não permanece em mim será lançado fora como o sar­


mento» ao 1 5 ,5-6) . Por conseguinte, tenhamos sempre pre­
sente a necessidade de orar. É que a oração é uma bênção
excecional, um bem que contém todos os outros bens. Ela
purifica o coração e prepara-o para a epifania de Deus.

63. Em virtude de a humildade ser por natureza uma


bênção que nos eleva, que é amada por Deus, e que é
capaz de erradicar tudo aquilo que em nós é mau e ojecto
da condenação divina, em virtude disso, ela é naturalmente
difícil de atingir. Não tenhamos dúvidas: poderemos, com
alguma facilidade, encontrar um homem que possua
muitas virtudes, mas se procurarmos nele o perfume da
humildade, com muita dificuldade o encontraremos. Ora,
tratando-se, como se trata, de um bem do mais alto valor,
impõe-se-nos fazer todas as diligências para o alcançar­
mos. É significativo que a Escritura se refira ao diabo
como a máxima expressão da impureza: é que desde o
princípio ele repudiou o bem da humildade e deu mostras
de amar o orgulho. Daí que em muitos trechos ele seja
chamado «espírito impuro». Podemos interrogar-nos
acerca do porquê de uma tal designação. Trata-se de uma
impureza corpórea? Que falta terá cometido um tal espí­
rito (ele que era de natureza incorpórea, sem carne, sem
poiso definido) para que dele se diga que é impuro ? A
partir do testemunho da Escritura, a resposta é óbvia: é
chamado impuro por causa do seu orgulho, mácula essen­
cial que o destronou do seu lugar de anjo puro e lumino­
so. Todo aquele que, no seu coração, se eleva a si mesmo é
impuro aos olhos do Senhor. Está, com efeito, dito : «Ü
primeiro pecado é o orgulho» (Sir 1 0, 1 3) . E o Faraó, esse,
inchado de orgulho, fala assim: «Não conheço o teu Deus
e não deixarei partir Israel» (Ex 5 ,2) .
SÃO HESÍQUIO 227

64. Se, contudo, estamos empenhados na nossa salva­


ção, a nossa mente sente-se compelida a ser ativa a fim
de alcançarmos o dom precioso da humildade. E, nesse
sentido, pode fazer memória, invocando os pecados come­
tidos, tanto em palavras, como em atos, como em pensa­
mentos. Pode ainda, por exemplo, mediante a contempla­
ção, rever muita outra coisa do passado. Tudo isso é
importante e contribui para trilharmos o caminho em que
podemos descobrir de um modo concreto o apelo à hu­
mildade. Também tem a sua importância, para se alcançar
uma humildade verdadeira, repassarmos na nossa mente,
dia após dia, as obras íntegras realizadas por aqueles que
são nossos próximos. Podemos desse modo enaltecer a su­
perioridade que neles descobrimos, quando os compara­
mos connosco mesmos. A mente pode assim trilhar um
caminho em que se torna consciente dos seus limites, bem
como da distância a que se encontra dos irmãos a quem
considera superiores a si mesma. Uma tal tomada de cons­
ciência leva um homem a considerar-se terra e cinza,
menos que homem, um cão, o último em tudo, atrás de
todos os homens dotados de razão, deles muito afastado.

65. O nosso pai Basílio, cognominado o Grande, boca de


Cristo e coluna da Igreja, adverte-nos com estas preciosas
palavras: «Para não pecarmos e não recairmos no pecado,
no dia seguinte, com o cometimento das mesmas faltas,
devemos no fim do dia proceder a um exame de consciên­
cia, interrogando-nos acerca da nossa conduta: como
agimos nas variadas circunstâncias? Que mal cometemos?
Que bem deixámos de fazer e que bem fizemos? » (Grande
Regra, 37) . Era esse o procedimento de Job, tanto em relação
a si mesmo como no trato com os filhos (cf. Jb 1 ,5 ) . Assim,
228 PEQUENA FILOCALIA

no decorrer do nosso quotidiano, o nosso comporta­


mento, nos seus altos e baixos, deve, inescapavelmente, ser
iluminado pela introspeção levada a cabo por um sensato
exame de consciência.

66. Um outro pai, repassado ele também de sageza no


concernente ao conhecimento das coisas de Deus, chama,
segundo o carisma que lhe é próprio, a nossa atenção para
o valor da temperança como virtude que se reveste de uma
importância cardinal para a ascese e os belos frutos dela
decorrentes (NIL, o asceta, Os oito espíritos maliciosos) . Sej amos,
pois, temperantes, nem com excesso nem com defeito,
procurando o meio termo, em sintonia com a exortação
dos pais. Que metade do nosso quotidiano sej a passada
numa vigilância ponderada que vise essencialmente ser
custódia da mente. E se assim agirmos poderemos, com a
graça de Deus e uma rígida disciplina exercida sobre nós
mesmos, extinguir ou, pelo menos, reduzir o mal nas múl­
tiplas manifestações que poderão ser as suas. Efetivamen­
te, uma tal disciplina é promotora de uma conduta vir­
tuosa que franqueia a nossa entrada no Reino dos Céus.

67. O caminho que conduz ao conhecimento é o da


impassibilidade e humildade, sem as quais ninguém verá o
Senhor.

68. Aquele que incessantemente se ocupa do seu mun­


do interior, numa introspeção ditada pela sensatez, não é
somente um casto cuj a vida está nimbada de nobreza: é
também um contemplativo, um teólogo, um orante. Um
homem desses é alguém que está em sintonia com a exor­
tação apostólica: «Caminhai no Espírito e não cumprireis
o desejo da carne» (Gl 5 , 1 6) .
SÃO HESÍQUIO 229

69. Aquele que não sabe trilhar a senda exigente do


Espírito manifesta com isso estar a ficar cativo dos pensa­
mentos passionais. A sua única devoção é o culto da carne.
E a partir daí entrega-se à glutonaria e à devassidão, coisas
com que procura ocultar a tristeza que no seu íntimo
sente. Não admira que o seu quotidiano seja marcado por
acessos de cólera e de rancor, tudo isso frutos do entene­
brecimento da mente. Ou então segue um outro caminho,
entregando-se a uma ascese desmesurada, com o que
turba e perturba o trabalho da mente.

70. Aquele cuja renúncia se limita a não ter uma mu­


lher, não possuir riquezas, não ser proprietário de outros
bens, pode muito bem estar a fazer do seu homem exterior
um monge. Mas não do seu homem interior. Aquele,
porém, que renuncia aos pensamentos passionais do ho­
mem interior (isto é, da mente) esse é o verdadeiro monge.
É fácil fazer do homem exterior um monge, se voluntaria­
mente o desej armos. Mas fazer do homem interior um
monge implica um denodado combate.

71. Quem na sua vida concreta do dia a dia é capaz de se


libertar totalmente dos pensamentos passionais, e cria
assim um amplo espaço para a sua existência de orante
capaz da oração pura e imaterial, esse homem é monge no
seu interior.

72. Numerosas são as paixões que se ocultam nos refo­


lhos da alma. A sua desocultação só acontece quando as
suas causas são reveladas, numa tomada de consciência
libertadora.
230 PEQUENA FILOCALIA

73. Não consagres tempo demais ao teu corpo. Subme­


te-o, porém, a uma ascese ponderada, tanto quanto possas,
e disciplina a tua mente para o que é a vida interior. Com
efeito, lá diz a Escritura: «Ü exercício corporal para pouco
aproveita, enquanto a piedade para tudo é útil» (1 Tm 4,8) .

74. Facilmente caímos no orgulho quando as paixões


deixam de estar ativas em nós. Trata-se, como é óbvio, de
uma queda filha do equívoco, pois uma tal calmaria pas­
sional tanto se pode dever à erradicação das causas das
paixões como à retirada tática e insidiosa dos demónios.

75. A humildade e a vida ascética libertam o homem de


todo o pecado: a primeira sufoca as paixões da alma, a
outra, as do corpo. Razão pela qual o Senhor diz: «Bem­
-aventurados os corações puros porque verão a Deus» (Mt
5 , 8 ) . Trata-se de uma promessa essencial: verão, na verdade,
Deus e os tesouros que nele estão, quando se tiverem puri­
ficado pelo amor e pela temperança; e vê-lo-ão tanto mais
quanto maior tiver sido a purificação por que passaram.

76. O lugar de onde podemos observar tudo o que con­


cerne à virtude está na mente: ela é, com efeito, uma torre
de vigia cuj a custódia se nos impõe manter. Assim,
outrora, a sentinela de David prefigurava a circuncisão do
coração (cf. 2Sm 1 3 ,34) .

77. Tal como no mundo dos sentidos ficamos perturba­


dos quando vemos alguma coisa que causa perplexidade,
assim também no mundo da mente uma coisa semelhante
ocorre.
SÃO HESÍQUIO 231

78. Aquele que fere o coração de uma planta seca-a na


totalidade. Pois bem: não te esqueças de que acontece o
mesmo quando se trata do coração do homem. Impõe-se­
-nos, portanto, não desfalecermos na necessária vigilância
para evitarmos momentos desses. É que os salteadores não
nos dão tréguas!

79. A observância dos mandamentos é da ordem do


dever. Já não o é a filiação adotiva: esta é da ordem do
dom, de um dom concedido aos homens pelo Senhor que
por nós derramou o seu sangue. Querendo mostrar-nos
que a observância dos mandamentos é um dever a cum­
prir, o Senhor diz: «Quando tiverdes feito o que vos foi
prescrito, dizei: Somos servos inúteis. Fizemos o que de­
víamos fazer» (Lc 1 7, 1 0) . É por esse motivo que o Reino dos
Céus não é o salário pago por uma obra realizada, mas sim
uma graça do Senhor misericordiosamente concedida aos
servos fiéis. Quando um escravo pede a sua liberdade, não
a pede como um salário. E sabe que ao recebê-la a recebe
como uma graça e, devedor como é, sente-se compelido a
manifestar gratidão.

80. Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as


Escrituras (cf. 1 Cor 1 5 ,3) , e àqueles que fielmente o servem
concede-lhes o dom da liberdade. Ele diz, efetivamente:
«Servo bom e fiel, foste fiel no pouco, estabelecer-te-ei no
muito. Entra na alegria do teu Senhor» (Mt 2 5 , 2 1 ) . Ora,
ainda não chegou a ser servo fiel aquele que tem como
único apoio o conhecimento: um servo fiel é aquele que
manifesta a sua fé em Cristo mediante uma vida vivida na
observância dos seus mandamentos.

81. Aquele que honra o Senhor manifesta-o na sua vida,


praticando o que o Senhor ordena. E, quando cai na desa-
232 PEQUENA FILOCALIA

bediência, sofre as consequências dos seus atos. Tu que


me ouves tem presente isto : se amas verdadeiramente
aprender, então ama também o esforço que a aprendiza­
gem implica. Não há verdadeira aprendizagem sem es­
forço. E, além disso, não te esqueças de que o mero conhe­
cimento enfatua o homem.

82. As provações inesperadas por que passamos ensi­


nam-nos providencialmente a cada um de nós a trilhar o
caminho de uma renovação interior. Caminho esse de
onde não está ausente uma incontornável disciplina. Prati­
quemo-la, pois, gostosamente!

83. É caracterizante de uma estrela a luz que a circunda.


Analogamente, é caracterizante de um homem que expe­
rimenta o temor de Deus (e o vive como princípio de sabe­
doria) uma genuína humildade que se traduz numa vida
simples. Um homem desses ao ser simples está a ser hu­
milde, e ao ser humilde está a ser simples. Com efeito,
nenhum outro indício há que dê a conhecer e que faça ver
os discípulos de Cristo, a não ser um sentimento humilde
e um exterior nimbado pela simplicidade. É isso que não
cessam de proclamar os quatro Evangelhos. Ora, todo o
homem que não vive assim - isto é, humildemente - acaba
por não ter parte naquele que se humilhou a si mesmo até
à morte e morte de cruz, Ele o verdadeiro Legislador dos
divinos Evangelhos.

84. Em sintonia com a Escritura que proclama «vós que


tendes sede, vinde às águas!» (Is 5 5 , 1 ) , podemos e devemos
nós também exortar: vós que tendes sede de Deus, segui o
caminho que conduz à pureza da contemplação! Não nos
esqueçamos, porém, de que aquele que contempla, e que
SÃO HESÍQUIO 233

por esse motivo voa alto, deve também olhar a terra, com
toda a simplicidade. É que, com efeito, ninguém se eleva
tanto como o humilde; pelo contrário, o arrogante, prisio­
neiro do seu orgulho, tem como destino uma aparatosa
queda. Sabemos muito bem que todas as coisas se tornam
obscuras, tortuosas, tenebrosas, quando falta a luz; analo­
gamente, quando a humildade claudica, tudo se torna vão
e corrompido, não obstante os nossos maiores esforços
para agradar a Deus.

85. Está atento a todo o discurso e não apenas a uma


parte dele: compreenderás assim que do princípio ao fim
ele tem a animá-lo um grande desiderato que não é outro
senão o de nos levar a viver o temor de Deus, na observân­
cia dos seus mandamentos. Deixa-te, pois, impregnar,
tanto na mente como nos sentidos, por esse espírito
doador de vida. Se assim for, ao cultivares uma tal disci­
plina da mente e dos sentidos, descobrirás que a observân­
cia dos mandamentos é verdadeiramente em si suave e
doce. Di-lo David com palavras bem expressivas : «Quão
suave é o esforço de cumprir, no meu interior, a tua von­
tade e a tua Lei» (Sl 40,9) .

87. Quando o homem não cumpre no seu interior (isto


é, no coração) a vontade de Deus, e olvida a sua Lei, tão
pouco as observará no seu exterior. Qualquer tentativa
que faça nesse sentido será para ele um esforço de que não
se sairá bem. Com efeito, aquele que não é sóbrio nem
vigilante, caindo assim numa negligência que nada de bom
produz, viverá nas trevas, falto da iluminação divina, e na
sua incapacidade dirá a Deus: «Não quero conhecer nem
trilhar os teus caminhos» Ob 2 1 , 1 4) . Mas aquele que é ilu­
minado pela luz divina será sempre e de novo surpreen-
234 PEQUENA FILOCALIA

dido pelo poder do alto que o capacita para assumir com


j úbilo as coisas de Deus. E descobrirá o quanto elas são
belas.

87. Sabemo-lo perfeitamente: o sal, quando dotado da


sua capacidade de salgar, dá ao pão o sabor desejado, em­
presta aos outros alimentos o gosto procurado, e faz com
que as carnes (pelo menos algumas delas) não fiquem en­
tregues ao processo do apodrecimento, conservando-as
durante muito tempo. Analogamente, mutatis mutandis, a
doçura espiritual e as obras prenhes do maravilhoso, re­
sultantes de uma mente custodiada, permitem uma vida
bafejada pela novidade do Espírito. Com efeito, elas im­
pregnam do sabor divino tanto o homem interior como o
homem exterior, expulsam o odor fétido dos pensamentos
malignos, apetrecham-nos para a prática perseverante do
bem. Que podemos nós pretender mais?

88. Pelo contrário, da provocação demoníaca brotam


muitos dos nossos pensamentos: os que medram no ter­
reno tristemente fértil das más ações inerentes a uma prá­
tica intrinsecamente pervertida. Em contraste com isso o
homem que, na comunhão com Jesus, extingue de ime­
diato uma tal provocação, não só escapa às suas nefastas
consequências como cresce no conhecimento divino. E
isso faz dele, cada vez mais, um amante desse Deus pre­
sente em toda a parte. Segurando o espelho da mente, e
mantendo-se firmemente orientado para Deus, um ho­
mem desses vive no seu quotidiano a experiência da ilumi­
nação. Assim como o cristal puro recebe a iluminação do
sol, assim também um tal homem é iluminado pela luz
provinda de D eus. E uma vez atingido esse cume, esse
ponto em que se vive a realização do nosso mais elevado
SÃO HESÍQUIO 235

desejo, a mente repousa em Deus. E cessa uma qualquer


outra contemplação.

89. Todo e qualquer pensamento atinge o coração atra­


vés das imagens de coisas sensoriais. Mas quando a mente
se liberta do império dos pensamentos, bem como das
figuras que por estes lhe são impostas, ela é iluminada pela
inefável luz da divindade. Assim, graças ao vazio criado
pela emigração dos pensamentos, uma tal luz encontra a
mente pura. E a ela se revela.

90. Quanto mais atento estiveres à contemplação da


mente, tanto mais ardor porás na tua oração a Jesus. Pelo
contrário, quanto mais negligente fores no concernente à
contemplação, tanto maior será o teu afastamento de
Jesus. E assim como a disciplina da atenção ilumina de
uma ponta à outra o espaço da contemplação, assim tam­
bém, em sentido contrário, o abandono da sobriedade vi­
gilante e da doce invocação de Jesus enche esse espaço de
trevas. Uma tal coisa (dissemo-lo já) é da ordem da natu­
reza, e não pode ser de outro modo. Trata-se de uma coisa
que compreenderás na medida em que ela entrar no
campo da tua experiência e da tua ação. Com efeito, a vir­
tude (e de um modo particular essa obra inefável de onde
dimana a luz) não se aprende naturalmente. Há que viven­
ciá-la pela experiência e na experiência.

91. A invocação incessante de Jesus, impregnada de do­


çura e de alegria, e acompanhada de uma extrema concen­
tração, enche o coração de j úbilo e de serenidade. Mas
quem leva até ao fim a purificação do nosso coração é
Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus, Ele que é a origem e o
236 PEQUENA FILOCALIA

criador de todos os bens! Efetivamente, lá diz a Escritura:


«Eu sou o Deus que cria a paz» (Is 45 ,7) .

92. A alma que vive a doçura outorgada por Jesus, e que


experiencia as inumeráveis bênçãos por Ele concedidas,
responde- lhe com ardorosas ações de graças e um exul­
tante amor. Ela dá graças e invoca com j úbilo Aquele
que lhe dá a paz. Uma tal alma, mediante a mente, nas
profundezas do seu interior, vê-o dissipar as fantasias
demoníacas.

93. David diz: «Ü olho da minha mente viu os meus ini­


migos espirituais. E o meu ouvido escutará aqueles que se
levantam contra mim para me fazerem mal» (Sl 92 , 1 2) . E
ainda: «Vi em mim o salário que de Deus os pecadores re­
cebem» (Sl 9 1 ,8) . Ora, quando as fantasias se dissipam no
coração, a mente, essa, encontra-se no seu estado natural,
pronta a contemplar o que é inefável, espiritual, amado
por Deus.

94. Assim, pois, (disse-o já) , a sobriedade vigilante e a


oração de Jesus fundem-se naturalmente uma na outra. E
a disciplina da atenção, que se exprime em concentração
esmerada, desempenha o importante papel de ser funda­
mento da oração incessante. E esta, em registo de recipro­
cidade, cria na mente a sobriedade vigilante e suscita a
concentração esmerada.

95. A l embrança constante da morte funciona como


uma boa pedagoga do corpo e da alma. Por conseguinte,
esforcemo-nos por transpor tudo aquilo que ainda dela
nos separa, vendo-a antecipadamente, imaginando mesmo
desde já o próprio leito onde seremos estendidos quando
SÃO HESÍQUIO 237

agonizarmos. E que dessa antecipação faça parte tudo


aquilo que com ela se relaciona.

96. Irmãos, não é possível ao sono fazer refém um ho­


mem que esteja firmemente determinado a não ficar pri­
sioneiro das adversidades, por mais agrestes que elas
sejam. Abre-se-nos, com efeito, diante de nós, uma alter­
nativa profundamente pessoal: ou enveredamos pelo ca­
minho do desnorte em que sucumbimos vítimas de uma
maneira de viver despoj ada de dignidade e, consequente­
mente, sem virtude; ou então trilhamos um caminho dife­
rente, mediante o qual tornamos possível à mente, numa
vigilância constante, resistir. É que o nosso inimigo não é
um inimigo qualquer: não sucumbe ao sono, está perma­
nentemente atento, mantém sem desfalecimento as suas
forças alinhadas, prontas para o combate.

97. Fazer memória é essencial para um combate de re­


sistência. E nisso impôe-se-nos invocar perseverante­
mente Nosso Senhor Jesus Cristo, pois é Ele que suscita
na nossa mente o que é essencial: a vivência de um certo
estado divino. Por conseguinte há duas coisas que não
podem ser esquecidas: uma delas é a oração integrante de
uma ascese sóbria e segura; a outra consiste na prática in­
cansável de uma vigilância permanente. Empenhemo-nos,
pois, a fundo, na obra da invocação de Jesus Cristo, Nosso
Senhor, que é um empenho quotidiano e que deve ser
cumprido com um coração de fogo. S ó assim nos será
dado comungar no seu santo Nome. Há, portanto, uma
coisa que não podemos perder de vista, quando está em
jogo o que aqui está: se tanto na virtude como no vício, a
repetição gera o hábito, e este, tudo o resto. Então, o empe­
nho de cada dia é fundamental para o que, finalmente, se
238 PEQUENA FILOCALIA

pretende atingir. E um tal desiderato pode ser assim ex­


presso: que a mente seja dotada da capacidade de perse­
guir os seus inimigos, à semelhança da perseguição que
um cão de caça move a uma lebre por entre os matagais.
Mas isso com uma substancial diferença: enquanto o cão
tem como móbil vir a comer a sua vítima, a mente, essa,
visa a expulsão daquilo que persegue.

98. Sempre que os maus pensamentos nos atacam, de­


vemos combatê-los logo desde o princípio, não venham
eles a ser multidão. Desbaratemo-los, acenando-lhes com
a invocação de Nosso Senhor Jesus Cristo. E se assim agir­
mos veremos como eles se dissipam de imediato, como se
fossem fumaça no ar. É isso que a experiência nos tem en­
sinado. E uma vez a mente libertada, retomemos a neces­
sária concentração que, como é sabido, só se consegue
através da invocação do Senhor. Que tudo isso sej a por
nós tido em conta quando sobre nós se abata a insídia de
um sofrimento no qual podemos submergir!

99. Tal como é impossível combater com o corpo nu,


ou nadar no mar alto completamente vestido, ou viver sem
respirar, assim também de nenhum modo poderemos
travar vitoriosamente o combate espiritual e secreto da
mente, ou defrontar habilmente o diabo, sem nos humi­
lharmos e elevarmos uma fervorosa súplica a Cristo.

100. O grande David, profundamente experimentado


na ação, diz ao Senhor: «Guardarei para ti a minha força»
(SI 5 9 , 1 0) . Pois bem: em sintonia com esse voto de David,
guardemos em nós a força do hesicasmo do coração e da
mente. Dessa fundamental ascese nascem todas as virtu­
des, pois o Senhor ajuda-nos, Ele que nos dá a força para
SÃO HESÍQUIO 239

cumprirmos os seus mandamentos. Com efeito, ao invocá­


-lo, com a persistência gerada pela fidelidade, Ele expulsa
de nós a mácula do esquecimento, esse terrível esqueci­
mento que arrasta consigo o hesicasmo do coração. Por
conseguinte impõe-se-te, monge, não caíres de modo ne­
nhum na negligência, pois ela transporta sempre consigo
a morte da vida espiritual. Perante a ameaça da negligên­
cia, resiste-lhe e fustiga-a, como inimiga, no nome de
Jesus. Como sabiamente diz alguém: «Que o nome de
Jesus se cole à tua respiração. Conhecerás, então, o socorro
do hesicasmo» Ooão Clímaco, L'Échelle sainte [A Escada do Paraíso] ,
XXVII, 62) .

1 0 1 . Quando nos é concedido, não obstante a nossa


condição de homens pecadores, aproximarmo-nos, com
temor e tremor, dos inefáveis e divinos mistérios de Cristo
(nosso Deus e Rei) devemos dar provas de sobriedade vigi­
lante (expressa de um modo autêntico no empenho da
mente) de modo que o fogo divino, isto é, o Corpo de
Nosso Senhor Jesus Cristo, consuma os nossos pecados e
apague as nossas pequenas e grandes máculas. Na ver­
dade, quando Ele entra em nós, de imediato expulsa do
coração os espíritos malignos e perdoa os pecados cometi­
dos. E a mente, essa, é libertada do redemoínho dos pensa­
mentos perversos. E se ela for protegida mediante uma
rigorosa custódia, o coração resistirá aos assédios insi­
nuantes, e podemos estar seguros de que, na nossa aproxi­
mação dos Mistérios, seremos cada vez mais iluminados
pela Luz do Alto, e isso de tal maneira que a nossa mente
se tornará semelhante às estrelas.

102. O esquecimento, esse, por sua vez, é extremamente


hábil ao entorpecer a vigilância da mente: essa sua capaci-
240 PEQUENA FILOCALIA

dade paralisante é tão grande como grande é a eficácia da


água quando se trata de extinguir o fogo. Mas a oração in­
cessante de Jesus, juntamente com a prática da sobriedade
vigilante, acaba por expulsá-lo totalmente do coração.
Porque a oração necessita de caminhar acompanhada da
sobriedade vigilante numa vivência quotidiana: necessita
dela tal como a mecha, para ser verdadeiramente mecha e
cumprir o fim para que existe, necessita da chama que a
faz brilhar.

103. Se queremos preservar o que nos é precioso, im­


põe-se-nos trabalhar para isso. Ora o que é para nós ver­
dadeiramente precioso é aquilo que nos guarda de todo o
mal, tanto no domínio do sensorial como no do inteligí­
vel. Para cumprirmos um tal desiderato há um imperativo
a cumprir de que fazem parte: a vigilância da mente acom­
panhada da oração de Jesus; a lucidez de um olhar que vai
até ao fundo do coração; a vivência de um hesicasmo que
nos liberte do cativeiro dos pensamentos, até mesmo dos
que, aparentemente, nos pareçam ser bons; a obtenção de
um estado em que o salutar vazio criado pela deserção dos
pensamentos nos assegure de que com a fuga destes são
os ladrões que debandaram. E se tivermos de resistir, lu­
tando pela pureza do coração, que essa nossa resistência
nos centre mais e mais nesta expectativa: próxima está a
consolação !

104. Não há dúvida disto: o coração que, diligentemente


custodiado, recusa o assédio das formas, das imagens, das
forças demoníacas e tenebrosas do mal, é capaz de gerar
naturalmente pensamentos luminosos. Pois tal como o
carvão faz nascer a incandescente chama, assim também,
e não com menor intensidade, o coração, habitado por
SÃO HESÍQUIO 241

Deus desde o santo batismo, é capaz de iluminar a nossa


faculdade de refletir, abrindo-nos à contemplação. E, no
fundo, é D eus quem faz isso, Ele que nos purifica dos
miasmas da malícia e nos preserva dos tentáculos do nada,
graças à vigilância da mente.

105. Impõe-se-nos sempre e de novo repetir o nome de


Jesus nas profundezas do nosso coração: é aí, nessa des­
cida, que somos surpreendidos pelo dom do Espírito, esse
dom que rega de um modo fecundo terras secas e áridas,
qual salutar chuva que se sucede ao ribombar do trovão. É
isso que sabem muito bem aqueles que são experimenta­
dos na atividade da mente e no combate interior. Travemos,
pois, o combate da mente nesta ordem: primeiro, a essen­
cial atividade da atenção que se exprime na concentração;
em seguida, depois de termos reconhecido o inimigo que
subtilmente se quer infiltrar na forma de um pensamento
hostil, açoitemo-lo sem piedade no nosso coração, com
palavras de anátema; finalmente, oremos suplicando a força
para o combate, concentrando-nos no nosso coração, de
onde deve brotar uma intensa invocação de Jesus Cristo. E
que assim a imagem demoníaca seja inteiramente dissi­
pada, sem dó nem piedade, não vá a mente seguir o fan­
tasma, qual criança iludida por um hábil ilusionista.

1 06. Empenhemo-nos a fundo na invocação, como


David se empenhava. E que das nossas profundezas cla­
memos: «Senhor Jesus Cristo!», e voltemos a clamar, até fi­
carmos roucos. E que os olhos da nossa mente não deixem
de esperar no Senhor nosso Deus!

1 07. S e nos lembrarmos sempre da parábola do j uiz


iníquo (parábola com que o Senhor nos adverte acerca da
242 PEQUENA FILOCALIA

necessidade de orarmos sempre sem desfalecimento) esta­


remos no bom caminho em que poderemos ser artífices da
j ustiça. E não percamos de vista isto: enquanto o salário
pago pelo pecado tem o cheiro da morte, o salário outor­
gado pela justiça respira o odor da vida.

108. É inevitável que o sol inunde os olhos daquele que


o contempla. Ora, inevitável é também que a iluminação
divina desça sobre aquele que, diligentemente e com per­
severança, se concentra no reduto do seu coração.

1 09. Tal como é impossível viver sobre a terra sem


comer e sem beber, assim também sem uma mente vigi­
lante e um coração puro (isto é, sem a disciplina inerente à
prática da sobriedade) não é possível à alma atingir o que
quer que seja de genuinamente espiritual. Donde ficarmos
cativos do mundo que Deus aborrece, que não é outro
senão o mundo nutrido por um pensamento pecaminoso
gerador do medo dos castigos eternos. E , desse modo,
todo o esforço que se possa fazer não passará de um es­
forço condenado à esterilidade.

110. Há, contudo, uma particular bem-aventurança que


é resultante de uma prática específica, a que consiste
numa rigorosa abstenção do pecado em ato. Ora em tudo
isso, isto é, para o seu cumprimento, há um imperativo a
observar: o que se traduz numa dura e quotidiana ascese.
Aqueles que enveredam decididamente por um tal cami­
nho encontram no Evangelho um modelo de comporta­
mento existencial: são os violentos que se apoderam do
Reino dos Céus (cf. Mt 1 1 , 1 2) . São esses os bem-aventura­
dos diante de Deus, dos anjos, dos homens.
SÃO HESÍQUIO 243

111. Para compreendermos o admirável socorro que a


mente recebe do hesicasmo, devemos não perder de vista
algumas coisas. Uma delas tem a ver com o assédio da
mente levada a cabo pelos pecados que cometemos: com
efeito, um tal assédio processa-se sibilinamente sob a
forma insinuante dos pensamentos mais diversos. Uma
outra consiste na transformação desses pensamentos em
pecados sensoriais : com efeito, isso ocorre q uando tais
pensamentos tomam de assalto a reflexão. Ainda uma ter­
ceira coisa que consiste num alerta: com efeito, desse
modo se evidencia o essencial papel desempenhado pela
sobriedade vigilante, quando se trata de apagar esses peca­
dos. Tudo coisas que se alcançam mediante o socorro que
nos é concedido por Nosso Senhor Jesus Cristo. É Ele que
nos defende desses ataques, por mais insinuantes que
sej am, impedindo que eles nos destruam ao atacarem o
nosso homem interior, fazendo de nós tristes artífices de
uma prática perversa.

112. O Antigo Testamento é um ícone da ascese corpó­


rea, exterior, sensorial. O santo Evangelho (ou Novo Testa­
mento) , esse, é um ícone da atividade mental, da pureza do
coração. O Antigo Testamento não fez do homem interior
um homem perfeito, nem lhe deu uma estatura plena no
culto prestado a Deus. Estas nossas palavras estão em sin­
tonia com a declaração do Apóstolo : «A Lei a ninguém
tornou perfeito» (Heb 7,8) . Na verdade, ela limita-se a inter­
ditar os pecados corpóreos, sem ir até às profundezas do
coração e erradicar dele os pensamentos e os desejos per­
versos. Isso é o que faz o Evangelho, pois leva-nos pelo ca­
minho da vida (que supõe a pureza da alma) com o man­
damento do amor e não com o preceito do olho por olho,
dente por dente. Temos assim uma ascese que implica uma
244 PEQUENA FILOCALIA

disciplina corporal a que não é alheio o j ejum, a tempe­


rança, o dormir no chão duro, o ficar de pé, o velar, tudo
coisas que agem naturalmente no corpo e acalmam a sua
parte passional. Sendo o que são, observadas corretamente
libertam o corpo do pecado ativo e das paixões perversas,
pois educam o nosso homem exterior. Mas uma tal peda­
gogia, não obstante a sua bondade, não vai ao ponto de nos
proteger e de nos libertar da inveja, da cólera, da concupis­
cência. Tão-pouco nos impede de pecar em pensamento.

113. Uma outra pedagogia é a que emana do Novo Tes­


tamento e tem a ver com a pureza do coração, com a vigi­
lância, com a custódia da mente. Quando fielmente obser­
vada extirpa do coração, de um modo radical, todas as
paixões e todo o mal. E coloca no seu lugar a alegria, a
confiança, a compunção, o luto, as lágrimas, a compreen­
são de nós mesmos e dos nossos pecados, a lembrança da
morte, a genuína humildade, um amor ilimitado por Deus
e pelos homens, uma sede intensa e profunda do divino.

114. É inevitável - sabemo-lo bem - fender o ar ao cami­


nharmos aqui na terra. Pois bem: inevitável é também o
bravio e secreto ataque dos demónios ao nosso coração,
mesmo quando nos entregamos a uma diligente ascese
corpórea.

115. Se tu queres ser no Senhor um genuíno monge,


então terás de trilhar o caminho da autenticidade, abando­
nando a aparência de ser aquilo que na verdade não és. Sê,
pois, comedido, vive a união com Deus, exercita-te com
todas as tuas forças na proteção da mente, custodiando-a
com a disciplina proporcionada por uma verdadeira con­
centração. Viverás, assim, a excelência do coração, cum-
SÃO HESÍQUIO 245

prida na vivência doce do hesicasmo, esse estado sobrema­


neira feliz da alma liberta de imagens. Empenha-te profun­
damente nesse caminho, pois não são muitos os que atin­
gem o desej ado alvo.

116. Temos assim, em tudo isto, o que se pode chamar


uma filosofia da mente. Caminha, pois, na sua senda, ani­
mado e fortalecido pelas forças que advêm de uma intensa
sobriedade vigilante, de um zelo ardente e, sobretudo, da
oração de Jesus. Reveste-te, pois, de humildade, empenha­
-te na concentração, no silêncio dos lábios sensitivos e in­
teligíveis, alimentando-te e bebendo moderadamente,
guardando-te de tudo aquilo que leva ao pecado. Cami­
nha, portanto, na sua senda e vive a contemplação com
ciência e prudência. É esse o caminho da sabedoria, deli­
neado pela filosofia da mente: ela instruir-te-á, iluminar­
-te-á, explicar-te-á e dar-te-á a conhecer o que antes -
entenebrecido como estavas pelas paixões, errante na
perversidade, submerso no abismo do esquecimento - eras
incapaz de compreender.

117. Tal como os vales produzem um copioso trigo,


assim também a sabedoria de que falamos gera em abun­
dância o bem no teu coração. E, como é óbvio, uma tal
sabedoria não procede de uma qualquer boa intenção
humana, por mais que nos esforcemos nesse sentido: ela
é-nos dada por Nosso Senhor Jesus Cristo, e com ela tudo
o que tem a ver com o bem, pois sem Ele nada podemos
fazer. E em tudo isso há um caminho a percorrer: primei­
ro, começarás por ver essa sabedoria como uma escada;
em seguida, como um livro para ser lido. Mas não ficarás
por aí: à medida que avançares descobri-la-ás como a
Jerusalém celeste, e verás claramente na tua mente Cristo,
246 PEQUENA FILOCALIA

o Rei das potestades de Israel, com o seu Pai consubstan­


cial e o Espírito Santo. Essa é a Trindade adorada no nosso
culto.

118. Sempre que os demónios nos levam a pecar, fazem­


-no através de fantasias ludibriantes. Foi, com efeito, me­
diante a fantasia da cobiça e do ganho que eles trabalha­
ram o infeliz Judas, levando-o a trair o Senhor e Deus do
universo. O ludíbrio, sibilinamente demoníaco, manifes­
tou-se ardilosamente: por um hipotético benefício mate­
rial, por uma falsa honra, por um impossível ganho, por
uma suposta glória, os demónios puseram-lhe a corda ao
pescoço e entregaram-no à morte eterna. Essa foi a sua
paga. E, como se vê, uma paga situada nos antípodas da
fantasia que nele tinham feito nascer. O resultado não
podia ter sido outro.

119. Sê, pois, atento! Vê bem como os inimigos da nossa


salvação instilam em nós as fantasias mais delirantes. Eles,
com efeito, servem-se da fantasia da mentira, da fantasia
das promessas vãs, para provocarem a nossa queda. Foi
essa a triste história de Satanás: tendo-se fantasiado igual a
Deus, foi precipitado lá do alto, qual relâmpago decaído.
De um modo análogo, Adão foi levado a separar-se de
Deus: com efeito, Satanás levou-o a fantasiar-se, vendo-se
a si mesmo como possessor da dignidade divina. E é assim
que ele, o inimigo de sempre, mentiroso e trapaceiro, con­
tinua a enganar sedutoramente os pecadores.

120. Ao coração enchemo-lo da amargura resultante do


veneno e da malícia dos maus pensamentos quando, negli­
gentes e esquecidos, nos afastamos durante muito tempo
da prática da oração de Jesus, tornando-nos incapazes da
SÃO HESÍQUIO 247

necessária concentração. Pelo contrário, somos cheios da


doçura própria de uma experiência exultante e bem-aven­
turada quando, na vivência da contemplação, mediante o
amor divino, levamos harmoniosamente a bom porto, com
força e fervor, a oração, companhia fiel da concentração.
Efetivamente, ao vivermos uma tal experiência estamos a
viver o hesicasmo do coração, sem visarmos outra coisa
que não sej a o inefável prazer e as delícias com que ela
enche a alma.

121. A ciência das ciências e a arte das artes é a mestria


que pomos no combate aos pensamentos daninhos. A
melhor maneira de os combater é esta: dilucidar com uma
visão espiritual a fantasia dissimuladora da investida de­
moníaca, e proteger a contemplação levada a cabo pela
mente, tal como protegemos os nossos olhos corpóreos
(essenciais para distinguir o que pode ameaçá-los) deles
afastando tanto quanto podemos o que quer que seja de
ameaçador (nem que seja uma simples palha!).

122. Tal como a neve nunca poderá dar à luz a chama,


ou a água j amais gerará o fogo, ou o espinheiro em ne­
nhuma circunstância dará figos, assim também o coração
do homem não se libertará dos pensamentos, das palavras e
das obras demoníacas, se não seguir o caminho de uma
essencial purificação interior. E só se pode atingir essa puri­
ficação mediante a vivência da sobriedade vigilante e com
ela a prática perseverante da oração de Jesus. Daí não pode­
mos fugir se é que queremos experimentar o que há de ine­
fável no hesicasmo da alma. Quando a alma cai na negli­
gência, e a humildade se ausenta, a alma torna-se cativa dos
pensamentos perversos, qual mula estéril incapaz de gerar
pensamentos bons. Ela fica assim arredada da prudência
248 PEQUENA FILOCALIA

espiritual e torna-se alheia à verdadeira paz. Ora a au­


têntica paz que ela inefavelmente pode experimentar só
lhe pode ser conferida pelo nome de Jesus de onde advém
o poder que leva à expulsão dos pensamentos passionais.

123. Quando a alma se mancomuna com o corpo para


fazer o mal, surge insidiosamente uma triste cidadela: a
que tem por fundamento a vanglória, e é ornada com a sua
torre de orgulho, lugar de habitação dos pensamentos per­
versos. Mas o Senhor, pelo medo do inferno, confunde e
destrói um tal pacto, obrigando a alma soberana a falar e a
pensar de um modo diferente do corpo e em oposição a
ele. De um tal temor nasce uma salutar dissenção entre a
alma e o corpo, pois o cuidado da carne é inimigo de Deus
e, como tal, não se submete à sua Lei.

124. Há um quotidiano imperativo para aqueles que,


com Cristo, se empenham no combate contra o mal: pro­
ceder a um julgamento da qualidade, boa ou má, das obras
que realizam. Isso implica para eles uma perseverante vigi­
lância durante o dia, de tal modo que à noite vivam a liber­
tação de um arrependimento sincero. Um tal exame de si
mesmo deverá incidir sobre as variadas ações praticadas:
foram tais ações praticadas segundo Deus e por Deus?
Nesse exame não estaremos a ser seduzidos pelos senti­
dos? Como distinguir entre aquilo que Deus quer e aquilo
que os nossos sentidos pedem?

125. Se, com a aj uda de Deus e mediante a prática da


sobriedade vigilante, fazemos progressos no dia a dia, isso
é sinal de que estamos a progredir. Não percamos, pois, de
vista a necessidade de assim nos mantermos, dizendo não
à sedução de uma errância deambulante. Mantenhama-
SÃO HESÍQUIO 249

-nos, pois, firmes, pondo em prática o discernimento ne­


cessário, de tal modo que evitemos encontros perigosos de
onde adviriam as consequências mais nocivas. Impõe-se­
-nos, por conseguinte, menosprezar as coisas marcadas
pela vacuidade, em nome da virtude e movidos pelo desejo
de experienciar a beleza de que ela se reveste.

126. Devemos servir-nos das três partes da alma, de uma


maneira não só sensata como justa, em sintonia com a na­
tureza e tais quais foram criadas por Deus. Em primeiro
lugar, a parte que tem que ver com o ardor. O ardor-insur­
reição, esse j ulgamento sobre nós memos, sobre o nosso
homem exterior, Satanás e a serpente. Está escrito: «In­
surgi-vos contra o pecado», isto é, insurgi-vos contra vós
mesmos e contra o diabo, a fim de não pecardes contra
Deus. Em segundo lugar, o imperativo de orientarmos o
desej o para Deus, na vivência da virtude. E finalmente,
norteados pela sabedoria e inspirados pela ciência divina, o
imperativo do bom uso da razão em tudo, e particular­
mente quando se trata do exercício quer do ardor-insur­
reição, quer do desejo: há, com efeito, que controlá-los a
ambos, corrigi-los, repreendê-los, admoestá-los, tal como
procede um rei com os seus súbditos. É necessário que as
coisas se processem de acordo com o que acabamos de
dizer, a fim de que a razão exerça o importante papel que
lhe compete: governar segundo Deus, mesmo quando as
paixões se revoltam contra ela. Empenhemo-nos, por­
tanto, no sentido de a razão ser uma razão livre no exercí­
cio da função que é a dela. Lá diz o irmão do Senhor: «Se
alguém não claudica na razão, é um homem perfeito, capaz
de refrear todo o corpo» (Tg 3,2) . Por conseguinte, de tudo
o que acaba de ser dito, torna-se óbvio isto: a necessidade

de termos presente o essencial papel desempenhado por


250 PEQUENA FILOCALIA

cada uma dessas três partes da alma se é que queremos


responder positivamente ao desafio que nos é lançado de
sermos praticantes da virtude e da justiça.

127. A mente entenebrece-se e fica estéril nas circuns­


tâncias mais variadas. Eis algumas delas: quando o seu ho­
rizonte não é outro senão o das coisas mundanas; quando
por elas é seduzida; quando se torna cativa do corpo para
falar das coisas sensoriais; quando o monge, na sua intei­
reza de monge, se perde em futilidades. Quando isso acon­
tece, de imediato e por si mesmas, essas coisas destroem o
fervor, anulam a compunção, profanam a intimidade com
Deus, fazem do conhecimento um pseudoconhecimento.
Impõe-se-nos, portanto, manter a mente livre de um qual­
quer cativeiro. Uma tal liberdade é o fundamento da nossa
iluminação. O contrário não é outra coisa senão uma vida
vivida nas trevas.

128. Aquele que, quotidianamente, procura com de­


nodo a paz, isto é o hesicasmo da mente, facilmente me­
nospreza as coisas materiais e mundanas, a fim de não tra­
balhar em vão. Mas se, pelo contrário, ludibria a sua
própria consciência, amargamente cairá na morte que
resulta do esquecimento, da qual o divino David pede para
ser preservado (cf. S I 1 3 ,4) . O Apóstolo, esse, admoesta:
«Aquele que sabe o bem que deve fazer e não o faz, comete
um pecado» (Tg 4, 1 7) .

129. Se damos a necessária atenção à mente e , d e um


modo extremamente zeloso, a deixamos cumprir a sua ati­
vidade, ela não trilhará o caminho da negligência e man­
ter-se-á no estado que é o seu, de uma sadia atividade.
Desse estado a sobriedade vigilante é expoente máximo.
SÃO HESÍQUIO 25 1

130. O burro que faz girar a mó não ultrapassa o círculo


que lhe foi destinado. Mutatis mutandis, impõe-se à mente
agir disciplinadamente de modo que possa progredir no
caminho da virtude que conduz à perfeição. Sem esse agir
disciplinado fica incapaz de ver a virtude e Jesus resplan­
decente de luminosidade, pois os olhos do seu coração
não se lhe abrirão.

131. Um cavalo vigoroso e altivo salta de alegria quando


o cavaleiro está na sela. Mutatis mutandis, a mente rejubila
na luz do S enhor quando, libertada dos pensamentos,
entra na aurora do conhecimento espiritual. E em seguida,
renunciando à afirmação de si mesma, avança de potência
em potência, passando do horizonte da sua própria refle­
xão aos horizontes vastíssimos onde está o inefável dos
indizíveis mistérios. E o Deus dos deuses revela-se-lhe
quando ela, no coração, acolhe, provindos do infinito, os
altos pensamentos divinos - isso tanto quanto o possa su­
portar o coração. E a mente, maravilhada, rejubila amoro­
samente com Deus, esse Deus que ela vê e que a vê, Sal­
vador daqueles que o contemplam desse modo.

132. O hesicasmo é em si, para nós, um estado caracte­


rizado por uma fecundidade única: o hesicasmo do cora­
ção mergulha-nos num universo maravilhoso, propiciador
de um conhecimento que é o dos abismos, tanto o abismo
das alturas como o abismo das profundezas; o hesicasmo
da mente, esse, faz-nos ouvir de Deus coisas inefáveis.

133. O caminhante que se prepara para partir para uma


longa caminhada, penosa e difícil, e que teme perder-se no
regresso, vai colocando ao longo do percurso sinais que o
possam guiar, facilitando assim o regresso. Analogamente, o
252 PEQUENA FILOCALIA

homem que trilha o caminho da sobriedade vigilante, se


teme também ele a mesma coisa, vai assinalando o seu
caminho com palavras que funcionam à maneira de estelas.

1 34. Quando o viajante de terras longínquas regressa ao


lugar de onde partiu, celebra alegremente esse regresso.
Passa-se o contrário com o homem que existencialmente
se empenha na vivência da sobriedade vigilante: para ele
voltar para trás é a morte da alma dotada de razão, bem
como o triste sinal de que renunciou a ser artífice das pa­
lavras, das ações e dos pensamentos que agradam a Deus.
E quando chegar o dia em que a sua alma adormecerá no
sono da morte, continuarão nele, como aguilhões, os pen­
samentos que o tinham conduzido a uma degradante
errância. E despertará do grande entorpecimento e des­
leixo gerados pela sua negligência.

1 35. Quando as aflições se abatem sobre nós, e o desa­


lento e o desespero nos minam, impõe-se-nos entrar nas
profundezas da reflexão e fazer em nós mesmos o que fez
David: derramar o nosso coração diante de Deus e falar-lhe
livremente das nossas angústias e provações (cf. SI 1 42,3) .
Tenhamos, pois, presente isto : ao entrarmos assim em
comunhão com Deus, estamos em relação com Aquele
que pode, de uma maneira única (e só Ele pode fazer isso)
dirigir as coisas da nossa vida e aliviar (se for caso disso) as
nossas aflições. E desse modo liberta-nos da tristeza que
nos corrói e mata.

1 36.Há uma cólera que é contranatura. Pois bem, uma


tal cólera contra os homens, aliada à tristeza e à acédia, é
uma cólera destruidora: mata, logo à partida, os bons pen­
samentos, tanto os que estão grávidos de conhecimento,
SÃO HESÍQUIO 253

como os que estão grávidos de bondade. É assim uma


cólera duplamente homicida. Mas a comunhão com Deus
implica uma confissão libertadora: Ele, o Senhor, esfuma e
dispersa a tristeza que mata e faz emergir a alegria doadora
de vida.

1 37. A oração de Jesus Quntamente com a vivência da


sobriedade vigilante) apaga naturalmente os pensamentos
perversos que se instalam, mesmo contra a nossa vontade,
nas profundezas do coração, impedindo-o da desej ada
contemplação.

1 38. Quando os pensamentos insensatos (e eles são


tantos e tão variados!) nos assediam, podemos encontrar
alívio e alegria num processo de autocensura, o que impli­
ca examinarmo-nos de um modo honesto e sem compla­
cências. Ou então podemos seguir o caminho de uma ver­
dadeira confissão ao Senhor, o que é também libertador.
Ambos esses caminhos proporcionam-nos - podemos
disso estar seguros - o repouso de que necessitamos.

139. Os Pais veem em Moisés, o legislador, um ícone da


mente. Com efeito, tenhamos presente que: ele vê Deus na
sarça; a sua face deixa transparecer a glória; o D eus dos
deuses faz dele um Deus para o faraó; ele fustiga o Egito;
ele faz sair Israel do cativeiro e dá-lhe a Lei, caminho de
salvação (cf. Ex 3,2; 34,30; 6, 1 ; 7,1 e ss.). Pois bem, retenhamos
isto: todos esses acontecimentos, quando vistos, metafórica
e espiritualmente, são atividades e prorrogativas da mente.

1 4 0 . Aarão, o irmão do legislador, é um ícone do ho­


mem exterior. Assim, ao acusarmos, indignados, o homem
exterior (tal como Moisés acusou Aarão quando este clau-
254 PEQUENA FILOCALIA

dicou) , somos levados a dizer: «Que mal te fez Israel para


que tu te empenhes tanto em afastá-lo do Senhor, o Deus
vivo, o Todo-Poderoso? » (Ex 32,2 1 ) .

1 41 . No acontecimento da ressurreição de Lazáro, o


Senhor dá-nos a ver uma multiplicidade de bens. Um
deles consiste não só na retenção de tudo o que a nossa
alma tem de feminino e de instável Go 1 1 ,33) , como também
na procura da firmeza de carácter capaz da prática (diga­
mo-lo nestes termos) de uma salutar autocrítica que nos
liberte do egoísmo, da vanglória, do orgulho.

142. Tal como não é possível atravessar a imensidão do


mar sem um grande barco, assim também não é possível
expulsar a provocação-tentação própria do pensamento
perverso sem a invocação de Jesus Cristo.

143. Enquanto a refutação, habitualmente, se limita a re­


duzir os pensamentos ao silêncio, a invocação, essa, vai
mais longe: expulsa-os do coração. A provocação-tentação,
com efeito, toma forma na alma sob a aparência de uma
coisa sensorial: o rosto daquele que nos agrediu com pala­
vras, ou a figura de uma bela mulher, ou a imagem do ouro
ou da prata. Por conseguinte, a contemplação-reflexão é
essencial para vencermos a matilha dos pensamentos que
nos montam assédio: é desse modo que pensamentos ran­
corosos, libidinosos, avaros, e muitos outros, são expulsos
ao tentarem encontrar ninho no nosso coração. Com
efeito, quando a nossa mente é posta à prova num com­
bate em que tem de neutralizar as flechas inflamadas do
diabo, alcançar a vitória implica para ela cumprir determi­
nados requisitos como sejam: estar instruída e preparada
para se guardar a si mesma; ser capaz de desmascarar com
SÃO HESÍQUIO 255

olhos límpidos as imagens sedutoras e as ilusões demonía­


cas, como se umas e outras fossem proj etadas num céu
sereno; saber usar o poder da refutação; agir como se tudo
dependesse do cumprimento desses requisitos e orar
como se tudo dependesse da ação de Deus. Efetivamente,
ela assim instruída é capaz não só de resistir ao assédio das
variadas imagens sedutoras como também de não se
deixar subj ugar pela matilha dos pensamentos passionais.
É capaz, pois, de dizer não a um conúbio com tais pensa­
mentos, pois está consciente de que a tais pensamentos se
sucedem as obras más, tal como à claridade do dia se suce­
dem as trevas da noite.

144. Se a nossa mente não está suficientemente treinada


e, por conseguinte, não possui a experiência que decorre
da prática da sobriedade vigilante, facilmente se rende a
um qualquer fantasma sedutor que lhe apareça e a assedie.
Capitula à sedução de um diálogo insinuante, recheado de
perguntas e respostas ditadas por uma profunda insensa­
tez. E eis os nossos pensamentos a unirem-se à imagem
demoníaca, e isso de tal modo que ela cresce cada vez
mais, dilatando-se até às dimensões do indesej ável, bela e
sedutora para uma mente impreparada, presa fácil da se­
dução e do saque. E a pobre mente começa a sofrer então
o que acontece aos cordeiros sem malícia, quando lhes
aparece, em plena planície, um cão : frequentemente se
precipitam em direção desse que acaba de lhes aparecer,
correndo para ele como se se tratasse da sua própria mãe.
Mas nada ganham com esse aproximar-se do cão, do qual
nada mais recebem a não ser a sua sujidade e o seu mau
cheiro. De um modo análogo, os nossos insensatos pensa­
mentos correm solícitos para todos os fantasmas demo­
níacos que se introduzem na mente. E quando o convívio
256 PEQUENA FILOCALIA

começa podemos vê-los, a uns e aos outros, numa estra­


nha união, num deplorável festim, mancomunando-se
com o fito de destruírem a cidade de Troia, à semelhança
do que fizeram Agamémnon e Menelau. Com efeito, cons­
piram entre si, aceitando complacentemente a insinuação
diabólica de que no decorrer da ação, realizada por inter­
médio do corpo, estão a fazer algo belo e desej ável. E aí
temos como ocorrem, na nossa interioridade, as quedas da
alma. De onde se deduz a necessidade incontornável de
trazer para o exterior o que está no interior do coração. É
esse o caminho de uma salutar catarse.

145. Não percamos de vista que a mente é presa fácil da


ingenuidade. E, não sendo por natureza maliciosa, a sedu­
ção não a deixa indiferente. Facilmente corre atrás das
imagens, e dificilmente resiste ao assédio dos fantasmas
pecaminosamente insinuantes. Entregue ao desabrigo de
si mesma, ei-la vulnerável à sedução das paixões. A capaci­
dade de resistir e ficar incólume, só lhe pode ser dada (com
a aj uda do Senhor!) por um pensamento disciplinado e
disciplinador, capaz de domar as paixões.

1 46. Na vida ascética há dois agentes cuj o papel é de


uma importância primordial: a contemplação e o conheci­
mento são, com efeito, por natureza, esses fatores essen­
ciais quando se trata de viver uma vida disciplinada. Gra­
ças ao seu agir, a reflexão eleva-se e capacita-nos para
resistir à atração das coisas mundanas, sensoriais, libidi­
nalmente sedutoras.

1 47. Quando vivemos uma vida animada pela prática


perseverante da concentração, e centrada em Cristo Jesus,
estamos a criar as condições necessárias para que tanto a
SÃO HESÍQUIO 257

contemplação como o conhecimento se tornem reais.


Trata-se, com efeito, de um modo de vida que, marcado
pela humildade, se torna alfobre onde florescem os pensa­
mentos mais dignos e a sageza mais elevada. Lá diz a Es­
critura pela boca de Isaías, o profeta divino: «Aqueles que
esperam o Senhor renovarão as suas forças. Graças ao
Senhor voarão, desdobrarão as suas asas» (Is 40,3 1 ) .

148. Parece ser duro e exigente para a generalidade dos


homens manter na alma o hesicasmo no estado que se
impõe, isto é, livre dos pensamentos. O que está em j ogo
reveste-se, na verdade, de uma exigência a toda a prova,
com o seu aspeto penoso. Com efeito, encerrar e manter o
incorpóreo nos limites de um corpo exige esforço e um
particular empenho. E exige-o não apenas àqueles q ue
ainda não são iniciados nas artes dessa guerra, mas tam­
bém aos que já são experimentados nesse combate interior
e imaterial. Não obstante, tenhamos presente isto : todo
aquele que, mediante a oração perseverante, vive a comu­
nhão com o Senhor no mais profundo do seu coração, não
penará quando aceita o desafio de o seguir. É o profeta
quem o declara: «Mas o cansaço não é comigo ao seguir-te,
e não sinto saudades de uma outra maneira de viver» (cf. Jr
1 7,1 6, Septuaginta). Uma tal comunhão introdu-lo num uni­
verso de vida marcado pela beleza, pelo encanto, pela
doçura de Jesus e, por conseguinte, nenhum desejo sentirá
pelo que está marcado pela caducidade e mortalidade. Um
tal homem tão-pouco ficará cativo das armadilhas insidio­
sas que os demónios, na sua perversidade, montam à sua
volta: cheio de ousadia falar-lhes-á às portas do coração e,
mediante a autoridade de Jesus, pô-los-á em debandada.

149. Se a alma tem Cristo com ela e por ela, também não
será confundida pelos seus inimigos na altura da morte: às
258 PEQUENA FILOCALIA

portas do Céu, tal como agora, ao defrontá-los, falar-lhes­


á com toda a ousadia e segurança. Mas para que isso seja
assim, é necessário que ela, até à hora do seu êxodo, não
se canse de invocar dia e noite o Senhor Jesus Cristo, Filho
de Deus . E pode estar segura de que este, segundo a sua
divina promessa, não a enganará nem defraudará, antes
lhe fará justiça, segundo Ele o disse, quando falou do juiz
iníquo. Na verdade, essa j ustiça, salvífica como é, será por
Ele exercida não só aqui nesta vida, mas também mais
tarde, quando ela tiver deixado o seu corpo.

150. Tu que navegas no mar do inteligível, põe a tua


confiança em Jesus. Com efeito, na vivência dessa comu­
nhão, no mais oculto dela, Ele diz no teu coração: «Não
temas, Jacob meu filho, Israel meu filhinho. Não temas,
Israel, vermezinho. Eu proteger-te-ei» (Is 41 , 1 3) . Podemos,
por conseguinte, dizer: se Deus é por nós, qual o mau que
seria contra nós? (cf. Rm 8,3 1 ) . Na verdade, Ele, o Senhor,
abençoa os puros de coração e dá a sua Lei: Jesus, o único
verdadeiramente puro, entra deliberadamente nos cora­
ções que são puros e faz deles sua habitação. Portanto, em
sintonia com o divino Paulo, não cessemos de exercitar a
nossa mente na piedade (cf. 1 Tm 4,7) . Ora, há que reco­
nhecê-lo: é acertadamente que damos o nome de piedade
à virtude que extirpa até à raiz o que o maligno semeou. A
piedade cumpre assim um papel essencial, que não é outro
senão o papel de ser caminho próprio da palavra, isto é,
via da razão ou via do pensamento. Em dialeto ático essa
via é designada também como caminho. E nisso temos o
pensamento.

Nas palavras de David (cf. SI 37, 1 1 ) , uma grande paz


151 .
descerá sobre aquele que não faz aceção de pessoas; que
SÃO HESÍQUIO 259

com toda a força condena a inj ustiça; que não dá guarida


às imagens suscitadas pelos espíritos malignos; que con­
dena o pecado inerente a tais imagens; que julga com reti­
dão e rigor; que voluntariamente pratica a justiça na terra,
e se insurge contra um comportamento homicida. Efetiva­
mente, se nos reportamos aos padres gnósticos, vamos
encontrar em alguns dos seus escritos os demónios trata­
dos como homens. E porquê? Porque os demónios são
também dotados de inteligência. Designação semelhante
vamos também encontrá-la num passo dos Evangelhos:
quando o Senhor diz ter sido um homem mau quem fez
isso, isto é, a mistura do joio com o bom grão (cf. Mt 1 3,24-30) .
Ao falar assim o Senhor igualmente mostra que aqueles
que maquinam o mal e o praticam são incapazes de refutar
com presteza os maus pensamentos, ficando sob o seu
domínio. Motivo pelo qual eles nos devoram.

1 52. Quando começamos a submeter a nossa vida à fa­


culdade de j ulgar da mente, estamos no caminho do arre­
pendimento. Importa, pois, que o exercício de um tal juízo
se inscreva na vivência da sobriedade vigilante, de que são
elementos integrantes uma atitude de humildade e a prá­
tica da oração. Com efeito, é graças ao modo como somos
iluminados pelo Espírito (isto é, pelo adorável e santo
nome de Jesus Cristo) , e seduzidos pela sua beleza, que
podemos cuidar da casa do nosso coração, limpando-a,
ornando-a, purificando-a. Mas atenção! Quando nos van­
gloriamos na sobriedade vigilante por termos feito dela o
fundamento em que pomos toda a nossa confiança,
caindo assim na tentação de termos em alta conta essa
nossa capacidade, estamos a abrir um triste caminho que
não é outro senão aquele em que somos neutralizados
pelos inimigos. E uma vez derrotados será grande a nossa
260 PEQUENA FILOCALIA

queda, pois inimigos desse calibre não passam de pérfidos


velhacos que levam a sua malignidade até ao fim. E assim
nos embrulharemos cada vez mais na paralisante rede dos
maus pensamentos. E facilmente seremos por eles imola­
dos, pois não disporemos da lança poderosa que é o nome
de Jesus Cristo. Unicamente esse nome, venerável gládio,
ao agir nos nossos corações é capaz de os neutralizar,
envolver, cortar, queimar, reduzir a nada. Assim como o
fogo consome a palha. E essa não é outra senão a vitória
do Senhor em nós.

1 53. A tarefa de uma contínua sobriedade vigilante - de


valor essencial para benefício e proveito da alma - consiste
principalmente em discernir, logo que eles começam a
formar-se na mente, os fantasmas dos pensamentos. Uma
vez discernidos, impõe-se-nos exorcizá-los de modo que
não façam ninho na mente sob a forma de imagens mate­
rializadas. Há, pois, que travar contra eles, ab initio, o com­
bate que nos conduz na senda do seu desmascaramento.
E, tratando-se como se trata de uma difícil peleja, tenha­
mos presente que o que dissolve e extingue de um modo
completo todo e qualquer pensamento, toda e qualquer
palavra, todo e qualquer fantasma, toda e qualquer ima­
gem, todo o mal que os nossos inimigos inoculam em nós,
é a invocação do Senhor Jesus. Com efeito, nós mesmos
vemos na nossa mente a derrota e o castigo que Ele, nosso
grande Deus, inflige aos poderes demoníacos. E nessa sua
derrota está a nossa vitória: efetivamente, a nós, simples,
humildes e inúteis servos, Ele, o Senhor, declara sermos
participantes desse triunfo.

A maior parte de nós ignora que todos os maus


1 54.
pensamentos nada mais são que simples imagens das
SÃO HESÍQUIO 261

coisas materiais e mundanas. Contudo se, na nossa condi­


ção de orantes, vivermos diuturna e intensamente uma
genuína sobriedade vigilante, experienciaremos o quanto
esta é libertadora quando se trata de não ficarmos cativos
dessas múltiplas imagens materiais veiculadas pelo assédio
dos pensamentos perversos. Além disso, uma tal sobrie­
dade vigilante dá-nos a ver também os insidiosos cálculos
dos inimigos, (desmascarando-os) , bem como os grandes
benefícios da oração. Lá diz o divino poeta-salmista: «Com
os teus olhos verás a recompensa dos ímpios» (SI 9 1 ,8) .
Com a tua mente também tu verás isso - e vendo-o
compreendê-lo-ás!

155. Tanto quanto pudermos, lembremo-nos da morte!


É importante que assim seja, pois dessa quotidiana lem­
brança emerge uma tomada de consciência da nossa liber­
dade, nomeadamente no que concerne às opressões do dia
a dia e a todas as vaidades. E, além disso, emerge ainda o
cuidado com a custódia da mente, o empenho na oração, o
desapego das paixões, a repugnância pelo pecado. Na ver­
dade, quase não há virtude que não tenha como origem a
lembrança de que um dia morreremos. Por conseguinte,
tanto q uanto pudermos, sirvamo-nos dessa lembrança
assim como nos servimos da nossa respiração!

1 56.Um coração salutarmente vazio de imagens mentais


gera por si mesmo, e com toda a naturalidade, pensamen­
tos que, plenos de vitalidade, são verdadeiramente divinos,
misteriosos, semelhantes a peixes ou golfinhos a saltar
num mar calmo. Um mar sobre o qual não incide senão
uma brisa ligeira, assim como o abismo do nosso coração
é afagado pela doce brisa do Espírito Santo. E lá diz a Es-
262 PEQUENA FILOCALIA

critura: «Porque sois filhos, Deus enviou aos vossos cora­


ções o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai» (Gl 4,6) .

1 57.Os monges debatem-se não poucas vezes com a


incerteza do significado e da importância da sua vida espi­
ritual. Pois bem: a libertação de uma tal incerteza só lhes
poderá advir depois de terem atingido a sobriedade vigi­
lante da mente. É -lhes, pois, necessário experienciarem­
-na, o que implica começar por vencer a ignorância acerca
da beleza de que ela se reveste, ou então, se já não a igno­
ram, tomarem a decisão de a assumir. Por conseguinte,
quando o monge aprende a custodiar o reduto da mente,
uma tal incerteza deixa de o assaltar. É corretamente que
se chama a esse custodiar a mente uma filosofia da con­
templação ou filosofia prática da mente. E o monge, então,
trilha o caminho daquele que proclama: «Eu sou o cami­
nho, a ressurreição e a vida» (Jo 1 1 ,25; 1 4,6) .

1 58.A incerteza, porém, poderá assaltá-lo d e novo ao


ver-se confrontado com o abismo dos seus maus pensa­
mentos e com o enxame dos filhinhos da Babilónia. Mas de
novo Cristo dissipará uma tal incerteza se o nosso monge
se fixar de um modo seguro no estado da contemplação.
Pois, na verdade, Cristo é a rocha firme contra a qual pode­
mos arremeter os filhinhos da Babilónia, livrando-nos
assim deles. Agindo desse modo, faremos deles o que qui­
sermos, segundo a palavra da Escritura que declara:
«Aquele que guarda o mandamento não conhecerá o mal»,
e ainda: «Sem mim nada podereis fazer» (Ecl 8,5; Jo 1 5,5) .

1 59. Monge verdadeiro é aquele que vive vitoriosamente


a sobriedade vigilante. E aquele que, sem equívoco, é
sóbrio e vigilante é sem dúvida monge no seu coração.
SÃO HESÍQUIO 263

160.A vida humana desenrola-se ciclicamente ao longo


dos anos, dos meses, das semanas, dos dias e das noites,
das horas e dos instantes. É nessa cíclicidade que devemos
inscrever - de acordo com os princípios harmoniosos do
hesicasmo, até ao nosso êxodo - as obras da nossa ascese,
de um modo particular a sobriedade vigilante, a oração, a
doçura do coração.

161 . A hora da morte - o nosso êxodo - virá sobre nós


com a sua inevitabilidade, pelo que não nos será possível a
ela escaparmos. Possa o príncipe deste mundo e das potes­
tades do ar - que também comparecerá - achar pouco nu­
merosas e pouco graves as nossas iniquidades, vendo-se
assim desarmado no seu ofício de acusador. Com efeito, se
assim não for será em vão que choraremos ! Pois lá diz a
Escritura que todo o servo que conhece a vontade do seu
Senhor, mas se furta a cumpri-la, como é seu dever na
qualidade de servo, é réu de um duro castigo (cf. Lc 1 2 ,47) .

1 62 .Está dito, enfaticamente dito : «Ai daqueles cuj o


coração soçobrou: que farão esses tais, quando o Senhor
os visitar? » (Sir 2 , 1 4) . Daí se infere, irmãos, a necessidade de
vivermos com fervor uma vida animada por uma rigorosa
e exigente piedade. O que supõe a força do Espírito do
Senhor em nós.

Não perder de vista que os pensamentos passionais


163.
perseguem de perto os pensamentos simples (cuja simpli­
cidade consiste em não darem sinais de submissão ao
mundo passional) tal como no-lo ensinam uma longa ex­
periência e uma atenta observação. Por conseguinte, te­
nhamos presente isto: os assim chamados pensamentos
264 PEQUENA FILOCALIA

simples, não obstante não estarem ainda cativos das pai­


xões, abrem a porta aos outros, os passionais.

Quando o homem se cinde em dois (isto é, cai


1 64 .
numa espédie de esquizofrenia) as decisões da sua mente
ficam desde logo comprometidas e, uma vez nesse estado,
facilmente pode tornar-se o pior inimigo de si mesmo. Por
conseguinte, não percamos isso de vista, e se é nossa firme
intenção cumprir o grande e primeiro mandamento, isto é,
observar esse mandamento vivendo-o numa conduta
semelhante à conduta de Cristo (a sua bem-aventurada
humildade, Ele que foi Deus na carne) então impõe-se­
-nos ter para connosco os mesmos sentimentos que uma
pessoa pode ter para com outrem que repetida e grave­
mente a injuriou e a tratou de um modo inj usto. É esse o
motivo que leva o Apóstolo a exclamar: «Quem me livrará
deste corpo de morte? » (Rm 7,24) . É que esse «corpo de
morte» não está submetido à Lei de Deus. Não obstante,
com o objetivo de mostrar que está ao nosso alcance sub­
meter o corpo à vontade de Deus, ele também declara: «Se
nós nos examinássemos a nós mesmos, não seríamos j ul­
gados» (1 Cor 1 1 ,3 1 ) . Pois bem: que no meio de tudo isto seja
para nós motivo de uma esperança não defraudada o
sabermos que Ele, o Senhor, com o seu julgamento, quer
que encontremos o caminho da vida!

165. Sabemos todos isto muito bem: o fruto tem o seu


começo na flor. Ora, o começo da custódia da mente re­
side na temperança: temperança nos alimentos, nas bebi­
das, num estilo de vida marcado, profundamente marcado,
pela rejeição de todos os maus pensamentos. E que é isso
senão o hesicasmo do coração? !
SÃO HESÍQUIO 265

166. Tendo em conta o quanto é árduo o caminho que


se nos impõe seguir, facilmente admitimos que podemos
passar por momentos em que o cansaço nos atinge na
nossa caminhada. Pois bem: quando isso acontece, pode­
mos renovar as nossas forças em Cristo Jesus! E, desse
modo, prosseguir animadamente em frente, vivendo com
j úbilo a sobriedade vigilante. E aí, nessa altura, Ele, o
Senhor, revela-se à nossa mente de um modo marcado por
uma extrema luminosidade. Dá-nos assim o tempo e as
forças para avançarmos no caminho da contemplação. E
em seguida aparece-nos como uma lua resplandecente de
luminosidade, a girar no firmamento do coração. E por fim
Jesus aparece-nos como um sol a irradiar j ustiça, isto é,
claramente se revelando na luz plena da visão espiritual.

167. Jesus,com efeito, revela-se-nos assim misticamente.


E quando essa revelação ocorre, a nossa mente é ilumi­
nada. Mas para que isso aconteça impõe-se-nos observar
com toda a diligência o seu mandamento: «Circuncidai a
dureza dos vossos corações! » (Dt 10,16). Já o dissemos: viver
diligentemente a sobriedade vigilante, de um modo assí­
duo, é passarmos pela experiência de que ela é uma verda­
deira pedagoga que faz nascer em nós os pensamentos
mais maravilhosos. E o Senhor, que não faz aceção de pes­
soas, diz-nos: «Escutai-me e compreendei. Àquele que tem
será dado, e terá em superabundância. Mas àquele que não
tem até mesmo aquilo que ele crê ter lhe será tirado» (Lc
8,18). E diz-nos ainda: «Todas as coisas operam j untamente
para o bem daqueles que amam a Deus» ( Rm 8,28). Quanto
mais, pois, não operarão as virtudes em pessoas assim!

Um barco só pode navegar enquanto houver água.


168.
Logo que esta falta, a navegação cessa. Mutatis mutandis,
266 PEQUENA FILOCALIA

enquanto a sobriedade vigilante, a humildade, a oração de


Jesus, forem autenticamente vividas, a mente é custodiada
e salvaguardada. Mas logo que deixem de o ser, a mente
fica exposta ao saque, vítima indefesa dos mais variados
assédios.

169. As pedras corretamente colocadas e argamassadas


constituem os alicerces de uma casa. Pois bem, o santo
nome de Nosso Senhor Jesus Cristo constitui o verdadeiro
alicerce e a autêntica cumeeira da casa espiritual que que­
remos edificar. Edificação que supõe uma atitude de per­
manente vigilância. Com efeito, facilmente naufragará o
piloto insensato que dorme na altura da tempestade,
depois de ter evacuado os marinheiros e alijado remos e
velas. Mas a alma, essa, ainda mais facilmente será engo­
lida pelos demónios se negligencia a sobriedade vigilante e
se não invoca o nome de Jesus Cristo quando eles come­
çam com as suas provocações.

170. O que sabemos, escrevemo-lo. Com toda a fran­


queza e sem rodeios o fazemos. E àqueles que voluntaria­
mente acolham o que dizemos, testemunhamos o que
temos experienciado no caminho que temos percorrido.
Em tudo isso a força que nos move tem sido nutrida pelo
que Ele mesmo diz: «Se alguém não permanece em mim
será lançado fora como o sarmento que se apanha e lança
ao fogo e arde. Mas eu estou naquele que permanece em
mim» ao 15,6). Com efeito, tal como o sol, para brilhar, pre­
cisa de difundir a sua luz, assim também o nosso coração,
para ser purificado da mácula dos pensamentos malignos,
precisa de se entregar à oração do nome de Jesus. Por con­
seguinte, tomando consciência disso, empenhemo-nos
com fervor na oração concentrando-nos nela como se
SÃO HESÍQUIO 267

fosse a nossa própria respiração: porque se os pensamen­


tos são trevas, o nome do Senhor é luz. Os pensamentos
são, com efeito, instrumentos sediciosamente manej ados
pelos demónios. Mas mais forte é o nome do Senhor.

Quando se trata de custodiarmos a mente, é neces­


171 .
sário dela falarmos com rigor. Isto é, devemos designá-la
utilizando os nomes que lhe são próprios e lhe dão todo o
seu sentido: fonte da luz, fonte relampejante, efusão lumi­
nosa, condutora de fogo. Na verdade (importa termos
disto consciência) estamos a falar de algo que, incontesta­
velmente, ultrapassa incontáveis virtudes, tanto as que
dizem respeito ao corpo como as outras. Por conseguinte,
e tendo em conta a luz nimbada de glória que dela jorra, a
uma tão excelsa virtude devemos atribuir os epítetos mais
dignos. De pecadores indignos, de homens cauterizados
pela ignorância (mesmo quando a insensatez e a inj ustiça
os macula) aqueles que a amam podem tornar-se, por
Jesus Cristo, justos, bons, puros, santos, sages. E não so­
mente isso, mas podem ainda contemplar os mistérios e
ser teólogos. Tornando-se contemplativos, nadam nessa
luz esplendorosamente pura e infinita, tocam-na inefavel­
mente, habitam-na e vivem com ela, pois saborearam o
quanto o Senhor é bom (cf. SI 34,8). Em homens desse qui­
late, quais príncipes dos anjos, cumprem-se claramente as
palavras do divino David: «Os j ustos confessarão o teu
nome e os homens íntegros permanecerão diante da tua
face» (SI 140,13). Na verdade, unicamente homens assim
íntegros invocam e confessam Deus de um modo tão pro­
fundamente marcado pela autenticidade. Probos como
são, amam a Deus e desej am quotidianamente viver a
comunhão com Ele. É , efetivamente, esse o universo em
que respiram.
268 PEQUENA FILOCALIA

1 72. Ai do homem interior quando é assediado pelas


forças que, provindas do exterior, o assaltam impiedosa­
mente! Porque o homem interior é alvo dos mais variados
ataq ues, e passa por profundas aflições desencadeadas
pelos sentidos que sofrem a influência do mundo senso­
rial. Mas se está em Cristo será capaz de fustigar tais atri­
bulações, afugentando-as. E passa a conhecer desde já as
coisas decorrentes da contemplação.

173. Segundo reza a doutrina dos Pais, há uma coisa sem


a qual não é possível ao nosso homem interior realizar a
tarefa incontornável que consiste em manter o nosso ho­
mem exterior sob uma rigorosa disciplina. Podemos for­
mulá-la assim: a imperiosa necessidade de o nosso homem
interior guardar permanentemente viva a sobriedade vigi­
lante. Trata-se de algo essencial para combater o pecado
que pode manifestar-se de modos diferentes: quer pela in­
tervenção demoníaca, quer pela nossa própria atuação. A
intervenção é diretamente demoníaca quando os malfaze­
jos demónios instilam na mente os pensamentos perver­
sos cujas imagens dão lugar ao pecado; é através da nossa
própria atuação, quando acariciamos os pensamentos no
nosso interior e lhes damos forma exterior nos atos que
praticamos. A intervenção demoníaca, ao instilar em nós
pensamentos malignos, abre a porta para todo o tipo de
trapaças, de enganos, de mentiras. É que os demónios
(desprovidos de espessura corpórea) atraem sobre eles
próprios e sobre nós também o castigo. Mas se esses ho­
micidas não fossem assim desprovidos de espessura cor­
pórea, nem por isso deixariam de pecar também em atos,
pois é-lhes inacta a prontidão para tudo o que é infame e
ultrajante.
SÃO HESÍQUIO 269

174. Mas a oração de Jesus mata e reduz a cinzas todas


essas suas ignomínias. Porque Jesus, Deus e Filho de Deus,
incessantemente invocado por nós, não permite que eles
proj etem no espelho da nossa contemplação a menor par­
tícula dos seus insidiosos ataques. Tão-pouco lhes é con­
cedido, nas suas investidas grotescamente infames, atingir
o nosso coração com uma qualquer palavra homicida. Por
conseguinte, é-nos necessário ter corações limpos de
imagens! Se assim for, os pensamentos malignos, demo­
níacamente por eles sussurrados, serão erradicados logo à
nascença. Não nos esqueçamos de que é mediante tais
pensamentos que os demónios habitualmente conversam
com a nossa alma, insinuando-lhe secretamente o modo
de fazer o mal.

175. É , pois, pela oração incessante que a vivência da


contemplação se renova, se fortalece, se purifica. É esse,
com efeito, o caminho que nos permite não capitular
quando nuvens sombrias nos envolvem, bem como quan­
do temos de enfrentar as arremetidas tenebrosas dos espí­
ritos malignos. Temos de lhes resistir, pois só a um cora­
ção purificado é dado brilhar com a luz divina comunicada
por Jesus. O caminho oposto a esse é o do desnorte, mar­
cado por uma errância feita de vanglória, de orgulho, de
ostentação, de vacuidade. Estaríamos aí em plena desinte­
gração, com as costas voltadas para Jesus, privados do seu
socorro, longe da humildade por Ele encarnada.

176. Por conseguinte, que não se nos turve o olhar, nem


caiamos num qualquer desfalecimento no que concerne à
oração. A oração e a humildade, indispensáveis à vivência
da sobriedade vigilante, são verdadeiramente em si um
gládio de fogo que nos permite lutar contra as armadilhas
270 PEQUENA FILOCALIA

insidiosas dos demónios. Se, com efeito, vivermos assim,


poderemos j ubilosamente fazer de cada dia e de cada hora
um festival secreto do coração.

177. Há oito pensamentos malignos, fundamentalmente


básicos, nos quais o edifício do pensamento maligno se
funda, e do qual eles nascem. Temos assim uma interde­
pendência curiosa, isto é, surpreendente, entre esses pen­
samentos e o que lhes serve de fundamento. Mutatis mu­
tandis, as. coisas passam-se de um modo semelhante no
universo das fábulas gregas. Tal como de Hera e de Zeus
nascem todos os deuses malditos, assim também os oito
referidos pensamentos nascem do mundo demoníaco e
sobem conjuntamente até às portas do coração. E, se en­
contram a mente sem custódia, entram um a um, cada um
deles após o outro. E tudo se complexifica, pois cada um
desses oito pensamentos, ao penetrar no coração, depois
de ter subido até lá, arrasta consigo uma matilha de pensa­
mentos degradantes. E ao entenebrecer a mente provoca o
corpo, seduzindo-o, incitando-o, levando-o ao cometi­
mento de ações de que a vileza é a marca degradante.

178. Não obstante, podemos não soçobrar. Com efeito,


podemos dizer não ao canto enganador da sedução per­
versa. Resistir está ao nosso alcance. Mas para isso é nosso
dever estar vigilantes, sumamente atentos ao assédio sibi­
lino desencadeado pela cabeça da serpente (cf. Gn 3,15), re­
futando as suas insinuações, fustigando-a com palavras
duras, tão duras como murros: isso pô-la-á fora de com­
bate ! E podemos estar seguros de que se assim agirmos,
esmagando a cabeça da serpente, escaparemos a uma
hoste de pensamentos maus e a uma deplorável prática de
ações perversas. E constataremos isto: a nossa mente ficará
SÃO HESÍQUIO 271

calma. Com efeito, Deus aprova a vigilância, toda a vigilân­


cia, que a protege dos pensamentos, dando-nos não só a
capacidade de sair vitoriosos do combate travado contra
tais adversários, como também o modo de purificarmos o
coração, libertando-o dos pensamentos que maculam o
nosso homem interior. Como diz o Senhor Jesus: « É do
coração que saem os pensamentos maus, as prostituições,
os adultérios. S ão essas coisas que maculam o homem»
(Mt 15,19-20).

179. Desse modo a alma pode, na comunhão com o


Senhor, viver intensamente o que há de profundo nisso: a
beleza, o esplendor, a retidão, tal como viveu no princípio
ao ser criada por D eus. É para aí que aponta o grande
servo de Deus, António: «Começamos a viver uma vida
marcada pela virtude quando a nossa alma é, segundo a
natureza, dotada de inteligência». E diz ele ainda: «A alma
é reta quando é dotada de inteligência segundo a natureza,
tal como foi criada. » E pouco depois acrescenta: «Purifi­
quemos a mente! Creio convictamente que ela, uma vez
totalmente purificada e devolvida ao seu estado natural,
pode tornar-se clarividente, ver com uma clareza a toda a
prova, e mais longe que os demónios, pois ela tem consigo
o Senhor que a ilumina, revelando-se-lhe. » Esse é o modo
como se exprime o glorioso António, tal como o narra o
grande Atanásio (vd. Athanasios, Vida de António, §§ 20 e 34).

180. Todo o pensamento demoníaco suscita na nossa


mente a imagem de uma coisa material, mundana. Ora,
visto o demónio ser uma mente, o modo de ele nos ludi­
briar implica servir-se de coisas que habitualmente perce­
cionamos por intermédio dos sentidos, portanto, coisas
sensona1s.
272 PEQUENA FILOCALIA

Tal como nos é impossível perseguir os pássaros no


1 81 .
seu vôo, pois somos homens, ou voarmos com eles, pois a
nossa natureza no-lo impede, assim também nos é impos­
sível dominar os pensamentos demoníacos, incorpóreos,
sem nos empenharmos numa atitude sobriamente vigi­
lante, o que implica vivermos a comunhão com o Senhor
na oração perseverante. Impõe-se, de facto, que o olhar da
nossa mente esteja totalmente orientado para Deus. A não
ser assim , o nosso horizonte de procura não irá além do
que é terráqueo. Sem grandeza e sem beleza!

Por conseguinte, se estás firmemente decidido a ex­


1 82.
purgar os pensamentos malignos, lança sobre eles o neces­
sário e j usto opróbrio da vergonha, e verás como eles
entrarão em debandada! Viverás assim o bem-aventurado
hesicasmo, saboreando a sobriedade vigilante do coração.
Impõe-se-te, portanto, que a oração de Jesus se cole à tua
respiração!

1 83. Tal como é impossível escrever cartas no ar, pois


têm de ser inscritas em algum tipo de material apropriado,
assim também é impossível viver incessantemente a beleza
inerente à sobriedade vigilante sem que a oração de Jesus
se nos torne tão natural como nos é natural o ato de respi­
rarmos. E se assim for não nos sentiremos defraudados,
pois ninguém poderá privar-nos da vivência dessa beleza.

1 84. A tua consagração ao Senhor supõe que as tuas


obras sej am realizadas de acordo com a sua vontade. Se
assim for encontrarás graça aos seus olhos; caso contrário,
também de ti o profeta dirá: «Tu, Senhor, estás próximo da
sua boca, mas longe do seu coração» (Jr 1 2,2) . Mais nin­
guém a não ser Jesus pode fortalecer o teu coração: e for-
SÃO HESÍQUIO 273

talecê-lo conferindo-lhe a paz, uma paz superior, liberta


das paixões, capaz de unir o que estava desunido. Trata-se,
com efeito, de uma paz grávida de beleza!

1 8 5 . Há duas coisas que entenebrecem igualmente a


alma: no nosso interior o convívio mental com os pensa­
mentos malignos; no nosso exterior a nossa rendição à
vacuidade das conversas alienantes. Trata-se de duas
coisas que devem ser obj eto do nosso combate: comba­
tamo-las com salutares inj unções e duras imprecações.
Tenhamos bem presente isto: não devemos nem podemos
sucumbir à vacuidade daqueles que falam sem nada dizer!
E que tanto as necessárias inj unções como as j ustas im­
precações sej am devidamente fundadas na vontade de
Deus, pois a nossa mente não pode ficar cativa das trevas
da ignorância. Envolver a mente com as trevas da ignorân­
cia significa conduzi-la à sua perda.

186. Aquele que com fervor guarda a pureza do coração


tem como mestre o legislador dessa pureza, Cristo, que,
secretamente, lhe diz qual é a sua vontade. É o que revela
David, ao afirmar: «Que eu oiça o que o Senhor Deus diz,
pois Ele promete paz ao seu povo, àquele que lhe é fiel, a
todos que lhe abrem o seu coração» (SI 85,9). Quanto ao
combate travado pela mente (revelador não só da necessi­
dade de esta se examinar a si mesma, como também da
proteção que Deus, por sua vez, lhe concede) declara o
mesmo David: «As pessoas dirão, "Haverá, sem dúvida,
uma recompensa para o j usto; há, certamente, um Deus
que j ulga sobre a terra"» (SI 58,12). Temos assim, em David,
um santo servo do Senhor empenhado num combate ínte­
gro, combate que ele trava no elevado nome da pureza.
Movendo-se, como se move, nesse universo de pensa-
274 PEQUENA FILOCALIA

mento, não duvida do j ulgamento de Deus: o Deus justo


julgará os demónios malignos, na terra do nosso coração.
E noutro passo, consciente das profundezas que há nele,
não hesita em assumir a declaração do poeta-salmista: «Ü
homem mergulhará nas profundezas do coração, e Deus
será exaltado» (Sl 64,7-8). E chegados aqui compreendere­
mos com os nossos olhos e com o nosso coração que os
ataques dos demónios não passam de flechas lançadas por
crianças.

1 87. Por conseguinte, vivamos sempre com o coração


instruído na sabedoria, segundo o salmista, respirando in­
cessantemente Cristo Jesus, Ele que é o poder de Deus Pai,
e a sabedoria de Deus. E se, na sequência de uma deter­
minada circunstância, cairmos no desleixo e negligenciar­
mos o dever de custodiar a mente, não percamos tempo:
logo na manhã seguinte, sem tardar e prontamente, cinja­
mos, como se nos impõe, os rins e ponhamo-nos de novo
ao trabalho, conscientes de que não temos desculpa se,
conhecedores do bem, não o praticamos.

188. Tal como os alimentos nocivos prej udicam o corpo


de quem os ingere (escapando a esse mal, aquele que os
ingeriu em pequena quantidade, e que além disso, graças a
um determinado remédio, os vomitou logo no início) ,
assim também os pensamentos perversos atacam a mente,
sendo que esta, ao sentir o seu amargor, deve vomitá-los,
rej eitando-os assim higienicamente, graças à oração de
Jesus, dita das profundezas do coração. Na verdade, quan­
do está em jogo o que é essencial, não pode haver compla­
cência com os perversos pensamentos: a sua erradicação
impõe-se-nos para experimentarmos a beleza inerente à
sobriedade vigilante.
SÃO HESÍQUIO 275

1 89.Unidas à respiração que passa pelas nossas narinas


estão : a sobriedade vigilante, a invocação do nome de
Jesus, a incessante meditação da morte, a humildade. Pois
sabemo-lo muito bem: todas elas são-nos essenciais para
a nossa vivência no quotidiano da vida.

1 9 0 . Palavras do Senhor: «Aprendei de mim que sou


doce e humilde de coração, e encontrareis o repouso para
as vossas almas» (Mt 11,29).

1 91 . Palavras do Senhor: «Aquele que se humilha como


esta criança será elevado. Mas aquele que se eleva será hu­
milhado» (Mt 18,4; 23,12). E tenhamos bem em conta as suas
palavras já evocadas acima: «Aprendei de mim.» Não per­
camos de vista que, ao dizê-las, visa essencialmente trans­
mitir-nos o seu ensino da humildade - ora o seu manda­
mento não é uma carga pesada mas sim, pelo contrário, o
doce fragor da vida eterna. Por conseguinte, observá-lo é,
desde já, experienciar a verdadeira vida. É essa a experiên­
cia vivida por todo aquele que vê nele, como mandamento,
o dom da humildade. A partir do já dito emerge clara­
mente esta verdade: todo aquele que não é humilde des­
camba para fora da vida, isto é, vive uma antivida.

192. Se é incontestável (e é-o) que toda a virtude se edi­


fica tendo como fundamento a alma e o corpo, e que a
alma e o corpo são criaturas de Deus, que loucura extre­
mada não seria a nossa se caíssemos na jactância dos ador­
nos estranhos tanto à alma como ao corpo, se nos enchês­
semos de vanglória, se nos apoiássemos no orgulho (que
não passa de um j unco enganador) , se opuséssemos (e isso
seria o mais aterrador, pois tratar-se-ia da nossa iniquidade
levada ao seu paroxismo, reveladora, tristemente revela-
276 PEQUENA FILOCALIA

dora, de uma irresponsabilidade mortífera) , se opusésse­


mos a nossa humana e pobre elevação à elevação outor­
gada por Deus, esse Deus que qualitativamente nos ultra­
passa infinitamente? ! Com efeito, o Senhor habita o
espaço que está nos antípodas do espaço onde o orgulho
miseravelmente se afirma. O que nos acontece, frequente­
mente, é que em vez de imitarmos o Senhor na humildade,
preferimos antes, cativos como estamos da vanglória e do
orgulho, ligarmo-nos amistosamente ao demónio personi­
ficador do orgulho e, como tal, em hostil oposição ao
Senhor. Razão pela qual o Apóstolo nos interpela com as
palavras: «Ü que é que te faz diferente dos outros? Que
coisas tens tu que anteriormente não te tenham sido
dadas? Que tens tu que não o tenhas recebido? » (1 Cor 4,7) .
Assim, pois, em sintonia com o Apóstolo, podemos conti­
nuar a interrogar-nos: será que te criaste a ti mesmo? E se
recebeste de Deus o corpo e a alma, nos quais e mediante
os quais se forma toda a virtude, qual é a razão pela qual
te glorias em ti mesmo como se fosses tu o criador e não
os tivesses recebido? Tem consciência disto: é o Senhor
quem te fez dom dessas coisas!

No que consiste a purificação do coração? Consiste


193.
simplesmente nisto : na recusa categórica da entrada na
alma dos pensamentos perversos. A tua alma não pode ser
submetida ao saque! Esse é o combate essencial a travar,
sendo que, da vitória obtida, nos é dado receber do alto a
humildade e os outros bens.

194. Na verdade, custodiar a mente exige uma disciplina


espiritua l que tem de ser exercida com a aj uda de Deus,
pois só assim poderá proporcionar à razão a sabedoria
necessária para se travarem os combates espirituais. E
SÃO HESÍQUIO 277

quando se trata disso (proteger a mente) está em jogo um


enorme repto que nos é lançado: sermos capazes de orga­
nizar tanto as nossas palavras como as nossa obras, se­
gundo um plano de acordo com a vontade de Deus.

195. Nas Escrituras do Antigo Testamento, os ornamen­


tos exteriores do sumo sacerdote funcionavam como mo­
delo de uma pureza interior: a pureza do coração. Pois bem:
essa é a perspetiva que nos deve nortear, mantendo-nos
extremamente atentos ao nosso coração, esse disco dourado
(cf. Ex 28,22 e 32). O combate aqui a travar consiste não só em
evitar que ele seja enegrecido pelo pecado, como também
em estar atentos e, se for caso disso, branqueá-lo com as
lágrimas, o arrependimento, a oração. Porque a mente é uma
coisa que facilmente se deixa arrastar pelos pensamentos
perversos, e, como tal, difícil de refrear. Com efeito, é vê-la
perseguir, com uma idêntica determinação, tanto as más
como as boas imagens que se formam ao nível da razão.

1 96. É verdadeiramente bem-aventurado aquele cuj a


mente, n o estado d e contemplação, vive uma unidade pro­
funda com a oração de Jesus. Invocar o seu nome, perseve­
rantemente, une-o ao nome de um modo tão íntimo como
íntimo é o ar ao corpo ou a chama à vela. O Sol, ao passar
por cima da Terra, faz com que haj a a luz do dia; assim
também, quando o santo e venerável nome do S enhor
Jesus brilha sem cessar na contemplação da mente, gera
incontáveis pensamentos cheios de luminosidade, em ana­
logia com o Sol.

197. Quando as nuvens se dissipam, a atmosfera surge


límpida. Assim também quando, sob o Sol da j ustiça, Jesus
Cristo, se dissipam os fantasmas das paixões, nascem sem
278 PEQUENA FILOCALIA

cessar, no nosso coração, pensamentos luminosos, seme­


lhantes às estrelas. Com efeito, Ele, o Senhor, ilumina os
nossos corações! E lá diz a Escritura: «Aqueles que puse­
ram a sua confiança no Senhor compreenderão a verdade,
e aqueles que são fiéis no amor habitarão com Ele, porque
a graça e a misericórdia repousam sobre aqueles que são
santos, e o Senhor cuida dos seus eleitos» (Sabedoria de
Salomão, 3,9) .

198.N a sua admoestação, u m dos santos disse que de­


vemos cultivar o rancor aos demónios e constituir-nos ini­
migos do corpo. É que, com efeito, a carne é um amigo en­
ganador: quanto mais cuidadosamente tratada é, mais nos
combate. E além de assim nos admoestar, exorta-nos ainda
no sentido de, na nossa hostilidade ao corpo, lutarmos
contra o ventre.

199. Nos textos que até aqui escrevemos (isto é, as duas


primeiras centúrias) ocupámo-nos de um modo particular
da disciplina exigida a todos aqueles que enveredam pela
prática do santo hesicasmo, prática em que a mente ocupa
um lugar central. São textos que resultam não só da nossa
reflexão como também das divinas palavras dos Pais que,
cheios da sabedoria divina, nos transmitem o seu ensino
sobre a pureza da mente. Chegados aqui no nosso per­
curso reflexivo, é óbvio que particularmente uma coisa nos
moveu: sublinhar a importância da custódia da mente na
nossa vivência do hesicasmo. E pouco mais acrescentare­
mos ao já dito, pois estamos persuadidos de que o essen­
cial foi já sublinhado.

200. Custodiar a mente é, por conseguinte, um deside­


rato que implica uma perseverança permanente. Não se
SÃO HESÍ QUIO 279

perca de vista isto : o terreno que pisamos é o de uma


constância inquebrantável! Segue-me, pois, movido por
um tal desejo, e descobrirás a bem-aventurança própria do
caminho a trilhar. Pela minha parte instruir-te-ei (a ti que
desej as espiritualmente viver uma vida com sentido) no
Senhor acerca da tua tarefa na terra e de como vivem as
potências espirituais. Com efeito, nem os anjos, nem tão­
-pouco as mentes suas rivais na busca da pureza, chegarão
alguma vez a um ponto em que já não sintam mais desejo
de continuar a louvar o Criador. E tal como os anjos (que,
em virtude de serem por natureza imateriais, não têm ne­
cessidade de alimentos materiais e, por conseguinte, não se
preocupam com esse tipo de nutrição) assim também,
mutatis mutandis, aqueles que, por natureza, são materiais,
ao entrarem no céu do hesicasmo da mente, entram numa
vivência imaterial cuja dinâmica já não depende do que se
passa no mundo concreto da matéria.

201 .Tal como as potestades das alturas não se preo­


cupam nem com o dinheiro nem com as outras riquezas
materiais, assim também aqueles que purificam a visão da
alma e atingem o estado da santidade não se preocupam
com as tramoias próprias dos espíritos malignos. E tal
como a riqueza proveniente da proximidade de Deus, ri­
queza eminentemente particular, é vivida intensamente
por essas potestades das alturas, assim também o amor e o
vivo desej o de Deus são experienciados profundamente
por aqueles que se tornaram angélicos e vivem intensa­
mente a sua elevação para o divino. Homens desses sen­
tem-se, amorosa e insaciavelmente, transportados cada vez
mais alto (nesse gosto de Deus e nesse santo desejo que os
põe fora deles mesmos) e não se deterão até terem atingido
os serafins, nem se cansarão até terem atingido a sobrie-
280 PEQUENA FILOCALIA

dade vigilante da mente, acompanhada, inescapavelmente


acompanhada, da exaltação do amor. Em outras palavras:
até se terem tornado anjos em Cristo Jesus, nosso Senhor.

202. Escuta: veneno mais forte que o da áspide ou do


basilisco não há; e não há mal maior que o do egoísmo:
em torno dele voltej am as filhas por ele geradas, como
sejam a arrogância do coração, a jactância, a glutonaria, a
impudicícia, a vanglória, a inveja. E daí emerge aquilo que
é o coroar de todos os vícios: o orgulho - esse miserando
orgulho dotado da triste capacidade de fazer cair dos céus
não somente os homens como também os anj os, envol­
vendo-os a todos no manto das trevas em vez do manto da
luz. E como é capciosa uma tal envolvência!

203. Aqui te deixo, pois, Teodulo, este meu escrito. Com


o profundo desej o de que sigas o inefável caminho que
tem por nome hesicasmo, mesmo se, na prática, as minhas
palavras não estej am à altura de um tal nome. É que, na
realidade, todas essas inefáveis coisas não vêm de nós, mas
sim daquele que no-las deu: o Deus que é louvado trinita­
riamente, no Pai, e no Filho, e no Espírito Santo. O Deus
trinitário é, efetivamente, louvado e glorificado por toda a
criatura espiritual, pelos anjos, pelos homens, pela criação
inteira, Ele, Trindade inefável, Deus único. Deixemo-nos,
pois, impregnar pelo esplendor do seu Reino, mediante as
orações da puríssima Mãe de Deus e dos nossos santos
Pais. Ao Deus inatingível sej a prestada a glória eterna.
Ámen.
SÃO MÁXIMO
O Confessor
SÃO MÁXIMO, o Confessor (580-662), nascido na Palestina, filho
de um samaritano e de uma escrava da Pérsia. Foi confiado ao
mosteiro São Caritão, aos 10 anos de idade. O abade do mostei­
ro, Pantaleão, deu-lhe como nome Máximo, orientando-o para o
estudo dos escritos de Orígenes. Teve de fugir de Jerusalém devi­
do à invasão persa e refugiou-se perto de Constantinopla, o que lhe
permitiu ter contactos estreitos com a corte imperial. Na sequên­
cia de outras invasões, encontra refúgio na África. Mais tarde, par­
ticipou no Concílio de Latrão, convocado pelo papa Martinho 1
(649-655), com o objetivo de defender as duas vontades em Cris­
to, contra o édito do imperador Constâncio li. Regressado a Cons­
tantinopla, foi condenado ao exílio temporário na Trácia. Junta­
mente com o seu discípulo Anastásio, foi posteriormente conde­
nado à ablação da língua, da mão direita e condenado ao exílio
definitivo perto do Mar Negro. Aí veio a falecer em 662. O seu
pensamento oferece uma síntese de elementos bizantinos e roma­
nos, formando uma visão cristã pessoal. na qual Cristo se encon­
tra no centro da sua reflexão.
Quatrocentos textos sobre o amor

Preâmbulo

A Elpídeo, presbítero

Na sequência do tratado sobre a vida ascética, envio-te


agora, Pai Elpídeo, estoutro sobre o amor. Compõem-no
quatro centenas - em analogia com o número de Evange­
lhos, que são quatro - de breves capítulos. Talvez não
esteja à altura das tuas expectativas, mas é o melhor que
posso fazer. Além disso, impõe-se-me esclarecer, Pai, que
estes textos não são, estritamente falando, frutos unica­
mente da minha reflexão. Resultam de um modo essencial
da minha leitura dos santos Pais, de onde coligi os passos
relevantes para o tema que aqui me ocupa. Resumi longos
discursos, dando-lhes a forma de curtos parágrafos com­
postos por frases breves, a fim de poderem ser de fácil me­
morização e proveitosa assimilação.
Assim, ao enviar-te estes textos, peço-te que os leias
com b enevolência, extraindo deles o que de proveitoso
porventura possam ter, perdoando-me quando me expri­
mo de modo canhestro, e orando por mim na minha me­
diocridade, tão desprovida ela é de uma autêntica relevân­
cia espiritual.
Peço-te ainda uma outra coisa: não vej as, neste meu
trabalho e pedido, uma qualquer intenção de te importu-
284 PEQUENA FILOCALIA

nar. Cingi-me apenas a fazer o que me tinha sido orde­


nado. Digo isto porque somos muitos hoje os que mutua­
mente nos importunamos com discursos, mas muito
poucos os que nos afadigamos a ensinar com obras.
Impõe-se-nos, isso sim, dar a devida atenção a cada um
dos capítulos, pois nem todos são fáceis para todas as pes­
soas. A maior parte deles - e verdadeiramente não são
poucos - implica um longo exame, mesmo quando apare­
cem vazados numa forma simples. E pode muito bem ser
que alguns deles acabem por se revelar úteis à alma. Isso,
porém, só acontecerá, pela graça de Deus, àquele que, ao
entregar-se à leitura, o fizer levado pelo temor e amor de
Deus, e não por uma frívola e estéril curiosidade. Quanto
àquele que ler este tratado (ou um outro qualquer) movido
unicamente pelo mero desej o de censurar o seu autor
(citando-o truncadamente e com a presunção de ser o
mais sábio de todos) quanto a esse, jamais encontrará em
texto algum alguma coisa que lhe sej a útil e o aj ude no
processo da sua própria edificação.

Primeira centena de capítulos sobre o amor

1. O amor é uma disposição boa da alma que a leva a


colocar o conhecimento de Deus acima do conhecimento
de todas as coisas criadas. Ora, é impossível chegarmos a
possuir um tal amor enquanto nos mantivermos cativos
de uma qualquer das coisas terrenas.

2. O amor nasce da impassibilidade; a impassibilidade


da esperança em Deus; a esperança em Deus da persistên­
cia e da longanimidade; estas duas da temperança em
tudo; a temperança em tudo do temor de Deus; e o temor
de Deus da fé em Deus.
SÃO MÁXIMO 285

3.Aquele que crê no Senhor teme o castigo; aquele que


teme o castigo coíbe-se das paixões; aquele que se coíbe
das paixões suporta os infortúnios; aquele que suporta os
infortúnios vive a esperança em Deus. Ora, essa esperança
liberta a mente das atrações terrenas, e isso de tal modo
que aquele cuja mente é assim libertada conhece o amor
de Deus.

4. Aquele que verdadeiramente ama a Deus, ama-o de


tal modo que coloca o conhecimento que dele tem acima
de todas as coisas criadas. E, permanentemente, persegue­
-o de um modo incansável, sem tergiversar.

5. Tendo em conta que todas as coisas foram criadas


por D eus e para Deus, e que Ele está acima do nosso
mundo de criaturas, então aquele que o abandona, e fica
cativo das coisas cá de baixo, mostra com um tal procedi­
mento preferir as coisas criadas ao Criador.

6. Aquele que tem a mente liberta das coisas cá de baixo


e concentrada no amor de Deus desvaloriza as coisas visí­
veis. Chega até ao ponto de considerar o seu próprio corpo
como estranho.

7.Tendo em conta que a alma está acima do corpo, e


que o Deus que a criou é infinitamente mais alto que o
mundo, então aquele que prefere o corpo à alma e o
mundo criado ao Criador, em nada difere dos idólatras.

8. Aquele que voluntariamente cria uma distância entre


a mente e o amor, levando a mente a concentrar-se não em
Deus mas no mundo sensorial, é alguém que, ao fazer a
escolha que faz, se desvela a si mesmo como um homem
286 PEQUENA FILOCALIA

cativo das coisas materiais e terrenas. Com efeito, no seu


desnorte, mostra privilegiar o corpo, preferindo-o à alma.
Mas não só: ao privilegiar o corpo como privilegia, está a
afastar-se do Deus que tudo criou. E a caminhar para o
lugar do inóspito.

9. Se a vida da mente para ser autêntica vida implica a


iluminação do conhecimento, e se uma tal iluminação
nasce do amor de Deus, então digamo-lo convictamente:
o amor de Deus supera todas as coisas, mesmo quando
age nelas e com elas.

1 0. Quando, possuída pelo desej o ardente do amor, a


mente emigra para Deus, experiencia uma nova relação
com o mundo sensorial: liberta-se com júbilo desse mun­
do. E, iluminada pela luz infinita de Deus, torna-se impas­
sível ao mundo por Ele criado. Acontece- lhe, analoga­
mente, o que acontece aos nossos olhos quando o sol se
levanta: deixa de se ver as estrelas.

11.Sendo certo que todas as virtudes são uma preciosa


adjuvante para a mente, levando-a a experienciar e a apro­
fundar um ardente desej o de Deus, a oração pura, essa, vai
mais longe: é ela, com efeito, que sem ambiguidades liberta
a mente da ligação às coisas criadas, elevando-a como se
fosse alada às alturas de Deus.

1 2.Quando a mente vive o arrebatamento do amor pro­


porcionado pelo conhecimento de Deus, e experimenta e
sente a infinitude divina, à semelhança do divino Isaías, é
atingida pelo temor e levada a fazer suas as palavras do
profeta: «Ai de mim, estou perdido, porque sou um ho­
mem de lábios impuros, que habita no meio de um povo
SÃO MÁXIMO 287

de impuros lábios, e com os meus olhos vi o Rei, o Senhor


do universo» (Is 6,5) .

13. Aquele que ama a Deus é inescapavelmente levado a


amar o próximo como a si mesmo, ainda mesmo quando
lhe é penoso suportar as paixões daqueles que ainda não
passaram pelo processo de uma purificação. Por isso, ele
mesmo, ao testemunhar nos outros a ocorrência dessa
purificação, alegra-se com uma transbordante e indizível
alegria.

14.Uma alma inundada de pensamentos sensuais, ca­


tiva da impudicícia e do ódio, é, incontestavelmente, uma
alma impura porque doente.

15. Aquele que sente no seu coração um grama de ódio


contra não importa quem, por uma ofensa não importa
qual, é um homem estranho ao amor de Deus. Porque, de
um modo marcado por uma indizível beleza, o amor de
Deus está nos antípodas do ódio.

16. «Aquele que me ama», diz o Senhor, «observará os


meus mandamentos. [ . . . ] Ora, o meu mandamento é este:
que vos ameis uns aos outros» (Jo 1 4, 1 5.23; 1 5 , 1 2) . Por conse­
guinte, aquele que não ama o próximo transgride o man­
damento. E, feito transgressor do mandamento, manifesta
no seu modo de viver uma incapacidade de amar o Senhor.

17. Bem-aventurado o homem capaz de amar, de modo


igual, cada homem.

18.Bem-aventurado o homem que não fica cativo do


que é finito, transitório, corruptível.
288 PEQUENA FILOCALIA

19.Bem-aventurada a mente que, dotada de uma parti­


cular perceção, é capaz de transcender o mundo sensorial
e experimentar e sentir o que há de inefável na beleza de
Deus.

20 . Aquele que dá ouvidos à carne, e envereda por um


caminho marcado pela impudicícia, caindo na sedução das
coisas transitórias, é no fundo um homem que não hesita
em querer mal ao próximo, cativo que está de um modo de
vida em que a adoração da criatura prevalece à adoração
do Criador.

21 . Aquele que, disciplinadamente, mantém o corpo


liberto dos prazeres sensuais e da malícia, faz dele um
companheiro ao serviço das coisas superiores.

22. Aquele que não se rende ao assédio das atrações


mundanas coloca-se a si mesmo acima de todas as misé­
rias do mundo.

23.Aquele que ama verdadeiramente a Deus, ama tam­


bém o próximo com um amor genuíno. Ora um homem
desses não confisca aquilo que tem; pelo contrário, imi­
tando Deus, partilha-o com o outro segundo a necessi­
dade desse outro.

24. Aquele que é esmoler, e procura imitar Deus, não


discrimina o próximo. Para ele, tanto o mau como o bom,
tanto o j usto como o inj usto, quando carentes, são tidos
como iguais. Trata-se de uma igualdade resultante da si­
tuação de carência de cada um: todos eles vivem uma
situação caracterizada por necessidades corporais. A todos
dá equitativamente, segundo as necessidades particulares
SÃO MÁXIMO 289

de cada um, ainda que, levado pela sua natureza e pela


probidade da sua intenção, possa por vezes preferir a vir­
tude à depravação.

25. Sabemo-lo muito bem e confessamo-lo com j úbilo:


Deus é, por natureza, bom, e à diversidade dos seres por
Ele criados ama sem discriminação alguma! A todos abra­
ça no seu amor, tanto ao enaltecer o homem virtuoso (que
vive com Ele a comunhão do conhecimento) como ao
manifestar misericórdia com o homem depravado (de
quem faz uma nova criatura) . Ora, analogamente, o ho­
mem bom e não cativo das paixões ama a todos igualmen­
te, sem fazer aceção de pessoas. Ama o homem virtuoso
por ser homem e pela probidade dos seus gestos; e ama
também o homem depravado por ser homem e pela sua
condição de carente: experimenta por ele compaixão, a
compaixão que se sente por um louco prisioneiro de uma
errância que o atira para o mais profundo desnorte.

26. O modo como amamos supõe uma partilha. D e


facto, é o campo d a partilha o privilegiado para a manifes­
tação do nosso amor. Partilha que tanto pode ser a dos
bens materiais que temos como (e sobretudo) a do patri­
mónio de conhecimento que possuímos: por exemplo, a
comunicação da palavra.

27. Aq uele que inequivocamente renuncia às coisas


mundanas e, por amor, serve o próximo sem sombra de
hipocrisia, manifesta com esse seu gesto ser um homem
livre. As paixões não o dominam e pela sua humana entre­
ga ao serviço dos outros tem a sua parte no amor e no
conhecimento de Deus.
290 PEQUENA FILOCALIA

28.Aquele que, na comunhão com Deus, se sente habi­


tado pelo amor divino, nenhuma dificuldade experimenta
em seguir o Senhor seu Deus, tal como o declara à sua
maneira o divino Jeremias: «Com efeito, não me tenho fur­
tado a ser um humano pastor, dedicado ao teu serviço; tão
pouco tenho trabalhado para que ocorra o dia fatal: tu,
Senhor, conheces as palavras que os meus lábios têm sus­
surrado, diante da tua face tenho vivido» ar 1 7, 1 6) . Um ho­
mem desses, encorajado com a força do alto, é capaz de
suportar com nobreza todo o sofrimento, todo o vitupério,
toda a violência, sem, no meio de tudo isso, desejar mal a
ninguém.

29.Quando fores ultrajado por alguém, ou vilipendiado


em alguma coisa, sê superior a ti mesmo e livra-te dos
pensamentos de cólera. Se não agires nesse sentido pode
muito bem acontecer-te que, em lamentável rutura com o
amor, esses teus pensamentos te conduzam ao país do
ódio.

30. Quando sofreres o ultraje, ou sobre ti desabar a de­


sonra, vê em tudo isso coisas positivas, pois no confronto
com a provação podes haurir a força que te aj udará a
expulsar do teu interior o desejo da vanglória.

31 . Tal como a lembrança do fogo não aquece o corpo,


assim também a fé sem o amor não opera na alma a neces­
sária centelha do conhecimento. Só quem ama pode ver­
dadeiramente conhecer.

32. Tal como a luz do sol atrai a si os olhos sãos, assim


também a centelha do conhecimento de Deus tem a vir­
tualidade de seduzir, mediante o amor, a mente pura.
SÃO MÁXIMO 291

3 3 . A mente é pura quando põe fim à ignorância ao ser


iluminada pela luz de Deus.

34. A alma é pura quando se liberta das paixões, e é por


isso levada a sentir e a experienciar, em incessante júbilo, o
amor de Deus.

35. Há paixões da alma que são passíveis de censura. São­


-no quando não passam de pulsões contrárias à natureza.

36.A impassibilidade é um estado tranquilo da alma


que a leva a sentir e a experimentar uma grande dificul­
dade em praticar o mal.

37. Aquele que, penosamente, colhe os frutos do amor,


jamais os abandona ainda mesmo quando é fustigado por
mil calamidades. Podes disso encontrar confirmação, tanto
nessa verdadeira testemunha que foi Estêvão - («E então
aj oelhou-se e gritou com grande voz " S enhor, não lhes
imputes este pecado ! " » [At 7,60]) -, como em outros da
mesma nobre estirpe. E também no próprio Cristo, que
ora pelos seus carrascos e pede a Deus que lhes perdõe,
pois «não sabem o que fazem» (Lc 23,34) .

38. Há dois indícios de que alguém ama: ser paciente e


fazer o bem. Em sentido contrário, aquele que se irrita e
faz o mal dá sinais de ter renunciado ao amor. Ora aquele
que renuncia ao amor aliena-se de Deus, pois D eus é
amor.

39. Não digais: «somos templo do Senhor» - adverte o


divino Jeremias (cf. Jr 7,4) . E tu não te ponhas a dizer: para
me salvar basta-me unicamente ter fé em Nosso Senhor
292 PEQUENA FILOCALIA

Jesus Cristo. Tem presente isto : a salvação só é possível


quando à fé tu acrescentas as obras praticadas na comu­
nhão com Ele vivida no amor. Se para ti é unicamente a fé
que conta e nada mais, então escuta: «Os demónios tam­
bém creem - creem e temem! » (Tg 2, 1 9) .

40. As obras d o amor concretizam-se autenticamente


no modo como vivemos o nosso quotidiano: ao agirmos a
favor do próximo, ao sermos longânimos, ao exercitarmos
a paciência, ao mostrarmos que o nosso uso das coisas se
processa em sintonia com a razão correta.

41 .Aquele que ama a Deus não atormenta ninguém


nem se atormenta a si mesmo por coisas que são transitó­
rias. Para um homem de tão elevado quilate como esse, há
essencialmente uma coisa que se reveste de uma particular
importância: a tristeza como contraponto da alegria que
o bem-aventurado Paulo conheceu e de que falou aos
Coríntios, com o intuito de que eles também a pudessem
conhecer (cf. 2Cor 7,8-1 1 ) .

42. Aquele que ama a Deus vive j á , aqui n a terra, uma


vida que, sendo terrena, é já angélica. E é-o porque se
nutre do jej um, da vigília, do canto, da oração. E tudo isso
vivido na ótica que tem presente o bem de todos.

43. Quando desej amos uma coisa lutamos por ela de


modo a podermos alcançá-la. Ora no meio da pluralidade
das muitas coisas que existem há uma que é a essencial
por ser a melhor e a mais desejável: o divino. Impõe-se­
-nos, portanto, abrir os nossos corações para o podermos
experienciar no quotidiano das nossas vidas.
SÃO MÁXIMO 293

44.Não macules a carne com atos infames, nem deson­


res a alma com pensamentos perversos. Se tiveres em
conta esta advertência, a paz de Deus, portadora do amor,
descerá sobre ti.

45. Impõe-se-te uma disciplina rigorosa da carne! Vive­


-a, pois, mediante o jej um, a vigília, a salmodia, a oração.
E, se assim for, experienciarás a santificação que, sendo in­
separável da castidade e do amor, descerá sobre ti.

46. Aquele que é j ulgado digno do conhecimento di­


vino e que, numa atitude caracterizada pelo amor, alcança
a iluminação de todo o seu ser, jamais será arrastado pelo
espírito da vanglória. Pelo contrário, aquele que ainda não
fez seu o espírito do conhecimento de Deus permanece
cativo de uma vanglória que só o empobrece. Dela se li­
bertará, porém, se se voltar para Deus em tudo o que fizer,
e descobrirá no meio dos seus gestos renovados que a
graça do Senhor não o abandona nem lhe faltará com o
necessário. Trata-se, com efeito, de uma vida nova vivida
em sintonia com a vontade divina.

47. Aquele que ainda não atingiu o conhecimento divi­


no que resulta de uma vida em que o amor não é uma
palavra vã, é um homem que dá mostras de ser medíocre,
pois vangloria-se com aquilo que faz. Pelo contrário,
aquele que se reveste da dignidade resultante de viver um
tal conhecimento, deixa escapar do seu coração as palavras
do patriarca Abraão quando viveu a inefável experiência de
uma epifania não de um deus qualquer, mas sim do Deus
da aliança: «Não passo de cinza e pó» (Gn 1 8,27) .

48. Aquele para quem o temor de Deus é fundamento


da sabedoria, é um homem que tem como companheira
294 PEQUENA FILOCALIA

na vida a humildade. E desse modo, mediante os pensa­


mentos que ela lhe inspira, vive o amor na comunhão com
Deus, e é um j ubiloso praticante da ação de graças. Com
efeito, a humildade faz com que ele faça memória do pas­
sado, e nessa memória tenha presente o quanto a sua vida
tinha sido esterilmente mundana, ponteada de falhanços
os mais diversos e de tentações as mais errantes, desde
muito cedo. Além disso, tem vivo na memória o modo
como o Senhor o libertou de um tal cativeiro e o introdu­
ziu numa nova vida já não submissa às paixões, mas, pelo
contrário, caracterizada por uma existência segundo Deus.
E então, esse salvífico temor de Deus surge-lhe claramente
como inseparável da vivência do amor, o que o leva a uma
profunda atitude de ação de graças dirigida Àquele que é o
benfeitor e guia da nossa vida.

49. Não macules a tua mente com pensamentos que


não fazem outra coisa senão corroer as tuas melhores in­
tenções. São particularmente os pensamentos de cobiça e
de cólera os que mais te minam no teu interior e te fazem
decair das alturas da oração pura às baixezas da acédia.

50. A partir da altura em que dá guarida a pensamentos


perversos e a intenções sórdidas, a mente perde a liberdade
própria da sua íntima comunhão com Deus.

51 . O homem insensato, levado pelas paixões, quando


um acesso de cólera o invade, a primeira coisa que faz, e
levianamente o faz, é afastar-se dos irmãos. Mas logo que a
cobiça o espicaça, muda de opinião e regressa correndo
para eles . Pelo contrário, o homem cujo comportamento é
pautado pela sabedoria faz o oposto: quanto à cólera,
guarda-se de afligir os irmãos; quanto à cobiça, abstém-se
SÃO MÁXIMO 295

de todo o impulso descabido, bem como de toda a con­


versa desarrazoada.

52. Quando as tentações te assediam, não abandones o


mosteiro. Pelo contrário, suporta com nobreza as vagas
dos pensamentos, e de um modo particular os inerentes à
melancolia e à acédia. Resiste-lhes, pois se assim for, de
um modo providencial, ao seres posto à prova, terás forta­
lecida a tua esperança em Deus. Mas se abandonas o mos­
teiro comportas-te como um homem que foge ao teste­
munho, e não passarás de um cobarde e de um volúvel.

53. Se não queres demitir-te de viver o amor segundo


Deus, não permitas que o teu irmão se deite irritado por
tua causa, nem te deites tu irritado contra ele. Reconcilia­
-te com o teu irmão e, de consciência p ura, oferece a
Cristo, na oração fervorosa, uma vida (a tua) pautada pela
nota do amor.

54. Todos os dons que o Espírito do Senhor nos comu­


nica são para ser intensamente vividos por nós, o que
implica manifestarmos em gestos o nosso amor. Quando
disso nos demitimos estamos a fazer com que esses dons
fiquem cativos da inutilidade. Por conseguinte, quão in­
tenso não será o empenhamento que nos é pedido para
não trairmos a necessária fidelidade à exigência do amor!

55. Em virtude de o amor não fazer mal ao próximo,


aquele que invej a o irmão, que se entristece com a sua
fama, que salpica de troça o respeito a ele devido, que ma­
liciosamente lhe arma uma cilada, está alienado do amor e
constitui-se réu do j ulgamento eterno.
296 PEQUENA FILOCALIA

56.Em virtude de o amor ser o cumprimento da Lei,


aquele que tem rancor ao próximo, que intriga contra ele,
que lhe desej a mal, que se alegra com o seu descrédito, é
um transgressor da Lei merecedor do castigo eterno.

57. Sublinhemos, pois, isto: ao caluniarmos e vituperar­


mos um irmão, estamos simultaneamente a lançar o opró­
brio sobre a lei de Cristo, que é a lei do amor. Negamos
desse modo o amor e colocamo-nos sob o veredicto do
castigo eterno.

58. Não dês ouvidos ao que diz a língua do caluniador,


nem sussurres palavras aos ouvidos do que se deleita em
propalar boatos. Não sintas prazer em falar contra o teu
próximo, nem em escutar o que contra ele dizem! Se não
tens em conta esta advertência, alienar-te-ás do amor di­
vino, e tornar-te-ás réu do julgamento eterno.

59. Não permitas que o ultraje, essa infâmia, desfigure


no mosteiro ou fora dele, o teu pai espiritual. Nem dês o
mínimo incentivo a quem quer que seja para lançar sobre
ele o opróbrio da desonra. De contrário, o Senhor irar-se­
-á com as tuas obras e cortar-te-á da terra dos viventes.

60. Que os teus ouvidos se fechem às calúnias emitidas


por aquele que sente prazer em, de um modo infame, lan­
çar o opróbrio sobre outrem. Cometerias um duplo pe­
cado: primeiro, ao acomodares-te à vil prática de denegrir
o próximo; depois, ao mostrares complacência com o calu­
niador sem o impedir de falar a torto e a direito contra esse
próximo.

«E eu», assim fala o S enhor, «digo-vos: Amai os


61 .
vossos inimigos, fazei bem àqueles que vos odeiam, orai
SÃO MÁXIMO 297

por aqueles que vos fazem mal» (Mt 5,44) . Se te interrogas


acerca do porquê de uma tal ordem, fica a saber que ela
tem como intenção não só libertar-te do ódio, da melan­
colia, da cólera, do ressentimento, mas também tornar-te
digno do bem imenso do amor genuíno, esse bem que é
impossível atingir a não ser que amemos de igual modo
todos os homens, fazendo-nos assim imitadores de Deus
que a todos ama sem discriminação, e que a todos quer
salvar, levando-nos ao conhecimento da verdade.

62. «E eu digo-vos: Não oponhais resistência ao mau.


Mas àquele que te bate na face direita, oferece-lhe também
a outra. E àquele que pretende litigar contigo com o fito de
te tirar a túnica, dá-lhe também a capa. E se alguém te
obriga a caminhar uma milha, caminha com ele duas» (Mt
5,39-41 ) . E tudo isso para quê? Para que te mantenhas livre
da cólera e da perturbação, sem melancolia, capaz de ins­
truir o outro mediante a tua recusa do mal; e ainda para
que Ele, o Senhor, como um bom Pai, te conduza a ti e ao
outro sob o j ugo do amor. E tem presente isto: esse jugo é
que nos liberta!

63. Há coisas que nos afetam, tanto as que nos vêm do


passado, como as que sofremos no presente. A partir daí,
transportamo-las connosco à semelhança de imagens
passionais. D ominá-las é uma necessidade que experi­
mentamos mais ou menos intensamente. E é importante
conseguirmos isso, pois só aquele que é capaz de um tal
domínio é capaz também de menosprezar com segurança
as coisas de que elas provêm. Com efeito, lutar contra as
recordações das coisas é muito mais duro do que lutar
contra as próprias coisas. Tal como, em registo diferente,
298 PEQUENA FILOCALIA

se pode dizer que pecar em pensamento é mais fácil do


que pecar em ato.

64. No concernente à diversidade das paixões, há as que


são corpóreas e há as outras, as psíquicas. As primeiras
nascem do corpo, as segundas dos pensamentos que asse­
diam a mente. Ora bem: para erradicar tanto umas como
as outras, procuremos empenhadamente viver tanto o
amor como a temperança. Com efeito, o amor encarrega­
-se de erradicar as psíquicas; a temperança, as corpóreas.

65.Ainda no âmbito das paixões, tenhamos em conta


que há aquelas que pertencem à parte ardente da alma, en­
quanto as outras pertencem à sua parte desej ante. Mas
tanto umas como as outras têm uma origem comum: pro­
cedem todas dos sentidos, que as suscitam de um modo
particular, quando a alma, tanto na sua parte ardente
como na sua parte desejante, se encontra expatriada do
amor e exilada da temperança.

66. É mais difícil combater as paixões aninhadas na


parte ardente da alma do que as paixões da parte desejante.
Tratando-se, pois, de um combate bem difícil o que se
trava para erradicar as primeiras, o Senhor vem em nosso
auxílio ensinando-nos onde podemos encontrar as forças
necessárias para sairmos vitoriosos da refrega: um manda­
mento vos dou, que vos ameis. Por conseguinte, da obser­
vância do mandamento resulta a condição necessária para
a vitória.

67. Do já dito podemos, pois, concluir: há paixões que


se caracterizam por ser próprias apenas da parte ardente
ou apenas da parte desejante da alma. Mas há ainda ague-
SÃO MÁXIMO 299

las que têm que ver com a parte racional: é o caso tanto do
esquecimento como da ignorância. A acédia, essa, agindo
como age sobre todas as potências da alma, suscita si­
multaneamente todas as paixões, motivo pelo qual é ela a
mais grave de todas. Isso mesmo está implícito no dito do
Senhor ao dar um remédio contra ela: «Pela vossa cons­
tância salvareis as vossas almas» (Lc 21 , 1 9) .

68. Nunca ofendas nenhum dos teus irmãos, sobretudo


quando nem sequer a razão está do teu lado. Incapaz de
suportar a tensão assim criada, bem poderia ele ser levado
a abandonar o mosteiro. E com um tal desfecho, eis-te a ti
mesmo entregue à censura da tua consciência que, na
altura da oração, geraria em ti um sentimento de melanco­
lia, e privaria a tua mente da comunhão íntima com Deus.

69. Impõe-se-te não cultivares no teu espírito a descon­


fiança, nem tão-pouco te ligares àqueles que, sendo
amigos da provocação, inoculam em ti a propensão para o
escândalo relativamente a certas coisas. Com efeito, os
provocadores, que de uma maneira ou de outra cultivam a
hipocrisia do falso escândalo, ignoram o caminho da paz
que, por ser autêntico, gera o amor que conduz todo o ho­
mem que dele se enamorou ao conhecimento de Deus.

70. Ainda não atingiu o amor genuíno aquele que se


sente permanentemente afetado pelos humores e pelo
carácter dos outros homens. Na sua inconstância, é facil­
mente levado a amar uns e a detestar outros, ou então,
pelas mesmas razões, tanto ama como detesta o mesmo
homem.

71 . O amor, quando genuíno, não condiciona a natureza


dos outros, não obstante o carácter ser diferente de ho-
300 PEQUENA FILOCALIA

mem para homem: sem perder de vista a pluralidade da


natureza humana, ama do mesmo modo todos os homens.
Ama tanto os virtuosos como os depravados, independen­
temente de eles serem amigos ou inimigos. Faz bem a
todos, suportando-os com paciência, aguentando o que
deles provém, sem ficar condicionado pela sua malícia,
indo mesmo até ao ponto de sofrer por eles, se for caso
disso. Desse modo, e na medida do possível, fará deles
amigos. Se isso não acontece, não muda de atitude, pois a
determinação do bem que o anima fortalece-o na sua ati­
tude. Mostra em qualquer caso os frutos do amor, em rela­
ção a todos os homens, independentemente das suas
idiossincrasias. Como fundamento desse modo de agir
está a lembrança sempre presente de que Jesus Cristo,
Nosso Senhor e Deus, mostrou o amor com que nos ama,
sofrendo pela humanidade inteira sem exclusão de nin­
guém. E a todos igualmente deu a esperança da ressurrei­
ção, não obstante cada um viver de um modo diferente a
sua condição humana, atraindo sobre si quer o castigo
quer a glória.

72. Aquele que é incapaz de menosprezar glória e de­


sonra, riqueza e indigência, prazer e dor, mostra com isso
não ter ainda atingido o amor capaz de tudo. É que, com
efeito, só um amor desses é capaz de menosprezar não
somente tudo isso, mas até mesmo a vida e a morte.

73. Escuta as palavras daqueles a quem foi outorgado o


genuíno amor. Ouve como homens desses fazem suas as
palavras do Apóstolo : «Quem nos separará do amor de
Cristo? A aflição? A angústia? A perseguição? A fome? A
nudez? O perigo? A espada? Segundo está escrito : por
causa de ti estamos expostos à morte o dia inteiro, fomos
SÃO MÁXIMO 301

tratados como ovelhas destinadas ao matadouro. Mas em


tudo isso somos mais que vencedores por Aquele que nos
amou . Porque estou seguro de que nem a morte, nem a
vida, nem os anj os, nem os principados, nem as potesta­
des, nem o presente, nem o futuro, nem a altura, nem a
profundidade, nem qualquer outra criatura poderá sepa­
rar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus Nosso
Senhor» (Rm 8,35-39) .

74. E acerca do amor ao próximo, escuta também as


suas palavras: «Digo a verdade em Cristo, não minto, pois
é a minha consciência que, pelo Espírito Santo, disto me
dá testemunho: tenho no coração uma grande tristeza e
uma dor contínua. Desejaria ser amaldiçoado, separado de
Cristo, pelo bem dos meus irmãos, meus pais segundo a
carne, que são israelitas [ . . . ] » (Rm 9,1 -4) . E escuta igualmen­
te Moisés (Ex 32,32) , bem como os testemunhos de muitos
outros santos.

75. Todo o homem que é incapaz de menosprezar glória


e prazer (bem como o amor do dinheiro que se manifesta
por causa de ambos e a ambos incrementa) revela-se igual­
mente incapaz de erradicar as razões da cólera. Incapaci­
dade que o torna inapto para viver o amor genuíno.

76. A humildade e o ascetismo libertam o homem da


sua situação de cativo do pecado: a humildade faz isso ao
erradicar as paixões da alma; a ascese, as do corpo. É disso
que nos fala o bem-aventurado David quando, na sua con­
dição de orante, implora: «Vê a minha miséria e o meu so­
frimento, e tira de mim todos os meus pecados» (Sl 25 , 1 8) .

77.Mediante a observância d o s mandamentos, o Se­


nhor concede o dom da impassibilidade. Com efeito, todo
302 PEQUENA FILOCALIA

o homem que os observa entra no universo do hesicasmo.


E j untamente com esse dom, Ele, o Senhor, dá-nos en­
trada no íntimo conhecimento das suas divinas coisas.

78. A entrada nesse conhecimento proporciona-nos


uma nova relação não só com Ele mas também com os
seres criados, visíveis e invisíveis, existentes neste mundo.
E abre-nos para o inefável da Providência divina neles pre­
sente e operante.

79. O exercício da compaixão é em si e por si um meio


excelente para o tratamento da parte ardente da alma. A
prática do jej um é capaz de extinguir o desejo. A oração,
essa, purifica a mente do orante, preparando-a para a con­
templação dos seres. Os mandamentos visam, quando
observados, fortalecer as potências da alma. É por esse
motivo que o Senhor no-los deu.

80. Quando vivemos o espírito da ternura assumida


como vivência quotidiana, estamos a criar as condições
necessárias para acalmar o ardor. É por isso que o Senhor
nos diz: «Aprendei de mim que sou doce e humilde de
coração [ . . . ]» (Mt 1 1 ,29) . Por conseguinte, fortalecidos com
essas pa lavras do Senhor, vivamos a ternura que, entre
outras qualidades, tem a de ser um antídoto do ardor. E
vivamos a humildade, que é poderosa para libertar a mente
do orgulho e da vanglória.

81 . O temor de Deus, princípio da sabedoria, manifesta­


-se de dois modos. O primeiro como uma reação às amea­
ças do julgamento divino que pode produzir medo (ainda
que dele possam eventualmente brotar temperança, espe­
rança, e uma impassibilidade geradora de amor) . O segun-
SÃO MÁXIMO 303

do emana intimamente ligado ao amor, e produz na alma a


piedade que luta contra o menosprezo de Deus. Há nisso
uma forma de liberdade: a que tem como irmão o amor.

82. O amor, quando genuíno, expulsa o primeiro desses


temores, pois a alma que ama deixa de ter medo do cas­
tigo. O segundo, por ser indissociável do amor, persiste. Ao
primeiro aplicam-se as palavras: «Mediante o temor do
Senhor, todo o homem se afasta do mal.», e «Ü temor do
Senhor é o começo da sabedoria» (Pr 1 5 ,27; SI 1 1 1 , 1 0) . E ao
segundo, estas: «Nada falta àqueles que o temem» (SI 34, 1 0) .

83. «Mortificai o s vossos membros n o que toca à prá­


tica das coisas da terra: impudicícia, impureza, paixão, mau
desejo, cupidez [ . . . ]» (CI 3,5) . É profundamente significativo
que aos cuidados com que acalentamos a carne o Apósto­
lo chame «coisas da terra». Chama, com efeito, impudicícia
ao ato do pecado; impureza ao consentimento pecaminoso;
paixão ao pensamento apaixonado; mau desejo à aceitação
do pensamento do desejo; cupidez ao comportamento que
gera a paixão e a faz crescer. Eis aí, pois, a essencial exorta­
ção do divino Apóstolo. Que nos deixemos confrontar
com essas suas palavras, pois elas visam fazer de nós não
cativos da servidão da carne mas homens libertados pelo
poder do Senhor em nós.

84.A memória começa por insinuar um simples pensa­


mento que instila na mente. Esta acolhe-o e acaricia-o, fa­
zendo com que o seu assédio a leve à rendição, sobrevindo
daí a paixão. E se esta não é expulsa acaba por impor à
mente os seus desígnios, levando-a ao consentimento. E
quando este se afirma no terreno passa-se ao ato do pe­
cado. O Apóstolo, com a sua sabedoria, escrevendo aos
304 PEQUENA FILOCALIA

cristãos provenientes do mundo gentílico, ordena-lhes,


pois, que ponham fim, antes de mais nada, às misérias do
pecado; e que em seguida, passo a passo, ataquem a sua
causa, que não é outra senão a cupidez na sua forma pas­
sional. E que pode exprimir-se numa diversidade de
formas, de que uma é a glutonaria, mãe e ama de leite da
impudicícia. Com efeito, a cupidez é, por natureza, per­
versa, e é-o não apenas quando está ligada ao dinheiro,
mas também quando o está à comida. Em sentido oposto,
e num registo diferente, a temperança tem também que
ver com a comida e com o dinheiro.

85.Tal como um pardal preso por uma pata cai e volta a


cair por terra se tenta voar, assim também a mente que
ainda não atingiu o estado de impassibilidade cai e volta a
cair por terra se, cativa das paixões, tem a pretensão de al­
cançar o conhecimento das coisas do Céu.

86.Quando a mente se liberta totalmente das paixões


caminha, sem tergiversar, pela senda que conduz não só à
contemplação dos seres, como também ao conhecimento
da Santa Trindade.

87. Quando se encontra num estado de pureza, a men­


te, ao receber as imagens conceptuais das coisas, é levada a
contemplá-las espiritualmente. Já não acontece o mesmo
quando, por negligência e demissão, cai num estado de
impureza. Nesse caso, enquanto as suas imagens concep­
tuais relativas às coisas são, de um modo geral, livres da
paixão, já as suas imagens relativas aos homens provocam
nela pensamentos vergonhosos e lúbricos.

Quando, no momento da oração, nenhum pensa­


88.
mento mundano perturbador da mente te assalta, atingiste
SÃO MÁXIMO 305

já um elevado estádio na senda da espiritualidade. Na tua


experiência de orante já não estás fora das fronteiras da
impassibilidade.

89. Quando a alma se purifica e começa a sentir-se de


boa saúde, uma importante coisa acontece: as imagens que
nos sobrevêm durante o sono são calmas e livres de paixões.

90. Tal como a beleza percecionada pelos sentidos, por


ser do domínio do visível, atrai o olhar sensorial, assim
também, em analogia invertida, pode dizer-se que o
conhecimento espiritual do mundo invisível só pode ser
proporcionado por uma mente pura. E por mundo invisí­
vel entendo o mundo dos seres incorpóreos.

91. É já muito não sermos afetados pelas coisas, mas é


muito mais permanecermos impassíveis quando somos
assediados pelas suas imagens mentais. Porque a guerra
que, pelos pensamentos, nos fazem os demónios é mais
insidiosa e dura do que aquela que eles nos fazem pelas
cmsas.

92. Aquele que se realizou na prática das virtudes, e se


encheu com as riquezas do conhecimento - tornando-se
assim capaz de ver as coisas claramente como aquilo que
são - age e fala sempre de um modo sensato segundo a
razão reta, sem de nenhum modo dela se desviar. E disto
não há como escaparmos: é pelo uso racional ou irracio­
nal que fazemos das coisas, que nos tornamos ou virtuo­
sos ou depravados.

93.Q uando as imagens conceptuais das coisas que


sobem ao coração são desapaixonadas - e isso quer o
306 PEQUENA FILOCALIA

corpo esteja em vigília, quer durma - podemos daí deduzir


que o mais alto estado de impassibilidade foi atingido.

94. Mediante a observância dos mandamentos, a mente


despoja-se das paixões. E, mediante a contemplação espi­
ritual do que é visível, ela despoj a-se dos pensamentos
apaixonados das coisas. E pelo conhecimento do invisível,
ela despoja-se da contemplação do visível. E ainda: ela des­
poja-se do conhecimento do invisível através do conhe­
cimento da Trindade Santa.

95. Sabemo-lo todos: quando o sol se levanta e ilumina


o mundo dá-se a ver não apenas como revelador de si
mesmo mas também como revelador das coisas por ele
iluminadas. Analogamente, ainda que em outro registo,
quando o Sol da justiça se levanta sobre uma mente pura
está a revelar-se não somente a si mesmo, mas também a
desocultar as razões profundas de tudo que foi e que será
trazido à existência por Ele.

96. Não conhecemos Deus no mistério da sua essência.


Conhecemo-lo, sim, na grandeza da sua criação e na inefá­
vel providência com que bafej a todas as suas criaturas.
Efetivamente, esse é o modo com que o conhecemos e a
partir do qual podemos dele falar: como se fosse num
espelho, vemo-lo no infinito da sua bondade e na sabedo­
ria do seu poder.

97. A pureza da mente implica: pensamentos desapaixo­


nados, contemplação natural do que é visível, contempla­
ção espiritual do que é invisível. E, como coroa final, con­
templação da luz da Trindade Santa.
SÃO MÁXIMO 307

98. Quando a mente se empenha na contemplação na­


tural das coisas visíveis, ela sonda cuidadosamente esse
seu mundo circundante. O que supõe um delicado exercí­
cio mediante o qual ela procura compreender o que con­
templa: quer os princípios naturais das coisas, quer as suas
significações, quer a sua causa original. Trata-se em tudo
isso de responder a um desafio inescapável.

99. Ao entregar-se à contemplação espiritual das coisas


invisíveis, há quatro coisas que a mente visa atingir: os
seus princípios naturais; a causa da sua geração; as conse­
quências daí decorrentes; a incidência nelas da obra pro­
videncial de Deus e do seu j ulgamento. Obviamente, esta­
mos aqui a pisar o terreno do que é essencial e cuj a
importância nunca é demais sublinhar. Que seja, pois, tido
em conta segundo aquilo que é, no seu valor intrínseco.

100. Quando, animada pelo desej o, a mente se eleva


até Deus, alimenta a presunção de descobrir os princípios
da sua essência. Só que a natureza mais secreta de Deus,
no seu mistério, não se presta a uma tal investigação: ela
está, com efeito, para além da capacidade de toda e qual­
quer criatura. Nada mais senão os atributos inerentes à
sua natureza é acessível a uma mente desej ante : a sua
eternidade, infinitude, bondade ilimitada, sabedoria, o
poder com que cria, governa e j ulga os seres. E mesmo
assim, dessas coisas somente a infinitude pode ser inte­
gralmente captada. Estamos, portanto, confrontados com
uma não cognoscibilidade, pois em tudo isso há uma
forma de conhecimento que ultrapassa a mente. Disso fa­
laram proficuamente os teólogos Gregório e Dionísio (Gre­
gório de Nazianzo, P.G. XXXVI , 3 1 7 BC, 628ª; Dionísio o Areopagita,
P.G. III, 1 00 1 ) .
308 PEQUENA FILOCALIA

Segunda centena de capítulos sobre o amor

1. Aquele que verdadeiramente ama a Deus é natural­


mente um orante que de nenhum modo se deixa distrair,
vítima de uma lamentável negligência. E aquele que ora
desse modo ama a Deus com todo o seu ser: com a mente,
com o coração, com todas as suas forças. Nos antípodas de
um homem desses está aquele cuja mente é cativa do fascí­
nio das coisas terrenas: ao orar não pode senão distrair-se.

2. A mente que se fixa numa coisa sensorial, reduzida


assim à inaptidão para tudo o mais, está sem dúvida cativa
de uma paixão: ou da cobiça, ou da tristeza, ou da cólera,
ou do ressentimento. E se não é capaz de menosprezar
uma tal coisa também não é capaz de se libertar de uma tal
paixão.

3. As paixões que mantêm cativa a mente exercem o seu


domínio ao aprisioná-la no âmbito das coisas materiais e
mundanas. S eparam-na assim de Deus e levam-na a
ocupar-se meramente daquilo que é medíocre e imperma­
nente. Mas o amor de Deus, sendo infinitamente mais
forte, liberta-a desses elos aprisionantes e condu-la ao me­
nosprezo de tudo aquilo que, marcado pelo estigma do
que é passageiro, não produz senão vacuidade.

4. Todo o homem que observa os mandamentos conhe­


ce uma libertação: a que é decorrente de uma nova visão
desapaixonada das coisas. A leitura espiritual e a contem­
plação têm como efeito libertar a mente da prisão da maté­
ria e da força da imagem. Quando experienciamos isso, a
nossa prática de orantes torna-se mais profunda e deixa­
mos de cair na distração.
SÃO MÁXIMO 309

5. Para libertar a mente das paixões (desse cativeiro que


se nutre da servidão) e elevá-la de um modo inteiramente
satisfatório, ao ponto de ela poder orar sem se distrair, a via
ativa é insuficiente se não for seguida de diversas e suces­
sivas contemplações espirituais. Com efeito, a via ativa não
liberta a mente a não ser da intemperança e do ódio. As
contemplações espirituais, essas, libertam-na também do
esquecimento e da ignorância. Fica assim aberto o cami­
nho para ela orar como deve.

6. São de dois tipos os estados elevados da oração pura:


um deles é próprio dos ativos, o outro dos contemplativos.
O primeiro nasce do temor de Deus vivido como princípio
da sabedoria, e é nutrido por uma esperança firme nele. O
segundo nasce de um ardente desej o de Deus e procura
alcançar pensamentos puros numa mente pura. O sinal do
primeiro é dado no recolhimento da mente que exclui os
pensamentos mundanos e se assume a si mesma como se
o próprio Deus estivesse j unto dela - e, de facto, está-o.
Trata-se de um estado mental em que ela, a mente, ora
sem se deixar distrair ou perturbar. O sinal do segundo
manifesta-se num arrebatamento da mente que, iluminada
pela luz infinita de Deus, no ardor da oração, perde todo o
sentimento de si mesma e passa a sentir apenas e exclusi­
vamente Aquele que, pelo amor, a ilumina de um modo
tão profundo e inefável. Nessa experiência única ela vive
de um modo indizível o sentir-se bafejada pelo sopro do
Deus magnânimo que lhe comunica as imagens mais
puras e diáfanas.

7. Quando amamos, ligamo-nos totalmente ao obj eto


do nosso amor e fazemos tudo para dele não sermos sepa­
rados, chegando mesmo a menosprezar tudo o que a isso
310 PEQUENA FILOCALIA

se oponha. Em registo análogo podemos dizer que todo


aquele que ama a Deus sente a necessidade de se entregar
à oração pura, rejeitando com denodo todo e qualquer
assédio de uma qualquer paixão que o impeça de orar.

8. Aquele que diz não ao egoísmo e desmonta a com­


placência consigo mesmo (complacência que é mãe de não
poucas paixões) liberta-se facilmente, com a aj uda de
Deus, das outras paixões, como sejam a cólera, a tristeza, o
ressentimento et cetera. Pelo contrário, aquele que se rende
logo ao primeiro assédio da primeira paixão, acaba por ser
dominado pela segunda, mesmo se o não quer. Com
efeito, impõe-se-nos combater com denodo o egoísmo,
essa paixão que de um modo ardiloso nos torna cativos do
corpo.

9.Os homens amam-se uns aos outros - quer de um


modo louvável quer censurável - pelas cinco razões se­
guintes: por amor a Deus (assim como o homem virtuoso
ama todos os homens, e o que ainda não o é ama apenas
os homens virtuosos) ; por natureza (assim como os pais
amam os filhos e, reciprocamente, os filhos amam os pais) ;
por vanglória (assim como aquele que é louvado ama
aquele que o louva) ; por amor do dinheiro (assim como
aquele que ao amar um homem rico o ama por causa do
que este lhe dá) ; por amor do prazer (assim como aquele
que serve o seu ventre e os seus genitais) . A primeira razão
é louvável; a segunda é medíocre; as outras configuram-se
marcadas pela paixão.

1 0 . Se detestas determinados homens; se não amas nem


odeias outros; se só hesitantemente amas alguns; se só a
muito poucos amas de facto - se isso é assim, então culti-
SÃO MÁXIMO 311

vas uma desigualdade reveladora d e que ainda t e encon­


tras longe do perfeito amor, já que este pressupõe amar
igualmente todos os homens.

11. Afastarmo-nos do mal e fazer o bem implica partici­


parmos com denodo num combate contra as paixões, de
tal modo que as dominemos e possamos ser artífices de
uma vida j usta. Sejamos, portanto, sóbrios, vigilantes, per­
sistentes na prática das virtudes, pois se assim for vencere­
mos esse nosso combate. E estaremos assim em sintonia
com o desafio lançado pelo texto da divina Escritura que
nos fala em «cultivar e guardar» (cf. Gn 2 , 1 5 ) .

12.Recorrem às artimanhas mais diversas e sibilinas os


demónios que, por permissão de Deus, nos submetem à
provação. No assédio que nos montam, ou atiçam o desejo
da alma, ou perturbam o seu justo encantamento, ou ente­
nebrecem a razão, ou oprimem o corpo com dores, ou
desapossam-no do que, por natureza, lhe é próprio.

13.A tentação dos demónios que sobre nós, impiedosa­


mente, se abate, ou vem deles diretamente, ou então vem
dos homens que não temem ao S enhor e são por eles
armados para nos atacarem. A tentação (dura provação
que é) provém diretamente deles quando vivemos sós e
longe dos homens (e, nesse caso, trata-se de uma tentação
similar à que o Senhor sofreu no deserto) (cf. Mt 4, 1 - 1 0) ;
provém indiretamente quando vivemos com outros ho­
mens que são por eles utilizados para nos tentarem (e,
nesse caso, trata-se de uma tentação semelhante à que o
Senhor conheceu ao ser posto à prova pelos fariseus) . Mas
nós, com os olhos postos no Senhor que venceu a tenta­
ção e que é o nosso modelo, rechacemo-los energicamen-
312 PEQUENA FILOCALIA

te. E poderemos fazê-lo fortalecidos pelo S enhor, ata­


quem-nos eles de onde nos atacarem.

14. Mal começa a nossa mente a trilhar o caminho do


amor de Deus, e a progredir no seu conhecimento, e eis
que o demónio da blasfémia põe-se de imediato a tentá-la,
insinuando pensamentos os mais inusitados, que nenhum
homem poderia inventar, e que só ele, o diabo, é capaz de
suscitar através das suas artes demoníacas. Ele age assim
movido pela inveja que sente daquele a quem Deus ama,
tentando por todos os meios, com tais pensamentos,
lançá-lo no desespero, impedindo-o assim de se elevar,
pela oração, até às alturas do divino. Mas nisso o maldito
falha o seu objetivo, e acaba, ao contrário dos seus inten­
tos, dando-nos mais força. Efetivamente, depois de todas
as insídias sofridas e de todas as ciladas que tivemos de
desarmadilhar, saímos desse combate mais experimenta­
dos e mais verdadeiros. Posto assim à prova, o nosso amor
saiu purificado. O adversário homicida saiu derrotado.
«Que a sua espada lhe trespasse o coração, e que o seu
arco seja quebrado» (SI 37, 1 5) .

15.Quando s e concentra n o mundo visível (mundo sen­


sorial) a mente discerne de um modo natural as coisas por
intermédio dos sentidos. Ora, nem ela, nem a perceção
natural, nem as coisas, nem os sentidos, são males : são,
sim, obras de Deus. Que é, então, o mal? É, indubitavel­
mente, o conúbio da paixão com o pensamento natural.
Mas isso não é uma fatalidade se a mente estiver vigilante.

16. A paixão é em si um impulso contranatura da alma


cuja concretude pode ser, por exemplo, um amor insen­
sato. Ou até mesmo, em sentido oposto, uma aversão irre-
SÃO MÁXIMO 313

fletida por alguém ou por uma determinada coisa senso­


rial. No caso do amor insensato, a sua manifestação pode
ser múltipla: pode tratar-se de uma mulher, ou de comida
supérflua, ou de dinheiro, ou de glória efémera, ou de
qualquer outra coisa sensorial. No caso da aversão irrefle­
tida, ela pode manifestar-se em relação a qualquer uma das
coisas evocadas, ou a qualquer outra.

17. Digamo-lo de novo: o vício é o uso errado que faze­


mos das imagens conceptuais das coisas. Um tal uso
traduz-se no abuso das coisas. Quando se trata da nossa
relação com as mulheres, por exemplo, as relações sexuais,
para serem corretas e aceitáveis, devem ter como finalidade
exclusiva a procriação. Por conseguinte, aquele que em tais
relações não vê senão o prazer engana-se, sendo falso o
seu julgamento: considera como um bem o que não o é e,
ao unir-se à mulher, abusa dela. Analogamente, mas num
registo diferente, passa-se o mesmo quando se trata das
outras coisas, ou de outros pensamentos.

18. Quando, privando-a da castidade, os demónios


armam cerco à tua mente com pensamentos de fornicação,
não fiques desarmado e incapaz de resistir. Invoca o Mes­
tre, e clama: «Agora eles derrubaram-me e estou cercado;
o seu olhar homicida ameaça-me; são semelhantes a leões
assassinos» (SI 1 7, 1 1 , 1 2) . E clama ainda mais forte: «Alegria
minha: livra-me daqueles que me montaram cerco» (SI
32,7) . E se assim clamares experimentarás uma paz indizí­
vel. E serás salvo.

19. Poderoso, muito poderoso, é o demónio da fornica­


ção. Ele ataca com dureza aqueles que se empenham em
combater a paixão, sobretudo quando, por negligência,
314 PEQUENA FILOCALIA

deixam de se alimentar frugalmente e se encontram com


mulheres. Mediante a evocação da doçura do prazer enga­
na de modo íntimo a mente, e de seguida, quando esta
repousa, assedia-a espicaçando a memória e inflamando o
corpo com todo o tipo de imagens e de figuras. Uma vez
atingido esse ponto de uma vulnerabilidade extrema é a al­
tura do cometimento do pecado. Pois bem: se estás firme­
mente decidido a impedir que tais imagens e figuras se
acoitem em ti, assume o jejum, a mortificação, as vigílias, o
inefável hesicasmo, a oração perseverante. E consegui-lo-ás.

20. Aqueles que não cessam de perseguir a nossa alma,


fazem-no mediante o assédio de pensamentos passionais,
com o fito de lançá-la no pecado, quer esse pecado se situe
ao nível do pensamento quer ao nível da ação. Mas
quando se deparam com uma mente impenetrável a um tal
assédio, ficam confundidos e recuam. E quando a encon­
tram entregue à contemplação espiritual, o caos apodera­
-se deles e desertam.

21 .Cumpre funções de diácono aquele que unge a


mente para travar os combates espirituais, e com essa
unção expulsa dela os pensamentos passionais. Cumpre
funções de presbítero aquele que a ilumina no genuíno
conhecimento dos seres, e com isso destrói o falso conhe­
cimento. E, finalmente, cumpre funções de bispo aquele
que a conduz à perfeição através da santa mirra do conhe­
cimento e da adoração da Trindade Santa.

22. Os demónios perdem a sua força nos insidiosos


ataques que nos movem quando, sob o efeito da observân­
cia dos mandamentos, decrescem em nós as paixões. E são
totalmente derrotados quando, graças à impassibilidade, as
SÃO MÁXIMO 315

paixões acabam, todas elas, por desaparecer. Com efeito, já


não encontram motivo para assediar a alma e combatê-la.
Admitimos como muito provável ser esse o significado e
sentido das palavras: «Eles perderão a sua força e perece­
rão diante da tua face» Or 9,5) .

23. Entre os homens, na vivência das suas diferenças, há


aqueles que refreiam as paixões por medo; outros fazem­
no por vaidade; outros por temperança; outros ainda são
libertados das paixões graças à Providência divina.

24. As palavras do Senhor são compósitas e como tal


integram os quatro géneros seguintes: mandamentos, en­
sinos, ameaças, promessas. Fortalecidos com a força que
delas nos advém, somos capazes de tudo suportar na
ascese que se impõe como caminho de libertação: jejuns,
vigílias, noites no solo, fadigas no serviço do próximo, in­
júrias, ultraj es, torturas, morte e outras tantas provas se­
melhantes. Como está escrito: «Graças às palavras dos teus
lábios segui caminhos rudes» (SI 1 7,4) .

25. A recompensa que nos advém da virtude da tempe­


rança é a impassibilidade. E a recompensa da fé é o conhe­
cimento. E não nos esqueçamos de que a impassibilidade
gera o discernimento. E de que o conhecimento gera o
amor com que amamos a Deus.

26. A mente que, de um modo sensato, trilha a senda


das virtudes está no caminho da prudência, enquanto a
que se concentra na contemplação está no caminho do
conhecimento. No primeiro caso, o homem empenhado
nessa via é dotado da capacidade de discernir tanto a vir­
tude como o vício. No segundo caso, aquele que busca a
316 PEQUENA FILOCALIA

contemplação é conduzido ao inefável de um estado em


que se vê capaz de discernir tanto o incorpóreo como o
corpóreo. E por fim, na etapa seguinte, à mente é conce­
dida a graça da teologia. Pois bem: no que consiste uma tal
graça? Consiste em ela ser transportada nas asas do amor
para além de tudo o que acaba de ser dito, e atingir o indi­
zível da contemplação. E aí ela discerne, ó maravilha,
graças ao Espírito, os atributos de Deus. Tanto quanto isso
é possível à mente humana.

27. Se queres chegar à teologia - isto é, a essa palavra


sobre D eus que procura um melhor conhecimento do
divino - não procures descrever a natureza de Deus, indi­
zível profundidade das profundidades. É que a tua mente é
incapaz disso, sendo verdade que nenhuma criatura hu­
mana há que de tal seja capaz. Procura, sim, refletir, tanto
quanto possas, os atributos que lhe são próprios: eterni­
dade, infinitude, ilimitabilidade, bondade, sabedoria, poder,
governo, j ulgamento. Não nos iludamos, pois, com o que
está em jogo no trabalho de um teólogo: ser-se teólogo é
estar-se consciente dos limites do pensamento, que deve
concentrar-se particularmente no âmbito da procura do
que há de racional nesses atributos.

28. Queres saber o que é um homem dotado de poder?


Um homem desse elevado quilate é aquele que, longe de
cavar uma insanável dicotomia entre conhecimento e
ação, os integra mutuamente. Com efeito, mediante a ação
ele consuma o desej o e pacifica o ardor. Mediante o
conhecimento dá asas à mente e emigra para Deus. Não
age, pois, nem pensa esquizofrenicamente.

29. Quando o Senhor diz: «Eu e o Pai somos Um» Go


1 0,30) , está a exprimir a identidade da essência. Mas quan-
SÃO MÁXIMO 317

d o diz: «Eu estou n o Pai e o Pai está e m mim» a o 1 4, 1 1 ) ,


está a revelar que as Pessoas são inseparáveis. O s triteístas
- aqueles que estabelecem uma separação entre o Filho e o
Pai - defrontam-se com um dilema por eles criado, não só
contestável mas também perigoso. De facto, ou dizem que
o Filho é eterno com o Pai (separando-os embora um do
outro) e, nesse caso, não são obrigados a afirmar que o
Filho não nasceu do Pai, nem que há três D euses e três
princípios; ou então dizem que o Filho nasceu do Pai (mas
separando-os) e, nesse caso, são obrigados a afirmar que o
Filho não é eterno com o Pai, e que o Senhor dos tempos
está submetido ao tempo. Impõe-se-nos, pois, com o gran­
de Gregório (P.G. xxxv; 1 072 D; XXXVI , 28 A) , não só manter
que Deus é Um, mas também confessar as três Pessoas,
cada uma delas com os s eus atributos. Porque, de acordo
_
com o mesmo Gregório, Deus, não obstante dividido, é in­
divisível, e as três Pessoas são uma, mas permanecem se­
paradas. A divisão e a união são, pois, paradoxais. Essa
dimensão paradoxal - dimensão importante - perder-se-ia
se o Filho e o Pai fossem unidos e separados tal como um
homem o é em relação a outro homem, sem mais.

30. Aquele que vive um amor genuíno - atingindo


assim o cume da impassibilidade - não exclui o outro do
seu amor, não obstante o outro ser diferente; nem estabe­
lece um princípio de exclusão entre o que lhe é próprio e o
que lhe é estranho; nem entre o crente e o descrente; nem
entre o escravo e o homem livre; nem entre o homem e a
mulher. Elevado acima da tirania das paixões, e tomando a
sério a singularidade própria da natureza humana, consi­
dera-os a todos de igual modo e alimenta por todos eles o
mesmo sentimento. Na verdade, para ele j á não há a dico­
tomia separadora grego/j udeu, ou homem/mulher, ou
318 PEQUENA FILOCALIA

escravo/homem livre. Para ele, com efeito, Cristo «é tudo


em todos» (Cl 3,1 1 ; cf. Gl 3,28) .

31 . Das paixões que repousam no fundo da alma, os de­


mónios retiram o elã que lhes permite suscitar em nós
pensamentos passionais. Uma vez conseguido o seu in­
tento, empenham-se, mediante a ativação de tais pensa­
mentos, num combate contra a integridade da mente,
levando-a a consentir no pecado. Uma vez a mente assim
dominada, do consentimento do pecado à sua concretiza­
ção é um nada. Assim, uma vez este consumado, com a
mente cada vez mais cativa, a persistência no ato acentua­
-se. Depois de terem assim devastado a alma mediante a
insídia dos pensamentos, retiram-se com eles. E na mente
fica apenas o ídolo do pecado, do qual o Senhor disse:
«Quando virdes a abominação da desolação instalada no
lugar santo, que aquele que lê compreenda! » (Mt 24, 1 5) . O
lugar santo, templo de Deus, é a mente do homem, onde -
depois de terem devastado a alma mediante os pensamen­
tos passionais - os demónios instalam o ídolo do pecado.
Assediada pelos demónios, e a eles rendida, a mente con­
verte-se numa triste oficina onde são forjados os mais deli­
rantes ídolos. Que isso tenha já ocorrido na História, é
algo que não suscita dúvida alguma entre aqueles que
leram os escritos de Josefo. Alguns há, contudo, que sus­
tentam a ideia de que o acontecimento evocado voltará a
acontecer aquando da vinda do Anticristo.

São três as forças que fazem de nós artesãos do


32.
bem: os instintos naturais; os poderes angélicos; as inten­
ções probas. Os instintos naturais, quando fazemos aos
outros o que gostaríamos que eles nos fizessem, ou quan­
do nos condoemos naturalmente à vista de um homem re-
SÃO MÁXIMO 319

duzido à miséria o u carente d e afeto. O s poderes angélicos


quando, sentindo um grande desejo de praticar uma ação
boa, eles vêm em nosso socorro ajudando-nos a praticá-la.
As intenções probas quando, confrontados com a necessi­
dade de uma escolha difícil entre o bem e o mal, somos
levados a escolher, de um modo j usto, o bem.

33.São três também as forças que, pelo contrário, nos


impelem à prática do mal: as paixões; os demónios; as
intenções perversas. As paixões quando, de um modo in­
sensato e tresloucado, queremos concretizar coisas como
sejam: comer em excesso ou sem necessidade; gozar com
uma mulher que pode ser ou não a nossa; ter relações
sexuais que não visam a procriação; exteriorizar a nossa
cólera contra um homem que nos ultraj ou ou lesou. Os
demónios, quando caímos na negligência, vítimas da pre­
guiça, e criamos assim as condições para eles agirem
contra nós, suscitam em nós virulentas paixões. Final­
mente, as intenções perversas quando, sabendo onde está
o bem, escolhemos o mal.

34. Há duas coisas de fundamental importância que al­


cançamos como recompensa pelo esforço que dispende­
mos para trilhar a senda da virtude: a impassibilidade e o
conhecimento. Ambas vividas na sua plenitude dão-nos
entrada no Reino dos Céus, enquanto, em sentido oposto,
as paixões e a ignorância são os ingredientes de uma vida
que desemboca na condenação. Por conseguinte, aquele
que se põe a seguir o caminho árduo do bem, não pelo
bem em si mas para receber os louvores e a glória dos ho­
mens, que se prepare para ouvir as palavras da Escritura:
«Pedis e não recebeis, porque pedis mal» (Tg 4,3) .
320 PEQUENA FILOCALIA

35. Muitas coisas feitas pelos homens são naturalmente


boas. Mas as mesmas coisas podem também não ser boas
por causa daquilo que as motiva. Por exemplo: jejum, vigí­
lias, oração, salmodia, esmola, hospitalidade - todas essas
coisas são, por natureza, obras boas. Mas deixam de o ser
quando são feitas por vaidade. Pois sabemo-lo muito bem:
onde a vaidade campeia a mediocridade montou o seu
arraial.

36. Todos nós, ao longo da nossa vida, vamos fazendo


uma multiplicidade de coisas. Note-se, pois: em tudo que
fazemos, Deus procura o propósito com que o fazemos,
isto é, se agimos por Ele, inconfundivelmente por Ele, ou
se, subjacente à nossa ação, uma outra causa nos motiva.

37. Quando ouves o salmista falar com Deus e clamar:


«Retribuirás, ó Senhor, a cada um segundo as suas obras»
(SI 62, 1 3) facilmente compreenderás que Deus, na sua mise­
ricórdia, recompensa as boas obras. Não te esqueças,
porém, disto: boas obras não podem ser as que entram em
conflito com um fim que é justo (mesmo quando parecem
boas) , mas sim as que, de um modo evidente, promovem o
fim j usto. Porque o julgamento de Deus não se manifesta
unicamente em relação ao desenrolar da obra, mas tam­
bém em relação à sua finalidade.

38. O demónio do orgulho, malicioso como é, serve-se


de dois caminhos para perseguir os seus intentos. Um dos
caminhos consiste em persuadir o monge, levando-o a
atribuir a si mesmo, monge, e não a Deus, o mérito das
boas obras que realizou. Se falha em tal intento, utiliza um
outro caminho : persuade o monge a desprezar os seus
irmãos monges que são ainda imperfeitos. Ora aquele que
SÃO MÁXIMO 321

se deixa assim arrastar e faz uma tão feia coisa, ignora isto:
em todos os seus expedientes o fito do diabo consiste em
persuadir-nos não só a recusar a obra de Deus, mas tam­
bém a não reconhecermos que a Ele devemos o que faze­
mos. Caindo num tal logro, fica cativo de um autoelogio
como se tivesse sido só por si que atingiu o bem que atin­
giu. Ora atingi-lo só com as suas próprias forças é coisa
impossível, já que o Senhor diz: «Sem mim nada podeis
fazer» Oo 1 5 ,5). Mesmo quando há em nós uma certa apti­
dão para o bem, a verdade é esta: sendo fracos como
somos, estamos marcados por uma incapacidade de atingir
o bem final sem Aquele que é o dispensador dos bens.

39. O homem que está consciente de que a nossa natu­


reza humana transporta consigo vulnerabilidade está
melhor preparado para se abrir à experiência do poder de
Deus. E, mediante esse poder, torna-se um artesão de
obras boas, vivendo uma vida de onde expulsa a arrogância
e o exclusivismo para se abrir ao reconhecimento do pró­
ximo. Efetivamente, um homem desses é animado por
uma viva consciência de que, tal como Deus o socorreu,
ajudou e libertou de muitas paixões e dificuldades, assim
também ele pode, querendo-o, ajudar os outros, e de um
modo particular aqueles que estão empenhados em com­
bater o mesmo combate. Abre-se, pois, assim aos outros,
mesmo sabendo que não os pode libertar nem de todas as
paixões, nem de um momento para o outro. Procura, pois,
sempre agir em consonância com aquilo que Deus fez por
ele e, qual bom médico que ama os homens, cura-os atra­
vés de remédios que se aplicam, segundo o caso de cada
um, àqueles que estão dispostos a cumprir o imperativo
do compromisso.
322 PEQUENA FILOCALIA

40. Quando as paixões perdem a sua virulência, somos


tentados a olhar para nós como uma espécie de super­
-homem. E é fatal: facilmente nos tornamos orgulhosos, e
isso, quer uma tal perda de virulência se deva à erradica­
ção das suas causas, quer se deva a uma retirada estraté­
gica dos demónios. Estratégica porque a intenção funda
deles é regressarem, apanhando-nos então mais vulnerá­
veis. E regressam numerosos, virulentamene numerosos.

41 .Quase todos os pecados são praticados no domínio


do desej o sexual. A licenciosidade é, pois, a sua marca
característica. Uma tal prática pode cessar quando ocorre:
ou um desinteresse que bem pode ser acompanhado de
sofrimento; ou um arrependimento resultante de uma
tomada de consciência; ou um desígnio providencial. E lá
está a Palavra da Escritura com a sua essencial advertên­
cia: «Porque, se nos j ulgássemos a nós mesmos, não sería­
mos julgados. Mas quando somos julgados pelo Senhor,
Ele corrige-nos para não sermos condenados com o mun­
do» (1 Cor 1 1 ,3 1 -32).

42. Quando, inopinadamente, a tentação se abate sobre


ti, não acuses irrefletidamente aquele por intermédio do
qual ela ataca: procura antes compreender a motivação de
um tal ataque, pois dessa compreensão recolherás benefí­
cios. Toma bem disto consciência: visto que te é necessário
defrontar a tentação, é essencial para ti discernir o que está
em j ogo ern cada circunstância, de tal modo que possas
agir reflectidamente no combate contra ela. Se assim não
for soçobrarás, pois atrás de uma tentação outra se perfila
e sentir-te-ás como um joguete atingido pelo absinto do
desaire. Ora tu não podes ficar assim reduzido a uma im­
potência que te destrói. Procura, pois, no Deus j usto Gusto
SÃO MÁXIMO 323

porque o é no j ulgamento com que j ulga) o caminho da


verdadeira libertação.

43. Mau como és, não recuses o sofrimento, pois ao


seres por ele humilhado poderás vomitar o orgulho.

44. As tentações são múltiplas, sendo que, nessa sua


multiplicidade, a variedade que as caracteriza é um desafio
à nossa atenção e vigilância. Entre elas há as que transpor­
tam consigo a sedução do prazer; outras, pelo contrário,
atribulações; outras ainda sofrimentos corporais. Ora o su­
premo médico das almas, sábio conhecedor do que vai
dentro de nós, mediante prescrições administra o remédio
de acordo com a causa oculta da enfermidade.

45. Do assédio que as tentações nos movem pode resul­


tar: a uns o perdão dos pecados cometidos; a outros a erra­
dicação dos pecados que estão a cometer; a outros ainda a
vacina necessária que impede cometê-los no futuro. E
tudo isso ainda não é tudo: com efeito, poderíamos ainda
falar das tentações que se abatem sobre nós para nos
sondar, à semelhança das que se abateram sobre Job.

46. O homem sensato, consciente de que as prescrições


de Deus o curam, suporta alegremente o que elas impli­
cam de sofrimento. É que um tal homem não perde de
vista que essa situação sofredora decorre não da terapêu­
tica divina mas dos seus próprios pecados. Nos antípodas
deste, o homem insensato, grande ignorante da suprema
sabedoria da Providência divina, quando peca e sofre a
correção daí resultante, j ulga ser Deus ou os homens (e
não ele) os responsáveis pelos seus sofrimentos. É a insen-
324 PEQUENA FILOCALIA

satez que anda sempre à procura de um bode expiatório


para se justificar a ela própria.

47. No combate movido às paixões há coisas que, salu­


tarmente, podem bloqueá-las no seu curso, impedindo o
seu crescimento; e outras coisas há que, subvertendo-as,
fazem com que diminuam em número. Por exemplo, to­
memos o caso do desejo: jejum, fadigas, vigílias, são coisas
que o impedem de crescer. Para dominá-lo e até mesmo
suprimi-lo: retiros, contemplação, oração, desej o ardente
de D eus. Se em relação ao desej o são essas coisas que
devem ser tidas em conta, quando se trata da ira e de im­
pedir o seu crescimento impõem-se coisas como: perseve­
rança, não ressentimento, doçura. Mas o amor, a compai­
xão, a bondade, a benevolência, são todas coisas que a
neutralizam.

48. Quando a mente de um homem está concentrada


em Deus, e vive essa comunhão de um modo diuturno, até
mesmo o sentimento a que chamamos cobiça pode ser um
incentivo para uma comunhão mais intensa; e, nessas cir­
cunstâncias, também o ardor pode metamorfosear-se em
amor divino. E em virtude de ter experienciado de um
modo intenso a iluminação divina, um homem desses
torna-se integralmente luminoso. E nessa reintegração de
si mesmo, passa-se esta coisa surpreendente: até mesmo a
parte do seu ser vulnerável às paixões é reorientada para o
desejo de Deus (um desejo ardente e insaciável, como já se
disse) e para o genuíno amor. E desse modo passa total­
mente do que é terreno ao que é celeste e divino.

49. O homem que, ao ser vituperado não vitupera nem


se irrita contra o seu ofensor, nem nutre ressentimento,
SÃO MÁXIMO 325

mostra uma apreciável dignidade. Indubitavelmente, o seu


comportamento é exemplar, mas não ama ainda quem o
ofendeu. Mas mesmo sem ainda o amar mostra j á , no
modo como se comportou, observar o mandamento que
nos interpela no sentido de não pagarmos o mal com o
mal. Naturalmente, não pode ainda pagar o mal com o
bem, nem reagir ao ódio dos inimigos com o amor, com­
portamento esse que só é dado ao amor espiritualmente
perfeito.

50. Aquele que não ama o próximo, pode muito bem


não se sentir constrangido a odiá-lo. Tal como aquele que
não sente ódio contra outrem, não fica, só por isso, cons­
trangido a amá-lo. Pode, porém, viver numa espécie de
meio termo: nem amar, nem odiar. Efetivamente, a dispo­
sição para o amor encontra a sua expressão prática nos
cinco modos enunciados no nono capítulo desta centúria:
desses modos um é louvável, um é medíocre, três são cen­
suráveis.

Quando constatares que a tua mente sente prazer ao


51 .
ocupar-se das coisas materiais e mundanas, experimen­
tando um especial agrado ao pensar nelas permanente­
mente, fica a saber isto: estás a amar mais essas coisas do
que Deus. Porque lá, onde estiver o teu tesouro, segundo
as palavras do Senhor, lá também estará o teu coração
(cf. Mt 6,2 1 ) .

52. A mente que, concentrada e m Deus, experiencia a


comunhão com Ele, vive no q uotidiano o espírito da
oração e do amor, tornando-se assim sábia, boa, forte,
compassiva, misericordiosa, paciente, isto é, tem a habitá­
-la aquilo que é próprio de Deus. Mas se ela se afasta de
326 PEQUENA FILOCALIA

Deus, então das duas uma: ou converte-se num animal


que só ama o prazer, ou numa fera que, obcecada pelas
coisas materiais e terrenas, ataca os homens.

53. A Escritura chama mundo às coisas materiais. E diz


serem mundanos aqueles cuj a mente está cativa desse
mundo e, como tal, são incapazes de ter um pensamento
mais alto, encerrados como estão no espaço de que os
muros não são outros senão os da mediocridade. Com
efeito, tendo em vista reconduzir os mundanos a si mes­
mos, a Escritura interpela-os com as palavras: «Não ameis
o mundo, nem as coisas que estão no mundo. Se alguém
amar o mundo, nele não está o amor do Pai; com efeito,
tudo o que há no mundo (a concupiscência da carne, e a
concupiscência dos olhos, e a jactância dos bens terrenos)
não procede do Pai, mas sim do mundo» (1Jo 2 , 1 5- 1 6) .

54.É monge, genuinamente monge, aquele que liberta a


mente do cativeiro das coisas materiais e terrenas e que,
mediante a temperança, o amor, a salmodia, a oração, vive
intensa e profundamente a sua comunhão com Deus.

55. O monge ativo é, num sentido espiritual, um criador


de animais. É que, de um modo extremamente significa­
tivo, das obras morais se pode dizer terem como figura os
animais. É essa figuação que levou Jacob a declarar: «Os
teus servos dedicam-se a pastorear rebanhos» (Gn 46,34) . O
monge gnóstico, esse, é um pastor de ovelhas. Os pensa­
mentos têm, de facto, como figura as ovelhas. A mente
leva-as a pastar nas montanhas, esses lugares altos da con­
templação. Pastoreio esse que, prenhe de dignidade, sus­
cita a indignidade de uma reação própria do desvario das
SÃO MÁXIMO 327

potências adversas: «Üs pastores são urna abominação aos


olhos dos egípcios» (Gn 46,34) .

56. Quando o corpo, condicionado pelos sentidos, é


levado por estes a sentir cobiça e a desejar o prazer, coisas
que lhe são próprias, a mente sofre com isso um desvio e é
levada a correr atrás das imaginações e dos impulsos do
corpo, acabando por se lhes render. Contudo, urna mente
disciplinada e virtuosa não abandona a temperança que
lhe é própria e é capaz de resistir tanto aos ataques da se­
dução gerada pelos fantasmas da imaginação corno aos
impulsos passionais. E mais do que isso: ela congemina o
modo de reduzir tais impulsos a urna salutar impotência.

57. Entre as virtudes - e elas dão-se a ver, plurais corno


são, na multiplicidade dos nossos gestos e na diversidade
das nossas ações - há aquelas que são próprias do corpo e
aquelas que o são da alma. D as primeiras fazem parte :
jejum, vigílias, dormir n o solo, servir o próximo, trabalhar
manualmente (de molde a não sermos um fardo para os
outros e podermos partilhar) . Das segundas fazem parte:
amor, perseverança, doçura, temperança, oração. Note-se,
contudo, isto: se em virtude de alguma necessidade ou de
algum estado do corpo (por exemplo, a doença ou urna
qualquer outra situação vulnerável) não podemos concre­
tizar as virtudes corporais, o Senhor, conhecedor do mais
íntimo do nosso ser, não nos imputará responsabilidades
e perdoar-nos-á. Pelo contrário, quando se trata das virtu­
des da alma, nenhuma j ustificação teremos para alguma
coisa em que claudicarmos, pois elas não estão cativas do
reino da necessidade.

O amor que votamos a Deus torna-nos fortes para


58.
menosprezar o prazer efémero, o sofrimento, a tristeza.
328 PEQUENA FILOCALIA

Que disso mesmo te persuadam todos aqueles que vi­


veram intensamente uma vida de santidade e são eles
mesmos santos. Eles que, por amor de Cristo, souberam
aprender na escola do sofrimento o alcance profundo da
resiliência.

59. Guarda-te da mãe dos vícios, dessa complacência


contigo mesmo, desse egoísmo que se traduz num insen­
sato afeto pelo corpo. É , com efeito, dela que nascem estas
três afeções inebriantes, tresloucadas, fundamentais, im­
pregnadas de paixão: a glutonaria, a cupidez, a vanglória,
todas elas evidenciando ter tido origem nos caprichos do
corpo. É delas que emanam sequencialmente todo o tipo
de vícios. Por conseguinte, impõe-se-nos combater a com­
placência connosco mesmos, não lhe dando tréguas, com
todo o rigor próprio da sobriedade vigilante. É necessário,
pois, que ela seja erradicada, pois com essa sua erradicação
ocorre a erradicação de todos os pensamentos de que é
triste progenitora.

60. A paixão que se exprime numa forma própria do


egoísmo instila no monge a piedade pelo corpo. Levado
por uma tal piedade, o monge nutre-o mais do que con­
vém, com o objetivo (que se revela inoperante) de o man­
ter e dirigir. O que acontece, de facto, é levá-lo pouco a
pouco a cair prisioneiro do amor do prazer. Quanto ao
homem do mundo, uma tal paixão faz dele um cativo da
concupiscência ao serviço da qual coloca os cuidados do
corpo.

Já se disse que o estado mais elevado da oração é


61 .
atingido quando a mente do orante transcende os limites
da carne e do mundo e não está cativa nem da matéria
SÃO MÁXIMO 329

nem das imagens. Assim, todo o homem que mantém ín­


tegro esse estado, é verdadeiramente um orante, E, com
toda a naturalidade, ora sem cessar (cf. 1 Ts 5 , 1 7) .

62.Tal como o corpo, a o morrer, s e separa completa­


mente das coisas materiais e mundanas, assim também a
alma que atinge um tão elevado estado de oração e nele se
concentra, ao morrer separa-se de todos os pensamentos
do mundo. Com efeito, se ela não morrer dessa morte, não
poderá encontrar-se com Deus e viver nele.

63.Que ninguém te engane, ó monge, ao insinuar que


te é possível seres salvo ao mesmo tempo que és escravo
do prazer e da vanglória!

64. Quando o corpo peca através das coisas materiais e


mundanas tem um caminho que lhe permite tornar-se
casto: é o da prática das virtudes do corpo. Analogamente,
e num outro registo, quando a mente peca através das
imagens passionais, tem um caminho que lhe permite
tornar-se casta: é o da prática das virtudes da alma. Trata­
-se, com efeito, de um caminho que a abre à contemplação
das coisas, com toda a pureza e total impassibilidade.

65. Tal como as noites se sucedem aos dias e os inver­


nos aos verões, assim também, podes disso estar seguro, as
provações e as dores se sucedem à vanglória e ao prazer. E
isso não apenas no mundo presente, mas também no
mundo futuro.

66. Não é possível àquele que peca escapar ao j ulga­


mento futuro se não impuser a si mesmo, já no tempo pre­
sente, toda uma disciplina de vida marcada por uma ascese
330 PEQUENA FILOCALIA

rigorosa. Não poderá, pois, fugir às canseiras e atribula­


ções que lhe sobrevierem.

67. Já se disse oportunamente que são cinco as razões


por amor das quais Deus permite que sejamos objeto dos
ataques dos demónios. A primeira tem a ver com o discer­
nimento da virtude e do vício: as provações inerentes ao
caminho para lá chegarmos são purificadoras. A segunda
tem a ver com a preservação da virtude depois de a termos
atingido: os combates e as fadigas subjacentes a uma tal
preservação robustecem-nos. A terceira tem a ver com a
manutenção da humildade uma vez ela atingida: trata­
-se de uma permanente aprendizagem que exige uma in­
cessante luta contra o orgulho. A quarta tem a ver com a
capacidade de odiarmos o mal: e nisso está em j ogo a
necessária e dolorosa resistência, quando somos pelo mal
provados. A quinta tem a ver com o imperativo de, ao atin­
girmos o estado da impassibilidade, interiorizarmos o
quanto somos fracos e o quanto é poderoso aquele que
nos socorre: sem uma dolorosa e quotidiana ascese não
conseguiremos libertar-nos da nossa recorrente vanglória.

68. Tal como a mente de um homem faminto imagina


o pão e a de um homem sedento imagina a água, assim
também a mente de um glutão imagina todo o tipo de
comidas, a mente de um sensual imagina as formas libidi­
nosas de mulheres, a mente de um vaidoso imagina as
honras humanas, a mente de um rancoroso imagina for­
mas de se vingar do ofensor, a mente de um invejoso ima­
gina como fazer mal àquele a quem inveja et cetera no
-

concernente a todas as outras paixões. Por conseguinte,


impõe-se-nos não perder de vista isto: uma mente pertur-
SÃO MÁXIMO 331

bada pelos ataques das paixões dá guarida aos pensamen­


tos passionais, quer o corpo vigie ou durma.

69. Quando a concupiscência se intensifica, a mente


imagina durante o sono coisas propiciadoras do prazer
sexual. Já quando é o ardor que cresce, a mente imagina
coisas que provocam temor. Devemos, por conseguinte,
com todo o empenho, combater a negligência e a deso­
cupação: quando ambas campeiam, os demónios da impu­
reza aproveitam-se da situação e multiplicam em nós as
paixões, excitando-as mais e mais. Mas não nos esqueça­
mos de que há um antídoto: os santos anj os enfraquecem­
-nas quando nos induzem à prática das virtudes.

70. O desej o da alma, ao ser estimulado com frequên­


cia, provoca o amor do prazer, um hábito que é tão difícil
de contrariar. E o ardor, quando excitado mais e mais,
torna a mente medrosa e cobarde. Pois bem: quando se
trata do desejo e da sua cura, impõem-se o jej um, as vigí­
lias, a oração. Quando está em j ogo o ardor e a sua cura,
impõem-se a bondade, a benevolência, o amor, a piedade.

71 .No combate que travam contra nós, os demónios


tanto podem recorrer às coisas como aos pensamentos
passionais inerentes às coisas. Mediante as coisas atingem
aqueles que vivem no meio delas; mediante os pensamen­
tos passionais atingem aqueles que se afastaram das coisas.

72. Tendo em conta que é mais difícil não pecar, quan­


do se trata dos pensamentos do que quando se trata da
ação, facilmente se compreenderá que é mais duro o com­
bate que travamos quando somos assediados pelos pensa­
mentos do que quando se trata de agir no meio das coisas.
332 PEQUENA FILOCALIA

73.As coisas encontram-se por aí, no nosso mundo cir­


cundante, fora da mente, mas os pensamentos por elas
suscitados processam-se no interior da mente. Daí se
infere ser nela que se j oga a possibilidade tanto do bom
uso como do mau uso das coisas. Com efeito, o mau uso
das coisas decorre do mau uso dos pensamentos.

74. Os pensamentos passionais atingem e invadem a


mente através das três vias seguintes: pelos sentidos, pela
comp lexão do corpo, pela memória. Pelos sentidos,
quando as coisas pelas quais nos apaixonamos contami­
nam os nossos pensamentos e estes invadem a nossa men­
te, afetando-a desse modo; pela complexão do corpo,
quando este (desregulado quer por um regime inapro­
priado, quer pela ação dos demónios, quer por uma enfer­
midade) leva a mente a reincidir nos pensamentos passio­
nais, cativa como fica de um universo de concupiscência;
pela memória, quando esta, num processo de anamnese,
faz emergir as lembranças das coisas que nos seduziram e
conduz de igual modo a mente ao reduto dos pensamen­
tos passionais.

75. Deus criou, para nosso uso, uma multiplicidade de


coisas. Algumas delas encontram-se na alma, outras no
corpo, outras ainda no ambiente em que o nosso corpo se
move. É assim que na alma se encontram os poderes que
lhe são próprios; no corpo os órgãos sensitivos e outros
membros; no ambiente em que o nosso corpo se move os
alimentos, os haveres, o dinheiro, et cetera. O bom ou o
mau uso dessas coisas, nas variadas circunstâncias em que
nos possamos encontrar, é revelador da nossa virtude ou
da nossa maldade.
SÃO MÁXIMO 333

76. Algumas das coisas com que nos relacionamos no


nosso dia a dia estão na alma, outras no corpo, outras
ainda no ambiente em que, inescapavelmente, decorre a
nossa quotidianidade. Assim, na alma estão o conheci­
mento e a ignorância, o esq uecimento e a memória, o
amor e o ódio, a tristeza e a alegria, et cetera. No corpo estão
o prazer e a dor, o sensitivo e o não-sensitivo, a saúde e a
doença, a vida e a morte, bem como outras modalidades a
essas semelhantes. No ambiente em que o nosso corpo se
move estão a fecundidade e a esterilidade, a riqueza e a
pobreza, a glória e a desonra, et cetera. Entre essa plurali­
dade de coisas há aquelas que são tidas pelos homens
como boas e aquelas que o não são. Mas, falando rigorosa­
mente, nenhuma delas é em si um mal. É o modo como as
usamos que fazem delas coisas más ou coisas boas.

77. O conhecimento é, por natureza, bom. O mesmo


podemos dizer da saúde. Mas, não obstante serem em si
mesmas coisas boas, também dos seus contrário se pode
dizer serem não poucas vezes coisas ainda melhores para
muitas pessoas. Vejamos, por exemplo, o que se passa com
o conhecimento: quando os detentores do conhecimento
são por natureza homens perversos, o conhecimento que
possuem não os leva, só por si, à prática do bem. Mas isso
não põe em causa o valor do conhecimento que é bom em
si mesmo, como já se disse. Analogamente, a saúde, a ri­
queza, a alegria, sendo coisas boas em si mesmas deixam
não poucas vezes de o ser quando os protagonistas são
homens desse jaez, pois não lhes proporcionam benefício
algum. Podemos, até, interrogar-nos acerca da possibili­
dade de serem afinal de contas os seus contrários (a enfer­
midade, a pobreza, a tristeza) que lhes são benéficos. A ser
assim, surpreendentemente, são esses contrários que
334 PEQUENA FILOCALIA

acabam por se revelar não propriamente como males, não


obstante parecerem sê-lo.

78. Não faças um mau uso dos pensamentos, não acon­


teça veres-te constrangido a fazer também um mau uso
das coisas. Efetivamente, as coisas são, na verdade, assim:
se não começássemos por pecar em pensamento, nunca
chegaríamos a pecar em ação.

79.A imagem do que é terreno configura-se e exprime­


-se nos vícios fundamentais de que são exemplos: a estu­
pidez, a cobardia, a licenciosidade, a inj ustiça. Mas a
imagem do que é celeste, essa, traduz-se limpidamente nas
virtudes fundamentais de que são exemplos: a sabedoria, a
coragem, a castidade, a justiça. Queira o Senhor que, assim
como demos entrada neste mundo trazendo connosco a
imagem do terreno, assim também ao sairmos dele leve­
mos connosco a imagem do celeste.

80 . Estás empenhado em encontrar o caminho que


conduz à vida? Então, se assim é, empenha-te em encon­
trá-lo exclusivamente naquele que diz de si mesmo ser o
Caminho: «Eu sou o caminho, a porta, a verdade, a vida»
ao 1 0,7-9; 1 4,6) e encontrá-lo-ás. E não te esqueças de que
-

ao tratar-se de um empenho dessa natureza, é-te exigida


uma consagração total: com todas as tuas forças, com todo
o teu entendimento, com uma disponibilidade para o con­
fronto com o que é sofrido. É em virtude de a exigência ser
tanta que são muito poucos que encontram esse caminho
(cf. Mt 7, 1 4) . Procura-o, pois, com denodo, não te aconteça
ficares fora desse pequeno número. O grande número é o
daqueles cujo horizonte não é outro senão o de uma faci-
SÃO MÁXIMO 335

tidade enganosa geradora do que é medíocre. Não queiras


pertencer-lhe l

81 . Quando a alma se defronta com os pecados, e corre


o grande risco de deles ficar cativa, o caminho da liberta­
ção pode exprimir-se de cinco modos diferentes. Ou pelo
medo dos homens; ou então pelo medo do Julgamento
final; ou pela retribuição futura; ou pelo amor de Deus;
ou, finalmente, pela força da consciência, quando ela bate
à porta de si mesma.

82. Há quem diga que o mal não se manifestaria em nós


e à nossa volta se não houvesse um poder que a ele nos
atrai. Ora esse assim chamado poder não é senão a negli­
gência com que nos demitimos da vida e, de um modo
particular, da atividade natural da mente. Motivo pelo qual
aqueles que dizem não à negligência e se empenham no
exercício dessa atividade são artesãos do bem e não faze­
dores do mal. Por conseguinte, se pretendes, tu também,
fugir da negligência mediante a atividade natural da mente,
impõe-se-te isto: expulsar de ti a malícia típica do mau uso
dos pensamentos que se repercute no mau uso das coisas.
Não te iludas, pois!

83. Quando no seu estado natural (isto é, não subme­


tida a forças estranhas) , a inteligência que nos habita está
sujeita ao Verbo de Deus. Porque se trata de uma santa su­
jeição (e, portanto, libertadora) ela é capaz de controlar a
parte não-inteligente que também nos habita. Assim, pois,
há que manter essa sujeição libertadora a fim de que o mal
desapareça dos seres e a força que a ele nos atrai seja redu­
zida ao nada.
336 PEQUENA FILOCALIA

84. No meio da multiplicidade dos pensamentos há os


que são simples e os que são compostos. Os simples são
aqueles que se caracterizam por ser não-passionais; os
compostos, pelo contrário, são os passionais, dado serem
feitos de paixão e de imagens conceptuais. Visto as coisas
serem assim, é possível discernir muitos pensamentos
simples no rasto de pensamentos compostos q uando
estes, ao serem seduzidos, caem no pecado que se traduz
no acolhimento das imagens conceptuais. Evoque-se
como exemplo o ouro. Quando um pensamento passional
o evoca, e o faz subir à sede da memória, facilmente somos
levados a pensar em termos de roubo, e com isso estamos
a pecar na nossa mente. E, muito naturalmente, à lem­
brança do ouro suceder-se-á a lembrança da bolsa, bem
como a do cofre, et cetera. Da lembrança do ouro podemos
dizer ser ela composta, j á que arrasta consigo a paixão.
Mas a lembrança da bolsa, do cofre, et cetera, é simples, pois
a mente não sente, nem por ela nem por ele, paixão. Ora,
passa-se a mesma coisa com os pensamentos, quer se trate
da vanglória, de mulheres, ou de uma qualquer outra coisa
que possa instigar à paixão. Não é forçoso que, no uni­
verso dos pensamentos decorrentes de um pensamento
passional, todos tenham de ser passionais. Acabámos de o
mostrar. Podemos assim, desse modo, estar aptos para o
discernimento quer dos pensamentos passionais, quer dos
que o não são.

85. Há quem diga que, durante o sono, os demónios


tocam nas partes genitais, levando assim todo o corpo a
cair na paixão da impudicícia. Motivo pelo qual a paixão,
levada pelo seu próprio movimento, e instrumentalizando
a memória, suscita na mente a imagem da mulher. Outros
dizem que os demónios começam por atacar a mente
SÃO MÁXIMO 337

manifestando-se-lhe sob a imagem da mulher tocando as


partes genitais, provocando desse modo no corpo o desejo
gerador de uma multiplicidade de imagens. Outros, ainda,
sublinham que o demónio consubstancia em si a paixão
de tal modo que, quando lança à nossa volta o seu assédio,
excita a nossa própria paixão. E uma vez ela excitada leva a
alma a ligar-se aos pensamentos, dando assim lugar à inva­
são da memória através das imagens. No concernente às
outras imaginações passionais, há, igualmente, mais do
que uma explicação. Uns dizem que elas sobrevêm do
mesmo modo, enquanto outros apresentam uma explica­
ção diferente e procuram fazer valer um outro modo. Seja
como for, uma coisa há em comum nessas duas tentativas
de explicitação: em nenhum dos modos os demónios têm,
só por si, o poder de suscitar uma paixão (seja ela qual for)
se a alma tiver a habitá-la o amor e a prática da tempe­
rança for nela dominante. E isso quer durante o tempo em
que o corpo dorme, quer durante o tempo em que se en­
trega à vigília.

86. A Lei, com os seus mandamentos, exige observância.


Tanto quando se trata dos que devem ser observados
simultaneamente de um modo corporal e espiritual, como
quando se trata dos outros cuja observância é do domínio
do que é apenas espiritual. Assim, «Não adulterarás», «Não
matarás», «Não roubarás», bem como outros mandamen­
tos do mesmo teor, devem ser cumpridos simultaneamente
de um modo corporal e espiritual, muito embora a ênfase
deva ser posta no espiritual. Mas circuncidar-se, observar o
sabat, imolar o cordeiro, comer os ázimos e as ervas amar­
gas, bem como outros mandamentos do mesmo teor,
exigem apenas uma observância espiritual.
338 PEQUENA FILOCALIA

87. Há três imperativos éticos fundamentais caracteri­


zantes da vida monacal: o primeiro consiste em não pecar
pela ação; o segundo, em não dar guarida na alma aos pen­
samentos passionais; o terceiro, em olhar de um modo im­
passível, em pensamento, a forma das mulheres e a
imagem daqueles que nos ofenderam.

88. Aquele que a tudo renunciou, deixando assim de


possuir tudo aquilo que até então possuía aqui na terra, à
exceção do seu próprio corpo; e que cortou a sua ligação
ao corpo, de modo a não ser um cativo deste; e que con­
fiou a Deus e aos homens piedosos o cuidado de por eles
ser dirigido - um homem desses é verdadeiramente um
pobre.

89. Entre os ricos há aqueles que possuem o que pos­


suem de um modo não apaixonado, e isso de tal maneira
que, uma vez privados dos seus bens, não se afligem (no
que são semelhantes àqueles que aceitaram com alegria
perder o que lhes pertencia) . Outros há, porém, que pos­
suem o que possuem de um modo apaixonado, o que faz
com que mergulhem no desespero e na tristeza profunda
ao serem ameaçados de despojamento (no que são seme­
lhantes ao rico do Evangelho que partiu possuído pela
tristeza) . Podemos, assim, dizer que a privação é revela­
dora, naqueles a quem atinge, quer de um estado de tran­
quila impassibilidade, quer de um estado bem diferente,
caracterizado, passionalmente, por uma mortal aflição.

90. Os demónios combatem de um modo particular


aqueles que, sendo orantes, na prática da oração atingem
o cume. Procuram, manhosos como são, levar homens
desses a viver um estado de insensibilidade no qual deixam
SÃO MÁXIMO 339

de experimentar e sentir as coisas que se oferecem aos


sentidos. Aos orantes gnósticos movem um combate mar­
cado pelo desej o de os levar a acolher os pensamentos
passionais. Aos orantes ativos atacam-nos com o fito de os
levar a pecar pela ação. Miseráveis, travam um combate
contra uns e outros, de múltiplas maneiras, com a astúcia
repelente que é a deles. A sua infame intenção é, no fundo,
cavar uma separação entre Deus e os homens.

91 . Aqueles que, bafej ados pela Providência divina,


vivem uma intensa vida marcada pela piedade, estão suj ei­
tos a estes três tipos de provas: o usufruto de coisas agra­
dáveis, como sejam a saúde, a beleza, os filhos, a fortuna, a
glória, et cetera; a maré das infelicidades, como sej am a
perda dos filhos, da fortuna, da honra; as atribulações que
fazem sofrer o corpo, como sejam as doenças, as torturas,
et cetera. Aos primeiros, o Senhor diz: «Se uma pessoa não
renuncia a tudo aquilo que possui, não pode ser meu dis­
cípulo» (Lc 1 4,33) . Aos outros diz: «Pela vossa perseverança
salvareis as vossas almas» (Lc 2 1 , 1 9) .

92. São quatro a s coisas que (pelo papel que desempe­


nham ao influenciar a mente, pois sopram nela uma diver­
sidade de pensamentos, tanto passionais como não-pas­
sionais) são tidas como transformadoras da compleição do
corpo: os anj os, os demónios, o vento, a alimentação. No
concernente aos anj os, diz-se habitualmente que o seu
papel transformador é desempenhado através da palavra;
no concernente aos demónios, através do toque; no res­
peitante ao vento, mediante as suas variações; no que à ali­
mentação se refere, através da sua qualidade, ou da sua
abundância, ou até mesmo da sua frugalidade. E isto sem
falar das mudanças que, mediante a memória, ou o ouvido,
340 PEQUENA FILOCALIA

ou a visão, atingem a compleição do corpo se a alma tiver


sido afetada quer por provações quer por alegrias. Ao ser
assim afetada, a alma atua na compleição do corpo, provo­
cando nela transformações. E não se perca de vista isto:
uma vez essas transformações ocorridas na compleição
corporal, é por ela que os pensamentos chegam à mente.

93. A morte é, em sentido verdadeiro, separação de


Deus, e o aguilhão da morte é o pecado (l Cor 1 5 ,5 6 ) . Ao
sofrer a morte, Adão sofreu o exílio que, simultaneamente,
o desterrou para longe, quer da árvore da vida, quer do
paraíso, quer de Deus (cf. Gn 3) . A morte do corpo é a con­
sequência inevitável de um tal desterro, de uma tal separa­
ção. Quanto à vida, ela é, na verdadeira aceção da palavra,
inseparável daquele que disse: «Eu sou a vida» ao 1 1 ,25) . É
Ele que, ao assumir a morte, restituiu à vida o homem que
estava morto. O que ocorreu foi, assim, a morte da morte,
para que o homem viva.

95. Aquele que escreve obras, escreve-as por algum mo­


tivo especial, ou por mais do que um motivo. Pode escre­
vê-las, por exemplo, levado pela necessidade de alimentar a
sua própria memória, ou então, para prestar um serviço
aos outros, ou até mesmo por esses dois motivos conj un­
tamente. É possível haver ainda algum outro motivo: por
exemplo injuriar certas pessoas, quer por ostentação, quer
por necessidade.

95. Os verdes pastos a que a Escritura se refere são a


virtude ativa, e a água do repouso (cf. SI 23,2) é o conheci­
mento dos seres, obra da criação de Deus.

96. Sombra da morte é a vida do homem. Por conse­


guinte, se um homem está com Deus e Deus com ele, ex-
SÃO MÁXIMO 341

pressão viva de uma autêntica comunhão, um tal homem


pode fazer sua a confissão do salmista: «Ainda que eu
andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal
algum, porque Tu estás comigo» (Sl 23,4) .

97. Uma mente purificada n o exercício d a virtude v ê as


coisas de um modo correto. Uma inteligência treinada no
exercício da razão exprime-as com clareza. Um ouvido
apurado na disciplina da escuta segue como se impõe as
diferentes modulações do discurso e capta-as na sua
essencialidade. Mas um homem desprovido desses três
dons maltrata o orador. E, sem disso ter consciência, mal­
trata-se a si mesmo.

98. Aquele que confessa a sua fé no Deus que é Trin­


dade; e sabe que a Providência divina nos guarda e protege
no quotidiano da vida; e crê no poder criador de Deus; e
mantém impassível a parte da alma vulnerável às paixões -
um homem desses está com Deus e vive profundamente
na força dessa comunhão.

99. Já dissemos oportunamente que, na simbólica bí­


blica, a vara significa o julgamento de Deus, e que o caj ado
significa a sua providência. Quando experienciamos e sen­
timos na nossa vida esse duplo significado, é-nos possível
declarar enfaticamente: «A tua vara e o teu cajado conso­
lam-me» (Sl 23,5) .

100. Quando a mente se despoja das paixões (atingindo,


assim, um estado de impassibilidade) e passa pela expe­
riência de uma iluminação que a leva a olhar com novos
olhos para os seres criados, pode centrar-se em Deus,
numa intensa comunhão com Ele, e orar como se impõe.
342 PEQUENA FILOCALIA

Terceira centena de capítulos sobre o amor

Para que possamos fazer a experiência da castidade, e


1.
ocorra o necessário conhecimento daí resultante, é neces­
sário nutrir p ensamentos racionais acerca da vida e das
coisas. Pelo contrário, quando uma tal racionalidade é su­
primida, o que daí emerge não é senão licenciosidade,
ódio, ignorância.

2. «Preparaste diante de mim uma mesa» (SI 23,5) é uma


declaração do salmista onde a mesa significa a virtude ativa.
Ela foi, com efeito, preparada para nós por Cristo, na pre­
sença daqueles que nos vituperam. Na sequência lexical
do versículo, o óleo que unge a mente significa a contem­
plação das coisas criadas. O cálice divino, esse, significa o
conhecimento de Deus. A sua misericórdia significa o seu
Logos, que é igualmente Deus. Porque pela encarnação do
Logos, Ele segue-nos quotidianamente, até ter atingido, na
sua misericórdia, todos aqueles que serão salvos, como
aconteceu com Paulo. A casa significa o Reino, onde habi­
tarão todos os santos. E, finalmente, a duração dos dias sig­
nifica a vida eterna.

3. Os vícios dominam-nos, quando fazemos um mau


uso das potências da alma. E essa perversão em que pode­
mos cair pode registar-se tanto ao nível do desejo como ao
nível da razão. No concernente ao mau uso da potência ra­
cional, há que sublinhar isto: esse mau uso tanto pode
implicar a ignorância como a falta de memória. No con­
cernente ao mau uso da potência que, por ser ardente, é
desejante, sublinhe-se isto: esse mau uso tanto pode im­
plicar o ódio como a licenciosidade. Pelo contrário, e em
registo de oposição, o uso natural dessas potências im-
SÃO MÁXIMO 343

plica: o conhecimento e a sabedoria, assim como o amor e


a castidade. E quando isso acontece vem salutarmente à
superfície a proclamação escriturística: tudo o que D eus
criou e trouxe à existência é bom, muito bom.

4. Os alimentos não são maus, mas a glutonaria, essa


sim, é-o; nem a procriação de crianças é má, mas é-o a li­
cenciosidade; nem a riqueza é má, mas é-o, isso sim, a ava­
reza; nem a glória é má, mas é-o, isso sim, a vaidade e a pe­
tulância. Se tivermos tudo isso em conta, nada do que
existe é mau. Nessa j usta ótica só é mau o mau uso das
coisas, mau uso esse que provém da mente sempre que
ela, caindo numa negligência preguiçosa, renega a sua ori­
ginária cultura natural.

5. Num universo demoníaco, no dizer do bem-aventu­


rado Dionísio (Dionísio, o Areopagita, P.G., 725 B) , a perversidade
resulta quer do ardor desprovido de racionalidade, quer do
desejo privado de inteligência, quer da imaginação vazia de
sensatez. Digamo-lo, pois: a sem-razão, a ininteligência, o
delírio, são essencialmente uma carência de razão, ou de
inteligência, ou de sensatez. Ora a carência, como é óbvio,
nunca é a primeira coisa, pois para que ela se manifeste é
necessário que antes haja a posse. Tempos houve em que
os demónios estavam providos de razão, de inteligência,
bem como de uma sábia sensatez. Vistas as coisas desse
modo, tão-pouco os demónios são maus por natureza.
Tornaram-se maus, deixando esse seu mundo originaria­
mente racional, a isso levados pelo uso perverso dos seus
poderes naturais.

6. O mundo das paixões é diverso, assustadoramente


diverso. Efetivamente, há entre elas as que geram a licen-
344 PEQUENA FILOCALIA

ciosidade; há também as que geram o ódio; e há ainda


aquelas que geram simultaneamente essas duas coisas.

7. Falar em demasia e comer como um glutão condu­


zem à licenciosidade. A avareza e a petulância, essas, geram
o ódio ao próximo. Trata-se de vícios que, tal como muitos
outros, nascem de coisas bem concretas: da complacência
connosco mesmos, do egoísmo, da irracionalidade, do
ódio.

8. O egoísmo manifesta-se patologicamente como uma


afeção passional atravessada por uma profunda irraciona­
lidade, em que o corpo é obj eto de um doentio desvelo.
Tem como sérios opositores o amor e a temperança, sendo
do domínio do óbvio que o combate que travam é árduo,
pois o egoísta sofre de todo o tipo de paixões.

9. Nas palavras do Apóstolo, «ninguém, jamais, odiou a


sua própria carne» (Ef 5,29) . E, contudo, não restam dúvidas
ter ele mesmo tratado duramente a sua. Com efeito, pelo
que sabemos dele próprio, disciplinou-a com todo o rigor,
com dureza até, não lhe proporcionando mais do que a ali­
mentação e o vestuário exigidos pela vida (cf. 1 Cor 9,7) . É
esse, incontestavelmente, o modo correto de amar a carne,
sem os vínculos tecidos pela paixão, nutrindo-a como se
nutre um servo do divino, sem ir além do que é estrita­
mente necessário para satisfazer as suas necessidades.

1 0 . Todos sabemos perfeitamente que quando amamos


alguém, a esse alguém empenhadamente servimos em
tudo. Por conseguinte, se amamos a Deus sentimos um
profundo desejo de fazer tudo o que lhe agrada. Mas, pelo
contrário, se o nosso amor se esgota no amor à carne,
SÃO MÁXIMO 345

então o empenho que sentimos não é outro senão o que


se traduz num comportamento de subserviência à carne,
fazendo o que à carne agrada.

11. Enquanto Deus se compraz com o amor, com a casti­


dade, com a contemplação, com a oração, já a carne, pelo
contrário, deleita-se com a glutonaria e com a licenciosi­
dade, bem como com tudo aquilo que a ambas fomenta. Por
esse motivo, como é óbvio, aqueles que vivem cativos dos
impulsos da carne não podem agradar a Deus. Pelo contrá­
rio, nos antípodas desses estão aqueles que, sendo de Cristo,
crucificaram a carne e, com ela, as paixões e as cobiças.

12.Quando a mente está sintonizada em Deus está pre­


parada para disciplinar o corpo e, por conseguinte, não lhe
dá mais do que aquilo que lhe é necessário para ter vida.
Pelo contrário, quando ela se orienta para a carne, então o
seu desej o é satisfazê-la em tudo, dominada como fica
pelas paixões.

13.Se queres ser senhor dos pensamentos, impõe-se-te


logo à partida uma coisa: vigiares as paixões. Com efeito,
só assim poderás isolar os pensamentos que delas provêm,
e erradicá-los da mente. Terás de combater com denodo: a
concupiscência, com a prática do j ej um, da vigília, da
fadiga, do retiro; a cólera, mediante a introspeção, o me­
nosprezo da glória, a desvalorização das coisas materiais; o
ressentimento, à custa do muito orar por aquele que te
ofendeu. Terás assim um amplo campo de combate. Em­
penha-te nele e serás libertado.

14.Que a medida com que te medes não seja a dos ho­


mens medíocres. A tua medida deve ser mais ampla e de
346 PEQUENA FILOCALIA

outra natureza: que ela seja a medida resultante do man­


damento do amor. É esse o mandamento cuja observância
deve determinar a medida da tua exigência contigo
mesmo. Fugirás assim à medida dos medíocres que não
conduz a nenhum outro lugar que não sej a o do golfo
mortal da presunção. Tu não deves estar aí: o caminho
para que és convocado é o que se distingue pela observân­
cia do mandamento do amor. E isso implica inevitavel­
mente a humildade no que ela tem de mais elevado. Por
conseguinte, a tua resposta a esta exigência, se for um sim,
introduzir-te-á no caminho que outorga a vida. Mas se for
um não o que te esperará é a mediocridade de uma vida
que verdadeiramente não o é.

1 5 . Se a tua observância do mandamento do amor ao


próximo for empenhadamente diligente, não serás para
ninguém um motivo de amargura e aflição. Pelo contrário,
se assim não for, e porfiares com o outro numa lamentável
competição de que o móbil é a posse das coisas terrenas e
transitórias, transgrides o mandamento e cultivas a hostili­
dade contra o teu irmão.

16. O ouro, sabemo-lo, é objeto de desejo pela generali­


dade das pessoas. Não percamos, porém, de vista que ele é
desej ado não por ser necessário mas por emprestar a
quem o possui o prazer da posse.

17.O amor do dinheiro emana particularmente das três


coisas seguintes: o gosto do prazer, a vaidade da ostenta­
ção, a falta de uma genuína fé. Dessas três coisas a mais
grave é, incontestavelmente, a última.

Aquele que se deleita na fruição do prazer ama o di­


18.
nheiro para, por meio dele, viver uma vida de delícias. O
SÃO MÁXIMO 347

vaidoso, amigo da ostentação como é, ama-o para obter


por seu intermédio o prestígio e a fama. O carente de fé
ama-o por sovinice e por temer a fome, a velhice, a doença,
o exílio. Com esse seu comportamento mostra depositar
mais confiança no dinheiro do que em Deus, esse D eus
providente e misericordioso que criou o mundo inteiro e
que mantém todos os viventes, dos maiores aos mais pe­
quenos, sob o bafejo do seu amor.

19. A gestão do dinheiro pode fazer-se em diferentes


contextos humanos. Já nos referimos a três deles. Há,
porém, ainda um quarto além desses três anteriormente
evocados: trata-se do contexto próprio de uma comuni­
dade com o seu ecónomo. Facilmente compreenderemos
que a figura do ecónomo inserido na sua comunidade nos
leva logo a pensar em alguém que pratica uma gestão onde
a poupança surge como necessária, pois impõe-se estar
preparado para dar àquele que necessita de ser socorrido.

20. Os pensamentos passionais repercutem-se em re­


gistos diferentes: ou excitam o desejo da alma; ou incenti­
vam o ardor; ou perturbam a razão. Nesses diferentes re­
gistos, que supõem uma diversidade de circunstâncias, a
mente fica como que paralisada, incapaz de assumir a con­
templação espiritual e com ela atingir as alturas próprias
da oração. Motivo pelo qual o monge (e de um modo par­
ticular o hesicasta) deve exercer uma vigilância estrita a fim
de não dar guarida aos pensamentos indesej áveis e ser
capaz até de suprimir as suas causas. Eis alguns casos que
podem ser ilustrativos de como ele as pode conhecer. Su­
ponhamos, por exemplo, a lembrança apaixonada das mu­
lheres que excita o desej o da alma: a causa dessa lem­
brança reside no destempero com que se come e se bebe,
348 PEQUENA FILOCALIA

bem como nas conversas frequentes e sem motivo com as


próprias mulheres. Trata-se, porém, de uma lembrança
que pode ser apagada mediante um jej um rigoroso e com­
pleto, a juntar às vigílias e ao retiro. O ardor, esse, vulnerá­
vel à evocação intensa das provações, tem como causas o
gosto do prazer, a vaidade que se manifesta em jactância, o
amor das coisas mundanas. Com efeito, o apaixonado
aflige-se ao ser privado dessas coisas, ou então por não
conseguir obtê-las. Mas quando, em salutar ascese, elas
são menosprezadas e tidas como nada, com o socorro de
D eus, a sua lembrança perturbadora é completamente
erradicada.

21 .Deus conhece-se a si mesmo. Mas não só: Ele


conhece também a obra que criou . Também os poderes
angélicas conhecem Deus, e conhecem igualmente o que
Ele criou. Temos, porém, nisso dois tipos de conhecimen­
to radicalmente diferentes: não conhecem Deus e a sua
criação como Deus se conhece a si mesmo e como conhe­
ce as suas criaturas.

22. Deus conhece-se a si mesmo mediante a abençoada


essência que lhe é própria. E conhece as suas criaturas
mediante a sua Sabedoria, pela qual e na qual tudo fez,
pois « [ . . ] antes que as montanhas e os vales existissem eu,
.

a Sabedoria, estava lá; quando Ele, o Senhor, ainda não


tinha feito a terra e os campos; quando Ele estabeleceu os
céus eu estava lá [ . . . ] quando Ele fixou o firmamento,
quando Ele impôs aos mares os seus limites, eu estava ao
seu lado como um Artífice mestre» (Pr 8,25-30) . De um
modo completamente diferente se processa o conheci­
mento com que as potências angélicas o conhecem: o seu
conhecimento de Deus é um conhecimento por participa-
SÃO MÁXIMO 349

ção, não obstante Deus, Ele mesmo, ser transcendente a


uma tal participação. E é pela perceção do que contem­
plam na obra da criação divina que essas potências a
conhecem.

23. Ainda que a mente possa assumir no interior de si


mesma a contemplação dos seres, obra da criação divina,
eles são-lhe exteriores. Com Deus, porém, as coisas não se
passam assim. Quando de Deus se fala, fala-se daquele
que, por ser eterno, infinito, ilimitado, é o mistério que está
para além do que dele podemos dizer. Se nós somos e
existimos é porque Ele infundiu em nós, criaturas suas, o
ser, o bem ser, o ser sempre.

24. Os seres criados, dotados de razão e de inteligência,


têm comunhão com D eus pelo facto de existirem, pela
capacidade de bem ser (essa maravilhosa aptidão, dom do
Senhor, para a bondade e sabedoria) - e isso pela graça que
lhes é conferida de serem sempre. É desse modo que
conhecem Deus. Mas à obra que Deus criou, eles conhe­
cem-na, como já se disse, pela perceção da harmoniosa sa­
bedoria que contemplam nos seres criados e que se en­
contra em estado puro na mente, exterior e transcendente
em relação a todo o mundo material.

25. Deus, ao dar o ser às criaturas dotadas de razão e de


inteligência, comunicou-lhes quatro dos atributos divinos
através dos quais sustém, guarda e salva as coisas criadas:
o ser, o ser sempre, a bondade, a sabedoria. Às duas pri­
meiras (ser e ser sempre) comunicou-as na sua essência.
Às duas outras (bondade e sabedoria) comunicou-as como
capacidade de conhecer, de modo que aquilo que Ele
mesmo é por essência, as criaturas nisso se tornem por
350 PEQUENA FILOCALIA

participação. Motivo pelo qual se diz ter sido o homem


feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1 ,26) . À imagem
por o seu ser ser à imagem do ser de Deus, e por o seu ser
para sempre ser à imagem do ser eterno de Deus. É que,
não obstante uma tal imagem não ser sem começo, ela é
sem fim . E à semelhança por ser boa, por ser a bondade
daquele que é bom, e por ser sábia, com origem na própria
sabedoria daquele que é sábio. Ela é graças à graça, en­
quanto D eus é por natureza. Por conseguinte, todas as
criaturas dotadas de razão são à imagem de Deus. Mas à
sua semelhança só o são os bons e os sábios.

26. Todos os seres são obra da criação divina. Aqueles


que são dotados de razão e de inteligência são ou de natu­
reza angélica ou de natureza humana. Os de natureza an­
gélica subdividem-se em duas categorias morais (ou gru­
pos) : os santos e os malditos, isto é, as potestades santas e
os demónios impuros. No concernente à natureza huma­
na, toda ela na sua integralidade se subdivide em duas
categorias: os piedosos e os ímpios.

27. Visto ser Deus existência absoluta, bondade abso­


luta, sabedoria absoluta (tenha-se bem presente de que ao
nos exprimirmos deste modo estamos conscientes do
quanto tais afirmações são redutoras, pois E le, o D eus
eterno, está para além de todas essas declarações e é infini­
tamente maior do que todas elas j untas) visto isso, ne­
nhum atributo há nele que manifeste ser contrário a outro
atributo. Em D eus nada se opõe a nada. Já fora dele as
coisas não são assim, quando se trata dos seres criados,
cuj a existência depende da participação e da graça: todos
eles, incluindo os que são dotados de razão e de inteligên­
cia (aptos para serem promotores de bondade e instru-
SÃO MÁXIMO 35 1

mentos de sabedoria) transportam consigo contrários (ou


opostos) : com a existência a inexistência; com a aptidão
para a bondade e para a sabedoria, a malícia e a ignorância.
Na verdade, existirmos sempre ou não existirmos está nas
mãos do Criador e tem como universo salvífico a sua Pro­
vidência; mas participarmos ou não na sua bondade e na
sua sabedoria depende da nossa vontade, seres dotados de
razão que somos.

28. Ao afirmarem que a essência das coisas criadas coe­


xiste com Deus desde toda a eternidade, e que somente ela
recebe dele as qualidades que lhe são próprias, os Gregos
defendem a ideia de que essa essência não tem em si um
contrário, e que é apenas nas qualidades que o contrário
reside. Em divergência com eles, nós defendemos que uni­
camente a essência divina não tem um contrário, dado ser
ela eterna e infinita, doadora da eternidade às outras
coisas. E ao afirmarmos isso mantemos o seguinte, formu­
lado numa tripla perspetiva: que a essência dos seres cria­
dos tem um contrário que é a não-essência; que Aquele
que plenamente é tem o poder de fazer com que ess<;i
essência sej a sempre, ou não seja; que os seus dons são
irrevogáveis (cf. Rm 1 1 ,29) . Por esse motivo, a essência das
coisas é sempre (e sempre será) mantida qual é pelo poder
que domina o universo, não obstante ter o seu contrário,
como já se disse, pois foi trazida do não ser ao ser, e de­
pende da vontade de Deus ter o ser ou o não-ser.

29. Tal como o mal é a privação do bem e a ignorância


a privação do conhecimento, assim também o não ser é a
privação do ser. Atenção, porém: ao dizermos que o não
ser é a privação do ser, não se trata do ser num sentido
substantivo, pois esse não tem um contrário, mas do ser
352 PEQUENA FILOCALIA

que o é por participação no ser substantivo. E tenhamos


presente isto: se a privação do bem e do conhecimento de­
pende da decisão das criaturas, a privação do ser, essa,
depende da vontade do Criador que, na sua bondade pro­
videncial, quer que os seres sejam sempre e que, perma­
nentemente, recebam os seus dons.

30. Que há uma pluralidade de seres criados é algo do


domínio do óbvio. Ora, entre todos esses seres, uns são
dotados de razão e de inteligência, transportando consigo
contrários como sejam a virtude e o vício, o conhecimento
e a ignorância. Outros há, porém, que existem como
corpos em si compostos de contrários como sejam: a terra,
o ar, o fogo, a água. Este segundo grupo é composto por
seres materiais que têm uma determinada forma. O pri­
meiro grupo, evocado antes deste, é composto por seres
incorpóreos e imateriais e também por seres que estão
unidos a um corpo.

31 . A todos os corpos falta, por natureza, a capacidade


da locomoção. Uma tal capacidade é-lhes conferida,
porém, pela alma, que pode mostrar-se como dotada de
razão ou dela destituída. Pode até mesmo, para infelicidade
dela, cair numa lamentável insensatez. Quando isso acon­
tece, a queda que é a sua, atira-a para um estado que toca
o terreno de uma certa irracionalidade.

32. As potências da alma são em número de três. A pri­


meira é a da nutrição e do crescimento; a segunda, a da
imaginação e do instinto; a terceira, a da razão e da inteli­
gência. As plantas participam unicamente na primeira po­
tência. Os animais destituídos de razão acrescentam a esta
a segunda. Finalmente, os homens aj untam às duas pri-
SÃO MÁXIMO 353

meiras a terceira. Ora as duas primeiras estão marcadas


não apenas pela finitude mas também pela corrupção. Só
a terceira é caracterizada pela incorruptibilidade e pela
imortalidade.

33. As potências angélicas, ao partilharem entre si as


suas qualidades (não nos esqueçamos de que essas quali­
dades funcionam como atributos identificadores) lançam
luz sobre muita coisa e transmitem também à natureza
humana quer a sua virtude quer o seu conhecimento. No
concernente à virtude, transmitem-na (e nesta sua trans­
missão há alguma analogia com o modo como Deus age)
como paradigmática do seu comportamento em relação a
si mesmas, um comportamento caracterizado pela partilha
mútua. Mas não só: a sua ação permeada pela virtude es­
tende-se também às potências que lhes são inferiores. No
concernente ao conhecimento, transmitem-no numa rica
e fecunda pluralidade de conhecimentos: um deles, subli­
me, acerca de Deus (lá diz a Escritura: «Tu, Senhor, és o
Altíssimo por toda a eternidade» [Sl 92,91); um outro, pro­
fundo, acerca dos seres incorpóreos; um outro, rigoroso,
sobre os seres corpóreos; um outro, luminoso, acerca da
Providência divina; e finalmente, ainda um outro, exato,
quando se trata do julgamento divino.

34. A impureza da mente reside antes de mais nada, e


sobretudo, no conhecimento falso; em segundo lugar, na
ignorância de algum dos universais (refiro-me à inteligên­
cia humana, pois a inteligência angélica nada ignora, nem
mesmo o que diz respeito ao particular) ; em terceiro lugar,
no acolhimento dado aos pensamentos passionais; em
quarto lugar, na complacência com o pecado.
354 PEQUENA FILOCALIA

35. A impureza da alma, essa, dá-se a ver, particular­


mente, ao não agir segundo a sua natureza mais profunda,
isto é, ao agir de um modo desbragado. Com efeito, é esse
o infeliz alfobre onde medram os pensamentos passionais.
Pelo contrário, a alma age segundo a natureza quando o
que nela pode tender às paixões (isto é, ao ardor e à eclo­
são do desejo) resiste e permanece livre, impassivelmente
livre, perante os assédios e provocações provenientes quer
das coisas, quer das imagens e figuras conceptuais dessas
coisas.

A impureza do corpo, essa, reside essencialmente no


36.
pecado em ato.

37. Aquele que nenhuma paixão nutre pelas coisas ma­


teriais e mundanas é alguém que se move num terreno es­
piritual onde o hesicasmo reina: um tal homem ama-o en­
tranhadamente e, como tal, sente-o com todas as suas
forças e com toda a sua inteligência. Por conseguinte, dele
se pode dizer que é um genuíno hesicasta. Com efeito,
aquele cujo amor não se fica pelo que é meramente huma­
no, é capaz de ultrapassar todo o egoísmo e de amar todos
os homens. Na verdade, aquele que, não obstante as
muitas e variadas vicissitudes que o atingem, não se con­
verte num cínico nem se metamorfoseia em pedra de tro­
peço para ninguém, é um homem que se ultrapassa a si
mesmo, iluminado como é pelo conhecimento de Deus e
das coisas divinas.

38.Já o temos dito e repetimo-lo aqui: é de fundamen­


tal importância resistirmos ao fascínio que muitas coisas
materiais e mundanas exercem sobre nós na nossa quoti­
dianidade, pois é um tal fascínio que dá força às paixões.
SÃO MÁXIMO 355

Com efeito, j oga-se nessa nossa resistência a integridade


da nossa vida. Ousamos, contudo, acrescentar que não é
menos importante permanecermos impassíveis no con­
fronto com o assédio dos pensamentos que essas coisas
suscitam em nós. Nisso é tudo que se joga!

39. O amor e a temperança mantêm a mente impassível


no confronto com as coisas e com os pensamentos por
elas provocados.

40. A mente daquele que é amado por D eus sente


forças para lutar não contra as coisas, nem contra os pen­
samentos por elas suscitados, mas sim contra um poder
maior: as paixões que permeiam os pensamentos. Assim,
por exemplo, ela luta não contra a mulher, não contra o
ofensor, não contra as suas imagens, mas sim contra as
paixões que atravessam de uma ponta à outra as imagens.

41 . Todo o combate do monge contra os demónios con­


siste essencialmente numa coisa fundamental: em disso­
ciar as paixões dos pensamentos. Com efeito, sem uma tal
dissociação é impossível ver as coisas de um modo desa­
paixonado. Trata-se de um combate quotidiano que exige
um denodado empenho.

42. Uma coisa, um pensamento, uma paixão, não for­


mam um todo unificado, pois são distintos entre si. Assim,
por exemplo, um homem, uma mulher, uma peça de ouro,
et cetera, são coisas. Um pensamento é a simples lembrança
de uma das coisas que acabamos de mencionar. Uma
paixão é uma afeção irracional ou um ódio irrefletido
contra uma dessas coisas. Por conseguinte, é contra a
paixão que luta o monge.
356 PEQUENA FILOCALIA

43.Um pensamento passional compõe-se de paixão e


de pensamento. Se dissociarmos do pensamento a paixão,
o que fica é o pensamento simples. Ora, uma tal dissocia­
ção pode ser feita mediante o amor e a temperança. Nisso
nos devemos empenhar como resultado de uma decisão
tomada.

44. As virtudes, sensatas por natureza, não confundem


paixão e mente. Pelo contrário, lucidamente dissociam­
-nas. A contemplação espiritual, essa, na sua sageza, disso­
cia pensamento e mente. A oração pura, essa, nas alturas
da espiritualidade que lhe é própria, opera o milagre da
aproximação entre a mente e Deus.

45. O exercício das virtudes implica o conhecimento


dos seres criados. O conhecimento passa por aquele que
conhece. E aquele que conhece passa por Aquele que,
sendo conhecido é desconhecido. Esse Senhor que, sendo
omnisciente, conhece para além de todo o conhecimento.

46.Na sua providência, que é sempre uma providência


que abarca a totalidade da vida, Deus deu o ser aos seres,
não por Ele necessitar de algo, mas para eles serem felizes
ao participarem na semelhança divina. Alegra-se assim
com eles ao vê-los, jubilosos, beber da fonte inesgotável da
água da vida.

47. Há neste mundo, casa da nossa habitação, muitos


pobres em espírito que não o são no verdadeiro sentido
como seria desej ável que o fossem. Há muitos aflitos, cuja
aflição se deve à perda dos filhos, ou então a causas não
muito dignas, como seja a perda do dinheiro. Há muitos
gentis, cuja gentileza tem por móbil paixões impuras. Há
SÃO MÁXIMO 357

muitos famintos e sedentos, cuj a fome e sede não visa


outra coisa senão apropriarem-se do alheio para dele usu­
fruírem. Há muitos compadecidos, cuja compaixão pro­
cura apenas satisfazer as necessidades do corpo, sem
serem capazes de ver mais longe. Há muitos de coração
puro, cuja pureza não passa de vaidade. Há muitos pacífi­
cos, cuj o pacifismo não vai além de uma submissão da
alma à carne. Há muitos perseguidos, cuj a perseguição
resulta da desordem por eles provocada. Há, finalmente,
muitos que são ultrajados, cujo ultraje é a consequência de
pecados infames. Que não nos desnorteemos, pois, quan­
do das bem-aventuranças se trata: bem-aventurados são
unicamente aqueles que, ao viverem tudo isso, o vivem por
Cristo. E isso é assim porque o Reino dos Céus pertence­
-lhes e, pertencendo-lhes, verão a D eus. Que se tenha,
pois, isto em conta: não é simplesmente por fazerem e su­
portarem tudo isso que são bem-aventurados (aqueles de
quem acabámos de falar fazem-no também) , mas sim em
virtude de o fazerem e suportarem por Cristo. É Ele, com
efeito, a pedra de toque das nossas ações que nos permite
perceber se, ao agirmos como agimos, não estaremos a ser
o engano de nós mesmos.

48. Em tudo que fazemos - temo-lo já dito não poucas


vezes - deve haver um princípio orientador que é Deus. É
Ele, o Senhor misericordioso, que é o móbil da nossa ação
e que, como tal, não pode ser confundido com uma qual­
quer coisa que nada tem a ver com Ele. E visto que tudo o
que fazemos está sempre a descoberto a seus olhos, im­
põe-se-nos agir bem, movidos pelo desiderato não de
agradar aos homens, mas sim àquele que é a nossa meta, o
Deus criador. Por conseguinte, com os olhos permanente­
mente voltados para Ele, assumamos a fadiga inerente à
358 PEQUENA FILOCALIA

ação, e vivamos a esperança que tem por horizonte o seu


cumprimento.

Ao orares expulsa da mente os pensamentos,


49.
mesmo quando não passam de pensamentos desapaixona­
dos no concernente às coisas humanas ; expulsa igual­
mente as imagens dos outros seres, não aconteça que elas
(imaginadas por ti de um modo degradante) te levem a
decair d' Aquele que é infinitamente mais alto que todos os
seres criados. Não te constituas inimigo de ti mesmo!

50. Quando o nosso amor a Deus não está ferido de


imperfeição, facilmente somos levados a resistir às paixões,
dizendo não ao assédio que elas nos movem. Ora um tal
amor implica, em primeiro lugar, preferir Deus ao mundo,
e em seguida preferir a alma à carne. Ocorre assim, nessa
nossa maneira de viver, um sadio menosprezo das coisas
mundanas, acompanhado de uma permanente consagra­
ção a Deus, vivida mediante a temperança, o amor, a ora­
ção, a salmodia, et cetera.

51 . A comunhão diuturna com Deus dá-nos a força ne­


cessária para a vigilância de cada dia. Vigilância essa indis­
pensável para mantermos a mente sob a necessária custó­
dia e não nos rendermos ao assédio que nos é movido
pelos pensamentos passionais. Há, com efeito, que preser­
var a parte passional da alma, o que só se consegue com
uma ascese livremente assumida, acompanhada de uma
rigorosa procura das causas dos pensamentos. Tornar­
-nos-emos assim mais clarividentes, tanto quanto o neces­
sário para que em nós se cumpra o que foi confessado
pelo inspirado salmista: «Os meus olhos viram as armadi­
lhas que os meus inimigos montaram contra mim, e os
SÃO MÁXIMO 359

meus ouvidos ouviram aqueles que fazem o mal e se


levantam contra mim» (SI 92,1 1 ) .

52. Quando a tua mente respira piedade e j ustiça (mes­


mo quando, numa circunstância adversa, se defronta com
pensamentos mundanos) fica tranquilo: o teu corpo
acompanhará a tua mente, e ele também permanecerá
puro e sem pecado. Mas quando ela se enreda na teia dos
pensamentos perversos, desperta da tua letargia! Se não
agires de imediato, eis que o teu corpo, ele também, não
resistirá muito tempo sem cair na armadilha paralisante
dos mesmos pecados.

53. Enquanto o mundo do corpo é o mundo das coisas,


o mundo da mente é o mundo dos pensamentos. E tal
como o corpo do homem se prostitui com o corpo da mu­
lher, assim também a mente, ao imaginar o corpo da mu­
lher, prostitui-se com o pensamento da mulher. Com
efeito, a mente vê a imagem do seu próprio corpo unido
sexualmente em pensamento à imagem da mulher, tal
como, ainda que num outro registo e num outro cenário,
perceciona a ofensa do seu ofensor e o desmascara para
dele se libertar. E passa-se o mesmo com os outros peca­
dos. Na verdade, o que o corpo faz com a sua ação no
mundo das coisas, a mente fá-lo também, segundo a ma­
neira que lhe é própria, no mundo dos pensamentos.

54. No meio das circunstâncias mais diversas da nossa


vida há vicissitudes que nos podem atingir de um modo
mais ou menos doloroso. Pois bem, mantenhamo-nos fir­
mes no meio da tormenta e, perante a ideia do j ulgamento,
não nos assustemos, nem perturbemos, nem aterrorize­
mos! Tenhamos presente isto: Deus, o Pai da misericórdia,
360 PEQUENA FILOCALIA

a ninguém j ulga, tendo encarregado o Filho de todo o j ul­


gamento. E o Filho declara: «Não j ulgueis, a fim de não
serdes j ulgados», e acrescenta: «não condeneis a fim de
não serdes condenados» (Mt 7, 1 ; Lc 6,37) . E da boca do
Apóstolo saem igualmente palavras permeadas da força da
exortação divina: « Não j ulgueis antes do tempo, até que
venha o Senhor» , a que se j untam estas : «Ao j ulgares o
outro, a ti mesmo te condenas» (1 Cor 4,5 ; Rm 2 , 1 ) . Mas os
homens, insensíveis, deixam de chorar os seus próprios
pecados e usurpam ao Filho a prerrogativa do julgamento,
passando a julgar-se uns aos outros e a condenar-se com
grande insensatez como se cada um estivesse sem pecado.
Perante um tal desvario, o Céu perturba-se e a terra estre­
mece. Mas eles continuam insensíveis e sem vergonha.

55. Aquele que se ocupa com os pecados dos outros, ou


j ulga o seu irmão a partir de uma leve suspeita, manifesta­
-se como alguém que ainda não começou a arrepender-se
a partir de si mesmo. Mostra ainda não ter interesse em se
examinar a si mesmo para conhecer os seus pecados que,
indubitavelmente, devem ser mais pesados do que o
chumbo. Fica assim completamente incapaz de compreen­
der de onde provém o homem de coração endurecido, que
se deleita com a vaidade e pactua com a mentira. Por esse
motivo, qual louco que mergulha nas trevas, insensível aos
seus próprios pecados, inventa pecados nos outros, quer
eles sej am reais ou meramente o produto da sua mente
que, de um modo patológico, inventa a suspeita. É um
homem cativo do desnorte.

56. O egoísmo (dissemo-lo já não poucas vezes) está na


origem dos pensamentos que nos mantêm sob o j ugo da
paixão. É deles, com efeito, que provêm os três vícios capi-
SÃO MÁXIMO 361

tais inerentes à cobiça: a glutonaria, a avareza, a vanglória.


Da glutonaria provém a impudicícia; da avareza, a cupidez;
da vanglória, o orgulho. Todos os outros vícios (citem-se a
este respeito a cólera, a acédia, o ressentimento, a inveja, a
maledicência, e outros vícios quejandos) provêm de um ou
de outro desses três. Daí podemos inferir corretamente
serem tais paixões que tornam a mente cativa das coisas
materiais e mundanas, atraindo-a assim à terra e opri­
mindo-a. Tratam a mente com toda a dureza, como se ela
fosse uma maciça pedra. E, contudo, ela é mais leve e mais
viva do que o fogo incandescente.

57. A origem de todas as paixões temo-la, pois, no egoís­


mo. O egoísmo é uma afeção que faz do corpo um corpo
demente. Por conseguinte, aquele que o neutraliza neutra­
liza ao mesmo tempo todas as paixões dele provenientes.

58. Tal como os pais sentem um particular afeto pelos


corpos que geraram, assim também a mente está natural­
mente ligada às suas próprias ideias e razões. E tal como os
pais que se perdem de amor pelos filhos os consideram
como os mais dotados e belos (ainda mesmo quando
possa acontecer serem eles deficientes) assim também a
mente tresloucada acha que as suas próprias ideias e
razões são as mais sensatas do mundo (ainda mesmo
quando enfermam de defeitos múltiplos) . Ora, não é desse
modo que o homem dotado de sabedoria considera as
suas ideias ou razões. Quando se j ulga convencido de que
elas são verdadeiras e boas, sem falha alguma, descrê de si
mesmo e do seu próprio j ulgamento. Por esse motivo sub­
mete-as ao j ulgamento de outros homens dotados de sa­
bedoria, levado pelo receio de estar a correr ou de ter cor­
rido em vão. E é deles que recebe a confirmação.
362 PEQUENA FILOCALIA

Quando consegues vencer algumas das mais infa­


59.
mes paixões (de que podem ser exemplos a glutonaria, ou
a impudicícia, ou a cólera, ou a cupidez) facilmente te
assalta o pensamento da vanglória. E se vences este, outro
se lhe sucede: o pensamento do orgulho.

60. Todas as paixões que evidenciam o estigma da infâ­


mia, ao invadirem a alma expulsam o pensamento da van­
glória. Mas ao serem elas próprias combatidas e vencidas
abrem alas para o regresso em força de um tal pensamento.

Quer seja expulsa quer permaneça, facilmente a van­


61 .
glória gera o orgulho. Quando é expulsa deixa a semente
da presunção; quando permanece suscita a basófia.

62. A ação que é reta e justa, praticada no oculto, expul­


sa a vanglória. Nisso se manifesta a sua nobreza. E quando
o artífice de uma tal ação atribui a Deus o mérito que ela
tem, está com isso a neutralizar o orgulho.

63.Aquele que é j ulgado digno do conhecimento divi­


no, e que, no j úbilo da comunhão com Deus, vive esse
conhecimento com um genuíno e intenso prazer, é um
homem capaz de desprezar todos os prazeres que têm
como mãe a cobiça. Manifesta desse modo trilhar o cami­
nho da inteireza.

64. Quando a cobiça que um homem sente incide nas


coisas materiais e mundanas, o raio de ação dessa cobiça
estende-se pelos manj ares, ou pelos prazeres do baixo­
-ventre, ou pela vanglória, ou pelo dinheiro, ou por uma
qualquer outra coisa decorrente das paixões. E se é esse o
horizonte de desej o da mente, ela ficará cativa dessas
SÃO MÁXIMO 363

coisas mundanas. Mas melhor, incomparavelmente me­


lhor, é o conhecimento de Deus e das coisas divinas que
nos leva a ser íntegros.

65. Q uando alguém menospreza os prazeres deste


mundo, pode ser a isso levado por mais de uma razão: ou
pelo temor, ou pela esperança, ou pelo conhecimento, ou
então pelo amor de Deus.

66. O conhecimento .das coisas divinas é meio caminho


andado para não cairmos nas armadilhas do assédio das
paixões. Só por si, porém, não chega, para levar a mente ao
menosprezo das coisas materiais e mundanas. Por esse
motivo é possível encontrarmos muitos homens que, não
obstante serem possuidores de muito conhecimento, cha­
furdam entre as paixões carnais como porcos na lama.
Tendo começado aplicadamente a purificar-se, e chegado
assim ao conhecimento, deixaram-se de seguida arrastar
pela negligência, tornando-se semelhantes a S aul, que
começou por ser j ulgado digno da realeza, mas que
acabou por - em virtude de um comportamento indigno -
ser privado do seu posto pela temível cólera de Deus.

67. Tal como o pensamento simples, isto é, não passio­


nal, acerca das coisas humanas não força a alma a menos­
prezar as coisas de Deus, assim também o conhecimento
não passional das coisas de Deus não leva a mente a me­
nosprezar as coisas humanas. Com efeito, neste nosso
tempo, aqui neste nosso mundo, a nossa perceção da ver­
dade não se processa senão em sombras e figuras. Daí a
grande necessidade de sermos tocados pelo amor que liga
a mente à contemplação espiritual, e que a leva a preferir o
imaterial ao material, e o inteligível e divino ao sensitivo.
364 PEQUENA FILOCALIA

68. O homem que é capaz de estancar as paixões e de


nutrir pensamentos não passionais percorreu j á um cami­
nho importante. Mas só isso não é ainda suficiente para
esse homem atingir um estado em que todo o seu ser se
encontra inteiramente orientado para o divino. Se já não é
afetado pelos limites impostos pelas coisas humanas, ainda
não é bafejado pelo inefável das coisas divinas. É esse o
caso daqueles que se limitam a ser ativos e ainda não
foram j ulgados dignos do conhecimento. Vivem ainda os
limites de uma dependência: se se abstêm das paixões, ou
é pelo temor do castigo que se abstêm, ou então é pela es­
perança de entrar no Reino.

69. Habitantes que somos deste mundo, caminhamos


nele pela fé e não pela visão. E ao conhecimento espiritual
atingimo-lo como num espelho e em enigma. Temos, pois,
limites que não podemos nem devemos ignorar. Por con­
seguinte, sendo aquilo que somos, e aspirando àquilo a
que aspiramos, impõe-se-nos na nossa quotidianidade
uma intensa aplicação nas coisas divinas. Só assim pode­
remos, meditando-as num diuturno convívio, atingir um
elevado estado de contemplação. Uma vez, porém, ele
atingido, experienciaremos e sentiremos o quanto nos é
dolorosa a separação.

70. Se, depois de termos suprimido em nós as causas


das paixões, decidimos consagrar-nos à prática da contem­
plação espiritual, impõe-se-nos não perder de vista isto: se
essa prática for superficial e, portanto, falha de seriedade e
de dedicação, realizada em tempo insuficiente, sem um
empenhamento total, ver-nos-emos, dentro de não muito
tempo, rendidos de novo ao fascínio das paixões carnais. E
que resulta daí senão o sentimento de uma frustração feita
SÃO MÁXIMO 365

de ausência de frutos e de um presumido conhecimento? !


Será o sentimento próprio dos ressentidos! E acabaremos
por constatar, para nossa desdita, que um conhecimento
desse jaez outro destino não tem senão o de um entene­
brecimento de si mesmo, que vai aumentanto a par e passo
com o aumento da atração pelas coisas materiais e
mundanas.

71 . Uma paixão amorosa contestável manifesta-se na


mente levando-a a ocupar-se da tralha das coisas mate­
riais. Pelo contrário, uma paixão amorosa digna de louvor
é aquela que se eleva às alturas do divino. Com efeito, a
mente, por hábito, concentra-se nas coisas pelas quais se
sente atraída e nas quais se concentra. E, naturalmente, é
para essas coisas, objeto do seu interesse, que ela dirige o
seu desej o e exprime o seu amor. Acontece isso quer
quando se trata das coisas divinas e inteligíveis que lhe são
afins, quer quando estão em jogo as coisas e as paixões da
carne.

72. Quando confessamos a nossa fé no Deus criador,


estamos a exprimir confessionalmente a ideia de que assim
como Ele criou o mundo invisível e o mundo visível, criou
também, analogamente, a alma e o corpo. Ora, se o mundo
visível é belo, quanto mais não o será o invisível? ! E se o
mundo invisível é mais elevado do que o mundo visível,
quanto mais elevado do que ambos não será Deus, que a
ambos criou? ! Sendo essa a perspetiva justa e correta (o
Criador de tudo o que é belo é infinitamente superior à
obra da sua criação) uma questão intrigante se levanta: por
que razão a mente, menosprezando o que é superior a
tudo, se sente atraída pelo que é mais baixo que tudo, isto
é, pelas paixões carnais? Podemos, obviamente, aduzir que
366 PEQUENA FILOCALIA

se trata de uma questão de hábito, isto é, que a mente con­


vive desde o princípio com as paixões, habituando-se
assim a elas sem ter ainda passado pela experiência perfeita
do que é maior e mais elevado que tudo. Pode ser que
tenhamos aí uma explicitação aceitável. Mas seja como for,
pode-se seguramente afirmar isto: se mediante uma longa
e sábia ascese (feita de temperança no concernente aos
prazeres e de concentração-comunhão no respeitante à
experiência do divino) retirarmos a mente, pouco a pouco,
do seu cativeiro passional, ela deixar-se-á embeber pro­
gressivamente nas coisas de Deus e despertará para o
reconhecimento da sua própria dignidade. E, por fim, atin­
girá o elevado estádio em que o desejo se identifica com o
divino.

73. Aquele que de um modo desapaixonado fala dos


pecados cometidos por um irmão, pode fazê-lo por uma
das duas razões seguintes, ou até mesmo por ambas: ou
para o restaurar ou para ser útil a outrem. Mas se, ao falar
desses pecados a esse irmão ou a outrem, não é nenhuma
dessas duas razões que o move, já não está no campo posi­
tivo de uma edificação mútua, mas sim no campo do
insulto ou do ultraje. E, por conseguinte, constitui-se a si
mesmo um pária de Deus. O pecado que condena no
outro está ele próprio a cometê-lo e, ao ser denunciado e
vituperado por outros, acabará vítima do desnorte em que
se constituiu.

74. Não é sempre pela mesma razão que os que pecam


cometem o mesmo pecado. Segundo as circunstâncias,
podem muito bem surgir razões diferentes que os levem a
incorrer na mesma falta. Por exemplo, uma coisa é pecar­
mos pela força do hábito, outra pecarmos levados por um
SÃO MÁXIMO 367

impulso repentino. Neste último caso não escolhemos de­


liberadamente a via do pecado, nem antes nem depois de o
cometermos: pelo contrário, acabamos por sentir profunda
aflição pelo ocorrido. No primeiro caso, já as coisas não se
passam assim: ao pecarmos pela força do hábito, j á pecáva­
mos em pensamento, antes do ato pecaminoso, e conti­
nuamos no mesmo estado mental depois.

75. Quando um homem ao procurar as virtudes tem


como motivação a vanglória, dá com isso mostras de ser a
mesma motivação que o leva a procurar o conhecimento.
Obviamente, um tal homem nada faz nem diz para uma
autêntica edificação, nem dele nem dos outros, pois o seu
fito é ser enaltecido por aqueles que o veem ou que o
ouvem. E a sua sanha acende-se-lhe quando acontece ser
por eles censurado em virtude dos atos que pratica ou das
palavras que profere. Quando isso ocorre mergulha na
tristeza, não por ter falhado ao edificá-los (no fundo, bem
no fundo, não era isso que ele visava) mas por sentir bem
viva a humilhação do fracasso.

76. A avareza, ao ser expressa no concreto da vida, re­


vela-se a si mesma nisto: em receber com alegria e em par­
tilhar com tristeza. Por conseguinte, um homem imbuído
desse espírito é inapto para prover às necessidades dos
outros.

77. Cada homem reage perante o sofrimento de um


modo que lhe é próprio. Há, com efeito, aqui, diferenças,
na medida em que o confronto com o sofrimento nos leva
a suportá-lo em nome de um determinado princípio: ou
pelo amor de Deus, ou pela esperança de vir a obter uma
recompensa, ou pelo medo do castigo, ou por medo dos
368 PEQUENA FILOCALIA

homens, ou por natureza, ou por prazer, ou por um bene­


fício, ou por vanglória, ou por necessidade. E , como é
óbvio, em cada caso pode ser evocado mais do que um
motivo.

78. Uma coisa é sermos libertados dos pensamentos,


outra coisa é sê-lo das paixões. Pode-se dizer que, quando
somos libertados do j ugo que os pensamentos nos im­
põem, isso deve-se, não poucas vezes, ao facto de esses
pensamentos não estarem, eles também, cativos das coisas
que são obj eto das paixões. Paixões essas tantas vezes
ocultas nos recônditos da alma e que desses recônditos
inopinadamente emergem com o reaparecer das coisas. Do
que se acaba de dizer deduz-se o quanto se nos impõe
defender a mente, quando ela se defronta com as coisas. A
custódia da mente é uma necessidade de todos os dias. É
que, facilmente, ela cai cativa da sedução passional das
c01sas.

79. Podemos ter muitos amigos, mas amigo verdadeiro é


aquele que, na hora da provação, está ao nosso lado e é
capaz de suportar connosco, sem desordem nem confusão,
como se fossem suas, as aflições, os constrangimentos, os
infortúnios gerados pela circunstância.

80 . Não desvalorizes nem menosprezes a consciência,


pois ela é sempre a tua melhor conselheira. Com efeito, ela
é a tua confidente (que nunca te abandona) , quando se
trata do julgamento quer de Deus quer dos anj os. Além
disso, ela pode conduzir-te até ao ponto em que te libertas
das máculas ocultas no coração e, na hora da tua partida,
proporcionar-te a liberdade necessária para compareceres
diante de Deus.
SÃO MÁXIMO 369

81 .Queres trilhar a importante senda do conhecimento


que pode libertar-te da paixão da vaidade? Se queres isso,
então não te esq ueças de que te é necessário procurar
sempre, com humildade, nos seres à tua volta, as riquezas
ocultas que neles habitam. E ainda outra coisa: tem pre­
sente que o mundo das coisas e dos seres está marcado,
profundamente marcado, pela diversidade e pela plurali­
dade, que tantas vezes escapa à nossa perceção. E desse
modo conhecerás o salutar espanto que resulta de uma
tomada de consciência da tua ignorância! E, a partir daí,
tornar-te-ás menos arrogante e mais livre na tua inteligên­
cia. E no meio de tudo isso o teu conhecimento alargar-se­
-á e passarás a compreender muitas, grandes e maravilho­
sas coisas. Quando alimentamos a presunção de que
temos um grande saber, estamos com isso a bloquear a
senda do conhecimento que deve ser sempre uma senda
aberta.

82. Quer verdadeiramente ser curado aquele que não


recusa o tratamento. E este implica frequentemente a acei­
tação de remédios dolorosos, com a sua quota-parte de
sacrifício e dor. Sacrifício e dor indispensáveis para sair­
mos de situações asfixiantes. Ora, todo aquele que menos­
preza o tratamento ignora não só a sua eficácia como tam­
bém o benefício que dele poderia tirar ao deixar esta vida.

83. A vanglória e a avareza, em virtude de se gerarem


uma à outra, têm pontos em que significativamente se
tocam. Os vaidosos procuram a todo o custo a riqueza, e
os ricos são extremamente dados à vaidade. Além disso,
uns e outros dão mostras de serem homens amantes da
vida mundana. Ora, do monge pode também apoderar-se
um outro tipo de vaidade: a que resulta do despojamento
370 PEQUENA FILOCALIA

progressivo dos bens matena1s. Ao possuir menos e


menos, mais e mais vaidoso vai ficando. E se lhe acontece
chegar a dispor de dinheiro esconde-o, envergonhado por
ser possuidor de uma coisa não consentânea com o seu
estado.

84. Nisto consiste a vanglória do monge: na vaidade


com que vive a sua virtude e as coisas dela decorrentes. E
nestas coisas se traduz o seu orgulho: na jactância que re­
tira das suas ações retas; na superioridade que sente em
relação aos outros; no modo como atribui a si mesmo o
mérito dessas ações, esquecendo-se de as atribuir à graça
de Deus. E nisto se manifesta a vanglória e o orgulho do
homem mundano: na maneira ufana de ser para si mesmo
motivo de glorificação quando se trata quer beleza, quer
da riqueza, quer do poder, quer da sabedoria.

85. As virtudes dos homens mundanos são uma ima­


gem invertida dos fracassos próprios dos monges. E as vir­
tudes dos monges são uma imitação do avesso dos fracas­
sos dos homens mundanos. Por conseguinte, as virtudes
dos homens mundanos são a riqueza, o prestígio, o poder,
a luxúria, a dita de ter filhos, e outras coisas que tais. Ora,
se essas coisas começam a fazer parte da vida do monge,
este está perdido. Não nos esqueçamos de que as virtudes
caracterizantes do monge são o despojamento, a modéstia,
o não poder, a temperança, a vida austera, e tudo o mais
que daí provém. Quando um amante do mundo, não obs­
tante sê-lo, paradoxalmente atinge esse elevado nível, pode
experimentar e sentir tudo isso como se estivesse a viver
uma enorme deceção, e não poucas vezes corre mesmo o
risco de se suicidar. Já alguns têm-no feito.
SÃO MÁXIMO 371

86. Os alimentos j ustificam-se por duas razões: serem


nutrição e servirem de remédio. Por conseguinte, aqueles
que dos alimentos se servem fora dessas duas razões (abu­
sando do que Deus nos deu para nosso uso, e procurando
unicamente o seu prazer) pervertem o que não deviam
perverter, e com isso estão a condenar-se a si-mesmos. Em
todas as coisas, onde há abuso há pecado.

87. A humildade manifesta-se no modo como oramos e


no conteúdo da oração. A espiritualidade do orante inclui
lágrimas e dor. É que, ao ser um permanente apelo dirigido
a Deus, a oração é incompatível com várias atitudes dema­
siadamente humanas, como sejam: uma confiança ilimi­
tada no poder que se exerce e na sabedoria que se j ulga
possuir; a arrogância decorrente de uma ciência incapaz de
reconhecer os seus limites; um sentimento de superiori­
dade em relação aos outros. Ora, ao comportar-se desse
modo, o orante mais não faz que expor, cruamente expor,
à luz do dia, as sequelas próprias de uma grave enfermi­
dade: a que consiste na paixão do orgulho.

88. No combate travado contra os pensamentos, uma


coisa é combater o pensamento simples e outra coisa
combater o pensamento passional. No primeiro caso
trata-se de um combate profilático, pois tem como obj e­
tivo essencial impedir que um tal pensamento se torne
passional; no segundo caso a luta é contra o pensamento
rendido já à paixão que nutre, pelo que se nos impõe redu­
zir a nada uma tal rendição. Ambas essas formas de com­
bate devem ser tidas em conta. Ambas exigem o exercício
do discernimento e a prontidão para agir.

89.A acédia, quando se manifesta na vida de um ho­


mem, aparece geralmente ligada ao ressentimento. Com
372 PEQUENA FILOCALIA

efeito, quando a mente, no espelho que é o seu (pois é


espelho de si mesma!) vê com desagrado o rosto de um
irmão, mostra com isso ter contra ele ressentimento. Ora,
os caminhos daqueles que nutrem e ruminam rancor são
caminhos que conduzem à morte. Por conseguinte, sendo
o que são, deles nada de verdadeiramente bom resulta: não
admira, pois, que o rancor seja o quinhão do homem que
trilha um tal caminho. E não nos esq ueçamos de q ue o
homem rancoroso é visceralmente inj usto : a sua pátria
não é outra senão a da inj ustiça.

90. Se nutres ressentimento contra alguém, ora por


essa pessoa, pois ao orares impedirás essa tua paixão de se
tornar mais e mais virulenta. E não te esqueças: trata-se de
uma virulência que assume contornos devastadores. De
um homem ressentido dificilmente saem coisas boas, pois
a infelicidade campeia à sua porta. Por conseguinte, vive
profundamente a oração, pois como orante genuíno pode­
rás quebrar o vínculo que une a acédia à lembrança do mal
que te fizeram. E uma vez chegado ao amor abre-se-te a
porta para exercitares a compaixão, com o que apagas
completamente da alma essa tua paixão. E tem em conta
isto: se um outro nutre ressentimento contra ti, sê com­
passivo com ele, faz-lhe bem, sê humilde, vive em paz com
ele: e assim libertar-te-ás da paixão.

91 . Se queres apaziguar um homem que está perturbado


por nutrir inveja a teu respeito, pois vê como sua infelici­
dade aquilo que em ti inveja, terás de te empenhar a fundo
e estar disposto a dispender muito esforço. Provavelmente,
só será possível apaziguá-lo ocultando o que ele inveja.
Mas se o que ele inveja e o faz sofrer é uma coisa benéfica
para muitos, que partido vais tu tomar? Deves ser útil à
SÃO MÁXIMO 373

maioria sem, contudo, na medida do possível, negligenciar


esse homem. Mas tão-pouco te podes deixar levar ao en­
gano pela malícia inerente à paixão de que ele sofre, pois
não é a paixão que tu defendes mas sim o homem a quem
a paixão afeta. Nessa perspetiva, será bom reconheceres,
de um modo humilde, o que possa haver nele de superior
ao que há em ti, e sempre, em toda a parte, e em cada caso,
pôr os seus interesses acima dos teus. E quanto à inveja
que tu próprio possas sentir, poderás apaziguá-la se, em
relação àquele que invejas, te alegrares com ele nas coisas
que também a ele o alegram, e se te afligires com ele nas
coisas que são para ele motivo de sofrimento. Estarás
assim a cumprir a palavra do Apóstolo: «Alegremo-nos
com aqueles que se alegram e choremos com aqueles que
choram» (Rm 1 2, 1 5 ) .

92. A nossa mente experimenta em cada dia a necessi­


dade de travar um combate entre duas forças opostas, cada
uma delas com a sua ação própria. Uma delas suscita a vir­
tude, a outra o vício. Dito de outro modo: trata-se de um
combate que se desenrola entre um anjo e um demónio.
Ela está, contudo, dotada da capacidade e do poder que
lhe permitem acolher ou rej eitar a força que muito bem
entender.

93. As potestades angélicas, sendo nossas aliadas, con­


duzem-nos ao bem. E nessa caminhada para o bem, os
nossos instintos naturais, juntamente com uma vontade
íntegra, são nossos preciosos apoiantes. Pelo contrário, num
quadro diferente desse, o assédio das paixões, apoiando-se
numa vontade pervertida, provoca e propicia os ataques
dos demónios.
374 PEQUENA FILOCALIA

94.Há ocasiões, marcadas por uma excecionalidade, em


que é o próprio Deus que ensina a nossa mente. Ocorre
isso quando ela, vivendo um profundo estado de pureza,
entra numa inefável comunhão com Ele. Outras ocasiões
há em que são os poderes angélicas, ou a natureza parti­
cular das coisas por ela apreendida, que a conduzem à
contemplação das coisas belas.

95. É necessário que a mente, capaz como é do conhe­


cimento espiritual, não só preserve, isentos de paixão, os
pensamentos acerca das coisas, mas também mantenha
livre do erro o que ela vê na contemplação. Além disso, é­
-lhe essencial cultivar de um modo fecundo a necessária
quietude na hora dedicada à oração. Confessemo-lo porém:
nem sempre ela é capaz de concretizar tudo isso livre das
intrusões da carne. Ora, quando tais intrusões ocorrem,
ela defronta-se com um ameaçante entenebrecimento que
facilita as ciladas que lhe são sibilinamente armadas pelos
demónios.

96. Aq uilo que em nós provoca a aflição é diferente da­


quilo que provoca a ira. E além disso, se encararmos a
questão do ponto de vista numérico, são mais numerosas e
frequentes as coisas e as circunstâncias que nos levam a
sentir aflição do que aquelas que provocam em nós ata­
ques de ira. No concernente à natureza das causas, é assi­
sado dar como exemplos os seguintes casos: a perda de
um obj eto precioso, a rutura de uma relação, a morte de
uma determinada pessoa. S ão, com efeito, casos que
podem provocar em nós aflição; mas outros há, com ca­
racterísticas mais ou menos diferentes, mais ou menos se­
melhantes, que podem levar-nos simultaneamente não
apenas à aflição mas também à ira. Pois bem, que na nossa
SÃO MÁXIMO 375

vulnerabilidade não caiamos no desnorte da errância: para


lá nos encaminharemos se fenecer em nós o espírito da
divina filosofia.

97. Quando a mente acolhe os pensamentos que decor­


rem de uma observação das coisas, interioriza natural­
mente as imagens veiculadas por esses pensamentos. Mas
ao contemplá-las espiritualmente passa por uma transfor­
mação que se processa de diversos modos, em consonân­
cia com o que vê. Note-se, porém: ao estar em Deus, no
inefável da comunhão com Ele, despoja-se das imagens e
figuras. Isso p orque, ao contemplar o Ú nico, se torna
única e inteiramente luminosa.

98. A alma cuj a capacidade passional está totalmente


centrada em Deus encontra-se já, segundo os requisitos,
no caminho conducente à perfeição.

99. A mente que, bafejada pela fé, tem consciência não


só da sua ignorância (que é grande) mas também do seu
conhecimento (que é pequeno) está no caminho em que
virá a conhecer Aquele que é o Incognoscível. Trata-se,
com efeito, de uma tomada de consciência essencial, pois
sem ela tudo fica reduzido ao domínio do medíocre. Com
ela, porém, contempla as razões universais dos seres cria­
dos, participantes do mundo criado por Deus, mundo esse
que é o palco da sua glória. Isto é, da sua providência e jul­
gamento. Do seu amor!

1 0 0 . O tempo é cindido em três. A fé coexiste com os


três; a esperança com um só; o amor com os dois restan­
tes. A fé e a esperança duram só até um certo ponto. O
amor, porém, persiste pelos séculos sem fim, estreitamente
376 PEQUENA FILOCALIA

unido ao infinito. Esse infinito que cresce sempre para


além de todo o crescimento. Motivo pelo qual a maior de
todas as virtudes é o amor (cf. l Cor 1 3) .

Quarta centena de cap ítulos sobre o amor

1.No início, ao refletir sobre a infinitude de Deus (esse


mar intransponível e altamente desejado) a mente vê-se
possuída pelo fascínio. Na etapa seguinte dessa reflexão, é
o espanto que dela se apodera. Um indizível espanto ine­
rente à compreensão, que está para além de toda a com­
preensão, de que Deus trouxe os seres do nada à existên­
cia. Trata-se de uma confissão de fé que proclama um
mistério grandioso e tremendo! Note-se bem: uma procla­
mação que corre paralela às palavras da Escritura: «A sua
grandeza é ilimitada; o Senhor é grande e digno de todo o
louvor! » (S I 1 45 ,3) e, como tal, também «Porventura não
sabes? Porventura não ouviste? O Senhor é o Deus eter­
no, o Criador dos confins da terra. É insondável a sua
sabedoria» (Is 40,28) .

2. Com efeito, como lhe seria possível (a ela, mente) não


experienciar e não sentir um tão grande fascínio ao con­
templar esse imenso oceano de bondade cuja infinitude é
do domínio do tremendo e do inefável? ! Ou então, como
poderia ela não passar por um profundo arrebatamento ao
assumir questões verdadeiramente essenciais do seguinte
teor: como e de onde veio este ser, dotado de inteligência e
de razão? E qual a procedência dos quatro elementos de
que os corpos se compõem, sem que nenhuma matéria
tenha pré-existido à sua génese? E que poder é esse que,
tendo-se entregado ao trabalho, deu o ser ao ser? É claro
SÃO MÁXIMO 377

que tudo isso, assim enunciado, é rej eitado por aqueles


que seguem os filósofos gregos, para os quais é impensável
a existência de uma bondade omnipotente e de uma divina
sabedoria, bem como de um conhecimento que ultrapassa
toda a compreensão.

3. Deus criou todas as coisas, as visíveis e as invisíveis, a


partir da fundura do que é eterno. E, na sua bondade infi­
nita, continua a criar, agindo quando lhe apraz por inter­
médio do Logos (que lhe é consubstancial) e pelo Espírito.
E não me interpeles lançando mão de consabidas pergun­
tas, como seja esta: «Porque criou Ele num momento par­
ticular, sendo bom desde toda a eternidade ? » Se fosse
concebida nesses termos a tua interpelação, responder-te­
-ia sublinhando o quanto a sabedoria insondável da essên­
cia divina escapa ao conhecimento humano.

4. De acordo com a sua vontade, e no tempo conside­


rado por Ele como o tempo da criação do mundo, Deus
fez nascer e crescer todos os seres. O mundo criado tor­
nou-se assim terra de habitação de todas as criaturas, cuja
pré-existência era por Ele conhecida desde toda a eterni­
dade. Por conseguinte, é insustentável a ideia de que o
Deus omnipotente não podia ter dado nascimento, quan­
do muito bem entendeu, a todos os seres criados a quem
trouxe à vida.

5.Tens toda a legitimidade intelectual para investigar a


razão pela qual Deus criou o mundo. E podes perfeita­
mente, nessa tua investigação, chegar a adquirir um tal
conhecimento. Mas atenção! Não procures saber como e
porquê Ele criou num determinado momento, pois isso
escapa à tua compreensão, e não apenas à tua mas tam-
378 PEQUENA FILOCALIA

bém à de todos nós! Em tudo que a Deus diz respeito, há


coisas que são cognoscíveis, mas outras coisas há que não
o são. Como homens devemos reconhecer os limites do
nosso conhecimento. E quando se entra no domínio da
especulação há muito boa gente que (no dizer de um dos
santos) pode ser levada, na sua impaciência, ao abismo do
desnorte.

6. Há quem diga que os seres, todos os seres, foram


criados por Deus desde toda a eternidade. Ora isso é im­
possível! E é-o na medida em que é uma impossibilidade
que seres finitos em tudo existam desde toda a eternidade
com Aq uele que é infinito. Ou dizendo o mesmo com
outras palavras: como seria possível serem tais seres cria­
turas se fossem eternas com o Criador? Nesse erro labo­
ram os Gregos, quando declaram que Deus de nenhum
modo é Criador do ser, mas unicamente das qualidades.
Nós, porém, que conhecemos o Deus omnipotente, decla­
ramos que Ele é Criador, e que o é não somente das quali­
dades, mas também do ser das coisas criadas. Por conse­
guinte, há toda a verdade em dizermos que as criaturas
não coexistem com Deus desde toda a eternidade.

7. Em alguns aspetos a divindade e as realidades divinas


são cognoscíveis. Mas só em alguns aspetos! Com efeito,
não podemos deixar de confessar, com a maior modéstia,
que o nosso conhecimento do divino e das realidades divi­
nas está marcado por limites. Inescapavelmente está-o e é
com j úbilo que somos levados a fazer uma tal confissão!
Podemos é dizer que a sua cognoscibilidade se limita à
contemplação da sua essência. Por conseguinte, entramos
no campo do incognoscível quando se pretende atingir
SÃO MÁXIMO 379

um conhecimento daquilo que o divino é na profundidade


da sua essência.

8. Não procures na essência simples e infinita da Trin­


dade Santa o que são as suas condições e propriedades.
Com efeito, se não tiveres em conta um tal interdito, farás
dela, Trindade Santa, um ser compósito, como se de cria­
turas se tratasse. Ora, guarda bem no teu espírito que con­
ceber Deus desse modo é absurdo ! E não só absurdo: é
também sacrílego!

9. Unicamente a essência infinita, omnipotente, cria­


dora do universo, é simples, única, sem propriedades, pací­
fica, estável. Já as criaturas são seres compostos de essên­
cia e de acidente. E como tal são limitadas, submetidas à
mudança, não autónomas. Por conseguinte, sendo o que
são, necessitam para subsistir da divina Providência. Uma
necessidade permanente.

10. Tanto a natureza racional como a sensitiva, ao terem


sido trazidas à existência, receberam de Deus o poder de
conhecer os seres. A racional foi dotada da capacidade
intelectiva; a sensitiva da capacidade sensorial.

11.Deus é o único que é participado. É -o na magnitude


da sua divina Providência. As criaturas, essas, participam e
comunicam: participam no ser e no bem-ser, mas comu­
nicam somente o bem-ser. Enquanto a natureza corpórea
comunica de uma determinada maneira, a incorpórea fá­
-lo de maneira diferente. A comunicação, pois, é intrínseca
a cada uma delas, embora sej am diferentes os modos de
cada uma delas se manifestar. E diferentes os conteúdos de
cada uma das comunicações.
380 PEQUENA FILOCALIA

12. A natureza incorpórea comunica o bem-ser não


apenas ao ser contemplada mas também ao falar e ao agir.
A natureza corpórea, essa, tem os limites que lhe são pró­
prios: só o falar e o agir são-lhe insuficientes. Impõe-se-lhe
ser contemplada para que a comunicação ocorra.

13. Que a natureza dotada de inteligência e razão possa


ou não existir eternamente, não depende de nós, mas sim
da vontade daquele que ao criar criou boas todas as coisas.
Mas j á dependem da nossa vontade, como seres criados
por Ele, o bom uso ou o mau uso das coisas.

14. O mal que afeta os seres criados não se descortina


na essência que é a deles. Descortina-se, sim, no seu com­
portamento falso, pervertido, marcado pela irracionalidade.

15. É necessário que a alma, no seu modo de ser, dê


mostras de se comportar racionalmente. Ora, acontece
isso quando ela faz prevalecer a temperança sobre o de­
sej o, ou vive o amor de tal modo que derrota o ódio, ou
assume uma racionalidade que a aproxima de Deus e a
vivifica no seu quotidiano, no que à oração e à contempla­
ção espiritual diz respeito.

16. Na senda do amor está ainda longe da perfeição, bem


como do conhecimento profundo da Providência divina,
aquele que ao defrontar a provação não é capaz de se
manter perseverante e em vez de caminhar de um modo re­
soluto em frente cai no desnorte da errância. Errância que
o leva a afastar-se cada vez mais dos seus irmãos espirituais.

Todos somos bafejados pela Providência divina. Não


17.
nos esqueçamos, portanto, de que ela visa de um modo
SÃO MÁXIMO 381

particular unir pela fé genuína e pelo amor espiritual


aqueles a quem o mal dilacerou de muitas e variadas ma­
neiras. Jesus, o Salvador, assumiu o sofrimento que sobre
Ele se abateu para nos fortalecer e salvar, no dizer do
Evangelho, para reunir na unidade os filhos de Deus que
estavam dispersos. Por conseguinte, aquele que capitula
no tempo da provação, revelando-se assim como incapaz
de perseverar no meio do infortúnio e de assumir a dor,
não está na senda do amor divino e coloca-se a si mesmo
fora do propósito da Providência divina.

18.Tendo em conta que o amor tudo suporta e é bene­


volente, aquele que não é corajoso na hora da provação, e
age maldosamente contra quem o prejudica, demite-se do
amor e coloca-se fora do propósito da Providência divina.

19.Sê vigia de ti mesmo, pois pode muito bem ser que o


mal que te separa do teu irmão estej a não nele mas em ti.
Por conseguinte, reconcilia-te sem demora com ele, a fim
de não atraiçoares o mandamento do amor.

20. Não menosprezes o mandamento do amor. É me­


diante a sua observância que serás filho de Deus. Mas se o
atraiçoares, descobrir-te-ás filho da geena.

21 . Escuta! O que não poucas vezes contamina o amor


que devemos aos nossos amigos é o triste sentimento da
inveja (invejamos ou somos invejados) ; ou então é a dor de
ser lesado (lesamos ou somos lesados) ; ou então o senti­
mento da ofensa (ofendemos ou somos ofendidos) ; ou
ainda pensamentos de suspeita (suspeitamos ou somos
suspeitos) . Tudo isso nos deve levar, pois, a nos interrogar­
mos a nós mesmos: não teremos já feito ou sofrido coisas
382 PEQUENA FILOCALIA

que nos tenham afastado do amor que devemos aos


nossos amigos ou do amor que deles esperamos? É que o
caminho do amor supõe viver a vida de um modo íntegro
e responsável.

22. Se já conheceste a dor da provação resultante do


comportamento do teu irmão, nutriste ressentimento por
isso? Se sim, já foste levado ao ódio por esse motivo? Pois
bem: se assim foi não te deixes vencer pelo ódio, mas ven­
ce o ódio com o amor! E eis o modo como vencerás: oran­
do a Deus sinceramente por esse irmão. Oração que deve
ser acompanhada pela oportunidade que lhe deves dar de
se defender, e pelo socorro que lhe deves prestar, de molde
a permitir-lhe j ustificar-se. E tu mesmo não percas de vista
a parte de responsabilidade que podes muito bem ter na
provação por que passaste. Suporta-a com paciência e per­
severança até que a nuvem passe.

23. É perseverante e resistente aquele que espera sem


desânimo o fim da provação, e que, graças a essa sua per­
severança, acaba por receber a recompensa devida. A resi­
liência permite-nos não soçobrar no abismo do desespero.

24. O homem perseverante, dotado como é de uma


grande sageza prática, é capaz de suportar até ao fim, sem
quebrantas, tudo o que lhe possa acontecer. Aflições, as
mais diversas, não o levam a capitular, pois mantém-se
revestid o da firmeza que lhe advém do alto, esperando
o que no fim lhe está destinado e que é, segundo o Após­
tolo, a vida eterna (cf. Rm 6,22) . Nas palavras do Senhor: «E
esta é a vida eterna, que eles possam conhecer-te a ti, o
único Deus verdadeiro, e àquele que Tu enviaste, Jesus
Cristo» (Jo 1 7,3) .
SÃO MÁXIMO 383

25. Luta com denodo pelo amor inspirado pelo Espí­


rito, manifestando-o na maneira como te relacionas com
os outros, pois nenhum outro caminho de salvação fo i
concedido aos homens.

26. Ao irmão que ontem tinhas em conta de ser espiri­


tual e virtuoso, não o j ulgues hoje falso e mau, lá porque
tu, levado pelo assédio do maligno, deixaste instilar em ti
uma qualquer aversão resultante de uma falsa calúnia
contra ele. Não te deixes vencer por um ressentimento de
valor duvidoso, mas envereda pelo caminho do amor, per­
severantemente, pensando no bem do outro, e lançando
pela borda fora a aversão de hoje.

27. Insisto, pois: não condenes hoje como falso e mau


aquele de quem ontem louvavas a bondade e glorificavas a
virtude, levado irrefletidamente por uma nova disposição
de espírito na qual o amor deu lugar à aversão. Não censu­
res o teu irmão com o fito de j ustificares o ódio ressentido
que te habita. Concentra-te, não te deixes levar por uma
má emoção passageira, e continua a louvá-lo. Descobre
nele o que de bem nele há. E se assim agires, vencerás a
acédia que se instalou em ti, e poderás de novo viver o
mesmo amor de antes.

28. Quando falas com outros irmãos, não adulteres os


habituais elogios que se dirigem a um irmão. Pode facil­
mente acontecer-te isso quando, subrepticiamente, instilas
censura nas tuas palavras, uma censura motivada pelo res­
sentimento que continua presente em ti pelo mal que te
fizeram. A via que deverás seguir não é a da recriminação,
mas sim a do louvor: louva-o com toda a pureza e ora sin­
ceramente por ele como se fosse por ti mesmo, e podes
384 PEQUENA FILOCALIA

ficar seguro de que, sem demora, te libertarás de uma peri­


gosa aversão.

29. Não digas que não odeias o teu irmão quando estás
pronto a imolar a sua memória no altar do ressentimento.
E diz-me uma coisa: que bem daí pode resultar tanto para
ele como para ti? Não te comportes desse modo! Escuta
antes as palavras de Moisés e deixa que a tua vida seja por
elas pautada: «Não odiarás o teu irmão na tua mente; e se
reprovas o teu próximo vê bem não incorras tu em falta! Eu
sou o Senhor e guardarás os meus decretos» (Lv 1 9, 1 7- 1 8) .

3 0 . Se um irmão, s o b a força d a tentação, insistir em


dizer mal de ti, não traias impulsivamente o amor que lhe
deves, cedendo ao demónio maligno que te perturba em
pensamento. Não trairás o amor se ao seres inj uriado
abençoas, e se ao seres difamado permaneces benevolente.
Esse é o caminho da sabedoria segundo Cristo. Aquele
que não o segue não permanece nele.

Rej eita como não edificantes as palavras de outrem


31 .
que provocam em ti acédia e que suscitam ódio contra um
irmão, mesmo quando parecem ser verdadeiras. Repudia­
-as como se de serpentes mortíferas se tratasse, pois repu­
diando-as afastarás os outros da maledicência e libertarás
a tua alma da malícia.

32.Não provoques o teu irmão com charadas ofensivas,


não suceda que ele te responda na mesma moeda, e assim
se perca o amor entre vós. Em vez disso, na liberdade dada
pelo amor, vai e interpela-o acerca do sucedido, de molde a
poder estabelecer-se um diálogo entre ambos. Poderão
SÃO MÁXIMO 385

assim ser libertados da desinteligência perturbadora e


suprimidas as causas do conflito.

33. Numa situação de conflituosidade com o teu irmão,


examina, com todo o rigor de que és capaz, a tua cons­
ciência. Pode muito bem ser que haja alguma responsabi­
lidade da tua parte na irreconciliação que se gerou. E ao
procederes a um tal exame, não tentes ludibriá-la: estarias
a ser desonesto contigo mesmo e além disso seria inútil,
pois ela, que conhece os teus segredos, te acusaria na hora
da tua partida. E, no dia a dia, antes de essa hora chegar,
tornar-se-ia para ti uma pedra de tropeço na hora da
oração.

34. Quando estás a viver relações pacíficas, esquece as


palavras proferidas pelo teu irmão em tempos de cólera ou
em momentos de desvario. Pode ser, até, que tenham che­
gado aos teus ouvidos relatos dos ultrajes com que preten­
deu atingir-te; ou ecos do mal que de ti a outros disse. Pois
bem: esquece tudo isso e trilha o caminho do qual o ódio
está ausente! Se esse for o teu comportamento experimen­
tarás a fo rça que advém da liberdade do Espírito e não
cairás no desnorte próprio de um ressentimento que mata.

35. Uma alma racional que nutre ódio contra outrem


não pode estar em paz com Deus, o doador dos manda­
mentos. Com efeito, Ele diz: «Se não perdoardes aos ho­
mens as suas faltas, tão pouco o Pai celeste vos perdoará as
vossas» (Mt 6,14- 1 5 ) . Pode acontecer que esse outrem se re­
cuse a estar em paz contigo. Se assim for, há pelo menos
um mínimo que te é exigido: guarda-te do ódio, ora since­
ramente por ele, não fales mal dele aos outros.
386 PEQUENA FILOCALIA

36. Entre os anjos reina uma paz profunda e completa


que tem como fundamento duas disposições essenciais: o
amor que consagram a Deus, e o amor que dedicam uns
aos outros. Pois bem, quando refletimos na história e na
vida dos santos, constatamos o mesmo: desde o princípio
dos tempos que essa tónica do amor predominou entre
eles. Por conseguinte, é profundamente j usto e correto o
que está dito no Evangelho: «Destes dois mandamentos [o
amor total a Deus e o amor ao próximo como a nós mes­
mos] dependem toda a Lei e os Profetas» (Mt 22,40) .

37.Não te enalteças a ti mesmo, levado por um insen­


sato sentimento de superioridade. Se é essa a atitude que
tomou conta de ti, dificilmente te libertarás da tendência
de fazer do teu irmão um obj eto de aversão, desvalori­
zando-o naquilo que ele é verdadeiramente. Que o amor a
ti mesmo não se alimente do desamor votado ao teu
irmão! Vive o amor na liberdade que o Espírito dá, pois só
assim amarás a Deus com todas as tuas forças, com toda a
tua inteligência, com todo o teu ser.

38. Se tomaste a decisão de partilhar a tua vida com


irmãos espirituais, deves, logo desde o início, abster-te de
impor os teus próprios desej os. Se não tiveres seriamente
isso em conta, não penses que poderás, na vida de todos
os dias, viver em paz. Nem a viverás contigo mesmo, nem
com os irmãos, nem com Deus. Que não te convertas,
pois, no labirinto de ti mesmo !

39. Só é capaz de, no Espírito Santo, confessar <<,Jesus é


o Senhor», aquele que, caminhante da fé, concretiza duas
coisas: a vivência perfeita do amor e a ordenação de toda a
sua vida segundo esse amor.
SÃO MÁXIMO 387

40.O amor a Deus e o amor ao próximo aparecem cla­


ramente mencionados nos Evangelhos. Desse amor se
pode dizer que, quando é dirigido a Deus (isto é, o amor
com que amamos Deus) , aspira incessantemente dar asas
à mente para que ela voe para Deus; quando é do próximo
que se trata, leva-nos sempre a pensar bem dele.

41 . Quando a vanglória toma conta de um homem, este


perde completamente a noção da realidade. E não só: uma
vez alienado da realidade, o caminho para se alienar de si
mesmo, isto é, da sua humanidade, abre-se-lhe prodiga­
mente. Pelo que um tal homem facilmente cai cativo da se­
dução das coisas materiais, isto é, dito por outras palavras,
a sua preocupação não tem outro horizonte a não ser o
dos bens temporais inelutavelmente marcados com a di­
mensão do efémero, com o que se revelam dolorosamente
dececionantes. Além disso, j ulgando-se superior aos
outros (pois constrói na sua mente um falso mundo onde
se constitui a si mesmo o centro) sente por eles aversão. E
não poucas vezes (presa fácil como é de pensamentos infa­
mes) nutre rancor e ódio, mostrando assim estar muito
longe de ser uma alma que ama a Deus.

42. Escuta bem, e examina-te no mais íntimo do teu


pensamento racional: se nada dizes nem nada fazes de
infame; se não guardas rancor àquele que te prej udica ou
calunia; se na hora da oração a tua mente se mantém livre
da suj eição da matéria e da atração das imagens (e por
conseguinte está pura) - se é assim que as coisas se pas­
sam contigo, fica a saber que atingiste a medida da impas­
sibilidade e do genuíno amor.

43.Já o sabemos, mas é sempre bom repetir: o combate


não é pequeno, quando se trata de nos libertarmos da van-
388 PEQUENA FILOCALIA

glória! Ora, dela nos libertamos (e voltamos sempre a li­


bertar-nos) não só através de uma prática das virtudes, que
começa no nosso interior antes de se concretizar no exte­
rior, mas também mediante a oração persistente. E o sinal
dessa libertação manifesta-se na capacidade de banirmos
o rancor, quando se trata daquele que disse mal de nós,
caluniando-nos até.

44. Se estás empenhado em ser j usto, isto é, em viver a


j ustiça de que nos fala o Evangelho, começa de imediato
por dar à alma e ao corpo, que fazem de ti aquilo que tu és
na tua humanidade, o que a ambos pertence. À parte
racional da alma dá as leituras, as contemplações espiri­
tuais, a oração. À parte ardente dá o amor espiritual, opo­
sitor do ódio. À parte desejante dá a castidade e a tempe­
rança. E no que ao corpo concerne dá-lhe a nutrição e o
vestuário, pois ele de nada mais necessita (cf. 1 Tm 6,8) .

45.Quando é que a mente se comporta de acordo com


a natureza, isto é, em sintonia consigo mesma? A esse res­
peito há três coisas que podemos evocar. Isso acontece:
quando ela se manifesta capaz de subj ugar as paixões;
quando, nessa sua conquista da liberdade, lhe é dado con­
templar as essências interiores dos seres criados; quando,
nesse dom da contemplação, habita na proximidade de
Deus e vive assim uma íntima comunhão com Ele.

46. Tal como a saúde e a enfermidade se dão a ver no


corpo dos seres viventes, e a luz e as trevas se manifes­
tam aos olhos de todos, assim também a virtude e o vício
são visíveis na alma, e o conhecimento e a ignorância na
mente.
SÃO MÁXIMO 389

47. Há três áreas de reflexão que exigem um particular


empenhamento de cada cristão: uma delas tem a ver com
um estudo aprofundado dos mandamentos; uma outra faz
sua uma reflexão esclarecida sobre as doutrinas; a terceira
visa dilucidar o problema da fé . É óbvio que cada uma
dessas áreas é de importância vital para cada um viver
como cristão. Os mandamentos libertam a mente das pai­
xões. As doutrinas conduzem-na ao conhecimento dos
seres. A fé leva-nos e eleva-nos à contemplação da Santa
Trindade.

48. Há dois tipos de combatentes, quando se trata do


mundo dos pensamentos e das paixões. Há, com efeito,
combatentes que se limitam a repelir os pensamentos pas­
sionais. Outros há, porém, que vão mais longe, sadiamente
mais longe, ao erradicarem as próprias paixões. Quando se
trata dos pensamentos passionais, repeli-los implica recor­
rer à salmodia, à oração, à elevação, ou então, a um outro
expediente apropriado. Quando se trata de erradicar as
paixões há uma exigência sem o cumprimento da qual
nada se consegue: o menosprezo das coisas para as quais
elas nos atraem.

49. Há neste mundo coisas, as mais variadas, pelas quais


nos podemos apaixonar. É assim que, por exemplo, nos
apaixonamos por uma mulher, pelo dinheiro, pela fama, et
cetera. Podemos esquecer a mulher, quando, na sequên­
cia da ascese espiritual, domamos o corpo, como se nos
impõe, pela temperança. Podemos esquecer o dinheiro,
quando disciplinamos o pensamento e o levamos a con­
centrar-se unicamente no que é suficiente. Podemos ficar
indiferentes aos assédios da fama, quando amamos a prá­
tica interior das virtudes, que só D eus vê. E passa-se o
390 PEQUENA FILOCALIA

mesmo com as outras coisas. Aquele que, longe de nelas


cair cativo, antes pelo contrário, delas se desprende, nunca
sentirá aversão por ninguém. É um homem libertado.

50. Aquele que renuncia às coisas, à mulher, ao dinhei­


ro e a tudo o mais, pode fazer do homem exterior um
monge. Já não o pode fazer, porém, do homem interior.
Mas aquele que renuncia aos pensamentos passionais, que
estão na origem de todas essas coisas, faz do homem inte­
rior (a mente) um monge. Desde que o queiramos, pois
depende da nossa vontade, podemos com facilidade fazer
um monge do nosso homem exterior. Incomparavelmente
maior é o combate que temos de travar, quando se trata de
fazer um monge do nosso homem interior.

51. Que nos seja permitida esta interrogação: onde está


o homem que, nesta presente geração, não só se encontra
totalmente livre das imagens conceptuais que têm o
estigma da paixão, mas também j á atingiu as alturas inefá­
veis da verdadeira, espiritual e pura oração? E , contudo,
essa é a marca do monge interior!

52. Numerosas são as paixões que se aninham nas


nossas almas. Elas revelam-se, quando aparecem as coisas
por elas desejadas.

53. Podemos, na ausência das coisas, não ser perturba­


dos pelas paixões e atingir uma impassibilidade temporá­
ria. Mas mal as coisas apareçam, as paixões, de imediato,
arrastam consigo a mente.

54. Não te ufanes pensando ter já atingido a impassibi­


lidade perfeita! É que podes estar completamente iludido
SÃO MÁXIMO 391

em virtude de não estar presente a coisa que suscita a pai­


xão. Só quando te defrontares com ela, e desse confronto
não ficarem em ti os estigmas de uma imaginação perver­
tida, poderás ficar a saber que atingiste as fronteiras da
impassibilidade. Sê, pois, comedido e modesto nas tuas opi­
niões sobre ti mesmo, e foge de toda a presunção. Tem pre­
sente isto: o exercício persistente da virtude erradica as pai­
xões, mas quando se cai na negligência fazemo-las reviver.

55. Aquele que ama Cristo sente-se livremente compe­


lido a imitá-lo, fazendo-o nas circunstâncias mais diversas.
Na vida de Cristo encontramos, com efeito, manifestações
bem claras do modo do seu agir. Em todas as circunstân­
cias fazia bem àqueles com quem se encontrava. E era
paciente, quando a ingratidão e a blasfémia o atingiam du­
ramente. E tudo suportou, sem aj uizar mal de ninguém,
quando ferido e condenado à morte. Eis assim esboçadas
três atitudes próprias de um comportamento que resultava
sempre, em cada circunstância, do amor aos outros. São
essas as obras do amor, fonte de inspiração para todos nós,
sem a prática das quais iludidos vivem aqueles que confes­
sam amar Cristo e o seu Reino. Com efeito, essa é a força
com que nos interpelam as palavras do S enhor: «Não é
aquele que me diz "Senhor, Senhor! " que entrará no Reino
dos Céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai» (Mt
7,2 1 ) . E de novo insiste, com a força única da sua exorta­
ção: «Aquele que me ama guardará os meus mandamen­
tos» Oo 1 4, 1 5) , et cetera.

56.Os mandamentos do Senhor outro fim não visam a


não ser este: libertar o mundo da desordem que destrói e
do ódio que mata e conduzi-lo ao amor de Deus e do pró­
ximo. É daí, de um amor desses, que nasce a luz que es-
392 PEQUENA FILOCALIA

panca as trevas e nos conduz no caminho de um conheci­


mento que opera ativamente.

57.Se és um homem cuj o conhecimento de Deus está


ainda marcado pela incipiência não negligencies o amor e
a temperança. Com efeito, essa dupla, amor e temperança,
ao purificar a parte passional da tua alma, prepara-te para
continuares a trilhar sem desfalecimentos o caminho do
conhecimento ainda não vivido por ti.

58. Esse caminho do conhecimento é assinalado pela


impassibilidade que deve caminhar j untamente com a hu­
mildade. Sem experimentar e sentir ambas, ninguém verá
o Senhor.

59. Tendo em conta que o conhecimento incha mas o


amor edifica, é-nos necessário operar no sentido de unir
ambos (cf. l Cor 8 , 1 ) . Trata-se, com efeito, de uma união
essencial, pois ao consegui-la e ao celebrá-la libertamo­
-nos do orgulho. Libertação essencial que nos permite ser
edificados espiritualmente. E não só isso, mas também nos
capacita para sermos colaboradores na edificação daqueles
de quem nos tornamos próximos.

6 0 . O amor edifica, dissemo-lo antes. E são várias e


ricas as credenciais que, sendo características do amor, são
disso uma manifestação. Efetivamente, o poder ínsito no
amor consiste em ele não ser invejoso, não se irritar contra
os invej osos, não suspeitar mal, não mostrar ostensiva­
mente o que provoca inveja, não nutrir a presunção de
pensar que já chegou ao fim do caminho que trilha (cf. l Cor
1 3) . E desse modo não hesita em confessar a sua ignorân­
cia, com o que liberta a mente de toda a arrogância e a pre-
SÃO MÁXIMO 393

para para progredir na via do conhecimento. É essencial,


pois, que ao trilhar uma tal via se opere essa união entre o
conhecimento e o amor.

61 . Acontece, por vezes, que o homem dotado de


conhecimento resvale para a presunção e daí descambe em
invejoso (sobretudo se se trata de um neófito) . A presun­
ção manifesta-se no nosso interior. A inveja, essa, tanto
no interior como no exterior. No interior, quando senti­
mos inveja dos homens sages; no exterior, quando são os
outros que, carentes de conhecimento, nos invejam a nós.
Assim, pois, o amor derruba essas três coisas. Derruba a
presunção própria dos homens enfatuados, porque o amor
combate o enfatuamento. Derruba a inveja no nosso inte­
rior, porque o amor não cobiça. Derruba a inveja no nosso
exterior, porque o amor manifesta-se como paciente e
bom. Impõe-se, pois, ao homem dotado de conhecimento
tomar a sério o mandamento do amor, pois ao amar o pró­
ximo torna-se para os outros um instrumento de bênção.
E não só para os outros, mas também para si próprio. É
assim que se trilha o caminho da genuína sabedoria.

62. Todo o homem que é agraciado com o carisma do


conhecimento e, não obstante isso, nutre contra outrem
ressentimento, ou rancor, ou aversão, assemelha-se àquele
que lacera os olhos com espinhos e silvas. Por aí se vê
como o conhecimento tem necessidade do amor.

63. Não consagres todo o teu tempo à carne, mas sub­


mete-a a uma ascese que lhe sej a apropriada, isto é, que
tenha em conta os seus limites, isto é, as suas vulnerabili­
dades. E disciplina a tua mente, de tal modo que ela não
divague numa estéril vagabundagem, e possa antes ser
394 PEQUENA FILOCALIA

conduzida à desej ada concentração. Com efeito, lá diz a


Escritura «o exercício físico de pouco serve, mas a piedade
é útil para tudo, pois tem a promessa da vida presente e da
futura» (1Tm 4,8) . Et cetera.

64. Aquele que, incansável e perseverantemente, se con­


sagra à vida interior torna-se casto, paciente, bom, humilde.
E não só: além disso é um contemplativo, um teólogo, um
orante. Outra coisa não diz o Apóstolo, quando nos lança a
sua palavra de exortação : «Caminhai no Espírito, e não
prestareis tributo aos desejos da carne» (Gl 5 , 1 6) . Et cetera.

65. Aquele que ignora o que significa caminhar na força


do Espírito fica indefeso aos ataques dos pensamentos
passionais, e investe todo o seu tempo nas coisas carnais:
glutonaria, deboche, acédia, cólera, ressentimento. O seu
horizonte de vida não é outro senão esse e, por conse­
guinte, mergulha no entenebrecimento da mente. Ou
então, paradoxalmente, segue o caminho de um exagero
da ascese, e com isso acaba por perturbar a reflexão. Im­
põe-se-nos caminhar na via da sageza!

66. A Escritura não interdita coisa alguma do que Deus


nos deu para nosso uso. Condena, porém, a imoderação, o
comportamento insensato, a impudicícia, o desbraga­
mento. Assim, pois, não interdita comidas, nem gerar
filhos, nem ter bens e administrá-los como convém. Mas
interdita a glutonaria, a licenciosidade, a libertinagem, a
ganância, et cetera. As coisas criadas por Deus são boas e
foram-nos dadas para nosso uso: não nos é, pois, interdi­
tado pensar nelas e utilizá-las. O interdito pesa, isso sim,
numa atitude e num comportamento que nos leva a
pensar nelas passionalmente.
SÃO MÁXIMO 395

67. Alguns dos atos que praticamos de acordo com a


vontade de Deus, praticamo-los em obediência aos man­
damentos. Os outros praticamo-los não por uma questão
de observância dos mandamentos mas - por assim dizer -
como uma oferta voluntária. Os primeiros, que decorrem
dos mandamentos, são, por exemplo : amar a D eus e ao
próximo, não cometer adultério, não matar, et cetera. Se os
transgredimos recebemos a j usta condenação. Os segun­
dos, que não decorrem dos mandamentos, são, por exem­
plo: podermos viver a virgindade, o celibato, a pobreza, o
retiro espiritual, et cetera. Se, por fraqueza, falharmos no
cumprimento dos mandamentos de Cristo, não aparecere­
mos diante dele de mãos vazias: com efeito, graças à reali­
zação desses atos (aos quais chamamos oferta voluntária)
atrairemos sobre nós a compaixão do nosso bom Mestre.

68. Aquele que honra o celibato ou a virgindade deve


impreterivelmente, segundo o dizer da santa Escritura,
manter os rins cingidos e acesa a sua lâmpada, pois deve
ser semelhante aos homens que esperam o seu senhor ao
voltar da boda, para lhe abrirem a porta quando ele chegar
e bater (cf. Lc 1 2,35-36) . Os rins cingidos com a temperança;
e a lâmpada mantida acesa pela oração, a contemplação, o
amor espiritual.

69. Há irmãos que, vivendo em comunidade, pensam


ter sido excluídos dos carismas concedidos pelo Espírito
Santo. Ora, passa-se com eles o seguinte: em virtude da
sua falta de fervor na observância dos mandamentos, per­
dem de vista que todo aquele que guarda inalterada a fé
em Cristo reúne em si todos os carismas divinos. Importa­
-nos, com efeito, ter isso em conta, não vá alguém pensar
que lá pelo facto de o seu amor a Cristo (um amor verda-
396 PEQUENA FILOCALIA

deiro) não ser tão ativo quanto pensa que deveria ser, já
está, por isso excluído dos dons do Espírito Santo. Não
pensemos desse modo! E em vez de alimentarmos pensa­
mentos desse jaez, avancemos na via da sensatez, que é a
via da sageza, deixando-nos invadir pelo amor divino, esse
amor que nos introduz no conhecimento dos tesouros de
Deus, em nós ocultos.

70. De muitos e variados modos o apóstolo divino


(Paulo) proclama não só que Cristo habita pela fé nos
nossos corações, mas também que todos os tesouros da
sabedoria e do conhecimento estão ocultos nele. Pois bem:
a partir daí podemos fazer nossa a declaração de que todos
esses tesouros estão também ocultos nos nossos corações.
Note-se, porém, isto : a revelação dessa verdade implica
que em nós ocorra a purificação do nosso ser mediante a
observância dos mandamentos.

71 . E aí tens tu no que consiste o tesouro oculto no


campo do teu coração. Se ainda o não encontraste, não
atribuas essa falta a uma qualquer outra causa que não
seja a preguiça que tomou conta de ti. Com efeito, se já o
tivesses encontrado, terias vendido tudo, e esse campo já
seria teu . Mas abandonaste-o e, pateticamente, procuras à
sua volta, lá onde ele não se encontra. E acabarás dececio­
nado ao não encontrares senão espinhos e silvas.

72. Esse é o motivo das palavras do nosso Salvador, que


declara: «Bem-aventurados os puros de coração, porque
verão a Deus» (Mt 5 , 8 ) . E, sem dúvida, vê-lo-ão quando,
mediante o amor e a temperança, forem purificados. E
quanto maior for essa sua purificação, tanto maior será o
modo como o verão.
SÃO MÁXIMO 397

73. Por conseguinte, em sintonia com essa sua declara­


ção, o S enhor acrescenta: «Vendei os vossos bens ; dai
esmolas; arranj ai bolsas que não envelheçam, um tesouro
inesgotável no Céu, lá onde o ladrão não chega e a traça
não rói; com efeito, onde estiver o vosso tesouro, lá estará
também o vosso coração» (Lc 1 2,33-34) , e ainda « [ . ] dai
. .

como esmola aquelas coisas que estão no vosso interior; e


se agirdes assim tudo para vós será puro» (Lc 1 1 ,41 ) . Mas
isso não acontece automaticamente a qualquer um: aplica­
-se, isso sim, àqueles que deixaram de gastar o seu tempo
nas frivolidades próprias de um exagero posto nos cuida­
dos do corpo. E não nos esqueçamos de que a necessária
libertação da mente (à qual o Senhor chama coração) im­
plica libertarmo-nos tanto dessas frivolidades como do
ódio e da desordem. São, com efeito, essas coisas que, ao
macularem a mente, impedem ver Cristo nela presente
pela graça conferida pelo santo batismo.

74. A Escritura chama «caminhos» às virtudes. Ora o


amor é a maior de todas elas. É por isso que o Apóstolo
nos lança a advertência: « desej ai ardentemente os dons
mais altos; e eu mostrar-vos-ei um caminho ainda mais
excelente» (1 Cor 1 2,3 1 ) . Trata-se, com efeito, de um cami­
nho que nos liberta das coisas materiais e mundanas, e
nos leva a escolher o que é eterno em detrimento do que é
efémero.

75. Quando amamos a Deus, o desej o deixa de exercer


sobre nós o fascínio anterior, e a mente sente-se livre de
muita coisa que a mantinha em cativeiro. Quando ama­
mos o próximo, a ira perde a sua virulência, e o desejo de
prestígio e de riqueza passa por um salutar apagamento.
Esses dois amores são os dois dinheiros que o Salvador
398 PEQUENA FILOCALIA

deu ao estalajadeiro (cf. Lc 1 0,35) , para te acolher e tratar de


ti. Por conseguinte, não sej as ingrato associando-te aos
salteadores. Se o fores sofrerás um novo assalto e serás
deixado à beira da estrada, não já meio morto, mas verda­
deiramente morto.

76.Purifica a tua mente libertando-te da cóle ra, do res­


sentimento, dos pensamentos infames. E se assim for,
conhecerás em ti a presença de Cristo.

77. Quem te iluminou com essa luz, levando-te a crer na


Trindade Santa, consubstancial e adorada? Quem te fez
conhecer a economia da encarnação do Um da Trindade
Santa? Quem te ensinou as coisas relativas à essência inte­
rior de cada ser incorpóreo? Ou as relativas à génese e ao
fim do mundo visível? Ou as relativas à ressurreição dos
mortos e à vida eterna? Ou ainda as relativas à glória do
Reino dos Céus e ao justo j ulgamento final? Pois não foi,
em tudo isso, a graça de Cristo, essa graça que te habita e
que é a garantia do Espírito Santo? ! Que há de maior que
essa graça? Ou que há de melhor que essa sabedoria ou que
esse conhecimento? Ou que há de mais alto que essas pro­
messas? Pois bem, tendo em conta tudo isso, não atribua­
mos senão a nós mesmos as culpas da nossa negligência,
essa mãe das nossas paixões que maculam e entenebrecem
a nossa mente. Assumamos como responsabilidade nossa
esse entenebrecimento, que nos impede de ver a claridade
do sol e de reconhecer a presença da graça em nós.

78. Deus - que na sua misericórdia te prometeu os bens


eternos, e colocou no teu coração o penhor do Espírito -
ordena-te que sej as vigilante da tua própria vida, de molde
SÃO MÁXIMO 399

que o teu homem interior, libertado das paixões, comece


desde já a usufruir dos bens futuros.

79. Se foste j ulgado digno de participar no que há de


inefável na experiência da contemplação divina, então é-te
pedido que te apliques com denodo na vivência do amor e
da temperança. Se assim for, terás pacificadas as paixões
que te assolam e nunca serás privado da luz da tua alma.

80. Com amor refreia a ira da tua alma. Com tempe­


rança desvitaliza o seu desej o. Com oração dá asas à sua
inteligência. E se assim agires, jamais se extinguirá a luz da
tua mente.

81 .Eis as coisas que dissolvem o amor: o desprezo, a


injúria, a arrogância, a calúnia (vise ela a fé ou a conduta) ,
a agressão, a inj úria, et cetera. E tudo isso é assim quer tais
coisas visem a pessoa em causa, quer visem um dos seus
próximos ou um dos seus amigos. Aquele que se comporta
dessa maneira não só anula o amor como revela permane­
cer na ignorância do propósito dos mandamentos de
Cristo.

82. Esforça-te, tanto quanto possas, por amar a todos. E


se ainda o não consegues, então que, pelo menos, a nin­
guém odeies. Mas mesmo isso é algo que só conseguirás
se menosprezares o que é material e mundano. Consegui­
da, porém, essa vitória, descobrir-te-ás como um homem
que está no caminho dos homens libertados.

83. Alguém te ultrajou? Se assim foi, não detestes o


ultraj ante, mas sim o ultraj e e o demónio seu instigador.
Se detestas aquele que te ultrajou, estás a odiar um ho-
400 PEQUENA FILOCALIA

mem e a transgredir o mandamento. E o que esse homem


(o ultrajante) fez em palavras, tu (o ultrajado) estás a fazê­
-lo em ação. Pelo contrário, se observares o mandamento
estás a dar provas de amor. Por conseguinte, cai em ti e,
como um imperativo de consciência, aj uda um tal homem
tanto quanto puderes, de tal modo que o aj udes a libertar­
-se do mal. E tu também te libertarás.

84. Não é vontade de Cristo que, por uma qualquer


futilidade, sintas contra um homem a menor aversão, o
menor azedume, a menor cólera ou o menor ressentimen­
to. Dedica-te à leitura dos Evangelhos e verás como todos
os quatro, de uma ponta à outra, é isso que proclamam.

85. Somos muitos os falantes, mas poucos os fazedores.


E, contudo, ninguém devia, com um comportamento in­
desej ável ditado pela negligência, pôr em causa a Palavra
de Deus. Tenhamos, pois, não só a sinceridade de re­
conhecer as nossas faltas e fraquezas, como também a fir­
meza suficiente para fugirmos da traficância da mentira.
Por conseguinte, não contribuamos com o nosso compor­
tamento para a ocultação da verdade de Deus, a fim de não
sermos acusados nem de transgressores dos mandamen­
tos nem de maus intérpretes da Palavra de Deus.

86. O amor e a temperança libertam a alma do cativeiro


das paixões. A leitura e a contemplação, essas, libertam a
mente do império da ignorância. A oração, por seu lado,
conduz a mente do orante à comunhão com Deus.

87. Quando os demónios se apercebem de que somos


capazes de menosprezar as coisas mundanas para que elas
não nos levem a odiar os outros (com o que diluiríamos o
SÃO MÁXIMO 40 1

amor) tornam-nos alvos das calúnias de outrem, com o


fito de, subj ugados nós pela acédia, nos levarem a odiar os
caluniadores.

88. Nenhum sofrimento da alma é para nós mais pesado


do que o resultante da calúnia infame, quer esta nos atinja
na fé quer na conduta. Com efeito, ninguém é capaz de,
uma vez por ela atingido, lhe ficar indiferente, a não ser
aquele que, como Susana (cf. Dn 1 3) tenha os olhos firme­
mente fixados em Deus. De facto, unicamente Ele tem o
poder não só de nos resgatar dos tentáculos do mal (tal
como a resgatou a ela) mas também de nos persuadir a
todos da verdade (tal como aconteceu com ela) . Tudo coisas
essas que dão energia para continuar na senda que en­
cetámos, pois encorajam a alma com a força da esperança.

89. Quanto mais oras com toda a tua alma por aquele
que te caluniou, mais Deus desvenda a verdade àqueles
que tinham ficado escandalizados.

90. Deus é o único que é bom por natureza. Por conse­


guinte, unicamente aquele que imita Deus é bom tanto na
vontade como no propósito, em virtude de ser animado
pela intenção de unir os maus Àquele que é bom por na­
tureza, a fim de que eles também possam tornar-se bons.
Por esse motivo, quando por eles injuriado, abençoa; per­
seguido, resiste; difamado, intercede; levado à morte, ora.
Por conseguinte, é belo tudo fazeres a fim de não traíres o
amor, que é o próprio Deus.

91 . Os mandamentos do Senhor ensinam-nos a fazer


um uso sensato das coisas que estão no meio de nós. Ora,
quando o nosso uso das coisas é assim marcado pela sen-
402 PEQUENA FILOCALIA

satez, a nossa alma vive com intensidade a sua própria


purificação. E um tal estado de pureza gera a impassibili­
dade, de onde provém o perfeito amor. Estamos desse
modo a trilhar o caminho essencial.

92. Aquele que, numa determinada circunstância, passa


por uma dura provação e é incapaz de fechar os olhos à
falta real ou aparente de um amigo, não atingiu ainda a
impassibilidade. Com efeito, as paixões tumultuosas enca­
fuadas na alma cegam a reflexão e impedem-nos de ver a
luz da verdade e de discernir o que é bom e o que é mau.
Um homem desses, cativo do seu cativeiro, é incapaz de
atingir o perfeito amor, esse amor que põe fim ao medo do
Julgamento.

93. Nada é tão precioso como um amigo fiel, pois ele


não perde de vista que as infelicidades do seu amigo são
também suas. E resiste com ele, disposto a sofrer até ao
limite.

94. Numerosos são os amigos: são-no no tempo da


prosperidade. Mas, quando chega o tempo das provações,
dificilmente encontramos um único.

Devemos amar cada homem entranhadamente, o


95.
que implica pôr unicamente em Deus a nossa esperança,
honrá-lo com todas as nossas forças. Com efeito, quando
estamos sob a sua guarda todos os amigos nos rodeiam e
todos os inimigos são impotentes contra nós. Mas quando
vivemos situações de dolorosa solidão, todos os amigos se
afastam de nós e todos os inimigos prevalecem contra nós.

96.Há quatro formas principais de solidão. A que ema­


na da economia divina (de que o Senhor Jesus é exemplo,
SÃO MÁXIMO 403

pois intensamente a viveu) a fim de, pelo abandono, serem


salvos os que são abandonados. A que implica uma prova­
ção (de que são exemplos os casos de Job e de José) cuj o
objetivo final é trazer à luz d o dia o modo como uns são
pilares de coragem, enquanto outros são pilares de casti­
dade. A que supõe a correção paterna (como no caso do
apóstolo Paulo) a fim de, na humilhação, patentearmos a
superabundância da graça. E, por fim, aquela em que
Deus se afasta (como no caso dos j udeus) de molde a en­
contrarmos na rejeição o caminho do arrependimento ge­
rador de vida. Ora, digamo-lo enfaticamente: todas essas
formas de abandono são salutares e prenhes da bondade
divina! Em todas elas, ainda que por vezes de um modo
oculto, o amor de Deus por nós está operante.

97. Unicamente aqueles que observam com rigor os


mandamentos, e são iniciados no conhecimento de como
Deus é j usto, não abandonam os amigos, quando Deus, na
sua Providência misteriosa, permite que eles sejam tenta­
dos. Pelo contrário, aqueles que desprezam os mandamen­
tos e não são iniciados no modo como Deus j ulga, só se
alegram com os amigos quando eles prosperam. Mas
quando a provação se abate sobre eles, com a sua inevitá­
vel carga de sofrimento, abandonam-nos, chegando até ao
ponto de, por vezes, começarem a fazer parte do grupo dos
adversários.

98. Os que amam a Cristo amam também, sem reticên­


cias, todos os seres, mesmo quando não são amados por
todos eles. Os amigos do mundo, esses, tão pouco são
amados por todos. Há, porém, uma substancial diferença
entre uns e outros: os que amam a Cristo perseveram até
ao fim no seu amor a Deus e ao próximo; mas os amigos
404 PEQUENA FILOCALIA

do mundo, cativos como são do que há de imundo no


mundo, são incapazes de uma tal perseverança. E facil­
mente são levados a agir de um modo infame, degla­
diando-se uns aos outros. Com efeito, outro horizonte não
têm a não ser o da rutura, esquecendo-se de que ao rom­
perem com os outros estão a romper com o que poderia
haver de verdade em si mesmos.

99.Um amigo cuja fidelidade se mantém inatacável no


meio das mais variadas atribulações por que passa um seu
amigo é, incontestavelmente, um protetor sólido. E mostra
ser também um bom conselheiro e uma aj uda fraterna
para esse seu amigo, quando os tempos difíceis da prova­
ção se desvanecem, dando lugar aos da prosperidade. E é
ainda um defensor compadecido, uma verdadeira provi­
dência, em situações em que o seu amigo sofre de um
determinado mal.

1 0 0 . São já muitos os que têm dito muitas coisas acerca


do amor, compondo acerca dele muitos discursos. Mas se
é de facto o amor que tu procuras e não apenas palavras
sobre ele, então poderás encontrá-lo numa comunidade
de discípulos que tomem a sério as palavras do Mestre.
Com efeito, trata-se de um Mestre que não apenas falou
sobre o amor mas que também o viveu incondicionalmen­
te. E deste modo, uma comunidade que dele se reclama
viverá esse amor, do qual um discípulo, o apóstolo Paulo,
diz: «Ainda que eu tenha o dom da profecia, e conheça
todos os mistérios e toda a ciência, se não tiver amor, isso
de nada me serve» (l Cor 1 3 ,2) . Por conseguinte, aquele que
tem o amor tem o próprio Deus, visto que «Deus é amor»
(1Jo 4,8) . A Ele, pois, seja a glória e o poder para sempre.
Ámen.
SÃO JOÃO DAMASCENO
Nosso pai en tre os san tos
SÃO JOÃO DAMASCENO (650-750) . originário de uma família no­
bre, árabe mas cristã, nasceu em Damasco, na Síria. Após ter sido
colocado junto com o seu pai ao serviço do califado, retirou-se
por volta do ano 700 para o mosteiro de São Sabas, nos arredo­
res de Jerusalém. Ali foi ordenado pelo patriarca João desta Sé.
Os seus escritos foram muito apreciados. tanto na Igreja bizanti­
na como também na Igreja latina, sobretudo a partir do século XII.
João Damasceno utiliza largamente as fontes patrísticas, usando
também a terminologia e a teologia dos Padres da Igreja.
Discurso útil à alma
[numeração da ed. francesa]

1 . Tenhamos presente que o homem é um ser dicotó­


mico, isto é, composto de alma e de corpo; e que é possui­
dor de duas ordens de sentidos e de duas ordens de virtu­
des. A alma, essa, tem cinco sentidos e o corpo igualmente
cinco. Os sentidos da alma (a que os entendidos chamam
poderes ou faculdades) são: o pensamento, a razão, a opi­
nião, a fantasia, a perceção. Os sentidos do corpo são: a
vista, o olfato, o ouvido, o paladar, o tato. Ora, sendo duas
as ordens de virtudes, daí decorre serem igualmente de
natureza dupla os seus vícios. É, por conseguinte, necessá­
rio que todos saibam, sem equívoco, quais são as virtudes
da alma e quais são as do corpo, bem como quais são as
paixões da alma e quais são as do corpo.

2. As virtudes que atribuímos à alma são essencial­


mente quatro, tidas todas elas como virtudes cardinais: a
coragem, a prudência, a moderação, a j ustiça. Delas nas­
cem as outras virtudes que, igualmente, também lhe são
atribuídas: a fé, a esperança, o amor, a oração, a humildade,
a doçura, a longanimidade, a paciência, a bondade, a
calma, o conhecimento do divino, o fervor, a simplicidade,
a serenidade, a autenticidade, a modéstia, a sobriedade, a
liberalidade, a sinceridade, a prodigalidade, a compaixão, a
misericórdia, a munificência, a intrepidez, a benignidade, a
408 PEQUENA FILOCALIA

compunção, a pudicícia, a piedade, a procura dos bens


futuros, a apetência pelo Reino de Deus, o desej o da
adoção filial.

3. As virtudes do corpo são particularmente vocacio­


nadas para, no quotidiano de um homem, o levarem à
prática do que é justo e belo. Prática essa que passa inevi­
tavelmente pelo menosprezo daquilo que é mundano, me­
díocre, efémero. Trata-se de virtudes praticadas com conhe­
cimento de causa e de acordo com a vontade de Deus, sem
hipocrisia e sem o desejo de agradar aos homens, pelo que
são essenciais para nos levarem a progredir numa vida hu­
milde, e a crescer na senda essencial da impassibilidade.
São elas: o autodomínio, o jejum, a fome, a sede, as vigílias,
o ficar de pé toda a noite, o aj oelhar-se, o não se lavar, o
usar uma única veste, o comer alimentos secos, o comer
lentamente, o beber apenas água, o dormir sobre o solo, a
pobreza, o nada possuir, a austeridade, o desdém pela apa­
rência pessoal, o não amor próprio, o isolamento, a quie­
tude, a reclusão, a indigência, o nada exigir, o silêncio, o
trabalho manual, a ascese penosa do corpo, et cetera. Quan­
do o corpo é forte, e portanto dotado da capacidade de
resistir, a prática dessas virtudes reveste-se de uma par­
ticular importância para vencermos as paixões carnais.
Mas, pelo contrário, quando o corpo é fraco (note-se,
porém, que mesmo no meio da vulnerabilidade um ho­
mem pode, com a aj uda de Deus, vencer as paixões) tais
práticas não se impõem do mesmo modo; nesses casos, a
humildade genuinamente assumida e a ação de graças
agradável a Deus são seus sucedâneos valiosos e inteira­
mente satisfatórios.

4.A partir do já dito, importa ainda acrescentar alguma


coisa acerca dos vícios ou das paixões da alma e do corpo.
SÃO JOÃO DAMASCENO 409

As paixões da alma são o esquecimento, a negligência, a


ignorância. São três vícios que roubam a visão ao olho da
alma (a mente) que, ao ficar como cega é submetida a todo
o tipo de paixões, quais sej am: a impiedade, a opinião falsa
(isto é, a heresia) , a blasfémia, a ira, a cólera, a amargura, a
irritabilidade, a misantropia, o rancor, a calúnia, a conde­
nação, a tristeza irracional, o medo, a cobardia, a disputa, a
rivalidade, a inveja, a vaidade, o orgulho, a hipocrisia, a
mentira, a infidelidade, a avidez, o amor da matéria, a
paixão por alguma coisa, a posse das coisas terrenas, a
acédia, a mediocridade da alma, a ingratidão, o murmúrio,
a alienação, a presunção, a arrogância, a fanfarronice, o
amor do poder, o desejo de bajular, a manha, a insolência,
a insensibilidade, a lisonja, o fingimento, a dissimulação, a
duplicidade, a conivência da parte passional da alma com
os pecados, a prática incessante desses pecados, o desvario
dos pensamentos, o egoísmo (essa mãe dos vícios) , o amor
do dinheiro (essa raiz de todos os males) e, por fim, a malí­
cia e a perversidade.

5. As paixões do corpo são a gula, a glutonaria, o gozo,


a embriaguez, o comer às escondidas, o amor do prazer em
todas as suas formas, a impudicícia, o adultério, o impu­
dor, a impureza, o incesto, a pederastia, a bestialidade, a
avidez multiforme, o roubo, o sacrilégio, a ladroeira, o ho­
micídio, o dar largas a todos os prazeres da carne, a con­
sulta dos oráculos, os bruxedos, os agoiros, os vaticínios, o
amor da aparência, a frivolidade, a indolência, o uso dos
cosméticos, a massagem da face, a ociosidade irresponsá­
vel, os divertimentos, os j ogos de azar, a perversão inerente
aos prazeres mundanos, a corrupção que decorre dos pra­
zeres corporais e que, ao agir na mente, a torna terrestre e
reles, impedindo-a de se elevar até Deus e de praticar as
41 0 PEQUENA FILOCALIA

virtudes. Ora, as raízes de todas essas paixões (ou, dito


noutros termos, as suas causas primeiras) são o amor do
prazer, o amor da glória, o amor do dinheiro (origem de
todos os males) . Impõe-se-nos ainda evocar uma trindade
maléfica de gigantes (assim, com efeito, os nomeia Marcos,
o sapientíssimo asceta) que levam o homem a cometer um
incalculável número de pecados: falo do esquecimento, da
negligência e da ignorância, essa trindade maléfica gerada
pelo prazer, pelo conforto, pela vanglória, pela distração.
Ora, a causa primigénia - qual mãe degenerada - de todos
esses vícios é, já o dissemos, o egoísmo, isto é, o amor irra­
cional do corpo com o seu pendor para a paixão. E, além
disso, há ainda a ter em conta a devassidão e o desleixo da
mente (devassidão e desleixo que se manifestam a par e
passo com a grosseria e a obscenidade) que, juntamente
com a libertinagem no falar e no rir, estão na origem de
muitos vícios e de não poucos pecados.

6. Acrescentemos a tudo o que já dissemos uma obser­


vação essencial cuja importância nunca é demais enfatizar:
em virtude de o amor dos prazeres ser pluriforme e como
tal se manifestar de muitas e variadas maneiras, não
poucas vezes de um modo doentio, ele é permanentemen­
te uma ameaça para a saúde da alma. Facilmente a engana,
num ludíbrio que é tanto mais forte quanto mais fraco for
nela o temor de Deus. Ora sabemo-lo bem: esse temor é
princípio de sabedoria e, graças ao amor de Cristo, é fonte
de uma vida pautada pela sobriedade vigilante e, por isso,
sadiamente fecunda na sua prática das virtudes. Há, com
efeito, miríades de prazeres que seduzem os olhos da alma:
prazeres do corpo, das coisas materiais e mundanas, da
sensualidade, da glória, da preguiça, da ira, do poder, da
avareza, da avidez. Mundo esse de prazeres cuja aparência
SÃO JOÃO DAMASCENO 41 1

é profundamente enganadora por ser atraente e amável,


capaz até mesmo de seduzir aqueles que os temem, mas
que não lhes resistem em virtude de não amarem entra­
nhadamente a virtude. Digamo-lo claramente: todas as re­
lações terrestres, isto é, relações que se movem na baixeza
do que é meramente terráqueo, são incapazes de se eleva­
rem às alturas do que é digno e, no seu pendor para as
coisas materiais, abrem as portas do prazer e das delícias
àquele que por elas se apaixona, com o que evidenciam
quão inútil e mesmo pernicioso é o lado desejante da alma
ao dar lugar ao ardor e à cólera, à melancolia e ao ressen­
timento. E, quando o pendor para as paixões descamba
num hábito instaurado, por pequeno que sej a um tal
hábito, impercetivelmente nos conduzirá a pendores irra­
cionais, levados pela perspetiva sedutora do prazer que o
habita.

7. Efetivamente, como já se disse, o prazer proporcio­


nado pela voluptuosidade é multifacetado: não se cumpre
somente na impudicícia e nas outras formas de gozo cor­
poral, cumpre-se também em todas as paixões. Com efeito,
a castidade não consiste somente em nos abstermos da
impudicícia e dos prazeres genitais: ela vai mais longe do
que isso e implica também a abstenção de todos os outros
prazeres. Por conseguinte, aquele que é prisioneiro do
amor da riqueza, dos bens materiais, da avareza, é um de­
generado. Com efeito, enquanto o outro é prisioneiro do
corpo, este é-o da riqueza. Paradoxalmente, é ainda mais
degenerado, na medida em que, no seu caso, a natureza
não o condiciona com uma força tentacular tão grande. O
cavaleiro desaj eitado (que nos seja permitido lançar mão
desta similitude, pois ela parece-nos não enfermar de falta
de sensatez) não é aquele que é incapaz de dominar o ca-
41 2 PEQUENA FILOCALIA

valo que, na sua fogosidade, é quase indomável, mas sim


aquele que se revela inapto para submeter o cavalo domes­
ticado e dócil. Ora, é do domínio da evidência que o desejo
das riquezas tem a marca da vacuidade e não é conforme à
natureza, pois não é desta que ele tira a sua força, mas sim
de uma vontade pervertida. Motivo pelo qual aquele que
se deixa vencer por uma tal paixão peca imperdoavelmen­
te. Por conseguinte, é-nos necessário ter presente (e isso
de um modo meridianamente claro) que não é apenas nas
delícias e no gozo corporal que o amor do prazer se define,
mas em tudo o que é objeto do amor e da inclinação pas­
sional da alma. Precisamos estar disso conscientes para
melhor podermos discernir as paixões nas três partes da
alma e expô-las de um modo rigoroso.

8 . A alma, por ser tricotómica, divide-se em: razão,


ardor, desej o. Os pecados da razão podem ser nomeados
assim: descrença, heresia, demência, blasfémia, ingratidão,
complacência (entenda-se complacência como conivência
com os pecados provenientes da parte apaixonada da
alma) . O tratamento e a cura desses vícios encontram-se
na fé inquebrantável em Deus, bem como no reconheci­
mento da verdadeira doutrina, no estudo contínuo das
palavras vivificadas pelo Espírito, na oração pura e inces­
sante, na ação de graças rendida a Deus. Os pecados do
ardor, esses, são: dureza de coração, ódio, falta de compai­
xão, rancor, invej a , homicídio - numa palavra, a prática
continuada de vícios desse jaez. O seu tratamento e cura
são: a filantropia, a caridade, a doçura, o amor fraterno, a
compaixão, a resignação, a bondade. Os pecados do desejo,
esses, são: gulodice, glutonaria, embriaguez, impudicícia,
adultério, impureza, impudor, amor das riquezas, avidez,
obsessão pela fama, bem como pelo ouro, pelos bens ter-
SÃO JOÃO DAMASCENO 413

renos, pelos prazeres da carne. O tratamento e cura desses


vícios são: o jej um, a temperança, a ascese, a privação da
posse, a distribuição de dinheiro pelos pobres, o anelo dos
bens imperecíveis do século futuro, a procura do Reino de
Deus, o desejo da comunhão filial com Deus.

9. Impõe-se-nos, pois, interiorizar o conhecimento rela­


tivo aos pensamentos passionais, pois só assim poderemos
identificá-los. Identificação essencial para o combate a
travar. Com efeito, é-nos necessária a capacidade do dis­
cernimento, pois sem ele será bem alto o tributo que paga­
remos à força do pecado que nos enreda num labirinto de
desnorte. De facto, como poderemos desarmar pensamen­
tos desse j aez sem os conhecer? Sej amos, pois, lúcidos,
deixando-nos iluminar pela luz do Espírito.
Ora, os pensamentos catalisadores do mal são em
número de oito: o pensamento da glutonaria, o da impudi­
cícia, o do amor das riquezas, o da cólera, o da melancolia,
o da acédia, o da vanglória, o do orgulho. E não depende
de nós sermos ou não obj eto do seu assédio : ninguém
pode gabar-se de estar livre dos seus ataques. Mas que eles
façam morada em nós ou não, que suscitem paixões ou
não, j á são coisas que estão ao alcance do nosso poder.
Tenhamos bem presente a necessidade de não confundir
o que está em j ogo : uma coisa é a provocação que nos
assedia, outra coisa a nossa aquiescência; uma coisa é o
combate que travamos, outra coisa é a paixão e a compla­
cência conducentes ao ato. Tal como uma coisa é o cum­
primento do ato, outra coisa o cativeiro. A provocação, ver­
dadeiro assédio, consiste naquilo que o inimigo nos
propõe; por exemplo: «faz isto» ou «faz aquilo». E lá está,
no Evangelho, a insinuante provocação lançada pelo ini-
414 PEQUENA FILOCALIA

migo ao Senhor nosso Deus: «Diz a estas pedras que se


tornem em pães» (Mt 4,3) .
Que nos seja permitido repetir o que j á se disse: a pro­
vocação não depende de nós. Mas a aquiescência, essa, já é
sinal do modo como reagimos : com o sim da aceitação
podemos, até, mostrar um certo deleite na receção do pen­
samento inoculado em nós pelo inimigo, numa fruição
antecipada do prazer. A paixão, habitualmente, supõe o
cultivo de um hábito que acaba por se traduzir numa ren­
dição operada mediante a imaginação, uma imaginação
estimulada, sempre e de novo, pelo assédio do inimigo. O
combate travado, esse, exprime-se sob a forma de uma re­
sistência: a da mente na sua luta para, com denodo, erradi­
car a paixão, isto é, o pensamento passional.
Trata-se, com efeito, de uma ingente luta onde ou se
vence ou se é vencido. A ela se refere o apóstolo Paulo com
as incisivas palavras: «A carne deseja contra o espírito e o
espírito contra a carne. Opõem-se mutuamente» (Gl s , 1 7) .
Viver nesse registo (registo q u e não podemos ignorar)
implica não perder de vista a existência de um insidioso
cativeiro resultante do desenraizamento violento e invo­
luntário do coração, que se descobre a si mesmo tiranizado
pela presunção e alienado pela arrogância. Enquanto a
aquiescência é o assentimento à paixão acalentada pela
mente, o cumprimento é a execução do ato inerente ao
pensamento passional, a que se deu acolhimento.

10. Por conseguinte, o homem que reage impassivel­


mente ao primeiro assédio - isto é, à provocação - repe­
lindo-o de imediato com a força da contestação, erradica
de um só golpe os ataques que sobreviriam a seguir.
As oito paixões, essas, devem ser erradicadas como
segue. A glutonaria com a temperança; a impudicícia com
SÃO JOÃO DAMASCENO 415

o desejo de Deus e a expectativa dos bens do mundo fu­


turo; o amor das riquezas com a compaixão pelos pobres;
a cólera com a filantropia; a melancolia gerada pelo mun­
do com a alegria doada pelo Espírito divino; a acédia com
uma perseverante ação de graças rendida a Deus; a van­
glória com a prática oculta das virtudes, fecundada pela
oração incessante que brota de um coração contrito; o
orgulho com uma atitude de não julgamento e de não des­
prezo dos outros, o que implica um afastamento da hipo­
crisia e uma rejeição de todo o espírito de superioridade.
D esse modo, a mente, liberta do cativeiro das paixões a
que nos referimos, e concentrada em Deus, vive uma vida
bem-aventurada e recebe as arras do Espírito Santo. E ao
partir desta vida, na impassibilidade que fez sua e no
conhecimento verdadeiro que adquiriu, terá diante de si o
caminho luminoso conducente à Trindade Santa. E , na
companhia dos anjos divinos, experimentará o que há de
inefável no tempo, fora do tempo, iluminado por uma luz
que não se apagará.

11.Como j á se disse, a alma é tricotómica, e as suas três


partes são a razão, o ardor, o desej o. Quando o ardor é
convertido pela caridade e pela filantropia, e o desej o pela
catarse e pela castidade, acontece uma coisa de extraordi­
nário valor: a iluminação da razão. Mas, pelo contrário,
quando o ardor é sequestrado pelo ódio, e o desej o pela
libertinagem, acontece uma coisa verdadeiramente deplo­
rável: o entenebrecimento da razão.
Com efeito, a razão é em si sã, sábia, luminosa, quando
o império das paixões lhe está submetido. Discerne então,
espiritualmente, a essência dos seres criados por Deus, e
eleva-se às alturas da bendita e santa Trindade. O ardor,
por seu lado, desabrocha segundo a natureza quando ama
41 6 PEQUENA FILOCALIA

todos os homens e não é atormentado por nenhum deles,


e não guarda ressentimento contra ninguém. O desej o,
esse, comporta-se segundo a natureza, isto é, racional­
mente, quando, rendido à humildade, à temperança e à
privação da posse, erradica as paixões (isto é, o prazer da
carne e a obsessão das riquezas e da glória efémera) e se
deixa fervorosamente inebriar pelo amor imortal e inson­
dável de Deus. Quando cai, porém, num lamentável des­
norte por não se comportar segundo a natureza, mani­
festa-se triplamente: quer procurando o prazer da carne,
quer o da vanglória, quer o da riqueza. Ora, ao agir desse
modo está a comportar-se irracionalmente e a abrir as
portas, nessa sua irracionalidade, para o menosprezo de
Deus e dos seus mandamentos. Cativo desse desnorte, o
desej o esquece a nobreza da sua origem divina, torna-se
para o próximo um animal selvagem, e entenebrece cada
vez mais a razão, impedindo-a assim, mais e mais, de olhar
na direção da verdade. Pelo contrário, aquele cuj o senti­
mento se eleva, de um modo nobre, mais alto do que tudo
isso, participa desde agora - já o dissemos - na bem-aven­
turança do Reino do Senhor e vive uma vida fecundada
pela esperança do mundo novo destinado aos que amam
a Deus. Pois bem: que disso possamos nós também ser jul­
gados dignos, pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ámen.

12. Obviamente, devemos estar conscientes de que não


nos é possível atingir a medida de uma tal virtude se não
porfiarmos (o combate é árduo e como tal exigente!) pe­
nosamente, durante toda a nossa vida. Esse é o caminho
estreito que se nos impõe seguir, o caminho da verdadeira
vida, pois fora dele é a perdição que nos espreita. Porfie­
mos, pois, por segui-lo, empenhando-nos na nossa quoti-
SÃO JOÃO DAMASCENO 41 7

dianidade em coisas essenciais como sejam a compaixão, a


temperança, a oração, o amor, além de outras virtudes sin­
tonizadas com essas. Mas uma pessoa pode praticar essas
virtudes num grau maior ou menor: a compaixão, por
exemplo, terá os seus momentos mais ou menos fortes
para ser exercitada, segundo as circunstâncias. Isso, con­
tudo, não nos deve levar ao esquecimento de que ela, com­
paixão, não pode ficar permanentemente submetida a uma
prática marcada unicamente pela intermitência. Se assim
for, o risco é muito sério e profundo: uma compaixão que
só episodicamente se manifesta não dará mostras de ser
uma pobre compaixão? E aqueles que a praticam merece­
rão o nome de compassivos, sobretudo quando os seus
gestos não se realizam, como é necessário, de um modo
que agrada a Deus?
Disto não podemos fugir: o bem não é verdadeiro bem
quando deixa de ser praticado como se impõe. E só é ver­
dadeiro quando não procura a recompensa, nem o elogio
dos homens, nem a vanglória (essa irmã gémea da notorie­
dade ! ) tão desej ada e procurada nos ínvios e tortuosos
caminhos da violência, da cupidez, da inj ustiça. E não nos
esqueçamos de que, na verdade, o mandamento de Deus
não se esgota no ato em si da realização do bem: um tal
mandamento vai mais longe do que isso ao visar igual­
mente a finalidade subjacente a um tal bem, isto é, o que é
que resulta do ato bom que eu pratico.
E lá temos os santos Pais a afirmar que, quando a
mente se esquece do fim visado pela piedade, a obra ine­
rente à virtude torna-se vã. Com efeito, os gestos que se
realizam sem discernimento e sem objetivo, não somente
são inúteis como também são prej udiciais. São-no mesmo
quando possam ter a aparência de gestos bons. Inversa­
mente, e de um modo paradoxal, um gesto taxado de mau
41 8 PEQUENA FILOCALIA

pode não o ser quando é realizado com uma finalidade: ser


feito segundo Deus. Há que não tomar as aparências pela
realidade. Seja disso exemplo o gesto daquele que entrou
num lugar nada recomendável e libertou a prostituta da
perdição. De onde se infere não ser compassivo aquele que
só raramente exerce a compaixão, nem temperante aquele
que só episodicamente pratica a temperança. É, porém,
virtuoso aquele que, ao longo de toda a sua vida, de um
modo diuturno, visa em todas as coisas a virtude, e o faz
com um discernimento seguro.
Com efeito, o discernimento de que falamos é a maior
de todas as virtudes. Dele se pode até dizer que é rei entre
as virtudes, a virtude das virtudes. Em registo oposto, mas
de um modo análogo, podemos também falar acerca dos
vícios: não chamamos prostituto, ou ébrio ou mentiroso,
àquele que se deixou cair acidentalmente num desses
vícios, mas sim àquele que neles cai com frequência, tor­
nando-se assim um incorrigível viciado.

1 3 . Além disso (dissemo-lo j á) importa ter presente a


coisa mais necessária para todos aqueles que, desej ando
progredir no caminho da virtude, se esforçam por se afas­
tar do vício: tal como a alma é incomparavelmente melhor
do que o corpo, e o supera, e o transcende numa multipli­
cidade de coisas importantes, assim também as virtudes da
alma - e de um modo singular as que imitam Deus e têm
o seu nome - são melhores do que as virtudes do corpo.
Mas por outro lado - e em registo contrastante - im­
porta igualmente ter em conta que as paixões da alma su­
peram em virulência as do corpo. Superam-nas quer pelo
modo como se afirmam, q uer pelos castigos que delas
resultam , ainda que o conhecimento disso, surpreenden­
temente, escape à maior parte das pessoas.
SÃO JOÃO DAMASCENO 41 9

Aqueles que fogem da embriaguez, da prostituição, do


adultério, do roubo, e de outros vícios desse j aez, agem
desse modo porque, obviamente, os consideram como
execráveis. Mas às paixões da alma (mais graves e malignas
do que as do corpo, pois são capazes de endemoninhar
aqueles em quem se instalam, conduzindo-os irremedia­
velmente ao castigo eterno) a essas não as sentem . E ,
por conseguinte, delas não fogem. Note-se, p orém, q ue
elas são bem reais: a inveja, o rancor, a malícia, a insensibi­
lidade, o amor do dinheiro, no dizer do apóstolo Paulo
(cf. 1 Tm 6 , 1 0) . Assim como outras do mesmo jaez.

14. Sabemos perfeitamente que em tudo isto há uma


certa complexidade, pois trata-se de falar de coisas que nos
atingem profundamente nas nossas vidas. Note-se, porém:
não obstante uma tal complexidade, elas são por nós aqui
expostas elementarmente, como se fôssemos ignorantes.
Redigimo-las, de facto, na medida do possível, de um
modo não complexo. Visamos com isso facilitar a sua
compreensão àqueles cuj o traquejo nestas questões não é
grande. Esperamos conseguir assim uma exposição fácil de
compreender, sem com isso comprometer o rigor e sem
deixar de estar em sintonia com as exigências próprias de
um discurso sobre as virtudes e as paixões. Ao agir deste
modo esperamos não estar a sacrificar uma exigência, que
é a essencial: a exigência da verdade. Procura-se, assim,
uma exposição que não perca de vista o seu desiderato
profundo: proporcionar aos leitores a capacidade de dis­
cernir virtudes e paixões.
Trata-se, na verdade, de atingir um discernimento tim­
brado por um rigor fruto de minúcia e de clareza, pois só
assim se poderá dilucidar as diferenças caracterizantes
tanto das virtudes como das paixões. Por conseguinte,
420 PEQUENA FILOCALIA

expusemos cada coisa sem perder de vista a sua diversi­


dade e as suas variantes, de molde a conhecer-se, na me­
dida do possível, com clareza, as ideias relativas às virtudes
e aos vícios. E, j untamente com esse desej o, um outro: a
aquisição da capacidade de, por um lado, cultivarmos
voluntariamente, e de um modo singular, as virtudes da
alma, que nos aproximam de Deus, e, por outro lado, rejei­
tarmos decididamente os vícios que dele nos afastam.
É verdadeiramente bem-aventurado aquele que, com
denodo, se esforça por descobrir a virtude, de molde a
compreendê-la e praticá-la. Efetivamente, um homem
desses trilha o caminho de Deus e manifesta que a sua
mente é habitada pelo divino.
Elevar-se, mediante a prática esclarecida da virtude
ativa, até à contemplação do Criador, implica um empenho
perseverante e diuturno feito de prudência, coragem, sa­
bedoria, conhecimento, honestidade. E tenhamos presente
que à virtude é-lhe dado o nome que tem (arete) por se
tratar de uma escolha (airesis) . E ao ser objeto de uma es­
colha, ela implica uma decisão assumida com gosto: nessa
ótica, ao sermos artesãos do bem é voluntariamente que o
praticamos. E, nessa perspetiva, homens dotados de sabe­
doria são aqueles capazes de levar a mente a acolher o que
lhe é de fundamental valor.

Como se de um selo dourado se tratasse, e ao modo


15.
de conclusão, vamos acrescentar a este elementar discurso
algumas palavras sobre o mais precioso de todos os seres
criados por Deus, aquele que foi criado à sua imagem e
semelhança, dotado de mente e de razão, isto é, o homem,
o único entre todos os seres que assim foi criado. Do ho­
mem se diz, de facto, ter sido criado «à imagem» do Cria-
SÃO JOÃO DAMASCENO 421

dor, expressão com que se transmite a ideia de uma espe­


cial dignidade conferida tanto à mente como à alma.
Ora, com essas palavras estamos a pisar o terreno do
que é incompreensivelmente belo, invisível, imortal, do­
tado de livre-arbítrio, original, criativo, edificante de um
modo único. Quando dele se diz ser «à semelhança», evo­
camos ainda a ideia de uma semelhança segundo não
apenas aquilo que na virtude há de racional, mas também
na racionalidade dos atos que têm inscrito o nome de
Deus e que imitam D eus. Terreno esse que implica o
nosso comportamento benevolente para com o nosso
semelhante: trata-se, com efeito, do exercício da compai­
xão, da misericórdia, da piedade virtuosa, em relação ao
próximo, isto é, o amor em gestos concretos. Viver assim é
estar em sintonia com as palavras de Cristo, palavras que
são permanentemente um desafio: «Sede misericordiosos
como vosso Pai celeste é misericordioso» (Lc 6,36) . Todos
os homens, sem distinção, transportam consigo essa cria­
ção à imagem, pois os dons de Deus são irrevogáveis. Mas
quando se trata da «semelhança», raros são aqueles que a
transportam consigo: tal coisa é apanágio dos particular­
mente virtuosos, dos santos, daqueles que, tanto quanto é
dado aos homens, imitam a bondade de Deus.
Pois bem, que perante tudo isso também nós, igual­
mente, possamos ser dignos do seu amor. Quando se trata
desse amor estamos diante daquilo que, sendo infinito,
nos ultrapassa de um modo total, e por isso o nosso amor
precisa sempre de encontrar forças nesse amor divino. Por
conseguinte, que a nossa vida seja assim orientada, pois se
o for, de um modo natural, a vontade de Deus se realizará
quando uma boa obra toma forma concreta. Tornar-nos­
-emos assim, pela graça divina, imitadores daqueles que,
desde a origem dos séculos, têm agradado a Cristo. Porque
422 PEQUENA FILOCALIA

a Ele, e a Ele, só pertencem toda a honra, todo o louvor,


toda a glória e adoração, assim como ao seu Pai que não
tem começo, e ao seu Espírito Santo, bom e doador da
vida. Agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Ámen.
SÃO MACÁRIO
O Egípcio
SÃO MACÁ RIO, o Egípcio (século 1v), discípulo de Santo Antão,
fundador do mosteiro de Cete, no deserto do Egipto, antigo con­
dutor de camelos, morreu por volta do ano 390. Foi amigo dos
grandes «origenistas», em particular de Evágrio. O convento de
São Macário, no deserto do Wadi Natrum, em direcção a Alexan­
dria, no Egipto, conserva a sua memória. A sua obra, ou aquela
que lhe é atribuída, surgiu sob a mesma forma que a própria Fi­
/oca/ia, ou seja, uma colectânea de textos. Estes não são tanto um
testemunho, mas antes, a transmissão global de uma experiência
e de uma história comum aos monges que, desde há um século,
se tinham comprometido nas comunidades monásticas do Egipto.
Paráfrase de algumas
das suas homilias
por Simeão1 o Metafrasta

1 . É pela graça, isto é, como dom divino do Espírito, que


cada um de nós recebe a salvação. Mas para atingirmos a
medida perfeita da virtude há um imperativo a que deve­
mos responder: sermos íntegros no modo como trilhamos
o caminho da fé e do amor. Trata-se de um labor quoti­
diano, de um denodado empenho, de uma resposta nossa
à questão própria de cada manhã: tomar a sério a exigência
permanente da integridade que é o oposto da traficância
da fé. É este, com efeito, um combate a travar no mais con­
creto da nossa vida, que implica toda uma sabedoria no
exercício do nosso livre-arbítrio.
Efetivamente, são muitas e variadas as circunstâncias
em que temos de dar a razão de ser da nossa fé! Por conse­
guinte, é vivendo uma vida segundo o imperativo da vir­
tude perseverante (vida bafej ada pela graça divina) que
poderemos ser constituídos herdeiros da vida eterna. Mas
ao estádio final próprio da maturidade espiritual só chega­
remos com a ação em nós do poder divino, que é a graça
de Deus em ação, embora se nos imponha, da nossa parte,
um empenho a toda a prova.
No concernente à medida perfeita da liberdade e da pu­
reza, a exigência é semelhante: atingi-la só é possível com
a intervenção providencial da mão divina a orientar e a
426 PEQUENA FILOCALIA

fortalecer a nossa caminhada. Como atestação das nossas


palavras temos o testemunho da Escritura, testemunho
que é em si uma advertência permanente: «Se o Senhor não
edificar e guardar a casa, em vão laboram os trabalhadores;
se o Senhor não guardar a cidade, é em vão que o guarda
vigia. Ouve: é vão levantares-te cedo e deitares-te tarde,
comeres o pão do trabalho ansioso! Tudo isso é vão se o
Senhor não for para ti o verdadeiro repouso» (SI 1 27,1 -2) .

2. Podemos formular a seguinte pergunta: qual é a von­


tade de Deus que constitui matéria de exortação apostó­
lica, no sentido de uma vida de santidade e, simultanea­
mente, alvo a atingir? A resposta consiste numa chamada
de atenção para a necessidade de nos purificarmos do pe­
cado e de nos libertarmos do insinuante cativeiro das pai­
xões, ascese essa indispensável para atingirmos o elevado
estádio da perfeita virtude. Dito de outro modo: trata-se de
purificarmos o coração e de vivermos uma vida santa,
coisas que se cumprem de uma maneira real e verdadeira
quando o Espírito do Senhor nos bafeja com a sua graça.
Lá diz, com efeito, a Escritura: «Bem-aventurados os cora­
ções puros, pois eles verão a Deus» (Mt 5,8); e ainda: «Sede
perfeitos, vós também, como vosso Pai celestial é perfeito»
(Mt 5,48) . E, por sua vez, lá temos, do salmista, as palavras:
«Que o meu coração seja irrepreensível graças aos teus
julgamentos, a fim de eu não ser confundido» (SI 1 1 9,80) ; e
ainda: «Então não ficarei confundido quando confrontado
com todos os teus mandamentos» (SI 1 1 9,6) . E àquele que
pergunta: «Quem subirá à montanha do Senhor, ou quem
morará no seu lugar santo?», Ele responde: «Aquele cujas
mãos são inocentes e o coração é puro» (SI 24,4) . Ele ensi­
na-nos assim a eliminar totalmente o pecado cometido
tanto na ação como no pensamento.
SÃO MACÁRIO 427

3. O Espírito Santo - sabendo quão difícil é a libertação


do insidioso cativeiro das paixões, tantas delas existindo na
invisibilidade e no oculto, dado estarem enraizadas nos re­
folhos da alma - mostra-nos, através do testemunho do
salmista, como podemos delas nos purificar: «Guarda-me,
Senhor, do homem insolente! Não permitas que ele me
domine! E então eu serei purificado das minhas faltas
ocultas ! » (S I 1 9, 1 3 ) . Eis aí, pois, o que podemos alcançar
mediante a sinergia do Espírito, se orarmos com perseve­
rança, se a nossa fé for segura, se nos voltarmos completa­
mente para Deus e vivermos intensamente a comunhão
com Ele. E uma condição nos é imposta: que nos empe­
nhemos com denodo num combate quotidiano contra
essas faltas. E que o nosso coração possa ser mantido sob
uma salutar vigilância, coisa essencial quando se trata de
travar um tal combate.

4. Igualmente o bem-aventurado Moisés nos mostra


(fá-lo figuradamente) que a alma não deve estar dividida
entre dois desej os, o do mal e o do bem, mas deve, sim,
seguir unicamente o bem. Rejeitando, pois, uma atitude
própria de uma rutura moral no nosso agir, há que fugir
da perspetiva dualista dos dois frutos, o do mal e o do
bem, de molde a seguir o caminho que importa, o da inte­
gridade moral própria daquele que produz bons frutos. E
só bons frutos.
Com efeito, é nestes termos que Moisés se pronuncia:
«Que não sejam atrelados à mesma canga, para malhar o
trigo na eira, animais de espécies diferentes tais como o
boi e o burro» (Dt 22, 1 0) . Eis-nos, com efeito, confrontados
com uma exortação essencial: há que malhar a nossa
colheita pondo sob o mesmo jugo animais da mesma es­
pécie. Dito de outro modo: não devemos pôr a trabalhar
428 PEQUENA FILOCALIA

j untos, no espaço do nosso coração, a virtude e o vício,


mas sim unicamente a virtude: «Não tecerás linho numa
veste de lã, nem lã numa veste de linho» (Dt 22, 1 1 ) . E con­
tinua no mesmo registo de pensamento: «Não cultivarás
j untos dois frutos diferentes na mesma parcela de terra»
(Dt 22,9) . E há ainda o interdito de acasalar animais de es­
pécie diferente, pois só é permitido acasalar animais da
mesma espécie. Temos assim uma pluralidade de imagens
que veiculam misticamente o princípio de que não deve­
mos cultivar em nós, j untamente, o vício e a virtude, mas
sim unicamente aquilo que a virtude gera. Tão-pouco a
nossa alma deve estabelecer comunhão com dois espíritos
- o Espírito de Deus e o espírito do mundo - mas unica­
mente com o Espírito de Deus, Ele que é origem e fonte
dos frutos que ela deve produzir. É em perfeita sintonia
com isso que o salmista confessa: «Na verdade, dirigi os
meus passos no caminho da observância dos teus manda­
mentos. Detestei toda a via inj usta» (SI 1 1 9, 1 28) .

5 . A alma virgem que tomou a decisão de seguir na


senda da união com Deus deve manter-se pura não so­
mente em relação aos pecados com uma visibilidade exte­
rior (como sejam prostituição, homicídio, roubo, gulodice,
calúnia, mentira, amor do dinheiro, cupidez, e outras
coisas quejandas) como também, e sobretudo, em relação
aos pecados secretos de que já falámos (como sejam con­
cupiscência, vanglória, baj ulação, hipocrisia, amor do
poder, trapaça, mau carácter, ódio, incredulidade, inveja,
egoísmo, orgulho e outros do mesmo jaez) . Ora, segundo a
Escritura, Deus considera esses pecados secretos da alma
tão perniciosos quanto o são os pecados de visibilidade
exterior.
Com efeito, a palavra da Escritura reveste-se de uma
SÃO MACÁRIO 429

força particular ao declarar enfaticamente: «Porque o Se­


nhor dispersa os ossos daqueles que desejam agradar aos
homens» (Sl 53,6) . E ainda: «Ü Senhor aborrece o homem
sanguinário, bem como o urdidor de trapaças» (SI 5 ,7) ,
mostrando assim que Deus tem tanta aversão pela trapaça
quanto a tem pelo homicídio. E continua: «Escuta a minha
voz suplicante, quando te peço auxílio, quando levanto as
mãos para o teu santo tabernáculo! Não me arrebates com
os ímpios! » (SI 28,2-3) . E ainda: «Será que vós, os chamados
justos, decretais o que é j usto na terra? Não, não decretais!
Em vez disso, em vossos corações forjais a falsidade, e com
as vossas mãos sustentais a violência no país» (SI 58,2-3) . E
ainda: «Ai de vós quando os homens disserem bem de vós!
Foi isso que os seus antepassados fizeram aos falsos profe­
tas ! » (Mt 5 , 1 6) .
Tenhamos, por conseguinte, bem presente isto: estamos
debaixo do julgamento divino quando nutrimos nos nossos
corações o desej o de ouvir os homens dizerem bem de
nós, e subordinamos as nossas palavras àquilo de que eles
gostam. Quando caímos nesse logro acariciamos gostosa­
mente todas as palavras de bajulação e de louvor que eles
nos dirigem. E com isso não estamos no bom caminho.
Claro, aqueles que praticam o bem durante a sua vida não
passam completamente ocultos, pois é o próprio Senhor
quem nos adverte com as palavras: «Que a vossa luz brilhe
diante dos homens, de um modo tal que eles possam ver
as vossas boas obras e rendam glória ao vosso Pai que está
nos Céus» (Mt 5 , 1 6) . Claro, o Evangelho fala-nos desse
modo, e fá-lo para colocar a nota tónica no seguinte: o
nosso esforço para fazermos o bem deve visar a glória de
Deus e não a nossa glória humana. Quando é esta que nos
move estamos a ser os artífices de uma lamentável ilusão:
julgarmos que nos podemos pôr no lugar de Deus ! Como
430 PEQUENA FILOCALIA

se Deus fosse redutível àquilo que nós somos! Por conse­


guinte, em todo o nosso agir impõe-se-nos sempre não
criar condições que propiciem os louvores dos outros. Com
efeito, aqueles que outra coisa não visam a não ser o seu
prestígio pessoal, não são verdadeiramente homens de fé, já
que o Senhor nos interpela deste modo: «Como podeis vós
crer, vós que recebeis glória uns dos outros, e não procurais
a glória que vem unicamente de Deus?» (Jo 5,44) .
E no concernente ao comer e ao beber, devemos igual­
mente acatar com a devida sageza a exortação do apóstolo
Paulo, no sentido de que tudo se deve fazer para a glória
de Deus. São dele, com efeito, estas explícitas palavras :
« Q uer c omais, quer bebais, quer façais qualquer outra
coisa, fazei tudo para a glória de Deus» (1 Cor 1 0,3 1 ) . E o di­
vino João, ao falar do ódio, não hesita em assimilá-lo ao
homicídio: «Aquele que odeia o seu irmão é um homi­
cida» (1Jo 3, 1 5) .

6. «Ü amor é paciente, é amável, não é invejoso, nem


arrogante, nem rude [ . . ] não se alegra com a inj ustiça,
.

nem folga com a maldade; tudo suporta, tudo crê, tudo es­
pera. O amor j amais acabará» (1 Cor 1 3 ,4-7) . A expressão
jamais acabará enfatiza que, não obstante terem recebido os
carismas do Espírito (dons de que já falámos) , não vivem
de um modo determinado e seguro aqueles que ainda não
se libertaram comp letamente do cativeiro das paixões.
Com efeito, homens desses, enredados nas teias dos seus
passionais desvarios, não se libertam de uma vulnerabili­
dade que, perante a ameaça do perigo, os encerra na impo­
tência. Por conseguinte, incapazes de travar o combate que
se lhes impunha travar, e possuídos pelo medo, tornam-se
trânsfugas, desertando do caminho que os levaria à vida
autêntica. Ora, digamo-lo claramente: uma libertação do
SÃO MACÁRIO 43 1

labirinto passional em que homens desses se encontram


só pode ocorrer graças ao amor e à ação do Espírito em
nós. O apóstolo Paulo, no texto acabado de citar, proclama
que o amor, libertado da degenerescência e da paixão,
atinge alturas tais que remete para o nível da insignificân­
cia quer as línguas dos anj os, quer a voz da profecia, quer
todo o tipo de ciência, quer os dons da cura.

7. Tomarmos consciência da nossa imperfeição e po­


breza, q uando confrontados com o grande desafio de
prosseguirmos em frente de molde a obtermos o prémio
que nos está destinado, é uma absoluta necessidade. É a
partir daí, de uma tomada de consciência de que somos
mendigos da graça divina, que nos podemos empenhar,
com um espírito ardente e firme, numa corrida espiritual
em direção a esse fim último. E aí temos nós o motivo que
leva o apóstolo a escrever o seu hino ao amor. Tal como ele
diz também noutro passo da mesma epístola: «Não sabeis
que os que correm no estádio são todos eles competido­
res, mas somente um deles ganha o prédio? Correi, pois,
de tal modo que possais alcançá-lo! » (1 Cor 9,24) .

8. A inj unção evangélica «nega-te a ti mesmo» implica


uma renúncia a tudo aquilo que possa impedir uma vida
convivida com os irmãos em comunidade. Ora, uma tal
abdicação supõe a não imposição da nossa própria von­
tade, o despojamento de tudo o que é supérfluo, a disponi­
bilidade para, na liberdade conquistada pelo despoj a­
mento, nos entregarmos j ubilosamente à única coisa que
nos foi ordenada (a entrega aos outros) , considerando
todos os irmãos (e de um modo particular aqueles que di­
rigem o mosteiro, cargo para o qual foram investidos)
como senhores e mestres, em nome de Cristo, a quem
432 PEQUENA FILOCALIA

devemos obedecer, tomando a sério as suas palavras :


«Aquele que entre vós queira ser primeiro e grande, sej a
último e servo d e todos, d e todos escravo» (Mt 1 6,24) . Por
conseguinte, assumirmos uma tal obediência não nos leva
a ficarmos à espera do louvor dos outros para só depois
agirmos, pois o que nos move não é nem a honra nem a
glória que deles possam provir. É meridianamente clara a
exortação do Evangelho: «Quando servirdes, que o façais
benevolentemente e não como quem está a ser visto e quer
agradar aos homens» (Ef 6,6) . Que mantenhamos, pois, bem
presente isto: o serviço que prestamos aos irmãos não deve
sê-lo com a intenção de daí resultarem elogios para nós;
pelo contrário, deve ser prestado com toda a simplicidade
e amor, isto é, de um modo desinteressado.

9. Quanto aos dirigentes da comunidade dos irmãos,


investidos como estão de um cargo tão importante, é-lhes
exigido nunca perder de vista que têm um combate a
travar contra as tentações da arrogância, de molde a, com
humildade, desativarem as insidiosas armadilhas do mal.
Ao agirem desse modo não só se livram a eles próprios das
possíveis feridas resultantes de um agir insensato, como
também estão a prestar o serviço que se lhes impõe prestar
aos irmãos. Com efeito, serão assim misericordiosos, con­
sagrados corporal e espiritualmente a Deus, ciosos do bem
dos irmãos a quem tratam como filhos de Deus. Obvia­
mente, um tal comportamento não implica uma abdicação
do que é inerente ao cargo do superior: dar ordens, acon­
selhar, repreender, reprovar, exortar. Tudo isso são coisas
que, sensatamente, devem ser executadas quando as cir­
cunstâncias assim o exigem. No horizonte deverá estar
sempre presente o desejo de evitar que os mosteiros (sob
pretexto da humildade e da doçura) mergulhem na confu-
SÃO MACÁRIO 433

são e na desordem em que correm o risco de mergulhar


quando superiores e subordinados abdicam do que a cada
um é exigido. Mas no interior de si mesmos - lá, no escrí­
nio invisível dos pensamentos - que os superiores se con­
siderem como servos indignos de todos os irmãos, e que,
como bons pedagogos incumbidos de cuidar dos filhos
dos seus senhores, se esforcem, com benevolência e no
temor de Deus, por fazer com que cada um na comuni­
dade fraterna se sinta apto para toda a boa obra. E que, ao
desempenharem o seu papel de superiores, estej am tam­
bém conscientes de que será grande e inabalável a recom­
pensa que, pelas suas canseiras, Deus lhes reserva.

10. De igual modo, que aqueles que foram investidos no


encargo de pedagogos dos jovens não hesitem (mesmo no
caso de eles poderem ser seus mestres) em lhes aplicar, de
um modo caridoso e bem intencionado, um ou outro cas­
tigo corporal. Assim devem agir, em nome da educação e
da disciplina. E ainda no concernente aos superiores: que
eles fujam de um qualquer desej o de vingança pessoal que
o orgulho ou um acesso de ira poderia neles suscitar. A
punição nunca deve ter como origem uma sensibilidade
ferida ou um ressentimento provocado por uma ofensa.
Assim, pois, que os superiores trabalhem antes para a con­
versão daqueles cujo comportamento deixa a desejar, tra­
balho esse que supõe e implica o exercício da misericórdia
e da bondade, de que a finalidade deverá ser sempre o pro­
veito espiritual.

11. Por conseguinte, todo o homem que se decide por


esse caminho do exercício da pedagogia sente-se de um
modo indutável confrontado com um ingente desafio que
se pode traduzir assim: pôr de lado uma atitude de arro-
434 PEQUENA FILOCALIA

gância e d eixar-se inva d ir até à medula do osso pelo temor


de Deus que é o princípio da sabedoria. Sem o temor de
Deus, o exercício da pedagogia ficaria entregue ao que po­
deríamos chamar uma vagabundagem própria do desvario.
É que, em tudo isto, o caminho que se segue não pode ser
outro senão o de uma observância empenhada do manda­
mento do amor, que é o primeiro e o maior de todos os
mandamentos. Portanto, que esse homem rogue perma­
nentemente ao Senhor as forças necessárias para uma boa
observância desse mandamento. E que não haja dúvidas:
um homem desses, no quotidiano da sua vida, pela graça
do Senhor e pela contínua e incessante lembrança de
D eus, aprofundará essa observância. Com efeito, é me­
diante o esforço, a diligência, a sobriedade, a vigilância, o
combate, que o amor de Deus (esse amor formado em nós
pela graça divina, como dom de Cristo) é por nós vivido.
Mediante o cumprimento desse mandamento - o pri­
meiro de todos e o mais importante de todos - acedemos
ao cumprimento do segundo: o amor ao próximo. Obvia­
mente, a primazia deve ir para o primeiro, de tal modo que
a partir daí seja intensificado o nosso empenho no cum­
primento do que vem em segundo lugar. Porque, quando
alguém negligencia esse primeiro e grande mandamento
(o amor com que amamos Deus, esse amor nascido das
profundezas do nosso ser, isto é, de uma boa consciência e
de ideias salvíficas sobre o próprio Deus, a que se j unta o
socorro provindo da Providência divina) e se limita exclu­
sivamente ao segundo (o serviço do próximo) , torna pro­
blemática uma prática sã do primeiro. Que esse alguém
não perca, pois, de vista o que está em jogo na observância
destes dois mandamentos.
Ao surpreender a mente em estado de amnésia e inca­
paz de amar (ou dito de outro modo: ao encontrá-la irra-
SÃO MACÁRIO 435

tiva no concernente à busca da comunhão com Deus) , o


poder demoníaco, irmão siamês do mal, dá força à armadi­
lha de uma tentação dupla sibilinamente montada. O u
insinua que são difíceis e penosas a s ordens divinas, pelo
que do esforço para as cumprir não resulta senão uma
amarga deceção, inclusive no serviço a prestar aos irmãos;
ou então, fá-la inchar de orgulho, infundindo-lhe a pre­
sunção de ser j usta, digna de honrarias, ingente cumpri­
dora dos mandamentos. E aí temos a pobre mente encer­
rada no abjeto círculo da insídia.

12. Quando um homem nutre a presunção de ser, só


por si mesmo, um fiel observante dos mandamentos, é
óbvio que está em estado de pecado. A sua arrogância
torna-o cego para a compreensão de que, pobre dele, está
em falta com o mandamento. E ao estar em falta com o
mandamento outra coisa não faz senão j ulgar-se a si
mesmo, esquecendo-se assim daquele que verdadeira­
mente j ulga. Com efeito, só é possível sermos genuina­
mente dignos de Cristo e filhos de Deus, quando o Espíri­
to divino testemunha com o nosso espírito, segundo a
palavra paulina («e é o mesmo Espírito que testemunha
j untamente com o nosso espírito que somos filhos de
Deus, e sendo filhos de Deus somos herdeiros» [Rm 8,1 61) e
não quando, cheios de vaidade e de arrogância, seguimos o
caminho de uma autoj ustificação. Lá está, efetivamente,
dito: «Não é aquele que se recomenda a si mesmo que é
aprovado, mas aquele que é recomendado pelo Senhor»
(2Cor 1 0, 1 8) . Privado de memória e sem o temor de Deus
(tenhamos sempre presente que o temor de Deus é o prin­
cípio da sabedoria) o homem, necessariamente, nutre o
desejo de ser louvado e glorificado junto daqueles a quem
serve. Mas um homem desses está debaixo do julgamento
436 PEQUENA FILOCALIA

do Senhor e é por Ele acusado de não ter fé, como já se


disse antes. Lá diz, com efeito, a Escritura: «Como podeis
vós crer, quando aceitais glória uns dos outros e não pro­
curais a glória daquele que é Deus - e só Ele o é?» (Jo 5,44) .

13. O amor que votamos a Deus aprofunda-se e intensi­


fica-se,, como já foi dito, graças a um combate (essencial­
mente longo) que implica um árduo trabalho da mente.
Esta, com efeito, é chamada quotidianamente a pronunciar
um não às variadas formas de mediocridade e a empenhar­
-se intensamente no cultivo de pensamentos nobres, belos
e j ustos, mantendo assim com denodo um permanente
cuidado com todas as formas do bem. Sem uma tal disci­
plina, estruturada p or uma cuidada ascese quotidiana, o
nosso adversário, larápio dos bons pensamentos e pródigo
promotor da perversidade, faz cativa a nossa mente, impe­
dindo-a de viver o amor de Deus. A sua arma preferida é a
do esquecimento: com efeito, uma vez vítima da amnésia, a
mente fica entregue à errância da vagabundagem e incapaz
da prática do bem. Já quando se trata dos sentidos, age de
um modo diferente: bajula-os, com o que provoca neles o
desnorte e os lança no desvario dos desejos terrenos.
Pobres sentidos, feitos assim vítimas da malignidade de
uma sedução infamante!
Que se tenha, porém, isto presente: um tal adversário,
cuja malignidade nos corrói, de nenhum modo é invulne­
rável. Muito pelo contrário, recua, estiola e morre, quando
a mente se comporta de um modo íntegro na profunda
ligação que estabelece com o amor que vota a Deus. É daí,
desse primeiro mandamento, do amor prestado a Deus,
que nasce o puro amor dedicado ao irmão; é daí, desse
amor, verdadeiramente seminal, que brotam simplicidade,
doçura, humildade, integridade, bondade, oração, numa
SÃO MACÁRIO 437

palavra, toda a bela coroa das virtudes levadas à perfeição.


Por conseguinte, impõe-se-nos combater o bom combate,
com muito trabalho interior, muito escrutínio dos pensa­
mentos, muito treino dos órgãos da nossa alma, contra­
riando a sua tendência preguiçosa. Só assim poderemos
não ser vítimas do desnorte e, trilhando o caminho reto,
discernir o bem e o mal; só assim poderemos reanimar os
membros esgotados e reorientar a mente na direção de
Deus; só assim poderemos não ser vítimas de uma estio­
lante vagabundagem do pensamento ! A comunhão com
Deus será então uma realidade na nossa vida, e a nossa
mente tornar-se-á com o Senhor - segundo as palavras
paulinas - um só espírito (cf. 1 Cor 6, 1 7) .

14. Aqueles que amam a virtude devem incessantemente


travar um combate secreto, de que a nobreza do pensa­
mento surge em filigrana. Ora, um tal combate é feito de
muita coisa: de fadigas, de ascese noturna e diurna, de
observância dos mandamentos nas variadas circunstân­
cias, de oração, de serviço, de um comer e beber sensato.
Tudo isso feito para a glória de Deus e não para a nossa. E
tenhamos bem presente que a observância dos manda­
mentos não implica um estilo de vida pesado : bem pelo
contrário, quando o amor de Deus, ligado aos mandamen­
tos, jorra no nosso coração, essa observância torna-se fácil,
leve, não penosa. Claro que o adversário não se quer dar
por derrotado, e trava também aqui um combate multifa­
cetado, multiplicando-se em esforços para, mestre em arti­
manhas como é, levar a mente à perda da memória e do
temor de Deus, com o consequente apagamento da distin­
ção entre o bem real e os bens imaginários.

Segundo reza a Escritura, o patriarca Abraão acolheu


15.
um dia o sacerdote de Deus Melquisedec, e dele recebeu a
438 PEQUENA FILOCALIA

bênção (cf. Gn 1 4, 1 9) , graças à oferta que lhe fez das primí­


cias da terra. Ora, trata-se de um importante aconteci­
mento, pois através dele o Espírito eleva-nos até uma altís­
sima contemplação: pede de nós que, antes de mais nada,
ofereçamos a Deus, em holocausto, como sacrifício santo,
os primordiais e mais elevados elementos que compõem o
nosso ser, por natureza um ser complexo : mente, cons­
ciência, poderes da alma. Trata-se, por conseguinte, de
uma oferta que nos empenha totalmente, num esforço
permanente para o exercício da memória, pois trata-se da
oferta das primícias, dos pensamentos retos, da comunhão
com o amor divino que ultrapassa infinitamente tudo o
que é da natureza. É desse modo que podemos em cada
dia, assistidos pela graça divina, crescer e avançar. Tempo
de avançar, este é simultaneamente tempo de descobrir­
mos que o cumprimento da j ustiça que emana dos man­
damentos não é penoso. Não o é desde que, assistidos pelo
próprio Senhor (numa comunhão viva com Ele mediante
a fé) os observemos de um modo puro e irrepreensível. O
que implica uma vida íntegra, na força do Espírito.

16. Que resposta podemos dar àqueles que, no concer­


nente à ascese exterior e visível, nos perguntam qual é a
sua primeira e maior virtude? Ora bem, é necessário ter
presente, como ponto de partida, que as virtudes estão in­
terligadas, e assim se mantêm como se fossem uma cadeia
sagrada, cada uma delas ligada à outra. Temos assim: a
oração ligada ao amor; o amor à alegria; a alegria à doçura;
a doçura à humildade; a humildade ao serviço; o serviço à
esperança; a esperança à fé; a fé à obediência; a obediência
à simplicidade. Similarmente, os seus contrários, os vícios,
também se encontram interligados. Temos assim o ódio
ligado à cólera; a cólera ao orgulho; o orgulho à vanglória;
SÃO MACÁRIO 439

a vanglória à incredulidade; a incredulidade à dureza de


coração; a dureza de coração à negligência; a negligência à
preguiça; a preguiça à apatia; a apatia à indiferença; a indi­
ferença à inconstância; a inconstância ao amor dos praze­
res - e assim de seguida com os outros vícios, todos eles
interligados.

17. O maligno, perverso como é, procura a todo o custo


macular as coisas boas que um homem faz. Conspurcá-las
das mais variadas formas faz parte do seu demoníaco pro­
grama. Por conseguinte, o seu desiderato diabólico passa
por inocular nesse homem um veneno mortal: por mais
que um tal homem faça não é capaz de evitar a contamina­
ção de uma vida justa com a vanglória, da humildade com
a jactância, da sobriedade com a glutonaria, et cetera. Desse
modo, temos uma prática maculada em virtude de aquilo
que fazemos deixar de ser feito unicamente por Deus. Per­
versão grave essa, quando o bem é deslocado para outra
área que não a dele, que não é outra senão a área de Deus.
A Escritura oferece-nos a história de Abel e Caim. É­
-nos nela narrado que Abel ofereceu a Deus os primogéni­
tos do seu rebanho e as suas gorduras, enquanto Caim
apresentou uma oferta dos frutos da terra, mas não dos
primeiros frutos, motivo pelo qual Deus aceitou o sacrifí­
cio de Abel, mas negligenciou a oferta de Caim (cf. Gn 4,3-5) .
O enredo desta história mostra-nos que é possível reali­
zarmos um ato bom de uma maneira errada, ao agirmos
negligentemente, ou com desprezo, ou com um outro fim
que não tenha como fundamento o próprio D eus. E ,
quando as coisas s e desenrolam assim, o bem que pratica­
mos é inaceitável para Ele. Ocupámos indevidamente o
lugar único que pertence a Deus e só a Deus.
440 PEQUENA FILOCALIA

No concernente à oração

1 8 . A prática das obras, para ser incontestavelmente


justa, implica perseverança na oração, fundamento e cume
de todo o esforço humano. Ora, é através da oração perse­
verante - prática existencial que se assume no mais pro­
fundo de nós mesmos como entrega das nossas vidas nas
mãos de Deus - que abrimos o caminho essencial para
atingirmos as outras virtudes. Efetivamente, é na oração,
vivida como prática do quotidiano, que todo aquele que
combate pela dignidade encontra a comunhão com o
divino própria da experiência mística. E esse é o universo
espiritual em que o amor de Deus é experienciado e sen­
tido, inclusive pela mente, de um modo em que o inefável
e o santo se unem profundamente. Assim diz o salmista:
«Tu, Senhor, puseste alegria no meu coração. Uma alegria
infinitamente maior do que aquela que nos advém da
abundância do grão e da fartura do vinho ! » (SI 4,7) . E o
próprio Senhor nos adverte: «Nem se dirá: "Vede: aqui
está" ou "Olhai: ali está ele". Com efeito, o Reino de Deus
está dentro de vós» (Lc 1 7,21 ) . E que significa o Reino de
Deus estar dentro de nós senão que a alegria celestial do
Espírito deixa claramente as suas marcas nas almas daque­
les cuj a vida é pautada pela dignidade? ! Com efeito, as
arras da alegria, do j úbilo, da felicidade, dadas pelo Espírito
- garantia da promessa de uma participação na luz eterna
do Reino de Cristo - são já vividas pelas almas que vivem a
profunda comunhão do Espírito e que são julgadas dignas
de uma tal graça. Incontestavelmente, dessa graça nos fala
o Apóstolo divino ao declarar: «Ele consola-nos na nossa
aflição de molde a podermos nós mesmos, fortalecidos por
essa consolação recebida de Deus, consolar aqueles que
estão fracos» (2Cor 1 ,4) . E se o nosso olhar se volta para o
SÃO MACÁRIO 441

salmista, igualmente nele vamos encontrar palavras fortes:


« Ü meu coração e a minha carne gritam de alegria ao
Deus vivo» (Sl 84,3) . E ainda o mesmo salmista: «Como de
gordura e de tutano a minha alma se saciará!» (Sl 63,6) . E
muitas outras confissões do mesmo inefável teor podemos
encontrar noutros passos da Escritura: todas elas permea­
das do júbilo e da consolação provenientes do Espírito.

19. Tendo em conta que a oração é a mais importante


das obras a que nos podemos dedicar, aquele que a ela se
consagra com todo o empenho deve exigir de si mesmo a
maior das disciplinas no seu quotidiano de orante. S e
assim não for (isto é, s e a negligência tiver a sua vitória)
pode muito bem acontecer que um tal orante seja dessa
obra desapossado. Na verdade, quanto maior e mais ele­
vada for a obra a que nos consagramos, maior será o ata­
que do maligno, que redobra o seu assédio para nos des­
viar do caminho seguido. Por conseguinte, um homem
assim empenhado na sua condição de orante terá necessi­
dade de exercer uma grande e aturada vigilância, bem
como de viver de um modo genuinamente sóbrio. Com
efeito, é só vivendo uma tal fidelidade que poderá ser se­
melhante a uma árvore que dá frutos em abundância: isto
é, na sua condição de orante, os frutos do amor, da humil­
dade, do discernimento, todos eles resultantes da oração
diária e perseverante. Será assim, graças a essa disciplina
do quotidiano, que o orante não só manifestará o seu pro­
gresso no aprofundamento das coisas de D eus, como
também fará despertar em muitos outros o desej o de tri­
lhar a mesma salvífica senda.

20 . É ainda o divino Apóstolo quem nos exorta a orar


sem desfalecimento, vivendo cada dia como o hoj e de
442 PEQUENA FILOCALIA

Deus, experienciando e sentindo a fundura própria desse


hoje (cf. 1 Ts 5 , 1 7; Rm 1 2 , 1 2) . E é o próprio Senhor quem nos
fortalece e conforta com as palavras: «quanto mais Deus
fará j ustiça àqueles que o invocam noite e dia», e ainda:
«vigiai e orai, para não cairdes em tentação; o espírito, na
verdade, está pronto, mas a carne é fraca» (Lc 1 8,7; Mt 26,41) .
Por conseguinte, impõe-se-nos responder positivamente a
tais exortações e orar sempre, infatigavelmente, numa per­
severança sem desfalecimento, numa concentração sem
dispersão, numa disponibilidade sem calculismo. Ora, ao
perseverar na oração o orante está a empenhar-se numa
obra fundamental que, como tal, supõe um ingente com­
bate a travar, pois são múltiplos e insidiosos os obstáculos
que o maligno utiliza a seu bel-prazer: sono, preguiça, ne­
gligência, torpor corporal, dispersão dos pensamentos,
confusão mental, debilidade e muitas outras coisas que­
jandas, além das aflições variadas e torpes dos espíritos do
mal que nos atacam e se nos opõem encarniçadamente,
procurando a todo o custo que a nossa alma se desvie de
Deus na sua incessante procura da verdade.

Todo aquele que se entrega à oração (o que implica


21 .
um quotidiano exigente, na medida em que se nos impõe
uma aturada vigilância, um empenho esforçado, um com­
bate da alma, uma ascese corporal) deve agir como um
homem corajoso e incansável, capaz de disciplinar os pen­
samentos, de não se entregar ao sono excessivo, de fugir
das palavras desordenadas, de vencer a indolência. Que
um tal homem não se traia a si mesmo, caindo quer na
errância dos pensamentos quer no desnorte da irreflexão.
Que procure fazer coisas que sejam justas e não se dê por
realizado lá por observar muitas posturas corporais, mas
SÃO MACÁRIO 443

deixando a mente entregue a uma errância distante da


realidade.
Efetivamente, só quando um homem vive experien­
ciando e sentindo a sobriedade vigilante (o que implica um
combate contra a vacuidade dos pensamentos, um discer­
nimento das coisas, uma experiência da comunhão com o
Senhor) é capaz de viver a virtude: vive-a com naturali­
dade, não apenas por ter dito não ao vício, mas também
por se assumir humilde no trato com aqueles que ainda
não são verdadeiramente perseverantes na oração. É um
homem que vive amplamente a sua libertação: o orgulho
já não o fascina e a arrogância já não o trai. Nos antípodas
está aquele que, como orante, nutre uma perigosa ilusão:
ver-se a si mesmo como alguém que j á realizou o que
ainda está longe de ter realizado, ou que j á atingiu o que
ainda está longe de ter atingido.
Ora, quando isso acontece a um homem orante, isto é,
quando o ludíbrio se instala, o bom trabalho que até então
tenha porventura feito é por ele oferecido, de mão beijada,
ao demónio do mal que se empenha em destruí-lo.

22. A via do orante é uma via exigente. Com efeito, para


que a nossa oração nos aj ude verdadeiramente e dê os
seus frutos no quotidiano da nossa vida, é necessário que
ela não fique reduzida a um mero simulacro. Que o ficasse
e, logo à partida, não seria mais do que vacuidade. Impõe­
-se, pois, ao orante dar autenticidade à sua oração com
uma vida (a sua) regulada pela humildade e pelo amor, pela
simplicidade e pela bondade. E não dizemos isto apenas da
oração : dizemo-lo igualmente de toda a obra, de todo o
trabalho, de toda a ascese, de toda a virtude. Ao falarmos
como falamos está em causa a virgindade, o jejum, a vigí-
444 PEQUENA FILOCALIA

lia, a salmodia, isto é, todo e qualquer serviço em que nos


empenhamos.
Com efeito, se não vemos em nós mesmos os frutos do
amor, da paz, da alegria, da simplicidade, da humildade, da
doçura, da candura, da fé, da paciência, da benevolência,
isso significa que todos os esforços que impomos a nós
mesmos para nada nos servem. E o risco é grande de estar­
mos a ser artesãos do nada. Coisa absurda essa, pois ao
nos esforçarmos como nos esforçamos fazêmo-lo para
colher os frutos que daí devem resultar.
Por conseguinte, quando os frutos do amor não se
manifestam em nós, o nosso trabalho é completamente
vão. Ora, homens desses em nada diferem das cinco vir­
gens loucas da parábola: porque os corações delas não
estavam cheios, aqui e agora, nesta presente vida, com o
óleo espiritual (isto é, com a energia das virtudes de que
falámos, energia que nos é dada pelo Espírito) foram apo­
dadas de loucas e, lamentavelmente, excluídas do lugar das
bodas reais, sem terem recebido a recompensa relativa à
virtude de uma virgindade preservada. Efetivamente,
quando cultivamos uma vinha, os nossos cuidados e es­
forços são totalmente investidos no trabalho que realiza­
mos, nos pequenos gestos que levamos a cabo, na expecta­
tiva da vindima que ocorrerá tempo depois. Trata-se,
assim, de um investimento nutrido por um horizonte de
esperança, pelo que, se a vindima não ocorre, é todo o
nosso trabalho que aparece destituído de propósito.
Pois bem: analogamente, ainda que em outro registo
discursivo, se não vemos em nós, graças à energia do Espí­
rito, os frutos do amor, da paz, da alegria, bem como das
outras virtudes enumeradas pelo apóstolo Paulo nas suas
epístolas, então alguma coisa falhou no nosso humano
agir. E além disso: se, em virtude de um embotamento es-
SÃO MACÁRIO 445

piritual, não nos empenhamos em reconhecer (sem tibie­


zas e mediante a necessária perceção do espírito) essa
graça divina portadora da novidade do Espírito, então todo
o empenho que pusemos na virgindade, na oração, na sal­
modia, no j ej um, na vigília, não passa de um empenho
manifestamente inútil. É que, com efeito, todo esse empe­
nho da alma que se esforça pelo nascimento de uma vida
nova, será nesse caso um empenho marcado pela inutili­
dade. Sê-lo-á se dele não advierem os frutos novos e espi­
rituais, pois onde quer que se registe a ausência de frutos
campeia a esterilidade de um pseudoagir.
E note-se: um tal empenho não tem nada de sombrio
ou de desagradável, muito pelo contrário, pois produzir
frutos que resultam de uma vida caracterizada pela virtude
é, em si, um verdadeiro agir prenhe de gozo espiritual. Um
agir, pois, de onde o prazer não está ausente: disso têm um
profundo conhecimento todos aqueles que o experien­
ciam e sentem como um prazer secretamente suscitado
pelo Espírito nos corações fiéis e humildes. Trata-se, efeti­
vamente, de um prazer nimbado pelo incorruptível e subli­
mado pelo inefável.
Mas poderá alguém perguntar: qual é a perspetiva em
que aqui nos movemos? Pois bem, responder a uma tal
questão implica não perder de vista uma coisa essencial:
em tudo isto está em jogo, profundamente em j ogo, a con­
vicção de que os labores em que nos empenhamos e os es­
forços em que nos envolvemos devem ser encarados sim­
plesmente como aquilo que são: como labores e como
esforços. E os frutos, esses, vistos como aquilo que são:
como frutos.
Mas atenção! Se alguém - falto de discernimento - vê
precipitadamente o seu trabalho e o seu esforço, como
frutos automáticos do Espírito, que esse alguém não
446 PEQUENA FILOCALIA

ignore que está a consolar-se e a enganar-se a si mesmo,


nutrindo assim uma rotunda ilusão. E mais do que isso:
está a privar-se a si mesmo de usufruir os frutos verdadei­
ramente autênticos que são os frutos do Espírito. E não
podemos, em tudo isto, silenciar uma coisa: está-nos
vedado, completamente vedado, fazer batota. Fazê-la seria
o grande deleite dos demónios!

23. Se, por um lado, há aqueles que se entregam de


corpo e alma ao pecado na diversidade das suas formas
(licenciosidade, deboxe, cupidez, ódio, trapaça, paixões as
mais delirantes e perversões as mais requintadas) e o fazem
com gozo e prazer, como se se tratasse de algo natural, há,
por outro lado, aqueles que, sendo verdadeiramente cris­
tãos, procuram viver sem artifícios e com júbilo as virtudes
e os frutos delas decorrentes como dons inefáveis do
Espírito: o amor, a paz, a resiliência, a fé, a humildade, que
constituem uma verdadeira galáxia de ouro. Homens desse
quilate já não necessitam travar um combate contra as pai­
xões do mal: foram já completamente libertados pelo
Senhor e vivem de um modo intenso, no coração, a paz e a
alegria de Cristo, na força do Espírito. Com toda a proprie­
dade, deles se pode dizer estarem unidos com Cristo, pois
com Ele formam um só espírito.

24. Mas aqueles que, em virtude da sua imaturidade es­


piritual, não podem ainda entregar-se completamente à
obra da oração, devem aceitar servir os irmãos com pie­
dade, fé, temor de Deus. Assim agindo cumprem um man­
damento de Deus e são artífices de uma obra espiritual.
Não devem, porém, esperar dos homens salário, honrarias,
agradecimento. Que tão-pouco germinem no seu íntimo
coisas como o orgulho, o murmúrio, o desmazelo: impõe-
SÃO MACÁRIO 447

-se-lhes, com efeito, não macularem nem corromperem de


nenhum modo a boa obra a que se dedicaram. Por conse­
guinte, é-lhes pedido que se esforcem por fazer dela, atra­
vés de um comportamento piedoso e alegre, uma obra
agradável a Deus.

25. O Senhor Jesus, encarnação da misericórdia divina,


desceu até nós, entrando no centro da nossa vida de ho­
mens. E fê-lo com tanto amor e compaixão divina que não
deixou nenhuma boa obra por nós realizada sem recom­
pensa. Misericordiosamente conduz-nos, passo a passo,
das pequenas às grandes virtudes, de modo que ninguém
fique privado do devido galardão, mesmo quando se trata
apenas da dádiva de um copo de água fresca. Efetivamente,
é Ele mesmo quem declara: «Todo aquele que der a beber
um copo de água fria a um destes pequeninos, porque é
meu discípulo, em verdade vo-lo digo, não perderá a sua
recompensa» (Mt 1 0,42) . E acrescenta: «Na medida em que
vós fizerdes isso a um deles, é a mim que o fizestes» (Mt
25 ,40) . Há, contudo, uma exigência: que a ação sej a feita
desinteressadamente, por amor de Deus e não por glória
humana. Com efeito, Ele sublinha "porque é meu discí­
pulo", isto é, a ação realizada, com temor e amor, implica o
reconhecimento de uma ligação com Cristo. Aqueles que
fazem o bem com ostentação são censurados pelo Senhor
que dá à sua palavra a firmeza de uma declaração forte:
«Na verdade vo-lo digo, j á receberam a sua recompensa»
(Mt 6,2) .

26. A simplicidade no relacionamento com os outros, a


candura, o amor, a alegria, a humildade, tudo isso são
coisas que, vividas com a fundura necessária, se tornam
fundamento da vida em comunidade. E ao serem esse fun-
448 PEQUENA FILOCALIA

<lamento fazem com que não sej a vão o nosso esforço,


além de nos livrarem do execrável murmúrio que facil­
mente corrompe uma boa relação. Por conseguinte, que
aquele que é dotado da capacidade da perseverança na
oração não se insurj a contra quem é incapaz de tanto. E
que aquele que se consagra ao serviço dos outros não se
revolte contra quem se consagra à oração. Portanto, se o
comportamento de cada um com o seu irmão for pautado
por um tal espírito de simplicidade e por um tal estado de
alma, a superabundância daqueles que perseveram nas
orações preencherá a insuficiência daqueles que servem, e
a superabundância destes últimos preencherá a insuficiên­
cia daqueles que se consagram às orações. E deste modo
salvaguardar-se-á a igualdade, tal como está dito: «aquele
que tinha de menos de nada teve falta» (Ex 1 6, 1 8) .

27. A vontade de D eus é feita na terra como n o céu


quando - j á o dissemos - não nos insurgimos uns contra
os outros e, mais do que isso, estamos unidos na supera­
ção da invej a , intensificando a simplicidade no trato
comum, num amor mútuo, na partilha da paz e da alegria,
e considerando o progresso do próximo como se fosse
nosso, e as suas carências como se fossem também nossas.

28. Aquele que é desleixado na oração e negligente no


serviço a prestar aos irmãos, tudo isso obras desejadas por
Deus, mostra com esse seu comportamento ser um pre­
guiçoso e, como tal, estar debaixo da condenação divina
(di-lo o apóstolo Paulo) . Mostra assim ser indigno do pão
que come. Com efeito, o Apóstolo é suficientemente claro
ao afirmar: «que o preguiçoso que não quer trabalhar não
coma» (2Ts 3 , 1 0) . E ainda na Escritura, lemos algures: «Deus
detesta aqueles que não trabalham. » E ainda: «aquele que
SÃO MACÁRIO 449

não trabalha não pode ser fiel.» E no livro de Ben Sira en­
contramos a declaração: «a ociosidade é mestra de nume­
rosos vícios e gera muita malícia» (Sir 33,28) . Por conse­
guinte, é necessário que toda a obra realizada em nome de
Deus, seja ela qual for, dê frutos e conduza a algum bem,
de modo que o homem não sej a condenado a uma vida
estéril já aqui neste mundo e, no futuro, não seja excluído
dos bens eternos.

29. Há quem diga que nos é impossível atingir a petfei­


ção em virtude do fascínio que as paixões exercem sobre
nós; tão fortes elas são (argumentam assim esses nossos
contestantes) que fazem de nós seus cativos, incapazes de
comungar plenamente com o Espírito e, por conseguinte,
arredados da comunhão com Deus. Ora bem, a esses tais
há que opor o testemunho das Escrituras divinas e mos­
trar assim que eles, conhecendo-as mal, delas falam pessi­
mamente, isto é, de um modo falso e perigoso.
Com efeito, nelas encontramos as claras palavras do
Senhor a exortar-nos de um modo injuntivo: «Sede petfei­
tos, como vosso Pai celeste é petfeito» (Mt 5 ,48) , com o que
exprime a ideia de uma total pureza. E é ainda o mesmo
Senhor quem nos diz: «Quero que lá onde Eu estou, eles
também estejam comigo, a fim de que eles contemplem a
minha glória. » E continua: «Ü céu e a terra passarão, mas
as minhas palavras não hão de passar» Qo 1 7,24; Mt 24,35). O
apóstolo Paulo, esse, exprime-se em total sintonia com as
palavras do Senhor: «a Ele anunciamos, a todos exortando,
a todos advertindo com toda a sageza, a fim de tornar cada
um perfeito em Cristo» e «Até que cheguemos todos à
unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, ao
estado do homem perfeito, à medida da plenitude de
Cristo» (Cl 1 ,28; Ef 4, 1 3 ) .
450 PEQUENA FILOCALIA

Por conseguinte, ao aspirarmos à perfeição, se nos com­


portarmos como devemos, há duas coisas que, nimbadas
de beleza, vêm à luz do dia: uma delas consiste em orien­
tarmos o nosso combate interior e permanente no sentido
da perfeição; a outra traduz-se num não à vaidade, cons­
cientes da nossa pequenez no modo como aspiramos à
plenitude sem ainda a termos atingido.

30. Esses que negam a posibilidade de atingirmos a per­


feição infligem à alma a maior das malfeitorias, e isso por
três motivos. Em primeiro lugar porque, ao defenderem o
que defendem, põem em causa a veracidade das Escrituras
inspiradas por Deus. Em segundo lugar porque, ao não
assumirem a perfeição como um alvo a atingir, estão a
negar que ela seja um elemento integrante da mensagem
do cristianismo (e a partir de uma tal negação começam a
contentar-se com pequenas realizações, abandonam uma
atitude de expectativa, deixam de se esforçar, vão perdendo
a esperança de uma erradicação total das paixões, abrindo
assim o caminho para se satisfazerem com o que é medío­
cre) . Em terceiro lugar porque, ao pensarem ter atingido a
modesta meta por eles fixada (contentes lá porque realiza­
ram algumas virtudes) estão a fechar a porta à humildade,
à pobreza, à contrição, com o que ficam inaptos para pro­
gredirem no dia a dia. Eis aonde os leva a meta por eles
estabelecida!

31 . Aqueles que defendem ser impossível atingir (mes­


mo mediante o Espírito) a «nova criação» própria de um
coração puro são explicitamente comparados pelo após­
tolo Paulo àqueles que, por causa da sua incredulidade,
não foram j ulgados dignos de entrar na Terra Prometida,
tendo ficado os seus cadáveres nas areias do deserto (cf.
SÃO MACÁRIO 45 1

Heb 3 , 1 7) . Ora, aquilo que era então concretamente, visivel­


mente, evocado como Terra Prometida, é aqui interiori­
zado e, de um modo invisível, exprime a ideia da libertação
das paixões, considerada nos textos paulinos como a quin­
tessência dos mandamentos.
A verdadeira terra prometida é essa, e é por amor dela,
isto é, por amor nosso, que todas estas coisas nos foram
transmitidas de um modo figurado. O inefável Paulo, pro­
curando consolidar o trabalho-missão dos discípulos, para
que a nenhum deles lhe acontecesse ser possuído pela
incredulidade, exorta a todos com calorosas palavras :
«Vigiai, meus irmãos, de modo que nenhum de vós tenha
um coração mau e incrédulo, ao ponto de se desviar do
Deus vivo» (Heb 3 , 1 2) . Ele diz "desviar-se" não no sentido
de "negar", mas sim no sentido de "não crer nas suas pro­
messas" . Falando, pois, alegoricamente destas figuras do
Judaísmo, e comparando-as à verdade, acrescenta: «Quem
foram aqueles que provocaram Deus depois de o terem
ouvido, senão todos os que tinham saído do Egito sob a
conduta de Moisés? Contra quem esteve Deus indignado
durante quarenta anos? Não foi contra aqueles que tinham
pecado, e cujos cadáveres caíram no deserto? ! E a quem
jurou Ele que não entrariam no seu repouso, se não àque­
les que tinham desobedecido? ! Vemos assim que não pu­
deram entrar por causa da sua incredulidade» (Heb 3,1 6-1 9) .
E e m tom inj untivo continua: «tenhamos cuidado, pois,
para não suceder que - perdurando ainda a promessa de
entrar no seu repouso - algum de vós fique para trás. Pois
a boa-nova nos foi anunciada a nós como a eles. Mas não
lhes aproveitou em nada terem ouvido a palavra, pois não
permaneceram unidos pela fé àqueles que a escutaram.
Quanto a nós, os que temos crido, entraremos no repou­
so» (Heb 4, 1 -3) . E pouco depois aj unta: «esforcemo-nos,
452 PEQUENA FILOCALIA

pois, por entrar neste repouso, de modo que ninguém caia


por seguir o mesmo exemplo de desobediência» (Heb 4, 1 1 ) .
Ora, n o concernente aos cristãos, q u e verdadeiro re­
pouso há para eles a não ser o que se traduz na libertação
das paixões pecaminosas, libertação operada mediante a
força outorgada pelo Espírito Santo no mais profundo do
nosso ser? ! É essa habitação do Espírito Santo num
coração puro que dá substância e fundamento a uma vida
nova que, ao ser aquilo que é, dá-se a ver como uma vida
libertada.
Eis aí, pois, expressa desse modo, a motivação essencial
que leva o apóstolo Paulo a exortar os cristãos : todos eles
devem empenhar-se no aprofundamento da fé para a vive­
rem intensamente. Assim se exprime ele: «Aproximemo­
-nos, pois, com um coração reto, na plenitude da fé . E
façamo-lo com um coração purificado de toda a falta de
consciência e o corpo lavado com água pura. Portanto,
sem fraquej ar, continuemos a afirmar a nossa esperança,
pois Ele é fiel, o Deus da promessa» (Heb 1 0,22). E conti­
nua: «Quanto mais o sangue de Jesus purificará a nossa
consciência das obras mortas, para que sirvamos o Deus
vivo e verdadeiro» (Heb 9,14) .
Por conseguinte, e m virtude das insondáveis bênçãos
assim prometidas por Deus aos homens, vivamos cheios
de gratidão, confiantes e crentes na verdade que nos é
anunciada. E desse modo, não obstante a incompletude da
nossa consagração, a debilidade das nossas obras, a lenti­
dão dos nossos movimentos, a pequenez da nossa virtude
- não obstante tudo isso, poderemos viver já hoje a oferta
das nossas vidas ao Criador, mediante a retidão da j ustiça
que a fé nos pode dar. E teremos assim os sinais de uma
vida em que a compaixão correrá a par e passo com o
exercício da virtude.
SÃO MACÁRIO 453

32. A oração, quando harmoniosamente combinada


com o discernimento, é superior tanto à virtude como ao
mandamento. É o próprio Senhor quem o atesta. Se não
vej amos. Um certo dia, Ele estava em casa de Marta e
Maria. Enquanto Marta está ocupada a servir, Maria está
sentada aos pés do Senhor, saboreando, como se de um
santo manjar se tratasse, as palavras desse divino ensino.
Mas a sua irmã censura-a por não trabalhar com ela, e ma­
nifesta a Cristo o seu desencanto. Ora o Senhor, subli­
nhando a primazia do que é principal em relação ao que é
secundário, responde-lhe: «Marta, Marta, tu inquietas-te e
agitas-te por muitas coisas. Uma só coisa, porém, é neces­
sária. Maria escolheu a boa parte, que não lhe será tirada»
(Lc 1 0,42) . Ele expressou-se desse modo, queremos subli­
nhá-lo, não porque rej eitasse a prática do serviço, mas
porque colocava o mais importante antes do secundário.
Com efeito, como podia Ele não aprovar uma tal prática se
não só permitiu que os discípulos lhe lavassem os pés,
como também Ele próprio lhes fez o mesmo, e lhes deu até
a ordem de o fazerem entre si? ! Oo 1 3,5) .
Devemos ainda fazer referência a um outro aconteci­
mento que apoia o que dizemos: o que se passou com os
Apóstolos, logo no princípio da Igreja. Vejamos: os Após­
tolos começaram logo por dar o exemplo do serviço, quan­
do se dedicaram ao serviço das mesas; se, depois, numa
determinada altura, o deixaram, foi pela necessidade de se
consagrarem ao ministério (serviço também) da oração e
da palavra, o que exigia deles um tipo de empenhamento
particular. A esse respeito exprimiram-se deste modo:
«Não era j usto que abandonássemos a Palavra de D eus
para servir às mesas. Escolhei homens cheios do Espírito
Santo, e encarregá-los-emos desse serviço. Quanto a nós,
perseveraremos no serviço da Palavra e na oração» (At 6,2-
454 PEQUENA FILOCALIA

-4) . Vês como eles preferiram o principal ao secundário


sem, contudo, ignorarem que um e outro são rebentos de
uma boa raiz?

No concernente à p ersistência
e ao discernimento

33. Os sinais que permitem reconhecer aqueles que têm


aptidão para o serviço da Palavra de Deus, e nesse serviço
produzir bons frutos, são: o gemido, as lágrimas, a tristeza,
o hesicasmo, o movimento da cabeça, a oração, o silêncio,
a persistência, o luto doloroso, as atribulações do coração
por amor de uma vida de piedade. E estas são as suas
obras: a vigília, o jejum, a temperança, a doçura, a longani­
midade, a oração incessante, a meditação das divinas Es­
crituras, a fé, a humildade, o amor fraterno, a submissão, a
ascese, o amor, a bondade, a afabilidade. Vistas em profun­
didade, tais obras, quando feitas com discernimento,
podem ser tidas como reflexo da luz que é o Senhor. Por
outro lado, e num registo diferente, temos os sinais carac­
terizantes daqueles que não dão o fruto da vida: a acédia, a
distração, a dispersão do olhar, a falta de concentração, as
lamúrias, a estupidez. Ora, daí não pode resultar coisa boa,
pelo que as suas obras são: a glutonaria, a cólera, a violên­
cia, a injúria, a vaidade, as palavras inoportunas, a descren­
ça, a instabilidade, o esquecimento, a perturbação, a cupi­
dez, a avareza, a inveja, a intriga, a arrogância, a tagarelice,
o riso intempestivo, a jactância. Como é óbvio, tudo isso é
próprio do mundo das trevas, que não é outro senão o
mundo de Satã.

34. De acordo com a economia divina, o maligno não


foi enviado imediatamente para a geena a ele destinada: a
SÃO MACÁRIO 455

sentença que sobre ele foi pronunciada ficou suspensa de


molde a permitir que ele testasse os homens, submetendo­
-os à prova lá no reduto onde se têm de fazer escolhas e,
por conseguinte, onde tanta coisa se j oga. Como vão os
homens gerir a sua livre vontade?
Ora, desse modo, ele, o maligno, sem disso estar cons­
ciente, não só proporcionou uma maior maturidade e reti­
dão aos santos (tornando-se assim para eles, involuntaria­
mente, um promotor de uma maior glória) como também,
em sentido contrário, cavou para si mesmo, através da sua
malevolência e invetivas contra os santos, um mais j usto
castigo. E quando as coisas são vistas na sua totalidade,
que não é outra senão a totalidade de Deus, podemos
dizer, em sintonia com o apóstolo Paulo, que onde o pe­
cado abundou, superabundou a graça (cf. Rm 5 ,20) .

35. Adão, o homem primordial, caiu na sedução do en­


gano que lhe foi instilado pelo diabo. Ora, uma tal queda,
sabemo-lo muito bem, redundou em catástrofe incontro­
lável: Adão, no drama da queda, é despojado do seu poder
pelo inimigo (o diabo) e passa a ser este o denominado
«príncipe deste século».
Isso em flagrante contradição com o que, no começo,
tinha sido estabelecido pelo Senhor: com efeito, era Adão,
o homem, quem tinha sido instituído nessa dignidade,
como príncipe deste século e senhor do mundo visível.
Nem o fogo prevalecia contra ele, nem a água o submer­
gia, nem as feras lhe faziam mal, nem os animais selvagens
tinham sobre ele o menor domínio. Mas, uma vez caído na
sedução do engano, decaiu do poder que até então tinha,
poder que é transferido para o diabo-enganador, rei das
trapaças.
E aí temos nós o motivo pelo qual o mundo da feitiça-
456 PEQUENA FILOCALIA

ria usufrui de poder: em virtude de uma energia diabólica


(e pela permissão de Deus) magos e feiticeiros mostram-se
capazes de fazer coisas extraordinárias, como sej am o
domínio de serpentes venenosas ou o repto lançado quer
ao fogo quer à água. Temos disso casos conhecidos, como,
por exemplo, a atuação dos seguidores de Janes e Jambres
que se opuseram a Moisés, e como Simão, que resistiu a
Pedro (cf. Ex 7,1 1 - 1 2; At 8,9- 1 0) .

36. É natural (e não s ó natural mas também compreen­


sível) que o diabo se tenha sentido profundamente pertur­
bado ao ver refletida na face de Moisés (cf. Ex. 34,30-31) nada
mais nada menos que a glória primordial de Adão. Com
efeito, a perturbação em que mergulha decorre da inter­
pretação que faz de tão inaudito acontecimento: a ameaça
de destruição futura do seu próprio reino. E nada nos
impede de interpretar também, nesse sentido, as palavras
do apóstolo Paulo: «a morte reinou desde Adão até Moi­
sés, mesmo sobre aqueles cujos pecados não eram seme­
lhantes à transgressão de Adão, que é o tipo daquele que
estava para vir» (Rm 5 , 1 4) .
Segundo a minha interpretação, a face glorificada de
Moisés preservava o sinal e a marca do primeiro homem
criado pelas mãos de Deus. E, vistas bem as coisas, pode­
mos convictamente dizer que essa é a razão pela qual
quando a morte, isto é, o diabo (ele é, com efeito, o autor
da morte) viu isso, pressentiu que o seu reino cairia, como
de facto aconteceu com o advento do Senhor. E, a partir
dessa vitória do Senhor, os cristãos genuínos estão revesti­
dos dessa glória, mesmo já nesta presente vida. E acontece
neles esta coisa extraordinária: vivem já, aqui e agora, no
seu interior, a morte das paixões vergonhosas, e com isso o
SÃO MACÁRIO 457

que ocorre não é outra coisa senão o princípio da morte


da morte.
Com efeito, impotentes para agir, as paixões ficam com­
pletamente anuladas, pois a glória do Espírito Santo brilha
plena e conscientemente no interior de homens de um tal
quilate. Tudo isso é assim, ainda que seja só no momento
da nossa ressurreição que a morte será, na verdade, total­
mente abolida. Mas a sua derrota está já, prolepticamente,
anunciada.

37. Quando, por intermédio da mulher utilizada como


sua cúmplice, o diabo ludibriou Adão, fez com que este
decaísse do alto da glória com que o Criador o tinha reves­
tido. Adão descobriu-se nu e viu a sua própria vergonha,
que até àquela altura não tinha visto, no tempo em que o
seu coração se deliciava com as belezas do céu.
Agora, na sequência da transgressão, defronta-se com
uma situação nova, e tão nova era ela que os seus pensa­
mentos ficaram tristemente limitados à materialidade ter­
rena. E o seu sentimento, que antes era simples e bom,
passa a ficar ferido de mácula, isto é, marcado, profunda­
mente marcado, pela malícia no que ela tem de carnal.
O encerramento do Paraíso, bem como a permissão
dada à espada flamej ante e ao querubim para impedir a
entrada do homem, são tudo coisas que, segundo cremos,
ocorreram concretamente na ordem do visível, tal como
está narrado. Mas são também coisas que ocorrem em
cada alma, na sua interioridade· mais profunda, e, por con­
seguinte, já não na esfera do visível mas sim na ordem do
que é secreto. É, com efeito, à volta do coração que o véu
das trevas se enrola e adensa, isto é, o fogo do espírito
carnal e mundano, que impede a mente de descobrir Deus,
458 PEQUENA FILOCALIA

e paralisa a alma, impedindo-a de orar, de crer, de amar o


Senhor, esse Senhor de quem ela tem sede.
E, contudo, todas essas coisas podem, a partir da expe­
riência, ser aprendidas por aqueles que verdadeiramente se
entregam, com toda a confiança e alegria, ao Senhor.
Aprendizagem essa que, ao ser experienciada e sentida, se
traduz naturalmente na perseverança na oração e no com­
bate espiritual que, zelosamente, se trava contra o maligno.

38. O príncipe deste século, na sua malignidade, é um


bastão que castiga e um látego que fustiga. E são parti­
cularmente aqueles que espiritualmente são crianças os
seus alvos preferidos. Mas, como já se disse noutra altura,
tanto os infortúnios como as tentações podem ter, na vida
dos que são fiéis, resultados opostos àqueles que por ele
são desejados: nas suas vidas pode muito bem ocorrer um
acréscimo tanto de glória como de honra. E desse modo,
paradoxalmente, o maligno ajuda-os a atingir o estado de
perfeição, enquanto ele próprio, maligno, sofrerá um cas­
tigo grande e pesado. Numa palavra: o príncipe deste sé­
culo só aparentemente vence, j á que a sua vitória não é
mais do que uma vitória à Pirro : o seu mal acaba, na
economia divina, por contribuir para o bem, não obstante
a sua maligna intenção não ser boa.
Assim, pois, na lógica da economia divina, quando se
trata de almas que são animadas pela bondade, e cuja
intenção é nobre, até mesmo as vicissitudes mais agrestes
resultam em bem. Isso mesmo sublinha o apóstolo Paulo
com as suas palavras lapidares: «para aqueles que amam a
D eus, e são chamados pelo seu decreto, tudo concorre
para o seu bem» (Rm 8,28) .

A esse maligno bastão que inflige o castigo, foi-lhe


39.
permitido ser o que é para que, tal como numa fornalha,
SÃO MACÁRIO 459

os vasos de barro sej am submetidos ao fogo: enquanto os


íntegros se tornam mais sólidos, os defeituosos, na sua
imperfeição, revelam a sua fragilidade, incapazes como são
de suportar a prova do fogo.
Sendo uma criatura do Senhor, e estando submetido ao
seu poder, o príncipe deste século não prova as suas víti­
mas tanto quanto gostaria, nem tortura com tanta intensi­
dade como seria o seu gosto: age apenas na medida em
que lhe permite a ordem decretada pelo Criador. Com
efeito, Deus, conhecedor total das possibilidades de cada
uma das suas criaturas, permite que cada uma delas seja
provada, mas só até ao limite das suas forças. Vamos en­
contrar confirmação disso mesmo nas palavras do após­
tolo Paulo, que exprime assim o seu pensamento: «Deus é
fiel e não permitirá que sej ais provados para além das
vossas forças. Mas com a provação, Ele abrirá também o
caminho para dela sairmos, de molde a podermos suportá­
-la» (1 Cor 1 0, 13).

4 0 . Aquele que com denodo procura, e que com perse­


verança implora - é o Senhor quem no-lo diz - acaba por
obter resposta (cf. Mt 7,7-8) . De um tal homem espera-se,
porém, que assuma o ato de implorar a misericórdia divina
como um gesto de liberdade: a liberdade de pedir com a
inteligência aliada à língua; e que, além disso, mantenha
sem desfalecimento a sua comunhão com Deus, adoran­
do-o com todas as suas forças, as da mente e as do cora­
ção, sem cair em conluio algum com as coisas mundanas,
nem se comprazer com as paixões maliciosas.
Na verdade, na hora da provação (que é hora de oração
intensa) não nos dececiona Aquele que afirma de um
modo inequívoco: «tudo que pedirdes na oração, com fé,
o recebereis» (cf. Mt 2 1 ,22) . Por conseguinte, todos aqueles
460 PEQUENA FILOCALIA

que defendem contestáveis pontos de vista (e estão a de­


fendê-los ao afirmarem, insensatamente, que mesmo cum­
prindo todos os mandamentos com o obj etivo de alcan­
çarmos graça já nesta vida presente nada ganharemos com
isso) são ignorantes. E trata-se de uma ignorância por
demais lamentável, pois provém de um desconhecimento
crasso das divinas Escrituras. Conhecessem-nas eles e da
sua boca não sairiam palavras tão insanas!
Efetivamente, nenhuma inj ustiça há em Deus que,
eventualmente, se pudesse traduzir na falta de cumpri­
mento das suas promessas. O que pode haver de errado ou
de inj usto não tem a ver com Ele, tem a ver connosco: o
não cumprimento do nosso dever, o não assumirmos a
responsabilidade inerente a uma vida j usta. Que te mante­
nhas, pois, vigilante, na prática fiel do que se te impõe
fazer, e isso de tal modo que, ao chegar o tempo de a tua
alma abandonar o teu pobre corpo, possas ser encontrado
a combater no teu posto, sem desfalecimento e com uma
fé própria daquele que sabe resistir (quando a resistência é
um dever no nome do Evangelho) sem perder de vista o
horizonte da promessa do Senhor.
Acredita no que te digo: sê fiel à vocação com que foste
chamado da parte do Senhor e, quando chegar a tua hora,
partirás com alegria, sentirás segurança, mostrar-te-ás
digno do Reino. Na verdade, tu podes ser um homem
desses, aperfeiçoado pela fé e dotado da capacidade da de­
cisão, isto é, um homem para quem a comunhão com
Deus não é desconhecida, e que a vive intensamente.
Podemos formular a esse respeito uma analogia de
coisas contrárias entre si: se de um homem que cobiça
uma mulher podemos dizer que já cometeu adultério com
ela no seu coração, e apesar de não se ter maculado corpo­
ralmente é já tido como adúltero (cf. Mt 5 ,28), assim tam-
SÃO MACÁRIO 461

bém, mutatis mutandis, de um homem que repeliu do corpo


as coisas do mal e se ligou ao Senhor com todas as suas
forças, podemos dizer que está já em comunhão com
Deus e que recebeu j á dele o dom grande e precioso da
oração, juntamente com o fervor espiritual que lhe é ine­
rente e que encontra expressão autêntica numa vida mar­
cada pela virtude. Porque se o dom de um copo de água
fresca não fica sem recompensa (cf. Mt 1 0 .42), quanto maior
não será a recompensa dada àqueles que, perseverante­
mente, vivem a profundidade da oração e que, dia e noite,
se sentem a Ele ligados na ousadia da prece!

41 .Àqueles que, sentindo-se perplexos, se interrogam


acerca do motivo que os leva, em determinadas circuns­
tâncias, a manifestar impensados sentimentos de ódio a
algum dos irmãos, ou então a serem fautores de aconteci­
mentos indesej áveis - a esses que assim se interrogam é
necessário dizer-lhes que não devem cruzar os braços,
quando situações dessas surgem, mas, pelo contrário, im­
põe-se-nos dizer-lhes que devem lutar com denodo para
que o espírito maligno não envenene, graças à infiltração
na mente de pensamentos perversos, a vida comunitária.
Porque desta constatação não há como fugir: onde quer
que estejam as trevas das paixões indignas, com o seu cor­
tejo miserável que se nutre do fascínio do que é carnal, lá
está também o poder do maligno que mata toda a beleza
que a vida tem. E tal como é impossível impedir que uma
chaga corporal tumefacta e purulenta não tratada entre em
putrefação, tornando-se incurável, podendo inclusive levar
à decomposição do corpo (não obstante o recurso ao tra­
tamento que, por tardio, se revela inútil) , assim também,
mutatis mutandis, as ardentes paixões da alma, mesmo
quando são obj eto de alguns cuidados, continuam, não
462 PEQUENA FILOCALIA

obstante isso, a arder no interior. Contudo, pela graça e


sinergia de Cristo, e graças a uma séria reflexão, essas pai­
xões podem ser erradicadas. Uma tal perspetiva de vitória
não nos deve, porém, tornar insensíveis à desordem deste
mundo: como consequência da desobediência de Adão, há
no mundo uma mácula secreta e, nela entrosadas, estra­
nhas trevas (as trevas das paixões) que, não obstante a na­
tureza original do homem ter sido pura e original, penetra­
ram no todo da humanidade. E, desse modo, perturbam e
maculam o corpo e a alma. Não obstante isso, assim como
o ferro quando submetido ao fogo e ao malho é purificado
(ou o ouro, quando caldeado com o cobre ou com o ferro,
só pelo fogo se pode separar) , assim também a alma, sub­
metida ao fogo do Espírito e batida pela morte vicária do
Salvador, é purificada de toda a paixão e de todo o pecado.

42. Tal como numerosas lâmpadas acesas a partir do


mesmo óleo e da mesma chama não irradiam frequente­
mente todas com igual intensidade a luz, assim também os
carismas (inspiradores de diferentes virtudes) refletem de
um modo diferente a viva luz do Espírito Santo. O mundo
dos carismas, na sua riqueza, é eminentemente plural e
diversificado.
E ainda mais dois casos para servirem de analogia: tal
como numa mesma cidade que é habitada por muita gente
todos comem do mesmo pão e bebem da mesma água,
não obstante existir uma grande variedade e diferença
entre eles, pois uns são adultos, outros bebés, outros crian­
ças, outros anciãos; ou tal como num mesmo campo o
trigo que é nele semeado dá espigas diferentes, mas é todo
levado j unto para a mesma eira e armazenado no mesmo
silo - assim também, mutatis mutandis, se passa o mesmo na
ressurreição dos mortos, na medida em que aos ressuscita-
SÃO MACÁRIO 463

dos serão atribuídos diferentes graus de glória, em função


das suas obras e segundo a sua participação no Espírito
divino durante esta vida. Com efeito, é esse o significado
das palavras do apóstolo Paulo, empenhado em falar da fé
na ressurreição como fé em algo que está no centro da
vida do cristão: «Uma, com efeito, é a glória do sol; outra é
a glória da lua; outra ainda é a glória das estrelas: é que,
na verdade, cada estrela difere de outra estrela em glória»
(1 Cor 1 5 ,41 ) .

4 3 . Q uando olhamos o c é u estrelado, constatamos


haver estrelas maiores do que outras, mas constatamos
também que, não obstante haver diversidade no seu tama­
nho, a luz que delas emana é única. Dessa constatação
podemos fazer reflexões variadas, mas, por agora, concen­
tremo-nos numa única coisa: da ação do Espírito Santo
em nós, homens, resulta uma variedade de testemunhos
com contornos variados na vida de cada um; mas, quando
isso acontece na vida de um homem, ocorre uma mesma
purificação do pecado, de tal modo que os testemunhos
são diferentes, mas a purificação é única em todos os
homens.
Esse inefável acontecimento em que um homem se
sente nascido mediante a energia do Espírito Santo trans­
cende as nossas palavras humanas e fala-nos de uma per­
feição que está ativa em nós numa forma inicial, mas que
não se traduz nem em termos de poder, nem de intelecto,
nem de coragem.
Por conseguinte, a partir daí há todo um caminho a
percorrer, sendo que aquele que chega ao estado de ho­
mem perfeito, à estatura da idade adulta, extingue natural­
mente nele o que era próprio de criança (cf. Ef 4, 1 3 ; 1 Cor
1 3 , 1 1 ) . Segundo o Apóstolo: «no que respeita às profecias,
464 PEQUENA FILOCALIA

elas terão o seu fim; as línguas, essas, cessarão; e no que


concerne ao conhecimento o seu fim ocorrerá» (1 Cor 1 3,8) .
Efetivamente, tal como um homem adulto rej eita as
comidas e as palavras próprias de uma criança (rejeita-as
até com determinação, pois é outra a vida que agora vive)
assim também aquele que cresce no sentido da perfeição
das obras do Evangelho abandona o estado de criança
para seguir o caminho que conduz a uma perfeita maturi­
dade. É ainda para aí que apontam as palavras do Após­
tolo: «quando era uma criança falava como uma criança,
pensava como uma criança, raciocinava como uma crian­
ça; mas quando me tornei adulto acabei com as coisas
próprias de uma criança» (1 Cor 1 3 , 1 1 ) .

44. Aquele q u e é nascido d o Espírito é, de u m certo


modo, como já mostrámos, perfeito. Perfeito no sentido
em que o podemos dizer de uma criança que é perfeita
porque integra em si todas as partes da totalidade. Esse é o
milagre do nascimento produzido em nós pelo Espírito,
mas o Senhor não nos comunica esse inefável dom para
que venhamos a cair no pecado. Nós, homens, somos res­
ponsáveis do mal que fazemos, e fazemo-lo a partir do
momento em que deixamos de agir em conformidade com
a graça divina. Daí as desventuras e desnortes em que
caímos, cativos como ficamos dos tentáculos do mal.
Constatamos, pois, isto : que é pelos nossos próprios
pensamentos naturais que claudicamos, tornando-nos
assim vítimas de nós mesmos. E com isso abrimos o cami­
nho desastroso da negligência (da nossa negligência) que
nos leva, tristemente nos leva, a menosprezar os outros.
Um menosprezo resultante da arrogância que nos corrói
interiormente. Atenção, pois, às palavras de Paulo: «e para
que não me orgulhasse, foi-me dado um espinho na carne,
SÃO MACÁRJO 465

um anj o de satanás» (2Cor 1 2,7) . Daí se infere que até


mesmo os homens que atingem uma tão alta craveira espi­
ritual (e ninguém pode negar que Paulo a atingiu!) têm
necessidade de se manter de sobreaviso em relação a si
próprios, sem claudicar, vigilantes, permanentemente vigi­
lantes. De nenhum modo há lugar para a negligência!
É essa uma atitude essencial, pois quando um homem
não se deixa surpreender por satanás, este fica reduzido à
impotência das suas trapaças. Por esse motivo, um tal ho­
mem está consciente da sua responsabilidade nas ações
que realiza, e assume-as como suas, não as imputanto nem
a Cristo nem ao maligno. É somente quando um homem
se entrega totalmente à graça do Espírito divino que per­
tence a Cristo. Se não é isso que acontece, ainda mesmo
que um tal homem (vamos admitir isto por hipótese) nas­
cesse do Espírito, e como tal participasse no Espírito, mas
claudicasse fazendo-se seguidor da vontade de satanás,
esse seu desaire seria da sua responsabilidade, pois seria
voluntário. Mas já não seria assim se o Senhor ou satanás
o coagissem: então, ele próprio não teria sido responsável,
nem por ter alcançado o Reino, no caso do Senhor, nem
pela sua queda na geena, no caso de satanás.

45. O amante da virtude deve empenhar-se em adquirir


um discernimento tal que lhe permita distinguir o bem do
mal, assim como desativar as várias armadilhas do malig­
no, useiro e vezeiro em enganar muita gente através de
aparições especiosas. O discernimento deve também dar­
-lhe a possibilidade de provar, de sopesar, de compreender
o que é útil e, por isso, merece ser tido em conta, e o que
é inútil e, por isso, deve ser descartado. Sem discerni­
mento, as escolhas que temos de fazer ficam, logo à par­
tida, ameaçadas.
466 PEQUENA FILOCALIA

Admitamos, por exemplo, que um homem, desejoso de


pôr à prova a castidade e fidelidade da sua esposa, a pro­
cura de noite, disfarçado, como se fosse um estranho, e
que ela o repele. Indubitavelmente ele se alegrará com isso,
e louvará a fidelidade dela. Falando agora num registo dife­
rente, mas servindo-nos da analogia, também tu deves
estar precavido contra as incursões de seres dotados de in­
teligência que te são estranhos. Ora, mesmo quando os
que repeles são celestiais, a tua atitude de repulsa dar-lhes­
-á muita alegria, e resultará daí o seu apoio e ajuda no teu
crescimento na graça. Far-te-ão participar na sua alegria,
encher-te-ão de j úbilo espiritual, levar-te-ão a um conhe­
cimento mais profundo de ti mesmo na vivência da tua
comunhão com o Senhor.
Por conseguinte, é-te necessário aliar à capacidade do
discernimento a prática de uma vigilância que não clau­
dica: não te rendas, pois, às visitações dos seres espirituais
que vêm ao teu encontro, sejam eles anjos. Uma tal rendi­
ção mostraria, além de ligeireza de espírito, uma profunda
insensatez. Não te precipites, sê comedido e prudente, e
simultaneamente firme, submetendo-os ao mais cuida­
doso e inteligente escrutínio. E podes estar seguro de que,
agindo desse modo, estás a ser um artífice do bem e um
exorcista do mal. E promoverás desse modo o crescimento
da graça em ti, com os seus efeitos regeneradores de exclu­
são do pecado, mesmo quando ele se insinua transvestido
em bem. É que, com efeito, como diz o apóstolo Paulo, sa­
tanás sabe também transformar-se em anjo de luz para nos
enganar: mestre da trapaça que é, não há nenhuma arti­
manha a que não recorra para nos encerrar na sua teia dia­
bólica (cf. 2Cor 1 1 , 1 4) .
Mas, como j á o dissemos, p o r mais q u e ele construa
aparições brilhantes e sedutoras, é impotente para suscitar
SÃO MACÁRIO 467

um grão que sej a de energia boa. Ora, é particularmente


nisso que ele se trai a si mesmo e que a sua contrafação
surge à luz do dia. De facto, nada de bom ele pode suscitar:
nem o amor a Deus, nem o amor ao próximo, nem a do­
çura, nem a humildade, nem a alegria, nem a paz, nem a
sensatez, nem o menosprezo do mundo, nem a quietude,
nem a sede do celestial, nem o fim das paixões, nem a
recusa dos prazeres. Satanás é a negação de tudo isso, pois
é a negação da graça: a graça, sim, liberta-nos, ensina-nos
a amar, comunica-nos doçura, põe-nos no caminho da
humildade, faz de nós instrumentos de paz. Não nos can­
semos, pois, de sublinhar: enquanto satanás está nos antí­
podas da vida, a graça do Senhor está nos antípodas da
morte. E é nisso que se joga o nosso destino, já agora e no
futuro.
Com efeito, lá diz a Escritura que «os frutos do Espírito
são o amor, a alegria, a paz, a paciência, a benignidade, a
generosidade, a fidelidade, o autodomínio, coisas contra as
quais a Lei cessa» (Gl 5,22-23) . O maligno, esse, pelo contrá­
rio, usa toda a sua habilidade e todo o seu poder com o fito
de suscitar a vaidade, o orgulho, a jactância.
Sinto-me levado a sublinhar um tal contraste, e a escre­
ver as palavras que escrevo, com o objetivo de te ajudar a
discernir (não te esqueças nunca do valor do discerni­
mento !) de que tipo é a luz intelectual que brilha na tua
alma. Como já, sem dúvida, compreendeste, é a partir dos
seus efeitos que podemos ajuizar se uma tal luz tem a sua
origem na energia de Deus ou na de satanás. Com efeito,
uma vez exercitados os poderes do discernimento, a distin­
ção surge com meridiana clareza à alma através da perce­
ção intelectual. Efetivamente, tal como o vinagre e o vinho
são uma mesma coisa para a vista, mas não para a garganta
(pois esta, mediante o paladar, distingue o que é próprio de
468 PEQUENA FILOCALIA

um e próprio do outro) assim também a alma, mediante a


sua perceção intelectual e energia, pode distinguir os caris­
mas do Espírito das fantasias do maligno. E tem sempre
bem presente isto: enquanto os carismas do Espírito são
manifestações de vida autêntica, as fantasias do maligno
não passam de morte encapotada.

46. A alma deve, com os olhos de que dispõe, examinar­


-se atentamente o melhor possível, se não terá já caído, por
pouco que seja, no poder do adversário. Na caça, mesmo
quando é apenas uma parte do animal que é apanhada na
ratoeira, é necessário abater totalmente a presa, a fim de os
caçadores poderem dispor dela. Do mesmo modo, mutatis
mutandis, é isso que os inimigos fazem habitualmente à
alma. E é animado por esse pensamento que o salmista,
sempre consciente das trapaças inimigas, e sedento de
Deus, exclama: «Armaram uma ratoeira para os meus pés,
para me fazerem cair; cavaram um fosso diante de mim,
para abaterem a minha alma; mas foram eles que lá
caíram» (Sl 57,7) .

47. Aquele que quer entrar pela porta estreita na casa do


homem forte, maniatá-lo e roubar os seus bens (cf. Mt
1 2,29) , tem de se preparar para isso, observando uma rigo­
rosa disciplina. Assim, pois, não pode entregar-se a uma
vida de devassidão esgotante para o corpo, mas antes, pelo
contrário, fortalecer-se no Espírito Santo, tendo bem pre­
sente na memória a advertência apostólica de que «nem a
carne nem o sangue herdarão o Reino de Deus» (1 Cor 1 5,50) .
E como deve ele fortalecer-se no Espírito Santo? Há
que estar atento ao testemunho escriturístico : primeiro,
escutar a voz do apóstolo Paulo, na sua advertência acerca
da sabedoria de Deus, para que os homens não a vejam
SÃO MACÁRIO 469

como loucura (cf. l Cor 1 ,2 1 -24) ; em seguida, o testemunho


do profeta, que nos exorta no sentido de não tomarmos
como fraqueza aquilo que é força: «ele era desvalorizado e
rejeitado pelos outros; era um homem sofredor e marcado
pela enfermidade; era alguém de quem os outros escon­
dem a face; menosprezado e desconsiderado; homem de
dores» (Is 53,3) .
Impõe-se, pois, àquele que quer tornar-se filho de Deus
aceitar a lógica de Deus. O que implica: um arrependi­
mento prenhe de uma mudança de mente; uma rendição à
força do Espírito para que Ele trabalhe em nós a humil­
dade genuína capaz de fugir de toda a vanglória estiolante
e de viver o abaixamento libertador pregado por Jesus;
uma assunção do estatuto de louco aos olhos do mundo
para ser sábio aos olhos de Deus; uma resiliência a toda a
prova no meio da calúnia torpe e do vitupério infame.
Como se vê, é todo um modo de viver que passa por
muita coisa, pois supõe um empenhamento no quotidiano
caracterizado por uma dupla capacidade: a capacidade de
resistir quando se trata de dizer não aos homens, e a capa­
cidade da submissão quando está em j ogo o imperativo
divino. E então Ele, o Senhor, que promete estar no nosso
meio e caminhar connosco, manifestar-se-á no coração de
todo aquele que vivamente deseja ser seu filho e experi­
mentar e sentir a comunhão dada pelo Espírito Santo.
E, quando essas coisas acontecem verdadeiramente na
vida de um homem, esse homem estará em condições para
defrontar como é necessário o homem forte e maniatá-lo,
bem como poderá caminhar sobre o áspide e o basilisco,
sobre os escorpiões e as serpentes (cf. Lc 1 0, 1 9) .

Note-se, porém, que n ã o é de pequena monta o


48.
combate que temos de travar, e só pela graça do Senhor
470 PEQUENA FILOCALIA

esse inimigo que é a morte poderá ser aniquilado. Porque


se é verdade que «O Reino de Deus está dentro de vós» (Lc
1 7,2 1 ) , também é verdade que aquele que luta contra nós e
nos quer aprisionar encontra maneira de também estar
dentro de nós. Por conseguinte, a alma não pode ter des­
canso, enquanto não infligir a morte àquele que a quer
cativa, pois é só com essa morte que cessa o cortejo de dor,
de tristeza, de gemido, e é só a partir daí que a água come­
ça a jorrar na terra sedenta e o deserto se torna, por sua
vez, um reservatório de cristalinas águas. Com efeito, o
Senhor promete encher de água viva o coração deserto, tal
como podemos ler nas palavras do profeta: «vou derramar
água na terra sedenta e fazer correr rios sobre a terra árida;
vou pôr o meu espírito sobre vós e os vossos descenden­
tes, e assim a minha bênção será dada» (Is 44,3) ; e além
dessas palavras do profeta, escutemos também as palavras
que saem da boca do próprio Senhor: «todo aquele que
beber da água que Eu lhe der nunca mais terá sede; a água
que Eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água que
jorra para a vida eterna» Oo 4,1 4) .

49. É óbvio que uma alma que s e deixa cair n a negli­


gência, ficando desta prisioneira, torna-se, nessa sua vul­
nerabilidade, presa fácil da falta de fé. E esse é, essencial­
mente, o motivo pelo qual vive um adiamento constante,
indiferente à interpelação da hora que se faz ouvir na cir­
cunstância que é a sua. Uma hora que, estando grávida do
peso da eternidade, implica uma resposta. Uma alma
dessas fica, pois, permanentemente, à espera de um dia
que nunca é o seu dia, sem receber a Palavra. Tendo caído
assim na esterilidade (triste filha da negligência) não são
raras as ocasiões em que se ufana, numa espécie de so­
nambulismo, de travar um salutar combate interior. Vi-
SÃO MACÁRIO 471

vendo assim uma ilusão, é incapaz de reconhecer a reali­


dade que não é outra senão a da sua enfermidade: está,
com efeito, enferma de si mesma, isto é, da sua própria
cegueira.

50. Tal como o filho recém-nascido é imagem do ho­


mem perfeito, assim também a alma é imagem do Deus
que a criou . Ora, esse filho, no seu crescimento, com o
passar dos anos, vai conhecendo gradualmente o pai, e
este conhecendo o filho, de tal modo que este, ao chegar à
idade adulta, passa a conhecer muito melhor o pai e este
ao filho. Assim também a alma, se a desobediência em que
caiu não tivesse ocorrido, estaria destinada a progredir até
chegar à estatura que se atinge quando habita em nós o
homem perfeito.
Mas tendo essa desobediência ocorrido, a alma desobe­
diente e transgressora mergulhou no oceano do esqueci­
mento e submergiu no abismo do erro, à beira desse preci­
pício que são as portas do inferno. Por conseguinte, assim
afastada de Deus, nessa separação geradora de morte, ela
ficou incapaz de dele se aproximar e de assim conhecer
bem o seu Criador. Mas o Deus misericordioso suscitou
profetas na terra, e por meio deles fê-la regressar, chamou­
-a a si, atraiu-a ao conhecimento de si mesmo. E, final­
mente, na plenitude dos tempos, vindo Ele mesmo, erradi­
cou o esquecimento e extirpou o erro; e, depois de ter re­
duzido ao nada as portas do inferno, foi ao encontro da
alma extraviada e deu-se a ela como exemplo a seguir.
Ficou assim traçado o caminho que deve ser seguido para
que a alma se encontre a si mesma e siga em frente até al­
cançar a estatura plena da maturidade e a perfeição outor­
gada pelo Espírito.
O Verbo de Deus, ao assumir a carne, na plenitude dos
472 PEQUENA FILOCALIA

tempos, seguiu o itinerário não da grandeza mundana mas


do abaixamento celeste (deixando-se até tentar pelo ma­
ligno) suportando as inj úrias e os vitupérios, afrontando as
violências e os gritos da infâmia. E por fim a morte e morte
de cruz, com o que nos mostra, nessa sua descida do des­
pojamento total (há nessa descida uma quenose salvadora!)
que Ele, o Senhor, se colocou do nosso lado, inequivoca­
mente do nosso lado, tornando-nos assim capazes de re­
sistir à ind ignidade da sede de vingança quando somos
vítimas da violência do ultraje.
Por conseguinte, tornemo-nos surdos e mudos diante
deles, desses nossos inquisidores, sem reagirmos à violên­
cia com a violência, de tal modo que, ao sofrermos a bofe­
tada da malícia, e como crucificados, clamemos em alta
voz àquele que pode livrar-nos da morte, fazendo nossas
as palavras do salmista: «mas quem pode detetar os seus
próprios erros? Perdoa-me os que me são desconhecidos;
e preserva-me do homem insolente, não permitas que ele
me subj ugue ! » (SI 1 9, 1 2 - 1 3) ; e ainda: «Senhor, faz com que
as palavras da minha boca e a meditação do meu coração
sejam aceitáveis diante de ti; ó Senhor, rocha minha e meu
redentor! » (SI 1 9, 1 4) .
Assim, uma vez feitos irrepreensíveis no encontro com
Aquele que reina sobre tudo, usufruiremos do repouso
com o Cristo que nos torna participantes da sua vitória.
Com efeito, não é destino da alma ficar para sempre sub­
mersa no oceano dos pensamentos mundanos, pois com
Cristo ela pode emergir do lamentável estado que é esse. E
que coisa maravilhosa é essa! O nosso destino fica assim
marcado, na força do Espírito, e deixamos de ser reféns do
universo concentracionário da mediocridade: o caminho
que se nos abre pela frente é o caminho da vida autêntica,
SÃO MACÁRIO 473

essa vida de união com a Mente que não tem princípio


nem fim.

51 . Ó homem, abre bem os teus ouvidos : se de facto


queres reencontrar-te e recuperar nesse reencontro con­
tigo mesmo a glória original que perdeste em virtude do
ato da desobediência em que mergulhaste, impõe-se-te
passar por uma mudança radical. Antes de mais nada,
impõe-se-te adotar uma nova atitude diante dos manda­
mentos de Deus: terás de assumir com toda a seriedade a
sua observância, o que implica da tua parte dizeres um não .
(um não muito forte) às insinuações inimigas que acolhes­
te em ti, causa da tua desgraça.
Assim, pela graça do Senhor, deixarás de ser refém do
desnorte provocado pelos pensamentos mundanos e tri­
lharás um novo caminho, o da nova obediência, que exi­
girá muito esforço da tua parte, pois, como está escrito,
será com o suor da tua face que recuperarás a riqueza per­
dida (cf. Gn 3,1 9) . E não te esqueças de que há um mérito
nesse esforço, mérito que começa logo numa tomada de
consciência da tua parte: nada de bom e de belo na vida se
atinge sem muito esforço, pois um bem barato não merece
o nome de bem. De facto, se o que é por ti recebido o é
sem esforço e sem suor, acabas por perder o que assim re­
cebes, e por entregar ao inimigo a tua herança. Que cada
um de nós reconheça, pois, o que perdeu, tendo presente a
lamentação do profeta: «Senhor, olha misericordiosamente
para nós, tem presente a nossa desgraça! A nossa herança
passou verdadeiramente para os adversários, as nossas casas
para os estrangeiros; a orfandade ameaça-nos» (Lm 5,1-2) .
Com efeito, transgredimos o mandamento divino, cede­
mos às nossas próprias vontades, deleitámo-nos nos
nossos pensamentos maculados e terrenos, a tal ponto que
474 PEQUENA FILOCALIA

a nossa alma se afastou desmedidamente de Deus, e nos


tornámos semelhantes a órfãos que acabam de perder o
pai.
Por conseguinte, aquele para quem a alma é impor­
tante, e que por isso cuida dela, tem de travar um combate
não apenas contra os pensamentos perversos geradores de
morte, mas também contra os poderes que, na sua arro­
gância, se levantam para, ferozmente, atacar o conheci­
mento de Deus. Combate não pequeno esse, mas podere­
mos estar seguros de uma coisa: não estaremos sós, pois
Aquele que promete habitar em nós e caminhar connosco
vem ao nosso encontro, tal como vai ao encontro de todo
o homem que se esforça por guardar sem mácula o templo
de Deus.
E sabemo-lo bem: a alma, tendo recuperado a herança
que lhe pertence, é j ulgada digna de se tornar esse templo.
Jubilosamente, pois, reconhecemos isso mesmo: reconhe­
cemos que Ele, o Senhor, vencedor do maligno (isto é,
vencedor desse submundo demoníaco onde o grande
combate se travou para nossa salvação) reinará doravante
em nós.

52. As palavras que, pelo Criador, foram ditas a Caim


(«quando trabalhares o solo e o cultivares, não extrairás dele
aquilo que te podia dar a sua força; escuta, pois: tu serás na
terra um gemente, um tremedor, um vagabundo» [Gn 4,1 21)
podem ser lidas e interpretadas tanto literalmente como
simbolicamente. Do ponto de vista literal dizem exatamente
o que as palavras, na sua visibilidade, dizem. Já uma leitura
que vai para além da visibilidade do literal e privilegia a invi­
sibilidade do simbólico vê nas palavras do texto bíblio uma
figura e uma imagem de todos os pecadores.
É assim que a raça de Adão, depois de ter transgredido
SÃO MACÁRIO 475

o mandamento e caído na culpabilidade do pecado, fica


entregue ao atroz desnorte dos pensamentos, mergulhada
na perturbação do desvario, cheia de medo, possuída pela
cobardia e pela inquietação. E o inimigo, esse, acomete
com todas as espécies de cobiças, e acena com os prazeres
mais sedutores: esse é o modo como ataca e como leva as
almas incautas, impreparadas, não nascidas de D eus, a
renderem-se à sedução do seu assédio. Joeira-as assim a
todas, como se fossem farinha numa peneira.
Chamando a atenção para o facto de serem promoto­
res da morte todos aqueles a quem o maligno instrumen­
taliza, perpetuando assim a imagem demencial de Caim, o
Senhor declara: «Vós quereis cumprir os desejos de vosso
pai, o homicida. Com efeito, ele mata o homem desde o
começo, e está longe da verdade» (Jo 8,44) .

53. É elucidativo constatar o quanto o espetáculo de um


rei terreno é para os homens tão desej ado e procurado.
Que sejam disso um exemplo aqueles que se demoram na
cidade onde vive o rei: sentem-se, indubitavelmente, toma­
dos pelo desejo de o verem, de contemplarem a magnifi­
cência das suas vestes, de sentirem a distinção do seu
porte. Há, contudo, exceções: são aqueles que defendem
outro tipo de riqueza, que não são reféns da sedução exer­
cida pela magnificência mundana, que nutrem uma ima­
gem completamente diferente da beleza e aspiram a um
outro tipo de glória.
São esses os homens para quem a autêntica riqueza
está no dom do Espírito que lhes foi comunicado, pelo
que o importante na vida é ter um coração de carne cativa­
do pelo amor divino, esse amor do único Rei que é imor­
tal! É por esse motivo que os homens desse elevado qui­
late não ficam cativos do que é mundano, e se sentem
476 PEQUENA FILOCALIA

transportados, inefavelmente transportados, pelo inco­


mensurável desejo de Deus, colocando-o à frente de tudo
o mais. É disso que o coração deles está cheio.
Ora, é extremamente reduzido o número daqueles que
coroam assim um bom começo com um fim equivalente,
manifestando desse modo o quanto foram persistentes
mesmo nas circunstâncias mais difíceis, sem claudicarem
em nada. Outros há, porém, que não vivem a mesma expe­
riência: estamos a pensar naqueles que começam bem,
com um arrependimento íntino, que chegam até a sentir o
amor de Deus no seu coração, mas que, impotentes para
resistir às vicissitudes da vida, bem como às arrasantes ten­
tações do maligno, que nos assalta com os seus enganos
diversos e multiformes, acabam por ficar prisioneiros do
mundo, e por ser tragados na voragem deste. A negligên­
cia, o desmazelo, a fraqueza do pensamento, tudo isso os
torna presa fácil da sedução que o mundo exerce sobre
eles.
Ora, há que enveredar pelo caminho da resistência: esse
é o caminho daqueles que querem prosseguir até ao fim,
de um modo coerente, as suas convicções. E num per­
curso dessa natureza não há lugar nem para um desej o
alienígena n e m para um amor traficado. A vivência do
amor de Deus é tudo.

54. Os combates travados com esperança e fé têm como


protagonistas homens que vivem intensamente a expe­
riência de que as numerosas provações por que passam ao
longo da vida são de longe ultrapassadas e vencidas pelas
incontáveis e poderosas bênçãos prodigalizadas pelo Deus
que é misericordioso. E no concernente às provações, elas
estão já presentes nas palavras de Jesus que, claramente,
assim se exprime: «Se alguém quiser vir após mim, renun-
SÃO MACÁRIO 477

cie a si mesmo, carregue a sua cruz, e siga-me» (Mt 1 6,24) . E


é Ele quem ainda nos diz: «Se alguém não odeia o seu pai,
a sua nãe, os seus irmãos, a sua mulher, os seus filhos e até
a sua própria alma, não pode ser meu discípulo» (Lc 1 4,26) .
A maior parte dos homens, porém, na inconsciência do
que são os grandes valores da vida, quer alcançar o Reino,
herdar a vida eterna, reinar permanentemente com Cristo
(esse incomensurável bem que ultrapassa todo o entendi­
mento!) sem abdicar dos seus próprios desej os, isto é, sem
um arrependimento que se exprima numa mudança de
mente. Em vez de uma tal metanoia, enveredam antes pelo
caminho da rendição àquele que semeia dentro deles esses
pensamentos vãos que, na sua vacuidade, deixam atrás de
si um rasto de desolação e pecado.

55. Aqueles que, sem claudicar, atingem a meta, conse­


guem-no à custa da prática de uma ascese em que deixam
de se ver a si mesmos como o centro da vida e deixam de
ver o mundo como o centro da sua atração mundana.
Trata-se de uma ascese da renúncia que, por ser aquilo
que é, nos liberta duplamente: em relação a nós memos e
em relação ao fascínio que as muitas coisas mundanas
exercem sobre nós.
Por conseguinte, quando alguém fica fora do Reino está
a ser vítima de si mesmo, pois é de uma autoexclusão que
se trata. Com efeito, vive uma situação de que ele próprio é
responsável, pois, sendo livre para decidir, opta insensata­
mente pelo caminho oposto ao caminho de Deus, incapaz
como é de renunciar a si mesmo e de assumir as exigên­
cias dolorosas inerentes ao caminho que se lhe impõe tri­
lhar. Não tendo sido capaz de renunciar a si mesmo, abre
as portas para o desnorte daí resultante: um desnorte quer
em relação ao mundo, quer às coisas do mundo, quer a
478 PEQUENA FILOCALIA

uma atitude de complacência irresponsável que o leva a


dizer sim quando devia dizer não.
Lançar mão de um exemplo pode aj udar o ouvinte a
clarificar um ou outro aspeto do que estamos a dizer. Su­
ponhamos que um homem, ao examinar-se cuidadosa­
mente a si mesmo, chega à conclusão de que não se j usti­
fica fazer o que está em vias de fazer. Pronto a renunciar
àquilo em que se empenhou, a incerteza começa a germi­
nar no seu coração, e o fiel da balança inicia no interior de
si mesmo, na consciência, um movimento que pende quer
para o amor de Deus quer para o amor do mundo. Pois
bem, quando isso acontece impõe-se a cada um discernir
cuidadosamente o que está em j ogo. Pode tratar-se, por
exemplo, de um contencioso com um irmão, o que pode
levar a uma luta interior contra si mesmo: «Falarei ou não?
Retorquirei aos insultos ultrajantes ou seguirei antes o ca­
minho do silêncio? » Pisa-se assim um terreno em que a
observância dos mandamentos de Deus pode implicar a
abdicação da glória pessoal na sequência da renúncia de si
mesmo.
E que em tudo isso, ao sopesarmos os valores em j ogo,
o fiel da balança não faça irromper nos nossos lábios a
palavra má que atinge o próximo. E que a mente, interior­
mente retesada à maneira de um arco, não desfira uma
qualquer flecha que, por envenenada, mata. E que a vio­
lência das mãos não resulte em ferimentos que, ao serem
infligidos, podem ser causa de homicídio.
É que, podendo tudo começar por um leve movimento
da alma, impõe-se-nos com toda a seriedade dilucidar
como começou e a que lamentável ponto de chegada pode
conduzir esse leve movimento da alma. Crê-me que é
assim que as coisas se passam no concernente ao pecado e
ao hábito: a malícia, mediante invejas e cobiças de toda a
SÃO MACÁRIO 479

espécie, baj ula e acaricia a vontade da alma. E assim se


cumprem: adultério, roubo, cupidez, vanglória, licenciosi­
dade, e tudo o mais do mesmo jaez.

56. Até mesmo aqueles que são praticantes dos bons cos­
tumes caem não poucas vezes em atitudes reveladoras de
uma arrogante vanglória. Motivo pelo qual serão j ulgados
por isso mesmo, o que implica um j ulgamento crítico até
mesmo das coisas boas que fizeram, coisas que podem
passar a ser vistas negativamente como se fossem práticas
más, semelhantes ao roubo, à inj ustiça, a outros pecados
graves. Lá diz a Escritura em tom de advertência: «todos eles
erraram, todos foram artífices da perversidade; não há um,
um sequer, que faça o bem, estão destituídos de um verda­
deiro conhecimento, comem o meu povo tal como comem
pão; mas mergulharão num grande terror: efetivamente,
Deus dispersará os ossos daqueles que procuram agradar
aos homens em vez de o invocarem a Ele» (SI 53,3-4) .
Daí se depreende, de um modo óbvio, que o inimigo,
manhoso, versátil, tortuoso, inventivo como é, pode até
servir-se de uma prática boa para, ao corromper o prati­
cante, ser ele, o inimigo, a ser honrado por isso, colhendo
para si próprio os louros.

57.Ao amar as coisas do mundo presente, um homem


embrutece a sua reflexão, fá-la baixar de nível, oprime-a, e,
com isso, inviabiliza-a. Ora, um homem desses manifesta a
sua propensão para o que é medíocre, possuidor como é
de uma vontade cativa do desvario e de um coração inca­
paz de ter razões acertadas. Daí o modo como se comporta
se manifestar claramente em seu desfavor: posto no prato
da balança, o seu comportamento pesa no sentido do mal.
É desse modo que as vidas dos humanos serão subme-
480 PEQUENA FILOCALIA

tidas ao exame e à prova - e, como é óbvio, os cristãos


fazem parte desse número, vivam eles onde viverem, nas
cidades, nas montanhas, nos mosteiros, nos campos, nos
desertos. Não há dúvida de que aquele que, volunta­
riamente, se deixa atrair pelas coisas mundanas é um ho­
mem que ainda não consagra a Deus todo o seu amor. O
amor que põe nas coisas do mundo enfraquece o amor
que diz consagrar a D eus. O seu amor está disperso e,
nessa dispersão, tanto pode amar as propriedades adquiri­
das, como o ouro, como o estômago, como a licenciosi­
dade, como a eloquência das palavras, como uma outra
coisa qualquer, ou como mais do que uma coisa ao mes­
mo tempo. Amar o poder é uma grande tentação, tal como
amar as honrarias o é.
Há também aqueles que se deleitam com o falar, mes­
mo quando a sua fala nada diz; ou os que adoram ser cha­
mados mestres, mesmo quando nada ensinam, pois nada
mais fazem a não ser divagar. Há ainda quem se perca no
desejo da preguiça, ou da negligência, ou das vestes bela­
mente adornadas. Alguns outros amam o sono ou proferir
graçolas. Com efeito, são inumeráveis os motivos que
levam as pessoas a enamorar-se das coisas do mundo,
sejam elas pequenas ou grandes, importantes ou insignifi­
cantes, acabando por cair num cativeiro de onde não são
capazes, só por si, de se libertarem. Ora, quando se trata do
insidioso assédio das paixões, o combate tem de ser tra­
vado com todo o denodo e sem misericórdia, pois toda a
complacência é j á uma capitulação que abre a porta para o
deleite, para a incapacidade de refletir, de ir ao encontro de
Deus, de o adorar só a ele. Muito diferente disso é quando
a alma, sem tibieza alguma, renuncia a si mesma, está ex­
clusivamente orientada para o Senhor e, com todas as suas
forças, concentra nele o seu ímpeto.
SÃO MACÁRIO 481

58. Evoquemos alguns exemplos, suficientemente elu­


cidativos, que nos possam dar a ver como é que o homem,
voluntariamente, se perde.
Pois bem: todos sabemos que é movido pelo amor das
coisas mundanas que um homem está disposto a defron­
tar-se com o fogo, a mergulhar no mar, a entregar-se a si
mesmo ao cativeiro. Suponhamos que um incêncio defla­
gra assustadoramente na casa ou no campo de alguém.
Aquele que quer salvar-se de imediato foge, mesmo nu
que esteja, abandonando tudo o que tem em casa, conser­
vando apenas a sua própria vida. Mas aquele que vive a
obsessão da posse dos bens, possuído pela ideia de os
salvar, pelo menos a alguns deles, intenta levá-los, e eis que
o fogo, minando completamente a casa, o apanha e mata.
Trata-se neste caso de alguém que, levado pelo amor a
uma coisa passageira (mas que para ele, manifestamente,
conta mais do que ele mesmo) acaba por, voluntariamente,
perecer no fogo. Ou então imaginemos um naufrágio, em
que um dos náufragos, possuído pela ideia de se salvar, se
lança à água, sem pensar em mais nada, e assim salva a sua
própria vida. Mas um outro náufrago, possuído pelo dese­
jo de salvar as suas vestes, é engolido pelas águas, acaban­
do assim, movido pelo desej o de um pequeno ganho, por
se perder a si mesmo. Ou então suponhamos o anúncio de
que o exército inimigo vai atacar. Um, assim que ouve o
anúncio, pernas para que te quero, foge de imediato sem
se preocupar com os seus bens. Mas um outro, incréduto
em relação à iminência do ataque, e desej oso de levar con­
sigo alguns dos seus bens, demora-se, e acaba por ser cap­
turado quando os inimigos chegam.
Aí ficam, pois, alguns exemplos que nos dão a ver como
o apego a certos bens mundanos, destinados à caducidade,
482 PEQUENA FILOCALIA

podem levar alguns homens a, voluntariamente, perderem


corpo e alma, infinitamente mais preciosos.

59. São muito poucos aqueles cujo amor a Deus seja de


tal modo intenso que se sintam capazes de menosprezar os
prazeres, de ficar incólumes à atração dos bens mundanos,
de suportar sem desfalecimento as tentações do maligno.
Mas se não nos vemos nesse reduzido número, não deses­
peremos, nem renunciemos à esperança! Não obstante
muitos navios naufragarem, há sempre aqueles que mes­
mo com ventos contrários levam a travessia até ao fim e
atingem o porto de destino.
Por conseguinte, impõe-se-nos como um dever inalie­
nável, nas variadas circunstâncias em que possamos en­
contrar-nos, manter a firmeza da fé, como homens decidi­
dos a combater, sem claudicarmos na persistência nem
desfalecermos na vigilância.
Precisamos ainda de sentir fome e sede do bem, com
muita inteligência e não menos discernimento, agindo re­
soluta e persistentemente a fim de alcançarmos o que pe­
dimos. Não é pequeno o número daqueles que (dissemo­
-lo j á) têm a pretensão de alcançar o Reino sem esforço,
sem persistência, sem suor; consideram bem-aventurados
os santos e desejam atingir a sua honra e os seus carismas,
mas recusam participar nas suas aflições, nas suas atribu­
lações, nos seus sofrimentos. Claro, todos (incluindo pros­
titutas e publicanos) gostariam que o caminho que deve­
mos seguir fosse suave e sem perturbações. Por isso,
quando os desaires e as vicissitudes sobrevêm, com o seu
poder de prova, é ver como eles desertam na primeira
curva da estrada; mas é ver também como, pelo contrário,
aqueles que verdadeiramente amam o seu Mestre se man-
SÃO MACÁRIO 483

têm firmes, nutridos por esse amor, e por Ele conduzidos


até alcançarem o Reino prometido.

60. Tem presente isto: é nas provações e nos sofrimen­


tos, como também na perseverança e na fé, que, de um
modo oculto, estão presentes os dons da vida. Com efeito,
quer a força da promessa, quer o anúncio da glória, quer
ainda a outorga das bênçãos celestes, tudo isso está lá, de
um modo invisível. Porque - enfaticamente o digo - é ne­
cessário que o trigo lançado à terra, ou a árvore enxertada,
passem primeiro por um processo de putrefação e caiam
numa aparenta desonra, antes de se revestirem da nobreza
da nova veste e da multiplicidade dos frutos. Com efeito,
sem terem passado por uma tal putrefação e conhecido a
desonra daí decorrente, não poderiam revestir-se da no­
breza última nem alcançar a beleza da contemplação. É o
que pensa também o apóstolo Paulo quando afirma: «en­
trarmos no Reino de Deus implica passarmos por aflições
múltiplas» (At 1 4,22) . E o Senhor: « É na perseverança que
salvareis as vossas almas» (Lc 2 1 , 1 9) . E ainda o Senhor: «refe­
ri-vos estas coisas para que tenhais paz em mim. No mun­
do tereis aflições, mas coragem: eu venci o mundo» (Jo 1 6,33) .

61 . A glorificação do nosso corpo no último dia será


tanto mais intensa quanto maior tiver sido a dignidade
com que vivemos ao longo da nossa vida, uma dignidade
tornada fecunda pela comunhão que vivemos com o Espí­
rito Santo, no aprofundamento da fé. Porque o que cada
um de nós, no seu interior, vai vivendo e criando, vai-se
constituindo como reserva da alma, que será desvelada
então ao manifestar-se no exterior do corpo.
D as árvores vem-nos o exemplo. Uma vez o inverno
volvido, o sol começa a brilhar com mais intensidade, os
484 PEQUENA FILOCALIA

ventos começam a soprar benignamente, e eis que elas


crescem do interior e, como se de uma veste se tratasse,
cobrem-se de folhas, de flores, de frutos. É igualmente a
altura em que as ervas floridas brotam do seio da terra, re­
vestindo-se de um adorno de beleza. É delas que o Verbo
de Deus diz: «Nem mesmo S alomão, com toda a sua
glória, se vestiu como uma delas» (Mt 6,29) .
Na verdade, todas essas coisas são tipos, exemplos, ima­
gens, do que é dado àqueles que são salvos na ressurrei­
ção. Com efeito, para todas as almas amantes de Deus -
isto é, para os cristãos cuja vida tem as marcas da autenti­
cidade - é no primeiro mês, o de abril, que também o
poder da ressurreição se revela. Di-lo a divina Escritura:
«esse mês será para vós o começo dos meses, será o pri­
meiro dos meses do ano» (Ex 1 2,2) . É , efetivamente, ele que
recobrirá as árvores nuas, revestindo-as da glória que antes
tinham, oculta no interior do tronco. Analogamente, ainda
que num registo único, também dos cristãos se pode dizer
que serão glorificados através dessa luz inefável e indizível,
que é o poder do Espírito, já neles presente. Esse é o gran­
de milagre do qual não se pode falar senão por meio de
metáforas, como vestuário, alimento, bebida, j úbilo, ale­
gria, paz, ou então, utilizando a sugestiva expressão vida
eterna.

No concernente ao desp ertar da mente

62. Através da glória do Espírito, resplandecente na sua


face, incontemplável em virtude do fascinante e do tre­
mendo que nela havia, o bem-aventurado Moisés deu a
entender o modo como os corpos dos santos serão glorifi­
cados na ressurreição dos j ustos: trata-se, com efeito, de
SÃO MACÁRIO 485

uma glória que os habita já, durante esta presente vida,


mas que então se manifestará em todo o seu esplendor.
Porque nós mesmos (assim está dito) de rosto descoberto,
refletimos j á , no homem interior, a glória do S enhor,
transfigurados como seremos na mesma imagem, de glória
em glória (cf. 2Cor 3,1 8) .
Está ainda escrito, disso nos fala o texto, q u e Moisés,
durante quarenta dias e quarenta noites, nem da comida
nem da bebida se lembrou (cf. Ex 34,28-3 1 ) . E aí temos nós
uma experiência vivida nas profundezas do ser que de ne­
nhum modo se poderia cumprir caso não houvesse o
milagre de um alimento espiritual dado como comunhão.
Ora, esse é o alimento que as almas dos santos, já na vida
presente, recebem do Espírito.

63. Como já se disse, há j á , nesta vida presente, aqui


neste mundo, uma glória que enriquece as almas dos san­
tos, e que, no fim dos tempos, cobrirá e revestirá os corpos
nus na ressurreição, elevando-os às alturas dos céus. E
será então que, com corpo e alma, os santos repousarão
para sempre no Reino de Deus. Com efeito, Deus, ao criar
Adão, criou-o sem asas corpóreas (asas que deu aos pás­
saros) pois as asas que lhe estavam destinadas eram as do
Espírito, no momento da ressurreição, de molde a, graças a
elas, o homem sentir-se leve e ser arrebatado lá onde o
Espírito o quer. Contudo, aos santos, já nesta vida, foram
dadas asas espirituais, dessas capazes de os elevar na dire­
ção do espírito celestial.
De facto, o mundo dos cristãos é um mundo diferente,
como diferentes são as suas vestes, a sua mesa, o seu j úbi­
lo. E sabemos isto: sabemos que, no tempo devido, Cristo
virá do céu, tempo único esse (e, como tal, irrepetível) em
que ocorrerão estas coisas : a ressurreição daqueles que
486 PEQUENA FILOCALIA

adormeceram logo desde o começo do mundo, tal como as


divinas Escrituras o atestam; a divisão em dois grupos dos
ressuscitados; a chamada especial daqueles marcados com
o seu sinal, isto é, com o selo do Espírito, que serão colo­
cados à sua direita, pois, na verdade, Ele mesmo diz que
«as minhas ovelhas ouvem a minha voz e conhecem-na»
Oo 1 0 , 1 4) ; o revestimento glorioso dos seus corpos, pois
serão cingidos com a glória divina que, através das suas
boas obras e mediante o Espírito, as suas almas recebem já
agora nesta vida presente. Assim, bafejados inefavelmente
pela Luz divina, serão glorificados e arrebatados aos céus
para se encontrarem com o Senhor. E ficarão para sempre
com Ele.

64. Aqueles que se empenham em cumprir, com um es­


crúpulo a toda a prova, as exigências da vida cristã são per­
manentemente confrontados com imperativos vários. É
assim que faz parte integrante da sua ascese, antes de mais
nada, a vigilância diligente e cuidadosa da parte da alma
que condiciona quer a contemplação, quer o juízo, quer a
conduta. Visa-se com isso não só atingir um discernimen­
to do bem e do mal, mas também a capacidade de não
confundir a natureza com as paixões contranatura, errada­
mente vistas não poucas vezes como naturais. Procura-se,
assim, viver sem dar passos em falso, animados pelo desejo
fundo de agir de um modo esclarecido e não ao sabor das
circunstâncias.
Efetivamente, a alma é dotada de uma vontade capaz de
levar a cabo uma tarefa essencial que se desdobra em duas:
por um lado, pode perfeitamente exercer a necessária e
salutar influência sobre o corpo, mantendo-o puro, imune
aos efeitos perversos dos sentidos; por outro lado, ser vigia
em relação às coisas mundanas, mantendo em relação a
SÃO MACÁRIO 487

elas a distância necessária que se impõe. Mas além disso, e


em perfeita sintonia com isso, ela é capaz ainda de impedir
que o coração dissemine no mundo pensamentos perver­
sos: para isso desativa-os, imobiliza-os, impede-os de se
renderem ao assédio de um qualquer prazer reles. Por con­
seguinte, quando o Senhor vê alguém conduzir a sua vida
dessa maneira, de acordo com esses valores, com a firme
disposição de o servir a Ele, com temor e tremor (princípio
de sabedoria) tanto maior é o socorro proveniente da sua
divina graça. Nos antípodas desses estão aqueles para
quem esta vida se reduz aos limites do que é mundano,
rendidos como se encontram aos seus prazeres efémeros.
E com estes que poderá fazer Deus?

65. As cinco virgens do Evangelho, que aliaram à pru­


dência a vigilância, receberam, nas almotolias do coração,
o óleo estranho à sua própria natureza (isto é, a graça do
Espírito) e, por isso, puderam entrar no lugar das bodas,
com o Esposo. Mas as outras, as loucas e insensatas, que
permaneceram limitadas à sua própria natureza, não foram
comedidas e vigilantes, e, estando ainda na carne, não pra­
ticaram o ato de abrir o seu coração a um tal óleo de ale­
gria. Ficaram como que adormecidas, anestesiadas pela ne­
gligência, pela preguiça, pela presunção de serem j ustas.
Prisioneiras assim da sua insensatez e loucura, viram-lhes
fechado o lugar das bodas do Reino (cf. Mt 25 , 1 - 1 3 ) . É óbvio
que esse seu vínculo ao mundo, alimentado por um amor
filho do desnorte, foi-lhes fatal, pois não consagraram ao
Esposo celeste um amor total, nem por Ele nutriram um
desej o ardente.
Por outro lado, em atitude contrastante, há as almas
sedentas daquilo que transcende a natureza humana (isto
é, o poder santificante do Espírito) e que, pondo em Cristo
488 PEQUENA FILOCALIA

todo o seu amor e a força do seu desejo, movem-se num


âmbito permeado de uma grande riqueza espiritual, pois
nele oram, pensam, praticam. É esse o seu mundo, no qual
entraram na sequência de uma separação de tudo o mais.
Na verdade, os cinco sentidos da alma (compreensão,
conhecimento, discernimento, perseverança, piedade) ao
serem fecundados pela graça que vem do alto, conj unta­
mente com a santificação operada pelo Espírito, tornam­
-se quais virgens sábias. Mas, pelo contrário, se ficam cati­
vos da sua própria natureza, o seu estado em nada difere
do das virgens loucas, e mostram assim serem filhos do
iníquo mundo e da cólera compulsiva.

66. Houve um tempo, o das origens, em que nos deixá­


mos subj ugar pelo mal. Tratou-se de um mal estranho à
nossa natureza que, não obstante essa estranheza, se infil­
trou em nós através da transgressão do primeiro homem, e
que, com o tempo, se tornou uma espécie de segunda na­
tureza. Mas há agora um novo tempo em que, pela graça -
isto é, pelo dom celeste do Espírito - o mal é extirpado
desta nossa natureza, coisa maravilhosa essa que nos per­
mite aceder à nossa primordial e genesíaca pureza.
Mas para que isso aconteça há um incontornável cami­
nho a percorrer, ao longo do qual se nos impõe viver uma
vida pautada pelo que é belo: orar sem desfalecimento,
viver a fé, praticar diuturnamente a vigilância, resistir à
sedução das coisas mundanas, deixarmos que o Espírito
realize em nós a obra da santificação, fugir da perversidade,
assumir os mandamentos divinos. Esse é o caminho do
q ual não podemos fugir se é que queremos alcançar o
Reino celestial.

Proponho-me agora tocar num importante assunto


67.
que merece ser dilucidado, pois tem tanto de delicado
SÃO MACÁRIO 489

quanto de profundo. O Senhor, que é infinito e incorpó­


reo, fez-se a si mesmo corpo, na sua infinita bondade; Ele,
cuja grandeza é incomensurável, e que está para além de
todo o ser, fez-se pequeno, se assim nos podemos expri­
mir, a fim de se aliar a nós, seres criados e possuidores de
uma mente, isto é, aliou-se às almas dos santos e dos
anj os, a fim de elas também serem dotadas da capacidade
de participar na vida imortal própria da deidade.
Com efeito, cada ser criado - exista ele como anj o, ou
como alma, ou como demónio - é um corpo cujas caracte­
rísticas identificadoras têm a ver com a natureza própria de
cada um deles. Ora, estes seres (independentemente do
grau de consistência própria de cada um) são essencial­
mente corpos e, como tais, na sua substância, possuem um
carácter, uma imagem, numa palavra, uma consistência
que reflete o ser da sua própria natureza.
Nessa perspetiva (a não perder de vista) qual sej a a
espessura substancial de cada um desses corpos terrenos,
assim é a espessura da alma. Ora, sendo também esta, à
sua maneira, um corpo subtil, com consistência própria,
daí resulta serem os membros de cada corpo terreno en­
volvidos e revestidos por um tal corpo subtil. Sendo aquilo
que é, nessa sua espessura, ela envolve o olho, através do
qual também ela própria vê. Igualmente envolve o ouvido,
através do qual também ela própria vê. E a mesma coisa
podemos dizer dos outros membros: ela envolve a mão, o
nariz, numa palavra, o corpo inteiro e cada um dos seus
membros. Desse modo, a alma une-se ao corpo inteiro,
mediante o qual, ao longo de toda a sua vida, tudo realiza.
Pois bem, mutatis mutandis, a inexprimível e inefável
bondade de Cristo manifesta-se neste mundo fazendo-se
Ele mesmo corpo, o que implica ter-se feito Ele mesmo
pequeno, e desse modo ter-se unido às almas fiéis que o
490 PEQUENA FILOCALIA

amam. No seu amor envolve-as e, segundo as palavras do


apóstolo Paulo, torna-se um só espírito com elas, numa
profunda unidade mística, isto é, alma na alma, hipóstase
na hipóstase. E aí temos nós o inefável a entrar nas nossas
vidas : como se Ele ordenasse as coisas de acordo com a
sua vontade, e isso de tal modo que cada alma vive j á na
deidade, com as arras da eternidade, fruindo o indizível
prazer da glória no que ela tem de tremendamente belo.

68. Assim presente na alma, o Senhor, na sua misericor­


diosa vontade, é tanto um fogo que consome como é um
inaudito repouso. É um fogo que consome quando se trata
de extirpar da alma tudo o que nela é vil, infame, supér­
fluo, no dizer das palavras do profeta: «o Senhor nosso
Deus é um fogo devorador, um Deus ciumento» (Dt 4,24) .
É repouso e comunica repouso quando, de um modo indi­
zível e inexplicável, infunde a alegria e a paz com que en­
volve e aquece a alma. Que se pede, então, de nós? Que
nos decidamos com todo o ardor a amá-lo, a praticar obras
agradáveis aos seus olhos, a nos deixarmos tocar pelas suas
bênçãos inefáveis, a experimentarmos e a sentirmos «O que
o olho não viu, o que o ouvido não ouviu, o que não subiu
ao coração do homem» (l Cor 2,9) .
Com efeito, a alma que mostra ser digna dele vive de
um modo intenso segundo a força do Espírito, que se ma­
nifesta como repouso, júbilo, deleite. Podemos, na verdade,
proclamar isto: Ele, ao fazer-se corpo, fez-se pão da vida,
veste, beleza indizível, alegria da alma, comunhão no Espí­
rito. É , com efeito, Ele mesmo quem inequivocamente no­
-lo diz: «Eu sou o pão da vida» e «todo aquele que beber
da água que Eu lhe der jamais terá sede, pois a água que
Eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água que jorra
para a vida eterna» (Jo 6,35; 4, 1 4) .
SÃO MACÁRIO 491

69. As epifanias de que a Bíblia nos fala apresentam-nos


Deus, Senhor dos Céus e da Terra, a manifestar-se tanto a
sacerdotes como a outros que não o eram. Ele, o Senhor,
age sempre de acordo com a sua vontade para o bem da­
queles a quem se manifesta livremente. Além disso, essas
epifanias não decorreram sempre da mesma maneira.
Cada uma delas revestiu-se de aspetos próprios : Ele apa­
receu de uma determinada maneira a Abraão, de outra ma­
neira a Isaac, de outra maneira ainda a Jacob ; diferenças
houve também quando se tratou das suas aparições a Noé,
a Daniel, a Moisés, a David, bem como a cada um dos pro­
fetas. Mas sempre e em cada caso se fez a si mesmo pe­
queno, assumindo a forma corpórea, transfigurando-se,
revelando-se, despojando-se da sua grandeza, descendo ao
nível em que cada um era capaz de o captar, numa quenose
reveladora do grande e inefável amor que sentia por cada
um deles.

70. Vive desprendida das amarras das coisas mundanas


a alma que atinge um elevado estado na vida espiritual e é,
por isso mesmo, julgada digna de ser habitada pelo inefá­
vel poder do alto. Assim livre do cativeiro de um mundo
sordidamente material, essa alma experiencia e sente o
fogo divino, sendo portadora, nos seus membros, da força
que lhe é comunicada pelo amor celeste do Espírito Santo.
Ora, sabemo-lo bem, com um saber de experiência
feito, que tanto o ferro e o chumbo, como o ouro e a prata,
conhecem um processo de fusão ao serem submetidos ao
cadinho do fogo, operação essa que faz com que passem
do sólido ao maleável, e se tornem assim, pelo calor da
chama, flexíveis, dúcteis, fluidos. Pois bem, mutatis mutan­
dis, também a alma que acolhe o fogo celeste do amor do
Espírito, ao passar por esse cadinho purificador, torna-se
492 PEQUENA FILOCALIA

uma alma cuj o amor, que a mantinha refém das seduções


do mundo, passa por uma radical transformação: de amor
do mundo passa a ser, entranhadamente, amor de Deus.
Trata-se, com efeito, de uma metanoia que, ao atingir as
profundezas do ser, leva a alma a desvincular-se dos elos
infames da malícia, bem como a abandonar a dureza es­
cravizante do pecado, a considerar cada coisa mundana
como supérflua e cada coisa divina como revestida da
beleza que lhe é própria. Acontece até uma coisa que nada
tem de chocante por ter tudo de coerente: mesmo no caso
de ela amar com desvelo certos irmãos, se estes se conver­
tem em obstáculo para o amor com que ela ama a Deus,
não hesitará um único momento e seguirá o seu próprio
caminho, deles se desvinculando.
Podemos a esse respeito evocar, em jeito de analogia, o
que se passa na comunhão carnal do casamento: o amor
inerente a essa comunhão mantém-se firme e fiel quando,
numa situação difícil, se vê constrangido a um afasta­
mento do pai, ou da mãe, ou dos irmãos. É que um ho­
mem, mesmo quando ama algum deles, não é em profun­
didade que o ama: todo o seu afeto, e ternura, e desej o, e
amor, vão para aquela que com ele vive. Se, pois, o amor
carnal é capaz de gerar desse modo um afastamento de um
outro amor, quanto mais o amor daqueles que foram atin­
gidos pelo desej o de Deus se revelará mais forte do que
tudo o resto !

Em virtude de Deus ser amor, é sempre com uma


71 .
indizível longanimidade e um profundo j úbilo que acolhe
o arrependimento de todo aquele que, tendo vivido refém
do pecado, dele se liberta, pondo-se a caminho da casa do
Pai celeste, para quem um tal regresso é ocasião para uma
grande festa. É, com efeito, o próprio Senhor quem no-lo
SÃO MACÁRIO 493

diz: «há alegria no Céu por um só pecador que se arre­


pende! » (Lc 1 5,7- 1 0) .
Atenção, porém: que a o tomar consciência d e uma tão
grande bondade divina (essa misericórdia do Senhor que
o leva a acolher o pecador arrependido sem punir um a
um os seus pecados) ninguém se sinta levado a negligen­
ciar os mandamentos e a fazer da generosidade e da mise­
ricórdia divinas uma desculpa para essa sua negligência!
Com efeito, impõe-se-nos ter isto bem presente: o amor de
Deus não pode ser um álibi para irmos cometendo ofensa
a ofensa, desobediência a desobediência, prevaricação a
prevaricação. Que fique, portanto, isto bem claro: uma tal
atitude seria de uma gravidade extrema, e agir desse modo
significaria estar a pecar de um modo que excederia todo o
pecado. Um prevaricador desse jaez ficaria encurralado no
labirinto de um desvario desmesurado, fatalmente entre­
gue à última e definitiva rutura patrocinada pelo maligno:
numa palavra, entregue à perdição.
Temos disso um exemplo histórico com Sodoma: os
seus habitantes fizeram transbordar todas as medidas e ul­
trapassaram todos os limites pecaminosos. Extinguiu-se
neles a menor chama de dignidade que poderia tê-los le­
vado ao arrependimento, e o seu fim foi o que foi: o Deus
justo fez deles presa do fogo (cf. Gn 1 9,28) . E foi isso o que
aconteceu no tempo de Noé: num comportamento de
desnorte, levados à prática do mal pelos seus impulsos
desenfreados, sem manifestarem nenhuma espécie de
arrependimento, os homens atingiram uma tal soma de
pecados que toda a terra foi por isso devastada (cf. Gn 6,7) .
Diferente foi o caso dos Egípcios: as muitas faltas que
cometeram e a arrogância que manifestaram para com o
povo de Deus levaram o Senhor Deus a feri-los com pra­
gas que, cada vez mais intensas, os conduzissem ao arre-
494 PEQUENA FILOCALIA

pendimento, sem os entregar desde logo à ruína total. Mas


eles, mal se sentiam recuperados depois de cada calami­
dade, voltavam complacentemente ao mal, ligando-se à
sua primeira infidelidade, de onde resultou a perseguição
que moveram ao povo do Senhor que saía do Egito. E foi
por causa disso que a justiça de Deus acabou por se abater
sobre eles, destruindo-os totalmente (cf. Ex 1 4,27-28) . E no
concernente à história de Israel, sabemo-lo muito bem, o
Senhor também teve de julgar o pecado, nomeadamente o
modo hostil como os profetas por Ele enviados eram trata­
dos, chegando até mesmo alguns deles a ser mortos. Pa­
cientemente Ele, o Senhor, dava mostras de uma imensa
misericórdia, mas à medida que a responsabilidade de
Israel aumentava, pecando de muitas e variadas maneiras, e
de um modo muito especial com a morte do Filho enviado
do Céu (pois em vez de manifestarem a seu respeito reve­
rência e reconhecimento, colocaram sobre Ele as suas mãos
homicidas) também Israel conheceu um duro julgamento:
profecia, promessa, sacerdócio, culto, tudo lhes foi retirado e
confiado aos gentios que aderiram à fé (cf. Mt 21 ,43) .

72. Assumamos com ardor o nosso discipulado, saben­


do que em Jesus temos o Mestre divino ; celebremos o
culto que lhe é devido, que não é outro senão o do cora­
ção; tenhamos presente o imperativo divino que se traduz
na observância dos mandamentos - eis três imperativos
que por nós devem ser entusiasticamente assumidos. E se
assim for, nenhum motivo teremos para desesperar da
nossa salvação, e não nos deixaremos abater. Trata-se,
obviamente, em tudo isso, de um inelutável combate, já
que o maligno nos tece artimanhas insidiosas, de que o in­
tento é lançar-nos no desespero, servindo-se para isso da
lembrança que em nós acorda dos nossos antigos pecados.
SÃO MACÁRIO 495

Ora, no meio do desnorte que em nós ele quer provo­


car, agarremo-nos salutarmente a uma outra lembrança:
aquela que consiste em compreendermos que o passado
de Cristo é também o seu presente, e que o seu presente é
também o nosso. Com efeito, se Ele, quando viveu corpo­
ralmente aqui na terra, deu vista aos cegos, pôs a andar os
paralíticos, fez os surdos ouvirem, purificou os leprosos,
ressuscitou os mortos, quanto mais hoje não curará Ele a
cegueira dos pensamentos iníquos, a preguiça da alma
negligente, a surdez de um coração petrificado!
Assentemos, pois, nisto: se foi Ele mesmo quem criou o
corpo e quem criou a alma, e tão benevolente e condoído
se mostrou ao curar aquilo que é mortal e perecível, quan­
to mais não se mostrará Ele benevolente e condoído com a
alma imortal que, refém da enfermidade da malícia e da
ignorância, se dirige a Ele em oração ardente, confiante no
seu amor? ! Com efeito, foi Ele mesmo quem disse: «não
fará o meu Pai celeste j ustiça àqueles que o invocam noite
e dia? Sim, Eu vo-lo digo, Ele, indubitavelmente, far-lhes­
á j ustiça, e sem demora!» (Lc 1 8,8) . E disse também: «pedi e
ser-vos-á dado; procurai e encontrareis; batei e abrir-se­
-vos-á» (Mt 7,7) . E em tom de encoraj amento e de chamada
à perseverança na oração, disse: «embora não se levante
para lhos dar lá por ser seu amigo, ao menos levantar-se-á
devido à impertinência dele para lhe dar tudo de que ele
necessita» (Lc 1 1 ,8). Ora, ao ensinar-nos desse modo, está
sobretudo a chamar a nossa atenção para a necessidade de
sermos coraj osos na petição e até mesmo impertinentes
como orantes.
Notemos isto que é fundamental: foi Ele, o Senhor do
Céu e da Terra, que tomou a iniciativa de vir viver a nossa
vida, como um de nós. E foi como um de nós que esteve
no nosso meio: esteve connosco para nos reabilitar, apa-
496 PEQUENA FILOCALIA

gando os nossos pecados e fazendo-nos regressar a Ele.


Por conseguinte, a nós é pedido que, rejeitando tudo aqui­
lo que é medíocre e mau, nos consagremos a Ele, rendidos
à força do seu amor. Agindo nós assim, despertaremos
para a alegria de constatarmos que Ele, o único que podia
rejeitar-nos, não o faz, e que, pelo contrário, nos acolhe e
socorre com os braços do seu amor.

73. Quando o corpo de alguém cai doente e deixa de


poder comer e beber, esse alguém vê-se numa situação de
grande vulnerabilidade, entra em desespero, sente-se amea­
çado pela morte, leva os amigos e familiares a lamentarem­
-se pelo seu estado de enfermo. Pois bem, analogamente,
Deus e os anjos lamentam com uma profunda tristeza as
almas incapazes de se alimentarem com a comida celeste.
Pensa agora em ti: e tu, onde estás? Se tu, pelo contrá­
rio, vives intensamente a comunhão com D eus, se Ele
mesmo te mostra assim ser o teu Deus, se a tua alma se fez
inteiramente olho espiritual, inteiramente luz, se comeste
do genuíno alimento dado pelo Espírito, se bebeste a água
viva e o vinho espiritual que fazem o coração rej ubilar, se
cobriste a tua alma com as vestes da luz inefável, se o teu
homem interior experimenta e sente a beleza de todas
essas coisas - se verdadeiramente é tudo isso que tu sabo­
reias, então tu vives já as arras da vida eterna e usufruis já
com Cristo o mundo onde o mundano deixou de dar as
suas ordens. Mas se ainda estás longe de tudo isso, cativo
de ti mesmo, então chora amargamente e lamenta-te por te
encontrares longe de uma tal riqueza e a leste do Paraíso.
Com efeito, tendo em conta a nossa fragilidade huma­
na, é-nos pedido que usemos de toda a sensatez para sa­
bermos gerir a nossa pobreza: somos vulneráveis, e por
isso devemos orar sem cessar para não sermos tragados
SÃO MACÁRIO 497

pelo mundo obscuro da mediocridade. E quanto àquele


que j á se vê a si mesmo como possuidor das coisas belas
antes evocadas, que não lhe falte também a sensatez: ao
ver-se a si mesmo com olhos tão positivos, pode estar a
correr um risco, o risco de se ver a si mesmo como um rico
de virtudes. Que procure ser sensato, que viva a sabedoria
do Evangelho, que não caia no descuido de nada, sem
perder de vista que o indigente nos aparece não poucas
vezes mascarado de rico.
Na verdade, segundo a divina sabedoria do Evangelho,
é-nos pedido que não percamos de vista a condição da­
quele que pede, daquele que busca, daquele que procura.
Essa é a nossa condição. Vivê-la como orantes, eis a divina
sabedoria! (cf. Mt 7,7-8) .

74. Se o óleo composto de que nos fala a Escritura (cf. Ex


30,23-25) tinha um poder capaz de elevar à glória real aque­
les que por ele eram ungidos, quanto maior não é o poder
do óleo santificante da alegria que unge a mente e o ho­
mem interior daqueles que, tendo recebido as arras do Es­
pírito Santo, se elevam até ao cume da perfeição, isto é, até
às alturas do Reino e à adoção filial de Cristo! Esses tais
que estando ainda na terra se elevam até esse cume, já se
tornaram companheiros do próprio Rei e, sendo já aquilo
que são, é voluntariamente, do mais profundo do coração,
que caminham em direção ao Pai. Estão ainda a caminho,
movem-se ainda na carne, ainda não estão na posse da he­
rança perfeita, e contudo, mediante as arras do Espírito,
estão-lhes já assegurados os bens que esperam, seguros de
que reinarão com Cristo, participando na riqueza inaudita
que nos é proporcionada quando vivemos na força do Es­
pírito (cf. 2Cor 1 ,22; 2Tm 2 , 1 2 ) . Não obstante estarem ainda
498 PEQUENA FILOCALIA

na carne, fizeram j á a experiência, profundamente sentida,


desse outro poder e prazer.
Na verdade, graças à purificação por que passaram
tanto o nosso homem interior como a nossa mente, o véu
da ignorância com que satã nos havia envolvido a nós ho­
mens caídos na desobediência foi totalmente removido
pela graça divina. Com efeito, essa graça, ao manifestar-se,
expulsa toda a mácula e todo o pensamento vil da alma,
purificando-a e capacitando-a para contemplar a glória da
luz verdadeira. E quão inefável tudo isso é! Com efeito, a
alma é levada a reencontrar-se consigo mesma depois de
ter reencontrado a sua própria natureza, com olhos lumi­
nosos, sem estorvo algum a impedir essa nova visão!
Efetivamente, quando uma coisa dessas acontece na
vida de um homem, esse homem vive já, por antecipação,
a beleza do mundo futuro, com todo o inefável inerente a
uma tal beleza. Tal como agora, nesta vida, os nossos olhos
físicos, se íntegros e sãos, olham confiantemente para o
esplendor do sol, assim também o homem de que falamos,
com a sua mente iluminada e p urificada, contempla o
esplendor inacessível do Senhor.

75. Não é fácil aos homens atingir um nível desses:


trata-se, com efeito, de uma ascese exigente, feita de fadi­
gas sem fim, combates incontáveis, suores muitos. Há,
indubitavelmente, seres humanos em quem a graça está
viva e atuante, não obstante estar lá, nos refolhos mais ín­
timos do interior de cada um, oculta, a malícia.
Efetivamente, os dois espíritos (o da luz e o das trevas)
estão ativos num único e mesmo coração, o que poderá
levar-te a perguntar: Que comunhão há entre a luz e as trevas ?
Ou então, formulando as coisas em outros termos, os ter­
mos bíblicos: «Que acordo existe entre o templo de Deus e
SÃO MACÁRIO 499

os ídolos? » (2Cor 6, 1 6) . Ora, se assim me interpelas, respon­


der-te-ei partindo da primeira interrogação: Que comunhão
há entre a luz e as trevas ? Será que é possível à luz divina ficar
entenebrecida, toldada, maculada, ela que é absolutamente
p ura e límpida? Lá diz, com efeito, a Escritura: «A luz
brilha nas trevas e as trevas não a receberam» Go 1 ,5 ) . Im­
põe-se-nos, com efeito, compreender as coisas na sua tota­
lidade, e não de um modo fragmentado, parcial, unilateral,
pois as coisas são, por natureza, complexas. Há aqueles,
tão surpreendentemente dotados, que naturalmente re­
pousam de um modo belo na graça de Deus, capazes do
exercício do autodomínio, revestidos da força do alto que
lhes permite não ser vencidos, nem subjugados, nem der­
rotados, pelo pecado que neles há. Mas, por outro lado, e
em oposição a esses, há também aqueles que, praticantes
embora da oração assídua e conhecedores da quietude,
acabam por ser vítimas de pensamentos vis, tornando-se
presas do pecado que estende as suas garras, não obstante
a graça não os ter abandonado. Trata-se, neste caso, de
pessoas cuj o comportamento é meramente superficial e
marcado pela inconstância e falta de rigor: mal a graça di­
vina atua neles, a sua reação é impulsiva e, vítimas da in­
sensatez, convencem-se de que já estão livres do pecado
uma vez por todas. Diferente é o caso dos outros: dotados
de discernimento e de inteligência, não perdem de vista
que, embora habitados pela graça de Deus, não estão com­
pletamente livres de serem assediados por perversos e
absurdos pensamentos.

76.Ao longo da nossa vida temos conhecido não pou­


cos irmãos que, pela graça de Deus neles operante, con­
seguem extinguir em si mesmos, durante alguns anos
(cinco? seis ?) os desej os pecaminosos que os assaltam.
soo PEQUENA FILOCALIA

Um dia surge, porém, em que - não obstante se terem


convencido de que já tinham atingido o refúgio da quie­
tude, doador da paz autêntica - se descobrem a si mesmos
atingidos pelos tentáculos de um mal que, emboscado
neles, os ataca com tanta crueldade e selvageria ao ponto
de os fazer mergulhar no terror e na ansiedade.
Por conseguinte, torna-se evidente a necessidade de
ninguém (e sublinhamos ninguém) dotado de um olhar pe­
netrante e sensato, dizer, levado pelo impulso da audácia: a
graça divina está comigo e por isso estou, a partir de agora,
livre, inclusive do pecado.
Já o dissemos mais do que uma vez: os dois - a graça e
o pecado - têm um só e mesmo teatro de operações que é
a mente. Há que reconhecer que as coisas são assim,
mesmo quando há aqueles que, mal sentem uma ligeira
brisa espiritual a afagá-los, se mostram logo prontos, leva­
dos por uma volubilidade filha da ignorância, a declarar
convictamente: vencemos. No que me diz respeito, tenho
sempre presente isto: mesmo num belo dia de grande lu­
minosidade, enquanto o sol brilha em todo o seu esplen­
dor e com toda a sua beleza, pode muito bem sobrevir su­
bitamente um intenso nevoeiro ou uma avassaladora
bruma a entenebrecer o que antes era uma bela luz. Ana­
logamente, na vida espiritual de qualquer um que já rece­
beu a graça de Deus, mas que ainda não atingiu o nível de
uma purificação rigorosa, pode muito bem ocorrer algo
semelhante. Uma pessoa dessas não pode, pois, perder a
consciência de que lá no fundo de si mesmo, na profundi­
dade do seu ser, o pecado pode ainda estar ativo. Razão
pela qual se lhe impõe, verdadeiramente, usar de muito
discernimento, de modo a não se tornar vítima de uma
ilusão perigosa que o impediria de aceder a uma profunda
SÃO MACÁRIO 501

experiência das coisas que, em tudo isto, estão em j ogo,


verdadeiramente em jogo.

77. Tal como a uma pessoa sem olhos, sem língua, sem
ouvidos, sem pés, lhe é impossível ver, falar, ouvir, cami­
nhar, assim também sem Deus e sem a energia que dele
provém, é impossível a qualquer pessoa comungar nos
mistérios divinos, conhecer a sabedoria do Senhor, receber
a riqueza do Espírito. No concernente a esta questão, te­
nhamos presente isto: enquanto os sábios gregos são trei­
nados no uso das palavras, praticam a retórica, põem todo
o seu empenho em batalhas verbais, os servos de Deus,
esses, mesmo sem dizerem uma palavra, estão permanen­
temente imbuídos do conhecimento das coisas divinas e
impregnados da graça conferida pelo Espírito.

78. Estou persuadido de que até mesmo os Apóstolos,


não obstante terem vivido a experiência do Espírito Con­
solador, não estavam inteiramente livres da ansiedade. A
acompanhar o j úbilo inefável por eles vivido havia a pre­
sença, assim julgo, de um certo temor, um tipo de temor
companheiro da graça, sem que isso implicasse o menor
resquício do mal ou uma qualquer ausência de segurança.
É indubitável que a graça divina a eles comunicada, fun­
damento de uma vida consagrada, lhes dava um senti­
mento de segurança. E todo aquele que caminhasse bem
não poderia ser vítima de um desnorte que o colocasse no
caminho de um desvio fatal. Tal como uma criança que
atira uma pedra contra um muro nada mais faz do que um
gesto gratuito, ou um soldado que não dispõe senão de
uma flecha embotada nenhuma mossa provoca no ini­
migo, assim também nenhum poder maligno que atacasse
os Apóstolos conseguiria realizar os seus intentos, pois
502 PEQUENA FILOCALIA

eles estavam bem protegidos pelo poder de Cristo. Mas,


embora as coisas fossem assim, e tivessem já atingido um
apreciável grau de perfeição, continuavam a manter o
livre-arbítrio, com o que daí pode resultar. E além disso é
necessário ainda sublinhar uma coisa freq uentemente
esquecida: contrariamente ao que alguns inconsequente­
mente dizem, com a vinda da graça não é decretado, auto­
maticamente, o fim da ansiedade e o início de uma imper­
turbável quietude.

79. Dar das coisas uma explicação superficial, marcada


pelo simplismo, não levanta nem grandes dificuldades
nem desagradáveis incomodidades. Pensemos, por exem­
plo, no pão. É fácil, por exemplo, dizer dele que é feito de
trigo. Só que, saber explicar detalhadamente cada fase do
seu fabrico implica já um conhecimento que nem todos
possuem: estamos aí já a entrar no domínio de um saber
que é apenas apanágio daqueles para quem o fabrico do
pão não tem segredos, pois são pessoas que têm disso um
saber de experiência feito. Assim também, mutatis mutandis,
falarmos do hesicasmo ou dilucidarmos a impassibilidade,
não oferece dificuldades de monta para um tipo de fala
simplista. Mas quando se trata de um tipo de exposição
séria, que não se perde nas franj as do que é superficial,
nem se contenta com o que é medíocre, a exigência é outra
e, como tal, o registo da exposição muda substancialmen­
te. Por exemplo, tentar falar das etapas (ou estádios) através
das quais se atinge o desiderato final, é tarefa de que
apenas se podem ocupar aqueles que já as experienciaram
e sentiram.

Daqueles que proferem palavras espirituais (e por


80.
vezes proferem-nas numa superabundância de valor duvi-
SÃO MACÁRIO 503

doso) sem terem saboreado, sentido, experienciado, aquilo


de que falam, diria serem semelhantes a um homem que,
no pino do verão, em pleno meio-dia, atravessa uma planí­
cie deserta e ressequida. Ao fazê-lo, a sede de que está pos­
suído torna-se-lhe tão intensa e ardente que, em espírito, o
faz ver uma fonte fresca e próxima, de onde mana uma
água doce e límpida com a qual ele se pode s aciar sem
impedimento algum. Ou, então, diria parecerem-se a um
homem que nunca provou o mel e procura descrever aos
outros no que consiste a sua doçura.
Tais são, efetivamente, aqueles que tentam introduzir os
outros na perfeição, na santidade, no hesicasmo, sem
nunca terem eles próprios percorrido o caminho de uma
ascese exigente e esforçada. Nessas condições, há neles
uma vacuidade: a que resulta de uma ausência de convic­
ção e de saber. As suas palavras soam a um blá-blá-blá in­
consequente. S uponhamos, porém, que lhes era dado,
como um dom divino e celestial, experimentar e sentir um
pouco aquilo de que falam. Acontecesse esse milagre e,
surpreendentemente para eles, chegariam à conclusão de
que a verdade e as próprias coisas não correspondem à
explicação que delas eles dão, havendo uma profunda dife­
rença entre o discurso por eles construído e aquilo de que
pretendem falar com um tal discurso.
Ora, há em tudo isto um risco para o cristianismo, risco
que podemos exprimir socorrendo-nos da palavra contra­
fação: a sua mensagem deixaria de ser aquilo que é para se
transformar naquilo que não é. Ao cristianismo há que
saboreá-lo, pois ele é como uma comida e uma bebida:
quanto mais um homem se lhe entrega mais o experiencia
e quanto mais o experiencia mais arde de desejo por ele. O
intelecto desse homem torna-se assim salutarmente insa­
ciável, e ninguém pode detê-lo: é como um homem seden-
5 04 PEQUENA FILOCALIA

to a quem foi dado a beber uma bebida que não apenas


mata a sede mas, pelas características de que se reveste,
estimula o desej o de a saborear mais e mais.
E tendo em conta a importância daquilo que está aqui
em jogo, vamos repetir o que já se disse: a compreensão do
mundo espiritual de que falamos (compreensão que su­
põe, no seu mistério, o envolvimento da mente) implica
experienciá-lo e senti-lo, o que só é possível mediante a
atividade do Espírito Santo em nós. E é só a partir daí que
podemos começar a falar dessas coisas.

81 . O Evangelho, nossa referência permanente, contém


uma multiplicidade de inj unções, quer em forma de inter­
dito, quer em forma de ordem para o agir. Lá temos, pois,
o mandamento como um imperativo: «faz isto», ou «não
faças isto». E tanto num caso como no outro o que está
fundamentalmente em j ogo é tornarmo-nos amigos da­
quele que é o Rei, o Senhor da vida que nos ama. O Evan­
gelho diz, com efeito: «Não te irrites», «não cobices», «se
alguém te bater na face direita, oferece-lhe a outra» (Mt
5 , 2 2 . 2 8 . 3 9) . O apóstolo Paulo, esse, por seu lado, na sequên­
cia estrita desses mandamentos, ensina como deve proces­
sar-se com perseverança e longanimidade, mas sem pres­
sas, pouco a pouco, a obra da purificação. Ele começa por
alimentar com leite, como se faz com as crianças, os ainda
não instruídos, para em seguida os introduzir no caminho
da maturidade, até atingirem a perfeição (cf. 1 Cor 3 , 1 2 ; Ef 4,4-
- 1 6; Heb 5 , 1 4; 6 , 1 ) .
Para exprimirmos o que nisso está implícito, recorra­
mos à figura da túnica de que o Evangelho fala: em virtude
de ela dever ser feita inteiramente de lã, o Apóstolo acena
para o modo como a lã deve ser fiada, para em seguida ser
tecida. A confeção da túnica só vem a seguir.
SÃO MACÁRIO 505

82. Há aqueles que se afastam de alguns vícios, como


sej am a prostituição pública, o roubo, a cupidez, et cetera. É
óbvio que, ao comportarem-se desse modo, estão no cami­
nho daquilo que é bom e próprio de um santo. Não pen­
sem, porém, que já estão no fim do percurso, de posse das
realidades essenciais, ou detentores da verdade. Não
devem cair numa ilusão dessas, que seria uma ilusão peri­
gosa, pois não poucas vezes a malícia, insidiosamente,
ainda vive e rastej a na sua mente. Com efeito, a santidade
genuína, apanágio dos santos que a experimentam e a sen­
tem, implica uma purificação integral do homem interior.
Um dia, quando orava com outros, um irmão foi trans­
portado pelo poder divino, e nesse seu arrebatamento viu a
Cidade celeste, Jerusalém, as suas mansões luminosas, a
sua luz infinita e misteriosa. E ouviu uma voz que dizia ser
ali o lugar do repouso dos j ustos. Em seguida, encheu-se
de orgulho e construiu uma alta opinião de si mesmo. Re­
sultado: foi grande a sua queda, pois acabou por se preci­
pitar nas profundezas do pecado, com as suas várias rami­
ficação em muitos e variados vícios.
Ora bem, se um homem que vive uma experiência de
um tão alto calibre acaba numa tão estrondosa queda,
como pode o noviço dizer: «Tendo em conta que j ej uo e
vivo voluntariamente em exílio, dou a comer aos outros do
que tenho, guardo-me dos vícios, não prevarico em nada -
tendo em conta tudo isso eu também sou santo» - sim,
como pode ele dizer isso? Raciocinar desse modo é mani­
festar uma profunda inconsciência que se nutre de um
fatal desconhecimento: é que, como já se disse, a perfeição
não se limita à abstenção dos vícios, mas, muito mais do
que isso, implica uma total purificação da mente.

Se já compreendeste estas coisas, e já não cais na ar­


83.
madilha de confundir o essencial com o periférico, então
506 PEQUENA FILOCALIA

entra dentro de ti mesmo mediante o caminho exigente e


estreito da sobriedade vigilante, o que implica o exercício
de uma rigorosa custódia dos pensamentos. Debruça-te
assim sobre a tua mente, cativa do pecado, e descortina a
serpente que se encontra nas profundezas do teu ser, lá
onde se acoitam os pensamentos, escondida nos refolhas
da alma, numa vigilância assassina, à espera de te conduzir
pelos caminhos da perdição. Efetivamente, o coração é um
abismo incompreensível! Impõe-se-te, portanto, o esma­
gamento da serpente.
Mas se já o conseguiste e, portanto, se já te purificaste
de toda a iniquidade, e disseste não ao pecado, e te consti­
tuíste artífice do que é j usto, se assim é, podes gloriar-te
em Deus pela pureza a que foste alcandorado. Mas se não
é assim, então humilha-te, pois és ainda um indigente per­
dido no desnorte mortal do labirinto do pecado. Sai, pois,
dele, aproxima-te de Cristo e ora, ora profundamente para
que Ele apague as tuas faltas ocultas. E segue em frente, no
caminho novo da pureza, dessa pureza de que as Es­
crituras, tanto as do Antigo como as do Novo Testamento,
enfaticamente nos falam.
Mesmo se nem todos lá chegam, não há ninguém, con­
tudo, que não anseie ser puro. Tenhamos, porém, presente
que a pureza de que falamos - isto é, a pureza do coração
- não nos é conferida a não ser por Jesus. Com efeito, Ele
mesmo é a verdade substancial, a verdade autêntica sem a
qual a pureza não passa de um simulacro e a salvação fica
reduzida a uma quimera.

No concernente ao amor
Tal como no domínio da exterioridade enveredaste
84.
por um processo de ascese em que renunciaste às coisas
SÃO MACÁRIO 5 07.

visíveis, dando e distribuindo os teus bens, assim também,


no domínio da interioridade, impõe-se-te uma outra as­
cese, essencial, a da renúncia às atitudes que pressupõem
quer o espírito da arrogância, quer o espírito da posse.
Por conseguinte, se a sabedoria que te habita é incapaz
de ver longe por ser mundana, esgotando-se num mero
conhecimento material das coisas, renega-a. E se a tua ca­
pacidade de j ulgar e de compreender não tem outros limi­
tes a não ser os que são ditados pela mediocridade da car­
ne, renega-a. Procura, a todo o custo, trilhar o caminho
onde impere a não arrogância que é em si, como caminho,
uma forma de humildade. Faz-te, pois, humilde e pequeno.
Agindo assim, descobrir-te-ás a ti mesmo como alguém
que desperta para uma nova sabedoria, aquela que é ine­
rente a uma loucura, e que o apóstolo Paulo designa como
loucura da pregação. É nela, nessa divina loucura da pre­
gação - isto é, no poder da cruz - e não nos discursos
cheios de floreados, que encontrarás a verdadeira sabedo­
ria, sabedoria já atuante naqueles que foram j ulgados
dignos de a adquirir. Na verdade, lá diz o Apóstolo: «a cruz
é um escândalo p ara os j udeus e uma loucura para os
gregos; mas para nós que fomos salvos, ela é uma potência
de Deus e uma sabedoria de Deus» (cf. l Cor 1 , 2 1 -24) .

85. Se já saboreaste aquilo que vem do alto, se já parti­


cipaste nessa sabedoria, se já conheceste o que significa a
quietude da alma - se as coisas se passam assim contigo,
muito bem. Mas atenção! Não fiques inchado de orgulho,
nem te vej as a ti mesmo como um atleta que já atingiu a
meta, que j á assimilou toda a verdade, que j á se libertou
da carne. Corres o risco de uma grande ilusão sobre ti
mesmo, e uma ilusão resulta em desilusão. E serás con­
frontado com as palavras do apóstolo Paulo : «Já estais
508 PEQUENA FILOCALIA

saciados! Já sois ricos ! Sem nós começastes j á a reinar!


Oxalá assim fosse, de molde a nós também podermos
reinar convosco» (1 Cor 4,8) .
Ouve bem: mesmo se já degustaste o cristianismo, isso
não significa, forçosamente, que já te fizeste cristão. Está
aqui em j ogo algo muito profundo que implica não te per­
deres de ti mesmo e experienciares permanentemente uma
convicção, que não é outra senão aquela que o Espírito da
verdade implantou na tua mente. Não caias no desnorte
de uma infidelidade a esse Espírito !

Tal como um homem obcecado pela riqueza conti­


86.
nua nessa sua obsessão mesmo quando já amealhou uma
imensa fortuna, pois sente-se permanentemente insaciado
no meio do aumento diário do seu património, ou tal
como um homem sedento a quem foi interditado o acesso
a uma fonte se sente ainda com mais sede depois dessa
interdição, assim também um homem que saboreou Deus
e vive uma profunda comunhão com Ele, quer saboreá-lo
mais e mais.
Efetivamente, quanto mais um homem experimenta
uma tal riqueza, mais a deseja. Uma tal sede de Deus ex­
plica o facto de os cristãos não atribuírem um grande
preço à sua própria vida. Com efeito, para eles, compare­
cerem diante de Deus como orantes, supõe uma atitude de
desprendimento em que se veem a si mesmos como servos
de todos os homens. E D eus alegra-se sobremodo com
isso, pois almas dessas, são para Ele motivo de repouso. E
são-no de um modo particular em virtude de se assumi­
rem como humildes.
É-nos lançado, pois, a todos o desafio da humildade,
desafio que irrompe nas nossas vidas nas mais variadas
circunstâncias. Suponhamos um homem que é possuidor
SÃO MACÁRIO 509

de cabedais bastantes para viver com folga, quer esses ca­


bedais lhe tenham cabido por herança quer os tenha con­
quistado à custa do suor do seu rosto. Pois bem: que lá por
isso não o habite nem o desej o de ser importante, nem
tão-pouco a presunção dos bens materiais. É que, na ver­
dade, Deus abomina um tal estado de espírito, pois a pre­
sunção é, aos seus olhos, uma perversidade do espírito hu­
mano, nos antípodas da humildade. Foi a presunção que,
nas origens, expulsou do paraíso o homem que, ao ouvir
as palavras «sereis como deuses» (Gn 3,5), caiu num ardente
inebriamento, ao ponto de ficar completamente fora de si.
E, desse modo, seduzido por uma promessa falsa, auto­
condena-se a ficar fora do verdadeiro horizonte de espe­
rança que lhe estava destinado.
Aprende, pois, na escola do Evangelho, não só como o
teu Deus (esse S enhor que é também o Filho de D eus)
sendo Rei do universo inteiro se despojou a si mesmo,
assumindo nessa sua quenose a forma de existência de um
escravo, mas também como Ele, não obstante ser Deus, foi
submetido à morte, e morte de cruz (cf. FI 2,5 - 1 1 ) .
Ao contemplares essa quenose d o Filho d e Deus, como é
que tu, homem, homem feito de sangue e de carne, tu que
és terra e cinza, destituído do bem e marcado pelo estigma
da impureza, como é que tu, sendo aquilo que és, te podes
vangloriar em ti mesmo? Por conseguinte, se tens alguma
inteligência (e olha que Deus deu-ta!) olha para ti mesmo
e diz: O que tenho não me pertence, mas recebi-o de um outro. E se
isso for do seu agrado, que aquilo que Ele me deu mo tire totalmen­
te. Desse modo estarás a seguir o caminho justo, que não é
outro senão o que te leva a imputar ao Senhor todo o bem
e a atribuir a ti mesmo, à tua própria fraqueza, o mal.

87.O apóstolo Paulo afirma que há um tesouro que nós


transportamos em vasos de barro: «temos este tesouro em
510 PEQUENA FILOCALIA

vasos de barro para que a força, na sua pujança, se dê a ver


como provinda de Deus e não de nós» (cf. 2Cor 4,7) . Ao falar
desse modo está a referir-se ao precioso tesouro que trans­
portamos em nós mesmos, o poder santificador do Es­
pírito que nos é conferido, e que a ele, Paulo, lhe foi comu­
nicado quando ainda vivia na carne, para que se pudesse
ver que essa obra maravilhosa provinha de D eus e não
dele. Em palavras suas: trata-se de uma obra realizada em
Cristo, pois «é dele que provém o dom que vos permite
estar em Cristo, o qual foi feito por Deus, para nós, sabe­
doria, tal como justiça, santificação e redenção» ( l Cor 1 ,30) .
Por conseguinte, estando nós aqui no centro da vida
cristã, aquele que encontra este tesouro celeste, outorgado
pelo Espírito, e o transporta no seu interior, pode atingir
não somente um estado de pureza irrepreensível como
também viver, em sintonia com isso, a j ustiça do Reino,
como dom do amor de Deus. A observância dos manda­
mentos torna-se para um homem desses não um fardo
pesado a transportar, mas sim uma prática prazerosa.
Aquilo que antes era feito a contragosto, isto é, de mau
grado, passa a ser realizado voluntariamente e, por conse­
guinte, de bom grado. Por mais que alguém possa desej ar
o contrário, a verdade é esta: ninguém pode usufruir dos
frutos do Espírito, se antes não tiver recebido o Espírito
Santo.
Por conseguinte, que cada um se empenhe esforçada­
mente em viver uma vida íntegra, em sintonia com o que
nos é dito pelas palavras apostólicas: «portanto, também
nós, que estamos rodeados de uma tão grande nuvem de
testemunhas, sacudindo toda a carga inútil bem como o
pecado que tão de perto nos assedia, corramos com perse­
verança a prova que nos é proposta, trilhando o caminho
que nos é oferecido à nossa frente» (Heb 1 2 , 1 ) .
SÃO MACÁRIO 511

Ao vivermos assim, na fidelidade do Evangelho, fare­


mos sem dúvida a experiência de uma vida fecundada pela
oração fervorosa de Jesus. É isso o que profundamente de­
sej amos e nisso se j oga a nossa vida de orantes. O tesouro
celeste está à nossa porta.
Com efeito, quem assim age poderá - sublinho isto
uma vez mais - cumprir com pureza e perfeição, de um
modo voluntário e prazeroso, os atos j ustos que são pró­
prios de todo aquele que vive em sintonia com as exigên­
cias do Reino.

88. Aqueles que acolhem no mais profundo do seu ser


as riquezas divinas do Espírito desej am falar delas aos
outros. Ora, nesse processo de comunicação, não se can­
sam de sublinhar que é graças à força do Espírito, e não
por mérito próprio, que essas riquezas existem no seu in­
terior. Assim, pois, as reflexões com que falam dessas
coisas são reflexões espirituais nutridas pela sabedoria di­
vina e não pela sabedoria humana, pois provêm desse san­
tuário interior do Espírito.
Pelo contrário, aqueles que não acolheram uma tal ri­
queza no fundo do seu coração (esse santuário de onde
brota a beleza dos pensamentos de Deus, e onde se vive o
seu mistério, e se saboreiam as palavras inspiradas da sua
Palavra) mal colhem uma flor, numa ou noutra das Escri­
turas, intempestivamente põem-se a exibi-la na ponta da
língua. Ou então, se ouviram falar homens espirituais,
sentem um orgulho próprio e repetem as palavras ouvidas
como se elas fossem suas, sendo que, ao agirem desse
modo, caem numa grave desonestidade que consiste em se
apropriarem dos frutos que não lhes pertencem. Claro, os
seus ouvintes podem, sem grande esforço, usufruir do que
eles dizem, mas eles próprios, depois das suas arengas,
512 PEQUENA FILOCALIA

ficam reduzidos à sua própria indigência. Porque cada


uma das palavras que disseram como se fossem suas
regressa, inevitavelmente, ao sítio de onde foi retirada, que
é o seu verdadeiro sítio. Com efeito, eles mesmos não têm
tesouro próprio: se o tivessem teriam sido eles os primei­
. ros a alegrar-se por isso e, a partir daí, da autenticidade
que seria a sua, poderiam prestar um genuíno serviço aos
outros.
Por conseguinte, devemos ter bem presente isto : em
primeiro lugar, antes de mais nada, é necessário que essa
verdadeira riqueza nos habite, pelo que devemos implorá­
-la a Deus, em oração perseverante. Ser-nos-á então fácil, a
partir daí, ajudarmos os outros no processo da transmis­
são das palavras espirituais e dos mistérios divinos. Esta­
mos aqui no reino da bondade, essa bondade que Deus
manifesta ao habitar em cada homem que crê. É o próprio
Senhor quem no-lo diz: «Aquele que me ama será amado
de meu Pai, e eu amá-lo-ei e revelar-me-ei a ele. » E diz
ainda: «Eu e o Pai viremos e faremos nele a nossa morada»
ºº 1 4, 2 1 . 23) .

89. Aqueles que foram j u lgados dignos de se tornar


filhos de Deus, tendo no seu interior a luz esplendorosa
de Cristo, são guiados pelos plurais e diferentes dons do
Espírito. São eles que recebem o calor da graça, nas re­
giões secretas do coração. Se estabelecermos uma compa­
ração entre as alegrias resultantes de uma vida de que os
horizontes não são outros senão os da materialidade do
mundo, e as alegrias que emergem quotidianamente ao
trilharmos os caminhos divinos pelos quais a graça di­
vina conduz a alma, constatar-se-á o quanto aquelas são
pobres ao serem confrontadas com a riqueza inefável
destas.
SÃO MACÁRIO 513

O s homens que trilham a senda d o que é divino, e são


surpreendidos pela riqueza da graça do Senhor, experi­
mentam e sentem não poucas vezes um j úbilo indizível,
como se estivessem num banquete real. Há vezes em que
experimentam o intenso prazer do Espírito, assim como a
esposa com o esposo. Outras vezes há em que se sentem
como anj os incorpóreas, de tal modo leves e livres que
j ulgam já não estar revestidos por um corpo. Há ainda
outras vezes em que, rej ubilando como se tivessem bebido,
ficam ébrios da inebriante embriaguez dos mistérios do
Espírito. Em outras ocasiões, o lamento e a dor levam-nos
a interceder pela salvação dos homens, assumindo assim
totalmente o luto de Adão, pois o amor divino do Espírito
por todos os homens é neles esfuziante. Vezes há em que
se deixam consumir pelo Espírito, de um modo não tradu­
zível em palavras, sentindo um prazer e um amor tão gran­
des que (se isso lhes fosse de algum modo possível) teriam
recolhido cada homem nas suas próprias entranhas, sem
fazerem discriminação alguma entre os bons e os maus.
Há ainda vezes em que chegam a um tal ponto de menos­
prezo deles próprios que se constituem a si mesmos os
mais insignificantes de todos os homens. Há outras vezes
em que são como que tragados por uma alegria inefável e
intraduzível: trata-se da alegria que só pelo Espírito pode
ser dada. Outras vezes, sentem-se como guerreiros num
campo de batalha onde, protegidos pelas armas do Espíri­
to, travam com denodo um combate contra inimigos invi­
síveis aos quais dominam e subj ugam. Em outras ocasiões,
são possuídos por uma imensa serenidade (é quando o
hesicasmo os invade e vivem a inefável quietude de que ele
é portador) e sentem-se sob o império de um prazer ma­
ravilhoso. Vezes há ainda em que recebem a inteligência e
a sabedoria divinas sob a forma do inescrutável conheci-
514 PEQUENA FILOCALIA

mento outorgado pelo Espírito. Numa palavra: a graça de


Cristo confere-lhes uma sabedoria tal que nenhuma
língua é capaz de a exprimir. Uma vez ou outra acontece­
-lhes também aparecerem aos olhos dos outros como ho­
mens comuns entre os outros homens.
Assim, pois, na vida desses homens, únicos e comuns, a
graça divina manifesta-se de muitas e variadas maneiras,
infundindo neles uma pluralidade de formas. Há sempre,
contudo, em tudo isso, um ponto comum: sempre que a
graça divina se manifesta comunica um ensino. E que en­
sino é esse? É o ensino que fortalece a alma, levando-a a
seguir o caminho da disciplina, de molde a poder compa­
recer perante o Pai celeste perfeita, isenta de censura, livre
da mácula.

90. Essas obras do Espírito de que acabamos de falar


situam-se a altos níveis, graças a uma salutar ascese que
conduz a um ponto muito próximo da perfeição. Efetiva­
mente - dissemo-lo já - referimo-nos a homens em quem
as inefáveis manifestações da graça são eminentemente
ricas, diversas, plurais. Em alguns manifestam-se de um
determinado modo, em outros de modos diferentes, sendo
sempre o mesmo Espírito: a um determinado dom do Es­
pírito sucede-se outro. Dom após dom. Graça após graça.
E, quando alguém atinge a perfeição dada pelo Espírito,
num processo de ascese em que se purifica de todas as
paixões, e em que vive a inefável comunhão com o divino,
e em que se une inteiramente ao Espírito Consolador, e
em que experimenta até aos mais íntimos refolhos da alma
o milagre de se tornar espírito com o Espírito - quando
tudo isso acontece, um tal homem torna-se integralmente
luz, integralmente espírito, integralmente alegria, integral­
mente quietude, integralmente j úbilo, integralmente amor,
SÃO MACÁRIO 515

integralmente compaixão, integralmente bondade e doçura.


De um homem desses se poderá dizer que submerge no
oceano das virtudes do Espírito Santo, à semelhança de
um coral que nas profundezas do mar se vê cercado de
água por todos os lados. Deste modo, homens assim, total­
mente unidos ao Espírito de D eus, íntegros como são,
tornam-se semelhantes a Cristo. Transportam consigo as
virtudes do Espírito, cuj a riqueza se exprime de modos di­
ferentes, e tornam manifestas essas virtudes a toda a gente,
dando os frutos que delas resultam. E visto serem, graças à
ação do Espírito, interiormente irrepreensíveis e puros de
coração, exteriormente as suas ações são o reflexo desse
seu interior. Sempre e continuamente, os frutos do Espíri­
to brilham neles, manifestando assim ser esse o modo pelo
qual podemos avançar para a perfeição espiritual, para a
plenitude de Cristo, à qual o apóstolo Paulo se refere e
para a qual nos exorta com as palavras : «e oro para que
sej ais capazes de compreender, com todos os santos, que
coisa é a largura e a longitude, a altura e a profundidade
(que ultrapassa todo o conhecimento) do amor de Cristo;
e, compreendendo, sej ais cheios, plenamente cheios, desse
amor, tendo em vista o alvo que é a plenitude de Deus»; e
o Apóstolo reforça o seu pensamento ao acrescentar: «até
que cheguemos todos j untos a encontrar-nos na unidade
da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à matu­
ridade do homem perfeito» (Ef 3 , 1 9 ; 4, 1 3) .

91 . Alturas h á - e são particularmente essas a s ocasiões


bafej adas pelo Espírito - em que um homem se aj oelha
para orar e sente que o seu coração se enche da energia di­
vina e a sua alma rej ubila com o Senhor, tal como - já o
dissemos - a esposa rej ubila com o esposo. É o que diz o
grande Isaías: «pois tal como um mancebo desposa uma
516 PEQUENA FILOCALlA

donzela, assim também te desposa Aquele que te criou, e


tal como o noivo se alegra com a noiva, assim também o
teu Deus rej ubila contigo» (Is 62,5) .
A um homem desses, assim bafej ado pela graça divina,
acontece por vezes viver um dia inteiro sem experimentar
algo extraordinário; mas ao entregar-se à oração tudo se
transfigura: o seu homem interior é arrebatado enquanto
ora, e ele experimenta e sente o fascínio da profundidade
infinita do mundo futuro. É possuído por um prazer se­
creto e incomensurável, ao ponto de a sua mente, tomada
de um inefável arrebatamento, conhecer a maravilha do
que é belo, e de o seu coração, prenhe do inaudito, sentir o
indizível. Trata-se de uma hora abençoada, particular­
mente abençoada, filha de um milagre que não é outro
senão o do sopro do Espírito: o orante faz-se um, com a
oração, e com ela, parte, na experiência do inefável.

92. Quando alguém pergunta se é sempre possível ao


homem atingir um tal estado e prolongá-lo, devemos res­
ponder dizendo que a graça nunca abandona um homem,
pois está, de um modo profundo, enraizada nele, quase
como se fosse uma coisa física, parte integrante da sua na­
tureza corpórea. É necessário ainda sublinhar que ela é
una, mas, não obstante essa sua unicidade, ou melhor,
graças a essa sua unicidade, ordena tudo de várias manei­
ras, como melhor lhe parece, para o bem do homem.
Algumas vezes o seu fogo arde em nós de uma maneira
intensa, outras vezes, de um modo suave. Pode acontecer
também, graças ainda à pluralidade dos modos como se
manifesta, que a luz com que brilha umas vezes brilhe
intensamente, outras vezes, de um modo ténue, podendo
até escurecer, ainda que - e isto é essencial - a lâmpada
arda sem nunca se extinguir. Quando o brilho surge forte-
SÃO MACÁRIO 517

mente intenso, é como s e o homem fosse possuído por uma


espécie de embriaguez, que não é outra senão aquela que o
amor de Deus, ao jorrar no coração, desperta em nós.
Há ainda ocasiões em que essa luz, que brilha ininter­
ruptamente dentro de nós, se abre para uma outra luz
ainda mais interior e mais profunda: quando isso acon­
tece, o homem, totalmente absorvido pelo que há de tre­
mendamente inefável nessa contemplação, já não está em
si mesmo. E surge aos olhos do mundo como um louco e
um bárbaro, pois é extravasado na sua alma, nas profun­
dezas do seu ser, pelo amor, pelo prazer, pelo indizível dos
mistérios com que lhe foi dado comungar. Acontece não
poucas vezes numa circunstância dessas, nesses momen­
tos que então vive, o homem ser elevada às alturas, e
aceder às medidas da perfeição, deixando o pecado de ser
pecado. Depois disso é como se a graça, de certo modo, se
retraísse, e o véu de uma potestade contrária descesse
sobre ele.

93. Podemos imaginar desse modo a ação da graça divi­


na, e supor que um homem, ao atingir o décimo segundo
grau na sua elevação espiritual, vive a perfeição própria
desse grau, pois é não poucas vezes possível que as coisas
se processem desse modo. S uponhamos, porém, que a
graça se retrai e desce um grau, ficando no décimo primei­
ro. Em ambos os casos foram inenarráveis as maravilhas
dadas a ver a esse homem, tendo ele experienciado e sen­
tido aquilo que há de inefável no que vivenciou. Se lhe
fosse dado continuar, vivendo ininterruptamente uma tal
experiência, ficaria incapaz de assegurar o cargo para que
foi chamado, ficando assim comprometido o ministério da
Palavra à sua responsabilidade, bem como comprometido
ficaria o seu relacionamento com os outros. Nem mesmo
518 PEQUENA FILOCALIA

por breves instantes se poderia ocupar de nada, podendo


apenas permanecer imóvel, retirado num qualquer canto,
suspenso e inebriado. Essa a razão pela qual a medida per­
feita não lhe foi dada. Com efeito, é-lhe necessário ter
tempo para se consagrar também ao cuidado dos irmãos e
ao serviço da Palavra.

Se ao escutarmos a Palavra do Reino formos levados


94.
à compunção do choro, não nos contentemos com as lá­
grimas vertidas; se formos levados a uma boa audição, não
nos contentemos com a boa qualidade dos nossos ouvi­
dos; se formos levados a um olhar j usto, não nos contente­
mos com o rigor dos nossos olhos. Não comecemos, pois,
a pensar grandes coisas de nós mesmos, como se não hou­
vesse outras lágrimas, outros ouvidos, outros olhos. É que
não somos os únicos a viver essas coisas. Além da nossa
mente há outras mentes, e além da nossa alma há outras
almas.
A quem me estou eu referindo? Refiro-me ao Espírito
divino: é Ele mesmo quem escuta, quem chora, quem ora,
quem conhece, quem verdadeiramente executa a vontade
de Deus. Efetivamente o Senhor, ao prometer aos Apósto­
los o incomensurável dom do Espírito, diz-lhes: «Vou par­
tir. Mas o Consolador, o Espírito Santo que o Pai enviará
em meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas. » E acres­
centa: «Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas vós
não as podeis suportar agora. Quando Ele tiver vindo, o
Espírito da Verdade, Ele vos conduzirá em toda a verdade»
ªº 1 4,26; 1 6, 1 2- 1 3).
Por conseguinte, é Ele quem orará, verá, chorará, ouvi­
rá . E sobre isto mesmo temos as palavras do apóstolo
Paulo: «porque nós não sabemos orar como é preciso, mas
o Espírito, Ele mesmo, intercede por nós com gemidos
SÃO MACÁRIO 519

inefáveis» ( Rm 8,26) . Efetivamente, é ao Espírito que a von­


tade de Deus é manifestada. E é ainda o Apóstolo quem
nos diz: «ninguém conhece as coisas de Deus, a não ser o
Espírito de Deus» (1 Cor 2 , 1 1 ) .
Quando, d e acordo com a promessa, o Consolador veio
no dia de Pentecostes, e o poder do Espírito Santo fez mo­
rada nas almas dos Apóstolos, aconteceu o milagre: o véu
do pecado foi uma vez por todas removido; as paixões
foram erradicadas; os olhos do coração abriram-se. É esse
o acontecimento em que eles são cheios de sabedoria, re­
pletos dos dons do Espírito, preparados para serem teste­
munhas em quem a vontade de Deus se cumpre, conduzi­
dos pela verdade. O Espírito manifesta-se-lhes assim, e as
suas almas experienciam de um modo inaudito a força que
dele vem.
Por conseguinte, no que nos concerne, quando as lá­
grimas da compunção brotarem dos nossos olhos ao
ouvirmos a Palavra de Deus, oremos a Cristo com uma fé
íntegra, esperando que o Espírito (esse Espírito que verda­
deiramente ouve e ora em sintonia com a vontade e o pro­
pósito de Deus) venha até nós.

95. Tem em conta o modo como as coisas se passam.


Uma espécie de poder obscuro, como se se tratasse de ar
subtil, vem cobrir a mente. Ainda que a lâmpada ilumine
sempre e brilhe sem falha num homem - tal como já dis­
semos - a luz que dela emana fica coberta, como se tivesse
sobre si um véu, e esse homem é levado a confessar que
não é perfeito nem totalmente livre do pecado. Digamo-lo
em registo paradoxal: trata-se de um homem livre e ainda
não livre, cumprindo-se nele um já e um ainda não. Ora
isso não acontece sem a intervenção de Deus, pois a sua
520 PEQUENA FILOCALIA

Providência desenrola-se na totalidade da nossa vida e de


acordo com o que podemos chamar a economia divina.
Há uma outra figura (a do muro de separação) que
pode aqui ser evocada para sublinhar o já e o ainda não:
tanto o muro de separação se desconj unta e desmorona,
como, pelo contrário, permanece firme (cf. Ef 2, 1 4) . E o
orante, esse, sabe-o muito bem. Sabe-o na medida em que
a prática da oração tão-pouco é sempre igual a si mesma:
ocasiões há em que a graça divina, agindo em nós, se in­
flama, ou então se mostra tranquila, ou então se revela
doadora de quietude (tudo isso com mais ou menos inten­
sidade) ; mas outras ocasiões também há em que ela se
torna sombria, e como que se ausenta (ainda que essa au­
sência não sej a uma verdadeira ausência, pois ela, graça
divina, dirige o homem sempre para bem deste) .
Se me é permitida uma confissão fá-la-ei: j á me tem
acontecido, em certos momentos, entrar, digamos assim,
na medida perfeita, saborear e conhecer a experiência do
mundo futuro. Mas nunca me vi a mim mesmo, nem a ne­
nhum outro cristão, absolutamente livre. Um homem
pode repousar na graça, encontrando nela uma perfeita
quietude; pode ser j ulgado digno de mistérios e de revela­
ções; pode degustar o sabor e o saber outorgados pela
graça; pode ter uma vida de onde a virtude não está
ausente - pode tudo isso, mas poder tudo isso não signi­
fica que o pecado tenha sido completamente erradicado. O
pecado pode continuar lá, nos refolhas da alma.
Não poucos têm sido os homens que (tendo vivido
essas coisas em virtude da superabundância da graça divi­
na que fez jorrar neles uma abundante luz) se enchem da
convicção de que já são perfeitos e inteiramente livres. Eu,
porém, repito, pois é importante sublinhar isto: até hoj e,
ainda nunca me encontrei com pessoa alguma que fosse
SÃO MACÁRIO 521

absolutamente livre. Com efeito, tendo eu em certos mo­


mentos atingido parcialmente o grau de que já falei, fiquei
a saber uma coisa: fiquei a saber no que consiste a perfei­
ção e, a partir daí, como é que podemos dizer de um ho­
mem que é perfeito ou não.

96. Sempre que ouvires falar da união do esposo com a


esposa, dos coros, da música, das festas, não interpretes
essas coisas de um modo material e terreno, pois elas, ao
serem evocadas são-no somente como exemplos, com o
obj etivo de nos ajudarem a captar as realidades invisíveis.
Em virtude de estas serem inefáveis e espirituais, os nossos
olhos carnais não podem discerni-las e necessitamos para
tal de outros olhos, isto é, de um novo olhar. É esse novo
olhar que nos pode conduzir do incompreensível ao com­
preensível. Do invisível ao visível. E vice-versa.
Ora, ao falarmos deste modo não perdemos de vista
que é o Espírito Santo que, através das coisas, nos faz ver
mais longe; com efeito, na comunhão que com Ele vive­
mos podemos ver os tesouros celestes que descem à terra;
podemos discernir nos coros, nas festas dos anj os, na
vivência litúrgica, anúncios do banquete futuro. Sem dú­
vida que ao não iniciado é-lhe completamente impossível
conceber essas coisas vendo nelas não apenas o que elas
são mas também o que está para além delas.
Por conseguinte, exorto-te a escutar com um sábio re­
colhimento aqueles que dessas coisas te falarem, até que
te aconteça a ti também, mediante a fé, seres julgado digno
de as descobrir. E olha: compreenderás então, graças à ex­
periência vivida com os olhos da alma, a grandeza que há
nas pequenas coisas. E, por conseguinte, quanta não é a
beleza das coisas e a maravilha dos mistérios com que se
podem relacionar, mesmo aqui em baixo, as almas que
522 PEQUENA FILOCALIA

com fidelidade são cristãs. E na ressurreição, o que agora


ainda não é totalmente compreendido, sê-lo-á de um
modo prenhe de maravilha.

97. Há muitas coisas já aqui neste mundo que, quando


participam na comunhão do Espírito, exalam um rico per­
fume semelhante ao do incenso que é lançado sobre o
fogo. São disso exemplos: a oração, o amor, a fé, a vigília, o
j ej um, a ascese, os bons frutos, as coisas belas próprias da
nossa alma. Ora, ao tomarmos disso consciência, é de bom
grado que vivemos neste mundo, mantendo uma boa rela­
ção com as coisas belas que nos rodeiam. E mais que isso,
torna-se para nós mais fácil viver em sintonia com a von­
tade de Deus.
Mas, pelo contrário, sem o Espírito Santo que nos abre
os olhos e nos dá um coração de carne para sentir (volta­
mos a dizê-lo) ninguém pode compreender a vontade de
Deus. Todos sabemos isto: antes de se casar, uma mulher
pode agir segundo o seu próprio pensamento e vontade,
mas, depois de se unir ao seu marido, passa a viver total­
mente sob a autoridade deste, deixando de fazer valer a sua
vontade. Pois bem: analogamente, e em outro registo, tam­
bém a alma tem uma vontade própria, leis próprias, obras
próprias, mas quando se torna digna de se unir ao homem
celeste - a Cristo - submete-se à lei desse homem e deixa
de seguir a sua vontade própria. É com j úbilo que passa a
seguir a lei de Cristo, seu esposo.

98. Guarda bem no teu espírito a interpretação de que


as vestes das bodas não é outra coisa senão a graça do
Espírito Santo. Trata-se de uma interpretação divina, dada
por Cristo, essencial para nos orientarmos nesta vida, sem
cairmos no desnorte da indignidade (cf. Mt 2 2 , 1 1 ) . Com
SÃO MACÁRIO 523

efeito, todo aquele que não se torna digno de com elas se


revestir, de nenhum modo participará nas bodas celestes e
no seu banquete espiritual.

99. Esforcemo-nos por beber do vinho espiritual, que


não é outro senão aquele que Deus nos oferece na comu­
nhão vivida com Ele na força do Espírito Santo. Que nos
deixemos, pois, inebriar no modo como vivemos a nossa
vida espiritual. Aqueles que se saciam do vinho comum
tornam-se com isso bem-falantes. Pois bem, quando se
trata do vinho espiritual de que falamos, aqueles que dele
bebem sentem que a língua se lhes solta para falarem dos
mistérios de Deus. E lá diz o divino David, esse salmista
inspirado: «que o teu cálice me inebrie, porque ele é bom,
muito bom» (SI 23,5) .

100. Da alma que é em si mesma, de um modo genuíno,


«pobre em espírito», podemos dizer isto: tem consciência
das suas próprias feridas; resguarda-se das trevas das pai­
xões que a assediam; procura sem cessar a redenção que
vem do Senhor. Assumindo as limitações mais ou menos
dolorosas próprias do viver, não se alegra com os bens efé­
meros deste mundo, mas procura Aquele que é o único
bom médico, e só aos seus cuidados se confia. Sabe, pela
experiência, que uma alma ferida só poderá ser bela, gra­
ciosa, apta a viver com Cristo, quando se reencontra a si
mesma no que foi na antiga criação das origens e reconhe­
ce claramente as suas próprias feridas e pobreza.
Com efeito, quando a alma não se compraz nem com as
paixões nem com as feridas que delas resultam, e não dis­
simula as suas próprias faltas, o Senhor não lhe imputa a
causa do mal e, na sua ilimitada misericórdia, vem cuidar
dela, curá-la, restabelecê-la, levando-a assim a viver a bele-
524 PEQUENA FILOCALIA

za que não fenece. À alma impõe-se-lhe, porém, trilhar um


caminho de salutar ascese: não ficar cativa, narcisica­
mente, daquilo que faz; não sentir prazer algum com as
paixões; invocar com todas as suas forças o Senhor, quan­
do for por elas assediada, a fim de que Ele, na força do seu
Espírito, a porte e suporte, concedendo-lhe o dom de se
sentir livre das provocações passionais. De uma alma
assim podemos dizer, convictamente, que é bem-aventu­
rada. Mas, por outro lado, ai daquela que não sente as suas
feridas e que, refém de um grande vício e cativa de uma
desmedida insensibilidade, é incapaz de reconhecer o mal
que a habita. Ora, a uma alma assim, o bom médico não
visita nem dela cuida. E isso porque ela, numa lamentável
negligência, perde-se de si mesma, não o procura a Ele,
nem sequer se preocupa com as suas próprias feridas, a tal
ponto está persuadida de que passa bem e tem saúde.
Como se pode tratar aquele que não quer ser tratado? E,
contudo, lá diz o Evangelho: «não são aqueles que estão de
boa saúde que precisam do médico, mas sim aqueles que
estão doentes» (Mt 9, 1 2) .

1 0 1 . Verdadeiramente bem-aventurados s ã o aqueles


que, amando a vida e saboreando o j úbilo sobrenatural
dado pelo Espírito, experimentam e sentem a força de uma
fé ardente e a luz que emana de uma conduta virtuosa. A
eles é-lhes dado participar no conhecimento dos mistérios
celestes e ter a sua cidade nos Céus.
É óbvio que homens desses podem ser tidos como fa­
zendo parte de um grupo muito especial, pois não consta
que homens poderosos, ou sábios, ou prudentes tenham
alguma vez vivido as coisas belas que estes viveram. Por
exemplo: a quantos homens, mesmo entre esses notáveis,
já foi alguma vez dado contemplar as belezas do Espírito e
SÃO MACÁRIO 525

viver a experiência do arrebatamento celeste que estes vi­


veram, estando ainda aqui na terra? Não nos esqueçamos
disto: um certo homem, que não pertença a esse grupo de
notáveis, segundo os padrões mundanos, pode parecer
pobre, profundamente pobre, pode ser olhado como nada,
pode ser até um desconhecido para os seus vizinhos, mas
quando diz não às coisas materiais e mundanas e se rende
a Deus, numa profunda comunhão com Ele, sobe ao céu
conduzido pelo Espírito e, na plenitude vivida pela sua
alma, desfruta, com um pensamento liberto dos muito ati­
lhos que frequentemente fazem dele um cativo, as maravi­
lhas do alto, evocadas pelo apóstolo Paulo, esse divino
apóstolo: «a nossa cidade está nos Céus, de onde também
aguardamos um Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual
transfigurará o nosso corpo de baixeza, tornando-o seme­
lhante ao seu corpo de glória» e «O que o olho não viu, o
que o ouvido não ouviu, o que não subiu ao coração do ho­
mem, o que Deus preparou para aqueles que o amam [ . . ] .

isso no-lo revelou pelo seu Espírito» (Fl 3,20; 2Cor 2,9- 1 0) .
São esses os homens verdadeiramente sábios e podero­
sos, nobres e prudentes.

102. Mesmo se não tiveres em conta esses seus dons es­


pirituais, e j ulgares os santos limitando-te às coisas visíveis
do presente, isto é, aos aspetos concretos da sua vida aqui
na terra, não hesitarás em confessar que a superioridade é
a marca que os distingue, elevando-os acima do que é
comum.
Socorramo-nos de um exemplo histórico para concre­
tizar o que queremos dizer: Nabucodonosor, rei da Babi­
lónia, possuído pelo desej o de se enaltecer a si mesmo,
convocou responsáveis e chefes e autoridades das muitas
províncias circunvizinhas para irem à inauguração da está-
526 PEQUENA FILOCALIA

tua que tinha mandado erigir e se prostrarem diante dela


(cf. Dn 3) .
Mas D eus, que vê as coisas de outra maneira, dispôs
tudo, segundo a sua sabedoria, de molde a fazer com que
simples j ovens, na sua modéstia e na força da sua virtude,
pudessem sair do seu anonimato e ser conhecidos dos
poderosos, e isso de tal modo que todos aprendessem que
há um único Deus verdadeiro que habita os Céus.
Aconteceu, pois, que esses j ovens (eram três) - em si­
tuação de atroz cativeiro - defrontaram abertamente o rei.
Enquanto todos, cheios de medo, se prostravam sem ousar
fazer qualquer coisa a não ser submeterem-se servilmente,
mudos e calados, os nossos três j ovens tiveram um com­
portamento completamente distinto. Que fizeram eles?
Várias coisas: ousadamente romperam o silêncio generali­
zado; decididamente chamaram a eles a atenção de todos;
corajosamente clamaram, e clamaram de tal modo que por
todos foram ouvidos: «Fica a saber, ó rei, que nós não ado­
ramos os teus deuses, e não nos prostramos diante desta
imagem de ouro por ti erigida! » A reação do rei foi verda­
deiramente terrível, mas a devoradora fornalha, que aos
três recebeu para lhes infligir a pena, tornou-se uma não
fornalha, incapaz de cumprir a sua missão.
Assim, nessa sua inaudita impotência, resultante da
condição de reféns, tornava-se visível que até ela, fornalha,
os estava a respeitar; e de facto assim foi, pois preservou-os
aos três de todo o sofrimento, até mesmo da mais pequena
beliscadura. E foi assim que todos, incluindo o próprio rei,
reconheceram, graças aos j ovens, o verdadeiro Deus. E
não apenas todos os notáveis da terra ali congregados os
admiraram, mas também os coros celestes celebraram o
quanto eles foram fiéis. E é em consonância com isto de
que estamos a falar (as ações coraj osas dos santos que
SÃO MACÁRIO 527

tomam forma numa fidelidade inquebrantável) que Paulo,


o apóstolo divino, se empenha em declarar que tais ações
não são ignoradas por aqueles que habitam os Céus, pois
também estes as veem. São dele, com efeito, as palavras:
«tornámo-nos um espetáculo para os anjos e para os ho­
mens» (1Cor 4,9) .
Mas outras narrativas há nas Escrituras que nos pro­
porcionam o conhecimento de feitos semelhantes a esse.
Encontramos, de facto, coisas semelhantes em circunstân­
cias diferentes: quer na história de Elias que, não obstante
ser simplesmente um homem, se elevou espiritualmente
acima de muitos outros, ao fazer descer o fogo celeste (cf.
2Rs 1 8 ,38); quer na história de Moisés, também simples­
mente homem, vencedor do Egito inteiro, incluindo o
faraó (cf. Ex 7-12); quer na história de Lot (cf. Gn 1 9) , ou na
história de Noé (cf. G n 6 , 7) , ou nas histórias de tantos
outros, sempre surpreendentes, que nos falam de outros
homens que, não obstante a sua aparente fraqueza, vence­
ram poderes adversos, tenham sido esses poderes encarna­
dos por principados ou potestades as mais diversas.

103. A não ser que uma outra natureza, dotada de deter­


minadas capacidades, venha socorrer cada uma das coisas
visíveis, estas, entregues a si mesmas, não se livram da sua
deficiência e imperfeição. Com efeito, é a sabedoria divina
que se manifesta, de um modo inefável, através das coisas
visíveis, bem como através dos mistérios e da pluralidade
das figurações. Ao agir desse modo, ela, sabedoria divina,
dá a entender que sem a intervenção de Deus como doa­
dor da virtude perfeita, bem como da beleza espiritual ine­
rente à santidade, sem essa intervenção a natureza humana
sozinha é incapaz de produzir quer a virtude na sua perfei­
ção, quer a santidade como altíssima expressão do belo.
528 PEQUENA FILOCALIA

É assim algo de semelhante com o que se passa com a


terra: se ela fica entregue a si mesma, sem os cuidados dos
cultivadores e sem os benefícios essenciais da chuva e do
sol, o resultado é a sua incapacidade para dar frutos. E
igualmente tem semelhanças com o que se passa numa
casa como lugar para viver: ela necessita da luz do sol, cuja
natureza é diferente da dela, pois a não ser assim seriam as
trevas a habitá-la. E se quiseres transferir para outros
domínios o que estamos a dizer, verificarás que se passa o
mesmo.
Por conseguinte, impõe-se-nos sublinhar isto: a natu­
reza humana, incapaz como é de, por si mesma, dar os
frutos perfeitos próprios das virtudes, necessita do su­
premo Cultivador das nossas almas, isto é, do Espírito de
Cristo, que é de uma natureza totalmente diferente da
nossa, pois enquanto nós somos criados, Ele é incriado.
Assim, fomentando a beleza nos corações dos fiéis que a
Ele se entregam, o divino Cultivador p repara-os p ara
darem os frutos perfeitos do Espírito, e desse modo fazer
jorrar a sua luz na habitação da nossa alma, até então ente­
nebrecida pelas paixões.

104.O combate no qual os cristãos estão empenhados


tem duas frentes que exigem um empenhamento perma­
nente nutrido por uma vigilância incansável. Por um lado,
há o mundo visível, lugar de um confronto com as coisas
que os olhos do corpo divisam; essas são as coisas que
exercem uma sedução subtil ao excitarem a alma com insi­
nuantes provocações. Por outro lado, há o mundo dos
poderes invisíveis, terrivelmente ameaçadores, e a luta aqui
é contra essas potestades demoníacas desencadeadas pelo
príncipe deste mundo que, com as suas maquinações, é
semeador das trevas. Um mundo entenebrecido e, por
SÃO MACÁRIO 529

conseguinte, votado à perdição é o móbil último da sua


ação: «com efeito, a nossa luta não é nem contra a carne
nem contra o sangue, mas sim contra os principados, con­
tra as potestades, contra os poderes mundanais das trevas,
contra as hostes espirituais da maldade» (Ef 6, 1 2) .

105. A glória que resplandecia n a face d e Moisés era, na


força da sua expressão icónica, a figuração da verdadeira
glória do Espírito Santo (cf. Ex 34,29-30) . E ninguém podia
contemplar uma tão esplendorosa manifestação, pois por
mais que o quisesse fazer, fixando nela o seu olhar, via-se a
si mesmo disso completamente impossibilitado.
Ora hoj e em dia, com uma nova configuração, a glória
ressurge: é a que brilha nas almas dos cristãos, perante a
qual as trevas das paixões recuam, impotentes para se afir­
marem. Somos, portanto, levados a dizer que assim como
no passado a glória do Senhor se manifestou como força
de luz, nos nossos dias ela também se manifesta com a
mesma força: fá-lo, porém, como glória luminosa na vida
cristã. Aí ela brilha, como glória única, e afirma-se espan­
cando o demoníaco reino das trevas e suscitando uma
nova vida prenhe da novidade futura.

106. O cristão é esse homem que, por receber a luz pro­


veniente do Espírito do Senhor, se sente constrangido, sa­
lutarmente constrangido, a amar: Deus, a verdade, a con­
templação da vida, a doçura celeste. Mas, por outro lado,
tendo profundamente infundida nele a graça, à qual se en­
trega totalmente, odeia o erro, a mediocridade, o vazio sem
sentido das coisas mundanais. Ele é, graças à luminosidade
que recebe do Espírito, um lutador contra as trevas da
ignorância que permeiam aquilo que é mundano. Quer se
trate do ouro, ou da prata, ou das honrarias, ou da glória,
530 PEQUENA FILOCALIA

ou dos elogios, ou dos louvores, nenhuma dessas coisas


pode fazê-lo delas um refém, pois ele fez a experiência de
uma outra riqueza, de uma outra honra, de uma outra
glória. A sua alma, nutrida na comunhão do Espírito de
D eus - uma comunhão profundamente experienciada e
sentida - é forte o suficiente para não ficar enredada no
labirinto das dúvidas, e para, assim liberta, assumir a con­
vicção da fé.

Tal como o pastor se distingue dos animais do re­


1 07.
banho, em virtude de ser dotado de razão e os animais não
o serem, assim também o cristão se distingue dos outros
homens pela compreensão, pelo conhecimento, pelo dis­
cernimento. Ele está, com efeito, sintonizado com um
outro Espírito, com uma outra inteligência, com uma
outra compreensão, com uma outra sabedoria. Digamo-lo
sem hesitar: a sabedoria que o anima, fruto do Espírito, é
diferente da sabedoria deste mundo. Dessa sabedoria fala
o apóstolo divino, Paulo, utilizando palavras que subli­
nham bem o que há nela de específico : «sabedoria, sim,
falamos entre os perfeitos; mas não se trata nem da sabe­
doria deste mundo, nem da sabedoria dos chefes deste
mundo, condenados a perecer; a sabedoria que falamos é a
de D eus, encerrada no mistério, sabedoria oculta, a que
Deus predestinou antes dos séculos, para glória nossa»
(1 Cor 2 , 6- 7) .
Pode-se, por conseguinte, dizer que é esse o motivo (de
certo modo o critério) que nos permite estabelecer a dife­
rença que está em jogo: o cristão difere dos outros homens
no modo como vive a sabedoria; enquanto os outros estão
submeti dos ao espírito do mundo, e estão-no por mais
eruditos ou sábios que sejam, o cristão sente-se libertado
por Deus para falar em nome de outra sabedoria e de
SÃO MACÁRIO 531

outra liberdade. Não a mundanal que estiola, mas sim a


divina que liberta e enriquece. Possuído pelo discernimento
do Espírito, é dotado da capacidade de julgar as coisas, os
outros, os acontecimentos, além de saber o lugar de onde
fala e em nome de quem fala. A sua condição de cristão tem
a ver com tudo isso. E aí se joga essa sua identidade.
Pelo contrário, nenhum daqueles que são habitados
pelo espírito do mundo tem o poder do discernimento
para o julgar a ele. Unicamente têm um tal poder de dis­
cernimento aqueles a quem foi dado o Espírito divino.
Acerca disso se exprime o Apóstolo divino com as pala­
vras: «ora nós recebemos não o espírito do mundo, mas
sim o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos as
coisas que Deus graciosamente nos dá. E dessas coisas fa­
lamos não com as consabidas palavras da sabedoria hu­
mana, mas sim com as que aprendemos do Espírito, adap­
tando o espiritual ao espiritual. O homem psíquico não
acolhe as coisas do Espírito de Deus, pois são para ele uma
loucura. Mas o homem espiritual j ulga todas as coisas, e
ele mesmo por ninguém é j ulgado» (1Cor 2 ,13-15) .

108. Para que uma pessoa possa receber o Espírito San­


to é-lhe necessário não cair no cativeiro das coisas que,
por serem medíocres, são mundanais ; e, além disso, im­
põe-se-lhe negar-se a si mesma na procura do amor de
Cristo. É desse modo, na observância de uma tal ascese,
que a inteligência, libertada de todos os cuidados mate­
riais, se pode consagrar exclusivamente a um único fim, e
ser assim j ulgada digna de se tornar um só Espírito com
Cristo.
É ainda Paulo, o apóstolo, quem no-lo diz, com palavras
que são uma advertência: «aquele que se liga ao Senhor
formará com Ele um único Espírito» (1 Cor 6,17) . Pelo con-
532 PEQUENA FILOCALIA

trário, a alma que se liga totalmente às coisas mundanas


(seja à riqueza, sej a à glória, seja à amizade mundanal) e se
sente assim permanentemente por elas atraída, será inca­
paz de trilhar o caminho em que somos livres. Trata-se de
uma alma que, vítima de si mesma, é incapaz de escapar ao
império das trevas e das potestades malignas.

1 09. Pelo contrário, as almas que são amantes da ver­


dade (pois são amantes de D eus) não toleram a menor
frouxidão nesse amor. O amor de Deus que nelas jorrou
liga-as à cruz e leva-as a experienciar e a sentir o progresso
espiritual que nelas se opera. Salutarmente feridas pelo de­
sej o de Deus, famintas de j ustiça, discípulas da virtude,
participantes na alegria celeste, iluminadas pelo Espírito,
continuam (não obstante viverem uma vida nimbada pela
beleza) a não se fiar nelas mesmas, nem a nutrir acerca das
suas virtudes uma qualquer ideia de superioridade. Muito
pelo contrário: quanto maior é a abundância e a riqueza
dos carismas espirituais que as habitam, tanto maior é a
sua compreensão de que estão a caminho e de que se lhes
impõe, com denodo, continuar a sua procura dos bens ce­
lestes. E quanto maior é o progresso espiritual que expe­
rienciam e sentem, tanto maior é o seu desejo de participa­
rem nesses bens, saboreando-os na força do Espírito. E
cheias das riquezas outorgadas por esse Espírito, reconhe­
cem-se a si mesmas como indigentes. Di-lo a divina Escri­
tura: «aqueles que me comem continuarão a ter fome, e
aqueles que me bebem continuarão a ter sede» (Sir 24,21) .

110.Almas de tão elevado quilate são julgadas, na sua


integridade, inteiramente dignas de serem vistas como li­
bertadas do império das paixões. Têm a habitá-las a luz
diáfana do Espírito divino e vivem em registo fecundo a
SÃO MACÁRIO 533

comunhão outorgada pela graça. Há, porém, almas que


em vez de terem a virtude como referência, vivem cativas
de uma negligência que mais não faz que encerrá-las no
labirinto do desnorte. São almas preguiçosas, medíocres,
reféns de uma imobilidade esterilizante, e que mais não
desej am a não ser usufruir os bens terrenos. Estão, assim,
muito longe de uma longanimidade generosa e de uma
santificação fecunda do coração. Estando na carne, vivem
segundo a carne, e isso não parcialmente mas totalmente:
vivem alheias à força que o Espírito Consolador outorga,
alheias à expectativa dada pela fé, alheias à força liberta­
dora que as poderia pôr à distância do que há de escravi­
zante na sedução das paixões.
Não obstante lhes ter sido comunicada a graça divina, o
mal atrai-as e, por ele levadas, essas almas deixaram de
exercer em relação a elas mesmas a vigilância que se impu­
nha. Mas em virtude de terem sido agraciadas e de lhes ter
sido dado conhecer a doçura, sentem-se por isso orgulho­
sas, pensando de si mesmas aquilo que não deveriam
pensar. E vivem de tal modo a insensatez que, sem um
coração sensível, são incapazes de se humilhar em espírito
e, consequentemente, mostram a sua inaptidão para atin­
girem a medida perfeita da impassibilidade. Contentam-se
com o quinhão da graça que receberam (pequena consola­
ção) e vivem um quotidiano marcado, lamentavelmente
marcado, por uma presunção de tal ordem que o caminho
da humildade se torna inviável. Vivendo como vivem víti­
mas da sua j actância, acabam por ser despoj adas até
mesmo do carisma que tinham recebido no princípio.
Nos seus antípodas está a alma que, na força do amor
que se vive na comunhão com Deus, nunca perde de vista
o horizonte dos seus limites. Vive sensatamente a sua con­
dição sem perder de vista a necessidade de não se conside-
534 PEQUENA FILOCALIA

rar a si mesma como superior. O que não significa que não


pratique milhares de atos justos: pratica-os com toda a na­
turalidade, assim como é com toda a naturalidade que
gasta o corpo em j ej uns e vigílias extremas, pois os seus
carismas são muitos. Além disso, são múltiplas as revela­
ções por que passa e os mistérios em que é introduzida. E
não obstante tudo isso, uma tal alma é tão modesta que
está persuadida não só de que ainda não começou a levar
uma vida de acordo com a vontade de Deus, como tam­
bém de que ainda nada adquiriu dos bens espirituais. Uma
alma dessas é, assim, movida pelo grande desiderato de se
aproximar mais e mais do amor divino de Cristo. E esse
desejo que a possui é insaciável. Indício de que se encon­
tra no caminho da bem-aventurança.

111. Atingir um tal estado não é tarefa nem fácil nem rá­
pida. O incontornável caminho a percorrer tem as marcas
de uma exigência a toda a prova, o que implica combates
muitos, penas duras, ascese rigorosa. Mas outro caminho
não há para se atingir a medida perfeita, aquela que é dada
pelo hesicasmo, a medida da impassibilidade. É só depois
de termos sido provados por toda a espécie de dor, por
todas as tentações, por todas as fadigas, por todas as vicis­
situdes, por todos os tentáculos do mal - é só depois de
tudo isso que seremos j ulgados dignos das honras celes­
tes, dos carismas grandes, da riqueza divina. E, finalmente,
da herança do Reino celeste.

112. Aalma que ainda não interiorizou a noção rigorosa


e exata da vida cristã, e que ainda não experimentou e sen­
tiu a santificação do coração, deve lamentar-se e chorar, e
pedir ardentemente ao Senhor que lhe seja concedido esse
SÃO MACÁRIO 535

bem juntamente com a energia do Espírito que é dada à


mente através das contemplações inefáveis.
Tal como (de acordo com a lei da Igrej a) aqueles que
foram vencidos pelos pecados corporais são primeiro afas­
tados pelo sacerdote, e só depois de terem manifestado o
arrependimento exigido são j ulgados dignos da comu­
nhão, assim também, mutatis mutandis, aqueles que an­
seiam vivamente participar na comunhão mística do Espí­
rito estão suj eitos à mesma lógica. Outros há que viveram
sem claudicar e que, fortalecidos dessa graça, avançam
com toda a pureza para o sacerdócio e passam a ocupar o
lugar j unto do altar, a fim de celebrarem a liturgia divina
diante do Senhor.
D a comunhão mística do Espírito fala Paulo, o após­
tolo, quando nos dá a ver que é toda a nossa vida que pre­
cisa de ser colocada sob uma tal bênção: «que a graça do
Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do
Espírito S anto sej am com todos vós» (2Cor 1 3 ,13) . Com
efeito, há que sublinhar isto : a divina Trindade habita a
alma que leva uma vida pura assumida por Deus na sua
infinita bondade. E habita-a não como Ela, Trindade, é em
si mesma, pois nesse caso a criação inteira seria insufi­
ciente para a conter. Habita-a na medida em que o homem
é capaz de a receber.
Ora, quando a mente se afasta em algum ponto da con­
duta traçada pelo Espírito de D eus, e entristece assim o
Senhor, deixa de ter parte na alegria espiritual, pois com o
seu comportamento disso se excluiu a si mesma. Quando
isso acontece, a graça divina, o amor, a boa energia do Es­
pírito, retraem-se, e a própria mente, entregue a si mesma,
entra no desnorte traçado pelas adversidades, pelas vicissi­
tudes, pelas tentações, pelos espíritos do mal que, na sua
ignomínia, mais não exalam que o cheiro da morte. Isso
536 PEQUENA FILOCALIA

dura até que a alma reencontre a força do alto e caminhe


de novo retamente em sintonia com a energia do Espírito.
E em seguida é só depois de ter provado, mediante uma
confissão sincera e uma humildade genuína, que o seu
arrependimento é verdadeiro é só depois disso que é jul­
-

gada digna de ser visitada pela graça e de viver em pleno a


alegria celeste. Alegria que é então mais intensa do que era
antes. E desde que não entristeça em nada o Espírito, e
viva para lhe agradar, e se oponha a todos os pensamentos
maus, e experiencie a comunhão com o S enhor - desde
que essas coisas aconteçam, pode então a alma avançar, re­
vestida da j ustiça salvífica de D eus, trilhando o caminho
que é o seu. E nesse caso acontece de um modo maravi­
lhoso isto: uma tal alma é honrada com dons inefáveis, le­
vada progressivamente de glória em glória, de repouso em
repouso: «mas todos nós, com o rosto descoberto, vendo a
glória do Senhor como se ela fosse refletida num espelho,
estamos sendo transformados na mesma imagem de glória
em glória; e tudo isto vem do S enhor, o Espírito» (2Cor
3 ,18) . Depois, uma vez chegada à medida perfeita traçada
pelo Evangelho, j untar-se-á àqueles que, de um modo es­
correito, trabalharam por Cristo, e que irrepreensivelmente
celebram a liturgia divina, no seu Reino eterno.

113.Tem em conta que essas coisas visíveis são simulta­


neamente figuras e sombras das coisas ocultas. É nessa
dimensão paradoxal que se pode dizer que o templo visível
e palpável é figura do templo do coração, e que o sacerdote
de carne e osso é figura do verdadeiro sacerdote da graça
de Cristo, et cetera.
É assim que, na Igreja visível, há uma ordem a seguir e
a respeitar. Conhecemo-la bem. Se as leituras, a salmodia,
as partes constitutivas do ofício da instituição eclesial, não
SÃO MACÁRIO 537

decorrerem segundo a sequência própria, a celebração do


mistério divino - o mistério do Corpo e do S angue de
Jesus - não é canónica, e fica por isso debaixo da designa­
ção de irregular. Pois bem: analogamente, se a Eucaristia
mística oferecida pelo sacerdote e a comunhão no Corpo
de Cristo não tiverem o seu lugar, não se está a cumprir o
que está instituído pela Igreja. E, nesse caso, não obstante
todo o cânone eclesial ter sido observado, a celebração do
mistério ficou marcada pela deficiência. Ora, algo de seme­
lhante acontece quando se trata do cristão: se a energia
mística do Espírito não for desencadeada pela graça divina
no altar do seu coração; se essa energia não for totalmente
sentida; se a experiência do repouso espiritual não for
vivida - se tudo isso não acontecer na vida de um cristão,
faltar-lhe-á aquilo que é essencial. E nesse caso, tudo o
mais se tornará vazio e estéril: de pouco valerão a prática do
jejum, a observância da vigília, a rubrica da salmodia, toda a
ascese no seu conj unto, bem como a prática das virtudes,
que ficará esvaziada do conteúdo importante que lhe per­
tence. De uma tal vida estará, assim, ausente a alegria do
Espírito, essa alegria que age místicamente no coração.

114.Incontestavelmente, o j ej um é uma boa coisa, tal


como o são a vigília, a ascese, o retiro. Mas todas essas coi­
sas são apenas o prelúdio da vida que Deus ama, motivo
pelo qual, fiarmo-nos pura e simplesmente nelas, e vê-las
como fins em si mesmas, é uma atitude completamente in­
sensata. Não passam de primícias de outra coisa. E essa
outra coisa é que é importante. Que não as transforme­
mos, pois, em práticas que nos dêm uma sensação (que
seria uma falsa sensação) de contentamento connosco
mesmos.
Acontece, por vezes, atingirmos um certo estado de
538 PEQUENA FILOCALIA

graça, e pensarmos que o mal já foi extirpado de nós. É um


risco grande, pois o mal, emboscado em nós, como j á o
dissemos, faz trapaça dando-nos a sensação de que já nos
deixou completamente, quando na realidade apenas se
ausentou para voltar, agindo assim de uma maneira des­
concertante e fora do habitual. Sibilinamente, leva o ho­
mem a pensar que a sua inteligência já foi purificada, e
condu-lo a imaginar-se perfeito para o atacar como faria
um salteador na estrada, derrubando-o até aos níveis mais
baixos da terra.
Acontece frequentemente, no mundo do roubo e dos
assaltos, haver salteadores, ou até mesmo soldados de pro­
fissão, j ovens ainda, à volta dos vinte anos, que se especia­
lizaram em armar ciladas e montar emboscadas. Gizam o
seu plano, atacam as vítimas pela retaguarda, cercam-nas
sem lhes deixar uma réstea de esperança, matam-nas. Pois
bem: se há astúcia em tudo isso (e sem dúvida que a há, e
muita) muito maior é a astúcia do mal (velho de milhares
de anos) empenhado na perdição das almas ! Urde o seu
plano de ataque de um modo ardiloso e monta armadilhas
nos lugares secretos do coração, por vezes mantendo-se
quieto e deliberadamente inativo com o fito de levar a alma
a alimentar a pretensão de ser perfeita.
Ora, há um princípio fundamental no cristianismo que
consiste em não colocarmos a nossa confiança em atos de
j ustiça que pratiquemos (mesmo no caso de os termos
praticado a todos) pensando assim não só que neles pode­
mos repousar tranquilos, mas também que a partir daí
podemo-nos ver a nós mesmos como artífices de causas
grandiosas. De um modo muito claro, a nossa fé interdita
uma tal atitude! É que, não obstante podermos ter a nossa
parte na graça divina, não devemos imaginar que dela nos
apoderámos como se de uma coisa se tratasse. Com efeito,
SÃO MACÁRIO 539

nunca somos proprietários da graça! Por conseguinte, o


nosso comportamento deve ser pautado por um outro cri­
tério: em vez de nos sentirmos e de nos mostrarmos como
pessoas já saciadas, devemos antes sentir sempre mais
fome e sempre mais sede. Dito de outro modo e utilizando
outras palavras : impõe-se-nos assumir o luto e o choro,
como pobres de quem o coração é um coração quebran­
tado. Com efeito, na nossa fé nenhum lugar há para nos
constituirmos superiores e fazermos de nós p essoas
importantes !

115.Para fazeres uma ideia do que é e no que consiste o


estado espiritual, supõe um palácio real. Ele é feito de dife­
rentes pátios, de vestíbulos variados, de múltiplas habita­
ções, umas exteriores, outras interiores, onde se passeiam a
púrpura e os tesouros. Temos em seguida, no coração do
palácio, a área reservada à vida do rei.
Ora bem: pode acontecer a uma pessoa incauta deam­
bular pelas habitações exteriores, com o pensamento de já
ter atingido o coração do palácio. Mutatis mutandis, na
ordem do mundo das coisas espirituais, há aqueles que
combatem a glutonaria, que são rigorosos na vigília, que
dormem sobre o solo, que se dedicam continuamente à
salmodia e às orações, e que pensam ter já atingido, com
tudo isso, a meta final e o repouso prometido. Pois bem:
estão profundamente enganados! A sua vida desenrola-se
ainda nas habitações exteriores e nos pátios, e não lá onde
se encontram a púrpura e os tesouros do rei. E terem sido
agraciados como foram não é motivo suficiente para
começarem a pensar de si mesmos serem aquilo que não
são. Que não se iludam, pois, pensando ter já atingido a
meta. Não a atingiram ainda.
Não percamos, pois, de vista a necessidade de indagar-
540 PEQUENA FILOCALIA

mos, interrogando-nos com toda a honestidade : já tere­


mos, de facto, encontrado o tesouro que transportamos
em vasos de argila? Já nos teremos revestido da púrpura
do Espírito? Já teremos visto o Rei? Já teremos entrado no
repouso? Não nos esqueçamos de que em tudo isso há
um tesouro já presente em nós que espera o nosso reco­
nhecimento : nas palavras de Paulo, o apóstolo divino,
«temos este tesouro em vasos de terracota para que a exce­
lência da força se mostre como força de Deus e não nossa»
(2Cor 4,7) .
Tem em conta isto que te digo: a alma, complexa como
é, possui uma profundidade própria e é dotada de nume­
rosos membros, motivo pelo qual o pecado, insinuante
como é, se infiltra em todos eles e atinge todos os pensa­
mentos do coração. Consequentemente procuremos, por­
tanto, a graça do Espírito, pois ela, segundo a promessa,
virá e salvificamente envolverá duas das partes da alma,
atingindo os seus refolhos. Ora, um homem sem experiên­
cia, ao sentir-se consolado por uma tal graça, fica com a
impressão de que ela penetrou todos os membros da alma,
e de que o pecado foi totalmente extirpado. Pois bem, um
tal homem não sabe que o pecado continua a impor o seu
poder à maior parte da alma. Não nos esq ueçamos da
complexidade de que ela se reveste!
Efetivamente, como já muitas vezes mostrámos, é pos­
sível à graça manifestar-se operante, e até mesmo agir con­
tinuamente (assim como o olho age no corpo) e, não obs­
tante, o mal, esse larápio dos pensamentos j ustos, coexistir
com ela. O homem que, ao ser agraciado com um impor­
tante carisma, não é capaz de discernir essa coexistência,
cai num grave equívoco acerca de si mesmo, pois nutre
uma alta opinião do seu valor, e fica inchado de orgulho
por se ver a si mesmo como alguém que já atingiu a derra-
SÃO MACÁRIO 541

<leira purificação. Está, porém, muito longe de a verdade


lhe dar razão.
O bviamente G á sublinhámos isto antes) há também
nesse procedimento a rendição a uma trapaça de satã, que
intencionalmente se retira em determinados momentos,
agindo de um modo diferente do habitual, com o obj etivo
indubitável de inspirar aos ascetas a presunção de pensa­
rem que já são perfeitos.
Mas será que aquele que planta uma vinha colhe ime­
diatamente do seu fruto? Ou que aquele que lança as se­
mentes à terra procede logo de seguida à colheita? E
ainda: será que o recém-nascido atinge sem mais delongas
a idade adulta? Olha para a história de Jesus e concentra­
-te no quanto nela há de surpreendentemente grandioso.
Reflete, pois, nestas coisas: no modo como Ele, não obs­
tante ser Filho de Deus e Deus mesmo, assumiu, na sua
quenose, um esvaziamento da sua glória; e no modo como,
a partir daí, viveu historicamente o sofrimento, a desonra,
a cruz, a morte; e como Ele, nessa assunção de si mesmo,
interpretou essa sua quenose; e ainda no modo como, em
virtude da humildade assumida, Ele foi elevado acima de
tudo e se sentou à direita do Pai. Ora, é essa história de
salvação que irrompe no meio das nossas vidas. Que dei­
xemos, pois, a fundura do seu significado fazer de nós
homens verdadeiramente crentes. Com efeito, Aquele em
quem cremos, Jesus o Senhor, não foi nem um simulacro
de homem nem um simulacro de Deus. Foi, de um modo
único, a verdade das duas coisas. Toda a sua vida é a vida
de uma história verdadeira, do princípio ao fim.
Inversa desta história de Jesus é a história que a ser­
pente soprou aos ouvidos de Adão: depois de ter come­
çado por semear em Adão o desejo de ser como Deus, fá­
-lo cair na maior das desonras, fazendo assim da sua vida
542 PEQUENA FILOCALIA

um miserável abaixamento sem remissão própria (cf. Gn 3,5).


Temos assim duas histórias radicalmente diferentes: a de
Adão, triste história de uma presunção castigada; a de
Jesus, gloriosa história de um abaixamento recompensado.
Por conseguinte, sendo da história de Jesus que nos vem a
salvação, tem estas coisas em conta, observa-as denodada­
mente, põe todo o teu esforço em manter sempre um
coração humilde e quebrantado.

No concernente à liberdade da mente


116. Quando ouves que Cristo desceu até às profunde­
zas do inferno, e libertou as almas lá aprisionadas, não
fiques a pensar que tais coisas estão longe daquelas que
hoje em dia ocorrem e se cumprem. Não percas de vista,
efetivamente, que o coração pode transformar-se num se­
pulcro onde, maniatados por trevas tenebrosas, foram se­
pultados os pensamentos e a mente. Há, assim, um inferno
em nós, lá nos refolhas do coração, e as almas dele prisio­
neiras chamam o S enhor que misericordiosamente se
aproxima (aproximação que se traduz na luta da vida
contra a morte) e ordena: devolve as almas aprisionadas que
me procuram a mim que as posso libertar! E em seguida, Ele, o
S enhor, levanta a pesada pedra que se sobrepõe à alma,
abre o túmulo, ressuscita aquele que verdadeiramente
estava morto, liberta da prisão tenebrosa a alma prisioneira.

117. Satã, profissional da insídia e colportor da infâmia,


tem como uma das suas ignóbeis práticas falar ao coração
do homem. É assim que, quando lhe apraz, sopra ao nosso
coração palavras parecidas com estas: pensa no mal que fi­
zeste; a tua alma está cheia de iniquidades; estás entorpecido por
SÃO MACÁRIO 543

graves e numerosos pecados. Pois bem: quando isso te aconte­


cer tem presente que ele age desse modo para te levar ao
desespero sob pretexto de humildade.
Infamemente, pois, põe em ti uma humildade que não
o é: se o fosse não estaria, como está, ao serviço do deses­
pero. Do nosso desespero. E assim, a nós, que decaímos
em Adão, e fomos feitos cativos do mal, a nós ele fala desse
modo por ter encontrado o caminho aberto. Fala con­
nosco assim como um homem fala com outro homem, e
insinua ações pecaminosas sob a capa de um comporta­
mento que pode parecer virtuoso. Pois bem, deverás res­
ponder-lhe assim: Contra aquilo que tu dizes, tenho a promessa
e a garantia de Deus, que me diz: «tão certo como Eu viver,
não me comprazo com a morte do perverso: comprazo­
-me, sim, com a sua conversão que o leva à vida autêntica»
(Ez 33,11) .
Podes com toda a ousadia falar desse modo, fundamen­
tado naquele que desceu dos Céus para viver entre nós e
nos salvar do pecado que mata, iluminando todos aqueles
que estavam mergulhados nas trevas. Fala ousadamente,
pois Ele, o Senhor, veio até nós para restituir à vida aque­
les que estavam mortos.

118. Passa-se com o modo como a graça divina (poder de


Deus) atua, algo de semelhante, ainda que em registo
oposto, ao que se passa com o modo como age a potestade
contrária: ambas operam por persuasão e não por compul­
são. Desse modo, pois, salvaguardam-se a nossa liberdade
e o nosso poder de decisão.
Por conseguinte, q uando um homem, desviado por
Satã, faz o mal, é esse homem e não Satã quem recebe o
castigo. E porquê? Porque aquilo que esse homem faz, fá­
-lo não por coação mas voluntariamente. Analogamente,
544 PEQUENA FILOCALIA

quando se trata da prática do bem, a graça divina não o


atribui a si mesma, mas sim ao homem que o pratica.
Motivo pelo qual é enaltecido por ela todo o homem que é
artífice do bem.
Que nos seja permitido repetir (a repetição é usada aqui
como um desejo de ênfase) o que acabámos de dizer, pois
trata-se de uma coisa essencial: a graça divina, ao manifes­
tar-se ao homem, não o castra na sua vontade, não o priva
da sua liberdade de decisão. Deixa, com efeito, o homem
agir livremente, de tal modo que possa ficar bem claro ser
o homem o responsável por um comportamento, o seu,
que o pode conduzir tanto à virtude como ao vício. Efeti­
vamente, o imperativo da lei não visa a natureza do ho­
mem, independentemente do seu livre poder de decisão,
que pode tanto ter um desfecho positivo, o bem, como um
desfecho negativo, o mal.

119. É preciso cuidar da alma de um modo perseverante


e diuturno, evitando a todo o custo a mácula que, median­
te os pensamentos impuros, a desfigura. Com efeito, tal
como o corpo se macula ao unir-se sem decoro a um
outro corpo, assim também a alma que copula com pen­
samentos poluídos fica corrompida e é levada à prática das
. .
piores c01sas.
De facto, tais pensamentos funcionam como uma porta
aberta não apenas para a malícia e prostituição, como
também para outros vícios quejandos, quais sejam a perfí­
dia, a trapaça, a vanglória, a cólera, a inveja, a contenda.
Daí a enorme importância de seguirmos um caminho em
que a ascese possa funcionar salutarmente, livrando-nos
da mácula decorrente da poluição produzida pelos instin­
tos carnais, ao mesmo tempo que fortalece em nós a liber­
dade do Espírito. Não te esqueças de que corrupção e
SÃO MACÁRIO 545

prostituição estão insidiosamente ativas lá, nos refolhas da


alma. Corrupção e prostituição decorrentes dos pensa­
mentos que, na sua iniquidade e infâmia, pretendem se­
mear em nós o desnorte. Sobre estas coisas temos palavras
do apóstolo Paulo que são injunções a não perder de vista.
Oiçamo-lo: «não sabeis que vós sois o templo de D eus e
que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir
o templo de Deus, a esse tal Deus o destruirá; pois o templo
de Deus é sagrado, e esse templo sois vós» (1Cor 3 ,16-17) . Ao
falar como fala, o Apóstolo evoca o nosso corpo.
Por conseguinte, também aquele que corrompe a alma
e profana a inteligência, pactuando com os pensamentos
da indignidade, também esse é réu de castigo. Portanto, tal
como nos importa guardar o corpo, preservando-o do
pecado visível, assim também nos importa guardar a alma,
preservando-a dos pensamentos da iniquidade, pois ela é
a esposa de Cristo. E continuemos a ouvir Paulo, o após­
tolo: «porque sinto por vós um divino ciúme, pois vos dei
em casamento a um único marido, para, como virgem
casta, vos apresentar a Cristo» (2Cor 11 ,2) . Escuta ainda a
divina Escritura: «guarda o teu coração com toda a vigilân­
cia, pois é dele que saem as fontes da vida. Preserva-te da
linguagem enganosa, que não passa de palavreado, e afasta
de ti a maledicência» (Pr 4,23) . E tem em conta o que ela,
sabiamente, ensina: «na verdade, os pensamentos perver­
sos separam-nos de Deus, e quando o poder divino é tes­
tado, põe a nu a loucura do mundo; com efeito, a sabedo­
ria não entrará numa alma maligna, nem habitará num
corpo refém do pecado» (Sb 1 ,3) .

1 2 0 . Que cada um submeta a um cuidadoso exame a


sua própria alma, exigindo dela uma confissão: a que coisa
te sentes tu ligada, alma? E se a resposta é titubeante e não
546 PEQUENA FILOCALIA

reconhece estar em sintonia com as leis de Deus, então há


que arrepiar caminho. Que ela se empenhe com denodo
em manter (à semelhança do modo como mantém o
corpo) a mente livre do império da corrupção e dos maus
pensamentos - é isso que se lhe exige, se na verdade ali­
menta o desej o de que, em sintonia com a promessa, a pu­
reza a habite. Efetivamente, Deus prometeu fazer das
almas completamente puras e amantes da beleza um lugar
onde Ele quer habitar. É forte dessa convicção que o após­
tolo Paulo traduz deste modo a sua experiência com Deus:
«que acordo pode haver entre o templo de D eus e os
ídolos? Com efeito, o templo do Deus vivo somos nós, se­
gundo o que Deus mesmo diz: "Morarei entre eles e no
meio deles andarei, e eu serei o seu D eus e eles serão o
meu povo"» (2Cor 6,16) .

Tal como aquele que ao cultivar com desvelo a sua


121 .
própria terra começa por revirá-la e libertá-la das silvas,
para só em seguida a semear, assim também aquele que es­
pera receber de D eus a semente da graça deve começar
por purificar a terra do seu próprio coração, de tal modo
que ao nele ser semeada a semente do Espírito resultem
frutos maduros e superabundantes. Se não é por aí que
começamos, e não nos purificamos de toda a mácula,
tanto a da carne como a do espírito, não deixamos de ser
carne e sangue. E, dramaticamente, continuamos longe da
vida. É isso que as palavras apostólicas enfatizam: «tendo,
pois, em conta as promessas de Deus, purifiquemo-nos de
toda a suj idade, quer a da carne quer a do espírito, reali­
zando o ideal de santidade no temor de Deus»; e ainda
noutro passo epistolar: «digo isto, irmãos : nem a carne
nem o sangue podem herdar o Reino de Deus; como tão
SÃO MACÁRIO 547

pouco a corrupção herda a incorruptibilidade» (2Cor 7 , 1 ;


1 Cor 1 5 ,5 0) .

1 22 . Impõe-se-nos examinar com toda a sabedoria, e


nos seus variados aspetos e implicações, as patranhas do
maligno, atentos aos ardis por ele montados, pois se assim
não agirmos seremos vítimas da sua malignidade. Estej a­
mos, pois, atentos ao campo de batalha: enquanto o Espí­
rito Santo diz por intermédio de Paulo «fiz-me tudo para
todos, a fim de ganhar a todos» (cf. 1 Cor. 9, 1 9) , o mal, esse,
esforça-se por levar todos à perdição, utilizando para isso
os disfarces mais variados e as artimanhas mais sedutoras.
Com aqueles que oram, o maligno simula orar, levado
pela intenção de os enganar, instilando neles a presunção
de já se verem a si mesmos como verdadeiros orantes; com
aqueles que j ej uam, ele simula j ej uar, querendo assim
levá-los ao logro de que já se podem gloriar do seu j ej um;
com aqueles que são versados nas Escrituras, ele age da
mesma maneira, intentando desviá-los a pretexto de j á
possuírem u m grande conhecimento ; com aqueles que
foram julgados dignos de uma revelação da luz, ele finge
ter sido também j ulgado digno do mesmo. Numa palavra,
e de acordo com a Escritura: Satã transforma-se em anjo
de luz, e não há nisso nada de extraordinário, com o fito
de atrair os homens a ele depois de os ter ludibriado com
a aparência da luz correspondente (cf. 2Cor 1 1 , 1 4) .
E l e assume, portanto, todas a s espécies de formas,
adapta-se a tudo, com o fito de a ele submeter os homens
mediante contrafações, e de os levar à perdição mediante
um palavreado falacioso. Por conseguinte, devemos com­
batê-lo de todas as formas, pois como diz a divina Escritu­
ra: «impõe-se-nos derrubar os sofismas e deitar por terra
toda a potestade que se eleva contra o conhecimento de
548 PEQUENA FILOCALIA

Deus» (2Cor 10,5) . Não há limites para o poder destruidor


do maligno, um poder capaz de instrumentalizar sobre­
tudo aqueles que se vangloriam de si mesmos e que, leva­
dos desse modo a pensarem de si mesmos como pessoas
importantes, estendem a cegueira da sua audácia até ao
ponto de derrubar mesmo aqueles que, através do conhe­
cimento da verdade, têm já a habitá-los o divino. Daí que
devamos todos, com toda a diligência, guardar o nosso
próprio coração e pedir a Deus a capacidade do discerni­
mento a fim de não nos tornarmos presas fáceis dos em­
bustes do mal.
Podemos assim, por conseguinte, compreender melhor
o quanto é importante custodiarmos a mente: precisamos,
com efeito, de uma mente que não fique submetida à pro­
fanação desencadeada pela matilha dos pensamentos in­
trusos, uma mente capaz de compreender mais e de se
submeter mais à vontade libertadora de Deus. Porque não
há obra maior ou mais preciosa que essa. Está dito, com
efeito : «grandes são as obras do S enhor, meditadas por
todos aqueles que nelas encontram o seu deleite: plena de
honra e de maj estade é a grande obra de Deus, e a sua jus­
tiça permanece para sempre» (Sl 111 ,2-3) .

123. A alma que, sendo amante de Deus, vive esse amor


na comunhão com Ele, mesmo quando pratica de um
modo exemplar todas as virtudes, não atribui a si mesma o
mérito de uma tal prática, mas sim a Deus. Contudo, este,
agradado do comportamento de uma alma assim, atribui­
-lhe tudo - pois foi profundamente empenhada que ela fez
tudo o que fez - e recompensá-la-á quando no dia do jul­
gamento vier na sua glória.
Efetivamente, os bens materiais que cada homem possui
e a que chama seus (bens com os quais pode fazer o bem)
SÃO MACÁRIO 549

incluindo a terra que pisa e todas as coisas que nela há,


bem como o corpo e a alma, tudo pertence a Deus. O pró­
prio ser que existe como ser, só por pura graça divina
existe, e é por essa graça que é o ser do homem. Que lhe
resta então como propriamente seu? Isto é, de que se pode
ele então sensatamente gloriar ou j ustificar? A resposta
será: de nada mais a não ser do reconhecimento de que
todas as boas ações que pratica, todo o esforço que desen­
volve, todo o conhecimento dos seres criados que adquire,
tudo isso foi realizado graças a Deus e por amor a Ele. Eis
aí, pois, o motivo da sua glória: o reconhecimento de que
uma tal glória não é sua mas de Deus! E, q uando isso
acontece, D eus aceita essas coisas como a maior e mais
preciosa oferenda que, aos seus olhos divinos, o homem
pode fazer.

124. Quando uma mulher se casa com um homem para


viver em comunhão com ele, tudo o que ambos possuem
se torna comum. Ambos passam, assim, a ter uma mesma
casa, os mesmos bens, os mesmos meios de existência. E
nessa comunhão de vida, a mulher pode dispor não
apenas dos bens do seu marido, mas também do corpo
deste. Com efeito, o marido - di-lo o Apóstolo divino -
não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim a
mulher: «e igualmente tão-pouco o marido é dono do seu
próprio corpo, mas sim a mulher» (1Cor 7,4) .
Analogamente, a alma, na sua verdadeira e misteriosa
comunhão com Cristo, torna-se um só Espírito com Ele.
Daí necessariamente resulta que, em virtude de se ter tor­
nado sua esposa, a alma é também, de certo modo, tutora
dos seus tesouros inefáveis. E, em virtude de Deus se ter
dado a ela, torna-se óbvio que tudo o que é dele é também
dela, s ej a o mundo, sej a a vida, sej a a morte, sej am os
550 PEQUENA FILOCALIA

anjos, sej am os principados, seja o presente, seja o futuro


(cf. Rm 8 ,38) .

125.Enquanto o antigo Israel se empenhou em agradar


ao Senhor, trilhando os seus caminhos e mostrando a sua
fé (não obstante o seu comportamento não ter sido algu­
mas vezes exemplar) uma coluna de fogo ia à sua frente, o
mar abriu-se e deixou-o passar, e outras maravilhas sem
conta lhe foram prodigalizadas. Tudo isso demonstrações
da inquebrantável fidelidade de Deus. Mas quando Israel
deixou que o seu amor a D eus arrefecesse, e com esse
arrefecimento tivesse ocorrido um outro - o da perda da
memória - Israel acabou entregue aos inimigos e subme­
tido a amargas escravidões (cf. Ex 13,21; 14,21) .
Pois bem: não percas de vista, por favor, que algo simi­
lar acontece no caso da alma. Pela graça divina ela conhece
Deus, é purificada de muitas manchas, empenha-se em tri­
lhar o caminho da obediência, torna-se digna de receber
os dons, mas se não mantiver até ao fim o seu amor pelo
Esposo celeste, acaba por decair da vida na qual tinha par­
ticipado. Com efeito, até mesmo aqueles que atingem um
elevado nível na sua ascensão espiritual, se não forem vigi­
lantes, podem ser levados a cair no orgulho pelas artima­
nhas demoníacas montadas pelo maligno.
D evemos, por conseguinte, combater com todas as
nossas forças, mantendo uma perseverança fiel e uma vigi­
lância diuturna. Poderemos, assim, cuidar da nossa vida
com um sentimento de temor e tremor, origem de toda a
sabedoria: «com temor e tremor operai a vossa própria sal­
vação» (Fl 2 ,12) . É esse o desafio essencial, lançado sobre­
tudo àqueles que receberam como dom a participação no
Espírito de Cristo: fugir da negligência, viver a beleza de
D eus no q uotidiano da vida, nada fazer (pequeno ou
SÃO MACÁRIO 551

grande) de indigno, que sej a uma ofensa ou uma provoca­


ção para o Espírito do S enhor. Na verdade, tal como há
alegria no Céu, no dizer do Evangelho, por um só pecador
que se arrepende (Lc 1 5 , 7) , assim também há tristeza por
uma só alma que decai da vida eterna.

126. Quando uma alma é julgada digna de ser agraciada,


Deus outorga-lhe aquilo que, por ser de um valor inesti­
mável, lhe é mais útil: a capacidade de conhecer, de com­
preender, de discernir. Com abundância, D eus concede
uma tal capacidade à alma que está firmemente disposta a
pôr um tal dom não ao seu próprio serviço (o que seria
uma crua manifestação de orgulho) , mas ao serviço de
Deus. É-lhe assim, quando disso j ulgada digna, conferido
o Espírito da Verdade. Ora, quando o Espírito da Verdade
toma conta de uma alma, ela é salutarmente posta no ca­
minho da autêntica vida, e não se deixa nem cair no erro,
nem seduzir pelo vício, nem perverter pela negligência,
nem levar pelo canto da sereia da fuga ao temor de Deus.
Uma alma assim, vivendo como vive de uma maneira sábia
(pois o temor de Deus é o princípio da sabedoria) não se
torna refém da sedução demoníaca, nem é levada pelos ca­
minhos da indignidade.

127. Que contraste não há entre uma vida que, domi­


nada pelo sentimento da carne, fica cativa das paixões, isto
é, refém desse espírito do mundo, que não é outro senão o
espírito do erro, das trevas, da mentira, do desnorte - que
contraste não há entre uma vida dessas e uma vida em que
a energia e o poder do Espírito fazem a sua morada num
homem santificado!
Lancemos um olhar à divina Escritura e escutemos o
que ela nos diz. Evoquemos Paulo, o apóstolo divino, pro-
552 PEQUENA FILOCALIA

clamador da mensagem da presença de Cristo em nós: aos


cristãos de Corinto testemunha, sem ambiguidade, que
Cristo fala nele (cf. 2Cor 13,3); e aos cristãos da Galácia diri­
ge palavras que ele próprio arranca às profundezas do seu
ser: «com Cristo estou crucificado, mas vivo, não já eu,
mas sim Cristo que vive em mim» e «vós que fostes batiza­
dos em Cristo, de Cristo vos revestistes» (Gl 2,20; 3,27) . E o
S enhor, Ele mesmo, diz: «se alguém me ama guardará a
minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos, Eu e meu
Pai, e faremos nele a nossa morada» ao 14,23) .
Que não percamos de vista isto: todas essas palavras
(palavras fortes, porque animadas da força do Espírito) se
cumprem profundamente, com poder e verdade, na vida
daqueles que dizem um não à indignidade e um sim a uma
forma de existência fecundada pela beleza, a beleza de
Deus. No passado, a Lei, com os seus imperativos impla­
cáveis, começou por levar os homens ao arrependimento
impondo-lhes um j ugo pesado e difícil de suportar, sem
lhes prestar socorro algum, dada a sua incapacidade para,
em si mesma, como Lei, libertar o poder do Espírito. Está,
com efeito, escrito, acerca dessa incapacidade: «O que era
impossível à Lei em virtude de a carne lhe sugar toda a
força» ( Rm 8 ,3) . Mas depois da vinda de Cristo, uma mu­
dança radical ocorre, e a porta que até então estava fechada
abre-se para todos aqueles que verdadeiramente creem,
todos esses a quem é dado o poder de Deus e transmitida
a energia do Espírito Santo.

128. Entre os vários dons concedidos por Cristo aos dis­


cípulos, há um que logo desde o início se apresenta como
fundamental: a capacidade de serem bons, naturalmente
bons, mediante a outorga do Espírito Santo. Deus mani­
festa assim, nesse dom, o seu poder, e cobre com a sua
SÃO MACÁRIO 553

sombra misericordiosa todos aqueles que creem. E isso de


tal modo que essas almas crentes se tornam para Deus sua
habitação, lugar onde o Espírito - que faz novas todas as
coisas no nosso coração - sara as feridas causadas pelas
paixões, e liberta das trevas e da morte.
Até então a alma estava ferida, encarcerada na prisão da
indignidade, prisioneira das trevas da ignorância e refém
do pecado da ignomínia. E mesmo agora pode muito bem
acontecer a uma alma não ser julgada digna para habita­
ção do Senhor, em virtude de o poder do Espírito Santo,
doador de energias e criador da nova vida, não estar ainda
nela com toda a sua força e em p lenitude. Uma alma
dessas ainda não foi transportada para a luz resplande­
cente, manifestada no S enhor Jesus, e continua assim a
viver no seio das trevas.
Pelo contrário, há aquelas em quem as coisas se passam
de um modo bem diferente : são as almas visitadas pela
graça divina, na força do Espírito, que as bafej a com o
sopro da vida, que lhes infunde uma nova energia, que faz
delas sua morada. Em homens desses, a mente, que
conhece também a força da vida nova, faz-se una com a
alma, abrindo-se assim a porta para uma unidade fecunda.
E as palavras do Apóstolo divino vão nesse sentido: «aque­
le que se liga ao Senhor será com Ele um só Espírito» ( l Cor
6, 1 7) . E as palavras do próprio Senhor soam desta maneira:
«Pai, que assim como Tu e Eu somos Um, que eles tam­
bém sejam um em Nós» (Jo 1 7,22) .
Por conseguinte, que bênção, que bondade, que ale­
gria, não sentirão todos aqueles que experienciam e sen­
tem a profundidade dessas palavras! É como uma verda­
deira ressurreição para todos aqueles que neste mundo
sofrem o peso da ignomínia e sentem as suas almas humi­
lhadas pela força bruta do poder do mal! Efetivamente a
554 PEQUENA FILOCALIA

alma, prisioneira do fardo das paixões que a ela se uniam


(e isso não obstante dispor de uma vontade própria) era
impotente para fazer o que lhe convinha. Outra coisa não
diz Paulo, ele que se exprime deste modo: «sabemos que a
Lei é espiritual; mas eu sou da carne, vendido à força do
pecado; não compreendo as minhas próprias ações, pois
não faço o que quero, mas o que não quero isso faço» (Rm
7,14-15) . Ora, sendo as coisas desse modo, como o Apósto­
lo sublinha, quão importante não é para nós a energia que
dimana da união da alma com o Espírito divino ! D essa
união recebemos a força para ultrapassar os nossos impas­
ses e conflitos íntimos, pois a nossa alma faz-se una com a
vontade divina, ao ser santificada pelo poder de Deus, e
desse modo feita digna dele!
Desse modo, a alma assume-se como se fosse a alma do
Senhor, submetendo-se, voluntária e conscientemente, ao
poder do Espírito Santo, deixando assim de caminhar se­
gundo a sua própria vontade. Há, a este respeito, umas sig­
nificativas palavras do apóstolo Paulo, esse divino procla­
mador de que nada há neste mundo que possa separar de
Cristo uma alma que a Ele está ligada pelo amor, na força
outorgada pelo Espírito S anto : « q uem nos separará do
amor de Cristo ? tribulação ? , angústia? , perseguição ? ,
fome ? , nudez? , perigo ? , espada? [ . . . ] Não ! Nada é capaz
de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus,
Senhor nosso» (Rm 8,35-3 9) .

129. Por conseguinte, tendo em conta que a vida vivida


com dignidade, na comunhão do Espírito, exige perma­
nentemente um profundo empenho, importa-nos sempre
ter presente esse combate a travar no meio dos múltiplos e
diversos ataques do maligno. Na verdade, todos aqueles
que querem ser chamados filhos de Deus, nascidos do Es-
SÃO MACÁRIO 555

pírito, conhecem: vicissitudes muitas, vitupérios abundan­


tes, incompreensões agrestes, assaltos sibilinos! A força do
demoníaco manifesta-se sob formas as mais variadas, vi­
sando sempre provocar fraquezas corporais desgastantes.
Ora, é no meio de tudo isso que, segundo a Providência
divina, há almas que ao serem submetidas às aflições, delas
emergem, fortalecidas pelo Espírito, e se manifestam à luz
do dia amando verdadeiramente o Senhor. É isso que, ao
longo dos tempos e com o passar dos séculos, tem sido
testemunhado por patriarcas, profetas, apóstolos, mártires:
não só as suas vidas são exemplos do modo como enfren­
taram tentações e se debateram com infortúnios, como
também o seu testemunho, tantas vezes dado nas situa­
ções mais difíceis, foi agradável a Deus.
A esse respeito, palavras particularmente encoraj adoras
são as da Escritura: «meu filho, se é teu desej o servir o Se­
nhor, prepara a tua alma para a provação, faz do teu cora­
ção um coração reto, sê perseverante! » (Sir 2 ,1-2) . E palavras
vindas de algures: recebe, como se de bens se tratasse, tudo o que
te acontece, sabendo que nada se pode fazer sem Deus. Por conse­
guinte, possuída por esse espírito, a alma que, na força do
amor, está profundamente empenhada em agradar a Deus,
deve antes de mais nada manter contínua a perseverança e
viva a esperança. Com efeito, não pode claudicar nem
numa nem noutra . Porque o poder do mal ataca com
aquilo de que é feito, isto é, com a sua malignidade, sobre­
tudo tornando-nos prisioneiros da acédia quando vivemos
tempos de aflição. E fá-lo com o fito de cortar cerce em
nós o que nos liga à esperança no Senhor.
Mas Ele, o Senhor, na sua misericórdia, nunca permite
que as tentações que se abatem sobre uma alma que nele
confia a levem a um completo desnorte ou a um desaire
sem remissão. Escutemos o testemunho do Apóstolo:
556 PEQUE NA FILOCALIA

«somos atribulados mas não reduzidos ao nada; perplexos


mas não desconcertados; perseguidos mas não abandona­
dos; derrubados mas não vencidos» (2Cor 4,8-9) . Conscien­
te, pois, de tudo isso, do que é a nossa vulnerabilidade e do
que é a fidelidade de Deus, o Apóstolo proclama: «Deus é
fiel e não permitirá que sej ais tentados para além das
vossas forças. Por isso, juntamente com a tentação Ele dará
também o meio para dela saírdes, a fim de poderdes su­
portá-la» ( l Cor 1 0 , 1 3) .
É sem perder isso d e vista que podemos afirmar que o
poder do mal, na sua virulência, não aflige a alma tanto
quanto é seu desej o, mas somente na medida em que isso
lhe é permitido por D eus. Peguemos num exemplo que
nos permitirá uma comparação. Os homens que condu­
zem uma mula, ou um burro, ou um camelo, têm a per­
feita noção do peso que cada um desses animais pode
transportar, e a partir daí carregam-nos tendo isso em
conta; um oleiro, esse, sabe muito bem o tempo de exposi­
ção ao calor do fogo dos vasos que fabrica, para que eles
não se quebrem se submetidos a uma exposição excessiva,
nem se tornem inutilizáveis se retirados antes do tempo.
Ora, se a ciência dos homens é assim conhecedora das
coisas, quanto mais, infinitamente mais, não é a ciência de
Deus conhecedora de cada alma, sabendo infinitamente
bem até que ponto pode ela ir quando exposta à provação,
provação essa que deve funcionar com a finalidade de
fazer da alma uma alma experimentada e apta para chegar
ao Reino dos Céus ? !

1 3 0 . O cânhamo é, p o r natureza, u m tipo d e material


que só pode ser utilizado para fabricar telas delicadas se,
previamente, for submetido à compressão. E quanto mais
for comprimido e cardado tanto mais puro se torna e pro-
SÃO MACÁRIO 557

porciona uma melhor utilização. Se se trata do fabrico de


um vaso, impõe-se ao artesão submetê-lo ao fogo, pois se
assim não for não poderá ser utilizado pelos homens. Se se
trata de uma criança, a sua inexperiência nas obras do
mundo faz com que ela não possa nem construir, nem
plantar, nem semear, nem realizar corretamente uma qual­
quer outra tarefa.
Pois bem: mutatis mutandis, o mesmo ocorre não poucas
vezes quando está em jogo a vida das almas. Não obstante
participarem na graça divina e terem sido, com a benevo­
lência do S enhor, cheias da doçura e da quietude que o
Espírito Santo nos outorga, encontram-se ainda, muitas
delas, num certo estado infantil. Imaturas como são, ne­
nhuma experiência possuem quando têm de se defrontar
com as tentações decorrentes dos tormentos infligidos
pelas forças malignas, motivo pelo qual soçobram, revelan­
do assim uma lamentável incapacidade para trilhar o ca­
minho essencial que conduz ao Reino dos Céus.
Sobre essa questão se exprime o Apóstolo divino. E fá­
-lo com as palavras: «se na verdade estais sem sofrer a cor­
reção, que a todos tem atingido, não será que sois bastar­
dos e não filhos? » (Heb 12,8) . Nesta perspetiva, o homem,
ao defrontar-se com as tentações mais diversas e com as
aflições mais angustiantes, tira proveito de uma tal expe­
riência, na medida em que experienciar essas situações
torna a alma mais experimentada e mais sólida. E quando
a esperança no S enhor é uma esperança viva, que dá
forças e ânimo para a caminhada, um homem não passa
ao lado da promessa do Espírito e, por consequência,
conhece e experiencia uma libertação profunda: a liberta­
ção que ocorre quando o império das paixões (que, na sua
malignidade, conspira quotidianamente contra a vida) é
reduzido à sua impotência.
558 PEQUENA FILOCALIA

131. Foi sentindo e sofrendo tormentos múltiplos (de


onde saíam fortalecidos para levar a sua perseverança até
ao fim, até à morte!) que os mártires se tornaram dignos
das coroas gloriosas. Quanto mais numerosos, mais duros,
mais cruéis, fossem os seus sofrimentos, tanto maiores
seriam a sua glória e a sua íntima e profunda comunhão
com Deus. Pois bem: de um modo idêntico (guardando
embora, respeitosamente, o que possa haver nisto de dife­
rente) também as almas que passem por duras vicissitudes,
e forem fiéis até ao fim, receberão coroas semelhantes às
dos mártires e gozarão da mesma comunhão íntima j unto
de D eus. Com efeito, não são poucas as almas que ao
longo da sua vida sofrem de muitas e variadas maneiras,
quer por desígnio dos homens na ordem do mundo visível,
quer como consequência de pensamentos insensatos, quer
por enfermidades corporais. E, não obstante tudo isso, no
meio de tudo isso, guardam íntegra a sua fidelidade.
Há paralelismo entre essas situações, e não mais que
paralelismo. Em boa verdade impõe-se-nos o reconheci­
mento de uma diferença: enquanto os mártires sofreram o
que sofreram como vítimas dos homens, os ascetas sofre­
ram-no como vítimas dos espíritos do mal atuantes nos
homens. Mas em ambos os casos regista-se um ponto em
comum que, pela sua importância, temos de sublinhar: a
glória final tanto de uns como de outros será tanto maior
quanto maior tiver sido o sofrimento infligido pelos adver­
sários. E não se perca de vista ainda uma outra coisa: uma
tal glória começa a ser outorgada por Deus já agora, aqui
em baixo, e não apenas no mundo futuro. Trata-se, com
efeito, de uma glória cuj a plenitude será final, mas cuja
outorga começa já, como primícia da grande, indizível e
inefável consolação que o Espírito Santo comunica àque­
les que de uma tal consolação forem julgados dignos.
SÃO MACÁRIO 559

1 32.Sendo estreito, estrito e árduo o caminho que con­


duz à verdadeira vida, pouco numerosos são aqueles que
o trilham. S abemo-lo perfeitamente. Por conseguinte, a
nós que procuramos ser caminhantes que trilham esse ca­
minho, tendo em vista a esperança que se funda nos Céus,
impõe-se-nos suportar as provações, as canseiras, os vitu­
périos, tudo coisas provenientes do maligno, esse espírito
do mal cuj o fito é provocar o desnorte entre as almas.
Mas disto podemos estar seguros: por maiores que
sej am as provações que nos sobrevenham, elas nada são
q uando comparadas com a recompensa prometida do
mundo futuro, ou com a graça do Espírito S anto que
enche as nossas almas já nesta vida presente, ou com a
vida que nos é dado viver quando as paixões infames j á
não ordenam. Nada são, ainda, quando comparadas com
o perdão dos pecados: as provações são da ordem do dia­
bólico, enquanto o perdão dos pecados é da ordem do di­
vino que nos abre as portas para o que há de belo já neste
mundo presente e também no mundo futuro.
Está de facto dito na Escritura: «os sofrimentos do tem­
po presente empalidecem quando comparados com a
glória futura que deve revelar-se em nós» (Rm 8 ,18) . Daí a
exortação, repetida sempre e de novo, para suportarmos
tudo pelo S enhor, quais nobres combatentes prontos a
morrer pelo seu Rei.
E pode muito bem acontecer isto : enquando estamos
ligados ao mundo, e seduzidos pelas coisas deste tempo
presente, as provações podem não nos atingir, mas quando
começamos a servir ao Senhor elas podem impender sobre
nós. Ora, quando isso acontece, de uma coisa devemos
estar completamente seguros: a provação não nos vem de
Cristo, mas sim do maligno que, roído de invej a pela re­
compensa por nós esperada, arma-se do propósito de ins-
560 PEQUENA FILOCALIA

tilar nas nossas almas o descuido, a negligência, o desnor­


te, de molde a não sermos j ulgados dignos dessa recom­
pensa que nos é outorgada quando vivemos de um modo
agradável a Deus.
O adversário investe, pois, contra nós, e redobra os seus
ataques quando lhe oferecemos uma resistência coraj osa
alimentada pela observância dos mandamentos. Mas todos
os embustes que ardilosamente monta para nos fazer cair
na desobediência são desmontados com a ajuda de Cristo.
Com efeito, temos em Jesus o nosso protetor e defensor,
Ele que veio viver a nossa vida e também conheceu os ata­
ques da infâmia, vilipendiado, perseguido, ridicularizado e,
por fim, morto na desonrosa morte da cruz. Guardamos,
com efeito, na nossa memória o itinerário por Ele seguido
na sua vida terrena: um itinerário marcado pela sua obe­
diência total ao Pai no meio da desobediência do mundo.

133. Tendo em conta o combate de que se trata, se que­


remos suportar com firmeza as provações, se estamos dis­
postos a uma fidelidade perseverante no dia a dia da nossa
vida, se estamos dispostos a dar a nossa vida pela causa do
Evangelho de Cristo, se assim é, tenhamos permanente­
mente a sua vida e a sua morte no nosso horizonte de re­
flexão. Ao sermos intimados a segui-lo, somos chamados,
com efeito, a um discipulado em que a sombra da cruz e
a ordem para a assumirmos, estão incontornavelmente
presentes.
E podemos estar certos de uma coisa: se a nossa deter­
minação ao dizermos sim a essa chamada for verdadeira­
mente cumprida, coisas surpreendentes acontecerão na
nossa vida e as nossas forças renovar-se-ão em cada dia
que passa, e isso de tal modo que suportaremos com fir­
meza todas as provações que nos sobrevenham, e não só
SÃO MACÁRIO 5 61

as que surgem à luz do dia, como também as que, sibilina­


mente, atacam no oculto. Efetivamente, como poderá o
homem que descobriu a beleza do Evangelho, e por ela foi
cativado, tomar uma outra atitude que não seja a de estar
disposto a dar a sua vida por Cristo? E mais: como poderá
um tal homem sentir um mal estar qualquer ao passar por
dores várias e aflições muitas? Com efeito, a fuga a um tal
testemunho é que constituiria em si uma fonte perma­
nente de um mal-estar, o mal-estar resultante de uma crise
da consciência.
Todo aquele que acalenta o desej o de ser herdeiro de
Cristo sabe que o caminho a trilhar não pode ser outro
senão o de um discipulado exigente de que o ponto de
referência consiste em imitá-lo. Deste modo, aqueles que
dizem amá-lo reconhecem-se nisto: no modo como, tendo
como horizonte a força da esperança, suportam a prova­
ção, vivendo-a não apenas coraj osamente mas também
ardentemente.

1 34. Àq uele que se aproxima de Cristo é-lhe exigido,


antes de mais nada, que exerça violência sobre si mesmo,
se é que quer atingir o bem, mesmo se o seu coração opõe
resistência. A este respeito podemos ouvir da parte do
Senhor, que não mente, estas palavras: «Ü Reino dos Céus
sofre violência, e são os violentos que dele se apoderam»
(Mt 11,12) . E ainda estas: «esforçai-vos por entrar pela porta
estreita» (Lc 1 3 , 2 4) . Impõe-se-nos, pois (dissemo-lo j á)
mesmo contra a nossa vontade, isto é, exercendo violência
sobre nós mesmos, abrirmos com denodo um caminho
que conduza à virtude!
Por conseguinte: que aqueles a quem falta o amor se
esforcem por alcançá-lo; que aqueles em quem há carên­
cia de doçura tudo façam para atingi-la; que aqueles que
562 PEQUENA FILOCALIA

ainda não são misericordiosos se empenhem com ardor


em ter um coração compassivo e cheio de amor, e supor­
tem a desonra e a indiferença sem p erder a dignidade,
mantendo-se inabaláveis sob o estigma do desprezo e da
infâmia; e, por fim, que aqueles que não são ainda habita­
dos pela oração do Espírito, se esforcem por atingi-la e se
tornem verdadeiramente orantes.
Essa é a luta que nos deve mobilizar, e se nela nos em­
penharmos desse modo, Deus terá em conta o alcance de
uma tal ascese (pois não será a ascese uma salutar violên­
cia que sobre nós mesmos exercemos, com o objetivo de
atingirmos o bem?) e conceder-nos-á o dom da oração ín­
tegra, bem como o dom de um coração compassivo, fa­
zendo Ele assim com que sej amos pacientes, longânimos,
sensatos, numa palavra, encher-nos-á dos abundantes e
diversos frutos do Espírito.
E note-se isto: a um homem podem faltar algumas vir­
tudes, mas se é dotado do dom do exercício da violência
sobre si mesmo para progredir no caminho da oração
j usta, e além disso vive com doçura, com humildade, com
amor, e é firme na fé e na confiança em Cristo, e não é ne­
gligente nem se deixa cair na preguiça - então, se isso é
assim, a um tal homem será dado receber o dom do Es­
pírito Santo, com o que isso significa de alegria, de paz, de
quietude, de capacidade para orar. Atingiu desse modo o
estado de orante.
Existem outros tipos de violência sobre si mesmo que
ele deverá exercer para atingir outros bens. Com efeito,
mesmo contra a sua vontade, impõe-se-lhe de um modo
incontornável não só abrir um caminho conducente aos
bens há pouco evocados (rogando a D eus que lhe sej a
dado recebê-los) mas também ter por indignas d e ser pro­
nunciadas, no momento orante, as palavras inúteis e ocio-
SÃO MACÁRIO 563

sas. Permanentemente deve ter na boca e no coração as


palavras de Deus, bem como se lhe impõe fugir dos aces­
sos de cólera e da gritaria. Vai nesse sentido a Palavra divi­
na, quando nos adverte : «que toda a amargura, toda a
cólera e toda a gritaria sejam banidas de entre vós» (Ef 4,31) .
Deve ainda esforçar-se por não maldizer, nem j ulgar, nem
cair na arrogância, pois com esse esforço de purificação
(que implica o exercício da violência sobre si mesmo) cria
um salutar espaço para responder ao apelo do Senhor, que
quer que ele cumpra com gosto aquilo que antes, mesmo
com esforço, lhe era impossível realizar, por causa da malí­
cia que nele se tinha instalado. E, chegado aí, isto é, atin­
gido um tal estado de disponibilidade, toda essa prática da
virtude se torna para ele uma segunda natureza. Com
efeito, doravante, o Senhor, tal como prometeu, vem e faz
nele morada (Jo 1 5 ,5); e ele, semelhantemente, faz a sua mo­
rada no Senhor, e cumpre assim, com toda a naturalidade
e com toda a alegria, os mandamentos.

135.De tudo o que acabamos de dizer conclui-se, entre


outras coisas, o seguinte: aquele que, para atingir o estado
de orante, exerce violência sobre si mesmo, de acordo com
o que já dissemos, tem um comportamento louvável. Mas
atenção ! Se um tal homem não se empenha esforçada­
mente na procura de um comportamento humilde pau­
tado pela vivência do amor e da doçura, acaba por ficar re­
duzido a isto : a receber ocasionalmente, na altura da
oração, a visita da graça divina. Isso é assim porque Deus,
na sua bondade, ama tanto os homens que, àqueles que
verdadeiramente oram, lhes concede o que pedem. Mas se
um tal homem não se familiariza nem se exercita nas vir­
tudes de que falámos, das duas uma: ou, cheio de orgulho,
5 64 PEQUENA FILOCALIA

decai da graça que tinha recebido, ou não consegue nem


progredir nem crescer nessa graça.
Na verdade, a morada do Espírito S anto e a quietude
que daí provém são, manifestamente, afins da humildade,
do amor, da doçura, bem como dos outros santos manda­
mentos de Cristo. Por conseguinte, aquele que, mediante
estes mandamentos, pretende progredir no processo do
crescimento e atingir desse modo a perfeição, deve come­
çar por privilegiar o primeiro de todos, o mandamento do
amor, como já foi dito, empenhando-se assim em fazer
com que o seu coração, inclinado à querela e à disputa, se
torne amável e dócil, dando assim profundidade à sua vida
de comunhão com Deus.
Com efeito : no homem que começa por exercer uma
salutar violência sobre si mesmo, que doma toda a resis­
tência da alma, que pela prática do hábito se torna obe­
diente a Deus, que ora e implora com integridade - num
tal homem cresce e floresce o carisma da oração outor­
gado pelo Espírito, carisma que se funda não só na mode­
ração dos sentimentos, mas também numa verdadeira coe­
rência com o caminho ditado pelo amor e pela doçura
afetuosa. É na força do Espírito que tudo isso é outorgado
e vivido, j untamente com o ensino da humildade não
hipócrita, com o amor verdadeiro, com a doçura do afeto -
todas essas coisas que tinham sido objeto da sua procura
logo no começo, na atitude da procura do exercício da
salutar violência sobre si mesmo.
Desse modo, portanto, crescendo até à perfeição exigida
pelo Senhor, um tal homem, na limpidez do seu compor­
tamento, mostra ser digno do Reino. Efetivamente, aquele
que é humilde de um modo íntegro jamais cai: pois como
poderia cair aquele que se vê a si mesmo como abaixo de
todos, na medida em que isso dependa dele? Aprendeu
SÃO MACÁRIO 565

um tal comportamento na escola do Evangelho: enquanto


o orgulho conduz à humilhação, a humildade honrada
leva-nos à elevação.

1 36. Aqueles que verdadeiramente amam a Deus ser­


vem-no na integridade da sua vida. É por isso que esse seu
amor não tem a motivá-lo o fito de alcançar o Reino. Se o
tivesse não passaria de um simulacro de amor. E , além
disso, nenhum interesse têm em negociar com D eus os
seus presumíveis méritos humanos. Nem tão-pouco os
move o desejo de escaparem ao castigo reservado aos pe­
cadores impenitentes. Amam-no, sim, pura e simples­
mente como se ama a um Deus único, que é o seu próprio
Criador. Amam-no porque Ele os amou primeiro: «nós
amamo-lo porque Ele nos amou primeiro» ( lJo 4,1 9) .
Ora, agindo desse modo manifestam duas coisas. A pri­
meira, o reconhecimento de servos que, naturalmente, se
sentem compelidos a agradar ao Senhor que os criou; a
segunda, a capacidade de dizerem não à mediocridade
estiolante e sim à importância do discernimento perante o
que lhes acontece.
Na verdade, o desejo de agradar a Deus enfrenta muitos
obstáculos, pois as tentações para a alma não estão lá
apenas na pobreza e na obscuridade, mas também o estão
na riqueza e na honra. E note-se que, em certo sentido, até
mesmo a consolação e o reconforto (que a alma recebe da
graça divina) podem facilmente converter-se em provação
e em obstáculo se a alma que de tal foi j ulgada digna não
os experimenta e sente de uma maneira comedida e com
discernimento. Com efeito, o maligno, a pretexto de uma
tal graça, usa de mil artimanhas para levar a alma ao des­
leixo, fazendo com que nela entrem a languidez, a lascívia,
a negligência. Motivo pelo qual a própria graça necessita,
566 PEQUENA FILOCALIA

para estabelecer comunhão, de uma alma piedosa e perspi­


caz, que a honre produzindo frutos dignos dela.
Por conseguinte, devemos sublinhar que não são ape­
nas as aflições que se constituem em provação: paradoxal­
mente, os refrigérios da alma podem também configurar­
-se como motivos de provação. Com efeito, em ambas as
circunstâncias as almas são postas à prova pelo Criador, e
são-no para que se manifestem aquelas que o amam sem
tergiversar e sem procurar tirar daí um qualquer lucro, na
força de um amor que unicamente o considera a Ele só
como digno de um afeto e de uma honra verdadeiramente
grandes.
Assim, para aquele que é negligente e não tem fé, e
pensa ainda como uma criança, tudo lhe é obstáculo para
a vida eterna: tanto o são as circunstâncias tristes e peno­
sas (doença, pobreza, descrédito) , como o são a riqueza, a
glória, as honras, juntamente com a guerra oculta movida
pelo maligno. Pelo contrário, para aquele que tem fé, com­
preensão, nobreza, essas mesmas circunstâncias são ajudas
para chegar ao Reino de Deus. Segundo o Apóstolo divino,
«incontestavelmente, tudo concorre para o bem daqueles
que amam D eus, daqueles que são chamados pelo seu
decreto» (Rm 8,28) . Assim se prova que o homem que ver­
dadeiramente ama a Deus, e é capaz de se defrontar com a
inimizade do mundo (dizendo não ao que nessa inimizade
há de demoníaco) é um homem que dá mostras da sua
capacidade de viver o divino e, como tal, capaz de amar
verdadeiramente.
Vão nesse sentido e vibram no mesmo comprimento de
onda as palavras do profeta: «ainda que as armadilhas da
maldade me ameacem de destruição, e os laços dos peca­
dores me queiram manietar, não me esqueço da tua Lei»
(Sl 1 1 9 , 6 1 ) .
SÃO MACÁRIO 567

1 37. Paulo, o apóstolo divino, mostra a toda a alma cren­


te, de um modo rigoroso e claro, que o mistério perfeito do
cristianismo consiste em se chegar à experiência da energia
divina, isto é, ao clarão da luz celeste cintilante na revelação
e no poder do Espírito. Desse modo, e assim instruídos, não
corremos o risco de, por ignorância ou negligência, passar­
mos ao lado do mistério perfeito da graça.
Com efeito, o Apóstolo cura-nos do erro de pensar que
uma tal iluminação do Espírito só nos advém de um
conhecimento conceptual. Essa a razão por que ele evoca
também o exemplo da glória do Espírito rodeando a face
de Moisés: com uma tal descrição pretende sublinhar ima­
geticamente o verdadeiro carácter do conhecimento espi­
ritual em sintonia com o mistério. Por isso escreveu: «Se o
ministério da morte, gravado com letras em tábuas de
pedra, foi glorioso, ao ponto de os filhos de Israel não po­
derem fixar o rosto de Moisés por causa da glória, ainda
que passageira, da sua face, quanto mais será glorioso o
ministério do Espírito? ! E se o ministério da condenação
foi glorioso, quanto mais abundará em glória o ministério
da j ustiça? ! Assim, o que ocasionalmente foi glorificado,
não o foi verdadeiramente, por causa de uma glória mais
eminente. Porque se o que é transitório conheceu a glória,
quanto mais será glorioso o que permanece!» (2Cor 3,7-1 1 ) .
Ele usa a expressão «o transitório» porque a glória d a luz
envolvia o corpo mortal de Moisés. E acrescenta: «Tendo,
pois, uma tal esperança, agimos com uma grande ousadia»
(2Cor 3 ,12); e um pouco mais à frente mostra que essa glória
indissolúvel, incorruptível, reveladora do Espírito, brilha
desde já para aqueles que dela são dignos com um brilho
eterno e indefetível, no ser imortal do homem interior.
Assim, falando de coisas tão inefáveis, afirma: «nós todos
(isto é, nós que, em virtude de uma fé perfeita, nascemos
568 PEQUENA FILOCALIA

do Espírito) com a face desvelada, refletimos a glória do


S enhor, e somos transfigurados na mesma imagem, de
glória em glória, como pelo Senhor, o Espírito» (2Cor 3 ,18) .
Ora, não percamos de vista o seguinte: o rosto desve­
lado é, obviamente, a face da alma. Assim, em sintonia com
o que j á anteriormente dissera, continua o Apóstolo:
«quando nos voltamos para o Senhor, o véu é-nos retira­
do; ora, o Senhor é o Espírito» (2Cor 3 ,18) . Ao exprimir-se
desse modo, ele mostra claramente que um véu de trevas
tinha sido lançado sobre a alma. É esse o véu a que, na se­
quência da transgressão de Adão, tinha sido atribuído o
triste poder de obnubilar a alma humana.
Mas era um poder transitório: era-o na medida em que
agora, sob a luz resplandecente do Espírito, um tal véu foi
retirado das almas fiéis e verdadeiramente dignas. Para que
isso tivesse sido possível, isto é, para que ao tempo das
almas vítimas do regime das trevas sucedesse o tempo das
almas iluminadas pela resplandecente luz divina, Cristo
veio na plenitude dos tempos. Como diz Paulo, o apóstolo
divino : « mas quando veio a plenitude do tempo, D eus
enviou, desde o Céu, o seu próprio Filho, nascido de mu­
lher, nascido sob a Lei, para resgatar os que estavam sub­
metidos à sanção da Lei» (Gl 4,4) .
E Deus compraz-se nisto: que alcancem um elevado grau
de santidade todos aqueles que verdadeiramente creem.

138. Como já o dissemos, essa luz resplandecente do Espí­


rito não é somente uma revelação dos pensamentos ou uma
mera iluminação concedida pela graça. É isso, e é extre­
mamente importante que seja isso, mas é mais do que isso: é
um brilho seguro e contínuo da luz hipostática nas almas.
Ora, acerca disso se exprime sem tibiezas o apóstolo
Paulo: «porque aquele que disse: a luz brilhará do seio das
SÃO MACÁRIO 569

trevas, brilha nos nossos corações para os iluminar com o


conhecimento da glória de Cristo» (2Cor 4,6) . O salmista,
esse, exprime-se deste modo: «Ilumina os meus olhos para
que eu não adormeça com o sono da morte» (Sl 13,4) . Mag­
níficas palavras essas do salmista: ele pede a D eus que a
alma não fique entenebrecida com o véu mortal da malí­
cia, ao dissolver-se a carne. E de novo o salmista: « abre
ainda os meus olhos e contemplarei as maravilhas da tua
Lei» (Sl 119 ,1 8 ) . E ainda: «envia a tua luz e a tua verdade.
Elas guiar-me-ão e conduzir-me-ão à montanha santa e às
tuas moradas» (Sl 43 ,3). E ainda: «a luz da tua face impri­
miu-se em nós, Senhor» (Sl 4,7) .
Eis aí uma brevíssima antologia de divinas palavras
(muitas outras semelhantes poderíamos evocar) que se
inscrevem num horizonte de fundo de que a tónica domi­
nante é a que temos estado a sublinhar.

1 39. A luz que brilhou no caminho diante do bem-aven­


turado Paulo (cf. At 9,3) , bem como a luz pela qual ele foi
arrebatado ao terceiro céu e ouviu mistérios inefáveis (cf.
2Cor 12,14) , são uma e a mesma luz: aquela que refulge com
poder na alma do crente, a luz do Espírito Santo, que deve
ser distinguida de uma outra, a da iluminação dos pensa­
mentos e do conhecimento. Os olhos da carne, incapazes
como são de suportar a superabundância de um tal res­
plendor, ficaram-lhe cegos (cf. At 9,8) .
Essa é a luz mediante a qual todo o conhecimento é re­
velado. E, como tal, é ela em si mesma revelação divina.
Por conseguinte, à alma que, de um modo íntegro, vive a
sua dignidade, Deus dá-se verdadeiramente a conhecer.

140.A alma que, pelo seu próprio esforço e pela fé, se


torna digna, nesta presente vida, de ser revestida de Cristo,
5 70 PEQUENA FILOCALIA

começa j á a ser pessoalmente iniciada, aqui e agora, em


todos os mistérios do Céu. Trata-se, com efeito, de uma
alma que, vivendo a plenitude da graça, se une desse modo
à luz celeste própria da imagem incorruptível.
E além disso, no grande dia final da ressurreição, nesse
tempo do fim em que Deus fará novas todas as coisas, o
seu corpo será glorificado. E que corpo será esse? Será um
corpo: conforme à imagem celeste da glória; arrebatado
pelo Espírito às alturas dos Céus; feito digno de ser con­
forme ao corpo da glória de Cristo ; coparticipante com
Cristo no Reino que durará pelos séculos dos séculos sem
fim (cf. 1Ts 4,17; Fl 3 , 21) .

141 . Já
o temos dito não poucas vezes: o caminho da vida
é um caminho exigente que exige de um homem fé, esfor­
ço, comunhão com a glória celeste do Espírito Santo, boas
obras, integridade no agir.
Pois bem: o modo como um tal homem se empenha em
tudo isso é de uma importância fundamental naquele dia
do fim (o da ressurreição) em que o seu corpo será j ulgado
digno de ser glorificado. Porque o que agora se guarda no
interior, como um tesouro, manifestar-se-á então no exte­
rior. Passa-se com isto o que se passa com o fruto das ár­
vores: recolhido no interior durante o inverno, sai para o
exterior na primavera.
Entre os santos, pois, a imagem do Espírito - essa ima­
gem que reflete a imagem de Deus, e que desde agora está
como que impressa no interior - fará com que o corpo, em
toda a sua dimensão corporal exterior, se torne um corpo
celeste e semelhante a Deus. Pelo contrário, entre os im­
puros e pecadores, o véu (que não é outro senão o da opa­
cidade tecida pelo espírito mundano) cobre-lhes a alma e
desfigura-lhes a mente com a torpeza das paixões, e isso de
SÃO MACÁRIO 5 71

tal modo e em tais proporções que o corpo, ele também, se


revelará exteriormente tenebroso e despudorado.

142. Quando Deus, que é sempre amor, depois da trans­


gressão original impediu Adão do acesso à imortalidade,
este começou por sentir logo a morte na alma: os seus
sentidos imortais, permeados pela inteligência, extingui­
ram-se nele ao ser privado do gozo celeste e espiritual, fi­
cando como mortos. Mais tarde, passados novecentos e
trinta anos, sobreveio-lhe a morte do corpo.
Pois bem: nos nossos dias, nesta era marcada pela vinda
de Cristo, Deus operou numa similaridade de oposição à
era adâmica: depois de ter reconciliado a humanidade
consigo mesmo, mediante a morte do S alvador na cruz,
Deus restabelece a alma que verdadeiramente crê. E resta­
belece-a estando ela ainda na carne, pois é estando ela
ainda na carne que a leva à fruição das luzes e dos misté­
rios do Céu.
Assim age a graça divina, outorgando-nos uma nova
clarividência, proporcionando-nos uma nova visão das
coisas, dando força aos nossos sentidos dotados de racio­
nalidade. E posteriormente, no fim dos tempos, serão os
nossos corpos que serão também revestidos de glória
imortal, isto é, tornados incorruptíveis.

143. Entre aqueles que se afastaram das coisas munda­


nas e levam uma vida nobre inspirada no amor da virtude,
há por vezes quem viva ainda sob o véu das paixões, véu a
que todos estamos ligados pela transgressão do primeiro
homem. Estou a referir-me à inclinação da carne, que é
designada pelo Apóstolo como morte, e à qual ele se refere
com as palavras: «porque os que são segundo a carne aspi­
ram às coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito,
572 PEQUENA FILOCALIA

às coisas do Espírito; porque a aspiração da carne é morte,


mas a aspiração do Espírito, vida e paz» (Rm 8,5-6) .
De homens desses podemos dizer que são semelhantes
aos que caminham de noite tendo por cima a luz das estre­
las, que são os santos mandamentos de Deus. Mas como
ainda não se libertaram inteiramente do domínio das
trevas, não lhes é possível discernir corretamente todas as
coisas. Por conseguinte, não lhes sendo alheia uma vida
virtuosa, é-lhes exigido que se entreguem empenhada­
mente à oração feita com muita fé, isto é, na comunhão
com Deus que é sempre libertadora. Que implorem com
toda a ousadia isto: a libertação dos seus corações, para
que Cristo, Sol da Justiça, brilhe neles, a fim de poderem
ver as coisas com novos olhos, isto é, com o discernimento
que se impõe. E o ganho que daí lhes advirá será imenso!
Que se tornem, portanto, capazes de ver não só as investi­
das das feras demoníacas, que atacam dos modos mais
variados, mas também as belezas do mundo incorruptível,
cujo aspeto inaudito desperta o sentimento do que é inefá­
vel. E se assim for, ao saborearem o indizível (indizível
marcado pelo que é simultaneamente tremendo e fasci­
nante) experimentarão um gozo cuj as dimensões são
indescritíveis.
Tudo isso se lhes torna visível e manifesto, como é
próprio daqueles que atingiram o cume e têm o coração
iluminado graças à energia que emana de uma mente
esclarecida. Com efeito, o alimento sólido, no dizer do
bem-aventurado Paulo, é para os perfeitos que, pela força
do hábito, exercitaram os sentidos no discernimento do
bem e do mal (cf. Heb 5 ,14) . O divino Pedro, esse, exorta com
as palavras: «Vós também tendes a palavra profética, à qual
fazeis bem em prestar atenção, como a uma lâmpada que
brilha num lugar obscuro, até que o dia comece a desper-
SÃO MACÁRIO 5 73

tar e a estrela da manhã se levante nos vossos corações»


(2Pe 1 , 1 9) .
Ora, a maior parte das pessoas é semelhante a homens
que caminham de noite, inteiramente privados de luz e
sem usufruírem da menor iluminação, isto é, da Palavra
divina, pronta a brilhar nas suas almas. Tais homens não
estão longe de se parecer com cegos, apanhados como
estão na trama dos interesses materiais e nos liames de
uma vida medíocre. Não são possuídos pelo temor de
D eus (esse temor que é o princípio da sabedoria) e não
perseguem nenhuma das boas obras.
Pois bem: nos antípodas desses estão aqueles que, vi­
vendo entre os homens do mundo (como já se disse, pois
a eles já nos referimos) se deixam iluminar pela luz dos
santos mandamentos, como se fosse pela luz das estrelas.
Vivem atentos à fé, uma fé salutarmente vivida no temor
de Deus, que é sempre princípio de sabedoria. Ora, ho­
mens assim, capazes de aliar a uma vida honestamente
vivida o sentido da fé, não caem definitivamente nas trevas.
E podem, portanto, viver na esperança da salvação.

1 44. Os homens adquirem riqueza no mundo através de


diferentes meios e mediante práticas diversas. Um é rico
porque desempenha o cargo de governador. Um outro
porque é comerciante. Um outro porque trabalha com as
suas mãos no cultivo da terra. Um outro ainda, através de
um meio diferente. Ora, peço-te encarecidamente que in­
teriorizes isto: as coisas passam-se do mesmo modo quan­
do se trata dos bens espirituais. Uns adquirem-nos graças
aos diversos carismas que possuem, tal como o mostram
as palavras do bem-aventurado apóstolo Paulo: «temos ca­
rismas diferentes, segundo a graça de D eus que nos foi
concedida» (Rm 1 2 , 6) . Outros acolhem neles a riqueza do
5 74 PEQUENA FILOCALIA

Céu através de diferentes asceses, diferentes ações j ustas,


diferentes virtudes praticadas unicamente pelo amor de
Deus. Por isso é-lhes interdito julgar o próximo, ou des­
prezá-lo, ou condená-lo. São igualmente reconhecíveis
aqueles que procuram o ouro na terra, isto é, aqueles que
avançam na vida com longanimidade e perseverança, e
enriquecem, experimentando e sentindo uma viva alegria,
que não é outra senão a que emana da esperança que os
habita. São igualmente reconhecíveis aqueles que, quais
mercenários estúpidos e grotescos, devoram num momen­
to tudo o que recebem, e não fazem crescer com paciência
e empenho o que têm entre mãos. A esses vemo-los conti­
nuamente ir nus e indigentes. Mesmo quando estão ansio­
sos e prontos para receber o dom da graça, não deixam de
ser negligentes e desleixados, precisamente no momento
em que se lhes impunha decidir e agir. São versáteis e fati­
gam-se depressa ao meter mãos à obra, deixando-se pos­
suir pelo desgosto e caindo num lamentável entorpeci­
mento, quando era esperado deles que se entregassem ao
trabalho, motivo pelo qual lhes é retirada a graça que
tinham recebido.
Obviamente, uma vontade desleixada, preguiçosa, fraca,
negligente, em desacordo com a graça divina, desprovida
de obras boas, reprovada por Deus, desacreditada - uma
vontade assim dá-se já a conhecer no mundo presente.
Mas será posta a nu e descoberta no mundo futuro.

Quando o homem das origens transgrediu o man­


1 45.
damento de Deus, e com essa transgressão decaiu da vida
que levava no Paraíso, ficou de seguida como um prisio­
neiro de duas cadeias. A primeira delas é a das coisas pró­
prias desta vida, nomeadamente a dos prazeres da carne:
riqueza, honrarias, amizade, mulher, filhos, parentela,
SÃO MACÁRIO 575

pátria, bens - numa palavra, o mundo das coisas visíveis,


das quais a Palavra de Deus nos ordena que nos desligue­
mos de bom grado, isto é, voluntariamente. A segunda é
invisível e tem a ver com o mundo da nossa interioridade:
com efeito, a alma está como que maniatada, presa por
ataduras tenebrosas de que os tristes artesãos são os espí­
ritos do mal; por esse motivo já não lhe é mais possível
nem amar Deus, nem crer, nem entregar-se à oração, tudo
coisas que estão no âmbito do seu desej o.
Há, com efeito, forças demoníacas que operam tanto
nas coisas visíveis como nas invisíveis, e se opõem a nós e
nos perseguem desde a transgressão do primeiro homem.
Podemos inferir das considerações feitas que, quando
alguém, dotado de ouvidos dóceis, escuta a Palavra de
Deus e se desliga das coisas terrenas, concomitantemente
se desliga também de todos os prazeres da carne. Entra
assim numa forma de existência liberta do cativeiro da li­
cenciosidade e marcada, profundamente marcada, pela
consagração a Deus. Por conseguinte, o quotidiano de
uma vida dessas desenrola-se de um modo extremamente
significativo: o júbilo que o marca fortemente é fortemente
vivido, sem perder de vista que lá, no oculto do coração,
pode configurar-se uma possível ameaça.
De que falo eu? Falo de um combate sempre a travar, e
que não é outro senão o dos pensamentos. Com efeito,
numa vida de obediência a Deus (vivida por alguém que
pode ser um homem de fé) está latente, oculta, ameaça­
dora, uma força contrária que exige sempre e de novo ser
combatida, com o socorro de Deus, o único socorro que
nos liberta verdadeiramente das cadeias tecidas e entrete­
cidas pelos pensamentos perversos. É Ele, o Senhor, que
desfaz esse cativeiro ao espancar as trevas dos espíritos
malignos cuj a torpe vocação se manifesta no levar ao
576 PEQUENA FILOCALIA

rubro as paixões secretas da alma. A nossa vitória, e a der­


rota do malino, é assim obtida pela graça e pelo poder de
Cristo, pois sem esse socorro, e entregues a nós mesmos, é
impossível vencermos a árdua batalha que nos é movida
pelos pensamentos, e trilharmos o caminho da libertação.
De outro modo, não teríamos senão uma frágil meia vitó­
ria na nossa oposição ao mal: a que se traduziria num
mero não comprazimento com esse mal.

146. Se alguém cai refém das coisas deste mundo, ma­


niatado por cadeias as mais variadas, e seduzido por pai­
xões as mais malignas, ser-lhe-á muito difícil reconhecer a
existência de um outro combate e de uma outra guerra
travada no oculto. Ora, é bom e salutar não perdermos de
vista que ao nos desprendermos do mundo das coisas ex­
teriores, afastando-nos assim dos prazeres da carne e apro­
ximando-nos de Deus, não estamos, só com isso, a pôr fim
a um incontornável combate: o combate interior das pai­
xões, essa guerra secreta que lavra nos refolhas da alma.
Se não estivermos atentos a isso, incapazes de reconhe­
cer esse conflito, a nossa alma claudicará no seu amor e na
sua consagração a Deus. Impõe-se-nos, por conseguinte,
uma vigilância a toda a prova, que nos permita o necessá­
rio reconhecimento não só dessas secretas paixões do mal,
como também das cadeias interiores por elas tecidas. Pode,
com efeito, acontecer connosco o seguinte: não obstante
estarmos feridos e seduzidos passionalmente, pensarmos
que estamos de boa saúde.
Trata-se de um estado passional que é reconhecido por
aqueles que dizem não a todo o tipo de vanglória e a toda
a espécie de cobiça, e se assumem como combatentes de
um combate travado graças às armas espirituais concedi­
das pelo Céu: a couraça da justiça, o capacete da salvação,
SÃO MACÁRIO 577

o escudo da fé, o gládio do Espírito (cf. Ef 6,14-17) . Um com­


bate de que o eixo conducente à vitória é a oração: o com­
batente é, inescapavelmente, um orante. Se deixar de sê-lo
soçobrará.

1 47.O adversário, na sua malignidade, esmera-se em


nos privar da nossa esperança em Cristo, da nossa consa­
gração, do nosso amor por Jesus. E p ara atingir os seus
intentos inventa ardilosamente as armadilhas mais sofisti­
cadas, quer introduzindo na alma (por intermédio dos es­
píritos do mal) provações as mais agrestes, quer exumando
as lembranças recalcadas dos seus pecados passados, com
o fito de, desse modo, suscitar desregrados e depressivos
pensamentos de mácula. Com efeito, a sua intenção é fazê­
-la cair no desmazelo, quer instilando nela pensamentos
de desespero, quer persuadindo-a da impossibilidade de
encontrar a salvação.
Ora, quando é a alma que, por ela mesma, gera estes
pensamentos (e não um espírito estranho que malévola e
ocultamente os semeia) temo-la feita adversária de si
mesma: ou impele ao desespero, ou suscita sofrimentos
corporais, ou arremete com os vitupérios e as provações
provenientes dos homens. Mas quanto mais o maligno,
sob as suas diversas formas, lança contra nós tais flechas
inflamadas, tanto mais se nos impõe uma forte ligação à
esperança que temos em D eus. E , concomitantemente,
uma vigilância aturada, indispensável para, no meio de cir­
cunstâncias adversas, termos a consciência de que estamos
a cumprir a sua vontade. Vigilância essa animada pela con­
vicção de que às almas apaixonadas por Ele se lhes impõe
examinarem-se a si mesmas acerca da qualidade do amor
com que o amam.
578 PEQUENA FILOCALIA

1 48.Comparados com a eternidade do mundo incor­


ruptível, mil anos do mundo presente são como um grão
de areia que extraímos do mar. Ora reflete, peço-te, no
seguinte: imagina-te a ti mesmo como um homem que vai
tornar-se o único rei da terra inteira, e que passa assim a
ser o único possuidor de todos os tesouros que nela se
contêm; supõe ainda que o começo da existência dos ho­
mens é para esse rei o começo do seu reino, um reino limi­
tado pela transitoriedade e impermanência de todas as
coisas visíveis do mundo inteiro. Pois bem: se fosse dada a
esse rei, isto é, a ti, a possibilidade de escolher, escolherias
o reino dessa realeza ou escolherias antes o Reino verda­
deiro e seguro, que nada tem de provisório, que não está
marcado pela impermanência, que nem um grão de areia
tem de corruptível? Não tenho dúvida nenhuma de que
escolherias (sendo límpido o teu olhar, honesto o teu jul­
gamento e permeada de sageza a maneira como te relacio­
nas com as coisas essenciais que dizem respeito à tua vida)
o Reino verdadeiro.
E a este respeito lá temos a divina Escritura a sublinhar
o verdadeiro valor da vida: «Que aproveita ao homem
ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?» essa alma
que, vimo-lo já, não pode ser trocada por outra coisa qual­
quer (Mt 1 6 ,26) . Com efeito, incontestavelmente, essa alma,
na sua unicidade, é por si mesma muito mais preciosa que
o mundo inteiro, com todos os seus reinos. E é preciosa de
uma maneira única, pois a nenhum outro dos seres cria­
dos Deus concedeu a união e a comunhão com a sua pró­
pria natureza: nem ao céu, nem ao sol, nem à lua, nem às
estrelas, nem ao mar, nem à terra, nem a nenhuma outra
criatura do mundo visível. Foi na verdade ao homem, e
unicamente ao homem, que Deus concedeu essa união e
essa comunhão, vividas na força outorgada pelo Espírito.
SÃO MACÁRIO 579

Assim, pois, a mente que decididamente opta p elo


Reino verdadeiro e eterno, e rej eita as coisas do mundo,
por maiores e mais importantes que elas sej am (riqueza,
território, poder) é uma mente bem-aventurada, pois é
capaz de discernir sabiamente quando está em j ogo uma
escolha: a escolha do que é essencial. Pelo contrário, em
oposição a uma tal sabedoria temos uma loucura: a lou­
cura daqueles que fecham os olhos a esse Reino, na medi­
da em que, numa atitude de fuga, o reduzem ao nível do
mundo medíocre da invej a , do lucro, da gloríola, e de
outras coisas quej andas.
Aquilo que um homem ama deste mundo e a que se
sente ligado é, indubitavelmente, aquilo em que ele se pro­
jeta e está disposto a escolher em detrimento do Reino dos
Céus. E o pior no meio de tudo isso é a confusão que nele
tem instalada: está persuadido de que ao escolher o que
escolhe está a escolher Deus. Como diz a Escritura: «cada
um é escravo daquele por quem se deixa vencer» (2Pe 2 , 1 9) .
Temos, assim, um rigoroso imperativo p ela frente : ele­
varmo-nos verdadeiramente, e não apenas na aparência,
para D eus; ligarmo-nos a Ele; tomarmos em cada dia a
nossa cruz; assumirmos com j úbilo a observância dos seus
mandamentos.

149.É sabido de todos que as coisas perecíveis evocadas


antes (glória, reino, poder, et cetera) só à custa de muito
esforço e suor são alcançadas por aqueles que por elas se
sentem seduzidos e que, por isso, as cobiçam. Ora bem:
parecer-te-ia j usto que as coisas imperecíveis também já
evocadas (participação no Reino de Cristo, vivência das
suas inefáveis bênçãos, et cetera) exigissem um tão baixo
preço que todo aquele que almej a alcançá-las o conse­
guisse sem esforço e sem fadiga?
580 PEQUENA FILOCALIA

150. Àqueles que perguntam «mas então qual é o pro­


pósito da vinda de Cristo?», a nossa resposta é: restaurar a
nossa natureza na sua natureza, realizando assim a recon­
ciliação do mundo com Ele. Com efeito, Cristo restituiu à
natureza humana a dignidade original de Adão, o primeiro
homem.
Além disso, ao libertá-la da prisão das trevas, agraciou­
-a - ó graça verdadeiramente divina e infinitamente grande!
- com a herança celeste do Espírito Santo. Mostrou assim
o caminho que conduz à vida e abriu-nos a porta do
Reino. Desde então, o convite é-nos feito para nele entrar­
mos. Respondamos, pois, com determinação e júbilo a um
tal convite! Ao batermos à porta podemos estar confiantes
de que ela se abre. É uma ousadia que se fundamenta na
promessa do S enhor: «pedi e ser-vos-á dado; procurai e
encontrareis; batei e abrir-se-vos-á» (Mt 7,7) . Essa é, efeti­
vamente, a porta através da qual pode passar todo aquele
que quer decididamente erradicar os maus pensamentos,
encontrar a liberdade da alma, viver a inefável comunhão
com Cristo outorgada pelo Espírito Santo. É que o Reino
de que se nos fala é isso mesmo: o inefável amor que Ele
tem para connosco, criados por Ele à sua imagem.
SÃO SIMEÃO
O Novo Teólogo
SÃO SI M EÃO , o Novo Teólogo (949-1022) , nascido na Ásia Me­
nor, foi enviado para Constantinopla aos onze anos para ali fazer
os seus estudos e ficar ao serviço da corte imperial. Por esse mo­
tivo e até aos 27 anos, foi um «homem do mundo» . Mas, nessa
mesma cidade, encontrou um monge, Simeão, o Piedoso, que se
tornou seu pai espiritual, e que o influenciará profundamente,
tendo, então, entrado no Mosteiro de Studios, onde residia esse
mesmo monge. Mais tarde, foi para o Mosteiro de São Mamas, do
qual foi superior, de 980 até 1009. Finalmente , viveu no Mosteiro
de Santa Marinha, junto da margem leste do Bósforo, onde per­
maneceu até à sua morte. Pregou o amor louco de Deus e as suas
consequências evangélicas. A Filoca/ia na sua edição integral reú­
ne dele 153 capítulos, fazendo alusão ao número evangélico dos
153 peixes. Hoje, alguns pesquisadores contemporâneos pensam
que os capítulos 121 a 152 provêm de Simeão, o Piedoso, seu anti­
go mestre espiritual. Segundo Simeão, o Novo Teólogo, só um
amor louco pode ao mesmo tempo separar e unir, na vida eterna,
o século presente e o século vindouro.
Discurso sobre a fé

Dirigido àqueles que dizem ser impossível,


a quem vive no mundo e assume
as provações daí decorrentes,
atingir a virtude na sua perfeição.
Trata-se de um discurso de grande utilidade
Queridos irmãos e pais, é bom e útil à alma não só dar­
mos a conhecer a todos a grande (mais que grande, infi­
nita) misericórdia de D eus, mas também falarmos aos
nossos confrades do oceano de compaixão e da incomen­
surável generosidade com que Ele nos tem cumulado.
No que me diz pessoalmente respeito, começo já por
confessar o que, aliás, é provavelmente do vosso conheci­
mento: não sou homem que possa evocar, no meu ativo,
jej uns numerosos, ou vigílias, ou noites dormidas sobre o
solo, ou severas mortificações infligidas ao meu corpo.
Simplesmente - e evoco p alavras do divino D avid - re­
conheci a minha indignidade, humilhei-me e o Senhor,
bom e misericordioso, salvou-me. Exprimindo-me sucin­
tamente: nada mais fiz do que crer, e o Senhor aceitou-me.
Ora, ao trilharmos o caminho da humildade defron­
tamo-nos com numerosos e variados obstáculos, mas
nenhum deles, não obstante os desafios que lhes são ine­
rentes, nos impede de ter fé. Com efeito, se a desej armos
5 84 PEQUENA FILOCALIA

com todo o nosso coração, de imediato ela tornar-se-á


ativa em nós, pois não só é um dom de Deus como tam­
bém é - e é-o de um modo preeminente - constitutiva da
nossa natureza, apesar de estar também suj eita ao poder
do livre-arbítrio de que cada indivíduo está dotado.
Compreende-se, pois, que mesmo entre os pagãos haja
variados povos que acreditam uns nos outros, mantendo
assim uma confiança mútua. Para corroborar isto que
acabo de dizer, e dar mais genuinidade às minhas palavras,
vou socorrer-me de uma história que me foi contada por
uma pessoa inteiramente digna de confiança.
Um homem chamado Jorge, na flor da idade - teria
uma vintena de anos - vivia em Constantinopla nestes
tempos que são os nossos. Possuidor de uma boa aparên­
cia, era de tal modo esmerado no vestir, nas maneiras, no
porte, que alguns (para quem j ulgar os outros era uma
prática corriqueira, exercida com dureza e baseada estrita­
mente na aparência exterior) começaram a tecer suspei­
ções maliciosas acerca dele, julgando-o de um modo in­
considerado e impiedoso.
Foi assim que, no meio de um tal clima opressivo, este
jovem de que falamos travou conhecimento com um certo
monge, um santo e sábio ancião, que vivia num dos mos­
teiros da cidade. Estabeleceu-se entre ambos uma fecunda
relação, dado o cordial acolhimento que o monge prodiga­
lizou ao j ovem. E este, abrindo a sua alma, confessou o
quanto o habitava o desej o de salvar a alma, de deixar o
mundo, de seguir, ele também, a via monástica. Ao que o
venerável e douto ancião retorquiu louvando-o por nutrir
um tal desejo e fazendo-lhe as advertências que, por serem
necessárias, j ulgou por bem fazer-lhe. Mas não se ficou
por aí: colocou nas mãos do jovem um livro da autoria de
Marcos, o Asceta, (Tratados Espirituais e Teológicos) , fazendo-
SÃO SIMEÃO 585

-lhe sentir o quanto era importante e necessário que o


lesse. E foi com um sentimento de muito amor, e numa
atitude de acrisolada piedade, que o jovem aceitou o livro,
como se se tratasse de algo enviado pelo próprio D eus
para sua edificação espiritual.
Uma vez regressado a casa mergulhou na sua leitura,
com a mais viva atenção, de uma ponta à outra. Entusias­
mado, piedosamente o releu, por três ou quatro vezes, daí
retirando, tal como esperava, um grande conforto e uma
alta edificação. Foram, contudo, particularmente três os
capítulos que mais profundamente o impressionaram, por
terem ido diretos ao seu coração, levando-o a tomar a
decisão de os pôr em prática, numa rigorosa observância
do seu conteúdo. Ora, no primeiro desses três capítulos
leu as palavras: «Se desej as a cura da tua alma dá ouvidos
à tua consciência, de tal modo que em nada ela te censure.
Obedece-lhe fazendo tudo o que ela te ordenar, e desse
modo colherás benefícios. » No segundo capítulo, as pala­
vras que mais o marcaram foram: «Aquele que procura os
carismas do Espírito Santo, antes de ter diligentemente
observado os mandamentos, assemelha-se a uma pessoa
que se vendeu à escravatura, e que logo no ato em que foi
comprado pede para ser libertado, enquanto ainda segura
o dinheiro da transação. » No terceiro capítulo, as palavras
foram: «Aquele que se limita a orar com a boca, de um
modo inconsciente, sem ter adquirido o necessário conhe­
cimento espiritual, isto é, sem saber orar com a mente,
assemelha-se ao cego do Evangelho que bradava "Filho de
David, tem misericórdia de mim ! " Diferente, muito dife­
rente, é o homem que adquire o conhecimento espiritual
que lhe permite orar com a mente e ter abertos os olhos
da alma. Esse é o homem que é semelhante ao cego depois
de curado. Com efeito, a diferença é radical entre o cego
586 PEQUENA FILOCALIA

incapaz de ver e o cego a quem os olhos se lhe abrem pelo


poder de Jesus. O cego é o mesmo, a diferença está toda
em passar da não visão à visão. É só depois da cura da sua
cegueira que já não chama a Jesus «filho de David», mas
sim, em tom de confissão, «Filho de Deus» (cf. Jo 9,38) . E é
desse modo, quando os olhos se lhe abrem, que pensa cor­
retamente. E que corretamente o adora como se lhe im­
põe. Por conseguinte, semelhante ao cego curado é o ho­
mem que adquire o conhecimento espiritual sem o qual
não se pode orar com a mente.
A leitu ra desses três passos do livro calou fundo no
nosso j ovem. Atingido por um temor reverencial, acredi­
tou profundamente que, se examinasse a sua consciência,
desse exame retiraria benefícios, e se observasse os man­
damentos, dessa observância hauriria a energia do Espírito
Santo. E desse modo, mediante a graça divina, tornar-se-ia
digno de usufruir os bens celestes. E, agraciado com uma
tal dignidade, poderia abrir os olhos da alma e ver o Se­
nhor com a sua mente. E foi assim que, inteiramente pos­
suído pelo amor e desejo do Senhor, e cheio de esperança,
se pôs à procura da indizível beleza divina, estivesse ela
onde estivesse, por mais oculta que ela pudesse estar. Con­
tudo - segundo me asseverou mais tarde, com juramento -
nada mais fazia todas as noites, antes de se deitar, senão
orar e prostrar-se, de acordo com a regra breve que lhe
tinha sido transmitida pelo santo ancião.
Passado algum tempo, uma noite, ao observar a regra
do ancião e sempre atento à voz da consciência, esta orde­
nou-lhe que prosseguisse na oração e nas prostrações e
repetisse tanto tempo quanto pudesse: Senhor Jesus Cristo
tem misericórdia de mim! Pelo que, com todo o seu coração, e
sem hesitar, s e pôs a fazer o que a sua consciência lhe
pedia, persuadido como estava de ser o próprio D eus
SÃO SIMEÃO 587

quem lhe pedia para assim agir. A partir de então nunca se


deitava sem ter primeiro feito o que lhe ditava a consciên­
cia. E como a escutava sempre, e ela, repetidamente, lhe
pedia que continuasse, e que até intensificasse os seus
gestos, o nosso jovem foi alongando mais e mais a oração
da noite.
Como durante o dia trabalhava na gestão de uma casa
patrícia, o que o obrigava quotidianamente a deslocar-se
até lá para realizar as numerosas e diversas tarefas de que
era responsável, escasso era o tempo de que dispunha para
orar. Não obstante tudo isso, todas as noites, sem falhar
uma, antes de se deitar, orava como já se disse. E o seu
coração enchia-se de calor e de profunda compunção, e as
lágrimas escorriam-lhe pelas faces. Multiplicava as pros­
trações e, com suspiros e lágrimas, orava à Mãe de Deus.
Parecendo-lhe estar o Senhor, corporalmente, diante dele,
prostrava-se a seus pés, rogava misericórdia e, tal como o
cego de que fala o santo Evangelho, implorava luz para os
olhos da alma. Como consagrasse cada vez mais tempo à
oração, ei-lo nela concentrado, absorto de tudo à sua volta,
até à meia-noite, sem nunca afrouxar nem cair na distra­
ção, mantendo todo o corpo sob controlo, sem desviar os
olhos para aqui e para acolá, sem sequer os levantar ao
alto. Mantinha-se assim imóvel, cheio de temor e tremor.
Uma noite, ao repetir sem cessar (mais com a mente do
que com a boca) as palavras Ó Deus, tem misericórdia de mim,
pecador! eis que um esplendor divino brilhou subitamente
sobre ele, e encheu de luz todo o quarto. No meio do ine­
fável, tremendo e fascinante do acontecimento, o nosso
jovem, em êxtase, perdeu a consciência de si mesmo, sem
saber se estava ou não numa casa. Com efeito, nada mais
via em torno de si a não ser luz, e não sabia se pisava a
terra ou planava. A sua mente ficou alheia ao corpo e aos
588 PEQUENA FILOCALIA

cuidados a prestar ao corpo, tal como deixou de estar cien­


te do mundo à sua volta. Sentia-se um com a luz divina de
um modo tão profundo que lhe parecia ter-se tornado ele
próprio luz. Lágrimas, muitas lágrimas, escorriam-lhe pela
face e uma indizível alegria o invadiu da cabeça aos pés. A
sua mente elevou-se até aos Céus e lá, nas alturas celes­
tiais, contemplou uma outra luz, mais radiosa ainda e,
j unto dessa luz, apareceu-lhe o santo e venerável ancião
que lhe tinha dado - dissemo-lo já - o livro do Abade
Marcos e a regra.
Quando ouvi o j ovem, pensei de imediato em duas
coisas : não só no quanto a intercessão desse santo ho­
mem, indubitavelmente, o tinha aj udado, mas também no
modo surpreendente como Deus, na sua providência, lhe
mostrou a celestial qualidade das virtudes vividas por esse
venerável santo.
Quando essa sua tão inefável contemplação terminou,
o nosso jovem - ele próprio me confessou isto - caiu em si
mesmo, ainda mal refeito da alegria e do fascínio que, de
um modo único, tinham tomado conta dele. O seu cora­
ção estava ainda profundamente tocado, e chorou, dos
refolhos da sua alma, lágrimas permeadas de doçura. E,
finalmente, acabou por cair sobre o leito, já o galo cantava.
Pouco depois, os sinos das igrejas tocaram as matinas e,
como hab itualmente, ele levantou-se para salmodiar. A
noite inteira decorreu, pois, sem que ele tivesse dormido
ou, sequer, pensado no sono.
E aí temos, com esta resenha, a evocação do que acon­
teceu ao jovem. E note-se: foi ele mesmo quem sublinhou,
ao falar-me do acontecimento, que ele nada mais fizera a
não ser o que já ouvistes. Simplesmente - e este é o motivo
pelo qual lhe foi dado viver uma tal contemplação - a sua
fé era uma fé resoluta e a sua esperança uma esperança
SÃO SIMEÃO 589

inabalável. E que não se diga que ao ter agido como agiu o


fez com o fito de provocar uma experiência: uma tal inten­
ção, segundo as suas palavras marcadas pela sinceridade,
jamais lhe tinha passado pela cabeça. Animava-o exclusi­
vamente a firmeza de uma fé que, vivida entranhadamente,
o levava à concretização de várias coisas: rej eitar todo o
pensamento carnal e mundano; aceitar os ditames da
consciência; ficar indiferente perante todas as coisas mate­
riais; reagir sobriamente quando tinha diante de si comi­
das e bebidas; j ej uar não poucas vezes.
Ouvistes, amados irmãos, quão grandes coisas a fé em
Deus alcança quando confirmada pelas obras. E, sem dú­
vida, estais conscientes destas duas coisas : da insensatez
que há quando alguém olha despicientemente para os
tempos da juventude, vendo nos jovens a incapacidade de
assumir o que é sério; da necessidade da sageza nos tem­
pos da velhice, uma sageza vivida no temor de Deus (esse
temor que é o princípio da sabedoria) e isso de tal modo
que esses tempos não sejam os tempos da inutilidade. E,
além de tudo isso, também não vos é alheio o pensamento
de que nem o mundo nem a vida na cidade nos impedem
de pôr em prática os mandamentos de Deus. Com efeito,
nem o mundo nem a cidade nos incapacitam para tal
desde que sej amos diligentes, vigilantes, empenhados. E ,
por outro lado, também sabeis perfeitamente que nem a
via anacorética nem o deserto são garantias de realização
humana: de nenhum modo o são, e de nada nos servem,
se cairmos na preguiça e negligência.
E todos nós temos ouvido falar dos feitos do servo de
Deus David, ele que, no meio das suas ocupações régias,
mantinha a sua mente consagrada a D eus, motivo pelo
qual o admiramos e dizemos dele ser único, sem ninguém
que se lhe equivalha.
590 PEQUENA FILOCALIA

E, contudo, no j ovem de que falamos há alguma coisa


maior do que havia em David. É urna verdade incontes­
tável que David foi escolhido por Deus de um modo espe­
cial, ungido para ser p rofeta e rei, cheio da graça do
Espírito S anto. Podemos, contudo, perguntar que há de
verdadeiramente extraordinário ou de incontestavelmente
admirável, no facto de só ter tornado consciência de si na
seq uência de várias coisas, corno sej am: o sobressalto do
seu pecado perante D eus, a perda da graça do Espírito
Santo, o vazio da sua comunhão com Deus, a privação da
sua dignidade de profeta, o desejo de reaver o seu estatuto
de outrora que mantinha vivo na sua memória - sim, que
há de verdadeiramente extraordinário e admirável em tudo
isso? Mas que um jovem de vinte anos (cujo horizonte de
vida não era outro senão o das coisas mundanas e eféme­
ras, dado que a sua mente nunca o tinha levado a pensar
em coisas mais altas) tenha - mal ouviu as poucas palavras
do santo e venerável ancião, e mal leu os três trechos do
Abade Marcos - alcançado o que alcançou: urna fé viva e
segura; a determinação de trilhar a senda das ações con­
cretas; a obtenção de benefícios espirituais; a vivência de
urna esperança nova resultante de a sua mente se ter ele­
vado ao Céu; a experiência da intercessão da Mãe de Deus;
o sentimento da reconciliação com Deus vivida na ilumi­
nação do alto, outorgada pelo Espírito Santo; a experiência
do que há de fascinante e tremendo na luz celestial que
muitos desej am, mas que poucos descobrem - sim, que
um j ovem de vinte anos tenha vivido tudo isso, é urna
coisa verdadeiramente admirável e altamente digna de
louvor!
Assim, pois, de um modo surpreendente, revelador da
Providência divina, esse nosso j ovem (que durante a sua
vida não tinha praticado o jejum, nem observado as vigí-
SÃO S IMEÃO 591

lias, nem travado os combates da ascese, nem dormido


diretamente sobre o solo, nem envergado o cilício, nem
adotado o monaquismo, nem abandonado corporalmente
o mundo) tornou-se anj o terrestre e homem celeste, ho­
mem sensorial e homem incorpóreo, circunscrito e incir­
cunscrito, visível a todos mas unicamente visto por Deus,
o único que é omnisciente. E isso só com a observância de
algumas vigílias e com oração, muita oração.
Foi-lhe dado ver a dulcíssima luz do sol espiritual da
j ustiça. E é j usto que assim tenha sido. Com efeito, o amor
e o desejo de Deus tinham-no feito sair espiritualmente do
mundo e dotado da capacidade de menosprezar a carne e
todas as coisas vãs desta vida. Obviamente, um tal menos­
prezo era para ele libertador: por um lado libertava-se da
prisão de tudo aquilo marcado pela indignidade e pela in­
fâmia, por outro lado, abria-lhe o caminho para uma pro­
funda ligação a Deus. Aquilo que por ele foi experienciado
e sentido tornou-o inteiramente espiritual e inteiramente
luz. A sublime e j ubilosa contemplação - esse mistério fas­
cinante e tremendo - por ele vivida com todas as fibras do
seu ser genuíno, foi experienciada sem ter renunciado à
vida na cidade e sem ter deixado de lado as suas ocupações
na casa senhoril, cuj a gestão - era elevado o número de
servos - exigia dele muito tempo.
Mas já nos alongámos demais nas nossas considera­
ções, e não apenas no louvor prestado ao nosso j ovem:
com efeito, anima-nos além disso o desej o de vos levar a
imitá-lo. E permitam-nos que sublinhemos isso mesmo: o
nosso mais vivo desej o era que o pudésseis imitar (com
tudo aquilo que pode haver de fecundo numa imitação)
no seu amor, de molde a vos tornardes dignos de receber
de Deus uma graça semelhante à dele.
Ou será que quereis que vos fale ainda de coisas maio-
592 PEQUENA FILOCALIA

res? Mas então dizei-me: que coisa maior pode haver que
o temor de Deus (é ver como Gregório, o Teólogo, sublinha
enfaticamente este tema!) sendo que, no dizer da divina
Escritura, « O temor de Deus é o princípio da sabedoria»?
(Pr 1 ,7)
Efetivamente, sendo essa a nossa perspetiva, isto é, o
temor de D eus como fundamento da sabedoria, somos
levados a afirmar isto: lá, onde está o temor de Deus, está a
observância dos mandamentos; e onde está a observância
dos mandamentos está a purificação da carne (purificação
necessária por ser a carne uma nuvem que, qual véu, cobre
a alma e a impede de ver na sua pureza o esplendor divi­
no) ; e onde está a purificação da carne está o esplendor di­
vino; e onde está o esplendor divino está a realização da
vontade de Deus.
E, no fundo, bem vistas as coisas, é particularmente isso
que se visa: que a vontade de Deus seja feita aqui na terra
assim como ela o é no Céu. E ainda: onde quer que o es­
plendor divino se manifeste na sua indizível beleza, e a ilu­
minação outorgada pelo Espírito Santo se manifeste na
sua verdade, manifesta-se também a virtude na sua expres­
são máxima. E todo aquele que pretenda atingir um tão
elevado ponto como esse, outra alternativa não tem que
não seja começar por percorrer todo o caminho do sensí­
vel, do concreto, do experiencial, para só então entrar no
universo do conhecimento espiritual. Sem se percorrer
primeiro um tal caminho, essa entrada não passará de uma
ilusão.
Tais são, meus irmãos, as maravilhas de Deus. D esse
Deus que, na sua infinita sabedoria, desoculta os santos
que voluntariamente se ocultam a si mesmos. E desoculta­
-os para os dar a ver como exemplos a seguir, de molde a
haver muitos que os possam assim imitar e, desse modo,
SÃO SIMEÃO 593

se submetam nas suas vidas à necessária purificação que


os torna inexcusáveis. Com efeito, aqueles que vivem mer­
gulhados na desordem, vítimas de um lamentável des­
norte, podem viver um arrependimento que os introduza
num novo modo de vida, agradável aos olhos de Deus, e
lhes proporcione assim, mediante a fé, a salvação e, j unta­
mente com ela, grandes e inúmeros benefícios.
Enchei-vos, pois, com toda a determinação e com todo
o empenho, de piedade, de zelo, de solicitude, e abri as
vossas almas à energia do Espírito divino, confiando assim,
com todo o vosso coração, no Senhor, pois é Ele que tem
para todos nós as verdadeiras palavras de vida eterna.
Tende aversão às coisas mundanas, uma aversão forte que
vos leve a voltar-lhes as costas: é que elas, ao serem medío­
cres como são, transportam consigo o engano e a deceção.
Encaminhai-vos para Deus e ligai-vos a Ele, pois sem Ele
o mundo não passa de uma dececionante ilusão, de um
deserto vazio e atroz, onde os prazeres não são mais do
que o prelúdio de uma deceção mortal.
É por isso que ao pensar no Mestre divino que, de um
modo tão sublime, nos ama, sinto a necessidade de expri­
mir um lamento: o que decorre da constatação de que a
nossa resposta ao seu incomensurável amor é uma res­
posta indigna desse amor. Com efeito, lá onde Ele nos abre
os braços na sua divina generosidade e nos concede as
suas bênçãos, nós, pelo nosso lado, respondemos com a
nossa vida egoísta; lá onde Ele manifesta o seu inquebran­
tável amor, nós, pelo nosso lado, como animais privados de
razão, mostramo-nos incapazes de ser misericordiosos; lá
onde Ele nos mostra o seu despojamento, até ao ponto de
não ter onde reclinar a cabeça, nós sentimos um enorme
apego às coisas terrenas; lá onde Ele mostra a sua liberdade,
5 94 PEQUENA FILOCALIA

nós sentimos o quanto as nossas almas estão condicionadas


quando se trata de percorrer a senda do Evangelho.
Quão grande é, com efeito, a necessidade que todos
temos de nos conduzirmos na novidade do Evangelho, na
senda do Senhor, vivendo do alimento espiritual e da graça
do Espírito Santo !
Efetivamente, é para isto que nós, homens, fomos cria­
dos: para descobrir nas coisas terrenas, não obstante a sua
condição de efémeras, um motivo para glorificarmos o
D eus que no-las dá; para conhecer Aq uele que, na sua
bondade e benevolência, quer que nós vivamos plena­
mente; para desejá-lo e render-lhe graças em palavras e em
atos; para sermos assim j ulgados dignos de receber dele
ainda outras graças maiores na eternidade.
Nós, porém (ai de nós!), vivemos desatentos no meio de
todas essas coisas e menosprezamos os bens futuros, liga­
dos como estamos aos bens presentes, aos que já possuí­
mos e aos que, em abundância, desej amos adquirir, sem
termos em consideração Aquele que no-los deu, isto é,
sem lhe prestarmos as ações de graças devidas no que de­
veria ser o nosso culto racional.
Ora, ao vivermos assim, na nossa atroz ingratidão, esta­
mos a ter, sem disso estarmos conscientes, um comporta­
mento de tipo demoníaco, ou pior ainda do que isso.
Motivo pelo qual merecemos um castigo que em nada
deve ser inferior ao deles, demónios. É que, na verdade, as
bênçãos e as graças que nos têm sido outorgadas, desde
que nos tornámos cristãos, são incontáveis ! Para que
conste e para que a nossa memória seja estimulada: misté­
rios, carismas, fé, comunhão com o Deus único, dádiva de
Jesus que, ao fazer-se homem, assume viver por nós, sofrer
por nós, morrer por nós, tudo isso para nos libertar dos
embustes do maligno e dos labirintos do pecado.
SÃO SIMEÃO 5 95

Ora, tudo isso faz parte do nosso credo, sabemo-lo


bem, e tudo isso é por nós confessado em palavras, tam­
bém o sabemos - mas quantas vezes não é tudo isso nega­
do por nós com as más obras que praticamos? ! Não é o
nome de Cristo pregado hoje por toda a parte, nas cidades,
nas aldeias, nos mosteiros, nos desertos? Examina, porém
(se é que estás disposto a proceder a um tal exame) , quan­
tos são os cristãos que verdadeiramente se empenham na
observância dos seus santos mandamentos. Dificilmente
encontrarás um que, de um modo íntegro, seja cristão em
palavras e em obras. Pois não diz o Senhor no santo Evange­
lho: «aquele que crê em mim fará, ele também, as obras que
Eu faço; e fará até obras maiores do que estas»? Go 1 4, 1 2) . E,
contudo, quem entre nós terá a ousadia de dizer: «Faço as
obras de Cristo e creio nele com uma fé íntegra»?
Tendo, pois, em conta tudo isso, deveríamos estar per­
feitamente conscientes do grande risco que corremos: o
risco de, no dia do Julgamento final, sermos achados sem
fé, e sermos castigados ainda com mais dureza do que
aqueles que não conhecem Cristo e, por conseguinte, nele
não creem.
Com efeito, das duas uma: ou o nosso castigo como in­
crédulos é j ustamente merecido, ou então, se não o é,
Cristo fala com dolo. Ora, coisa impossível é as palavras de
Jesus não serem verdadeiras!
Longe está de mim, irmãos, ao vos escrever o que escre­
vo, a ideia de dissuadir os cristãos de seguir a via anacoré­
tica e o hesicasmo, privilegiando antes a vida no mundo!
Nada disso! O que verdadeiramente intento não é outra
coisa senão esta: dar a saber a todos os meus leitores que o
poder de Deus será outorgado ao homem que com toda a
sua alma e com todo o seu coração está decidido a fazer o
bem. E não só isso: um tal homem será cumulado dos
596 PEQUENA FILOCALIA

mais variados carismas espirituais, bem como de contem­


plações divinas, à semelhança do jovem de que vos falei, a
quem conheci e que se tornou meu amigo. E reafirmo: foi
ele que me narrou o que acerca dele escrevi!
Motivo pelo qual vos peço, irmãos em Cristo (encareci­
damente o peço ! ) que acalenteis nos vossos corações o
desej o de fazer o bem, e que com denodo vos esforceis na
observância dos mandamentos de Deus, fortalecidos pelo
Espírito do Senhor e confirmados na fé e na esperança!
E isso que a vós peço a mim peço também! E que tenha­
mos todos - vós e eu - sempre bem presente na memória
isto : o Senhor em quem pomos a nossa confiança é fiel
ainda mesmo quando somos infiéis (cf. 2Ts 3 , 3 ) . Portanto,
graças a essa divina fidelidade, não soçobraremos, não
obstante as provações que possam atingir-nos.
Vivamos, pois, animados pela convicção de que podere­
mos fazer o bem onde quer que nos encontremos : nas
cidades, nas aldeias, nos mosteiros, nos desertos. Lá, no
meio das circunstâncias mais diversas da nossa vida, pode­
remos experimentar o quanto o S enhor é bom e como
cumpre a sua promessa de estar connosco. E mais: como
cumpre a sua promessa de abrir as portas do seu Reino a
todo aquele que, incessantemente, bate, e como concede a
graça do Espírito Santo a todo aquele que a implora.
Nessa perspetiva, que é a perspetiva de Deus, o cami­
nho está aberto à nossa frente. Motivo pelo qual são im­
pensáveis estas coisas : que não encontre o que procura
aquele que põe nessa procura toda a sua alma; que não
receba a riqueza dos carismas divinos aquele que os im­
plora com todas as suas forças; que não se abra a porta
àquele que a ela, com todo o ardor do seu coração, bate
com perseverança. Ao Senhor a glória pelos séculos dos
séculos. Ámen.
SÃO NICÉFORO
O Monge ou Solitário
SÃO NICÉFORO, o Monge ou Solitário, viveu no decorrer do sé·
culo XIII. Tinha origens italianas e entrou num mosteiro do Monte
Atos, onde defendeu a tradição hesicasta e a tradição ortodoxa.
Nos seus escritos, insiste sobre o coração da experiência monás·
tica, sobre o sentido e o objectivo da vida cristã que é a transfigu·
ração. Uma só necessidade: a fuga em pensamento, das trevas do
tempo presente, procurando o tesouro interior, no coração. Nicé·
foro utiliza os pensamentos dos seus predecessores como uma
coletânea, através dos Padres do Deserto que abriram, antes dele,
o caminho. Insiste mais no acompanhamento de um mestre espi·
ritual vivo do que na aquisição de um método, fugindo de qual·
quer improvisação. Porém , esboça o método da oração ligado à
respiração, ao dizer: «Faz entrar a inteligência pela via onde o
respiro penetra no coraçã o . » A codificação de um método, ope·
rada por Nicéforo, dá-lhe um lugar original na Fi/oca/ia, visto que
este método teve consequências na renovação hesicasta, mas tam·
bém deu aso aos seus opositores, ao pretenderem que ela fosse ,
pura e simplesmente, um exercício psicossomático.
Textos sobre a sobriedade,
a vigilância e a disciplina do coração

Vós que, ardentemente, viveis na expectativa da epifa­


nia da grande luz divina do nosso Salvador Jesus Cristo;
vós que almejais sentir nos vossos corações o fogo purifi­
cador que está no Céu e para além do Céu; vós que, com
denodo, vos esforçais por conhecer e saborear experien­
cialmente o alcance e o significado da reconciliação com
D eus; vós que abandonastes todas as coisas mundanas
para encontrar e possuir o tesouro oculto no campo dos
vossos corações; vós que, nos refolhos da alma, aspirais
acender a vossa lâmpada com a luz radiosa (tremenda e
fascinante! ) do alto, em recolhimento sagrado, longe do
mundo presente de cuj as coisas vos distanciais; vós que
desej ais ardentemente experienciar o Reino dos Céus que
está dentro de vós - todos vós vinde, e eu vos descreverei a
ciência da vida eterna ou, dito de outro modo, a ciência
que resulta do encontro do Céu com a Terra.
Trata-se, com efeito, de uma doutrina capaz de condu­
zir (de um modo indolor e não esforçado) aqueles que a
adotam, ao desej ado porto da impassibilidade. E quero,
desde já, sublinhar isto: não se trata de uma doutrina qual­
quer, cativa de uma qualquer vulnerabilidade, mas sim de
uma doutrina invulnerável aos assaltos impiedosos e devo­
radores dos demónios. É somente quando, por negligência
ou falta de perseverança, começamos a trilhar caminhos
600 PEQUENA FILOCAUA

ínvios que a nenhum sítio bom conduzem por se encon­


trarem fora da vida autêntica - é somente nessas circuns­
tâncias indesej adas e indesejáveis que uma tal doutrina
perde a sua razão de ser, e nós caímos num lamentável
desnorte. Nesse caso somos como Adão que, nos tempos
de antanho, negligenciou o mandamento de Deus, ligou­
-se à serpente, confiou nela e, satisfeito e saciado com o
fruto do erro, lançou-se miseravelmente (e lançou todos
aqueles que vieram depois) no fundo do abismo das trevas
e da corrupção, que não é outro senão o abismo da morte.
Ora, a partir do que já dissemos há, irmãos, um impera­
tivo que não podemos contornar. E que nos diz esse impe­
rativo? Diz-nos que se nos impõe um regresso de nós
mesmos a nós mesmos. Ou, dito com mais palavras: trata­
-se, rigorosamente, de um regresso a nós mesmos que
ocorre q uando repudiamos sem titubear o conselho da
serpente, esse conselho que, sibilinamente, nos empurra
para o erro fatal e, por consequência, para o que há de
mais baixo, isto é, uma descida ao nadir. Há, contudo, um
caminho para daí sairmos e atingirmos o zénite, isto é, a
reconciliação e a união com Deus: esse caminho único
começa, antes de mais nada, por nos conduzir a nós
mesmos. Essa entrada em nós mesmos, tanto quanto ela
dependa de nós, supõe trilhar uma via indispensável para
que em nós aconteça um milagre que não é outro senão o
de um desprendimento: o desprendimento do vão cuidado
do mundo, a libertação do desvario que aniquila, a separa­
ção de um certo espaço mundano de que a lei é ditada pela
mediocridade. É só seguindo esse percurso que podere­
mos chegar, sem tergiversação, ao Reino dos Céus que está
dentro de nós.
Tendo em conta o que temos estado a dizer, poderemos
compreender melhor o motivo pelo qual se diz que a vida
SÃO NICÉFORO 601

monástica pode ser vista como a arte das artes e a ciência


das ciências. Trata-se, com efeito, de uma vida santa, nossa
conhecida, cuj a santidade se traduz em não nos render­
mos à sedução das coisas que, por serem corruptoras,
amortalham a mente ao afastá-la do que é não apenas bom
mas também belo. É uma vida que nos fala de coisas que
estão para além das coisas presentes, de bens maravilhosos
e inefáveis, que nunca foram vistos pelos nossos olhos
nem ouvidos pelos nossos ouvidos, e que j amais subiram
ao coração do homem (cf. l Cor 2 , 9) .
Do combate a travar quando se trata dessas coisas nos
fala a divina Escritura: «porque o nosso combate não é
contra o sangue e a carne, mas sim contra os principados,
contra os poderes, contra os dominadores mundanais,
contra as hostes espirituais da maldade que cirandam nas
alturas» (Ef 6, 1 2) . Como se vê nessas p alavras, esse é um
mundo onde as trevas são de tal maneira ameaçadoras que
em nada podemos com elas contemporizar. Impõe-se-nos
uma vigilância que não claudique e um combate que não
se converta em fuga. A única fuga admissível seria aquela
que passa por um não rotundo ao que há de demoníaco
num mundo tenebroso. Mas essa é uma fuga que implica
uma presença: a presença de um sim claro e inequívoco a
um mundo bom e belo, o mundo querido por Deus.
E não nos esqueçamos de que as roupagens das trevas
da maldade como força demoníaca são hábeis em se tras­
vestir em vestes de luz! Não caiamos, pois, na sua sedução:
lucidamente desmascaremo-las! Não agirmos desse modo
significaria tornarmo-nos não só inimigos de D eus mas
também inimigos de nós mesmos ! E quando alguém cai
numa ratoeira dessas, quem poderá vir em socorro daquele
que se converteu em inimigo de Deus e de si mesmo?
Há nisso matéria para uma reflexão que nos leva a
602 PEQUENA FILOCALIA

tomar consciência da importância do testemunho dos Pais


e da necessidade de os imitarmos. Eles dão-nos a ver, na
sua vida de testemunho, o modo como procuraram o
tesouro que está dentro do nosso coração. Essa procura é
também a nossa, e nela nos devemos empenhar firme­
mente, até o encontrarmos. E uma vez encontrado, im­
põem-se-nos três coisas: mantê-lo firmemente; trabalhá­
-lo com sabedoria; guardá-lo com desvelo! E ao agirmos
desse modo não estamos a fazer senão aquilo que, desde o
tempo das origens, nos está ordenado.
E quando alguém pergunta: «Como é possível a um
homem entrar no seu próprio coração, habitá-lo e traba­
lhá-lo de um modo fecundo? » , a resposta a dar terá de ser
a mesma que Jesus deu a Nicodemos, quando este o inter­
rogou com as palavras : «Mas como pode um homem,
sendo já velho, entrar uma segunda vez no seio da sua mãe
e nascer?» S abemos muito bem qual foi a resposta: «Ü
vento sopra onde quer, e ouves a sua voz e não sabes de
donde vem nem para onde vai: assim é todo aquele que é
nascido do Espírito» ao 3 ,4-8).
E se, faltas de fé e incrédulos, duvidamos do valor da
prática da vida ascética, e perguntamos, com lábios céticos,
como é que se chega a usufruir dos frutos da contempla­
ção, a resposta será esta: tais frutos encontram-se no pro­
cesso em que caminhamos para lá chegar. É que, com
efeito, do caminho a percorrer a ação não poderá estar
ausente.
Dada, porém, a impossibilidade de, sem provas escritas,
comunicar a convicção àquele que nutre a desconfiança,
devemos dar-lhe a conhecer as vidas dos santos e o con­
teúdo dos seus escritos. E com isso estaremos a aj udá-lo
duplamente : não só a expulsar a dúvida mas também a
assumir a convicção. Façamos, pois, citações dos Pais para
SÃO NICÉFORO 603

confirmar o nosso testemunho. Eu, por mim, começaria


com o nosso Pai António, o Grande, para em seguida con­
tinuar com os seus sucessores, fazendo uma antologia das
suas palavras, de molde a podermos assim confirmar a
nossa argumentação.

Da vida do nosso Santo Pai António


Uma vez dois irmãos foram visitar o abade António.
Mas, tendo-lhes a água faltado durante a viagem, um deles
morreu e o outro ficou à beira da morte. Incapaz de cami­
nhar, num estado de gravidade extrema, j azia por terra
esperando a sua hora. Entretanto António, que tinha na­
quela altura a sua habitação num sítio distante, na monta­
nha, chamou dois monges que estavam próximos e apres­
sou-se a dizer-lhes: «Pegai num cântaro, enchei-o de água,
e segui o caminho do Egito. É que dois irmãos vinham a
caminho com a intenção de nos visitar. Ora, um deles já
morreu, e o outro morrerá se vós não fordes em seu so­
corro rapidamente. Despachai-vos, pois. O que vos estou
a dizer foi-me revelado enquanto orava. »
Os dois monges puseram-se d e imediato a caminho e
foram encontrar os dois irmãos. Ao morto sepultaram-no;
ao outro prodigalizaram os cuidados necessários, deram a
beber, reanimaram-no e levaram-no ao ancião. A locali­
dade distava um dia de marcha.
Podíamos, p erante o acontecimento, interrogar-nos
acerca do motivo que levou António a nada dizer antes da
morte do primeiro irmão. Não é, contudo, nem j usto nem
razoável formular uma tal pergunta, pois não é a António
que compete decidir da morte de alguém, mas sim a Deus.
Ora, este permitiu a morte de um dos irmãos e enviou
604 PEQUENA FILOCALIA

uma revelação a António no concernente ao outro. O


milagre ocorrido centrou-se em António que, possuidor
de um coração sobriamente vigilante, lá na montanha aco­
lheu a revelação, pois foi a ele que o S enhor mostrou o
que acontecia ao longe.
Vês assim como, ao manter o coração animado pela
sobriedade vigilante, António contemplava Deus e previa
as coisas? Nota bem, pois, o que daí podemos extrair
como precioso ensinamento : é no coração que Deus se
manifesta à mente e, segundo João Clímaco, uma tal mani­
festação começa como um fogo que purifica aquele que
ama, e de seguida como uma luz que ilumina a mente e a
diviniza.
Mas evoquemos agora os outros.

Da vida de São Teodósio, o Cenobita


O divino Teodósio foi tão profundamente tocado pela
doce flecha do amor, e ficou de tal modo por ele cativo,
que levou a cabo, até ao seu ponto mais elevado, o manda­
mento divino: «Amarás ao Senhor teu Deus com todo o
teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente»
(Mt 22,37) . Ora, um tão elevado estado só pode ser atingido
longe das coisas efémeras deste mundo, mediante a con­
centração dos poderes naturais da alma, quando esta está
ardentemente possuída pelo desej o de uma comunhão
profunda com o Criador.
Tão grandes eram essas energias operantes na alma de
Teodósio que provocavam nele um temor reverencial.
Dele se pode, pois, dizer ser alguém que hauriu na energia
do Espírito a sua própria energia. Note-se, porém, isto :
quando lhe acontecia ter de repreender alguém, fazia-o
SÃO NICÉFORO 605

sempre com doçura, uma doçura impregnada de amor.


Foi, com efeito, alguém que se agigantou em muitas coisas.
Quem, como ele, foi capaz de um tão acrisolado espírito de
serviço nos encontros com os outros? Quem, como ele,
mostrou uma tão grande capacidade de concentração,
fazendo convergir os sentidos no interior de si mesmo?
Quem, como ele, teve a capacidade de viver a quietude no
meio do tumulto, concretizando-o de um modo extraordi­
nariamente tranquilo - mais tranquilo ainda do que o
fazem aqueles que estão no deserto? Quem, como ele, foi
capaz de manter a identidade, permanecendo igual a si
mesmo tanto no meio da multidão como no ermo?
Ora, tudo isso foi o grande Teodósio, e foi-o em eleva­
díssimo grau. A sua singular capacidade de fazer convergir
os sentidos no interior de si mesmo (num registo de admi­
rável disciplina e concentração) advinha-lhe do modo pro­
fundo como tinha sido conquistado pelo amor do Senhor.

Da vida de Santo Arsénio


O maravilhoso e encantador Arsénio coibiu-se sempre
de discutir por escrito as questões disputadas, bem como
de sobre elas escrever cartas. E fê-lo não por incapacidade
(era, indubitavelmente, tão capaz de falar com elevação
como de discorrer por escrito de um modo simples), mas
pelo pudor que o habitava, pudor que o levava a fugir de
toda a ostentação. Daí o seu hábito de se calar, num retrai­
mento permeado de sageza.
Por esse motivo, mesmo nas igrejas ou nas assembleias
esforçava-se tanto por não ver ninguém como por não ser
visto pelos outros. Acontecia-lhe não poucas vezes man­
ter-se por detrás de uma coluna, ou de uma q ualquer
606 PEQUENA FILOCALIA

outra coisa que lhe servisse de ocultamento. Nessas oca­


siões permanecia imóvel, cioso de uma invisibilidade que o
pudesse furtar ao contacto com os outros. O seu desejo
profundo era permanecer atento a si mesmo, fazer conver­
gir a mente para o interior de si mesmo, na vivência de
uma interioridade que o elevasse sem obstáculos até Deus.
Incansavelmente, numa disciplina quotidiana, este homem
divino - ou melhor, este anj o terreno! - concentrava a
mente no seu interior para, a partir daí, subir desimpedi­
damente para Deus.

Da vida de São Paulo do Monte Latros


Este divino Paulo passou toda a sua vida nas monta­
nhas e nos desertos. Por vizinhos tinha apenas os animais
selvagens, com quem partilhava a comida. Só de longe em
longe descia até às lauras, e nessas ocasiões manifestava
disponibilidade para visitar os irmãos. Eram alturas privile­
giadas essas, aproveitadas por ele para o ensino e exorta­
ção: com efeito, instava os irmãos a serem corajosos e apli­
cados na exigente prática das obras da virtude, vivendo
segundo o Evangelho de um modo atento e lúcido, numa
perseverança quotidiana, pois impunha-se-lhes combater
com denodo os espíritos do mal. Além disso, a dimensão
pedagógica do seu ensino incluía até um método para se
libertarem das presunções doentias e dos preconceitos es­
terilizantes, e isso de tal modo que pudessem assim impe­
dir a sementeira das paixões.
E que método era esse que este Pai, permeado do sopro
da divindade, ensinava aos discípulos neófitos, com o obje­
tivo de os levar a repudiar os ataques das paixões? Era
simplesmente isto: a arte de manter a mente sob vigilância.
SÃO NICÉFORO 607

Temos, com efeito, aí, nessa vigilância, nessa custódia da


mente, a arte que aqui se nos impõe como artífice da ação
j usta. Mas disso falaremos mais à frente.

Da vida de São Sabbas


Quando o divino S abbas constatava que um monge
tinha interiorizado corretamente a regra oficial da vida
monástica, ficando assim capacitado p ara submeter a
mente à disciplina necessária - o que implicava combater
os pensamentos hostis e expulsar totalmente da reflexão a
lembrança das coisas mundanas - quando constatava isso,
se se tratava de um monge enfermiço, dava-lhe a permis­
são de habitar uma laura, mas se se tratava de um monge
fisicamente robusto pedia-lhe que construísse ele mesmo
a sua cela.
Estás assim a ver como o divino Sabbas exigia dos dis­
cípulos um sério empenho no controlo da mente, para só
depois lhes conceder uma cela e permitir que a habitas­
sem? Ora bem, isso deve levar-nos a olhar para nós mes­
mos de molde a nos j ulgarmos: que temos nós feito? Qual
tem sido o nosso comportamento? Nós que nos temos
limitado, passivamente, a permanecer nas nossas celas,
sem saber se atingimos ou não a desej ada disciplina da
mente, não seremos responsáveis dessa nossa demissão?

Da vida do abade Agathon


Um dia, um irmão interpelou nestes termos o abade
Agathon: « D iz-me, pai, qual destas duas coisas é a mais
importante: o ascetismo do corpo ou a vigilância do nosso
608 PEQUENA FILOCALIA

estado interior? E ele respondeu: «Ü homem é semelhante


a uma árvore. O ascetismo do corpo são as folhas; mas a
vigilância do nosso interior é o fruto. Ora, tendo em conta
que, no dizer do Evangelho, "toda a árvore que não produz
bom fruto é cortada e lançada ao fogo", é óbvio que todos
os nossos cuidados devem concentrar-se na vigilância da
mente. Mas isso de nenhum modo significa perder de vista
que a proteção e o adorno das folhas (isto é, o ascetismo
do corpo) são coisas a ter também em conta.»
Coisa notável e, como tal, a não perder de vista: o santo
declara-se contra todos aqueles que claudicam no concer­
nente à vigilância da mente, afirmando que quem se gloria
unicamente na prática (qual árvore que, ao menosprezar a
vigilância da mente, dá unicamente folhas, isto é, esgota-se
na ação) será cortado e lançado ao fogo.
Quão terrível é, pai, o teu veredicto!

Do Abade Marcos a Nicolau


Se tu, meu filho, desej as que se acenda dentro de ti a
lâmpada do conhecimento espiritual, a fim de caminhares
sem tropeço na noite profunda do mundo, e se igualmente
desej as que o Senhor guie os teus passos no caminho lu­
minoso do Evangelho (mostrando-te tu pronto a, com fé
ardente, zelo e oração, praticar os mandamentos evangéli­
cos) dar-te-ei a conhecer um método maravilhoso, uma
arte de viver em espírito que, prescindindo embora do
combate penoso do corpo, implica contudo uma ascese
espiritual rigorosa, um intelecto ágil, uma concentração
perseverante. E a fecundar tudo isso uma sageza que tem
como fundamento o temor e o amor de Deus. É mediante
SÃO NICÉFORO 609

uma tal arte de viver que poderás, sem grande esforço, der­
rubar a falange dos inimigos.
Se estás, pois, decidido a vencer as paixões, recolhe-te
em ti mesmo através da oração e, mediante a sinergia divi­
na, desce às profundezas do coração e esforça-te por des­
mascarar as três forças hostis (falo do esquecimento, da
negligência e da ignorância) que propiciam a ação das
outras paixões filhas da malícia, fazendo com que elas se
instalem, atuem, vivam e floresçam nas almas daqueles
cuj o horizonte não é outro senão o do prazer. Por conse­
guinte, precisarás de te manter diligentemente lúcido e
atento para descobrir, com a ajuda do alto, aquilo que o
vulgo ignora. Desse modo, e com a prática da oração, po­
derás libertar-te dessas três forças hostis, autênticos ins­
trumentos tentaculares do mal.
Com efeito, lá onde se desej a inequivocamente atingir
não só o verdadeiro conhecimento como também a me­
mória libertadora da Palavra de Deus e a concórdia genuí­
na (mediante a graça do S enhor atuante num coração
firme) , lá onde há esse desejo apagam-se os traços quer do
esquecimento, quer da ignorância, quer da negligência.
Por conseguinte, impõe-se-te observar o acordo reinante
entre, por um lado, as palavras espirituais e, por outro lado,
o modo como elas lançam luz sobre a arte da oração. E
tem em conta também as que s e seguem tal como as
transmitimos.

De São João Clímaco


Hesicasta é aquele que nutre um desejo paradoxal: levar
o que é incorpóreo a habitar a casa do corpo. Hesicasta é
também aquele que diz: durmo, mas o meu coração vela. Ouve,
610 PEQUENA FILOCALIA

portanto: fecha sobre o teu corpo a porta da tua cela, sobre


as tuas palavras a porta da tua língua, sobre o teu espírito
a porta do teu coração. Ouve ainda: e sobe a uma torre de
vigia (espero que saibas como fazê-lo) e observa quais são
os ladrões e quantos são, bem como de onde eles vêm e
quando vêm. S ê atento, muito atento, pois o seu fito é
roubar os cachos. Há um momento, por vezes mais do que
um, em que o vigia é atingido pela fadiga: pois bem, quan­
do isso acontece que ele se levante e ore. E se assim agir
verá que pode voltar a sentar-se e entregar-se coraj osa­
mente à mesma obra.
E tem presente isto : uma coisa é montar guarda aos
pensamentos, outra coisa é montar guarda à mente. Tão
longe o oriente está do ocidente quanto o está a segunda
coisa da primeira, sendo como é muito mais penosa. Tal
como os ladrões, ao verem as armas reais depostas num
determinado lugar só avançam para elas munindo-se de
cuidados especiais, assim também os ladrões do espírito
sentem-se incapazes de assaltar o homem que une a ora­
ção e o coração. Diante de um homem desses, os larápios
do mundo espiritual baixam os braços impotentes.
Como facilmente compreenderás, trata-se, no que já se
disse, de palavras cuja riqueza ultrapassa em muito aquilo
que delas pensamos, pois introduzem-nos no interior do
ser, onde ocorre a maravilhosa obra da luz do Espírito
divino.
Em oposição temos o mundo das trevas onde as pala­
vras deixam de ser palavras para se transformarem em
maldição. Os habitantes desse mundo são quais notívagos
carentes do poder que podia transformá-los : enredados
nas teias labirínticas tecidas pela perversão demoníaca
perdem-se de Deus perdendo-se de si próprios.
Quão importante será, pois, para todos nós inscrever as
SÃO NICÉFORO 61 1

palavras deste nosso pai no nosso horizonte de reflexão,


consagrando-lhe a devida atenção. Aqui, as palavras são
palavras. São-no por serem palavras do Espírito capazes de
dar à alma uma nova alma.
Por conseguinte, não percas de vista o que os Pais nos
dizem no tocante ao caminho que devemos trilhar. Se é
que verdadeiramente desej amos atingir e viver a sobrie­
dade vigilante.

De Isaías, o Anacoreta
Ao abandonarmos o caminho do engano estamos, salu­
tarmente, a dizer não ao poder tentacular das trevas. E
onde há trevas há mentira e ignomínia. Ora, ao tomarmos
disso consciência compreendemos o quanto p ecámos
contra a bondade de Deus, pois aos pecados não os vemos
verdadeiramente senão quando deles nos separamos me­
diante uma rigorosa rutura . Aqueles que atingem esse
estádio oram com lágrimas e, quando se lembram de como
tinham amado as paixões, enchem-se de vergonha diante
de Deus.
Travemos, pois, o combate da nossa libertação, nele nos
empenhando com denodo, tanto quanto pudermos. De
uma coisa podemos estar certos: não lutaremos numa
solidão atroz, pois Deus, na sua providência e misericór­
dia, assistir-nos-á fielmente. E ainda mesmo que não te­
nhamos sido integralmente vigilantes, no concernente à
custódia dos nossos corações, como o foram os nossos
Pais, esforcemo-nos por manter os nossos corpos livres do
pecado, tal como Deus no-lo pede. E podemos estar certos
de que Ele terá compaixão de nós quando chegarem os
612 PEQUENA FILOCALIA

tempos da provação, tal como se compadece dos seus


santos.
E acerca disto, tratando-se como se trata de uma coisa
central nas nossas vidas, é bom e salutar estarmos atentos
à sageza das palavras deste nosso pai. As suas palavras, im­
pregnadas do desej o de encorajar a todos, e de um modo
particular os mais fracos, são palavras que transmitem
coragem. Oiçamo-lo: «Ainda mesmo que não tenhamos
exercido a vigilância do coração, tal como a exerceram os
nossos Pais, mantenhamos os nossos corpos livres do pe­
cado, tal como D eus no-lo pede, e Ele compadecer-se-á
de nós. » Incontestavelmente, este nosso pai aliava em si
duas coisas preciosas : um coração capaz de compreen­
der, e uma mente apta p ara o afeto. Daí o conforto, o
ânimo, o incentivo que nos transmite e com que nos ajuda
na caminhada.

De Macário, o Grande
A coisa mais importante para aquele que trava o com­
bate espiritual consiste nisto: em entrar no seu próprio
coração e nele declarar guerra a Satanás. E não se trata de
uma guerra qualquer, pois o adversário ataca de modos di­
ferentes e arma as ratoeiras mais imprevisíveis, motivo pelo
qual se nos impõe ser vigilantes, não negligentes, odiá-lo
com um ódio mortal.
E nesse combate não é só aparentemente que os nossos
corpos devem estar limpos da mácula, isentos da corrup­
ção, livres da licenciosidade, pois para que nos servirá a
virgindade do corpo se formos adúlteros para com Deus e
prostitutos no pensamento? Que evoquemos a este res­
peito o texto do Evangelho: «Todo aquele que olha uma
SÃO NICÉFORO 613

mulher desej ando-a, já cometeu adultério n o seu coração»


(Mt 5 , 2 8 ) . E qual o motivo por que o evocámos? Porque
quando se trata da prostituição, dela podemos falar em
dois registos diferentes: um o registo de uma prostituição
ativa no corp o ; o outro o de uma prostituição ativa na
alma. Ora, quando se trata desta, a grande infelicidade em
que caímos consiste em estabelermos a pior das uniões: a
que nos une a Satã.
Pode parecer, à primeira vista, que este pai contradita o
que foi dito antes pelo abade Isaías. Mas não é assim. Este,
com efeito, ordena-nos que mantenhamos os nossos cor­
pos tal como D eus no-lo pede. Ora, D eus exige uma
pureza não apenas parcial mas íntegra, isto é, inteira: não
somente a dos corpos, mas também a dos espíritos. Por­
tanto, bem vistas as coisas, não há aqui posições contradi­
tórias, pois este também, mediante os mandamentos evan­
gélicos, visa dizer a mesma coisa.

De Diadoco
Aquele que faz do seu coração um lugar permanente­
mente por si habitado, consegue esta coisa essencial: não
ficar cativo das vacuidades desta vida. Assim, custodiarmos
o nosso coração é uma exigência de cada dia, na qual nos
devemos empenhar com todo o desvelo. Com efeito, se
queremos caminhar no Espírito não podemos render-nos
aos desejos da carne, o que implica travar um combate que
vale a pena, pois poderemos viver uma vida nova marcada
salutarmente pelo que é bom e belo. Quando um homem
vive essa experiência passa a caminhar na cidadela das vir­
tudes que, tendo como guardiães das suas portas as pró-
614 PEQUENA FILOCALIA

prias virtudes, tem garantia de resistir às emboscadas ar­


madas pelos demónios.
Razão tem o santo ao dizer que tais emboscadas são
inoperantes quando vivemos a nossa vida auscultando as
profundezas do coração, sem claudicarmos no trabalho da
vigilância e da custódia da mente.
E que mais dizer agora? Estou consciente de que o
tempo me faltaria se pretendesse consignar aqui as pala­
vras que, acerca desta questão, os Pais nos legaram. Limi­
tar-me-ei, portanto, à evocação de um ou dois. E, de segui­
da, darei por encerrado este meu trabalho.

De Isaac, o Sírio
Porfia em entrar no escrínio do teu coração, e verás o
tesouro celeste. Porque um e o outro são uma mesma
coisa. Não percas, pois, de vista que ambos têm uma só
entrada . E a escada conducente a esse Reino está dentro
de ti, isto é, no oculto da tua alma. Mergulha, pois, nela,
longe do pecado, e nela encontrarás os degraus pelos quais
te poderás elevar.

De João Carpácio
Um grande esforço e muita labuta são o pão-nosso de
cada dia quando se trata de viver e aprofundar a prática
orante, antes de atingirmos a quietude própria da contem­
plação. E desta podemos dizer que é, verdadeiramente,
esse outro coração celeste onde, no dizer do apóstolo
Paulo, Cristo habita: «examinai-vos a vós mesmos para ver
se estais vivendo na fé; testai-vos, pois! Não compreendeis
SÃO NICÉFORO 615

q u e Jesus Cristo está em vós? - a não ser que, verdadeira­


mente, não passeis no teste! » (2Cor 1 3 ,5 ) .

De Simeão, o Novo Teólogo


A partir do momento em que, pela transgressão ocor­
rida nas origens, o diabo e o seu séquito de demónios pro­
vocaram o exílio do homem, atirando-o para longe do pa­
raíso e de Deus, o caminho ficou-lhes aberto para, à rédea
solta, perturbarem espiritualmente, noite e dia, as faculda­
des racionais desse homem. E fazem-no sem deixar nin­
guém incólume, perturbando uns mais, outros menos.
A situação assim criada atinge dimensões tais que o for­
talecimento da razão humana só é possível com a contínua
invocação de Deus. Por conseguinte, fazer memória (esse
sagrado combate contra o esquecimento) torna-se assim
um incontornável imperativo. Ora, isso implica o fortale­
cimento do coração mediante a memória divina nele im­
pressa pelo poder da cruz.
Vivermos isso, experienciarmos isso, significa vivermos
a fé em Cristo como o espaço onde se desenrola o com­
bate espiritual que cada cristão tem de travar. A não ser
assim, está ferido de inutilidade o combate daquele que,
através de todas as formas da ascese, procura encontrar-se
com Deus e alcançar assim a misericórdia divina. Inútil, na
verdade, é uma tal ascese, e vão é o desej o de atingir a res­
tauração do estado original. O estado que nessa situação
se vive é o de uma completa incompletude. E lá diz Paulo,
o apóstolo, no modo que é muito seu: «meus filhos, por
quem sinto de novo dores de parto, até que Cristo se
forme em vós ! » (Gl 4,1 9) .
Deixai-me formular, irmãos, num modo muito direto,
616 PEQUENA FILOCALIA

as questões que se seguem. Estareis já devidamente escla­


recidos acerca da origem e da razão de ser da espirituali­
dade que se vive na via breve, a via propiciadora da impas­
sibilidade e da visão de Deus? E se a vossa resposta é
afirmativa, até que ponto estais compenetrados do que
verdadeiramente está em j ogo? E já interiorizastes devida­
mente a ideia de que, para Deus, toda e qualquer prática
não passa de folhas de uma árvore se não produzir frutos?
E, além disso, já assumistes o princípio fundamental de
que uma alma negligente na vigilância da mente acabará
inevitavelmente por se perder numa vacuidade que ex­
pulsa a vida verdadeira?
Aí deixamos, pois, algumas interrogações que devem ser
tomadas a sério, seriedade que implica um esforçado em­
penho da nossa parte naquilo que fazemos, porque se
assim não for o nosso arrependimento de nada serve e a
nossa morte apanhar-nos-á infrutíferos.
É nossa intenção, com o presente escrito, dar a conhe­
cer o testemunho dos Pais que nos antecederam. Ora, um
tal conhecimento visa, particularmente, duas coisas: pri­
meiro, tornar conscientes os leitores do modo como agi­
ram aqueles que, fielmente, disseram sim à vontade de
Deus nas suas vidas; em segundo lugar, dilucidar no que
consiste a prática espiritual que nos põe no caminho da
nossa libertação do império das paixões e nos une ao amor
de D eus. Trata-se - e também disto estamos profunda­
mente persuadidos - de uma obra cuj a prática se impõe a
todos aqueles que se comprometem com Cristo.
Convictos do que dizemos, é na força dessa convicção
que empenhadamente oramos, implorando a instrução
necessária acerca da concentração: no que consiste ela?
como utilizá-la? no que consistirá o seu bom uso? Eis al­
gumas das questões que nos parecem importantes. Outras
SÃO NICÉFORO 617

poderá alguém formulá-las. É que, com efeito, ignoramos


muita coisa acerca disso.
Pois bem: no nome de Nosso Senhor Jesus Cristo que
disse: «eu sou a videira, vós as varas; quem permanece em
mim e eu nele, esse dá abundante fruto, porque fora de
mim nada podeis fazer» Oo 1 5 , 5 ) , vou tentar mostrar (na
medida do possível e implorando a sua aj uda e socorro) o
que é a concentração e de que modo, com a graça de
Deus, podemos fazer dela um bom uso.

De Nicéforo, ele próprio


E ntre os santos, quando se trata de discorrer sobre a
concentração, há uma pluralidade de interpretações.
Alguns falam dela em termos de guardiã da mente; outros
veem-na como custódia do coração; outros ligam-na à
sobriedade vigilante; outros consideram-na um patamar
do hesicasmo intelectual; outros ainda há que a evocam
sob outros nomes. Ora, há que manter bem firme o princí­
pio de que essa pluralidade de nomeações de nenhum
modo designa coisas diferentes, mas sim uma única e
mesma coisa. É como se, a respeito do pão, falássemos de
pão, de fatia de pão, de um naco de pão. Mutatis mutandis, o
mesmo ocorre quando se trata da concentração.
Por conseguinte, impõe-se-te perspetivar a concentra­
ção sem perder de vista as suas características, se é que
estás interessado em refletir sobre ela. Escuta, pois: dela se
pode dizer que é o signo do verdadeiro arrependimento; a
restauração da alma; o menosprezo do mundo e o regresso
a Deus; a recusa do pecado e a emergência da virtude; a
indubitável certeza do perdão dos pecados e o introito da
contemplação (ou antes, o seu fundamento) . É, com efeito,
61 8 PEQUENA FILOCALIA

através dela que Deus se inclina para nós e se manifesta à


nossa mente. E , quando vista nessa perspetiva, é a sereni­
dade da mente, ou, dito com outras palavras, a quietude
outorgada à alma pela compaixão de Deus. Ela é a purifi­
cação dos pensamentos, o templo da memória de Deus. E
tal como se protege um tesouro, ela protege a resiliência
necessária em tempos de provação. Ela encoraj a a fé, a
esperança, o amor. Com efeito, quando não se crê não se é
capaz de suportar as provações que sobre nós se abatem.
E, nesse caso, incapazes de as suportar com alegria, inca­
pazes igualmente somos de dizer: «Tu, ó Senhor, és o meu
refúgio e a minha fortaleza; tu és o meu Deus em quem
tenho posta a minha confiança!» (SI 9 1 ,2) . Ora, quando isso
nos acontece, caímos no torpor do desalento, deixamos de
fazer do Senhor o nosso refúgio, descemos ao solipsismo
do (des)amor.
Estamos, pois, aqui a falar de uma obra - grande entre
as grandes - que exige de nós um empenho quotidiano
numa prática onde o ensino ocupa um lugar central. Raros
são, efetivamente, aqueles que, sem terem sido ensinados,
a recebem de Deus através da força do seu trabalho e do
fervor da sua fé. E o que é raro não faz lei. Devemos, pois,
procurar um guia seguro que, com o seu testemunho, nos
ensine a estar atentos não só às faltas de concentração que
nos ameaçam à direita e à esquerda, mas também aos ex­
cessos para onde nos empurra o maligno. Um guia desses,
que tenha passado pelo cadinho purificador das prova­
ções, possui o traquejo necessário para nos instruir e mos­
trar, sem hesitações e com competência, essa via espiritual.
E a partir daí, nós mesmos, assim esclarecidos, poderemos
caminhar até ao fim. Portanto, se não tens ainda um guia,
dá-te ao trabalho de o procurar. Mas se não o encontrares,
então - invocando Deus com um espírito contrito, com
SÃO NICÉFORO 619

lágrimas e com súplicas ditadas pela pobreza - faz o que te


digo.
Sabes perfeitamente que o ar que respiramos, uma vez
inalado, sai pelas nossas narinas sob a forma de sopro. Ora
bem, ao respirá-lo respiramo-lo tendo em vista o coração.
Efetivamente, o coração é a fonte da vida e do calor do
corpo. O coração chama, pois, a si o sopro, a fim de, atra­
vés da expiração, exalar o seu próprio calor e manter para
si mesmo uma boa temperatura. O autor - ou antes, o exe­
cutante de uma tal ordem - são os pulmões. O Criador
criou-os capazes de se expandirem e de se comprimirem,
como se fossem um fole, fazendo com que o ar entre e
saia. Deste modo o coração, ao chamar a si o ar frio pela
aspiração, e ao expelir o ar quente, está a cumprir, sem
nunca a transgredir, a ordem para que foi estabelecido, e
dominar desse modo a natureza do vivente.
Tu, portanto, sentado na calma da tua cela, recolhe a
tua mente, fá-la entrar pelas narinas, lá por onde o sopro
penetra no coração. Empurra-a, forçando-a a juntar-se ao
sopro inspirado no coração. E uma vez ela aí, bafej ada pela
alegria que é um dom da graça divina, acontecer-te-á uma
coisa extraordinária: viverás com um j úbilo inefável o
prazer indizível da união da mente com a alma! Se quiseres
uma analogia do que então vives (ainda que sej a uma
modesta analogia) encontra-la no j úbilo que um homem
sente, depois de ter vivido muito tempo numa terra distan­
te, na hora do regresso, ao voltar a ver mulher e filhos.
Por conseguinte, meu irmão, treina a mente, levando-a
a não sair de um modo súbito do coração, pois no começo,
ainda sem o treino devido, ela evade-se daí. Mas com a
força do hábito, deixa de se sentir atraída pelos movimen­
tos do exterior. Na verdade, o Reino de Deus está dentro
de nós, e aquele que o contempla no coração e o procura
620 PEQUENA FILOCALlA

através da oração ditada pela pureza, tem por menosprezí­


veis e detestáveis todas as coisas exteriores.
Portanto, se, na sequência das tuas primeiras tentativas,
conseguiste logo, por intermédio da mente, chegar ao
coração (tal como to descrevi) dá muitas graças a Deus!
Glorifica-o, rej ubila e, sem cessar, entrega-te a uma tal prá­
tica. É ela, com efeito, que te ensinará o que ignoras.
Além disso, quando a tua mente se fixa firmemente no
teu coração, não a deves deixar silenciosa e inativa. Leva-a,
isso sim, a repetir continuamente a oração «Senhor Jesus
Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim». Constrange­
-a a pensar unicamente nisso e a dizer sem cessar essas pa­
lavras no teu coração. Se perseverares nessa prática, elas,
indubitavelmente, abrirão a porta do coração, tal como já o
escrevemos.
Pessoalmente, sabemos do que falamos, pois é um saber
de experiência feito. E é desse modo, ao viveres isso com
toda a intensidade, que o j úbilo inerente ao exercício da
concentração (essa concentração sumamente desej ada)
fará ecoar em ti o coro celestial das virtudes. E serão elas
(a alegria, a paz, o amor, et cetera) que, presentes em ti, en­
toarão um tal coro. Coro que, ao ser assumido por ti, fará
com que as tuas petições encontrem eco em Cristo Jesus
Nosso Senhor.
A Ele, assim como ao Pai e ao Espírito Santo, sej am a
glória, o poder, a honra e a adoração, agora e sempre, pelos
séculos dos séculos. Ámen.
SÃO GREGÓRIO
O Sinaíta
SÃO GREGÓRIO, o Sínaíta (séculos x 1 1 1 - x1v) , faz parte desse nume­
roso grupo de monges que passou ou viveu no Mosteiro de Santa
Catarina ou nele deixou uma marca importante. Originário da Ásia
Menor, foi levado cativo pelos Turcos para Laodiceia. Mais tarde,
foi resgatado pelos cristãos e foi para Chipre, depois para o Sinai,
onde se tornou monge. Dali, foi para um mosteiro no Monte Atos.
Passou ainda por Tessalónica e Constantinopla e , finalmente, ter­
minou a sua vida na Macedónia, onde fundou três mosteiros. Gre­
gório surge como o iniciador e o pedagogo da renovação hesicas­
ta, na sua época, alargando a visão do mundo mediterrâneo, a
partir desses dois polos vitais, o Sinai e o Monte Atos. Ele tem
uma consciência profética da urgência da via monástica, em tem­
pos de aflição e de desastre. É mais uma testemunha da vivência,
da experiência e da transmissão ascética, do que um argumenta­
dor teológico.
Sentenças diversas
sobre mandamentos1 dogmas1
ameaças e promessas.
E ainda sobre paixões e virtudes1
bem como sobre hesicasmo e oração

1. Tornarmo-nos espiritualmente inteligentes, tal como


o era, segundo a natureza, o homem antes da queda, im­
plica necessariamente restaurarmos em nós a pureza e a
incorruptibilidade originais. É que ambas foram profunda­
mente atingidas com a desobediência original. Com efeito,
a primeira foi afetada em virtude de um agir não racional
dos sentidos; a segunda foi-o pelo estado de corrupção da
carne.

2. Ora, é só vivendo uma vida pura que os seres dota­


dos de razão, segundo a natureza, revelam ser santos.
D esse princípio, que é o princípio da responsabilidade,
não há como fugir. Por conseguinte, fazendo nossa uma tal
ótica - que nos parece j usta e sensata - somos levados a
afirmar o seguinte: de não poucos eruditos (construtores
de conceitos sem nenhuma incidência salutar na vida) se
poderia dizer que perverteram a razão do alto. Na verdade,
não se deram a ver como detentores da razão no seu es­
tado puro. Uma mera capacidade de raciocínio, só por si,
não torna pura a mente de ninguém, pois desde a queda
624 PEQUENA FILOCALIA

ela tem sido corrompida pelos maus pensamentos. O espí­


rito materialista, tagarela, medíocre, próprio da sabedoria
deste mundo e, como tal, mundanal, pode, é verdade,
levar-nos a forj ar discursos de ambicioso âmbito, mas tor­
na os nossos pensamentos feridos pela vacuidade, pela
inelegância, pela rudeza. Ora, a mescla de um bem infor­
mado discurso com um pensamento grosseiro acaba
por se traduzir na carência de uma verdadeira sabedoria,
bem como no vazio de uma reflexão que deveria ser ge­
nuína, isto é, íntegra. De onde emerge, tristemente emerge,
um tipo de conhecimento inconsistente, dividido, não
unificado.

3.Não percas de vista que o conhecimento da verdade


passa de um modo muito particular por uma experiência
da graça divina. A todos os outros conhecimentos há que
chamá-los, com rigor, meros veículos de ideias e de de­
monstrações resultantes de uma análise das coisas.

4. Aqueles que falham na receção da graça divina


falham sobretudo por estas duas coisas: pela infidelidade e
pela negligência. Pelo contrário, aqueles que a acolhem
acolhem-na pela fé e pela consagração, graças às quais se
avança numa vida caracterizada pelo empenho e pela per­
severança. Mas os seus contrários não produzem outra
coisa que não sej a vacuidade, atraso, recuo.

5. Ser insensível é uma forma de morte. E ser cego em


espírito é como não ver fisicamente. Um vê-se privado da
faculdade de viver, de agir, de criar. O outro, que não vê,
vê-se privado da luz divina. E triste coisa é ser-se privado
da luz divina, pois é ela que nos torna capazes de ver e de
ser vistos.
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 625

6.Raros são os homens que recebem de Deus, conjun­


tamente, poder e sabedoria. Bem-aventurados são eles,
pois mediante o poder participam das bênçãos divinas, e
mediante a sabedoria tornam-se capazes de as manifestar
aos outros. Ora, quando se trata quer da partilha quer da
comunicação, trata-se de coisas que de um modo muito
particular, único mesmo, são próprias de D eus. E esse é
um aspeto essencial da vida que nos ultrapassa na nossa
condição humana.

7. Um verdadeiro santuário, já aqui neste mundo, é o de


um coração livre. Ora, um coração livre, graças à força do
Espírito divino, é aquele que já se libertou do cativeiro dos
pensamentos, e está assim aberto ao salutar influxo das
palavras novas e das ações espiritualmente justas. Se não
atingimos um tal estádio nesta vida (trata-se, com efeito, de
algo que é sumamente elevado) , podemos, tendo em conta
as nossas outras virtudes, ser uma pedra que sirva para a
edificação do templo de Deus, mas nós mesmos não sere­
mos verdadeiramente um templo do Espírito, nem um dos
seus celebrantes.

8.O homem foi criado incorruptível, sem os humores


corporais, e é assim que ressuscitará. Mas, note-se, não foi
criado imutável: só então o será verdadeiramente. No
tempo presente, aqui neste mundo, a faculdade volitiva dá­
-lhe um poder relativo de mudar ou não. É que, efetiva­
mente, a total imutabilidade não lhe é conferida de um
modo natural pela vontade: só seremos dela revestidos
quando tivermos atingido a imutável deificação futura.

9.Com efeito, da carne vem a corrupção. E a corrupção


é irmã gémea da impermanência. Note-se: comer, evacuar,
626 PEQUENA FILOCALIA

pavonear-se, dormir, tudo isso são coisas, de acordo com a


natureza, próprias dos animais por mais diferentes que
eles sej am entre si. Ora, em virtude da desobediência das
origens (a queda em que Adão nos precipitou) tornámo­
-nos semelhantes a eles, privados das bênçãos por Deus
conferidas, bênçãos que nos eram conaturais. Decaímos, e
de seres espiritualmente inteligentes tornámo-nos ani­
mais. De seres divinos tornámo-nos seres ferinos.

10. O paraíso é duplo: sensorial e espiritual, pois há o


p araíso do É den e há o paraíso da graça. O paraíso do
É den é de tal modo elevado que dele se diz estender-se ao
terceiro céu. Nele semeia Deus todas as espécies de plan­
tas perfumadas. Não é nem totalmente incorruptível nem
inteiramente corruptível. Foi criado, como se de um meio
termo se tratasse, entre o corruptível e o incorruptível. Per­
manentemente está cheio de frutos e sem cessar faz brotar
flores que se abrem, frutos verdes e frutos maduros. As
árvores mortas e os frutos maduros são lançados sobre a
terra, pelo que se tornam solo perfumado, livre do cheiro
da corrupção característico das plantas do nosso mundo.
Por isso, a graça divina na sua superabundância, e a santi­
ficação na sua força de vida, extravasam sempre nesse
lugar. O rio Oceano que o atravessa e cumpre desse modo
a missão de o irrigar continuamente, saindo dele e divi­
dindo-se em quatro correntes, proporciona aos indianos e
aos etíopes a necessária irrigação do solo, com as folhas
caídas. O Pichon e o Guion reunidos banham continua­
mente os seus campos, até ao local em que se separam de
novo, banhando um deles a Líbia e o outro o Egito.

11.Está dito que quando o mundo foi criado, no princí­


pio, não estava submetido nem ao fluxo nem à corrupção.
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 627

Foi só depois, segundo a Escritura, que a criação foi cor­


rompida e suj eita à vaidade, isto é, ao homem, não volun­
tariamente por escolha dela própria, mas por vontade
daquele ao qual está submetida. Criação que vive em dores
de parto, na expectativa ardente de um Adão restaurado,
isto é, restituído ao seu estado original. E foi ao restaurar e
santificar Adão (esse Adão portador, nesta vida transitória
e impermanente, de um corpo corruptível) que restaurou
também a criação, mas sem a libertar ainda da corrupção.
Desse resgate da criação (operado fora de toda a corrupção)
uns dizem ser ele uma mudança conducente a um estado
melhor, outros defendem um ponto de vista diferente, e
dizem tratar-se de uma completa transmutação do sen­
sorial. Nisto que temos estado a dizer registam-se pontos de
vista claramente divergentes. A Escritura, essa, de um modo
geral, faz afirmações simples e diretas acerca de assuntos
que continuam marcados por alguma obscuridade.

12.Aqueles que acolhem a graça divina são semelhantes


aos que são fecundados em espírito, a fim de poderem
conceber. Podem, porém, rej eitar a semente divina, quer
pelas suas quedas, quer por se privarem de Deus em vir­
tude de se renderem ao inimigo que neles está. A rejeição
da graça divina tem a sua origem na energia perversa ine­
rente às paixões. Mas a sua privação total provém da ação
dos pecados. Com efeito, a alma amante das paixões e do
pecado, privada assim da graça que ela própria rej eita, cai
num estado de desolação, torna-se vazia e acaba por coabi­
tar mais e mais com as paixões ou, dito de outro modo,
com os demónios. Agora e depois.

Nada infunde no coração tanta alegria e doçura


13.
como o fazem a coragem e a compaixão. Cada uma delas
628 PEQUENA FILOCALIA

cumpre uma importante missão: a coragem esmaga os ini­


migos exteriores; a compaixão os interiores. Ambas asse­
melham-se assim, no papel que desempenham, às torres
de vigia das cidades.

14. Muitos que observam os mandamentos pensam


estar com isso a cumprir o seu dever e, por consequência,
a trilhar o caminho desej ado. Não lhes ocorre, porém, que
ainda não alcançaram a cidade, e que permanecem fora
dela. Marcados, profundamente marcados, pela insensatez,
viaj am como lhes dá na gana, desviando-se negligente­
mente das vias reais, e vão ter a atalhos duvidosos, sem
compreenderem quão próxima está a via dos vícios da via
das virtudes. Com efeito, a verdadeira observância dos
mandamentos não se compadece nem com o defeito nem
com o excesso: exige, isso sim, que persigamos disciplina­
damente o alvo que nos é proposto por Deus. E nisso não
há lugar algum para um comportamento irrefletido em
que o capricho do momento compromete o cuidado do
futuro. A não ser assim, o nosso esforço é vão e, segundo a
Escritura, é traída a integridade dos caminhos de Deus.
Impõe-se-nos ser capazes de dilucidar as coisas, de tal
modo que não percamos de vista a finalidade própria de
cada obra em que nos empenhamos.

15.Procura o Senhor no caminho do espírito, isto é, no


coração, através dos mandamentos. Efetivamente, ao ouvi­
res João Batista gritar no deserto: «Preparai o caminho do
Senhor, endireitai as suas veredas» (Mt 3 , 3 ) , tem presente
que ele se refere aos mandamentos e à sua observância,
tanto no coração como nas ações. É, com efeito, impossí­
vel endireitar os caminhos tortos, na nossa observância
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 629

dos mandamentos, e agir retamente, se não tivermos um


coração reto.

16. Quando a Escritura fala em termos de vara e de


caj ado, não percas de vista que, na ordem profética, se trata
do julgamento e da providência, e na ordem ética da sal­
modia e da oração. Efetivamente, quando somos j ulgados
pelo S enhor, a vara da instrução castiga-nos tendo em
vista a conversão. Mas quando a vara da salmodia castiga
aqueles que se levantam contra nós, estamos a ser fortale­
cidos pela oração. Por conseguinte, quando, desejosos de
um agir justo, avançamos munidos da vara e do caj ado, tri­
lhando com inteligência o caminho necessário, castigare­
mos e seremos castigados, até estarmos totalmente nas
mãos da Providência divina. E não seremos derrotados
nem soçobraremos no j ulgamento, tanto no presente
como no futuro.

17.A essência dos mandamentos traduz-se em colocar­


mos em primeiro lugar o mandamento que abarca todos
os outros: lembra-te continuamente do Senhor teu Deus.
É uma pedra de toque, pois é através dele que podemos
emitir um juízo sobre os outros mandamentos e também,
nomeadamente, sobre a nossa observância p essoal, em
termos tanto de perdição como de salvação. O imperativo
expresso com o «lembra-te» é um protesto contra o esque­
cimento. De facto, o esquecimento, logo desde as origens,
apagou a memória de Deus, e com isso provocou o eclipse
dos mandamentos. E desse modo despojou o homem de
todo o bem. Não nos esqueçamos de que o eclipse de
Deus resulta no eclipse do homem.

18. É mediante a prática quotidiana de dois mandamen­


tos - o da obediência e o do j ej um - que aqueles que
630 PEQUENA FILOCALIA

travam um combate espiritual restauram o seu estado ori­


ginal. Foi, com efeito, pelos seus contrários - a desobediên­
cia e a gula - que todo o mal atingiu a condição humana. Os
homens em quem a observância dos mandamentos se pro­
cessa numa fidelidade quotidiana, trilham sem quebranto
e com mais presteza o caminho conducente a D eus.
Outros homens há para quem o cumprimento dos man­
damentos é, sobretudo no concernente ao j ej um e à ora­
ção, e com eles a presteza não é tanta no trilhar do cami­
nho. A obediência convém àqueles que começam. O jejum
àqueles que j á se empenharam bastante no caminho da
iluminação e do autodomínio. A obediência a Deus atra­
vés da observância integral dos mandamentos é algo que
só é dado a muito poucos. E mesmo aqueles que se distin­
guem pela sua coragem e denodo só o conseguem à custa
de um elevado esforço.

1 9 . Na nossa caminhada em direção ao alvo estabele­


cido segundo a vontade de Deus, conhecemos a lei do Es­
pírito e a lei da letra: a primeira, segundo o apóstolo Paulo,
manifesta-se na profundidade da vida e fala nos refolhos
do coração; já a segunda opera na carne. Enquanto uma (a
lei do Espírito) liberta a mente da lei do pecado e da morte,
a outra (a lei da letra) impercetivelmente, age paredes­
-meias com o farisaísmo, o que implica uma conceção da
lei (tanto no seu aspeto teórico, interpretação, como no
seu aspeto prático, cumprimento) que visa apenas o corpo,
o que redunda numa observância dos mandamentos que
não vai além da aparência (cf. 1 Cor 1 1 ,32; Rm 8,2; Mt 23,5) .

20 . Podemos dizer que a síntese dos mandamentos, dos


quais a unidade é-nos dada pelo Espírito, tem a sua analo­
gia no h omem, quer esse homem tenha já atingido um
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 63 1

certo grau de perfeição, quer se encontre ainda, no seu


progresso, marcado pela imperfeição. Assim, mutatis mutan­
dis, os mandamentos, na sua literalidade, são o corpo; as
virtudes, isto é, as qualidades já adquiridas, são os ossos; a
graça é a alma. Com efeito, é a graça divina, como força do
Espírito e doadora de vida, que vivifica e dá integridade ao
poder vital dos mandamentos, tal como a alma anima o
corpo. Ora, obviamente, é o grau de negligência ou, pelo
contrário, de diligência com que um homem visa alcançar
a estatura de Cristo, que mostra até que ponto um tal ho­
mem é ainda criança ou já adulto na fé . Efetivamente,
todos temos diante de nós a incontornável senda da per­
feição, reveladora de quem nós somos, já neste século e
também no século futuro.

21 . Todo aquele que quer fazer florir o corpo dos man­


damentos deve, de um modo zeloso e empenhado, desejar
o leite da graça materna que tem como atributos, em ele­
vado grau, tanto a inocência como a razão. É, efetivamente,
desse leite que se nutrem todos aqueles que, com perse­
verança e dedicação total, procuram o crescimento em
Cristo. Esse é o caminho da sabedoria que nos surpreende
sempre e de novo com o entusiasmo que dela emana, e
que nos nutre e faz crescer, como se fosse leite proveniente
dos seus próprios seios. E aos que já atingiram um alto
nível de perfeição ela dá como alimento a sua própria ale­
gria, qual delicioso mel, tendo em vista a purificação. E lá
diz a divina Escritura: «O mel e o leite estão debaixo da tua
língua» (Ct 4,1 1 ) . Ora, nessa sentença salomónica há duas
palavras que se revestem de uma importância capital: com
a palavra leite Salomão exprime a ideia do poder que o Es­
pírito tem de nutrir e de fazer crescer; com a palavra mel a
ideia do poder purificador desse mesmo Espírito. Se nos
632 PEQUENA FILOCALIA

reportarmos a Paulo, o grande apóstolo, encontraremos um


pensamento com alguma analogia: é quando ele se refere às
diferentes funções desses poderes e declara «dei-vos leite e
mel, como a crianças, e não alimento sólido» (1 Cor 3,2) .

22. Todo aquele que tenta descobrir o sentido dos


mandamentos, limitando-se a um estudo teórico e a uma
leitura de superfície, sem verdadeiramente viver de acordo
com eles, assemelha-se a um homem que, convictamente,
toma a sua sombra pela verdade. Com efeito, é somente
empenhando-nos nas razões da verdade que comungamos
com a verdade. Aqueles que procuram essas razões sem
comungarem com a verdade e, portanto, sem nela terem
sido iniciados, não encontram senão as razões de uma sa­
bedoria que se tornou louca. Ora, a esses aplica o Apóstolo
o epíteto de psíquicos, pois não têm o Espírito, não obstan­
te se gloriarem de serem possuidores da verdade (cf. Jd 1 9) .

23. Tal como o olho físico capta a materialidade d a letra


e dela recebe os sinais sensoriais, assim também a mente,
quando purificada e revestida da sua antiga dignidade,
contempla D eus e recebe dele os sinais divinos. Uma
mente dessas, assim dotada da sua dimensão noética, tem
o Espírito por livro e a língua por pena. Está, com efeito,
dito: «a minha língua é como a pena de um hábil escriba»
(SI 45 ,2) . E sendo como é uma mente iluminada, dela se
pode dizer que tem a luz como tinta. Com efeito, ela mer­
gulha o pensamento na luz e, refletindo-a, escreve as pala­
vras em espírito nos corações puros, esse reduto sagrado
daqueles que são dotados do dom de ouvir. E nisso, ela
sente-se conhecedora destas coisas: da doutrina transmiti­
da; do modo como os fiéis serão ensinados por Deus; de
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 633

como Deus, mediante o Espírito, transmite ao homem, de


acordo com a profecia, o conhecimento.

24. Tem presente isto : o alcance dos mandamentos,


bem como a sua eficácia, dependem da fé que age direta­
mente no coração. É, com efeito, através da fé que cada
mandamento é a fonte e a energia da iluminação das
almas. Os frutos da verdadeira fé que, sendo o que é, está
ativa nas almas, são a temperança e o amor, seguindo-se­
-lhe a humildade, esse dom divino que é o começo e a força
do amor. Com efeito, sem humildade o amor não é amor.

25. A autêntica glória dos seres criados consiste no ver­


dadeiro conhecimento tanto do mundo visível como do
mundo invisível. Se o conhecimento do mundo visível é a
glória dos seres sensoriais, o conhecimento do mundo in­
visível é a glória dos seres dotados de mente e razão.
Destes se pode dizer com toda a justeza que são seres espi­
rituais e divinos.

26. A ortodoxia assumida pela fé pode ser explicitada


nos seguintes termos: uma perceção e um conhecimento
claro dos dois dogmas do credo, isto é, a Trindade e a Dua­
lidade. Trata-se, com efeito, de contemplar e conhecer, por
um lado, a Trindade na unidade, sem confusão nem divi­
são; e, por outro lado, a dualidade das naturezas de Cristo
numa só Pessoa. Isto é, reconhecer e confessar em duas
naturezas (o que supõe um antes e um depois da encarna­
ção) um só Filho glorificado em duas vontades, a divina e a
humana, que não se confundem.

27.De acordo com o credo, devemos confessar piedo­


samente as três propriedades imutáveis e inalienáveis da
634 PEQUENA FILOCALIA

Santíssima Trindade. São elas: ser nascido, não ser gerado,


proceder. O Pai não é gerado e é sem começo. O Filho é
nascido, e com o Pai não tem começo. O Espírito Santo
procede do Pai, mediante o Filho (di-lo assim S. João Da­
masceno) e é eterno com eles.

28. A fé só - vivida na graça e mantida ativa pelo Espí­


rito através da observância dos mandamentos - é sufi­
ciente para a salvação. Mas atenção! É -o desde que não se
torne numa fé morta, e se mantenha bem viva em Cristo.
Ao crente fiel basta-lhe, com efeito, dar forma à vida da fé
ativa em Cristo. É, com efeito, a ignorância que tem levado
os devotos a entender a fé como uma fé de palavras, inerte
e insensível, e não como a fé vivida na graça divina.

29. A Trindade é Unidade simples, dado não ter sido


criada nem ser composta. A Trindade é Trindade na Uni­
dade. Com efeito, D eus é Deus em três pessoas que se
interpenetram totalmente sem, contudo, se confundirem.

30. Deus revela-se e manifesta-se em todas as coisas tri­


nitariamente, pois é ilimitado. Ele contém e prevê tudo
pelo Filho no Espírito Santo. E nenhuma das Pessoas -
não importa de qual se trata - pode ser invocada ou imagi­
nada fora das outras, ou sem as outras.

31 . Há, no homem, a mente, a palavra e o espírito. E


tenha-se em conta isto: não há a mente sem a palavra, nem
a palavra sem o espírito, pois cada um subsiste em cada
um dos outros e em si mesmo. A mente exprime-se através
da palavra, e a palavra manifesta-se através do espírito. O
homem existe assim como uma espécie de ícone da Trin­
dade imutável e original. Trata-se da criação à imagem de, e
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 635

que subsiste até hoje. O homem é, pois, nessa perspetiva


da imagem, uma expressão icónica.

32. Os divinos Pais, efetivamente, ensinam utilizando


modelos. E, nessa ótica, enfatizam que a mente é o Pai;
a Palavra, o Filho; o espírito, o Espírito S anto. Esse é o
campo em que eles refletem e revelam o seu pensamento,
e transmitem a sua doutrina trinitariamente: a Trindade
santa superessencial e sobrenatural; o Deus único em três
Pessoas. E com a transmissão dessa santa doutrina, lega­
ram-nos a verdadeira fé, que é a âncora da esperança. Fa­
lamos assim porque, segundo a divina Escritura, conhecer
o D eus único é conhecer a raiz da imortalidade, assim
como conhecer o poder da unidade das três Pessoas é
conhecer a justiça completa. E quando se trata deste tema
do conhecimento, impõe-se-nos evocar, parafraseando e
interpretando, o que nos é dito no Evangelho: a vida
eterna é conhecer-te a ti, o único Deus verdadeiro em três
Pessoas, e Aquele que Tu enviaste, Jesus Cristo, em duas
naturezas e duas vontades (cf. Jo 1 7,3) .

33. Os castigos são tão plurais e variados entre si quanto


o são as recompensas do j usto. Eles ocorrem - diz a Escri­
tura - no inferno, essa terra obscura e sombria, terra das
trevas eternas, para onde vão os pecadores. Lá, eles habi­
tam antes do julgamento, e para lá a sentença os reenvia.
Com efeito, a que outra coisa senão ao j ulgamento final
dos pecadores, e à sua condenação eterna, se referem as
palavras: «que os pecadores regressem ao inferno» (SI 9, 1 8)
e «a morte será o seu pastor» ? ! (SI 49, 1 5)

34.O fogo, as trevas, o verme, o tártaro - tudo isso é a


devassidão geral, a ignorância universal das trevas, a exci-
636 PEQUENA FILOCALIA

tação da luxúria, o medo, o odor infeto do pecado! Arras e


primícias dos castigos, todas essas coisas agem desde já
nas almas dos pecadores, e nelas se manifestam à luz do
dia.

35. Os estados para onde as paixões nos conduzem são


as arras dos castigos, assim como as energias das virtudes
são as arras do Reino de Deus. Ora, impõe-se-nos com­
preender e ter presente que, enquanto os mandamentos
são energias, as virtudes são estados. Também se diz que os
vícios são igualmente estados.

36. Os castigos são repartidos como o são as recompen­


sas, não obstante haver muita gente que pensa o contrário.
A j ustiça divina dá, com efeito, a uns a vida eterna, aos
outros o castigo eterno. Uns e outros atravessam o século
presente, este mundo cá de baixo, com as suas histórias de
vida, agindo ou bem ou mal. Por conseguinte, a todos será
dada uma retribuição segundo as suas obras. A quantidade
e a qualidade da parte que a cada um cabe dependem do
estado e da energia das paixões ou das virtudes.

37.As almas devassas são pântanos de fogo (cf. Ap 1 9,20) .


Nelas o odor das paixões - qual lodaçal nauseabundo -
nutre o verme insaciável da dissipação, a intemperança da
avidez da carne, a serpente, os sapos, as sanguessugas dos
desejos perversos, a maldição e o veneno dos pensamen­
tos demoníacos. Ora, fixemos bem isto, em cada uma
dessas coisas, e em todas elas no seu conj unto, estão já
presentes as arras do castigo futuro.

38. Assim como as primícias dos castigos futuros estão


já secretamente presentes nas almas dos pecadores, assim
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 637

também as primícias das bênçãos futuras estão já presen­


tes e são experienciadas nos corações dos justos através da
atividade do Espírito divino. Com efeito, o Reino dos Céus
é a recompensa dada 'às virtudes, tal como o castigo é a
paga infligida às paixões.

39. A noite que vem e da qual o Senhor fala (cf. Jo 9,4) , é


a inércia completa e destruidora das trevas futuras. Ou
então, interpretada numa outra perspetiva, ela é o Anti­
cristo que, sendo noite e trevas, consubstancia tudo aquilo
que há de mais monstruoso, ignóbil, infame, destruidor.
Ela é igualmente, na ordem moral, a negligência quotidia­
na que, tal como as trevas, aniquila a alma no sono da in­
sensitividade. E tal como a noite faz, efetivamente, dormir
todos os seres, qual imagem dolente da morte extermina­
dora, assim também a noite das trevas futuras, sob a em­
briaguez dos castigos, lança os pecadores na insensitivi­
dade da morte.

40. O j ulgamento deste mundo, segundo o Evangelho,


é resultante da incredulidade dos ímpios: «aquele que não
crê está já j ulgado» (Jo 3 , 1 8) . E visto nessa perspectiva é uma
visitação providencial que, anunciada para o futuro, nos
constrange no presente não só a um corte com o pecado,
mas também a tomarmos consciência de que o nosso agir,
suj eito como está a um escrutínio, deve ser permanente­
mente orientado no sentido de uma prática do bem, se­
gundo a energia do Espírito em nós atuante, pois, de
acordo com o veredito do salmista, <0á desde o ventre que
os pecadores estão cortados» (SI 5 8 ,4) . D eus manifesta
assim o seu julgamento, quer por causa da nossa incredu­
lidade, quer para nos disciplinar, isto é, testar em que sen­
tido gravitam as nossas ações. E, agindo providencial-
638 PEQUENA FILOCALIA

mente, condena uns ao castigo e declara j ustos os outros:


assim será no Julgamento Final, no qual os declarados
justos receberão a coroa da salvação. Com efeito, enquan­
to os primeiros são totalmente ímpios, os segundos são
fiéis, embora vivam uma fidelidade imperfeita, pelo que o
seu castigo será ditado pelo infinito amor com que Deus
ama. Há, assim, um julgamento de que o princípio atuante
é a justiça divina, segundo a qual todos receberão a parte
que lhes pertence: tanto aqueles que assumiram coraj osa­
mente a prática da virtude no espírito do Evangelho, como
aqueles cujos ínvios caminhos ficaram marcados pela de­
gradação do vício. Todos receberão o que lhes é devido.

41 . Se a nossa natureza humana não for guardada in­


tacta e pura pelo Espírito divino, como já se disse, ser-lhe­
-á impossível tornar-se um só corpo e um só espírito em
Cristo, já neste tempo presente e também na harmonia fu­
tura. Efetivamente, o poder englobante e unificador do Es­
pírito não remenda com tecido novo a velha veste das pai­
xões para dela fazer a nova túnica da graça divina (cf. Mt 9, 1 6) .

42. Aquele que, desprendidamente de si mesmo, acolhe


e guarda a novidade do Espírito, e passa assim a conhecer
a inefável e sobrenatural deificação, torna-se a própria
imagem da figura de Cristo. Que proclamemos, pois, isto:
cada um de nós que está em Cristo, e é assim um com Ele,
faz parte já do seu Corpo aqui na terra, pois um membro
nesse corpo é participante desde j á na graça divina e,
no dizer do Apóstolo, figura da verdade e do conheci­
mento (cf. Rm 2 ,20) .

Segundo a Lei mosaica, passa-se com o Reino dos


43.
Céus o que se passa com um tabernáculo edificado por
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 639

Deus e dividido em dois pelo véu do século futuro (cf. Ex


2 5 , 8 ss. ) . No primeiro entrarão todos os que são sacerdotes
da graça. Mas no segundo - o tabernáculo espiritual - en­
trarão somente aqueles que, tendo já na presente era atin­
gido a divina obscuridade da sabedoria teológica, estão
preparados para nele viver, celebrando na perfeição a litur­
gia hierárquica e trinitária. Essa sua preparação é essencial
para reconhecerem liturgicamente a primazia de Jesus, o
grande e verdadeiro consagrante dos mistérios, o primeiro
na hierarquia em p erspetiva trinitária . É por Ele que
entram no tabernáculo, e é por Ele - o fundador do taber­
náculo - que são iluminados de um modo único, rico,
esplendoroso.

44. O Salvador, ao declarar que na sua casa há numero­


sas moradas Go 1 4,2), evoca implicitamente a existência de
diferentes estádios de elevação espiritual e de desenvolvi­
mento no mundo futuro. Com efeito, não obstante o
Reino dos Céus ser um só, há nele muitos e diferentes
níveis, tal como existem seres celestes e seres terrestres, se­
gundo a virtude e o conhecimento que os caracteriza, e
também segundo o grau de deificação pessoal. Efetiva­
mente, uma é a luz do sol, outra a da lua, outra a das estre­
las, uma pluralidade de luzes em que, no dizer do apóstolo
Paulo, nem todas brilham da mesma maneira nem com a
mesma intensidade, não obstante todas brilharem no
único firmamento de Deus (cf. 1 Cor 1 5 ,41 ) .

45. Vive uma vida própria dos anjos aquele que, tendo
purificado com lágrimas a sua mente, se torna paulatina­
mente incorpóreo e incorruptível, e que, na força do Espí­
rito, j á agora nesta vida terreal experiencia a ressurreição
da alma, e que da carne (dessa estátua de argila que por
640 PEQUENA FILOCALIA

natureza ele é) faz, pela Palavra de Deus, uma figura de luz


e de fogo, uma imagem da beleza divina. Assim é, pois os
corpos tornar-se-ão incorruptíveis, com o que desaparece­
rão os humores naturais e a sua espessura material.

46. A incorruptibilidade, conseguida à custa de uma


vitória sobre os humores e a espessura material, será o
destino do corpo terreal. Tendo em conta que ele é simul­
taneamente material e celeste, de corpo animal passará a
ser (graças à imagem divina que transporta em si) corpo
espiritual, o que implica passar por uma inaudita transfor­
mação. Com efeito, ressuscitará e, uma vez ressuscitado,
passará a existir tal como foi criado na origem, de molde a
ser conforme à imagem do Filho do Homem, na comu­
nhão total outorgada pela deificação.

47. A pátria daqueles que, por serem humildes, têm um


coração doce, é o Reino dos Céus. Ou, dito de outro
modo, trata-se de uma pátria cuja identidade é dada por
aqueles que a habitam e por ela são habitados, que não são
outros senão os que comungam na natureza divino-hu­
mana do Filho, isto é, aqueles que já atingiram, ou estão
em processo de atingir, uma tal natureza. Com efeito, me­
diante o milagre da graça divina, renascemos como filhos
de Deus para a vida nova da ressurreição. Ora, em tudo
isso, o que fundamentalmente conta é compreendermos
que falar dessa pátria é falar de uma terra santa que é a
nossa natureza deificada, isto é, a terra purificada e desti­
nada aos terreais que dela são achados dignos. Dito ainda
num outro registo: é a terra prometida como herança
àqueles que verdadeiramente são santos, cuja santidade é
expressão da imperturbável e divina serenidade de uma
paz que ultrapassa todo o entendimento. Como, pois, po-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 641

demos ver, esta pátria de que aqui falamos tem como habi­
tantes a raça daqueles que pertencem à geração dos que
têm corações retos, aos quais já nada perturbará, nem
coisa alguma molestará.

48. A terra prometida é a impassibilidade. Nela manam


o leite e o mel, e j orra em toda a abundância a alegria
outorgada pelo Espírito divino.

49. No século futuro, os santos falarão entre si uma


nova língua, que não é outra senão a língua dos mistérios.
Trata-se de uma linguagem interior que se exprime e toma
forma graças à força conferida pelo Espírito Santo.

50. Se ignoramos o que somos, quando feitos por Deus,


como poderemos reconhecer o que somos quando feitos
pelo pecado?

Aqueles que já nesta vida, como terreais, atingiram a


51 .
plenitude da perfeição de Cristo, vivem entre si uma igual­
dade: a que lhes é conferida pelo facto de terem assumido
a estatura própria dos que são iguais em espírito.

52. Ignoramos ainda quantos serão e de que tipo serão


os castigos infligidos a uns e as recompensas atribuídas
aos outros. Trata-se de algo que não nos é dado saber na
condição que ainda é a nossa; o véu só se levantará quan­
do chegarmos à fronteira do Além, e uma nova ordem de
coisas for assim instituída.

5 3 . As Escrituras, quando se trata da ressurreição (e,


obviamente, do estado dos santos filhos da ressurreição de
Cristo) Oferecem-nos amplas perspetivas. De um tal estado
642 PEQUENA FILOCALIA

se diz ser a consequência de uma transformação: os res­


suscitados tornam-se mentes espirituais deificadas e,
como tal, revestidas da incorrupção e da imortalidade.
Se quiséssemos dizer o mesmo, utilizando outras palavras
e imagem diferente, diríamos : tornar-se-ão semelhantes
aos anJ OS.

54. No concernente ao modo de existência próprio do


século futuro, é-nos dito que tanto os santos deificados
como os anjos se encontram num processo de progresso
incessante: progredirão, uns e outros, nos dons da graça
divina, bem como nos bens por eles então desej ados. Com
efeito, no século futuro cessarão completamente os obstá­
culos: já não os haverá nem para o progresso de cada um
nem para a virtude ser genuinamente virtuosa.

55.Tem em conta isto: o homem das origens, saído das


mãos de Deus, foi criado à sua imagem e semelhança. Não
obstante a queda, essa imagem e semelhança, restaurada
por Cristo, permite ao homem crescer até à estatura de
Cristo, e adquirir a perfeição daí resultante. Mas no século
futuro, o homem perfeito será, na sua plenitude, revelado
como tal pelo poder da deificação.

56. Aquele que, através dos diferentes estádios do cres­


cimento espiritual, atinge já nesta vida presente a perfeição
na virtude, alcançará na vida futura um estado de deifica­
ção igual ao daqueles que lhe são semelhantes.

57.Um dos muitos desafios com que quotidianamente


nos defrontamos consiste em não cairmos no desnorte no
concernente ao credo que confessamos. Tenhamos pre­
sente que um tal credo se fundamenta no conhecimento
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 643

ou contemplação, que são frutos do Espírito em nós, o que


nos capacita para o exercício de um discernimento rigo­
roso em matéria de dogma. E daí não podemos fugir se é
que desej amos viver, na força do Espírito, uma vida ilumi­
nada pelo conhecimento da fé verdadeira.

58. O êxtase é a elevação total dos poderes da alma, em


direção da maj estade da glória divina, una e indivisa. O êx­
tase é, assim, essa saída de si mesmo, na experiência vivida
do que há de inefável e de tremendo na santidade divina,
que nos inunda com a sua luz. Não é, portanto, apenas um
arrebatamento dos poderes da alma em direção ao Céu:
mais do que isso, é também uma completa transcendência
em relação ao próprio mundo sensorial. Ora o amor - o
eros é tudo isso: é a embriaguez do Espírito que faz emer­
-

gir o desej o.

59. Tal como já se insinuou, há no êxtase duas formas


de amor: o que habita o coração e o que nos faz sair de nós
mesmos. O primeiro é atributo daqueles que estão ainda
sob a luz dum ensinamento; o segundo é condição daque­
les que vivem o amor na sua plenitude. Tanto um como o
outro, ao agirem na mente, levam-na para além do mundo
sensorial. Podemos falar, nessa perspetiva, de um eros
divino que se manifesta nos sentidos e para além dos sen­
tidos, isto é, um eros trans-sensorial. Trata-se, verdadeira­
mente, de uma embriaguez provocada pela efusão do Es­
pírito em nós, que impele os pensamentos naturais para
estádios mais elevados e liberta os sentidos do seu envolvi­
mento com as coisas visíveis e terreais.

60. A origem e fonte dos pensamentos dispersantes está


lá, no tempo primordial, na transgressão do homem que
644 PEQUENA FILOCALIA

esquarteja a memória de um modo tão intenso que a reduz


a fragmentos e a leva, assim, a perder a lembrança de
Deus. De simples, a memória torna-se complexa; de única,
torna-se diversificada. São as suas próprias forças que a
fazem perecer.

61 . Recuperamos o estado original da memória ao re­


conduzi-la à simplicidade que, no princípio, era a sua. E
assim restaurada, deixará de ser fonte de malévolos e des­
truidores pensamentos. Efetivamente, a desobediência ori­
ginal, convertida em artesã da maldade e da infâmia, não
somente corrompe a memória simples da alma, levando-a
ao esquecimento do bem, mas vai mais longe do que isso:
corrompe também todas as forças que lhe são próprias, e
apaga o seu apetite natural de virtude. Por conseguinte,
reavivar a memória com a contínua lembrança de Deus é
algo cuj a importância nunca é demais sublinhar. Ora, é
particularmente na oração que a memória de Deus pode
ser por nós vivida: evocá-lo, isto é, fazer anamnese cura a
nossa amnésia e desencadeia as forças do nosso espírito,
elevando-nos assim a um estado sobrenatural.

62. Os atos pecaminosos provocam as paixões; as pai­


xões, os pensamentos; os pensamentos, as fantasias. Com
efeito, a memória fragmentada gera um desnorte de ideias;
o esquecimento é pai do estilhaçamento da memória; a
ignorância é mãe do esquecimento; a negligência está na
origem da ignorância; a concupiscência gera o desleixo.
No mundo dos desej os, cuj a matriz é a indignidade, cam­
peia a pulsão pecaminosa. Com efeito, um ato pecaminoso
é provocado por um irracional desejo do mal, que se pro­
cessa a par e passo com uma dependência estrita dos sen­
tidos e das coisas sensoriais.
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 645

63.Os pensamentos atuam e proliferam na mente; as


paixões, no ardor; a memória do apetite desordenado, no
desejo; as imagens fantasiosas no intelecto; as ideias na
faculdade de conceptualizar.

64. A irrupção dos pensamentos é semelhante à cor­


rente de um rio. A provocação neles presente e, com ela, a
conivência do pecado, tornam-se vagas turbulentas que
inundam o coração.

65. Enquanto o gozo terreal com a sua viscosidade


evoca um lamaçal profundo, a impudicícia dá a ver um
mundanal pantanoso. Ora, tudo isso entorpece a mente
que (pobre dela!) cativa da paixão e assediada pela falange
dos pensamentos, mergulha no abismo do desespero.

66. A Escritura declara não poucas vezes que os pensa­


mentos são motivos para as ações, tal como declara que
esses motivos são imagens mentais. E num certo registo de
analogia afirma também que as imagens mentais funcio­
nam como motivos. Efetivamente, o ponto de partida para
as ações, ainda que sej a de natureza imaterial, está nelas
presente e delas emana, mediante mutação, para assumir
uma forma visível particular. Por conseguinte, nessa pers­
petiva, o pecado que daí resulta é identificado e nomeado
de acordo com a sua manifestação externa.

67. Os pensamentos dispersantes são instrumentos dos


demónios e funcionam como precursores das paixões.
Analogamente, e num outro registo, pode dizer-se das
imagens mentais serem elas precursoras de ações parti­
culares. É, com efeito, impossível fazer um bem ou um mal
que não tenha subj acente o seu próprio pensamento, que
646 PEQUENA FILOCALIA

se traduz num movimento mais ou menos acentuado con­


ducente à realização de todas as coisas que integram o
universo das possibilidades.

68. Se as coisas terreais, segundo a natureza, geram


pensamentos simples, j á a provocação demoníaca urde
pensamentos de uma complexidade maligna. Daí que,
quando comparamos as razões e os pensamentos naturais
com as razões e os pensamentos contranatura, constate­
mos uma não coincidência entre umas e outras.

69. Os pensamentos, que nos assediam a todos, são


propensos à mutação, sendo idêntico o modo como mu­
dam, independentemente da pessoa que cada um de nós é.
Há, assim, pensamentos que se processam de acordo com
a natureza, mas que acabam por se tornar quer contrários
à natureza quer transcendentes à natureza. Tais mutações
encontram um campo vulnerável, quando se trata de pes­
soas que, com uma mente doentia, se deixam facilmente
seduzir pelas coisas terreais ; ou então, quando se trata
daqueles cuj a mente está orientada num sentido materia­
lista, casos em que a provocação demoníaca ganha facil­
mente terreno. No caso dos santos, são os pensamentos
segundo a natureza que proporcionam uma salutar muta­
ção : proporcionam-na ao abrir caminho para os pensa­
mentos que transcendem a natureza. E note-se que as cir­
cunstâncias propícias e os terrenos adequados para as
boas e para as más mutações são de quatro tipos: terreal,
demoníaco, natural, sobrenatural.

70. As circunstâncias suscitam os pensamentos; os pen­


samentos, as fantasias; as fantasias, as paixões. As paixões,
essas, são uma porta aberta para os demónios. Há uma
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 647

conivência pérfida que os espíritos desregrados fomentam


entre si, de tal modo que cada um deles depende de um
outro ao qual está ligado. E nenhum deles, cativo como é
dessa dependência, atua por si mesmo, pois estão todos
subj ugados ao universo demoníaco que faz deles reféns. A
fantasia não cria verdadeiramente imagens, e a p aixão,
essa, não atua senão pelo poder demoníaco, nela secreta­
mente oculto. Com efeito, ainda que Satã tenha decaído, e
com essa sua queda tenha ficado alquebrado, a nossa
negligência dá-lhe novas forças e, à nossa custa, enche-se
de orgulho.

71 . Os demónios inundam a nossa mente com imagens


as mais variadas, ou, dito de outro modo, tomam uma
forma semelhante a nós mesmos, e proj etam-se assim em
nós, segundo o estado da paixão que, tendo tomado conta
da nossa alma, impõe o seu domínio. Com efeito, de um
modo sibilinamente significativo, transportam com eles o
rosto e o estado da paixão que, em nós, provoca a forma­
ção das imagens. Assim, quer durante a vigília quer du­
rante o sono, fazem com que em nós apareça uma ampla
diversidade das numerosas formas da imaginação. Os de­
mónios do desej o (ou antes, da devassidão) transformam­
-se tanto em porcos, como em burros, como em garanhões
ávidos de cópula, como em próceres da licenciosidade. Os
demónios da cólera tornam-se p agãos ou leões; os da
cobardia fazem-se ismaelitas; os da devassidão, idumeus.
Os demónios da bebedeira e da intemperança tornam-se
agarenos; os da avidez transformam-se em lobos e em
panteras; e os da malignidade, em serpentes, víboras, rapo­
zas. Os demónios da desvergonha metamorfoseiam-se em
cães, e os da acédia, em gatos. Finalmente: os demónios da
impudicícia tornam-se serpentes, corvos, gaios, enquanto
648 PEQUENA FILOCALIA

os demónios psíquicos (ou antes, os demónios aéreos) se


transformam em pássaros. A nossa imaginação é provo­
cada por três tipos de causas que alteram (cada uma à sua
maneira) as formas que, segundo as três partes da alma,
atribuímos aos espíritos. É assim que, segundo essa pers­
petiva, a tripla imaginação pode ser encontrada numa tría­
de: a tríade formada por pássaros, feras, animais de carga.
Trata-se de uma tríade que encontra uma certa correspon­
dência nas potências da alma que são três em número: o
desejo, o ardor, a razão. Com efeito, os três príncipes das
paixões estão permanentemente preparados para o ataque
a esses três poderes da alma. E independentemente do tipo
de paixão que domina a alma, esses príncipes são de um
tal calibre que mudam de forma segundo o tipo da paixão,
para melhor se insinuarem em nós e nos combaterem.

72. Os demónios especializados nos prazeres sensuais


atacam frequentemente sob a forma do fogo e das brasas.
Quando se trata de inocular a paixão da impudicícia, a
tentação demoníaca incendeia a faculdade desej ante da
alma e semeia na mente a confusão, entenebrecendo-a,
com o que lhe tira toda a capacidade de reflexão. Com
efeito, os prazeres sensuais são em si perturbadores da
sensatez e hábeis em cegar a mente.

73. À noite das paixões corresponde as trevas da igno­


rância. E a inversa pode também ser verdadeira. Ou, dito
de outro modo, a noite, na medida em que é trevas, confi­
gura um império propício ao despertar das paixões. Nele
reina o senhor das trevas, ao comando do qual se manco­
munam os animais dos campos, os pássaros do céu, as ser­
pentes da terra (figurativamente chamados espíritos ulu­
lantes) com o intuito de nos devorar.
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 649

74. Há pensamentos que precedem a atividade das pai­


xões; outros há que atacam depois; outros precedem as
fantasias; outros ainda manifestam-se depois delas. As pai­
xões, por vezes, precedem os demónios; casos há, porém,
em que se regista o inverso. Há que reconhecê-lo: em tudo
isto pisamos um terreno de complexidade acentuada, onde
o que numa determinada circunstância pode ser causa,
noutra circunstância pode ser efeito.

75.Na verdade, o princípio das paixões tem a sua ori­


gem no mau uso que fazemos das coisas. E a causa desse
mau uso reside na perversão do carácter que indicia a
pulsão de uma vontade não só testada mas também cor­
rompida pela provocação demoníaca. Os demónios são,
quando vistos desta maneira, tolerados pela Providência
divina para nos mostrar qual é, especificamente, o estado
em que se encontra o nosso livre-arbítrio.

76. O veneno letal do aguilhão do pecado é segregado


pela parte passional da alma. Por conseguinte, o homem
que, por si mesmo, voluntariamente, se entrega às paixões,
cria na sua vida um bloqueio que o torna incapaz de pro­
gredir, e faz dele um refém de um mundo de ilusão. Cativo
de um tal cativeiro, esse homem tem uma conduta feita de
mediocridade, de onde uma salutar e incontornável mu­
dança é afastada para abrir caminho à instauração do reino
da vacuidade.

77. As paixões, na sua complexidade, têm múltiplos


nomes. E, sendo compostas, dividem-se, logo à partida, em
paixões corpóreas e paixões incorpóreas ou psíquicas. As
corpóreas subdividem-se em dois grupos: o grupo das que
implicam sofrimento, e o grupo das que são pecaminosas.
650 PEQUENA FILOCALIA

Por sua vez, as que implicam sofrimento subdividem-se


também em dois grupos: o grupo das que arrastam con­
sigo enfermidade, e o grupo das que implicam castigo. As
paixões incorpóreas ou psíquicas, essas, dividem-se em
três grupos: as do ardor, as do desejo, as da razão. Por sua
vez, estas últimas subdividem-se em dois grupos: o grupo
das que afetam a fantasia, e o grupo das que afetam a com­
preensão. E destas últimas fazem parte tanto as que resul­
tam de um mau uso voluntário das coisas, como as que
sofremos involuntariamente e que, por isso mesmo, não
são motivo de censura. No ensino dos Pais elas são tidas
como concomitantemente idiossincráticas e naturais.

78. Pelo que já se disse até aqui, tornou-se claro que


umas são as paixões do corpo, outras as da alma. Umas
são as do desej o, outras as do ardor. Umas são as da razão,
outras as da mente e da compreensão. Comunicam umas
com as outras e operam interagindo, isto é, em sinergia. As
paixões do corpo interagem com as do desejo, e as da alma
com as do ardor. Do mesmo modo, as paixões da razão in­
teragem com as da mente, e as da mente com as da com­
preensão e da memória.

79 . As paixões do ardor processam-se como: cólera,


animosidade, gritaria, agressividade, intemperança, vai­
dade, fanfarronice, et cetera. As paixões do desej o tradu­
zem-se em: avidez, devassidão, intemperança, concupis­
cência, gozo, avareza, egoísmo (que, de todas as paixões é a
pior) . As paixões da carne manifestam-se como: impudicí­
cia, adultério, impureza, libertinagem, injustiça, glutonaria,
acédia, frivolidade, ostentação, dependência, et cetera. As
paixões da razão exprimem-se como: incredulidade, blas­
fémia, malícia, falsidade, tacanhez, irresolução, inj úria,
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 65 1

maledicência, condenação, desprezo, chalaça, hipocrisia,


mentira, grosseria, estupidez, falsidade, ironia, vaidade,
baj ulação, arrogância, presunção, perj úrio, blá-blá-blá, et
cetera. As paixões da mente traduzem-se como: presunção,
insolência, j actância, disputa, invej a, bazófia, hostilidade,
ignorância, fantasia, ficção, exibição, ambição, orgulho
(que entre as afeções da alma é uma das piores) . As paixões
da inteligência afirmam-se como : inquietude, encómio,
enclausuramento, vertigem, cegueira, errância, agressão,
submissão, facciosismo, perversão, agitação, e tudo o mais
desse j aez. Em suma: todos os males que são contranatura
coexistem com as três faculdades da alma, enquanto todas
as virtudes coexistem entre si no seu interior.

80. David atinge uma eloquência nimbada de sublime


quando, no arrebatamento do êxtase, louva a Deus com as
palavras: «Tu , S enhor, me envolves totalmente, e sobre
mim colocas a tua mão. Um tal conhecimento é dema­
siado maravilhoso para mim. É de tal maneira elevado que
não o posso atingir! » (Sl 1 3 9 , 6) . Ora, podemos e devemos,
em sintonia com David, proclamar o mistério de Deus, o
quanto há de inefável e de tremendo na sua santidade, que
nos ultrapassa na sua inacessibilidade, pois está para além
do nosso fraco conhecimento e do poder de que dispo­
mos. Como é que esta carne que somos nós (cuj a forma­
ção complexa não é possível compreender!) pode exprimir
existencialmente, em cada uma das suas formas, a harmo­
nia trinitária e única? Como pode ocorrer isso em nós, em
cada membro, na totalidade do corpo, um corpo honrado
pelos algarismos sete e dois que, segundo os eruditos, ma­
nifestam o tempo e a criação? É que, em tudo isto, esta­
mos situados nesse mistério que é o tempo de Deus! Mas
não apenas no seu tempo: estamos também no seu tem-
652 PEQUENA FILOCALIA

plo, que tem a ver com cada um de nós, pois no dizer de


Paulo, o apóstolo, «não sabeis que o vosso corpo é templo
do Espírito S anto, que está em vós, o qual recebestes de
Deus ? » ( l Cor 6 , 1 9) . Nesse registo do pensamento apostó­
lico, portanto, o nosso corpo é templo do Espírito Santo, na
manifestação da sua glória, templo divino consagrado à
grandeza da Trindade, segundo as leis que agem na criação!

81 .As leis da natureza decorrem de uma determinada


composição de elementos heterogéneos que evidenciam
uma capacidade própria de agir. Por conseguinte, tendo
em conta uma tal heterogeneidade, desses elementos se
diz racionalmente que transportam consigo diferenças que
são específicas de cada género. Ou ainda, dito num registo
ligeiramente diferente, a lei natural é a energia em potência
de cada forma e de cada elemento. Ora, a p artir desta
nossa reflexão, podemos estabelecer uma certa analogia
concebida nestes termos: aquilo que Deus faz no concer­
nente a toda a natureza, mutatis mutandis, a alma fá-lo no
concernente ao corpo e seus membros: ela aciona e põe
em movimento cada um deles, de acordo com a energia
intrínseca de cada um.
Nesta altura da nossa reflexão podemos, pois, interro­
gar-nos acerca do motivo pelo qual os homens teóforos
tanto dizem que o ardor e o desejo são potências próprias
da carne, como dizem que são potências próprias da alma.
Uma leitura superficial destas palavras poderia levar-nos a
pensar que nelas há contradição. Ora, todos aqueles que
conhecem com rigor o universo de pensamento desses
homens teóforos, sabem perfeitamente que uma tal con­
tradição não existe. Tanto uma afirmação como a outra
testemunha a verdade, se corretamente compreendida no
seu contexto. Com efeito, de um modo surpreendente-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 653

mente elevado, corpo e alma são ambos trazidos à existên­


cia de uma forma tal que deles se pode dizer que coexis­
tem. A alma, logo desde o seu início, encontra-se num
estado de perfeição; pelo contrário, o corpo é imperfeito na
medida em que, para se desenvolver e ter existência pró­
pria, precisa de se alimentar. A alma, em virtude de ter sido
criada entidade deiforme e intelectiva, possui um poder
intrínseco não apenas ao nível do desejo mas também no
concernente à capacidade de reagir, o que a leva a mani­
festar coragem, decisão, temperança, prudência, amor
divino. Efetivamente, nem o desnorte, nem a insensatez,
nem o ódio, nem o desejo tresloucado, nada disso foi cria­
do j untamente com a alma. Mas podemos até ir mais
longe com esta nossa afirmação: até mesmo o corpo, nas
suas origens, não veio a este mundo marcado por nenhu­
ma dessas coisas. Pelo contrário! O corpo, ao ser criado,
estava isento de corrupção e livre dos humores de onde
provêm desejos insensatos e cóleras desabridas. Mas, na
sequência da queda, começaram a gerar-se nele desejos in­
controlados e perversões as mais variadas, pelo que se
tornou refém dos mais baixos instintos geradores de uma
degradante corrupção e de uma maciça materialidade,
tanto uma como a outra reveladora de um comporta­
mento animal. Por esse motivo, quando é o corpo que
domina a situação desenvolve uma forte oposição à von­
tade da alma, servindo-se para isso quer do ardor incenti­
vado quer do desej o levado ao rubro. Pelo contrário,
quando ocorre a submissão do corpo mortal à mente pura,
tudo passa a ser diferente: ele, corpo, passa a apoiar a alma,
tornando-se assim um artesão do que é bom e j usto. Na
verdade, quando determinadas características degradantes,
que nas origens não pertenciam ao corpo (só posterior­
mente nele se infiltraram) começaram a entrelaçar-se com
654 PEQUENA FILOCALIA

a alma, o homem tornou-se semelhante aos animais, dado


encontrar-se então, necessariamente, submetido à lei do
pecado. E desse modo, de ser dotado de razão tornou-se
animal, e de homem tornou-se fera.

82. Quando Deus, mediante o sopro, criou a alma dei­


forme, dotou-a de inteligência, de inspiração vivificante, de
energia amorosa, sem ter infundido nela nem cólera, nem
um qualquer desejo animal. Analogamente, quando criou
o corpo, não insuflou nele nem o ardor nem o desejo in­
sensato. Foi só depois, na sequência da transgressão, que
lhe foi instilado o que é mortal, corruptível, bestial. E, des­
graçadamente, a isso se tornou ele semelhante. Com efeito,
o corpo, embora criado suscetível de corrupção, não foi
criado corrompido. Os teólogos sublinham isso mesmo, e
não se cansam de nos advertir acerca disso. E é esse corpo
assim criado que um dia, j untamente com a alma, ressus­
citará. Ambos - a alma e o corpo - tornaram-se naquilo
em que não se deviam ter tornado: corruptíveis. E desse
modo iniciaram uma história que nunca devia ter tido
início. Corpo e alma, amalgamados pela lei natural da in­
terpenetração e da permuta, foram sendo marcados por
muita coisa má. A alma, essa, foi marcada pelas paixões, ou
antes, pelos demónios. O corpo, esse, foi submetido a um
processo que o tornou semelhante aos animais destituídos
de razão. Ora, de um tão infeliz processo resultaram-lhe
duas coisas: ter sido marcado por aquilo que é próprio de
uma tão lamentável semelhança; ter ficado, como conse­
q uência, submetido ao império da corrupção. E desse
modo, nessa desgraçada história, o poderio de cada um
reduzido a um só poderio deu como resultado a constitui­
ção de um único animal que, levado pelo ardor e pelo de­
sej o, perdeu a razão, obliterou a inteligência, acolheu a
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 655

intemperança, deu força à insensatez. E foi assim, segundo


a Escritura, assimilado às bestas, parecendo-se com elas de
múltiplas e variadas maneiras.

83. O fundamento (e fonte) das virtudes reside, de um


modo particular, numa vontade esclarecida, isto é, numa
vontade não cativa e aberta à vida autêntica. Ora, isso im­
plica a ânsia de viver não apenas o que é belo, mas também
o que é bom. Beleza e bondade são, assim, caracterizantes
de uma vida virtuosa. E não pode deixar de ser assim, pois
Deus é a causa e a fonte de todo o bem. É Ele que, sendo
o que é, faz com que vivamos uma fé esclarecida, isto é,
uma fé que se fundamenta na pedra única que é Cristo, o
princípio de todas as virtudes. Nessa pedra estamos funda­
dos, pois é em Cristo que edificamos todo o bem. Ele é,
com efeito, a pedra angular (principal pedra de esquina) e,
por conseguinte, nele nos fundamos para viver uma vida
em que Ele nos dê a ver, no quotidiano, a beleza de Deus,
e possamos assim estar disponíveis para a prática do bem.
Ele é, portanto, a pedra preciosa procurada pelo monge
que vive o que o hesicasmo tem de mais profundo. Trata­
se, na verdade, de uma pedra preciosa cuj a beleza e valor
transcendem todo o imaginável. E transcendem-no de tal
modo que procurá-la supõe desde logo o desej o de a
adquirir, motivo pelo qual pomos à venda tudo o que pos­
suímos (sobretudo as vontades pessoais) para entrarmos
na sua posse. E cada um poderá assim descobrir que, ao
trilhar o caminho da obediência, é alegremente que se
entrega à observância dos mandamentos: com efeito, uma
tal observância deixa de ser uma pesada carga para se
transformar numa prática j ubilosa.

84.Entre as virtudes regista-se, na pluralidade com que


se dão a ver, uma certa igualdade. Podemos até dizer que
656 PEQUENA FILOCALIA

conj untamente - não obstante a sua diversidade - conver­


gem numa só, contribuindo todas elas p ara definir e
formar essa mesma e única virtude. Pode-se também falar
numa certa hierarquia entre elas: há, de facto, virtudes que
são mais importantes do que outras, havendo até algumas
que, de certo modo, abarcam o campo de outras, acabando
por contê-las. Sej am disso exemplos virtudes tão impor­
tantes como estas: o amor a Deus, a humildade, a perseve­
rança inquebrantável. É até sabido que desta última disse
o S enhor: « p ela vossa perseverança salvareis as vossas
almas» (Lc 2 1 , 1 9) . Notai que Ele, o Senhor, não disse: pelo
vosso jej um, ou pela vossa vigília. Não, não foi desse modo
que Ele falou: o que verdadeiramente conta nas suas pala­
vras é a perseverança. Permito-me, pois, sublinhar o que
verdadeiramente está aqui em j ogo: trata-se da perseve­
rança que vem de Deus, que é a rainha das virtudes, a fun­
damentação das ações fortes. É ela que é a paz no meio do
combate, a calmaria no meio da tempestade, a base sólida
que fundamenta a prática daqueles que a possuem. Nada,
absolutamente nada - sejam armas, sej am exércitos, sej am
agressões demoníacas, sej a a falange tenebrosa dos adver­
sários - nada poderá perturbar aquele que a possui, aquele
que é um resistente-perseverante em Cristo Jesus.

85. Não obstante se gerarem umas às outras, as virtudes


(com exceção das divinas) têm a sua origem nas três po­
tências da alma. No que concerne às quatro virtudes car­
dinais (a prudência, a coragem, a temperança, a j ustiça,
progenitoras de todas as outras virtudes) a sua matriz é a
S abedoria divina, inspiradora daqueles que atingiram o
estado da oração mística. Ela não age da mesma maneira
em todos os orantes, mas em cada um em particular, como
quer e no tempo em que quer. Num, age como luz;
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 657

noutro, como força penetrante; noutro, como inspiração


contínua; noutro, como poder santificador e purificador;
noutro ainda, como rocio de requintada pureza, encanto e
frescura, capaz de orvalhar as paixões no seu ardor. Assim,
pois, em cada um que atinge um determinado estado de
perfeição, ela infunde profundamente as virtudes. Mas não
o faz do mesmo modo, pois cada um é diferente. S endo
S ab edoria infinita, trata com cada um do modo mais
apropriado.

86. Por si só, a prática das virtudes é insuficiente para


proporcionar à alma a força perfeita de que ela necessita
para se realizar a si mesma. É indispensável que uma tal
prática, para ser aquilo que dela se espera, sej a assistida
pela graça divina. Com efeito, cada uma das virtudes
possui um carisma próprio, uma energia particular, uma
q ualidade única, de tal modo que pode atrair a si até
mesmo os que intentam repudiá-la, levando-os a comun­
gar com ela, mediante a prática benfazej a do bem. E quan­
do uma virtude nos é verdadeiramente infundida, pode­
mos ficar seguros de que ela não se desintegrará: muito
pelo contrário, resistirá à usura do tempo, numa perma­
nência fiel de si a si mesma. Efetivamente, as virtudes, na
medida em que verdadeiramente o são, têm a habitá-las
um poder vivificante, isto é, a graça do Espírito divino, que
leva o homem virtuoso a agir como tal. Ora, se a graça falta
é a morte das virtudes, no seu conj unto, que inevitavel­
mente ocorre. Há, pois, um equívoco em que podem cair
aqueles que pensam terem sido as suas virtudes uma con­
quista sua. Ora, um tal equívoco tem as suas consequên­
cias : aqueles que o alimentam acabam por descobrir
(amargamente descobrir) que afinal de contas as virtudes
658 PEQUENA FILOCALIA

que j ulgam possuir são apenas sombras e imagens do


bem, e não figuras da verdade.

87. Quatro são as virtudes cardeais: a coragem, a pru­


dência, a temperança, a j ustiça. Além dessas há oito que,
ou por excesso ou por defeito, seguem essas de perto, e
que são por nós vistas como males, não obstante haver ho­
mens mundanos que vêm nelas virtudes. São elas: em rela­
ção à coragem, a audácia e a timidez; em relação à prudên­
cia, a malícia e a ignorância; em relação à temperança, a
licenciosidade e a indolência; em relação à j ustiça, a domi­
nação e a submissão (isto é, a afronta sofrida) . Efetivamen­
te, as virtudes médias são não apenas as virtudes cardeais e
naturais, superiores ao excesso e ao defeito, mas também
as virtudes ativas, umas agindo a partir de uma decisão
guiada pela retidão do pensamento, as outras agindo per­
versa e presunçosamente. Que as virtudes médias sejam as
virtudes próprias do universo da retidão, é uma coisa con­
firmada e testemunhada pela Escritura: «empenha-te em
guardar os caminhos da justiça, em prosseguir nos cami­
nhos retos do bem» (Pr 2 , 9) .
Todas as virtudes têm o seu berço na alma, naquela
parte matricial em que ela manifesta ser detentora dos seus
três poderes. Ora, se partirmos do princípio de que as
quatro virtudes cardeais são a fundamentação (ou antes, é
Cristo que o é!) das outras, então as virtudes naturais são
purificadas pelas ativas, e as divinas e sobrenaturais são
outorgadas pelo Espírito divino, essa fonte inesgotável de
bondade.

88. Entre as virtudes umas são ativas, outras naturais,


outras divinas (estas últimas são assim chamadas por
serem as virtudes do Espírito) . As ativas são as da decisão,
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 659

isto é, as que resultam de uma escolha que supõe uma


tomada de posição; as naturais são as da nossa condição
humana, isto é, as que foram infundidas em nós quando
fomos formados; as divinas são os frutos da graça suscita­
dos em nós pelo Espírito.

89. Assim como é matriz das virtudes, a alma é-o tam­


bém das paixões. É óbvio, porém, que a umas ela dá à luz
segundo a natureza, às outras, segundo o que é do domí­
nio da contranatura. Tanto o bem como o mal, gerados na
alma, têm como causa o modo como se manifesta a pulsão
da vontade. Ela é uma espécie de central de onde partem
os impulsos, ou então de fiel da balança que age de acordo
com a intensidade do impulso, ou com a direção de onde
ele provém. Subjacente às duas energias - tanto a que fun­
ciona como fundamentação do bem como a do mal - está
a intenção, pois é ela que reconduz a si tanto uma como a
outra, não obstante ser diferente o modo como cada uma
delas se processa: uma em sintonia com o ponto de par­
tida, a outra mediante a livre pulsão da vontade.

90. A Escritura chama "donzelas" às virtudes, pois há


uma íntima conexão entre elas e a alma (cf. Ct 1 ,3) . É em vir­
tude dessa conexão que somos levados a olhá-las - a elas e
à alma - como se formassem um só corpo e um só espí­
rito. A beleza da donzela, na sua pureza, é um profundo
símbolo do amor, e as virgens evocadas surgem, na sua sa­
cralidade, como um testemunho forte de uma purificação
interior e exterior. É, com efeito, próprio da graça divina
levar-nos a traduzir em atos o que é transcendentalmente
divino, concretizando desse modo (estou a pensar parti­
cularmente naqueles que são dotados dessa aptidão)
aquilo cuj a riqueza se manifesta exuberante na sua plura-
660 PEQUENA FILOCALIA

lidade. Com efeito, aquilo que à partida julgávamos unidi­


mensional dá-se-nos a ver, surpreendentemente, na pu­
j ança da sua diversidade.

91 . Entre as oito paixões que podemos considerar prin­


cipais, há três cuj a triste importância não pode ser igno­
rada: a glutonaria, a avareza, a vanglória. As cinco restan­
tes, que se lhes subordinam, são: a impudicícia, a cólera, a
tristeza, a acédia, o orgulho. Analogamente, entre as virtu­
des que se lhes opõem, há três englobantes: a pobreza, a
temperança, a humildade. E com elas as virtudes que se
lhes seguem: a pureza, a doçura, a alegria, a coragem, o
altruísmo, e todas as outras com essas em sintonia. Como
é óbvio, emerge de tudo isto a necessidade de uma apren­
dizagem: sem ela não nos poderemos orientar neste dédalo
das virtudes, cuj o conhecimento nos é necessário para
compreender, em relação a cada uma, o seu poder, a sua
ação, o seu odor. E a mesma necessidade se pode dizer de
cada vício. Ora, a concretização de um tal desiderato, isto
é, de uma tal aprendizagem, não é coisa que nos seja ofe­
recida de mão beij ada, pois exige que cada um se esforce
com denodo e possa assim experienciar a beleza do que
procura nos atos que pratica e nas palavras que articula.
D ito de outro modo: é a nossa vida inteira que aqui se
joga, o que supõe assumirmos a nossa responsabilidade. E
de uma coisa poderá estar seguro todo aquele que assim
se empenha: o carisma da ciência, a capacidade do discer­
nimento, a firmeza da decisão, tudo isso são coisas que lhe
serão outorgadas p elo Espírito divino, que é sempre o
Espírito que cria e recria.

92.Entre as virtudes que nos habitam há umas que são


naturalmente ativas, e há as outras que, sendo passivas, são
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 661

por nós ativadas. As primeiras operam de vários modos e


em diferentes circunstâncias : em nós e fora de nós ; no
tempo apropriado; quando querem; durante o tempo que
querem; do modo que querem. As segundas, para opera­
rem, necessitam ser por nós ativadas, o que implica uma
decisão nossa, em sintonia com o nosso estado moral. Mas
enquanto elas operam, graças à essência própria de cada
uma, nós operamos figuradamente, como resultado do
modo como habitamos o mundo e como vivemos a vida.
Ora, ao tomarmos consciência de que as coisas se passam
desse modo, facilmente compreenderemos a importância
e o alcance do nosso testemunho na vida q uotidiana.
Somos assim estimulados a viver de tal modo que, ao agir­
mos, a espessura da nossa ação, simbolicamente figurativa,
possa corresponder às figuras originais do além. Com
efeito, é pequeno, muito pequeno, o número daqueles que
comungam já, no aqui e agora, na beleza do inteligível que
só mais tarde se nos revelará, na sua plenitude e incorrup­
tibilidade, no mundo futuro. Ora, paralelamente a isso, e
neste tempo presente, mais do que as virtudes em si
mesmas, importa-nos sobretudo os modos como as ativa­
mos, como elas se refletem em nós, como respondemos às
exigências que daí emanam e que, incontornavelmente,
são desafios para a vida ascética que levamos.

93. Segundo o apóstolo Paulo, celebrar o mistério do


Evangelho implica comungar na iluminação outorgada
por Cristo e, a partir daí, na força do Espírito divino, trans­
miti-la aos outros (cf. Rm 1 5 , 1 6) . Todo aquele que experien­
cia uma tal iluminação sente que os olhos se lhe abrem e
que é grande a sua responsabilidade como anunciador da
Palavra, na tarefa de lançar a semente divina no campo que
é o da alma daqueles que o escutam. E acerca disto pode-
662 PEQUENA FILOCALIA

mos ser por ele exortados, se com atenção e empenho o


escutarmos: «que a vossa palavra sej a adornada com a
graça da bondade divina, a fim de a comunicardes àqueles
que escutam com fé» (Cl 4,6) . E quando evoca aqueles que
ensinam e aqueles que são ensinados, bem como os culti­
vadores e os campos, sublinha de um modo sábio que uns
são como lavradores e semeadores da Palavra divina, en­
quanto os outros são como terra virtuosa, rica, fértil, fe­
cunda (cf. 1 Cor 3 , 9) . Ora há em tudo isto, como é óbvio, um
mistério que não é outro senão o da Palavra divina, que
cria e recria todas as coisas. Por conseguinte, celebrá-la
com uma fé íntegra implica não perdermos de vista duas
coisas: primeiro, e antes de mais nada, estarmos atentos à
energia do divino que irrompe nas nossas vidas tantas
vezes de um modo inesperado: impõe-se-nos saber
acolhê-la numa atitude de ação de graças ; de seguida,
fazermos tudo o que estiver ao nosso alcance para levar­
mos aos outros o conhecimento desses bens inefáveis, que
são dons do amor divino. É esse um imperativo a que não
podemos furtar-nos!

94. A Palavra que proclamamos (ou melhor: que, pela


graça do S enhor, nos é dado proclamar) tem em vista a
edificação das pessoas e das comunidades, nomeadamente
na forma de ensino. Ora, quando nos empenhamos na sua
proclamação tomamos consciência de que se trata de uma
Palavra marcada por uma pluralidade de aspetos, quer no
concernente à sua substância quer no que toca à sua
transmissão. Esta, por exemplo, processa-se a partir de
quatro pontos fundamentais cuj a observância se impõe
com a força que lhe é própria: um desses pontos é o indis­
pensável estudo ; um outro, a incontornável leitura; um
outro, a inevitável ação; e, finalmente, o mais importante
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 663

de todos, a graça divina, sem a qual nada de autêntico se


pode edificar. Com efeito, não percamos isto de vista: a Pa­
lavra que nos é dado proclamar é ela mesma graça divina,
sem a qual tudo o mais no trabalho da edificação, por mais
que nos esforcemos, não passa de uma pura ilusão.
Tal como a água é, por natureza, una (embora solos
diferentes possam conferir-lhe sabores diferentes, fazendo
dela uma água que pode ser amarga, ou doce, ou salobra,
ou ácida) assim também, quando se trata do estado moral
de cada homem, a palavra que dele provém transporta
consigo uma energia própria, passando por mutações mais
ou menos acentuadas. Bom seria que de um tal estado
moral brotassem virtualidades capazes de fazer novas
coisas antigas.

95. A Palavra que, pela misericórdia divina, nos é dado


anunciar (da qual temos estado a falar) é para ser gostosa­
mente saboreada, como excelsa iguaria que é. Destina-se
aos seres dotados de razão, os únicos que verdadeiramente
a podem usufruir na sua insondável riqueza, uma riqueza
de que a epifania tem os contornos do que é plural. É
assim, como plural, que ela se dá a ver à alma de todo
aquele que a experiencia. Com efeito, ela é a Palavra que
define as nossas palavras, marcando assim a nossa alma e
ajudando-nos a beber na fonte da ciência. E não se trata
de uma ciência qualquer, pois o seu âmbito é o das pro­
fundezas da vida humana. Habitarmos esse mundo impli­
ca sermos instruídos na arte de viver a verdadeira vida, a
única que genuinamente nos dessedenta. Eis alguns traços
caracterizantes dessa vida: é nutrida pela leitura; oferece­
-nos uma água que salta para a vida eterna; fortalece-nos
na ação do quotidiano; leva-nos a descobrir o encanta­
mento divino do mundo. Assim pois, na diversidade das
664 PEQUENA FILOCALIA

nossas circunstâncias, em cada caso, é o inefável da graça


divina que se manifesta. E manifesta-se de tal modo que a
alma rej ubila e o rosto resplandece (cf. Sl 1 03 , 1 04) .

96. E note-se: cada alma que experiencia e sente tudo


isso em si mesma (como vida própria) sente-o também
quando é de outras almas que se trata. Isto é, uma tal alma
não vive ensimesmada, pois o amor e a fé que a habitam
faz com que sej am também suas as alegrias das outras. A
graça divina leva-a a viver conscientemente a fé e o amor, e
isso de tal modo que, quando escuta, pela fé escuta, e
quando ensina, pela fé ensina. Por conseguinte, sendo esse
o espírito que a anima, quando discorre sobre as virtudes
manifesta estar nos antípodas da vanglória e da vaidade.
Por conseguinte, vivendo assim sem j actância, dela se pode
dizer o seguinte: a palavra proveniente da instrução é por
ela acolhida como se se tratasse de acolher o pedagogo; a
palavra que tem a sua fonte na leitura encontra nela uma
ouvinte que a escuta como se se tratasse de escutar um sa­
ge; a palavra que decorre da ação, encontra nela uma des­
tinatária que aceita a mensagem como se se tratasse de
uma linguagem interior ou da mais doce das vestes de
bodas; e, por fim, quando se trata da palavra refulgente do
Espírito, é como se se tratasse da palavra nupcial que uni­
fica e comunica um j úbilo único.
Com efeito, a Palavra que sai da boca de Deus encontra
reflexo e expressão nas palavras que, sob a influência do
Espírito, provêm da boca dos santos. Trata-se, com efeito,
do milagre operado pelo sopro doce do Espírito que in­
funde nas palavras humanas a capacidade de exprimirem
as coisas novas do Reino de Deus. Mas nem todos mos­
tram a disponibilidade e a abertura necessárias p ara o
acolhimento dessas coisas : um tal acolhimento supõe,
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 665

com efeito, uma dignidade que não é apanágio de todos.


Ora, para os seres dotados de razão, a Palavra é também
um banquete a saborear, uma efusão espiritual que se abre
para uma outra coisa. É sabido, porém, que são em peque­
no número aqueles que verdadeiramente experienciam e
sentem o extraordinário j úbilo que se vive com as coisas
do Espírito. Os mais numerosos são aqueles para quem as
figuras das palavras espirituais não passam de figuras dis­
tantes, relativas a um mundo desconhecido a que se é
alheio, com o que revelam ser extremamente limitada (po­
deríamos mesmo dizer medíocre) a sua formação. Para
eles, a Palavra é uma Palavra distante, pois ainda não
comungam nela, como verdadeiro pão do mundo futuro.
E Deus é, assim, um Deus não experienciado nem sentido.
Ora, o pão celeste de que aqui se trata é para ser saborea­
do: Deus no-lo dá em Jesus, que se entregou ao mundo
como pão da vida, p ara que aqueles que o saboreiam
possam tornar-se dignos disso e experienciar e viver desse
modo o j úbilo celeste. E tenhamos isto bem presente em
nós: trata-se de um pão que não está submetido à lei das
ofertas sacrificiais, pois não é destrutível, nem perecível,
nem oferta sacrificial.

97. Sem perceção espiritual é-nos impossível experien­


ciar e sentir o gozo do que é divino. Suponhamos um ho­
mem que, em virtude de ter vivido de um modo infeliz,
embotou os seus sentidos, tendo-os privado da capacidade
sensitiva no contacto com as coisas: já não pode nem ver,
nem ouvir, nem sentir, reduzido como está à inércia ou,
antes, a uma meia morte. Ora, analogamente, aquele que,
refém de uma vida passional, esbanj a e destrói os poderes
naturais da alma, faz desta uma infeliz, anestesiada como
fica para poder experimentar a energia do Espírito divino e
666 PEQUENA FILOCALIA

viver a comunhão dos mistérios divinos. Um homem


desses, portanto, não vê, não ouve, não sente, isto é, espiri­
tualmente está morto. Cristo não vive nele, pois nem os
seus gestos, nem os seus atos, nem as suas palavras, se
processam em Cristo. Espiritualmente falando, o seu es­
tado é o de uma indigência atroz.

98. Os poderes da alma são extremamente ricos e dota­


dos de uma pluralidade de sentidos cuj a energia é igual
(para não dizer única) em todos eles, p articularmente
q uando são saudáveis. É, efetivamente, mediante esses
sentidos que tais poderes vivem e operam, bem como
graças à sua operacionalidade que o Espírito da vida se
lhes une. Ora, a verdadeira fraqueza do homem consiste
em ficar inteiramente prisioneiro da enfermidade resul­
tante das paixões, qual enfermo deitado numa cama da en­
fermaria da negligência. Entre os sentidos, uns são parti­
cularmente dotados da capacidade de intuir o mundo
sensitivo, outros de intuir o mundo inteligível, particular­
mente quando estão incólumes às investidas satânicas
contra a lei da inteligência e do Espírito. Ora, quando, me­
diante a ação do Espírito divino, uns e outros se unem
numa verdadeira unidade (não constituindo senão uma só
forma) o seu discernimento aumenta em relação ao mun­
do circundante, intuindo nas coisas o que é divino e o que
é humano. Esse discernimento leva-os, assim, não só a
contemplarem claramente as causas das coisas, como tam­
bém (na medida do possível) a iniciarem-se lucidamente
na fonte de tudo - a Trindade.

99. Ao homem que procura o hesicasmo impõe-se-lhe,


antes de mais nada, ter como fundamento da edificação da
obra estas cinco virtudes: o silêncio, a temperança, a vigi-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 667

lância, a humildade, a perseverança. Uma vez esse funda­


mento estabelecido, seguem-se-lhe as três práticas que
agradam a Deus: a salmodia, a oração, a leitura. A um ho­
mem corporalmente fraco pode-se-lhe pedir uma ativi­
dade manual desde que compatível com o seu estado.
Com efeito, as virtudes que enunciámos revestem-se de
uma particular importância, principalmente por dois moti­
vos: por conterem em si todas as outras, e por serem dota­
das da capacidade de se unirem entre si.
O hesicasta, logo à hora primeira, ao despertar da au­
rora, entrega-se consagradamente à memória de D eus,
fazendo-o através da oração, na vivência do hesicasmo do
coração, em incessante prece; à hora segunda, lê; à tercei­
ra, salmodia; à quarta, ora; à quinta, lê; à sexta, salmodia; à
sétima, ora; à oitava, lê; à nona, salmodia; à décima, come;
à décima primeira, dorme (se disso necessitar) ; à décima
segunda, salmodia as vésperas. Digamo-lo convictamente:
viver assim o decurso do dia agrada a Deus.

100. Tal como as abelhas recolhem da pluralidade das


flores o precioso néctar para fabricarem o mel, assim tam­
bém nós, da pluralidade das virtudes devemos extrair o
que em cada uma delas há de melhor, e com isso fabricar
um grande favo, o favo das virtudes, pois é destas que
provém o mel da sabedoria. E quanto não será o j úbilo das
almas que se deleitam com ele!

101. E do tempo da noite que agradável tempo podemos


nós também fazer, se a ele nos dedicarmos como convém!
Senão vej amos. A vigília noturna reveste-se de três moda­
lidades: a dos noviços, a dos intermédios, a dos perfeitos. A
primeira modalidade consiste nisto : dormir a metade da
noite e velar a outra metade (ou desde o começo da noite
668 PEQUENA FILOCALIA

até à meia-noite, ou desde a meia-noite até à aurora) . A se­


gunda modalidade é assim: velar, a partir do começo da
noite, uma hora ou duas; e, em seguida, dormir quatro
horas; e levantar-se para as matinas, salmodiar e orar seis
horas até ao início da aurora, e então cantar a primeira
hora, e de seguida, sentado, entregar-se ao hesicasmo de
acordo com o modo de que já falámos. Então, uma vez aí
chegado, pode-se seguir um destes dois caminhos : ou
observar, durante as horas, a regra do trabalho, ou orar
numa perseverança ditada pelo j úbilo do momento, prática
que é característica de uma vida assim assumida. A terceira
modalidade é a estação de pé e a vigília toda a noite.

1 02. I mpõe-se-nos falar igualmente da alimentação.


Meio quilo de pão é suficiente para aquele que trava o
combate do hesicasmo. Beber dois copos de vinho puro e
três de água. Além disso, contentar-se com os alimentos de
que se dispõe, sem nunca chegar a satisfazer totalmente o
que a natureza pede no seu desej o, isto é, usar sobriamen­
te tudo o que a Providência dá. E eis um preceito excelente
e conciso que deve ser seguido por todos aqueles que
estão empenhados em viver disciplinadamente: observar
fielmente o j ej um, a vigília, a oração. São as três obras que,
sendo estruturantes das virtudes, proporcionam a todos o
mais sólido amparo.

103.O hesicasmo, devidamente experienciado e sentido,


implica quatro coisas que se vivem com todo o coração,
com todas as forças, com todo o poder: fé, perseverança,
amor, esperança. Com efeito, aquele que verdadeiramente
crê, mesmo que durante esta vida não tenha atingido, na
plenitude, tudo aquilo que procurava, na hora de deixar
este mundo será indubitavelmente cheio do fruto da fé
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 669

que viveu e do combate que travou, e verá a liberdade que


é Jesus Cristo, o redentor e salvador das almas, o Verbo
divino e humano. Quanto àquele que não crê, será j ulgado
ao deixar este mundo, ou antes, no dizer do Senhor, está já
julgado (cf. Jo 3 , 1 8) . Na verdade, conforme está dito, aquele
que leva uma vida de rendição aos prazeres, e que, desse
modo, vive a ilusão de que vive, não faz mais do que pro­
curar «a glória humana e não a outra glória, a que vem de
Deus» (Jo 5,44) . E com isso manifesta não ser verdadeira­
mente um crente, mesmo se, com as suas muitas palavras,
parece crer. Ora um tal homem, sem disso ter consciência,
é o engano de si mesmo. E na hora devida ouvirá as pala­
vras : «porque não me recebeste no teu coração, mas me
rej eitaste, Eu também te rej eitarei» (Ez S , 1 1 ) . É preciso, pois,
que o fiel leve uma vida marcada pela integridade daquilo
em que crê. E um homem desses, assim crente, vive natu­
ralmente a esperança, crê na verdade de D eus testemu­
nhada nas Escrituras, e de um modo digno confessa a sua
própria fraqueza. A não ser assim, incorrerá inevitavel­
mente no j usto julgamento divino.

1 0 4 . Nada enriquece tanto o coração e confere tanta


humildade à alma como uma vida retirada, longe de tudo,
vivida conscientemente no silêncio profundo. Por outro
lado, e em registo contrastante, nada destroça tanto o es­
tado de hesicasmo (alcançado graças ao poder divino
capaz de o manter livre da perturbação circundante) como
o faz o império das paixões: insolência, glutonaria, tagare­
lice, negligência, vaidade, arrogância (esta última passível
de ser considerada como a rainha das paixões) . Com
efeito, aquele que se deixa levar por essas paixões, cativo da
insensatez e refém do desnorte, desce até ao fundo de um
mundo tenebroso. Contudo, se se levantar, firmemente
670 PEQUENA FILOCALIA

empenhado em recomeçar, animado de fé e de fervor, aca­


bará por encontrar o que procurava, sobretudo se o pro­
curar com humildade. Nessas circunstâncias, impõe-se­
-lhe trilhar o caminho da resistência, pois esta é-lhe tão
necessária como o pão o é para a boca. Para ele, a verdade
das coisas é esta: claudique ele, caindo na negligência, e
criará com isso circunstâncias propícias para que, de novo,
as paixões o acorrentem e o assalto dos mais variados
males lhe sobrevenha. E não apenas isso: passará também
pela experiência de uma descrença devastadora p ara a
alma. E esta, profundamente atingida desse modo, e de­
frontando-se com perturbações e tumultos provocados
pelos demónios, tornar-se-á numa outra cidade de Babi­
lónia, e isso a tal ponto que esta sua última condição será
pior do que a primeira. O estado deplorável resultante da
sua recaída leva-a a emitir j uízos falsos sobre os outros, até
ao ponto de (possuída pela cólera) invetivar aqueles que
procuram o hesicasmo. No desnorte em que cai, faz da sua
língua uma espada pontiaguda de dois gumes para, contra
eles, brandir os mais cortantes vitupérios.

1 0 5 . Quando as águas tumultuosas das paixões, qual


mar ameaçador, invadem o hesicasmo e inundam a alma,
atravessá-las só é possível com a barca vazia e leve da po­
breza total, irmã gémea da temperança. Com efeito, quan­
do, em virtude da intemperança e do amor pelas coisas
materiais e mundanas, as torrenciais paixões encharcam a
terra do coração com a imundície dos pensamentos per­
versos, está lançada a confusão no espírito, a perturbação
na mente, a desordem no corpo. E desse modo, a alma e o
coração tornam-se negligentes, entorpecidos, tenebrosos,
privados, lamentavelmente privados, da sensitividade e dos
sentimentos que lhes eram conaturais.
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 671

1 06.Nada há como o egoísmo - esse nutriente das pai­


xões - tão capaz de tornar vaidosa, negligente, irrefletida, a
alma daqueles que querem obter resultados rápidos e
fáceis. De facto, sempre que ela prefere os prazeres corpó­
reos à vivência trabalhosa das virtudes, (crendo, errada­
mente, que b asta um conhecimento perfunctório p ara
concretizarmos quer a prática da ascese, quer a observân­
cia dos mandamentos) , está a demitir-se do esforço do
hesicasmo e a cair de um modo irremediável num desma­
zelo indolente que nada de bom pode produzir.

1 07. Para aqueles que claudicam perante o imperativo


dos mandamentos, deles se demitindo, prisioneiros de
uma perturbação que os cega, não há melhor remédio que
o de uma rigorosa disciplina, inseparável de uma estrita,
íntegra e fiel obediência em tudo. Incontestavelmente, a
obediência é um remédio possuidor de numerosas virtu­
des, capaz de comunicar a vida àqueles que o tomam. Ela é
uma espada purificadora das cicatrizes resultantes dos feri­
mentos. Todo aquele que, com fé, se decide de um modo
simples por um tal remédio (preferindo-o a uma qualquer
outra coisa) corta desse modo o nó górdio que o mantém
refém do mundo das paixões. E poderá estar certo disto: ao
enveredar por um tal caminho encontrará, mais cedo ou
mais tarde, o bem-aventurado hesicasmo. E ao encontrá­
-lo, j ubilosamente o assumirá sem tergiversar, pois encon­
tra Cristo, do qual se torna imitador e servo.

1 08.Se não trabalharmos o luto, visando o que nele há


de regenerador, o que implica uma perseverança quoti­
diana, tornar-se-á para nós impossível viver o hesicasmo
no que ele tem de vitalmente exigente. Com efeito, o ho­
mem que sabe chorar e meditar antecipadamente não só
672 PEQUENA FILOCALIA

os infortúnios que precedem a morte, mas também os que


se lhe seguem, torna-se num homem apto para viver duas
coisas essenciais quando está em jogo o hesicasmo: a per­
severança e a humildade. Ambas são, com efeito, pilares
fundamentais e estruturantes da vida do hesicasta. Pelo
contrário, o homem que vive a ilusão de que o hesicasmo
pode ser vivido sem ter em conta o que se acaba de dizer, é
um homem que soçobra, vítima da sua presunção, da sua
arrogância, da sua negligência. E, a partir daí, o que o es­
pera é uma vida marcada pela distração, pelos devaneios,
pela vacuidade, tudo coisas com que ele incha a vaidade e
esvazia o coração. Tudo isso vivido numa intemperança
(essa filha da negligência) que amolece o corpo, afrouxa a
alma, endurece a mente. E Jesus oculta-se, subterrado sob
o enxame das ideias e dos pensamentos que usurpam, ma­
lignamente, o que devia ser o essencial lugar da reflexão.

109. O tormento da consciência já agora, nesta vida, ou


na vida futura, nem por todos é experienciado e sentido: é­
-o, de um modo muito particular, por aqueles que faltam
ao amor e desistem da honra. Trata-se de um tormento
cuj a atuação é semelhante à de um carrasco impiedoso
que inflige os castigos mais variados. Manifesta-se sempre
como uma espada afiada capaz de desnudar quer o falso
zelo quer a pseudoautoj ustificação.
Há, pois, que despertar a consciência. Quando isso
acontece, o dito zelo surge à luz do dia expurgado da sua
falsidade, e o ardor duvidoso transformado em entusiasmo
íntegro. E depois de uma tomada de consciência assim, o
combate trava-s e em três frentes : contra os demónios,
contra a nossa natureza, contra a nossa alma. Campo de
batalha onde zelo e entusiasmo têm de se unir de tal modo
que os inimigos do que é belo e bom recuem. E se sairmos
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 673

vencedores - levando de arremetida quer o pecado quer a


carne, submetidos ambos à cidadela da alma - lá, na fron­
teira da coragem, entraremos no Reino de Deus. Mas se,
pelo contrário, a alma se submete a ambos, numa desas­
trosa capitulação, espera-nos um impiedoso tormento,
pois voluntariamente ela se tornou serva dos adversários.
Ao comportar-se desse modo, devastada pelo inimigo,
começa a praticar as coisas mais impróprias, em rutura
com as virtudes, e afastando-se cada vez mais de Deus.

1 1 0 . No universo das paixões há duas que são parti­


cularmente duras e graves. Trata-se da impudicícia e da
acédia que impiedosamente, cada uma delas à sua manei­
ra, oprimem e esgotam a infeliz alma. Regista-se entre
ambas não só uma insidiosa reciprocidade alimentada por
uma perversa conivência, mas também uma tendência
para se unirem entre si. É difícil, muito difícil, travar com
elas um combate de que saiamos vitoriosos, pois unica­
mente pelos nossos esforços, entregues a nós mesmos,
somos impotentes para as dizimar e vencer. Uma delas, a
impudicícia, nutre-se do desej o, e a matéria de que é feita,
refletindo a sua natureza profunda, gera metástases que
atingem tanto a alma como o corpo, pois o prazer que a
caracteriza impregna todos os membros. A outra, a acédia,
que influencia a razão, envolve inteiramente, qual campâ­
nula esterilizante, a alma e a carne, e faz de nós negligen­
tes, lassos, inertes. Ora, tanto uma como a outra é expulsa
(ainda que não completamente erradicada) antes de atin­
girmos a inefável e bem-aventurada impassibilidade: essa
essencial expulsão ocorre quando a alma, invadida pelo
j úbilo, recebe na oração o poder do Espírito S anto que,
mediante o hesicasmo, lhe comunica repouso, força, paz
674 PEQUENA FILOCALIA

profunda. Uma indizível paz que, invadindo todo o corpo,


toma conta do coração.
Ora, atingir essa paz implica (estej amos disso bem
conscientes!) um combate passional. Com efeito, a impu­
dicícia oferece uma resistência maligna: ela comanda,
reina, domina. Ela é o prazer personificado que enlaça os
outros prazeres. E tem uma companheira, a impondera­
ção, que se faz transportar num invencível carro e impele
os príncipes do faraó. É mediante ela que a porta se abre e
as paixões entram, possuídas pelo desígnio de destroçar as
nossas infelizes vidas.

1 1 1 . A oração noética começa quando o poder do Espíri­


to divino se manifesta, purificando a mente, tendo em vista
a celebração dos ritos místicos. Analogamente, o hesi­
casmo começa quando o Espírito cria em nós aquilo que
nós, sem Ele, não conseguiríamos: a vivência de uma ati­
tude grávida da espera da manifestação de D eus. Ora, a
esse estádio inicial segue-se um outro, o intermédio, que
se caracteriza por uma iluminação e uma contemplação
poderosas. O seu final é o êxtase, o arrebatamento da
mente orientada para Deus.

112. A mente dotada da capacidade noética é um santuá­


rio do Espírito, antecipador do gozo futuro que ultrapassa
todo o entendimento. Ela celebra místicamente o sacrifício
do Cordeiro no altar da alma, celebração de que também é
celebrante. Celebra-o na força do Espírito, como antecipa­
ção do futuro de Deus. Contudo, o banquete do Cordeiro
de Deus, lá celebrado, no altar espiritual da alma, não se
reduz a uma mera conceção ou a uma simples participa­
ção: implica tornarmo-nos semelhantes ao Cordeiro, pois
é nele que pomos a nossa esperança, Ele que, como Cor-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 675

deiro de Deus que tira o pecado do mundo, é o proclama­


dor de um presente e o anunciador de um futuro, o futuro
de D eus. Com efeito, se experienciarmos e sentirmos j á
aqui e m baixo a epifania salvífica dos mistérios, também
no século futuro, assim esperamos, usufruiremos da sua
autêntica substância.

113. Todo o orante o sabe, com um saber de experiência


feito: enquanto entre os noviços a oração é como um fogo
de alegria que sobe do coração, entre os perfeitos ela é
como uma luz ativa que derrama à sua volta aromas cuja
fragância nos delicia. Tanta coisa se pode dizer da oração !
Aqui deixamos traços dessa sua inexpugnável riqueza: ela
é a presença hoj e da pregação dos Apóstolos ontem; um
gesto de fé; a fé em si mesma; o fundamento do que se es­
pera; o amor ativo; o impulso angélico; o poder corporal
dos incorpóreos; o gesto e o j úbilo dos que ignoram se
estão no corpo ou fora do corpo; o Evangelho de Deus; a
segurança do coração; a esperança da salvação; um sinal
de pureza; um símbolo de santidade; o conhecimento de
Deus; a manifestação do batismo; a purificação ritual; as
armas do Espírito Santo; a exaltação de Jesus; o deleite da
alma; a misericórdia de Deus; um sinal de reconciliação; o
selo de Cristo; um raio do sol espiritual; a estrela matinal
do coração; a confirmação da fé; um sinal da reconciliação
divina; a graça de Deus; a sabedoria de Deus (ou antes: a
origem da sabedoria em si) ; a revelação de Deus; a obra
dos monges; a vida dos hesicastas; a fonte do hesicasmo; a
expressão da vida angélica. E que mais dizer? Deus, que
cumpre tudo em todos, é oração: com efeito, uma única é
a energia do Pai, do Filho, do Espírito Santo, Deus único
que cumpre todas as coisas em Cristo Jesus.
676 PEQUENA FILOCALIA

114.Se Moisés não tivesse recebido de Deus a vara do­


tada do poder de realizar prodígios, não se teria tornado
um deus para o Faraó, nem um azorrague para ele mesmo
e para o Egito (cf. Ex 7, 1 ) . Mutatis mutandis, se a mente não
for bafej ada com o poder da oração, ver-se-á reduzida à
impotência e, por conseguinte, incapaz de travar o com­
bate que se lhe impõe travar contra os pecados e os pode­
res inimigos, esses artesãos do nada.

115. Os homens cuj as palavras e ações têm a marca da


arrogância vivem permanentemente de costas voltadas
para a humildade, cavando assim o fosso da inimizade.
Ora, homens desses são semelhantes aos que constroem
no inverno ou edificam sem argamassa. Mostram, com o
seu comportamento, ser artesãos do nada. São, na verdade,
muito poucos os que, de um modo íntegro, vivem natural­
mente e naturalmente experienciam a humildade. Os
outros, os que não a vivem, mas dela se põem a falar, asse­
melham-se aos que pretendem medir o abismo ou aos que
se empenham em endireitar a sombra de uma vara torta.
Com efeito, a vacuidade do seu discurso é assustadora!
Pela nossa parte, cegos como somos, só como crianças
podemos imaginar um pouco essa grande luz, e afirmar
isto: a humildade não fala dela mesma nem se forma a si
própria. Efetivamente, o homem humilde não o é por ter
exercido violência sobre si mesmo com o fim de pensar
humildemente, agir humildemente, falar humildemente.
Não. Nem se aproveita de circunstâncias propícias para
mostrar que é humilde: muito pelo contrário, quando ocor­
rem circunstâncias dessas lucidamente resiste à tentação do
exibicionismo, pois nunca se esquece de que a humildade é,
antes de mais nada, uma graça e um dom do alto. Não é
aquele que de si mesmo diz ser humilde que o é.
SÃO GREGÓRIO, O SJNAÍTA 677

Os Pais falam de dois tipos de humildade, isto é, de dois


modos de a viver. Um desses modos consiste em nos con­
siderarmos a nós mesmos abaixo de todos; o outro con­
s iste em atribuirmos a D eus, e não a nós, o que possa
haver de bom nas ações por nós praticadas. Na perspetiva
de uma tal doutrina, podemos dizer que o primeiro modo
é o começo; o segundo, o fim. Aqueles que procuram com
naturalidade uma vida humilde, não perdem de vista três
coisas por eles experienciadas e tidas como essenciais: que,
mais do que todos, são pecadores; que, contranatura, são
ainda mais desprezíveis do que as outras criaturas; que,
ainda mais do que os demónios, são miseráveis, como se
deles fossem escravos.
Por conseguinte, impõe-se-nos p erguntar: rigorosa­
mente falando, que sei eu dos pecados dos homens? Que
tipos de pecados são e quantos são? Ultrapassam os meus
ou equivalem-se? Não percamos isto de vista: é a arrogân­
cia (essa paixão nutrida pela ignorância das coisas e pelo
esquecimento de que somos terra e cinza) que faz de nós
os piores de todos os homens. Ao j ulgarmos assim os
outros constituímo-nos a nós mesmos obj eto de j ulga­
mento. Não somos superiores aos outros: como não seria
eu aquilo que sou, isto é, uma criatura pecadora, imper­
feita, vivendo como vivo contra a minha própria natureza,
e réu de incontáveis inj ustiças ? ! Com efeito, até mesmo os
animais domésticos e os outros, os selvagens, são mais
puros do que eu, o pecador. Motivo pelo qual estou abaixo
de todos, como alguém que já desceu ao inferno, onde j azo
antes mesmo de morrer. Quem é que não sabe, por expe­
riência própria, que é pecador, pior ainda que os demó­
nios, pois deles é escravo, com eles encerrado na prisão das
trevas? ! Efetivamente, todo o homem que está submetido
ao domínio dos demónios torna-se pior ainda do que eles.
678 PEQUENA FILOCALIA

Motivo pelo qual (infeliz de ti!) herdaste j untamente com


eles o abismo do nada. Ouve bem: tu que, mesmo antes da
morte, habitas a terra, o inferno, o abismo, tu que, pecador
e demónio, com as tuas obras más te tens maculado, como
podes tu iludir-te ao p onto de te proclamares j usto? !
Pobre de ti, cão impuro, que vives na superstição fraudu­
lenta e na errância labiríntica! Que destino outro poderás
esperar senão o do fogo tenebroso? !

116. Há uma sabedoria que é outorgada pelo Espírito di­


vino: segundo os teólogos, não é outra senão a que se con­
substancia e toma forma no poder da oração noética, em
si mesma pura e angélica. Ora, um sinal de que atingimos
uma tal oração está no facto de a visão da mente do orante
ficar completamente livre de toda e qualquer representa­
ção ou forma, bem como livre de uma outra coisa, isto é,
livre de si mesma. Com efeito, além de deixar de ver as
coisas de um modo material ela deixa também de se ver a
si mesma desse modo. E quando se trata dos sons, acon­
tece isto: não poucas vezes, e de igual modo, eles são en­
volvidos pela luz que sobrevém e nos circunda. Com
efeito, a mente torna-se então imaterial e luminosa. E , ao
viver e experienciar isso, ela une-se inefavelmente a Deus,
num único Espírito.

Há sete coisas que, sendo incontornáveis, identifi­


1 17.
cam o caminho da humildade que permanece sempre um
dom de Deus. Essas sete coisas, que se unem e se geram
umas às outras, são: o silêncio, o coração humilde, a lin­
guagem humilde, o comportamento humilde, a autocen­
sura, a contrição, a autodepreciação.
O silêncio vivido de um modo consciente é condição
sine qua non para que um coração humilde possa formar-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 679

-se. E de um coração humilde nascem as três qualidades


próprias daqueles que se consideram a si mesmos inferio­
res aos outros: falar humildemente, viver modestamente,
examinar-se criticamente. Ora, essas três qualidades geram
a contrição, vivida no interior de nós mesmos, no meio das
tentações as mais variadas e das provações as mais agres­
tes : é para nosso crescimento pessoal que D eus, na sua
providência, permite que sejamos disciplinados dessa ma­
neira. E , nessas circunstâncias, nem os demónios levarão a
melhor na sua pretensão de nos humilharem. A contrição
ativa induz a alma a sentir-se abaixo de todos e serva de
todos. Ela, com efeito, leva a alma a ver-se como a última
de todas, como dominada por todos. Assim, pois, essas
duas q ualidades de que falamos conduzem ao abaixa­
mento perfeito, que é sempre um dom de D eus e q ue,
como tal, é um poder que Deus nos outorga, síntese per­
feita de todas as virtudes. Atingirmos esse estádio, viver­
mos essa dimensão, leva-nos de um modo consciente e ín­
tegro a atribuir a Deus o que pode haver de bom nas ações
que praticamos.
Por conseguinte, não podemos eludir (pois trata-se de
algo que é incontornável) a tomada de consciência de que
o primeiro fator conducente à humildade é o silêncio.
Com efeito, o silêncio é essencial, pois é a partir dele, silên­
cio fecundo, que a humildade se vive, humildade que é
capaz de gerar as três qualidades do abaixamento. E são
essas três que geram a contrição na sua forma exemplar. E
é a contrição, como qualidade íntegra, que gera a outra, a
sétima, inerente ao abaixamento a que também se chama
abaixamento providencial. E este transporta consigo o ver­
dadeiro abaixamento, que é um dom de Deus. Dom per­
feito e indescritível.
Ora, o primeiro abaixamento ocorre em circunstâncias
680 PEQUENA FILOCALIA

que são o reflexo da nossa vulnerabilidade. Ocorre parti­


cularmente quando nos sentimos abandonados, vencidos,
dominados, reféns das paixões e por elas escravizados, pri­
sioneiros de pensamentos perversos e de espíritos malig­
nos, impotentes para encontrar conforto e ajuda na prática
de boas obras, atirados para a beira do precipício, prestes a
cair no desespero, humilhados em tudo. É em situações de
vida assim que a chamada à contrição ocorre, não para nos
destruir mas para nos salvar, quer da escravidão de uma
vida marcada pela vacuidade quer da tirania dos demónios.
Que implica a contrição em casos desses? Implica, de um
modo muito particular, vivermos na consciência de que ela
é uma forma de humildade, mas não de uma humildade
qualquer: trata-se da humildade providencial através da
qual a outra humildade, a suprema, nos é dada por Deus.
Ela é em si mesma o poder divino que opera em tudo e que
tudo cria. Graças a ela ou, dito de um modo mais rigoroso,
graças à ação do Espírito divino em nós, tornamo-nos ins­
trumentos nas mãos de Deus, para a realização da sua von­
tade e cumprimento das suas maravilhas.

1 1 8 . Em virtude da sedução que sobre nós exercem as


paixões, bem como do desgaste provocado pelas vicissitu­
des com que não poucas vezes temos de nos defrontar, os
elevados estados próprios da santidade tornam-se para
nós, neste tempo presente e aqui neste mundo, pratica­
mente inatingíveis. Destacando-se por uma indizível bem­
-aventurança e por uma extraordinária beatitude, eis
alguns aspetos que os caracterizam: uma contemplação
espiritual da luz divina; uma mente livre de fantasias e de
instabilidade; uma oração permeada pela força do Espírito;
um coração não cativo, de cuj as profundezas emana a
quietude; uma alma ressurreta capaz de se elevar às maio-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 681

res alturas; um universo sublimado e engrandecido pelo


encantamento divino; uma mente possuída pelo êxtase e
levada, na força do Espírito, para além de todas as coisas
sensitivas e sensoriais; uma alma conduzida por D eus e
introduzida num processo angélico em direção ao infinito
e levada até ao mais alto cume.
Ora, há homens que, vivendo as coisas com uma super­
ficialidade terrivelmente empobrecedora, são possuidores
de uma mente que imagina ter já atingido esses estados
antes do tempo. O que é grave, pois acabam por perder até
mesmo o pequeno e incipiente estado que lhes tinha sido
outorgado por Deus. A mente de homens desses, cativa de
uma perigosa ilusão, se dela não se libertar, acaba mal:
longe da realidade das coisas, como morta.
Por conseguinte, devemos com muito discernimento
(um discernimento capaz de ser aquilo que é: discerni­
mento) não forçar as coisas, dar tempo ao tempo, não lan­
çar pela borda fora o que já foi verdadeiramente adquirido,
com o fito de perseguir ilusoriamente outras coisas, e com
a obsessão de as possuir. É que, sendo a mente uma ofi­
cina onde continuamente se forj am ídolos, é-lhe fácil,
muito fácil, pôr-se a congeminar e a reformular o que ela
ainda não atingiu. E que, muitas vezes, bom lhe seria não
atingir. Um homem desses, submetido à vulnerabilidade
dessa sua mente, corre enormes riscos de acabar por ser
privado até mesmo do que já lhe tinha sido dado. Vive
assim uma atroz deceção, e facilmente se torna um sonâm­
bulo e não um hesicasta.

119. Tenhamos sempre presente que a oração na vida do


orante é, j untamente com a fé, uma graça divina. Com
efeito, a oração que opera pelo amor na força outorgada
pelo Espírito mostra desse modo ser ela mesma a verda-
682 PEQUENA FILOCALIA

deira fé, isto é, reflexo da revelação da vida de Jesus. Pode­


mos, portanto, concluir a partir do já dito, o seguinte:
sempre que uma fé não se manifesta desse modo ativa está
a dar sinais de morte.
Não chamemos, pois, crente a um homem que não crê
senão teoricamente. Um homem desses, quando fala da
sua fé, fala de uma coisa que em nada o empenha e que,
como tal, não o leva à observância dos mandamentos.
Trata-se, com efeito, de uma fé não operante, vazia, que
não se traduz em obras. Ora, todos nós sabemos isto mui­
to bem: viver a fé implica manifestá-la de um modo con­
creto e luminoso nas obras, graças à força outorgada pelo
Espírito. É disso que o Apóstolo divino fala, ao sublinhar,
no registo expressivo que é o seu, o aspeto indissociável
entre fé e obras: «mostra-me a tua fé pelas tuas obras, e eu
mostrar-te-ei as minhas obras pela minha fé» (Tg 2 , 1 8) . E aí
temos nós, de um modo claro, em perspetiva apostólica, a
essencial ideia de que não podemos eludir nenhum dos
dois aspetos da questão: é pelas obras exigidas pelos man­
damentos que se manifesta a fé; é pela fé, dom da graça,
que os mandamentos se cumprem e resplandecem. Com
efeito, devemos reconhecer o aspeto insofismável de uma
tal perspetiva: na raiz da observância dos mandamentos
está a fé; ou, dito de outro modo, a fé é a fonte que irriga
uma tal observância, tendo em vista consolidá-la cada vez
mais. Ela, fé, ao interrogar-se a si mesma, vê-se caracteri­
zada por dois aspetos, o da confissão (a fé que verdadeira­
mente o é fala) , e o da graça (ela vê-se a si mesma não
como uma conquista do que é mas sim como um dom da
graça divina) . Sublinhe-se, contudo, isto: não obstante ser
caracterizada por esses dois aspetos, ela é, por natureza,
una e indivisível.
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 683

120. A via breve do crescimento espiritual (via que é si­


multaneamente pequena e grande) tem cinco graus con­
ducentes à perfeição. O primeiro é a renúncia; o segundo,
a submissão; o terceiro, a obediência; o quarto, a humil­
dade; o quinto, o amor de que a essência é o próprio amor
de Deus.
A renúncia levanta do inferno aquele que lá j az, e li­
berta da matéria aquele que dela foi feito refém. A submis­
são funda-se na descoberta de Cristo, e manifesta-se na
decisão de o servir, em sintonia com aquilo que Ele mes­
mo nos diz: «Aquele que me serve segue-me. E onde Eu
estou, lá também estará o meu servidor» (J o 1 2 ,26) . E se per­
guntarmos onde é que Ele está, a resposta é «à direita do
Pai» (cf. Rm 3 ,34) . Motivo pelo qual todo aquele que serve a
Cristo deve estar lá igualmente, vivendo uma comunhão
tão profunda que torne impossível uma qualquer separa­
ção. A obediência, aprofundada mediante a observância
dos mandamentos, constrói uma escala tendo em conta a
diversidade das virtudes e inscreve-a na alma, esforçando­
-se por cumprir as suas várias etapas, como se fossem de­
graus a subir. A humildade envolve, naturalmente e não
artificialmente, todo aquele que deveras aspira às coisas do
alto, e condu-lo em direção ao Céu, inundando-o de amor,
a rainha das virtudes. O amor, pois, conduz-nos a Cristo,
leva-nos à sua presença, liberta-nos.
Por conseguinte, o homem cuja submissão tenha o tim­
bre da autenticidade, ascende j untamente com Cristo aos
lugares celestes.

A via breve conducente ao Reino dos Céus, em con­


121 .
sonância com a escala das virtudes, está assinalada pelo re­
púdio das cinco paixões que se opõem à obediência: a
insubmissão, a polémica, a autosuficiência, a autoj ustifica-
684 PEQUENA FILOCALIA

ção, a arrogância. Trata-se, efetivamente, de paixões pró­


prias do mundo da insurreição rebelde, cujo demónio, seu
chefe, faz reféns aqueles que não se curvam aos seus dita­
mes, animado pelo desej o de os enviar para as profunde­
zas do abismo, lá onde o dragão domina. Caracterizemos
essas cinco paixões, típicas do universo de que o estigma é
a insurreição: a primeira, a insubmissão, é a boca do in­
ferno; a segunda, a polémica, é a sua língua, uma ver­
dadeira espada cortante; a terceira, a autosuficiência,
manifesta-se com os seus aguçados dentes; a quarta, a
autoj ustificação, serve-lhe de couraça; a última, a arrogân­
cia, que conduz ao inferno, é o odor do seu ventre voraz.
Mas o homem capaz de se manter firme numa obediência
inquebrantável não capitula, e sai fortalecido, liberto das
peias escravizantes. E na força dessa sua vitória sobe ao
Céu, nem que seja só pela ponta de um único degrau. Ora,
em tudo isso há um verdadeiro milagre, indizível e inefá­
vel, realizado pelo Senhor, pois ainda mesmo que a nossa
observância dos mandamentos não tenha atingido a com­
pletude desejada, poderemos ascender aos lugares celestes,
numa ascensão cuj a beleza será diametralmente oposta ao
da fealdade própria do ato de desobediência que arrasta os
mortais numa descida contínua para o inferno.

122. O homem, na medida em que é duplo, é ele e um


outro. A Escritura fala-nos do homem novo, segundo as
palavras do Apóstolo divino, que declara enfaticamente:
«de tal modo que se alguém está em Cristo é uma nova
criação; o que era velho já passou, eis que tudo se fez
novo ! » (2Cor 5 , 1 7) . Com efeito, graças à virtude infundida
em nós pelo Espírito divino, um homem manifesta ser não
apenas terra mas também céu. Ou, dito de outro modo,
um homem desses torna-se tudo: palavra, mistério, ação,
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 685

surpresa, já que nada lhe é alheio, nessa sua capacidade de


se fazer tudo com todos. Com efeito, tudo isso adquire o
seu sentido no combate de cada dia que é o nosso : um
subtil e ingente combate, pois não é nem contra o sangue
nem contra a carne, mas contra as dominações mais insi­
diosas e os poderes mais tenebrosos, atuantes no mundo
presente. É ainda um combate que visa desmascarar as
energias espirituais próprias da malignidade do príncipe
do ar, desse universo infamante que dita as suas leis nos
mundos tenebrosos, no dizer do Apóstolo (cf. Ef 2 , 2 ; 6 , 1 2) . E
o terreno do combate está demarcado: aqueles que secre­
tamente lutam contra nós têm de, incontornavelmente, se
confrontar com a nossa alma, que não é apenas um outro
grande mundo da natureza, mas é sobretudo lugar do
poder do Espírito.
Ora, há três príncipes desse mundo tenebroso que pro­
curam a todo o custo, lançando mão das artimanhas mais
insidiosas, inocular em nós o desnorte do pânico. Lutam
contra as três partes da alma, desferindo contra ela os seus
golpes, procurando assim, de modos diversos, anestesiá-la
no seu desejo de progredir e de viver segundo a virtude. O
dragão, esse príncipe do abismo, ataca desferindo os im­
piedosos golpes ditados pelas trevas próprias das profun­
dezas infernais. A sua força concentra-se de um modo par­
ticular nos rins e no umbigo (sede do desej o) e serve-se
não poucas vezes do estigma do esquecimento. Lança os
seus inflamados dardos, uma vez esse esquecimento insta­
lado em nós, e, servindo-se do assédio da luxúria, assalta
de um modo particular aqueles que se tornaram incapazes
da disciplina do coração. Mantém aceso o desejo ao ponto
de criar desse modo uma atração pelo abismo, com o que
nos lança num encapelado mar onde ele mergulha, es­
cuma, ferve, agita, ataca. Faz do desej o um terreno incen-
686 PEQUENA FILOCALIA

diado pela luxúria e pela incontinência sem, contudo, o


saciar. É que, com efeito, o desejo é insaciável.
O príncipe deste mundo, travando sediciosamente o
seu combate, opõe-se àqueles que procuram a virtude
ativa. S erve-se para isso do monstro da negligência, e
recorre a todos os sortilégios das paixões, conduzindo
assim uma luta sem quartel, como se fosse num outro
mundo, ou num teatro, ou num estádio. Tendo em conta
aquilo que visceralmente são os seus desígnios (combater­
-nos de muitas e variadas maneiras com as suas armas
infernais) pode sentir-se vitorioso em variadas circunstân­
cias; mas pode também, tendo em conta a capacidade de
resistência dos santos, sentir-se derrotado e ser assim
levado a mergulhar na confusão. E aos santos, os verdadei­
ros vencedores, ser-lhes-ão outorgadas, na presença dos
anj os, as coroas da vitória.
Quanto ao príncipe do ar, a tática que usa é traiçoeira­
mente dissimulada na sua subtileza (cf. Ef 2 , 2) . Visa de um
modo particular aqueles que, mediante a mente, têm como
desiderato atingir a contemplação. Desfere os seus ataques
começando por assediar a imaginação e, a partir daí, com a
conivência dos espíritos malignos que povoam o ar, insi­
nua-se no intelecto e lança o desnorte na mente. Com
efeito, faz desta uma refém da sua diabólica sedução, esfor­
çando-se com denodo por metamorfosear a ignorância
mais grotesca (a sua ignorância) em sabedoria. E nessas
suas investidas, esgrimindo a sua pseudossabedoria, serve­
-se a torto e a direito de uma multidão de imagens, bem
como de uma hoste de fantasmas. Tal como relâmpagos,
trovões, tempestades, tornados, provocam medo e desola­
ção, assim também ele se serve dos espíritos do ar para
provocar o desnorte e o desalento na mente daqueles que
estão no caminho da contemplação.
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 687

Desse modo, esses três príncipes atacam as três partes


da alma, cada um deles reivindicando para si a parte contra
a qual trava o seu combate. E lá onde cada um conduz a
sua peleja, é lá que cada um se ufana da sua vitória.

123. Esses demónios tiveram uma história anterior, du­


rante a qual foram inteligências celestiais. Tendo, porém,
decaído do estado imaterial que tinha sido o seu nas ori­
gens, passaram a ter uma natureza material, espessa, cor­
pórea, correspondente ao tipo de ação que a cada um deles
foi atribuída. Daí que, uma vez perdida a natureza angé­
lica anterior (tal como com o homem, também com eles
ocorre uma queda, ainda que de natureza diferente) e dis­
sipada a alegria j ubilosa das origens, se tenham visto redu­
zidos a um estado cuj o prazer já não é o gerado pelas delí­
cias divinas, mas sim o produzido pelas coisas terráqueas.
Tornaram-se, desse modo, seres materiais, desligados da
beleza indizível do mundo divino, cativos de um universo
onde imperam paixões indignas.
Não nos espantemos, pois, com o facto de a nossa alma
- criada à imagem de Deus e dotada de razão e de intele­
gência - se ter tornado semelhante a um animal, despro­
vida de sensitividade, incapaz de sentir a beleza divina, ren­
dida ao mundo material, insensata. Com efeito, passa-se
isto: quando o nosso mundo interior é atingido pelas con­
sequências da perda original de uma ligação a Deus, é o
nosso mundo exterior que sofre o desnorte daí resultante.
Entre os espíritos, uns são prisioneiros da matéria, pe­
sados, desenfreados, irascíveis, agressivos, semelhantes a
animais carnívoros no abrir da boca, quando se trata do
gozo e das delícias materiais. À maneira dos cães que se
alimentam de sangue, comem como possessos a podridão,
688 PEQUENA FILOCALIA

sua amiga. Têm profundamente interiorizada a ideia de


beber até ao fim o cálice de uma requintada licenciosidade.
Outros, desabridos e húmidos, habitam o desej o como
as sanguessugas, as rãs e as serpentes habitam o pântano.
Metamorfoseiam-se por vezes em peixes, e de um modo
descarado infiltram-se na lubricidade do prazer, e, na­
dando no oceano do enebriamento, dão largas à sua con­
cupiscência. São flácidos e escorregadios. Alegram-se na
humidade dos prazeres insensatos, e assolam a alma com
as vagas, as tempestades, as borrascas, próprias dos pensa­
mentos estigmatizados pela mácula.
Outros ainda são leves e subtis, pois são aéreos. Sopram
com o intuito de agitar a alma, lançando nela a perturba­
ção e o desnorte. Atingem-na de um modo calculado e si­
bilino, com o fito de comprometerem a sua capacidade
contemplativa. Provocam tempestuosos ventos e desorde­
nadas fantasias. Tornam-se pássaros e, metamorfoseados
em anj os, enganam a alma. Enchem a nossa memória com
as fo rmas de pessoas que conhecemos. Pervertem e defor­
mam a contemplação espiritual, sobretudo naqueles que a
vivem intensamente e estão empenhados num combate
não só pela pureza mas também pelo discernimento espi­
ritual. Com efeito, nada há espiritual em que eles não se
transformem: fazem-no secretamente, instrumentalizando
a imaginação. Estudam o campo em que vão atacar, e
armam-se com mais ou menos armas - segundo o nosso
estado espiritual e o grau de progresso em que nos encon­
tramos - com o fito de desferirem de um modo certeiro os
seus ataq ues. Com efeito, onde há verdade introduzem
ilusão, onde há contemplação insinuam fantasia, onde há
quietude fazem soprar o vento do desvario.
Pois bem: deles nos fala a Escritura, quando põe em
cena quer os animais dos campos, q uer os pássaros do
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 689

céu, quer as serpentes da terra (cf. Os 2 , 1 4) . Uma tão viva


encenação, na sua dimensão imagética, visa despertar-nos
para esta coisa essencial: a necessidade de nos mantermos
permanentemente vigilantes, com uma atenção redobrada
aos espíritos da maldade, inoculadores de um desvario que
nos torna reféns da indignidade. É que eles são muitos,
plurais, atacam de muitas e variadas maneiras.
Ora, alvos dos seus ataques insidiosos e matreiros,
como poderemos resistir se não formos diligentemente
vigilantes?

O despertar das paixões e a consequente guerra


1 24 .
que a carne trava contra a alma desenrolam-se em nós em
cinco registos diferentes. Num deles, a carne faz um mau
uso das coisas; noutro, simula atuar em sintonia com a na­
tureza, quando verdadeiramente o faz contranatura; noutro,
a sua guerra tem como hoste atacante os demónios, com
os quais voluntariamente se mancomuna; noutro, cai num
estado de guerra intestina, sob o império das paixões, divi­
dida contra si mesma; noutro, desencadeia uma guerra em
todas as frentes, estimulada pela invej a dos demónios, dos
quais alguns falharam os seus desígnios (derrotados que
foram pela humildade) nos quatro casos anteriores.

125. As principais causas da guerra com que nos de­


frontamos residem numa tripla diversidade de comporta­
mentos ou casos: a nossa disposição interior; o mau uso
das coisas criadas; a invej a dos demónios. E tenhamos isto
presente: há insurreições distintas que, não obstante, se
processam do mesmo modo, segundo a nossa disposição
interior e de acordo com a energia que nos é ínsita. Sej am
disso exemplos: a insurreição da carne contra a alma e a
desta contra aquela; a insurreição das paixões carnais con-
690 PEQUENA FILOCALIA

tra a alma e a desta contra aquela. É particularmente em


circunstâncias dessas que o inimigo que nos move a
guerra, de um modo ardiloso e despudorado, faz os seus
ataques audazes. Atenção, pois, meu amigo: não permitas
que a sanguessuga sanguinária torne exangues as tuas
artérias! Que nunca j amais ela vomite o teu sangue! Que
nunca, de modo nenhum, sacies quer a serpente, quer o
dragão! Geme até te teres despojado das velhas vestes das
paixões e revestido da nova veste própria da morada do
alto, que não é outra senão a veste da figura daquele que
te criou à sua imagem, Jesus Cristo ! E se for esse o teu
comportamento, vencerás com júbilo o rugido do leão e
do dragão!

126. Aqueles que não são mais que carne, ensopados


em egoísmo, vivem permanentemente cativos da luxúria e
da vanglória nas quais se enraíza a invej a . Consumidos
pela maldade, roídos pela felicidade dos outros, conside­
ram o mal como se fosse o bem, e o bem como se fosse o
mal. São, na sua pessoa, a personificação do erro: são-no
na medida em que, incrédulos nas coisas do Espírito, são
incapazes de as acolher. Exíguos na fé, não podem nem ver
nem conhecer D eus. Cegos incrédulos, ouvirão j usta­
mente no Além: «Não vos conheço» (Mt 25 , 1 2) .
Ao crente inquiridor, empenhado e m saber dar a razão
de ser da sua fé, o Evangelho pede: uma fé esclarecida,
com incidências no modo como vive o quotidiano; uma
disponibilidade a toda a prova para aprender; uma pronti­
dão para ensinar o que conhece. E se assim for, um tal
crente será um verdadeiro pedagogo na transmissão da
doutrina, pois multiplicará abundantemente nos outros,
nos que recebem a mensagem, os talentos da fé. Mas se
assim não for, isto é: se não crê no que sabe; se destrói o
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 691

que não conhece; se ensina o que não aprendeu (ultrajan­


do assim aqueles que, diligentemente, ensinam essas coi­
sas) será castigado. E sê-lo-á juntamente com aqueles que,
transpirando infâmia, vivem prisioneiros da iniquidade.

127. Segundo a opinião dos que são sábios nestas maté­


rias, mestre exímio é aquele que, dotado de um amplo
poder cognitivo, compreende as coisas criadas de um
modo englobante e unitário, estabelecendo as distinções e
conexões necessárias entre elas, de acordo com as suas
diferenças genéricas (constitutivas da sua identidade) . É
ainda aquele que, ao dissertar sobre as coisas criadas, o faz
apoditicamente, em sintonia com o que é verdadeiro. É
ainda aquele que é dotado da capacidade de relacionar
entre si as coisas particulares e as coisas universais (classi­
ficadas em número de cinco e unificadas no Logos incar­
nado) bem como de as perspetivar em relação ao mundo
criado, segundo uma formulação englobante do todo. Mas,
em tudo isso, não é levado a agir segundo a destreza verbal
própria dos filósofos profanos, numa mera eloquência que
não passaria de vacuidade. Com efeito, sendo como é ins­
trumento do Espírito Santo, a sua capacidade de iluminar
os outros atinge uma profundidade única, própria daque­
les que experienciam e sentem a riqueza indizível que re­
sulta de uma contemplação das coisas criadas.
Efetivamente, um filósofo verdadeiro é aquele que, no
mundo visível das coisas criadas, discerne que esse mundo
tem uma origem e que essa origem é espiritual. Quando
contempla o mundo vê nele a sua origem divina e, como
homem de fé (uma fé não mediatizada) vive uma união
com Deus que transcende a mente. Não se limita a uma
aprendizagem teórica das coisas divinas: não obstante ter
uma tal aprendizagem em alta estima, aprofunda-a expe-
692 PEQUENA FILOCALIA

rienciando-a de um modo verdadeiramente enriquecedor.


Um filósofo verdadeiro caracteriza-se ainda por ser um
espírito que, na vida da cidade, alia à atividade a contem­
plação, exprimindo desse modo aquilo que é a integridade
de uma vida - a sua vida. Esse é o universo no qual, com
gosto e com alegria, se entrega tanto à filosofia moral
como à natural, como à teológica, dominado em tudo pelo
amor do divino: na filosofia moral descortina as ações; na
natural, as razões; na teológica, a contemplação. Vivendo
na força que emana de um tal universo, a instrução divina
capacita-o para discernir e assumir a exatidão das doutri­
nas inerentes aos dogmas.
Um mestre divino caracteriza-se ainda por ser alguém
que, nas coisas de Deus, não foge ao confronto de um de­
safio essencial: ser capaz de distinguir entre as coisas que
são e as que não são, as que verdadeiramente são. Mostra
desse modo a sua aptidão para, sob a inspiração divina,
dilucidar a relação entre as coisas: nesse seu discernimento
das causas e dos efeitos, apercebe-se daquilo que é a inter­
relação entre elas. Por conseguinte, tal como a partir do
sensitivo e visível é capaz de conceptualizar o noético e in­
visível, assim também a partir do invisível e noético, con­
ceptualizar o mundo sensitivo e visível. Um, como a ima­
gem visível do invisível; o outro, como o arquétipo invisível
do visível. Ele sabe (e sabe-o de um saber profundamente
refletido) não apenas que as coisas que possuem forma e
figura são trazidas à existência por Aquele que não tem
nem forma nem figura; sabe ainda que cada uma delas
manifesta uma outra de um modo espiritual. Além disso,
ao discernir que cada uma delas está na outra, integra um
tal discernimento no seu ensino da verdade.
E note-se: não é socorrendo-se de expressões anagógi­
cas ou de termos alegóricos que ele exprime o conheci-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 693

mento da resplandecente (uma resplandecência que en­


vergonha a do sol) verdade que nele brilha: mais do que
isso, muito mais do que isso, aquilo que ele transmite,
transmite-o mediante uma ciência de que o poder não é
outro senão o que lhe advém do Espírito. D á assim a
conhecer as razões da verdade de ambos esses mundos, e
demonstra com clareza que enquanto um é nosso peda­
gogo, o outro é a morada eterna de D eus que nos será
dado ver.
Podemos dele dizer que é filósofo divino, pois é-o
aquele que, mediante a ação e a contemplação, está direta­
mente unido a Deus, vivendo assim, de um modo único, a
comunhão que não é outra senão a do amor de Deus em
nós. Com efeito, um tal homem, filósofo nas coisas divinas,
vive profundamente o amor da sabedoria primordial, essa
sabedoria criadora e verdadeira. Vive esse amor de um
modo único, e isso de tal maneira que, quando se trata de
uma outra sabedoria ou de uma outra ciência, ele, o aman­
te das coisas divinas, não pode senão relativizar a impor­
tância quer dessa outra sabedoria, quer dessa outra ciên­
cia. E ainda: mais do que a sabedoria filosófica, ele ama o
Logos, sem o qual nenhuma filosofia existiria. E, não obs­
tante, ele tem presente que, no dizer de Gregório, o Grande,
há na filosofia um esplendor oculto. Agindo, pois, de um
modo consequente, ao amar e sondar a sabedoria da cria­
ção de Deus - na forma em que essa criação se lhe apre­
senta - fá-lo sem nenhuma ostentação filosófica, já que
não procura j unto dos homens nem louvor nem glória.
Coerentemente, mostra não ser nem um amante da maté­
ria, nem um diletante da sabedoria natural de Deus.
Ele assume o papel de um escriba que, instruído nas
coisas do Reino de Deus e iniciado na vida ascética, se en­
trega à contemplação de Deus. E como é que ele o faz? Fá-
694 PEQUENA FILOCALIA

-lo deste modo: vivendo de um modo íntegro o hesicasmo.


Do tesouro do seu coração extrai o novo e o antigo, isto é,
a mensagem do Evangelho e a proclamação dos Profetas,
ou, dito de outro modo, as Escrituras do Novo Testamento
e as do Antigo Testamento. Empenhado na ação, tem em
alta conta os textos que a possam fecundar e enriquecer.
D aí que, aos seus olhos, se revistam de uma particular
importância tanto os textos da Lei como os dos Apóstolos.
Eis aí, pois, os mistérios novos e antigos que o escriba
diligente tira do seu tesouro, instruído como é nos cami­
nhos da vida, não de uma vida qualquer, mas daquela que
verdadeiramente agrada a Deus.
Um escriba instruído é ainda aquele que alia à exegese
das Escrituras a prática de uma vida ascética.
Um mestre empenhado nas coisas divinas é assim, na­
turalmente, aquele que se situa num meio termo entre a
soma de conhecimentos por um lado e a natureza íntima
dos seres por outro lado, e que, ao demonstrar tudo pelo
poder analítico da razão, está consciente de que um tal
poder só o é, quando fecundado pelo Espírito divino.
Por conseguinte, de tudo o que já se disse isto se con­
clui: filósofo - verdadeiro filósofo - é aquele que atinge,
mediante a via cognitiva e a via imediata, a união sobrena­
tural com Deus.

Aqueles que, privados do Espírito, escrevem e falam


128.
com a intenção de edificar a igreja, não passam de psíquicos,
epíteto que, no dizer da Escritura, caracteriza aqueles cujo
comportamento está cativo da materialidade das coisas,
incapazes como são de viver e de pensar espiritualmente
(cf. Jd 1 9) .
Efetivamente, homens desses estão debaixo d o inesca­
pável julgamento que aparece expresso nas palavras escri-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 695

turais : «ai daqueles que são inteligentes em si mesmos e


são sábios aos seus próprios olhos! » (Is 5,21 ) . Estão aqui em
causa, como é óbvio, aqueles que falam unicamente a
partir de si mesmos, constituindo-se assim o centro do seu
discurso, em vez de deixarem que seja o Espírito de Deus a
falar neles, segundo a palavra do Senhor. Homens desses,
cuj o discurso fica cativo dos seus próprios pensamentos,
extraviaram-se vítimas do seu desnorte e levados por uma
lamentável presunção. Acerca disso, as palavras dos pro­
vérbios são certeiras: «vi um homem que pensava ser
sábio, mas o louco tem mais esperança do que ele» (Pr
2 6, 1 2) . E ainda: «não vos torneis sábios aos vossos olhos»
(Pr 3 , 7) . A sabedoria no-lo ordena. Na mesma linha de pen­
samento temos o Apóstolo divino que, cheio do Espírito,
enfaticamente confessa: «não somos capazes por nós mes­
mos, mas a nossa capacidade vem de Deus» (2Cor 3,5) . E
ainda o Apóstolo: «porque não somos como tantos outros
que desnaturalizam a palavra de Deus para seu próprio pro­
veito; pelo contrário, em Cristo falamos diante de Deus com
sinceridade, como homens enviados por Deus» (2Cor 2, 1 7) .
Sendo aquilo que são, o s psíquicos dão mostras d a vacui­
dade do seu pensamento, tornam-se detestáveis, são som­
brios. Falam sem beber na fonte viva do Espírito, pois
nutrem-se em águas paradas e pantanosas, o que faz dos
seus corações um lodaçal onde mergulham as sanguessu­
gas, as serpentes, as rãs da lubricidade, da arrogância, da
intemperança. Daí que a água de que bebe o seu conheci­
mento seja malcheirosa, turva, morna. Por conseguinte, de
um tal conhecimento não pode brotar outra coisa que não
sej a a subversão, a indolência, a tristeza, a náusea.

129. Não percamos de vista estas palavras do Apóstolo


divino: «somos o Corpo de Cristo e cada um de nós, pela
696 PEQUENA FILOCALIA

sua parte, é um membro desse Corpo» (1 Cor 1 2 ,27) . E ainda


estas: «vós sois um só corpo e um só Espírito, de acordo
com a vossa vocação» (Ef 4,4) . Com efeito, tal como o corpo
sem o Espírito está morto e perde desse modo toda a sen­
sibilidade, assim também já não vive verdadeiramente
aquele que, embora tenha sido batizado, se constitui trans­
gressor dos mandamentos e refém das paixões que matam.
Um tal homem torna-se desse modo incapaz de verdadei­
ramente sentir, como corpo inerte que é, privado da luz do
Espírito Santo e da graça de Cristo. Não obstante o Espí­
rito lhe ter sido outorgado graças à fé e mediante o novo
nascimento, ao ter decaído daquele modo, a morte da alma
fez dele um ser inerte e, como tal, reduzido à imobilidade.
Efetivamente, a alma é só uma, embora os membros cor­
porais sej am diversos e variados. É ela, com efeito, que
mantém , e anima, e comunica movimento a todas as
coisas às quais a vida é comunicada. Por exemplo, quando
sobrevém uma enfermidade que paralisa os membros, tor­
nando-os como mortos e inertes, é ela que os mantém e os
assume, não obstante estarem sem vida e reduzidos à
insensibilidade. Pois bem: de um modo similar, o Espírito
de Cristo está integralmente presente em cada um dos
membros que compõem o seu Corpo. Sem se diluir neles,
está ativo de um modo íntegro em cada um, e a cada um
comunica a vida. Até mesmo aos membros gravemente
enfermos Ele vivifica, na força do seu amor, pois também
eles fazem parte do seu Corpo. Que isto se tenha presente:
cada fiel em particular e todos no seu conj unto participam
pela fé na filiação do Espírito, mas a negligência e a des­
crença podem, infelizmente, semear a desolação, a inércia,
o entenebrecimento, com o que se fica privado da luz e da
vida de Jesus. Por conseguinte, uma perseverante vigilân­
cia se nos impõe no nosso quotidiano: indubitavelmente,
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 697

cada fiel é membro de Cristo e tem dele o Espírito, mas


uma vez cativo da inércia e reduzido à imobilidade deixa
de ser admitido na participação da graça.

130. Já se tem evocado não poucas vezes a contempla­


ção. Enunciemos agora as oito contemplações principais,
esboçando alguns traços caracterizantes de cada uma. A
primeira é a do Deus sem forma, sem começo, incriado,
causa do universo, trinitário, uno, superessencial. A segun­
da é a da hierarquia e ordem dos poderes espirituais. A ter­
ceira é a da constituição dos seres criados. A quarta é a da
encarnação do Logos entre nós. A quinta é a da ressurrei­
ção universal. A sexta é a da extraordinária segunda vinda
de Cristo. A sétima é a do castigo eterno. A oitava é a do
Reino dos Céus.
As primeiras quatro contemplações incidem em coisas
do passado, enquanto as outras quatro em coisas do futu­
ro. Mas todas elas se distinguem claramente e ocorrem
naqueles que, pela graça divina, atingiram uma grande
pureza da mente. Pois bem: todo aquele que não vive ver­
dadeiramente uma graça dessas e, não obstante, põe-se a
descrevê-la, deve ficar ciente de ter sido vítima de uma fan­
tasia! Aconteceu-lhe isto: o espírito da ilusão fá-lo fanta­
siar e ele não resiste: fantasia!

131. É igualmente necessário falarmos - na medida do


possível - de uma outra coisa: do erro. Com efeito, não são
poucas as pessoas para quem discerni-lo é tarefa que se
reveste de uma dificuldade acrescida, pois é próprio do
erro revestir-se de aspetos que tocam quase o inapreensí­
vel, em virtude dos seus múltiplos e engenhosos artifícios.
O erro manifesta-se - ou melhor, invade-nos e ataca­
-nos - sob duas modalidades: pela fantasia e pela ação.
698 PEQUENA FILOCALIA

Ambas são manifestações e não causa, já que a causa ver­


dadeira está na arrogância daqueles que se constituem a si
mesmos fabricantes do divino.
A primeira modalidade origina a segunda, e a segunda
abre facilmente as portas ao desnorte e ao desvario. Ora, é
a arrogância - causa essencial da visão fantasiosa - que
leva os arrogantes e presumidos a atribuírem uma forma
ao divino, com o que fica aberto o caminho para a blasfé­
mia. Trata-se de um erro que (criador como é de um espa­
ço onde a fantasia impera e os fantasmas do delírio, quer
noturnos quer diurnos, nos atacam com virulência) gera o
terror que, na alma, se manifesta sob duas formas : a do
temor e a do tremor. Na verdade, há em tudo isto uma su­
cessão de males, uns maiores, outros menores: da arrogân­
cia provém o erro; e do erro, a blasfémia; e da blasfémia, a
infâmia; e da infâmia, o medo; e do medo, o extravio dos
sentimentos naturais. Eis aí, pois, a primeira modalidade
do erro: a que provém da fantasia.
A segunda modalidade provém da ação, e tem a sua pri­
meira causa no gozo, que nasce de um desej o pretensa­
mente natural. Com efeito, é do prazer que nasce a devas­
sidão, da qual as vergonhas nem mesmo nomear se pode.
Em seguida a devassidão (geradora como é de um fogo
que não só inflama a natureza inteira do homem, como
também corrompe a razão, servindo-se da miragem das
imagens) leva a mente ao extravio de si mesma. Enlou­
quece-a por intermédio da sua energia ardente; leva-a a
emitir profecias falsas; condu-la ao átrio de pretensas
visões de pretensos santos, que toma por reais; indu-la a
ver revelações onde revelações não existem, e a interpretá­
-las como se o fossem - e faz tudo isso no clima de um
enebriamento vertiginoso da paixão.
Ocorre, assim, uma mudança na conduta, mudança de
SÃO GREGÓRIO, O SJNAÍTA 699

sabor demoníaco. Aqueles que são ignorantes nas coisas


do espírito, extraviados pelo erro, chamam a tais homens
«pequenas almas». Ora - e isto é grave! - essas «pequenas
almas» ocupam lugares destinados e consagrados a certos
santos, e pretensamente inspiram esses extraviados, in­
fluenciando-os de um modo que tem tanto de lamentável
como de desviante. Trata-se de uma perigosa inspiração,
pois os que assim são inspirados reivindicam para si a au­
toridade dos santos. Por conseguinte, impõe-se-nos des­
mascarar um tal procedimento: é preciso dizer desses tais
que são possessos do demónio, vítimas não inocentes das
ilusões, escravos do erro ! São tudo isso, e não profetas
anunciadores do presente e do futuro ! Com efeito, é o
próprio demónio da luxúria que imola a sua mente na pira
do prazer. Donde resulta o extravio do seu coração, que cai
no delírio de imaginar fantasiosamente santos encontros e
piedosas visões. Nesse universo demoníaco de que estão
escravos, o caminho está-lhes aberto para a indolência,
para a preguiça, para o desleixo. Efetivamente, esse é o seu
drama: ao ligá-los ao j ugo do diabo, o demónio da luxúria
empurra-os para o erro, com o fito de os manter seus es­
cravos até à morte. À qual se lhes seguirá o castigo final.

1 32. É importante (é mesmo um dever!) não perdermos


de vista que o erro se infiltra em nós tendo como causas
originantes três coisas: a arrogância, a inveja que os demó­
nios nutrem a nosso respeito, a insubmissão que eviden­
ciamos ao recusarmos a correção. Estas coisas funcionam
como causas que, se bem vistas, são igualmente causadas:
a arrogância é-o pela mediocridade; a invej a, pelo egoísmo;
a insubmissão, pelo pecado.
O erro, quando é fruto da invej a e da presunção, pode
ser curado (cura que por vezes não exige muito tempo)
700 PEQUENA FILOCALIA

mediante a vivência de uma genuína humilhação. Por


outro lado, quando se trata do erro permitido por Deus
para a nossa correção (circunstâncias há em que, por
causa da nossa pecaminosidade, somos entregues a Satã) a
sua cura não tem um tempo definido: Deus pode muito
bem permitir a sua continuidade até à nossa morte, se tal
for necessário para o apagamento dos nossos pecados. E
quando acontece haver inocentes vítimas de provações
mais ou menos dolorosas, Ele permite-o tendo em vista a
sua salvação.
Não percamos de vista que o demónio da presunção,
insidiosamente, ataca sobretudo aqueles que não vivem ri­
gorosamente atentos ao coração.

133. Todos aqueles que se consagram a uma vida pie­


dosa são, quais novos sacerdotes e reis, ungidos com a ver­
dade nessa sua consagração. Concretiza-se neles, de um
modo efetivo, a unção dispensada outrora, em figura, aos
antigos sacerdotes e reis. Efetivamente, tais unções desem­
penharam no seu tempo um importante papel: um papel
imediato refletido então no acontecimento em si; mas
também um papel proléptico, anunciador da verdade, para
hoj e, da nossa própria unção. E não apenas de alguns, mas
de todos. Com efeito, a nossa realeza e o nosso sacerdócio
(não obstante não se exprimirem do mesmo modo, nem
tomarem a mesma forma que caracterizava os deles) conti­
nuam a ter a sua importante carga simbólica: daí que as
ações e gestos que praticamos sej am a expressão visível de
uma graça invisível.
Tão-pouco a unção com que hoje somos ungidos ins­
titui uma qualquer distinção entre nós. Não a institui: nem
no que concerne à sua natureza; nem no que respeita à
graça; nem no que tem a ver com a consagração. Há que
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 70 1

reconhecer este princípio fundamental: nenhuma divisão


ou separação foi instituída entre nós. Com efeito, há uma
só e única vocação; uma só e única fé; um só e único rito.
Por conseguinte, podemos e devemos afirmar, a partir do
que acabamos de dizer, o seguinte: todo aquele que é un­
gido é-o para, de um modo puro e livre de paixões, ser
consagrado a Deus e por Ele investido não só agora mas
também no tempo futuro.

134. Aq uele em quem a sabedoria habita é capaz de


meditar profundamente, no seu coração, a realidade dos
seres criados. E, quando isso acontece, um tal homem
mostra ter capacidade para discernir nesses seres a pre­
sença do Logos de Deus ou, dito de outro modo, a Sabe­
doria hipostasiada de D eus o Pai. Com efeito, nos seres
criados discernirá a expressão exterior dos arquétipos que
os caracterizam, e assim, de um modo profundo, falará a
sabedoria que provém da divina Sabedoria. Testemunha
desse modo ser, um homem cuj o coração é iluminado
pelas luzes de uma inteligência que se renova, e cuj a men­
te é fortalecida pela ação do Espírito. E quando isso acon­
tece, temos um homem capacitado para, no nome do Es­
p írito criador, ser uma bênção para todos aqueles que,
com fé, o escutam.

135. Há um erro que se manifesta tentacular, opondo-se


à verdade e arrastando, já neste tempo presente, os ho­
mens para a perdição. É através dele que a ignorância, te­
nebrosa por natureza, reina nas almas, tornando-as escra­
vas da negligência e alienando-as de Deus. Vejamos.
Esses homens apresentam-se como conhecedores da
existência de um único Deus, um Deus criador que nos
ilumina e que exerce a sua providência para connosco.
Pois bem, de duas uma: ou não creem nele e não o conhe-
702 PEQUENA FILOCALIA

cem senão em palavras, mas não em obras, ou então estão


persuadidos de que Ele só se manifestou aos antigos e não
a nós. D essa alternativa parece não poderem fugir. Cir­
cunscrevem os testemunhos das Escrituras sobre D eus,
limitando-os exclusivamente aos tempos antigos, isto é,
àqueles que na antiguidade os proclamaram. Agindo desse
modo na interpretação das Escrituras, ao falarem de Deus,
blasfemam, pois reduzem a sua glória ao torná-la limitada
no tempo. Mostram assim uma lamentável ausência de
conhecimento ao lerem os textos sagrados: leem-nos uni­
camente de um modo literal (para não dizer à maneira
j udaica) com o que negam que o homem possa, já nesta
vida, ser ressuscitado mediante a ressurreição da alma.
Pobres deles, escolhem desse modo j azer no sepulcro da
ignorância.
Mas, verdadeiramente, no que é que consiste um tal
erro, do qual já se disse ser enorme, tentacular, ameaça­
dor? Diremos que ele consiste em três paixões dotadas de
um incomensurável poder de destruição: a incredulidade,
a malícia, a negligência. Geram-se e apoiam-se entre si,
mostrando desse modo o quanto esse seu conúbio é peri­
goso. Efetivamente, de uma análise a que podemos sub­
metê-las, resulta a constatação de que enquanto a incre­
dulidade suscita a malícia, esta mostra ser conivente com a
negligência, de que o sinal de alarme é a preguiça. Ou
então, em sentido recíproco, podemos dizer que é a negli­
gência que gera a malícia, perspetiva essa que é confir­
mada pelo Senhor com a sua interpelação: «servo mau e
preguiços o ! » (Mt 2 5 , 2 6) . No que toca à malícia, vêmo-la
como a mãe da incredulidade. Todo o homem perverso é,
com efeito, lá bem no fundo de si mesmo, um incrédulo,
pois mostra não crer nem temer a Deus. E a partir daí en­
contra-se fatalmente no vórtice do abismo da negligência,
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 703

de onde mergulha no inframundo que tem como lei vi­


gente o desprezo do bem e a celebração do mal.

1 36. As ideias j ustas e verdadeiras acerca de Deus, bem


como o conhecimento autêntico dos seres criados por Ele,
têm uma pátria confessional: aquela que é definida pela
ortodoxia integral dos dogmas. Motivo pelo qual o crente
ortodoxo deve exprimir assim a sua adoração: Glória a ti, ó
Cristo, nosso Deus! Glória a ti, pois por nós te fizeste homem! Tu
que és o Logos-Deus, infinitamente mais alto do que o ser! Grande
é o mistério da tua encarnação, nosso Salvador! Glória a ti!

137. De acordo com Máximo, o Grande, há três modali­


dades (todas elas admissíveis e não suj eitas a uma qual­
quer condenação) em que se pode exprimir a palavra
escrita. A primeira consiste em escrevermos para nós pró­
prios; a segunda em escrevermos para o bem dos outros; a
terceira em escrevermos num registo de que a nota tónica
é a obediência. É esta última que caracteriza a maior parte
dos escritos daqueles que, com humildade, procuram ser
artesãos ao serviço da Palavra. Modalidade esta que impli­
ca, como é óbvio, uma profunda consagração. Suponha­
mos, por exemplo, alguém que se põe a escrever sobre as
virtudes, levado unicamente pelo desej o de agradar, ou de
se prestigiar, ou de se exibir: esse tal, segundo as palavras
da Escritura, já recebeu o seu galardão! (cf. Mt 6 , 1 6) Na ver­
dade, não há nisso nada de útil para este mundo, e tudo
isso ficará sem recompensa no mundo futuro. Um tal es­
criba é, no fundo de si mesmo, um traficante da Palavra: ao
pretender agradar aos homens, com a sua astúcia, não só
está a enganá-los como também se está a enganar a si
mesmo. E como falso intérprete da Palavra de Deus será
condenado.
704 PEQUENA FILOCALIA

No concernente ao hesicasmo
e aos dois modos de oração

1.Há dois modos de união com o Senhor, ou antes duas


vias que conduzem à oração noética. E que se entende por
oração noética? É a oração em que o orante experiencia e
sente a ação do Espírito operante no coração. Mas na
medida em que é noética, a mente é ela também espaço do
Espírito. Pelo que podemos formular as coisas com esta
latitude: ou a mente, unida ao Senhor, segundo a Escri­
tura, ora com o coração, ou o coração, sintonizado com a
energia divina que o invade, atrai a mente, levando-a a
invocar o Senhor Jesus e a unir-se a Ele.
Com efeito, se o Espírito se manifesta em cada um como
quer, no dizer do Apóstolo, então podemos admitir haver
casos em que a sequência das alternativas antes menciona­
das possa variar (cf. 2Cor 2 , 1 7) . Casos há em que a energia
inunda o coração, quando as paixões claudicam: quando
isso acontece, mediante a invocação contínua do Senhor
Jesus Cristo, um intenso calor divino se manifesta, pois,
segundo a Escritura, o nosso Deus é um fogo que consome
as paixões. Em outros casos, o Espírito divino chama a si a
mente, estreita-a nas profundezas do coração, e impede-a
de seguir o seu habitual movimento de dispersão.
Quando isso acontece, a mente passa pela profunda
experiência de uma libertação: deixa de ser uma escrava
conduzida em cativeiro aos Assírios, fora dos portões de
Jerusalém, e torna-se uma peregrina libertada que deixa a
Babilónia para trás de si e se dirige para o monte Sião. E,
com o profeta, pode também dizer: «a ti, ó Deus, é devido
o hino em Sião, e a ti é dirigida a oração em Jerusalém» (SI
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 705

65,2) .E ainda: «quando o Senhor fizer voltar os cativos de


Sião» (Sl 1 26 , 1 ) . E ainda: <<Jacob exultará e Israel rejubilará»
(SI 53,7). Isto é, trata-se da exultação da mente que, na sua
atividade, é capaz de vencer as paixões, fortalecida pela
contemplação, e que, com a ajuda de Deus, mantém essa
atividade libertadora. Ela sente-se conviva (e é-o verdadei­
ramente) de uma mesa abundante, deleitada com as delí­
cias divinas, e faz suas as palavras do poeta divino: Prepa­
raste uma mesa perante mim, em face dos demónios e das
paixões que atormentam! (cf. S I 23)

Como orar
2. Quando, na tradição salomónica, se exorta a, logo de
manhã, «semear» a nossa semente, por «semear» deve en­
tender-se a semente da oração. Vej amos: «De manhã se­
meia a tua semente, e à noite que a tua mão não desfaleça,
de molde a não ser interrompida a tua oração, nem invia­
bilizado o momento em que ela terá resposta favorável» - e
o texto continua sublinhando bem aquilo que se diz: «pois
tu não sabes se é isto ou se é aquilo que será bem suce­
dido» (cf. Ecl 1 1 , 6 ) .
Pois bem: logo ao despontar da aurora, sentado num
pequeno banco com aproximadamente uns vinte e cinco
centímetros de altura, impele a tua mente, fazendo-a
descer da cabeça até ao coração e retém-na aí. Mantendo a
cabeça energicamente curvada, uma vívida dor no peito,
ombros e nuca, repete sem cessar com um total empenho
tanto da mente como da alma: «Senhor Jesus Cristo, tem
piedade de mim!» De seguida (por causa do cansaço que
possas sentir como resultado do teu empenho total, e não
por te sentires saciado do alimento do triplo nome, pois
706 PEQUENA FILOCALIA

desse alimento, tal como está escrito, «aqueles que dele


comem não deixarão de ter fome» [cf. S i r 24,2 1 1 ) deixa a
mente concentrar-se na segunda metade da oração e re­
pete: «Filho de Deus, tem piedade de mim!» Repete inú­
meras vezes essa metade, concentrando-te nela o mais
possível, sem cair, por negligência, numa mudança das pa­
lavras. Não te esqueças de que as plantas que se transplan­
tam com frequência não chegam a criar raiz! E ouve: con­
trola a tua respiração, retendo-a e libertando-a, num ritmo
seguro ! Que as tuas aspirações e expirações do ar se pro­
cessem tranquila e profundamente. Não respires desorde­
nadamente ! E olha: os movimentos respiratórios que
sobrem do coração obscurecem a mente e agitam o pen­
samento. Desviam-no, ou até mesmo tornam-no refém do
esquecimento, ou então levam-no a ocupar-se, desordena­
damente, de uma coisa após outra. E, como consequência,
ei-lo inopinadamente a encontrar-se onde não deve.
Se vires que as impurezas dos espíritos maus começam
a invadir-te ou que os pensamentos perversos desenca­
deiam o seu assédio, e tomam forma na tua mente, não te
perturbes com isso. E se, por outro lado, te sobrevierem
bons pensamentos acerca das coisas, não concentres nisso
a tua atenção. Mas, quer num caso quer noutro (e tanto
quanto te for possível) retém a expiração, encerra a mente
no coração, e invoca continuamente, com perseverança, o
Senhor Jesus. E agindo desse modo desbaratá-los-ás, re­
duzi-los-ás mesmo a cinzas, flagelando-os com o nome
divino. Inspira-te nas palavras de João Clímaco, ele que
empenhadamente nos exorta: « Flagela com o nome de
Jesus aqueles que te combatem. Não há arma mais forte
do que essa, nem no céu nem na terra» CToão Clímaco, P. G .
LXXXVIII, 945 e) .
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 707

Da respiração
3. Isaías, o Anacoreta (e com ele muitos outros) subli­
nha o quanto é importante o domínio da respiração,
retendo-a quando é necessário. Um outro sage enfatiza a
importância de disciplinar a desenfreada mente no meio
da dispersão em que se encontra, levada pelos poderes sa­
tânicos que, trazidos pela mão da nossa negligência,
regressam depois do batismo. Só que não regressam desa­
companhados: juntamente com eles invadem-nos outros
espíritos ainda piores, com o que se cumprem as palavras
do S enhor, «a sua última condição é pior do que a pri­
meira» (Mt 1 2 ,45) . Um outro mestre da espiritualidade enfa­
tiza que, num monge, a consagração a Deus deve ocupar
o lugar da respiração. Um outro ainda declara que o amor
a D eus deve ser logo seguido pela expiração. E S ão Si­
meão, o Novo Teólogo, esse, exprime-se assim: «Contém a
aspiração que vem do nariz, de molde a não respirares fa­
cilmente. » E João Clímaco, que também sobre isto se
exprimiu, enfatiza: «Que a tua entrega a Jesus se una à tua
respiração, e conhecerás assim o valor único do hesi­
casmo» (P. G . LXXXVIII, 1 1 1 2 e) . E o Apóstolo afirma já não
ser ele quem vive, mas sim ser Cristo quem vive nele, ope­
rando e inspirando a vida divina (cf. G l 2 , 20) . O S enhor
Jesus, tomando como exemplo o soprar do vento atmosfé­
rico, declara: «Ü Espírito sopra onde quer» Go 3 , 8) . Na ver­
dade, ao sermos p urificados pelo b atismo, recebemos
indubitavelmente as arras do Espírito e, segundo Tiago, o
irmão de D eus, o Logos é-nos implantado qual semente
(cf. Tg 1 ,2 1 ) . Por conseguinte, Aquele cuja bondade é supe­
rabundante faz morada em nós e, na comunhão que con­
nosco assim estabelece, forma-nos com Ele. É o milagre de
uma comunhão única que ocorre: nela e através dela, Ele,
708 PEQUENA FILOCALIA

o Senhor das alturas, partilha connosco o impartilhável. E


sem confusão nem diminuição, deifica-nos.
Permaneçamos, porém, vigilantes, com uma vigilância
de persistência feita: é que, com efeito, aos mandamentos,
que são expressão da graça divina, desobedecemos e, ren­
didos ao assédio que nos movem as paixões, recaímos in­
defesos numa situação de onde só por um milagre do Es­
pírito podemos voltar a sair. Efetivamente, reféns de uma
indolência que nos tira a vida e nos instila a morte, em vez
de respirarmos o sopro do Espírito Santo, é dos miasmas
dos espíritos malignos que nos enchemos. Essa é, sem dú­
vida, no dizer dos Pais, a origem do bocejar e do espregui­
çar. Pelo contrário, aquele que recebe o Espírito, e com Ele
a purificação, passa pela experiência inefável de uma trans­
formação inaudita: experiencia e sente a força do sopro do
Espírito; toma consciência da renovação que a vida divina
nele opera; sente uma extraordinária ousadia para falar
dessa vida; passa a compreender de um modo muito mais
profundo o sentido das palavras do Senhor: <0á não sois
vós que falais, é o Espírito do meu Pai que fala em vós»
(Mt 1 0,20) .
Nos antípodas está aquele que, rendido ao maligno, age
e fala em consonância com ele.

Como salmodiar
4. Nas palavras de João Clímaco, «quando o vigia é in­
vadido pela fadiga levanta-se e ora; e de seguida volta a
sentar-se para, revigorado, continuar o seu trabalho» (P.G.
LXXXVIII, 1 1 00 b) . Por detrás da literalidade das suas pala­
vras, ele fala do que a mente deve fazer quando se assume
como guardiã e vigia do coração. Mas não só isso: subj a­
cente às suas palavras está também a prática da salmodia.
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 709

D iz-se que Barsanúfio, o Grande, ao ser um dia interro­


gado acerca da salmodia, de como se deve salmodiar, res­
pondeu: «As Horas e as Odes litúrgicas fazem parte das
tradições da Igrej a , e é bom que elas nos tenham sido
transmitidas e que, chegadas assim até nós, as possamos
introduzir na vida em comum. Mas os monges de Scete
não recitam as Horas nem cantam as Odes. Têm um tra­
balho manual, uma meditação solitária e uma oração abre­
viada. Quando te levantas para orar recita o Trisagion e o
Pai-nosso. Pede a Deus que te liberte do homem velho que
há em ti. E não te atrases, pois a tua mente experiencia
quotidianamente um desafio: viver o dia inteiro o espírito
da oração. » Com esssas palavras, Barsanúfio empenha-se
em sublinhar que a meditação solitária é a oração do cora­
ção, e que a oração abreviada é uma estação da salmodia.
João Clímaco, o Grande, por seu lado, diz ainda, de um
modo explícito, que atingir o estado de hesicasmo implica
a concretização de três coisas essenciais : em p rimeiro
lugar, um total desapego em relação ao que é mundano,
com tudo aquilo que o caracteriza como tal; em segundo
lugar, a oração ativa, pois sem ela a ação não passa de um
gesto desvitalizado; em terceiro lugar, a obra indefetível do
coração. Para João Clímaco trata-se de três coisas igualmen­
te importantes, três coisas que, quando verdadeiramente
observadas, fazem de nós genuínos orantes, no centro da
oração e, por conseguinte, no centro do hesicasmo.

No concernente às diferentes maneiras


de salmodiar
5. Acerca da salmodia há uma diversidade de perspeti­
vas e, portanto, de práticas diferentes. As opiniões diferen-
710 PEQUENA FILOCALIA

tes, vistas de um modo j usto, têm a sua importância. Com


efeito, alguns ensinam pondo a nota tónica na necessidade
de se salmodiar muito. Em atitude contrastante, há outros
que defendem que uma tal prática não é essencial, e
outros ainda que se ficam pelo meio termo. Os defensores
de uma não essencialidade da salmodia defendem a sua
posição alegando haver outras práticas que, essas sim, são
essenciais. E nomeiam como particularmente importantes:
a oração, sem a qual não pode haver uma vida crente; o
trabalho manual investido na vida em comum; determina­
das prestações de serviços nos quais poderemos agir como
colaboradores de Deus, junto dos outros.
Ora bem: quais são as diferenças essenciais existentes
em tudo isso? O que é que está aqui verdadeiramente em
jogo? Tentemos formular a resposta. Há, com efeito, aque­
les que vivem a experiência da graça divina através de uma
longa e árdua prática da vida ascética, e que a partir daí in­
sistem em exortar os outros a encontrá-la do mesmo
modo. Estão persuadidos de que não é possível para nin­
guém seguir um caminho diferente desse e atingir o
mesmo resultado. Não creem, por exemplo, que haj a
alguém que, mediante u m processo cognitivo, atinja pela
fé o estado de graça num breve período de tempo (como
se a misericórdia de Deus e a força fecundante do Espírito
divino não pudessem atuar nesse pouco tempo! ) . Signifi­
cativamente, Santo Isaac reconhece a validade dessa via
breve! Mas eles não! Ludibriados pela ignorância e cheios
de presunção censuram os outros e sustentam que agir de
um modo diferente do deles é uma ilusão de onde a graça
está ausente. Prisioneiros do obscurantismo que construí­
ram, vivem encerrados no seu universo, incapazes de com­
preender o alcance das palavras da Escritura que nos
dizem que aos olhos do Senhor é uma coisa não só natu-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 71 1

ral como agradável dar, sem delongas, a riqueza ao pobre (cf.


Sir 1 1 , 2 1 ) . E é ainda a mesma Escritura que noutro texto
(no Livro dos Provérbios, num passo evocador da graça,
isto é, da misericórdia divina) sublinha, quase que tauto­
logicamente: «Ü começo da sabedoria consiste em adqui­
rir a sabedoria! » (Pr 4,7) . O apóstolo Paulo, esse, repreende
os cristãos de Corinto pela ignorância que é a deles acerca
da graça, interpelando-os assim: «Não compreendeis que
Jesus Cristo habita em vós? Se assim não fosse seríeis
reprovados! » (2Cor 1 3 ,5). Falando assim tão enfaticamente,
ele pretende sublinhar quão grande não seria a incapaci­
dade de os coríntios progredirem (cativos que ficariam da
negligência) se Jesus não habitasse neles!
Esses tais, portanto, ao defenderem o seu caminho
como o único meio de encontrar graça, estão a mostrar
duas coisas: a incredulidade em que caíram e a arrogância
própria dos autoconvencidos. E desse modo torna-se ma­
nifesta a sua incapacidade para reconhecer o poder da
oração, o que é verdadeiramente lamentável. E falo deste
modo em virtude de haver na oração um poder único, re­
sultado da ação do Espírito que a torna fecunda e ativa na
vida do orante.

6. Objeção - Estou persuadido de que reconhecerás


como um verdadeiro ascetismo ativo práticas desta natu­
reza: j ej uar, autocontrolar-se, observar as vigílias, ficar de
pé, prostrar-se arrependido, chorar, ser pobre. Se o reco­
nheces, como podes então tu advogar unicamente o cân­
tico dos Salmos e ao mesmo tempo manter o princípio de
que sem a atividade ascética é impossível realizarmo-nos
na oração? Pois não são as atividades mencionadas verda­
deiramente um ascetismo ativo? !
Resposta - S e a boca ora enquanto a mente vagueia, que
712 PEQUENA FILOCALIA

vantagem tiramos daí? Têm todo o valor e inteira perti­


nência, a este respeito, as palavras da Escritura: «Quando
um edifica e o outro destrói, o esforço foi em vão» (Sir
34,23) . Tenhamos, pois, bem presente isto : a mente deve
trabalhar tal como o corpo e em sintonia com ele. Caso
contrário não passará de uma vagabunda, infiel em relação
ao corpo e ao coração, que se encheriam de acédia e impu­
reza. Temos disto a confirmação nas palavras do divino
Apóstolo: «com efeito, se oro numa língua, o meu espírito
ora, mas a minha mente permanece estéril; que devo então
fazer? Orarei com o espírito, mas orarei também com a
mente; cantarei cânticos de louvor com o espírito, mas
cantarei cânticos de louvor também com a mente» ( l Cor
1 4, 1 4- 1 5 ) . E exprime a sequência do seu pensamento, acres­
centando: «na igreja antes quero falar cinco palavras com a
minha mente para edificar os outros, do que falar dez mil
palavras numa língua» (l Cor 1 4, 1 9) . E João Clímaco, persua­
dido ele também disso mesmo, evoca o Apóstolo: «Aquele
que foi o grande praticante da oração sublime e perfeita,
afirma: quero antes falar cinco palavras com a minha
mente [ . . ] et cetera» (P.G. LXXXVIII, 1 1 33 a) .
.

Sabemos muito bem que há uma diversidade de formas


em que o trabalho espiritual se pode exprimir. Mas a
forma essencial em que se exprime aquela que é a grande
obra, a obra englobante, fonte das virtudes, é, segundo
João Clímaco, a oração do coração, pois é mediante ela que
a porta se nos abre para trilharmos o caminho do desco­
brimento do bem, que não é um bem qualquer mas o bem
único (P. G . LXXXVI II, 1 1 29 b) . E São Máximo, esse, cogitando
em tão elevadas coisas, afirma: «Nada há de mais terrível
que o pensamento da morte, nem nada de maior que a re­
cordação de D eus» (citação não localizada) . Ao exprimir­
-se desse modo sublinha a transcendência da obra de que
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 713

estamos a falar. E só podem assim exprimir-se aqueles que


experienciam e sentem no mais profundo de si memos
essa transcendência. Muitos há, porém, que, vítimas da
ignorância que cultivam, se condenam a si mesmos ao
encerrarem-se no espaço da sua incredulidade: com efeito,
uma vez aí encerrados a sua cegueira impede-os de reco­
nhecer que a graça está já presente agora neste nosso
tempo. Sublinhemo-lo, pois enfatizá-lo é sensato: a graça
está já presente neste tempo e neste mundo.

7. Na minha perspetiva e tendo em conta a minha expe­


riência, procedem bem aqueles que salmodiam pouco.
Estou, com efeito, convicto de que, se esse pouco corres­
ponder ao que podemos considerar uma proporção j usta,
esses tais praticantes realizam-se na sua obra, sem se esgo­
tarem numa excessiva atividade ascética. E não nos esque­
çamos disto, cuj o valor é inestimável: segundo aqueles a
quem podemos considerar sábios, a moderação (isto é, o
meio termo) é recomendável em todas as coisas. Caso con­
trário, eles correriam um grande, um enorme risco: tornar
a mente inapta para orar e, uma vez chegados aí, torná-la
refém da negligência. Por conseguinte, salmodiando ape­
nas parcialmente, eles poderão desdobrar-se o mais possí­
vel na oração. Podem, porém, sobrevir ocasiões em que a
mente - fatigada por um apelo contínuo e por uma cons­
tante concentração - sinta necessidade de se entregar a um
pequeno descanso. São ocasiões em que, à concentração
exigente do hesicasmo sucede a distensão da salmodia.
Com efeito, temos nesse modo de agir, nessa alternância
fecunda, uma excelente prática em sintonia com o ensino
dos homens mais sábios.

8. Aqueles que nada salmodiam agem de igual modo


bem, mas com uma condição : que se encontrem j á num
714 PEQUENA FILOCALIA

estádio avançado da via espiritual. Efetivamente, impõe­


-se-nos reconhecer isto: o homem que já progrediu bas­
tante na senda do espírito e que, por isso mesmo, é um
homem íntegro, precisa mais de silêncio do que de salmos.
O seu progresso indica que se encontra já num estádio em
que, tendo já recebido a luz, precisa essencialmente da
oração contínua e da contemplação. Unido a Deus como
está, a sua mente está livre da dispersão e não vive cativa
da confusão. Não pode, porém, abrandar em nada o exer­
cício da vigilância, o que implica uma incansável atenção
ao mundo que o rodeia e a si mesmo. De nenhum modo
pode cair numa atitude de autossuficiência. João Clímaco
alerta-nos salutarmente: segundo ele, a autossuficiência
não só provoca a queda de quem se encontra sob a obe­
diência monástica, mas também perturba de tal modo a
oração do hesicasta que a vida espiritual deste fica profun­
damente afetada (P.G. LXXXVIII, 1 1 1 2 e) . Com efeito, ao sepa­
rar-se da memória de Deus, como de um esposo, a mente
do hesicasta torna-se adúltera, prisioneira que fica do
amor por tudo aquilo que no mundo é medíocre.
O ensino de uma tal disciplina, com a carga de rigor
(um rigor que não claudica no confronto com o impre­
visto) que lhe é inerente, oferece dificuldades particulares.
Trata-se, de facto, de uma aprendizagem em que o papel
de um pai espiritual se reveste de uma importância única.
Pensemos, por exemplo, no caso dos iletrados: se a direção
de um pai espiritual é sempre importante, num caso desses
redobra a sua importância. E a obediência é para ser por
eles vivida, uma obediência que possa ser a marca genuína
de uma autêntica humildade: e quando isso verdadeira­
mente acontece, encontramo-nos no caminho da virtude.
Trata-se, nesse caso, de um tipo de obediência muito par­
ticular. Por outro lado, há aqueles (sejam eles cultos ou in-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 715

cultos pouco importa) aos quais ela não lhes será imposta:
visa-se com isso desenvolver neles a capacidade de resisti­
rem a uma errância que nada de bom poderia trazer-lhes.
Aquele que se constitui em lei para si mesmo mostra
desse modo estar a ser vítima da presunção, que é uma
forma de arrogância. Cria assim um infeliz espaço onde, na
ótica de Santo Isaac, o erro medra e a mediocridade cam­
peia. Não obstante, há alguns que - inconscientes das
consequências perigosas que daí advêm - influenciam
aqueles com quem se relacionam, levando-os a enveredar
pelo caminho de uma observância solitária da disciplina,
que dispensa a orientação espiritual de outrem. Invocam
esses tais, em defesa dessa sua ideia e com o desejo de se
autoj ustificarem, que, uma vez ela posta em prática, per­
mitirá a esses observantes familiarizarem-se melhor com a
invocação de Deus e com o amor a Ele consagrado. Ora,
há que dizê-lo com toda a clareza e de um modo enfático:
uma tal ideia é inviável ! E é-o particularmente para os
observantes que ficam entregues a si mesmos, sem um
mestre, e que, sem a disciplina da obediência, correm o
risco de se verem metidos num beco sem saída. Com efei­
to, sendo neófitos, a sua mente é ainda impura: ainda não
libertados da acédia, vulneráveis a um qualquer ataque, a
autosuficiência em que vivem macula a sua mente. Ela não
foi ainda purificada pelas lágrimas e, por conseguinte,
reflete sobretudo as imagens perversas dos pensamentos e
não o genuíno espírito da oração. Devemos, com efeito, ter
isto presente: aqueles que combatem por uma mente pura
(e nesse combate flagelam, no nome do Senhor Jesus, os
espíritos impuros que armam cerco ao coração) devem ser
extremamente vigilantes e sábios, pois os espíritos desse
j aez roncam desesperados no seu intuito de destruir
aquele que assim os flagela. Pois bem: se um monge, leva-
71 6 PEQUENA FILOCALIA

do pelo canto da sereia daqueles a quem nos referimos


antes, acolhe o seu ensinamento relativo à disciplina, dois
males indutáveis o espreitam: ou acaba por cometer erros
(e erros grosseiros) no esforço que faz e não se libertará;
ou então cai na negligência (com todas as consequências
que da negligência advêm) e nenhum progresso registará
durante toda a sua vida.

9. Gostaria de lembrar isto: tendo em conta que falo a


partir da minha própria experiência, é a partir dela que su­
blinho o que a seguir vou dizer. Quando dia e noite vives o
hesicasmo, diversas coisas são por ti experienciadas, como
sejam: o sentido da humildade; o alcance transformador
da oração; a liberdade em relação aos pensamentos intem­
pestivos ; a concentração numa diuturna invocação de
Jesus, doador da energia e da perseverança para o combate.
Ora, no meio de tudo isso pode muito bem haver momen­
tos propícios para te levantares e salmodiares, só ou acom­
panhado pelo teu discípulo; ou então para meditares uma
sentença, ou para pensares na morte, ou para fazeres um
trabalho manual. Podes ainda entregar-te à leitura, preferi­
velmente de pé, a fim de envolveres também o corpo no
esforço que a leitura implica.
E quando estás de pé, só, a salmodiar, recita o triságio, e
em seguida a oração do Senhor. Empenha-te em fazê-lo
com toda a tua alma, com todas as tuas forças, com todo o
teu entendimento, e em espírito, mantendo a mente atenta
ao coração. E se a acédia, subtilmente, te assalta, diz de
novo dois ou três salmos e dois tropários penitenciais, sem
os cantar. É que esses tropários, no dizer de João Clímaco,
não se cantam (P. G . LXXXVIII, 8 1 3 a) . Com efeito, a dor do
coração (quando verdadeiramente vivida no espírito da
piedade) basta para, segundo Marcos, o Asceta, proporcio-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 717

nar alegria. E com isso, o calor d o Espírito, fonte d a graça


e do júbilo, é-nos outorgado. Durante o salmo ora tam­
bém: ora com a mente e com o coração, sem te distraíres. E
diz o aleluia. Essa é a sequência estabelecida por vários dos
Santos Pais, de que podemos destacar, por exemplo, Bar­
sanúfio e Diádoco. E, em sintonia com o divino B asílio,
sublinhe-se o quanto é importante uma alternância quoti­
diana na recitação da salmodia: uma tal alternância contri­
bui para estimular o fervor e para impedir uma saturação
da mente provocada pela repetição dos mesmos salmos.
Agindo desse modo, a mente tem liberdade e é fortalecida
no fervor. Mas nota isto : se ao salmodiar estás acompa­
nhado por um discípulo fiel, que sej a ele a dizer os salmos,
enquanto tu, secretamente atento, oras no teu coração,
cumprindo assim, com um espírito íntegro, a observância
necessária. Como orante que és, ao viveres intensamente a
oração, encontrarás as forças necessárias para menospre­
zar todos os pensamentos que te assediam, provenham
eles dos sentidos ou da mente.
O hesicasmo é, com efeito, o despoj amento temporário
dos pensamentos, mesmo daqueles que, sendo divinos,
têm como fonte o Espírito. Repito: mesmo desses! Pode­
mos, com efeito, afirmar que há hesicasmo onde há esse
despoj amento: é que, mesmo quando os pensamentos são
bons, se deles não nos despoj armos, acabamos por perder
aquilo que está infinitamente acima deles.

No concernente à ilusão
10. Tu que amas Deus, mantém viva e atenta a tua inte­
ligência! Bem precisas disso, pois ao viveres a profundi­
dade da oração, ao te sentires, como orante, profunda-
71 8 PEQUENA FILOCALIA

mente imerso nesse mundo espiritual, pode acontecer-te


ver uma luz, ou um fogo (fora de ti ou dentro de ti) ou até
mesmo a assim chamada figura de Cristo, ou a de um anjo,
ou a de um santo - pois bem, quando isso te acontecer, re­
j eita o que vês!
Trata-se, com efeito, de uma rej eição essencial: se ela
não ocorrer cairás num logro do qual nada de bom para ti
resultará! Impõe-se-te, portanto, uma atitude de perma­
nente vigilância, pois se assim não for a tua mente, inad­
vertidamente, pode cair no logro dessas imagens assim
formadas. Sublinhemo-lo, pois sublinhá-lo é necessário :
do logro das imagens resulta a errância da alma.
Ora, em clara oposição a uma tal errância se perfila a
oração, pois o seu verdadeiro princípio é o calor do cora­
ção, do qual resultam várias coisas como sej am: a erradi­
cação das imagens passionais; o júbilo da alma que, inun­
dada pelo amor de Deus, vive com Ele uma comunhão
profunda; o fortalecimento do próprio coração no seu
desejo seguro de uma indubitável plenitude.
Há um princípio que tem sido enfatizado pelos Pais e
que deve, por isso, ser tido cuidadosamente em atenção.
Ei-lo: tudo o que sobrevenha à alma (quer sej a próprio do
sensitivo, quer do noético) e o coração ponha em dúvida e
rejeite, não provém de Deus, mas do adversário que, de um
modo sibilino, intenta lançar-nos numa errância labirín­
tica. Por conseguinte, quando te aperceberes de que a tua
mente está a ser atraída do exterior (inclusive do Alto) por
um qualquer poder invisível, não creias nisso, nem permi­
tas que ela seja arrastada por esse ínvio caminho. Resiste a
toda a sedução desse jaez e faz com que ela se concentre
na obra essencial que, propriamente, é a sua. No dizer de
Santo Isaac, as coisas de Deus provêm propriamente delas
mesmas, e ignoramos qual é o tempo do seu advento.
SÃO GREGÓRJO, O SINAÍTA 71 9

O demónio, esse nosso figadal inimigo, opera de um


modo que tem tanto de sibilino quanto de fraudulento :
serve-se da nossa imaginação e desse modo subverte,
como lhe apraz, as coisas do Espírito. E que quer dizer
isso? Quer dizer que a subversão por ele efetuada implica
pôr no lugar da verdade o erro, no lugar da perseverança a
desistência, no lugar do que é belo o que é indigno. E onde
há calor espiritual semeia ele a desordem do seu fogo, tor­
nando a alma refém da ilusão. E onde há j úbilo introduz
ele uma alegria selvagem ensopada na viscosidade da con­
cupiscência, de onde emanam arrogância e cegueira. Ora,
um inimigo desse j aez, ardiloso em tudo, oculta-se aos
noviços e, insidiosamente, leva-os a considerar como graça
operante o que não passa da sua própria mentira.
Temos, porém, a nosso favor o tempo e a experiência:
ambos desmascaram-no, pondo a nu a sua malícia aos
olhos daqueles a quem o Senhor iluminou e a quem o Es­
pírito outorgou o discernimento essencial. E vão nesse
sentido as palavras da Escritura que declaram que «o pala­
dar discerne os alimentos» (Sir 36, 1 9) . Isto é, o gosto espiri­
tual desoculta o que verdadeiramente está em jogo, pois ao
sabor da morte chama morte, e ao sabor da vida chama
vida.

No concernente à leitura
1 1 . Que leituras, de um modo particular, devem ser feitas
por aqueles que estão empenhados em viver uma vida
fecundada pelo Espírito? João Clímaco discorre sobre isso,
sublinhando o quanto é importante para todos aqueles
que se entregam à realização de uma obra espiritual a lei­
tura do que diz respeito à prática ascética, concentrando-
720 PEQUENA FILOCALIA

-se o mais possível numa tal leitura, o que torna supérfluas


leituras outras.
Sê perseverante, pois, na leitura das obras sobre o hesi­
casmo, pois elas são de um interesse particular para todos
aqueles que estão empenhados em viver uma vida de
oração. Vou citar alguns dos Pais em quem podemos en­
contrar material fecundo : S. João Clímaco, S anto Isaac,
S. Máximo, S. Simeão o Novo Teólogo, o seu discípulo Santo
Estetato, S anto Hesíquio. S. Filoteu, o Sinaíta; a outros
poderia evocar, mas podemos ficar por aqui. Deixa de lado,
porém, por agora, escritos de teor diferente, pois chegará a
altura (o tempo oportuno) em que deles te poderás apro­
priar. Nenhum motivo há para os rejeitar, nem agora nem
então. Só que, agora, é muito importante para ti concen­
trares-te nos temas que devem ser os teus, de molde a
aprofundares a tua reflexão. O cupares-te, agora, com
outros temas significaria uma dispersão, ou até mesmo um
desvio do que deve ser o centro do teu empenhamento
total: a oração.
Que a tua leitura seja digna de um monge! Isto é, que
ela se processe segundo alguns requisitos, o que implica
ser: feita com uma voz simples, sem pompas; despida de
uma eloquência pretenciosa e de uma enunciação afetada;
isenta do desejo de provocar elogios, bem como do intuito
de agradar a este ou àquele; possuída pelo desejo de fugir
do insaciável e de encontrar o meio-termo justo da enun­
ciação. Lê, portanto, sem rudeza, nem moleza, nem negli­
gência, mas modestamente, de um modo doce, calmo,
compreensível, harmonioso. Lê com o corpo inteiro: com
a mente, com a alma, com a razão. E se assim for (e é pre­
ciso que assim seja!) a mente sentir-se-á não só confortada
mas também revigorada, o que é importante para que ela
ore intensamente. Em caso contrário (isto é, nas condições
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 721

opostas de que já falámos), ela não encontra senão obscuri­


dade, tibieza, desordem. D esse modo, a razão, afetada
como é, acaba por provocar dores de cabeça. E que resulta
daí? Uma mente esgotada, desnorteada, inapta p ara a
oração.

12. Está continuamente atento, vigilante, preparado para


discernir aonde te leva a tua decisão ! Vê bem, segundo
Deus, aonde ela te conduz: a esse bem que é o hesicasmo,
supremo benefício da alma? Ou à salmodia? Ou à leitura?
Ou à oração? Ou à prática da virtude? É bom, suprema­
mente bom, que a tua decisão te conduza a qualquer uma
dessas coisas ! Se assim não for estarás a ser artesão da
vacuidade de uma vida que só o é na aparência, pois nela
não têm lugar nem os pensamentos criativos, nem as ações
virtuosas. Por outras palavras: uma pseudovida, onde quer
os pensamentos, quer as ações, passam a ser moldados
para agradar aos homens e não a Deus.
As armadilhas do maligno são, efetivamente, numero­
sas. E diabólicas. É assim que o seu olhar vai mais fundo
do que à primeira vista poderíamos pensar: lá, no reduto
secreto mais íntimo, nos refolhos da alma, ignorados da
maior parte de nós, ele vê para onde se inclina a decisão
que tomamos e, incessantemente, sem disso estarmos
conscientes, trabalha na corrupção da nossa obra, fazendo
com que ela não se realize segundo Deus.
Ora bem: mesmo que te vejas envolvido num combate
desses (combate, sem dúvida, inflexível) tu, seguro da tua
decisão diante de Deus, resiste ! De nenhum modo te
deves deixar devastar, ainda que, sob o impulso da tua
vontade, uma vontade violentada pelo maligno, sej as le­
vado, contra ti mesmo, ao devaneio. Pode acontecer que,
contra a nossa vontade, soframos uma derrota. Mas não
722 PEQUENA FILOCALIA

será uma derrota definitiva, pois rapidamente somos per­


doados e encoraj ados por Aquele que conhece as nossas
decisões e lê no mais profundo do nosso coração.
Há, contudo, uma paixão (estou a pensar na vanglória)
que impede o monge de avançar no caminho da virtude:
prisioneiro dessa paixão, o monge, por mais esforços que
faça no seu caminho de asceta, acaba por se descobrir
como um homem que viveu no engano de si mesmo. Do­
loroso descobrimento esse, o da inutilidade de uma ascese
que, ao se chegar a velho, desemboca no vazio de uma au­
sência de frutos. E note-se: a vanglória é essa insidiosa
paixão que pode atingir cada um numa qualquer fase da
sua vida: tanto pode atingir o noviço, como o do meio,
como o perfeito. O desastre por ela provocado é incomen­
surável: invalida os esforços feitos, castra a produtividade,
esteriliza a virtude.

13. Também pela experiência aprendi que o monge, no


seu desej o de progredir, tem de ser fiel aos desafios ineren­
tes a uma vida virtuosa. E isso implica para ele cultivar no
seu quotidiano estas virtudes: o j ejum, a temperança, a
vigília, a perseverança, a coragem, o hesicasmo, a oração, o
silêncio, o luto, a humildade. Nesse universo, as virtudes
passam por um processo em que se vão gerando recipro­
camente, e reciprocamente se vão conservando e susten­
tando. Vejamos: o desejo suscitado pelo j ejum duradoiro
gera a temperança; a temperança, a vigília; a vigília, a per­
severança; a perseverança, a coragem; a coragem, o hesi­
casmo; o hesicasmo, a oração; a oração, o silêncio; o silên­
cio, o luto ; o luto, a humildade. E, reciprocamente, em
sentido inverso, a humildade gera o luto, et cetera. E se fize­
res o percurso nesse sentido, descobrirás como as filhas,
por sua vez, geram as mães. E desse modo, experienciando
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 723

e sentindo as coisas, irás vendo de um modo cada vez mais


claro que, nesse universo virtuoso, nada é mais importante
que essa forma de mútua geração. Claro que há um mun­
do oposto a esse ou, com mais rigor, um antimundo que
não é outro senão aquele em que as coisas opostas a essas
virtudes são óbvias para todos.

14. Impõe-se-nos não perder de vista que esse é o con­


texto em que se inscrevem os nossos esforços. Sim, todas
as canseiras, todas as fadigas, todas as ações inerentes à
vida ascética têm como pano de fundo esse que evocámos
e que devemos assumir. Se assim não for ficaremos expos­
tos à crítica (crítica j usta) daqueles a quem ludibriámos
com o nosso ensino: ludíbrio resultante do facto de as
nossas palavras defenderem uma coisa e as nossas ações
serem disso um desmentido. Terrível contradição essa!
Indubitavelmente, só o esforço do coração e a fadiga do
corpo podem, de um modo sensato e coerente, levar a
bom termo a obra em que estamos empenhados. E não
percamos de vista que se trata de um esforço e de uma fa­
diga que jubilosamente assumimos. Não podemos nunca
esquecer que, no nosso batismo, o Espírito nos foi outor­
gado, e que esse Espírito é a presença de Deus em nós !
Fazermos memória do nosso batismo é essencial para nos
mantermos fortes na observância dos mandamentos e na
resistência ao assédio das paixões. E se claudicarmos não
ficaremos entregues a um insanável desespero : Ele, o
Senhor, na sua misericórdia, isto é, na força do seu Espí­
rito, espera pelo nosso arrependimento de molde a não
ouvirmos, a nosso respeito, as palavras do j ulgamento
final: «tirai-lhe o talento» e «até o que tem lhe será tirado»,
palavras que implicariam sermos enviados para a geena,
lugar de um eterno sofrimento (Mt 25 ,28-29) .
724 PEQUENA FILOCALIA

Não nos iludamos: quando se trata do hesicasmo, ne­


nhuma obra há - quer do corpo, quer do espírito - que
possa ser levada a cabo sem disciplina, e isso implica esfor­
ço e fadiga. Com efeito, o fruto de uma obra, qualquer que
ela seja, não se consegue sem muito trabalho e sacrifício,
pois há uma luta a travar: no dizer do S enhor, «o Reino
dos Céus sofre violência, e são os violentos que dele se
apoderam» (Mt 1 1 , 1 2) . A particular violência de que aqui se
fala é aquela que se experiencia quando, nas circunstâncias
mais diversas, o corpo segue a via assinalada pelo que é pe­
noso: é nesse sentido que aqui se fala de sofrer violência e de
se ser violento. E isto é para aqueles que têm ouvidos para
ouvir!
Ora, não são poucos aqueles que, seduzidos por uma
vida fácil, depois de um tirocínio mais ou menos longo e
penoso, abandonam o caminho que seguiam. Acontece
isso, de um modo particular, quando soa a hora da ver­
dade: perante a decisão a tomar quando tomam forma
concreta as exigentes decisões do coração, furtam-se ao
desafio, abandonam as agruras do esforço, alguns perdem
mesmo a pureza e deixam de viver a comunhão dada pelo
Espírito S anto. De facto, um equívoco campeia, subj a­
cente, no tempo do tirocínio: aqueles cuj o agir está ferido
pela negligência e comprometido pelo desmazelo conven­
cem-se de que estão a praticar ações penosas, quando, lá
no fundo deles mesmos, estão a viver a sua quimera! Ora
inevitavelmente, mais tarde ou mais cedo, o seu sonho
desvanece-se e despertam para a dececionante realidade ao
verem-se a si mesmos como sempre estiveram: de mãos
vazias, infrutíferos, sobreviventes desnorteados de uma
ilusão dececionante. Disso dá testemunho S. João Clímaco,
e é bom escutar as suas palavras de advertência: «Ainda
mesmo quando são grandes as obras que praticamos, se o
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 725

nosso coração não experimenta a dor, tais obras por nós


praticadas não passam de gestos bastardos e estouvados»
(P. G . LXXXVIII, 8 1 6 a) .
Por conseguinte, sempre que, indiferentes às exigências
de uma disciplina indispensável, e levados pela negligência
própria da acédia, enveredamos pelo caminho onde cam­
peiam as vãs distrações (persuadidos de que nelas encon­
tramos a resposta para as nossas carências) estamos a ser,
sem dúvida alguma, reféns das trevas. E criamos desse
modo uma situação em que nos descobrimos maniatados
por resistentes ataduras que entravam os nossos movi­
mentos e nos reduzem a uma inércia que outra coisa não
gera senão esterilidade. E quando se trata de noviços,
abrem-se-lhes desse modo as portas à vaidade, essa irmã
gémea da paralisia espiritual . E digamo-lo claramente :
tudo aquilo que é feito dentro da j usta medida é bom, par­
ticularmente quando se trata daqueles cuj a evolução espi­
ritual atingiu um estádio nimbado pela perfeição. Disso
testemunha Santo Efrém ao exortar com ênfase: «Assume
o que há de penoso na pena útil, a fim de escapares ao
penoso das penas inúteis! »
De facto, a não ser que o s nossos rins sejam exauridos
pelo desgaste do j ejum, e nós mesmos, semelhantes a uma
parturiente, conheçamos as aflições decorrentes de um
coração contrito (estou a fazer minhas palavras do profeta,
bem como a imagem por ele utilizada) nunca chegaremos
a dar à luz, na pátria do nosso coração, a realidade nova e
salvífica que tem por fonte o Espírito (cf. Is 2 6, 1 7- 1 8) . E ver­
-nos-emos reduzidos a uma confrangedora vacuidade,
vagabundos num deserto inútil (porque infrutífero) dile­
tantes do hesicasmo, imaginando ser alguém, gloriando­
-nos de ser o que não somos. Mas na hora da morte, nessa
726 PEQUENA FILOCALIA

hora em que as coisas serão desveladas, acabaremos por


ser conhecidos pelos nossos frutos.

15.A escola das virtudes é um lugar onde a aprendiza­


gem não pode processar-se no isolamento, isto é, ninguém
pode aprender por si mesmo uma tal ciência. E isso não
obstante alguns invocarem a sua experiência e servirem-se
dela como de um mestre. Há presunção, com efeito, quan­
do decidimos agir por nós mesmos, sem ter em conta que
o mundo não começou connosco, e que, por conseguinte,
não podemos obliterar nem o conselho nem a orientação
daqueles que nos precederam. Precisamos, na verdade, ser
gerados, o que implica nascermos de um parto. Pois se o
Filho nada faz de si mesmo, mas faz o que o Pai lhe ensi­
nou, e se o Espírito não fala de si mesmo, então como é
possível haver entre nós alguém que pense não necessitar
de um outro que o inicie, pois considera-se a si mesmo
autossuficiente e autossabedor? Oo 5 , 1 9; 1 6, 1 3) Um tal ho­
mem torna-se o engano de si mesmo, vítima de uma in­
sensatez que o leva a estar persuadido de que já atingiu o
cume das virtudes (ele, que está longe da virtude!) .
Tomarmos consciência de que somos precedidos histo­
ricamente implica, pois, não perdermos de vista que há um
caminho a seguir de onde não podemos expulsar a obe­
diência como comportamento vital: obediência prestada
àqueles que conhecem bem (um conhecimento fecundado
pela experiência) a dimensão penosa própria do caminho
da virtude ativa. De onde se nos impõe segui-los: no jej um
severo, na temperança austera, na vigília constante, na
genuflexão rigorosa, na estação imóvel, na oração perseve­
rante, na humildade autêntica, na contrição dolorosa do
coração, na paciência fecunda, no silêncio que, anunciador
da palavra, é temperado de sal.
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 727

Na nossa condição de monges temos, pois, de travar


um incansável combate contra duas perigosas derivas : a
que é própria da inatividade, irmã gémea da negligência, e
a que tem que ver, antes do tempo da velhice e da doença,
com a fixação habitacional a um único lugar. É nesse sen­
tido que a Escritura nos exorta, quando sublinha que a
conquista das virtudes é penosa, e que a apropriação do
Reino de D eus Uá a isso nos referimos antes) exige da
nossa parte sermos violentos connosco mesmos.
Por conseguinte, tendo na devida conta o horizonte das
exigências a que nos referimos, assumamos em cada dia,
com a ajuda de Deus, as canseiras subjacentes à entrada no
Reino de Deus. E poderemos estar certos disto: se assim
for, colheremos a seu tempo os frutos que daí resultam.
728 PEQUENA FILOCALIA

No concernente à oração
O modo como o hesicasta deve sentar-se
para a oração e não se apressar a levantar-se

1. Tendo em conta que a prática do orante implica um


empenhamento total e uma disciplina rigorosa, devemos
ter em conta algumas coisas. Assim, na maior parte do
tempo, sentar-te-ás num peq ueno banco, mas quando
algum cansaço te invadir deitar-te-ás durante algum tem­
po (pouco) na enxerga . Quando sentado, mantém uma
postura consentânea com a atitude de quem ora, em sin­
tonia com o preceito paulino «perseverai na oração» (Cl
4,2) . Mantém diligentemente a concentração, não caias na
negligência, não te apresses a levantar-te quando o apelo
espiritual da mente e a demorada imobilidade te fizerem
sofrer.
Voltando ao profeta, uma vez mais as suas palavras são
para nós um apelo para assumirmos a seriedade do que
está em jogo: «eis as dores que me assaltam, à semelhança
daquela que dá à luz» (Is 2 1 ,3) . Pois bem: curvando-te, junta
a mente ao coração (oxalá este se abra!) e invoca a aj uda
do Senhor Jesus. É natural que os ombros te doam e, com
alguma frequência, também a cabeça. Suporta essa dor,
persevera n ela, deixa que o amor te inunda, procura no
coração o Senhor. Não te esqueças do que já dissemos: há
uma violência a exercer sobre nós mesmos quando se trata
da entrada no Reino de Deus! Como diz o Evangelho, esse
Reino é dos violentos e são os violentos que dele se apode­
ram (cf. Mt 1 1 , 1 2) .
E m tudo isso, o Senhor é para nós o grande e sublime
exemplo. É-o no modo como assumiu a sua dor, tanto a
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 729

do corpo como a da alma; é-o no modo como levou até ao


fim a entrega de si mesmo; é-o no modo como amou in­
condicionalmente. E com isso dá-nos tudo.

Como dizer a oração


2. Alguns dos Pais exortam-nos a dizer integralmente a
oração: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim,
enquanto outros apenas uma parte: Jesus Filho de Deus, tem
,

piedade de mim, o que é mais fácil e não exige tanto esforço


à mente. Na verdade, ninguém, só e por si mesmo, pode
confessar de um modo puro e perfeito o mistério ínsito na
confissão-invocação, Senhor Jesus, a não ser pelo Espírito
Santo (cf. 1 Cor 1 2 ,3) . Somos como crianças: tal como uma
delas que balbucia, também nós balbuciamos quando se
trata dessas coisas, pois por nós mesmos somos incapazes
de enunciar plenamente uma tal oração. E já agora, um
conselho prático: é bom não alternarmos frequentemente,
por negligência, as invocações; que sej am raras as vezes em
que uma tal alternância ocorra, e só quando surge a neces­
sidade de nos mantermos firmes na perseverança, pois não
podemos vacilar.
Há Pais - evoquemo-los de novo - que ensinam a dizer
a oração com a boca, enquanto outros com a mente. Por
mim, penso que se deve agir dos dois modos. Pode, até,
haver ocasiões em que ou a boca ou a mente fiquem inca­
pazes de orar: acontece isso quando a acédia leva a melhor
em relação ou a uma ou à outra. Temos muito a ganhar,
portanto, em orarmos com uma e com a outra. Mas quan­
do oramos vocalmente, devemos articular as palavras de
um modo calmo e tranquilo e não num tom demasiado
elevado, pois a voz não deve perturbar nem entravar a con-
730 PEQUENA FILOCALIA

centração própria da mente, condição sine qua non para que


esta mantenha a consciência de si mesma. É necessário
agir assim até que a mente, entregue ao seu trabalho, pro­
grida e receba do Espírito o poder de orar intensa e to­
talmente. Chegados aí, cessa a necessidade de falarmos
com a boca. Porq ue já nem mesmo o podemos fazer.
A mente basta para a realização integral do trabalho.

Como controlar a mente


Não percas de vista isto: ninguém pode dominar por
3.
si mesmo a mente se primeiro não for dominado pelo
Espírito. Com efeito, não podemos senão constatar que a
mente é incontrolável. E é-o não por ser naturalmente hi­
perativa, mas sim por, em virtude do nosso desleixo, ser
dada à distração e ao devaneio. Tendo-nos separado de
Deus, constituímo-nos transgressores dos mandamentos
daquele que nos regenerou, encerrados no labirinto da
nossa desobediência e alienados da perceção mental que
dele tínhamos. Perdida, pois, a união com Ele, ficámos en­
tregues a uma errância que mantém cativa a mente, numa
tal dependência que é levada não importa aonde. É -lhe
assim impossível encontrar a quietude necessária e essen­
cial a não ser na submissão a Deus, submissão que é um
dom do Espírito. Graças, pois, à misericórdia divina uma
tal quietude é restaurada na comunhão com Ele, uma
comunhão intensamente vivida graças ao perdão divino,
perdão que comunica uma nova vida àqueles que, humilde
e contritamente, invocam sem cessar o seu santo Nome. E
não nos esqueçamos da exortação do salmista: «Confessai
o Senhor, e invocai o seu santo nome! Tornai conhecidos
os seus poderosos atos entre as nações ! » (SI 1 05 , 1 ) .
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 73 1

Uma observação importante que deve ser diligente­


mente levada à prática: reter a respiração, com a boca fe­
chada, ajuda a estabilizar a mente. Isso tem, contudo, os
seus limites, já que ela, pouco depois, volta a cair na dis­
persão. Por conseguinte, é essencial que o orante mante­
nha ativada a oração, pois esta tem, ínsita, a energia neces­
sária para levar sempre e de novo a mente a seguir o
caminho da concentração. Que não percamos de vista isto:
é sempre a oração que liberta a mente da dispersão e lhe
comunica a alegria. E com isso liberta-a do cativeiro em
que tantas vezes cai.
Por conseguinte, do que acabamos de dizer podemos
extrair o seguinte princípio, inscrevendo-o no nosso hori­
zonte de reflexão: quando a mente-enraizada-no-coração
está imersa na quietude da oração pode sobrevir-lhe, uma
vez por outra, o extravio de si mesma, pois o intelecto
pode começar a ocupar-se de outras coisas. Com efeito, é
difícil imaginá-lo submetido a qualquer um, pois ele a nin­
guém se submete, exceto àqueles a quem o Espírito Santo
elevou a um particular grau de perfeição. Desses homens
se pode dizer que atingiram o estádio de uma total con­
centração em Cristo Jesus.

Como expulsar os pensamentos


4.Nunca nenhum noviço expulsa um pensamento que
não tenha sido já expulsado por Deus. Com efeito, é apa­
nágio dos fortes combater e expulsar os pensamentos, mas
mesmo eles, a quem é conferido um tal atributo, não os
expulsam por eles mesmos. Na verdade, o combate que
travam não o travam sós: é com Deus como defensor, e re­
vestidos da sua armadura, que são capazes de resistir e
732 PEQUENA FILOCALIA

alcançam uma tão difícil vitória. Por conseguinte, quando


os pensamentos te sobrevêm com a força própria do seu
assédio, invoca o S enhor Jesus, com perseverança e sem
desfalecimento, e eles dissipar-se-ão. Efetivamente, não su­
portam o calor com que a oração inunda o coração, e
entram em debandada como se fossem atingidos pelo
fogo. Nas palavras de S. João Clímaco «fustiga, no nome de
Jesus, aqueles que te combatem» (P. G . LXXXVIII, 945 e) . Que
tomemos a sério essa exortação, pois se assim for expe­
rienciaremos e sentiremos que o nosso Deus é um fogo
que consome a perversidade homicida e que faz emergir a
integridade doadora de vida. Ele, o Senhor, faz isso e, na
sua incomensurável misericórdia, ajuda todos aqueles que
o invocam, e faz justiça àqueles que, com toda a sua alma,
com todo o seu entendimento, com todas as suas forças, o
invocam dia e noite.
Mas aquele que não conta com a energia da oração
pode desbaratar os pensamentos de um modo diferente,
imitando Moisés (cf. Ex 1 7, 1 l ss.) . Se permanecer de pé, com
as mãos e os olhos voltados para o céu, Deus afugentará
os pensamentos. De seguida, de novo sentado, entregar­
-se-á à oração, nela perseverando sem claudicar. De modo
idêntico deve proceder aquele que ainda não está revestido
do poder outorgado pela oração. E mesmo aquele que já o
está deve igualmente assim agir todas as vezes que se de­
fronta com as paixões do corpo (refiro-me de um modo
particular à acédia e à impudicícia, que integram o grupo
das paixões mais duras e pesadas) : estenderá as mãos, in­
vocando a ajuda do alto necessária para as combater. Mas
para evitar cair na ilusão, não deve fazer isso durante mui­
to tempo. D everá, pois, sentar-se de novo, não aconteça
que o inimigo se introduza sibilinamente e, utilizando o
sortilégio da imaginação, ludibrie a mente dando-lhe a ver
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 733

uma pretensa forma de verdade. Porque só aos puros e


perfeitos é concedido ter uma mente íntegra, ocupe-se ela
do que se ocupar: quer do que está no alto quer do que
está em baixo; quer do que está no coração quer do que
está em algum outro lugar. Em tudo ela se mantém ínte­
gra, em tudo ela é salvaguardada.

Como salmodiar
5. De novo, ao voltarmos a falar sobre este tema, lem­
bramos que há pontos de vista diferentes. Há, por exem­
plo, aqueles que dizem ser um dever salmodiar frequente­
mente; outros apenas algumas vezes; outros, nunca. Ora
bem, vou dizer-te o que penso ser importante: não salmo­
dies frequentemente, pois ficarás confuso; nem nunca,
pois daí resultariam desleixo e negligência. Imita antes
aqueles que salmodiam só algumas vezes, pois todo o meio
termo é excelente, tal como no-lo dizem os antigos gregos.
S almodiar com frequência é próprio dos noviços, na
medida em que o seu percurso ascético se processa em
sintonia com uma atividade iniciática que integra a salmo­
dia de um modo particular, pois é considerada como uma
peça importante pelo conhecimento espiritual que con­
fere. Mas isso não convém aos hesicastas em virtude de já
terem atingido um estádio que exige deles que se concen­
trem totalmente na oração. Ora a oração - sabemo-lo mui­
to bem - constitui um centro essencial que só se atinge
mediante um aturado trabalho do coração (um aturado e
longo trabalho!) que passa pelo repúdio de todas as imagens
conceptuais. É que, na verdade - di-lo S. João Clímaco de
um modo exemplar - o hesicasmo supõe a rej eição de
734 PEQUENA FILOCALIA

todo e qualquer pensamento quer ele provenha dos senti­


dos quer da inteligência (P.G. LXXXVIII, 1 1 1 2 a) .
Tendo em conta o particular papel desempenhado pela
mente quando se trata do hesicasmo, é indispensável que
ela se sinta forte: só uma mente forte estará à altura de res­
ponder ao que lhe é pedido de um modo inteiramente
digno, isto é, com a elevação necessária. Ora, constata-se
que uma coisa que compromete a bondade de uma tal res­
posta é a salmodia, quando se torna uma prática frequen­
te: nessas circunstâncias, a mente fica demasiado fraca
para orar com intensidade e perseverança. Sim, com inten­
sidade e perseverança, pois é desse modo que se deve falar
quando se trata da oração. Permita-se-me citar de novo
S. João Clímaco: «Quando a noite está a descer, prepara-te
para durante ela consagrares muito do teu tempo à oração,
mas pouco à salmodia» (P. G . LXXXVIII, 1 1 1 6 e) . Peço-te que
tomes essas palavras do santo como dirigidas a ti mesmo!
Que a interpelação nelas contida encontre em ti a resposta
j usta!
Portanto, se estás sentado imerso na oração, e sentes no
mais profundo de ti mesmo que ela está continuamente
ativa no teu coração, não te levantes para salmodiar! Em
vez disso, deixa que no momento desej ado por Deus Ele te
dê para isso o seu acordo. De outro modo, ao abandonares
a presença interior de Deus, passas a dirigir-te a Ele do
exterior, descendo assim de um estado elevado a um outro
inferior. Lamentamos que uma tal coisa possa acontecer,
mas a verdade é que acontece, com a consequência inevi­
tável: a confusão instala-se, a mente fica perturbada, a
quietude esvai-se. Numa palavra: com a perda da quietude
é a mente que se perde de si mesma.
Por conseguinte, em tudo isto impõe-se-nos sempre e de
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 735

novo ter presente isto: o hesicasmo, tal como a palavra indi­


cia, implica paz e quietude. Sem isso não há hesicastas.
Na verdade, Deus é paz, uma paz que se afirma na pro­
fundidade da vida e que, por isso mesmo, se manifesta para
além de tudo o que é confusão e ruído. Por conseguinte, o
louvor por nós prestado (tal como a nossa maneira de
viver) deve ser angélico e não mundano nem carnal. Sal­
modiar com todas as tonalidades da voz tem a sua impor­
tância, mas trata-se de uma importância que consiste
essencialmente em ser um símbolo do apelo da mente. Por
que é que salmodiamos? Ou, dito de outro modo: por que
motivo nos foi dada a salmodia? E para que fim? A res­
posta, bem vistas as coisas, é esta: a salmodia foi-nos dada
por causa da nossa negligência, da nossa rusticidade, para
nos conduzir em direção ao que é verdadeiro. Aqueles que
ainda não são verdadeiramente orantes, por ainda não
viverem em profundidade a oração (essa fonte das virtudes
que rega as plantas, isto é, no dizer de S. João Clímaco, as
potências da alma) , devem salmodiar muito, sem medida,
sempre numa grande diversidade, sem cessar. Que a sal­
modia, pois, os vá edificando até chegarem a um outro
estádio, o da contemplação, e possam assim, a partir daí,
descobrir a oração noética ativa no seu interior. Porque
uma coisa é a prática do hesicasmo, com as suas particula­
res exigências, outra coisa é a prática da vida em comuni­
dade. Ora, cada um, se for perseverante no caminho em
que foi chamado, será salvo. Por isso, quando te vejo voltar
ao meio deles, tenho um sobressalto e pergunto a mim
mesmo : não será que ao escrever o que escrevo o faço
apenas para os fracos?
Todos aqueles que almejam no seu íntimo atingir a
condição de orantes e viver assim, de um modo genuíno, a
oração, devem ter em conta o seguinte: se o fazem unica-
736 PEQUENA FILOCALIA

mente a partir do que ouviram ou aprenderam, e não têm


ninguém p ara os guiar, não podem senão perder-se. E
ainda sobre a prática da salmodia, convém continuar a
ouvir os Pais, eles que sempre, e de um modo extrema­
mente cuidadoso, sublinham a necessidade de só com
conta, peso e medida se dever salmodiar, pois é à oração
que aquele que foi tocado pela graça deve sobretudo con­
sagrar o seu tempo. Nas horas de ócio é-lhe, porém, im­
portante dedicar-se a uma de duas coisas: salmodiar ou ler
os Atos dos Pais. Com efeito, a nau não necessita de remos
quando o vento sopra: quando isso acontece a vela enfuna
e fá-la navegar à superfície do mar salobro das paixões.
Mas quando o vento não sopra, e a brisa nem se sente, a
nau só navega à custa dos remos ou então com a ajuda de
um barquinho. Àqueles que são amantes da polémica e
sustentam, em defesa dos seus argumentos, que os santos
Pais (ou, nos nossos dias, outros) ficavam de pé toda a
noite e salmodiavam continuamente, respondemos que, à
luz da Escritura, nem todos são perfeitos em tudo, e que o
ardor e a força podem faltar. E, além disso, não deixaremos
de sublinhar também que o que é pequeno não é necessa­
riamente pequeno para os grandes, nem o que é grande é
necessariamente perfeito para os pequenos.
O caminho da perfeição é retilíneo e há aqueles que o
trilham com todo o seu empenho. Tem sido assim, tanto
no passado como no presente. Donde se pode deduzir que
nem todos permanecem eternos aprendizes. E, além disso,
há mais do que um modo de conceber e de viver as coisas
de que falamos. Por exemplo, nem todos seguem a mesma
via, assim como nem todos percorrem até ao fim a via que
seguem. Há, com efeito, quem fique pelo caminho. Há, por
exemplo, aqueles (e não são poucos) que passam da vida
ativa à contemplativa, deixando de lado práticas exteriores
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 737

(o sabbath, por exemplo, é por eles observado segundo a lei


espiritual) . Sentem em tudo um inefável j úbilo que não
emana de mais nada senão unicamente de Deus. E, graças
à graça que deles se apodera, e os enche, deixam de se
empenhar na salmodia ou de meditar em alguma outra
coisa. Conhecem o êxtase e atingem (pelo menos em parte,
como um penhor) o cume dos cumes do seu desej o.
Outros há que encontram a salvação no empenho e na
disciplina que põem numa vida ascética até à hora da sua
morte, morrendo na esperança da vida futura. Outros há
que só na hora da morte tomam consciência da salvação -
e, note-se, deles já mortos desprende-se o suave odor da
fragrância, indício de que foram salvos. Tal como todos os
outros cristãos, também eles receberam a graça do batis­
mo, mas em virtude do estado de ignorância e cativeiro da
sua mente não participaram misticamente nessa graça no
decurso da sua vida. Há ainda outros que se excedem pra­
zerosamente em ambas - na salmodia e na oração - e
assim vivem, transbordantes de graça, sem ficarem pelo
caminho. Outros ainda são homens simples, que vivem
intensamente e de um modo único a comunhão com
Deus, a quem basta a oração: assim unidos a Deus e diante
só de Deus, observam até ao fim o hesicasmo.
Os perfeitos - já o dissemos - podem tudo no Cristo
que lhes dá a força. A Ele sej a a glória pelos séculos dos
séculos. Ámen.

A alimentação
6. Que dizer do ventre, ele que, entre as paixões, é rei?
Se podes paralisá-lo, reduzindo-o ao estado de meio mor­
to, não deixes de o fazer! Ele, o bem-amado, dominou-me
738 PEQUENA FILOCALIA

e eu sirvo-o como seu escravo, como quem capitulou. Ele


opera em conúbio com os demónios, e é morada das pai­
xões. Por causa dele decaímos, nós seus rendidos. Mas a
última palavra não lhe pertence: quando, com esforço, o
suj eitamos à disciplina, levantamo-nos de novo!
De facto, por causa dele decaímos não só da nossa con­
dição divina original, como também da subsequente, a que
vivemos em Cristo mediante o batismo. D esta segunda
decaímos em virtude de termos negligenciado os manda­
mentos, cuja observância é indispensável para que cresça­
mos na graça. Ficámos assim afastados de Deus - ficámo­
-lo mesmo quando, nebulosamente envoltos na nossa
ignorância, estávamos persuadidos de estar junto dele.
Os nossos corpos são diferentes uns dos outros. São­
-no até quando se trata da quantidade de alimentos de que
carecem. Há, com efeito, aqueles que com pouco se satis­
fazem, enquanto outros necessitam de muito para pode­
rem responder às exigências naturais, quando se trata de
dispender muita energia. Alguns dos Pais falam sobre isto,
sublinhando de um modo muito claro a necessidade de
reconhecermos toda esta diversidade. É perfeitamente
compreensível, pois, que cada um, segundo a sua força e
condição física, se abasteça do que lhe é necessário para
viver no seu quotidiano. O hesicasta, esse, deve estar per­
manentemente desprovido de tudo e nunca inteiramente
saciado. Quando um estômago pesado perturba a mente,
é impossível orar com intensidade e pureza. Facilmente se
constata que a exalação proveniente de uma comida abun­
dante torna um homem sonolento e, por conseguinte,
com o desej o de se entregar rapidamente ao sono. E no
sono são muitos os fantasmas que assaltam a mente.
Na maneira como vej o as coisas, estou persuadido de
que aquele que se empenha na busca da salvação se deve
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 739

contentar, diariamente, com não mais do que um meio


quilo de pão, e três ou quatro copos de água e de vinho. E
entre os outros vários alimentos, não excluir nenhum (não
nos esqueçamos de que tudo o que foi criado por Deus é
muito bom) mas comer pouco do que come (fazendo-o
com ação de graças) evitando a saciedade. É necessário,
portanto, haver frugalidade no modo como nos alimenta­
mos, de molde a escapar ao torpor resultante de uma refei­
ção copiosa. Agir assim supõe um discernimento próprio
da sageza. Quanto àqueles cuj a fé é fraca e a alma tíbia,
melhor seria que se abstivessem de determinados tipos de
alimentos. Eles não creem que Deus os guarda, e a esses o
Apóstolo exorta a não comerem senão legumes (cf. Rm 1 4,2) .
Que posso eu dizer-te, sim, que posso eu dizer-te de
pertinente para a tua vida, na condição que é a tua? Repa­
ra que já passaste o tempo da juventude, e a regra que pro­
curas é pesada, sendo que até os mais novos não conse­
guem observá-la de um modo rigoroso e sem falhas. E tu,
como te comportarás tu? Uma coisa te é necessária, quan­
do comes: sentires-te livre em relação a todas as coisas. E
se claudicares arrepende-te e tenta de novo. Não desistas,
sê persistente, e quando errares tem a capacidade de te cri­
ticares a ti mesmo e não aos outros. E se esse for, efetiva­
mente, o teu comportamento, verás como aprendes com as
quedas que ultrapassas com sageza. E, nessa aprendizagem
de experiência feita, a leitura das Escrituras será para ti
essencial, pois elas colocar-te-ão no caminho em que serás
j ubilosamente surpreendido pelo repouso e pela quietude
que te invadirão.
Sê, pois, comedido sem ultrapassar o limite por nós in­
dicado. Com efeito, nada fortifica tanto o corpo como o
pão e a água. Não é sem os seus motivos que o profeta os
privilegia em relação aos outros alimentos ao exprimir-se
740 PEQUENA FILOCALIA

deste modo: «filho do homem, come comedidamente o


teu pão, e bebe a tua água» (Ez 4, 1 6) .
Quando se trata do comer, há três limites a observar.
A partir do que temos estado a dizer, podemos nomeá-los:
temperança, satisfação, saciedade. A temperança consiste
em ficarmos com apetite depois de termos comido. A satis­
fação em não ficarmos nem famintos nem entorpecidos. A
saciedade em não termos excedido o necessário. Tenha­
mos presente isto: comermos de novo, depois de estarmos
saciados é uma porta aberta para a glutonaria, através da
qual acaba por se manifestar a impudicícia. Se estás, pois,
consciente do que está em j ogo, que esse teu conheci­
mento te leve a escolher o melhor, segundo as tuas possi­
bilidades, e não ultrapasses os limites. Insígnia dos petfei­
tos, no dizer de Paulo, o apóstolo, é a arte de saber ter fome
e de saber estar saciado, e em todas as circunstâncias sentir
a força necessária, e só a necessária, nem demais nem de
menos (cf. Fl 4, 1 2) .

O erro e alguns outros assuntos


Peço-te que me compreendas : o meu desej o não é
7.
outro senão ver-te capaz de discernir o erro e, uma vez dis­
cernido, fugir dele. Uma tal atitude de discernimento li­
berta-te da ignorância que mata e abre-te o caminho que,
outorgado por D eus, conduz à salvação. Com efeito, a
ignorância facilmente leva o homem, dotado de livre-arbí­
trio, a associar-se a quem não se deve associar: aos inimi­
gos, sobretudo àqueles que, seduzidos pelos demónios, são
fautores da indignidade e da mentira. Trata-se de inimigos
implacáveis, com as suas artimanhas próprias, que mon­
tam cerco à volta sobretudo dos mais vulneráveis: dos
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 741

noviços a quem atordoam com as suas atoardas, dos mon­


ges enfraquecidos, nos quais provocam o desnorte, ser­
vindo-se da armadilha dos pensamentos (verdadeiras fossas
onde uns e outros caem facilmente) . A cidadela, habitação
de uns e de outros, fica assim refém dos bárbaros.
Não devemos, pois, espantar-nos ao ver como alguns
dão mostras de desvario no seu comportamento. Eis mani­
festações de um tal desvario: perdem-se no labirinto de­
moníaco da sedução passional; hipotecam o espírito; con­
vivem pacificamente com o erro ; veem coisas exóticas
alheias à verdade; propagam incongruências, reféns que
são de uma inexperiência nutrida pela ignorância.
De facto, constatamos não poucas vezes que pessoas
pouco preparadas, incapazes de se exprimirem como deve
ser, ao quererem falar da verdade acabam por dizer em
tom solene, sem disso terem consciência, coisas trocadas
que não passam de idiotices, lançando desse modo a per­
turbação em muitas almas. E não só: além disso, por causa
dessa sua falta de inteligência e de formação, acabam por
atrair sobre os hesicastas a censura e o riso.
Não é propriamente dos noviços que falo: nada há de
espantoso, com efeito, no erro cometido por um noviço,
mesmo depois de algum tempo de tirocínio. Isso é uma
coisa que tem acontecido a muitos daqueles que procuram
Deus, tanto hoj e como outrora. E é perfeitamente com­
preensível.
O hesicasta, ao viver a comunhão com Deus, sabe que é
no centro dessa comunhão que se encontra a oração noé­
tica. Ora, dela podemos dizer que é a mais elevada de todas
as ações. E isso é de tal modo assim que todo o orante que
vive a dimensão profunda dessa oração, é o amor de Deus
que vive: o amor com que Deus o ama e o amor com que
ama Deus, que são, rigorosamente, um único amor.
742 PEQUENA FILOCALIA

Pelo contrário, aquele que procura encontrar-se com


Deus, e mostra desej o de o confessar, e não se esquece de
o louvar, mas age sem decoro e de um modo temerário,
torna-se presa fácil dos demónios, dado ficar reduzido às
suas próprias forças e confinado à esfera da sua ilusão. É
desse modo um sério candidato à presunção e à audácia,
um prematuro vanglorioso no esforço que faz para chegar
à meta antes do tempo. Mas o Senhor, movido de compai­
xão, sempre que vê alguém possuído por uma tal audácia
(a audácia da inconsciência) não permite que a tentação
tome tentacularmente conta dele e o destrua. Ele, o Se­
nhor, liberta-nos de nós mesmos antes que nos tornemos
opróbrio dos demónios e chacota dos homens. O que sig­
nificaria termo-nos feito a nós mesmos homens risíveis
dignos de lamentação. Somos assim colocados por Ele no
caminho fecundo da procura paciente e humilde da obra
maravilhosa que nos transcende, numa atitude de submis­
são, interrogando aqueles que dela têm uma experiência
viva, de molde a não colhermos j oio em vez de trigo, acri­
mónia em vez de doçura, perdição em vez de salvação.
É timbre dos fortes e perfeitos o denodo e a sageza com
que travam o combate contra os demónios, esgrimindo o
gládio do Espírito, que é a Palavra de Deus. Mas os fracos
e os noviços, executantes de um tirocínio que ainda está
muito no início, devem agir com temor e tremor, sem au­
dácias extemporâneas, escapando assim a uma derrota que
podem perfeitamente evitar desde que se abriguem na
cidadela da prudência. Impõe-se-lhes, sem dúvida alguma,
evitar um combate prematuro, para o qual não estariam
preparados, o que implicaria para eles a necessidade de
darem às de vila-diogo.
Quanto a ti, que vives o hesicasmo com integridade,
diante de Deus, se vires uma qualquer imagem (sej a ela
SÃO GREGÓRJO, O SINAÍTA 743

sensitiva ou intelectiva, exterior ou interior, de Cristo ou


de anj o, de santo ou de luz) repudia-a! Porque a mente é
uma oficina onde, facilmente, se podem forj ar fantasmas.
Ela, com toda a ligeireza, pode dar forma ao desej o, parti­
cularmente naqueles cuj a capacidade de discernimento é
ainda reduzida. Ora, os estragos que daí podem resultar,
em primeiro lugar para ela mesma, não são de pequena
monta. A lembrança de experiências vividas - tanto daque­
las que foram boas como das que não o foram - acaba por
impregná-la, levando-a a gerar fantasias. E é particular­
mente desse modo que nos tornamos fantasistas e não
hesicastas.
Com efeito, disto podemos estar seguros: onde impera a
fantasia estiola o hesicasmo. Motivo pelo qual deves ser
vigilante, um vigilante dotado da capacidade do discerni­
mento, para não considerares, precipitadamente, como um
objeto de fé o que não passa de uma criação artificial, so­
bretudo se parece ser boa. Em alturas dessas é indispensá­
vel procurares orientação j unto daqueles que são experi­
mentados, submetendo-te a um cuidadoso exame a fim de
não seres atingido pelos estragos que podem resultar da
situação criada. Cultiva, pois, uma s alutar suspeição, e
mantém sempre a mente livre de cores, de figuras, de ima­
gens. Acontece, com efeito, haver coisas que D eus nos
envia para testar o nosso livre-arbítrio. Pois bem: impõe­
-se-te sempre ser prudente, pois o modo como a elas rea­
gires tanto pode redundar na tua elevação como na tua
queda.
O Senhor quer, com efeito, submeter à prova as esco­
lhas da nossa liberdade. Ora, aquele que, mental ou senso­
rialmente, vê alguma imagem, mesmo que vinda de Deus,
e a recebe sem dela falar àqueles que são experientes, facil­
mente se engana e pode cair num logro de lastimáveis
744 PEQUENA FILOCALIA

dimensões. Quando se trata de um noviço, é necessário


que ele estej a atento ao coração (que não engana) e rej eite
uma qualquer outra coisa, até ao tempo do apaziguamento
das paixões. Deus não censura aquele que, para não cair
no logro, mantém uma estrita atenção às suas reações e
examina, longa e demoradamente, até mesmo aquilo que
de Deus lhe pareça vir. Em lugar de censurar, Deus louva
uma tal sabedoria, pois ela é ditada em nome de uma espi­
ritualidade íntegra. O que D eus censura é a atitude de
alguns que não passa de um comportamento de autojus­
tificação.
Quando temos perguntas a fazer, não devemos fazê-las
a qualquer um, nem muito menos a todos, mas a um só,
àquele a quem foi confiada a tarefa de ser guia dos outros,
e que, sendo ele mesmo pobre, a muitos enriquece. É que,
tendo em conta a importância do que nisto está em j ogo, a
nossa decisão de procurar apoio deve ser responsável, o
que implica estar consciente de que, infelizmente, não são
poucos aqueles que, faltos de experiência espiritual, têm
prej udicado muitos que, insensatamente, procuram neles
orientação. D esses tais que se constituem a si mesmos
guias de outros, o julgamento ocorrerá depois da morte.
É que, na verdade, nem todos podem ser condutores de
outros: apenas têm legitimidade para o ser aqueles aos
quais, no dizer do divino Apóstolo, foi conferido o dom di­
vino do discernimento dos espíritos (cf. l Cor 1 2 , 1 0) . Efetiva­
mente, apenas a esses é dado o dom de separar, mediante o
gládio da Palavra. Cada um pode, perfeitamente, ter um
conhecimento próprio que foi adq uirindo ao longo da
vida, e possuir mesmo um discernimento natural, prático
ou matemático - mas nem todos são dotados do discerni­
mento dom do Espírito. Por isso, Sirácida, o sábio, adverte:
«aqueles que vivem em paz contigo podem ser numerosos;
SÃO GREGÓRJO, O SINAÍTA 745

mas apenas um entre mil pode aconselhar-te» (Sir 6,6) . Não


é, de facto, fácil encontrar um guia espiritual que reúna os
requisitos considerados como essenciais para orientar
espiritualmente aqueles que dessa orientação têm necessi­
dade. Um guia desses deverá ser um guia seguro p arti­
cularmente em três coisas : nas obras, nas palavras, nos
pensamentos.
Sê prudente no agir, valoriza a segurança, foge do labi­
rinto do desnorte. E se assim for, os teus atos serão j ustos,
prenhes de uma justiça reveladora não só de que estás em
sintonia com a divina Escritura, mas também de que não
vives na instabilidade espiritual. Porque um esforço não
pequeno nos é exigido para atingirmos uma compreensão
da verdade libertadora, e sermos assim purificados de tudo
o que se opõe à graça, pois só desse modo o diabo não le­
vará a melhor - ele que, sobretudo quando se trata dos
noviços, é perito em dar aos erros por eles cometidos a
forma da verdade, metamorfoseando os seus vícios em vir­
tudes espirituais.
Por conseguinte, aquele que se esforça para atingir a
oração pura deve seguir o caminho do hesicasmo sem trair
aquilo que ele é e aquilo que ele exige. Ora (sabemo-lo
bem) um tal caminho vivido no espírito do luto não é
outro senão o do temor e tremor próprios do que há de
inefável na comunhão com D eus. Caminho esse onde
pode caber a condução daqueles cuj a experiência é sinó­
nimo de segurança. A esses interrogará sempre que sinta
necessidade de orientação. Como corolário deve lamentar
os seus pecados, e não se esquecer de que toda a sua vida
está debaixo do julgamento divino já aqui neste tempo
presente e mais tarde no tempo futuro.
Um comportamento como esse é essencial, pois o
diabo, ao ver alguém chorar o seu pecado, recua medrosa-
746 PEQUENA FILOCALIA

mente: se há uma coisa que ele teme é sobretudo uma ati­


tude de humildade que leva um homem ao arrependi­
mento. Pelo contrário, sente-se triunfante quando alguém,
cheio de vanglória, imagina presunçosamente ter atingido
as alturas na vida espiritual. O seu desejo é, pois, que isso
aconteça ao orante: desejo que não é outro senão satânico.
Um tal orante torna-se assim presa fácil do diabo, que
ardilosamente o apanha nas suas redes, fazendo dele um
fiel escravo.
Deste modo, o melhor antídoto da tristeza que atinge o
orante quando é invadido pelo desfalecimento (e é tentado
a ceder o passo à vaidade) não é outro senão o da perseve­
rança: uma perseverança na oração que resista, contra
ventos e marés, ao demónio da acédia! E se assim for, um
tal orante sentirá o coração inundado de j úbilo - o júbilo
característico do caminho em que somos salvos. Fora da
oração, esse caminho fechar-se-nos-á, e sentiremos o
coração atirado para o frio da tristeza. Ora, a oração de
Jesus - a oração autêntica - inunda o coração de ardor,
pois Ele é aquele que, no dizer do Evangelho, veio trazer o
fogo à terra do nosso coração (cf. Lc 1 2 ,49) . E com isso é o
império das paixões que é quebrado e é o júbilo da alma
que renasce. Ora, ela, a oração de Jesus, não resulta de um
qualquer exterior (nem da direita, nem da esquerda, nem
do alto) pois jorra no nosso coração, qual fonte de água
proveniente do Espírito doador da vida. O teu único
desejo deve ser encontrá-la e possuí-la só a ela, no escrínio
do teu coração. Para isso mantém a mente vazia de ima­
gens e despojada de cogitações e pensamentos. E se assim
agires nada temas, pois Aquele que disse: «Coragem, sou
eu! Não temais ! » está connosco e não nos abandona (Mt
1 4,27) . A Ele rogamos que nos proteja sempre. E quando,
em oração, invocamos o Senhor, não devemos nem temer
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 747

nem cair no lamento.


Se alguns se têm transviado, e nessa errância perdido o
equilíbrio da mente, é devido sobretudo à arrogância com
que se ouvem apenas a si mesmos. Não deve ser assim
contigo. Com efeito, quando procuras Deus com um espí­
rito humilde e submisso, e sob a orientação de um mestre
espiritual, pela graça de Cristo (que deseja salvar todos os
homens) não infligirás a ti próprio mal algum . Quando
isso acontece, no meio dessas bem-aventuradas circuns­
tâncias, até mesmo a provação que pode sobrevir a qual­
quer um será uma ocasião, na Providência divina, para
vivermos intensamente a vida que o Senhor nos dá - pois
Ele estende-nos a sua aj uda através dos meios por Ele
conhecidos.
No dizer dos Pais, o homem íntegro, despoj ado de arro­
gância e vanglória, ainda mesmo quando tem contra si
toda a falange dos demónios, que atacam em mil frentes,
sairá disso incólume. Pelo contrário, aqueles que cami­
nham com presunção e de um modo voluntarioso, acabam
por fazer mal a si próprios. Motivo pelo qual o hesicasta
deve sempre ter em suma conta a via real. Encontrar-se a
si mesmo nessa via implica para ele declarar a morte da
arrogância que autojustifica e celebrar a vida que jorra do
Espírito.
Ainda sobre a respiração: esforça-te por reter a expiração
da mente, apertando um pouco os lábios durante a oração,
mas não a expiração das narinas (como fazem os ignoran­
tes) a fim de não inchares perigosamente de orgulho.
Há três virtudes próprias do hesicasmo a que devemos
estar particularmente atentos, pois exigem de nós uma
vigilância quotidiana que não claudique. Com efeito, estão
aqui em causa as virtudes seguintes: a temperança, o silên­
cio, a autocrítica. Contêm-se reciprocamente entre si, tal
748 PEQUENA FILOCALIA

como se guardam mutuamente. A terceira supõe a humil­


dade, e a oração nasce e cresce tendo-as às três como fato­
res essenciais. Tendo em conta, pois, a sua importância, in­
terroguemo-nos a nós mesmos nestes termos : será que as
assumimos genuinamente? S erá que as vivemos de um
modo autêntico ou, em vez disso, ludibriados pelo esque­
cimento (esse esquecimento que anula a memória da cria­
ção do belo) enviamo-las para a periferia da nossa vida,
isto é, para a insignificância da mediocridade?
Na vida do orante, a graça manifesta-se de muitas e
variadas maneiras, pois ela, cuj a riqueza é infinita, enri­
quece-nos de diferentes modos. Podemos, pois, falar da
beleza que há na sua manifestação em nós. Ora, também
do Espírito podemos dizer o mesmo: onde quer que o Es­
pírito sopra faz belas todas as coisas. Por conseguinte, nós,
ao sermos bafej ados com esse sopro, somo-lo na riqueza
da diversidade da vida daqueles que, na oração, aprendem
a viver da sua força. A presença do Espírito em nós, e a
nossa p resença nele, opera-se de diferentes modos : no
dizer do Apóstolo, estarmos no Espírito e participarmos
dele, é participarmos dessa diversidade, segundo a sua
vontade (Heb 2 , 4) . Queremos disso um exemplo bíblico?
Temo-lo em Elias, o tisbita, essa surpreendente e descon­
certante figura (cf. lRs 1 9, 1 1 - 1 2) .
Há, com efeito, aqueles em quem um espírito de temor
- capaz de fender a montanha das paixões, bem como de
quebrar o granito de um coração endurecido - faz silen­
ciar as pulsões da carne, mortificando-a. Mas há também
aqueles em quem o espírito (continuamos a falar no espí­
rito humano) se manifesta como uma espécie de tremor de
terra de júbilo: um júbilo interior, profundo, uma espécie
de sobressalto luminoso, no dizer dos Pais. Em outros
ainda (de um modo particular naqueles que, como oran-
SÃO GREGÓRIO, O SINAÍTA 749

tes, fizeram assinaláveis progressos) ocorre uma revelação


mística, qual luminosa e pacífica brisa: Cristo presente no
coração, no dizer do Apóstolo (cf. Ef 3 , 1 7) . Nessa perspetiva,
é iluminante o que se passou no Monte Hore b : E lias é
interpelado pelo que se passa à sua volta e, p articular­
mente, por Deus, que diz de si mesmo que não estava nem
aqui nem ali, nas ações imperfeitas dos noviços, mas que
estava na brisa ligeira de luz, indício de se ter atingido a
oração perfeita.
Chegados aqui, alguém poderá, eventualmente, formu­
lar a pergunta que se segue.
Pergunta: Que fazer quando o demónio se transforma
em anj o de luz e engana o homem? (2Cor 1 1 , 1 4)
Resposta: Ao homem é-lhe pedido muito discernimento
para reconhecer a diferença entre o bem e o mal. Não te
apresses, pois, a entregar-te impensadamente ao que te
aparece com uma qualquer força de sedução. Mantém-te
circunspecto e sê prudente. Àquilo que j ulgas ser o bem
não o guardes senão depois de o teres longamente pro­
vado. E rej eita a malícia. Alimenta um espírito crítico: exa­
mina e discerne, e só depois crê. Não te esqueças de que
mesmo um diabo metamorfoseado em anjo não pode rea­
lizar obras que são exclusivas da graça. Por um lado é inca­
paz de comunicar doçura, bondade, humildade, menos­
prezo do mundo; por outro lado não quadra com a sua
maneira de agir travar os prazeres e as paixões. Tudo isso
são atos da graça. Dele, diabo, não podemos esperar outra
coisa a não ser aquilo que é diabólico: separação, torpor,
orgulho, cobardia, malícia.
Não te esqueças de que a energia divina, ao agir em
nós, manifesta sempre a sua força vital. É desse modo que
ela é para nós um critério que nos permite julgar a luz que
brilha na nossa alma: trata-se de uma luz divina ou, pelo
750 PEQUENA FILOCALIA

contrário, satânica? A alface parece-se com a salada amar­


ga, e o vinagre aparenta-se ao vinho. Mas o paladar, a boca,
é capaz de discernir a diferença. Pois bem: p assa-se o
mesmo com a alma! Na verdade, a alma, quando dotada da
capacidade do discernimento, e mediante o exercício crí­
tico da mente, é capaz de não confundir os fantasmas de
satã com os carismas do Espírito Santo.
SÃO GREGÓRIO
DE PALAMAS
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS (1296-1359) , nasceu em Constantino­
pla. Foi monge no Monte Atos, pelos anos 1317, arcebispo de Tes­
salónica em 1347, veio a falecer nessa cidade em 1359. A sua vida
foi em grande parte consagrada a defender e a revelar o funda­
mento teológico e a experiência existencial do hesicasmo, ou seja,
a interiorização da origem e das consequências da vida monásti­
ca. Na sua época, o hesicasmo foi violentamente atacado nos lu­
gares do seu próprio desenvolvimento : em Constantinopla, no
Monte Atos e em Tessalónica. A linha intelectualista entrou em
choque, quebrando um milénio de reflexões no campo monástico
e teológico. Gregório tornou-se o grande defensor do hesicasmo,
perante o clima de perseguição. A sua obra exprime por esse mo­
tivo, na sua diversidade, o clima de edificação e de controvérsia.
Tal como Diadoco de Poticeia, no século v, veio em defesa dos
monges egípcios, Gregório veio também defender, no século x1v,
em nome da mesma ortodoxia, os hesicastas do Monte Atos ou
discípulos dessa mesma corrente espiritual. Enfrentou a prisão,
mas acabou por vencer, pelo menos no campo teológico, apesar
do desastre que se vivia no campo político em relação à civiliza­
ção bizantina, perante a invasão otomana.
Em defesa dos santos hesicastas

Uma segunda pergunta que lhe é feita


Auxiliou-me imenso, pai, teres recorrido ao ensino dos santos
para responder à minha pergunta anterior. Com efeito, ao ouvir-te
tomei consciência de como podia encontrar uma resposta para as
minhas dificuldades. Mas não só. O modo como me confrontaste
com a limpidez da verdade maravilha-me sobremaneira.
Comecei, porém, estimulado pela importância do que dizes, a
refletir assim: se, como tu mesmo sustentas, é possível haver uma
sentença que contradiga outra sentença, então o ponto de vista por
ti defendido poderia ser, eventualmente, contraditado por outro
ponto de vista. Não temo, porém, que assim seja. Sei peifeitamente
que o testemunho dos santos é incontestável, e já ouvi também deles
um ensino análogo ao teu. Reconheço haver nisso uma solidez
incontestável, o que me leva a ter muitas dúvidas acerca da solidez
da fé de um homem que rejeita um tal ensino. Como é que seria
possível a um tal homem não acabar por rejeitar o Deus dos santos,
se aos santos rejeita ? Na verdade, é o Senhor quem disse aos Após­
tolos e, mediante eles, aos santos que se lhes seguiram: «Aquele que
vos rejeita a mim rejeita» (Lc 1 0, 1 6) isto é, rejeita a própria Ver­
-

dade. De facto, como seria possível àqueles que procuram a verdade


aprovar quem se opõe à busca da verdade por se opor à verdade ?
Sentindo-me interpelado por estas coisas, peço-te, pai, que me es­
cutes ao expor os argumentos que ouvi daqueles que passam a vida
enfronhados na educação helénica, e que em seguida me digas não
754 PEQUENA FILOCALIA

só o que pensas de uma tal argumentação mas também qual é, em


relação a esta matéria, o ensino dos santos.
Efetivamente, esses homens afirmam que laboramos em erro
quando nos esforçamos por introduzir, no interior do corpo, a
mente. Segundo eles, é precisamente o contrário: éfora do corpo que
devemos colocar a mente. Por esse motivo causticam duramente
alguns dos nossos. Escrevem contra eles e acusam-nos sobretudo
disto: de exortar os noviços a concentrarem-se de tal modo que, pela
inspiração do sopro, façam entrar em si mesmos a mente. Dizem
esses nossos críticos que, não estando a mente separada da alma,
mas contida nela, não é possível fazê-la entrar. Acusam-nos, pois,
de ser defensores de uma rotunda insensatez. É também para eles
indefensável que a graça divina se aloje em nós ao ser introduzida
pelas narinas, doutrina igualmente defendida pelos nossos.
Estou persuadido, porém, de que as suas alegações são calunio­
sas, pois nunca ouvi dizer tais coisas a nenhum dos nossos. Sou até
mesmo levado a pensar que, comportando-se eles de um modo falso
neste ensino, falsamente também poderão comportar-se em outros
ensinos. É que, com efeito, nenhuma diferença assinalável existe
entre forjar um ensinamento falso e perverter um ensinamento ver­
dadeiro. Peço- te portanto, pai, que me esclareças no ensino em
causa: que coerência há no nosso empenho em fazer entrar em
nós a mente, sem vermos contradição alguma entre isso e o re­
conhecimento de que ela está contida no corpo ?

Resposta a essa pergunta


(Dedicada àqueles que, no hesicasmo, concentram a atenção em si
mesmos, e para os quais não é inútil o esforço que fazem para manter a
mente no interior do corpo.)

Pois não ouves tu, irmão, as palavras do Apóstolo: «os


1.
nossos corpos são templo do Espírito Santo que está em
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 755

nós», bem como : «nós somos casa de Deus», afirmação


esta que o próprio Deus confirma ao declarar: «habitarei e
caminharei neles, e serei o seu Deus»? ! (l Cor 6 , 1 9; 2Cor 6, 1 6) .
Por que motivo, pois - sendo nós dotados d e mente - nos
havemos de indignar com a declaração de que a mente
habita o que, por natureza, é morada de Deus? E como é
que D eus, na origem, fez com que a mente habitasse o
corpo? Será que, também Ele, agiu mal?
Interrogações dessa natureza, irmão, é aos heréticos
que compete formular, eles que dizem que o corpo é mau
e, como tal, obra do maligno. Quanto a nós, pensamos que
a mente só é má ao gerar pensamentos somáticos, mas que
não é má no corpo em si mesmo, pois o corpo não é mau.
Motivo pelo qual aqueles que se ligam a Deus para toda a
vida invocam-no em sintonia com as palavras de David: «a
minha alma tem sede de ti! Quantas vezes não te tem a
minha carne desejado!», e «O meu coração e a minha carne
rej ubilam j unto do D eus vivo » ; e com as de Isaías : «as
minhas entranhas vibram como uma cítara, e o que está
dentro de mim como um muro de bronze, por ti refeito», e
«levados pelo teu temor, Senhor, estamos grávidos do Es­
pírito com que tu nos salvas» (SI 63,2; 84,3; Is 1 6, 1 1 ; 26, 1 8) . Por
conseguinte, fortalecidos por essas palavras e encorajados
por esse Espírito, não cairemos.
Cairão, porém, aqueles que falam a linguagem terrena e
ficam reféns da vacuidade desse seu discurso. Trata-se, até,
de um discurso de onde emerge, perigosamente emerge,
uma pesada mentira: são apresentadas como celestes pala­
vras e condutas que são, todas elas, mediocremente terrá­
queas e mundanas. Com efeito, quando o apóstolo Paulo
atribui ao corpo o epíteto morte (assim se exprime ele, de
facto, ao formular a candente pergunta «quem me livrará
deste corpo de morte?» [Rm 7,24]) motiva-o a ideia de que
75 6 PEQUENA FILOCALIA

uma mentalidade carnal, por ser materialista, é corpórea.


Daí que, ao compará-la com o pensamento espiritual e
divino, lhe chame com toda a justeza corpo e não simples­
-

mente corpo, mas corpo de morte. E um tal raciocínio, grávido


de uma surpreendente profundidade, começa logo a ser
por ele evocado, de um modo mais claro, um pouco antes:
acusa então não a carne mas a pulsão culposa inerente à
transgressão. Declara, de facto, numa forma de confissão
reveladora de uma viagem ao interior de si mesmo : «fui
vendido ao pecado» (Rm 7, 1 4) . Ora aquele que foi vendido
não é por natureza escravo. E continuando essa sua
viagem interior, acrescenta: «sei que o bem não habita em
mim, isto é, na minha carne» (Rm 7, 1 8) . Como vês, não diz
que é a carne que é o mal, mas sim o que nela habita, isto
é, a lei que está nos nossos membros e que se opõe à lei da
mente (cf. Rm 7,23) .

2. Por esse motivo, ao nos opormos à lei do pecado


estamos envolvidos num combate que visa erradicá-la do
corpo, abrindo assim o caminho para que, em seu lugar,
sej a estabelecida a supervisão da mente. É essencial uma
tal supervisão, pois é através dela que a cada poder da alma
é atribuído o seu papel, e a cada membro do corpo outor­
gada a fundamental função que de direito lhe compete.
Desse modo, os sentidos experienciam as suas virtualida­
des na prossecução dos objetivos que são os seus, agindo
segundo a lei da temperança e visando uma determinada
meta. À parte da alma que sofre as paixões é atribuída a
melhor das disposições: a do amor. Além disso, é melho­
rada e intensificada a sua faculdade racional, tão impor­
tante quando se trata de expulsar tudo o que impede a re­
flexão de se elevar para Deus. Pois bem: a essa capacidade
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 757

- virtude que se opõe à lei do pecado - chamamos sobrie­


dade vigilante.
Ora, todo aquele que vive essa sobriedade vigilante (de
que um dos elementos constitutivos é a temperança) passa
por um processo de aprofundamento de si mesmo que o
leva à prática de importantes coisas: a purificar o corpo e a
custodiá-lo; a fazer do ardor e do desejo virtudes geradoras
de vida; a elevar a mente, liberta dos atilhos que a tornam
cativa, até Deus. Um tal homem, orante que se entrega à
graça divina, experiencia e sente o dom da pureza de cora­
ção. Vivendo, pois, na força outorgada pelo Espírito, o que
há de inefável em tudo isso, dirá j untamente com Paulo:
«porque Deus que disse "do seio das trevas refulgirá a luz"
é quem a fez refulgir nos nossos corações, para que irra­
diássemos o conhecimento da glória de Deus, que refulge
na face de Cristo Jesus» (2Cor 4,6) . E acrescenta ele « mas
temos este tesouro em vasos de barro para que se vej a que
esse poder extraordinário pertence a Deus e não a nós»
(2Cor 4 , 7) . Por conseguinte, compete-nos assumir isso
mesmo, reconhecendo que é nos nossos corpos - esses
frágeis vasos de barro ! - que transportamos um tal te­
souro: a luz do Pai na pessoa de Jesus Cristo.
Ora, experienciando nós desse modo a glória do Espí­
rito Santo, uma questão essencial não pode ser por nós
eludida: seria concebível nós cairmos na indignidade de
uma interpretação e de um comportamento que fossem a
negação da nobreza da mente que assim é mantida no
interior do corpo? Poderá haver alguém com craveira espi­
ritual, que no seu são j uízo - e dotado só que seja de inte­
ligência humana, mesmo sem a graça divina - responda
afirmativamente a uma tal pergunta e nos acuse de uma tal
inconsequência?
758 PEQUENA FILOCALIA

Visto a alma ser uma entidade singular que, na sua


3.
singularidade, se manifesta dotada de várias faculdades,
entre elas a de utilizar o corpo, com o qual se relaciona
naturalmente - visto isso ser assim, de que órgãos se serve,
na sua atividade, a faculdade da alma a que chamamos
mente?
Nunca ninguém admitiu que a atividade da mente se
processasse nas unhas, ou nas pálpebras, ou nas narinas,
ou nos lábios. Todos admitem que ela se processa no inte­
rior de cada um de nós. Mas - interrogam alguns - em que
órgão, no nosso interior, ela se localiza em primeiro lugar?
E as respostas divergem: no cérebro (qual acrópole) res­
pondem alguns; na parte mais central do coração (a que
foi purificada da mácula da vida natural) respondem
outros. Ora, sabemos (o saber de que aqui se fala é expe­
riencial) que a nossa faculdade racional não está localizada
nem dentro de nós como um conteúdo está num conti­
nente (dado ser incorpórea) nem fora de nós (dado nos
estar intrinsecamente ligada) . Está, sim, localizada no cora­
ção como seu órgão próprio.
E isso não o aprendemos de um homem, mas sim da­
quele que criou o homem. É, com efeito, Ele quem nos diz
no Evangelho: «não é o que entra, mas sim o que sai da
boca que macula o homem» (Mt 1 5 , 1 1 ) . E aprofunda essas
suas palavras acrescentando estas outras: «pois é do cora­
ção que procedem os pensamentos» (Mt 1 5 , 1 9) . Pronun­
ciando-se sobre essa questão essencial, Macário, o Grande,
ecoa as palavras do Evangelho: «O coração pastoreia todo o
organismo, e quando a graça toma posse dessas pastagens,
ele reina como senhor dos pensamentos e de todos os
membros. É aí, com efeito, que está localizada a mente e
todos os pensamentos da alma» (Macário [pseudo] , Homilia
1 5 , 20. P. G. 34, 5 8 9 b) .
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 75 9

Por conseguinte, o coração é o escrínio do intelecto e o


principal órgão intelectual do corpo. Quando, pois, nos
empenhamos em escrutinar e retificar o intelecto median­
te o rigor de uma vigilância sóbria, como poderíamos fazê­
-lo sem concentrar a nossa mente (vítima como é da dis­
persão dos sentidos) e sem a reconduzir ao interior, ao
coração ele mesmo, escrínio dos pensamentos? É sentindo
o peso e a gravidade de uma tal interpelação que Macário
(em quem o nome condiz com a pessoa: bem-aventurado)
imediatamente a seguir às palavras que dele citámos,
acrescenta estas outras: «Por conseguinte, é lá que se nos
impõe observar se a graça tem gravada as leis do Espírito»
(ibidem) . Lá, onde? No órgão diretor, no trono da graça,
onde estão a mente e todos os pensamentos da alma, isto
é, no coração. Tem presente, portanto, o quanto é necessá­
rio, àqueles que decidiram manter-se no hesicasmo, recen­
trar a mente no corpo e mantê-la lá - e, particularmente,
nesse corpo que está na parte mais profunda do corpo, a
que chamamos coração!

4. Se, segundo o salmista, toda a glória da filha do rei


está no seu interior (cf. S I 45 , 1 4) , por que motivo haveríamos
de procurá-la algures no exterior? E se, segundo Paulo, o
apóstolo, Deus enviou aos nossos corações o seu Espírito
que clama «Abba, Pai!» (Gl 4,6) , como poderíamos nós orar
de outro modo senão em união com o Espírito, presente
nos nossos corações? E se, no dizer daquele que é o Se­
nhor dos profetas e dos Apóstolos, o Reino dos Céus está
dentro de nós (cf. Lc 1 7, 2 1 ) , como não se excluirá a si mes­
mo desse Reino aquele que tudo faz para alienar a mente,
procurando-a fora de si mesmo, como se ela aí estivesse?
O coração reto, diz Salomão, empenha-se em procurar
e viver uma vida com sentido (cf. Pr 1 5 , 1 4) . Mas não se trata
760 PEQUENA FILOCALIA

de um sentido qualquer: na perspetiva salomónica um tal


sentido deverá ser noétido e divino. Um universo de pen­
samento onde emergem semelhantes linhas de força é
detetável também entre os Pais. Vej amos, por exemplo,
João Clímaco, que declara lapidarmente: «A mente, ao afir­
mar-se como noética, assume como própria a consciência
noética. Não cessemos, pois, de procurar essa consciência,
que simultaneamente é tida por nós e por nós procurada»
(P. G . 88, 1 020 a) .
Por conseguinte, sempre que, nessa procura, nos esfor­
çamos no combate da oposição ao pecado, da aquisição da
virtude, da busca da recompensa inerente a um tal com­
bate - isto é, uma recompensa que não é outra coisa senão
a vivência do sentido noético - sempre que isso ocorre não
percamos de vista a necessidade de reconduzir ao interior
do corpo - isto é, de nós mesmos - a mente. Atentemos
nisto: demitirmo-nos dessa exigência e provocarmos assim
um êxodo da mente, êxodo que não se reduziria apenas a
um certo materialismo do pensamento, mas iria muito
mais longe do que isso, a um êxodo da mente para fora do
corpo (na esperança, ou antes, ilusão, que desse modo, fora
do corpo, ela poderia conhecer a iluminação noética) - de­
mitirmo-nos dessa exigência redundaria na mais nefasta das
profanas desilusões, raiz e fonte de heresias, invenção
demoníaca geradora da pior forma de demência e estupidez.
Podemos assim compreender e denunciar a irracionali­
dade com que falam todos aqueles que, inspirados pelos
demónios, ficam prisioneiros de um labirinto de desnorte,
vítimas de uma logomaquia em que nem eles próprios
compreendem o que dizem. Ora, o que nós propomos é,
pelo contrário, uma coisa completamente distinta: condu­
zir a mente não apenas ao interior do corpo, não apenas ao
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 761

interior do coração, mas, mais do que isso, ao interior dela


mesma.

5. Que se expliquem, pois, os defensores de que a men­


te nunca está separada da alma, mas sempre a ela circuns­
crita. Explicação que se reveste de uma particular impor­
tância, pois ao defenderem um tal ponto de vista estão,
implicitamente, a afirmar que não há lugar para a reinsta­
lação da mente no nosso interior. Ignoram, assim parece,
que a essência da mente é uma coisa, e a sua energia outra.
Ou então sabem-no, e sabendo-o colocam-se deliberada­
mente entre os impostores, jogando com a similitude das
palavras. Com efeito, ao não aceitarem a simplicidade da
doutrina espiritual, eles - a quem a dialética aguçou o mau
espírito do equívoco, segundo a opinião de B asílio, o
Grande - solapam a força da verdade construindo antíteses
de um falso conhecimento, sob o raciocínio capcioso dos
sofismas.
Sem nobreza de carácter e sem tirocínio espiritual, j ul­
gam-se dignos e capazes de j ulgar o mundo em que a espi­
ritualidade é honestamente procurada e vivida. E, além de
o j ulgar, arrogam-se também o direito de o catequizar.
Com efeito, escapa-lhes que com a mente não se passa o
mesmo que se passa com o olho, o qual vê as coisas visí­
veis, mas não se vê a ele mesmo. A mente, pelo contrário,
funciona primeiro observando as coisas observáveis tanto
quanto o necessário: Dionísio, o Grande, caracteriza uma
tal função da mente como um movimento retilíneo. Em
seguida, ela regressa a ela mesma e nela mesma opera ao
ver-se a si mesma: a isso chama o mesmo Dionísio movi­
mento circular (Dionísio, o Areopagita, P. G. III, 705 a) . Ora, um tal
movimento é a melhor energia da mente, a que lhe é mais
própria. Acontece-lhe até mesmo, mediante uma tal ener-
762 PEQUENA FILOCALIA

gia, ultrapassar-se a si mesma e estar com D eus. Com


efeito, no dizer de Basílio, o Grande, «a mente não se ex­
pande no exterior» . Poderá ela sair? Ora se sai, é-lhe ne­
cessário reentrar. Por esse motivo, ele acrescenta: «ela re­
gressa a si mesma, e por si mesma se eleva até Deus»,
seguindo um caminho onde não há sombra de ilusão
(Basílio, P. G . XXXI I , 2 2 8 a) . E Dionísio - esse incontornável
contemplativo das coisas noéticas - afirma de igual modo
que um tal movimento da mente não poderia cair em erro
algum (ibidem) .

6. Pelo contrário, e numa clara oposição ao que acabá­


mos de dizer, temos o pai da mentira: sendo aquilo que é,
monta um terrível assédio, procurando por todos os meios
seduzir o homem, levando-o a afastar-se desse essencial
movimento e a seguir um outro, caracterizado por uma
fatal errância.
Ora, até aos nossos dias - tanto quanto o sabemos -
ainda não tinha ele encontrado ninguém que lhe fosse
conivente no esforço de atrair o homem a esse movi­
mento, mediante palavras sedutoras. Foi agora - assim
parece - que encontrou os auxiliares desej ados, se é ver­
dade, como tu mesmo o dizes, haver homens que têm
composto tratados a defender uma tal doutrina. Propagam
assim aos quatro ventos, com toda a energia de que são
capazes, e com o intuito de persuadir a muitos - até
mesmo àqueles que abraçam a mais elevada vida hesicasta
- de que nos é necessário, por ser melhor, manter fora do
corpo a mente em oração. Nem sequer têm em conta, e
muito menos respeitam, o que João Clímaco - esse sempre
importante artífice de tratados construtores da escada que
conduz ao Céu - diz de maneira definitiva e concludente:
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 763

«Ü hesicasta é o homem que se esforça por fazer com que o


incorpóreo seja contido no corpóreo» (P.G. LXXXVI II, 1 097 b) .
Uma tal afirmação, de teor lapidar e salutarmente ri­
gorosa, tem sido estruturante do ensino que, com toda a
legitimidade, recebemos dos nossos pais espirituais. Efeti­
vamente, se o hesicasta é incapaz de fazer com que o in­
corpóreo seja contido no corpóreo (isto é, a mente contida
no corpo) então como é que poderá acolher em si e trans­
portar em si Aquele que se assumiu corpo e que, na sua
forma natural, adentra toda a matéria organizada estrutu­
ralmente? E sublinhemos isto, tendo em conta a impor­
tância de que se reveste: para que a materialidade de um
corpo possa entesourar como convém a essência da men­
te, impõe-se-lhe assumir com rigor uma forma de vida
apropriada à união com a mente. Fora de uma tal disci­
plina torna-se fácil, muito fácil, viver uma ilusão.

7. O modo como começámos a tratar o tema que nos


ocupa, já nos deu a ver a importância dos Pais para a dilu­
cidação do que está em jogo, não apenas na sua vertente
estritamente espiritual, mas também no seu aspeto mais
concreto e humano. João Clímaco, sempre ele, cuj o teste­
munho é permanentemente precioso, chama a nossa aten­
ção para um imperativo: todo o homem que decide trilhar
o caminho que, verdadeiramente, o leve a encontrar-se
consigo mesmo - o que se traduz em ser-se monge, na
verdadeira aceção da palavra, segundo o nosso homem
interior - deve conduzir a mente ao interior do corpo e
mantê-la aí. Com efeito, é esse o caminho para o encontro
de si mesmo consigo mesmo.
Por conseguinte, quando se trata dos noviços, é grande
a necessidade de lhes proporcionar um ensino que tenha
em conta levá-los a olhar para dentro de si mesmos e in-
764 PEQUENA FILOCALIA

traduzir lá, no seu interior, mediante a respiração, a men­


te. Ora, é impensável que haj a alguém que se arrogue o
direito de impedir um tal procedimento ! E não é apenas
impensável: é, além disso, irresponsável, pois interdita o
caminho a todo aquele que quer atingir um verdadeiro
conhecimento de si mesmo, concentrando a mente no seu
interior, e recorrendo para isso a determinados métodos.
Na verdade, a mente daqueles que só tardiamente ence­
taram a via do discipulado ·espiritual desconcentra-se facil­
mente depois de repetidas concentrações. O que implica a
necessidade de se ser perseverante na prática repetida da
sua reconcentração. Inexperientes como são, encontram­
-se ainda num estádio que exige deles a compreensão lú­
cida de uma necessidade: conscientizarem-se de que,
sendo a mente a mais complexa de todas as coisas, ela é
também aquela que está suj eita a uma maior mobilidade.
Fundamentalmente, é esse o motivo que leva alguns
mestres a recomendarem que se preste atenção ao modo
como respiramos. Tendo em conta que uma respiração
completa se compõe de aspiração e de expiração, é neces­
sário estarmos atentos a essas duas fases. E, por vezes, é
bom reter um pouco a respiração, a fim de, nessa vigilância
respiratória, se reter de igual modo a mente. Ora, uma tal
vigilância reveste-se de particular importância, pois na se­
quência de algum progresso - não só impedindo a mente
de se dispersar por tudo que a rodeia, mas também purifi­
cando-a - poderemos, com a aj uda de Deus, chegar ao
ponto de a concentrarmos e congregarmos num estado a
que Dionísio chama «concentração unificada» (Dionísio, P.G.
III, 705 a) .
Um tal controlo da respiração pode, com efeito, ser
visto como consequência espontânea da atenção da men­
te, pois a respiração - aspiração e expiração - processa-se
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 765

tranquilamente quando o pensamento, empenhado no


processo em curso, vive intensamente esses momentos de
concentração. Acontece isso, particularmente, entre aque­
les que são autênticos hesicastas, isto é, que o são integral­
mente, tanto no que implica o corpo como no que implica
a mente.
Hesicastas assim podem, com efeito, entregar-se a um
sabat espiritual. Vivem desse modo uma integral quietude,
bem como um fecundo repouso: ocorre neles, com efeito,
uma libertação das faculdades da alma, que se traduz
numa quenose do conhecimento e dos conhecimentos,
todos mutáveis, transitórios, compósitos. As perceções dos
sentidos são esbatidas e, de um modo geral, desativadas
todas as atividades do corpo que dependem de nós. Quan­
to às que não dependem inteiramente de nós - como é,
por exemplo, o caso da respiração - o despoj amento que
ocorre limita-se ao que está dentro da medida do possível.

8. Não se pense que há nisso um qualquer esforço.


Com efeito, quando se trata de hesicastas cujo progresso
no hesicasmo é assinalável, tudo se processa naturalmen­
te, sem violência e na quietude. Eles vivem o que vivem
num estado de alma que, impregnado da riqueza espiritual
própria da espontaneidade, lhes permite acompanhar a
entrada perfeita da alma em si mesma. As coisas j á são
diferentes quando se trata de noviços. No tirocínio destes,
nenhuma dessas coisas acontece sem esforço e fadiga. O
fator paciência (uma paciência vista no sentido de uma
perseverança, de um desejo indómito de progredir) é, em
todos os casos importante. Note-se, porém: a paciência de
que falamos resulta do amor, pois o amor tudo crê, tudo
suporta, tudo espera, tudo nos ensina (cf. 1 Cor 1 3 , 7) . En­
sina-nos, por exemplo, o dever de nos empenharmos no
766 PEQUENA FILOCALIA

que fazemos, um empenhamento tão autêntico que nos


leve a extrair da paciência o êxito, e a viver assim em todas
as coisas.
Mas para quê alongar-me nisto ? Todos aqueles que
nisto são experimentados - por terem experienciado e sen­
tido até às fibras mais profundas da alma todas estas coisas
- não podem senão sorrir quando são contraditados por
aqueles a quem falece a experiência. Efetivamente, os ex­
perimentados têm por mestre não um qualquer colportor
de discursos que se anulam a si mesmos, mas o empenho
e a experiência que se refletem num discurso cuj a inte­
gridade é exemplar. De onde resultam (naturalmente
resultam!) frutos essenciais. E entre esses frutos avulta
particularmente um: uma tomada de consciência lúcida e
decidida que leva a dizer não ao palavrório daqueles que se
perdem por disputas estéreis e acusações infundadas.
Um dos grandes mestres espirituais, dissertando sobre
estas coisas, exprime-se assim: «depois da queda das ori­
gens, e como consequência de uma tal queda, o nosso ho­
mem interior adaptou-se naturalmente às formas exterio­
res» (S. Macário, Homilia , XYI,7, P. G. LXXXVIII, 1 1 33 b) . Essas as
palavras de S. Macário. Por conseguinte, aquele que se
esforça por fazer com que a mente volte a si mesma, o que
implica não se limitar ao movimento linear, mas atingir e
assumir o incontornável movimento circular (a que j á nos
referimos anteriormente) deve ter em conta isto: a assina­
lável vantagem que há em levar o olhar a fixar-se no peito
ou no umbigo (como num suporte) em vez de o deixar
cirandar desordenadamente.
Essa disciplina do olhar é importante, pois ao fazer sua
a circularidade desse ligeiro movimento está a criar uma
sintonia com o modo de ação que envolve a mente e faz
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 767

chegar o seu poder ao coração, um poder que se dispersa


pelo exterior quando o olhar está para aí voltado.
E atente-se nisto: se o poder do demónio noético reside
de algum modo no centro do ventre - pois é aí que a lei do
pecado impera e prospera - então há que combatê-lo sem
perder de vista isso mesmo. Trata-se, com efeito, de um
combate que tem tanto de inevitável como de importante,
e que consiste essencialmente em colocarmos lá, onde vi­
gora a lei do pecado, a lei que lhe é oposta: a lei da mente.
As nossas armas como combatentes são, essencialmente,
as da oração. É com elas que conseguiremos a aniquilação
do espírito mau, impedindo assim que ele volte a instalar­
-se lá, onde não deve. É preciso, com efeito, que ele não
regresse, pois um tal regresso seria ainda mais tenebroso:
com ele viriam sete outros espíritos ainda mais malignos,
o que tornaria a última condição pior do que a primeira
(cf. Lc 1 1 ,26) .

9.Encontramos em não poucos passos dos textos mo­


saicos uma forte exortação para estarmos atentos a nós
mesmos e exercermos assim uma autovigilância. Sê atento
a ti mesmo, isto é, ao todo do teu ser, e não apenas a uma parte
de ti, é, com efeito, uma inj unção caracterizante dos dis­
cursos de Moisés (cf. Dt 1 5 , 9) . E mediante que órgão pode­
remos dar cumprimento a um tal discurso injuntivo? A
resposta só pode ser uma: mediante a mente, pois por ne­
nhum outro nos é possível estarmos atentos a nós mes­
mos na integralidade do nosso ser. Por conseguinte, faz
dela guarda e vigilante da tua alma e do teu corpo! E se
assim agires, experienciarás e sentirás, na quotidianidade
da tua vida, um extraordinário sentimento de libertação no
que concerne ao império das paixões, tanto as somáticas
como as psíquicas.
768 PEQUENA FILOCALIA

Aplica-te, portanto, a ti mesmo, vigia-te, examina-te,


observa-te, concentra-te, expõe-te aos teus próprios olhos!
E verás como resultado de toda essa disciplina duas coisas
essenciais : uma delas a submissão da carne rebelde ao
espírito; a outra a ausência de palavras perversas no teu
coração (ibidem) .
Há uma exortação do Eclesiastes que, salutarmente,
nos dá forças no nosso quotidiano combate: se o espírito
que impera no mundo dos demónios, passional como é, se
levantar contra ti, não desertes do teu lugar! (cf. Ecl 1 0 ,4) .
Por outras palavras: não deixes parte alguma da tua alma,
membro algum do teu corpo, sem vigilância! Desse modo
elevas-te acima dos espíritos que te ameaçam rasteiramen­
te, pois és capaz de te sondar a ti mesmo e de os sondar a
eles, com o discernimento que se impõe e que resulta de
uma diuturna comunhão com Deus. Ele é o Senhor que,
na sua infinita misericórdia, e querendo o nosso bem,
sonda providencialmente o nosso coração e os nossos rins
(cf. SI 7, 1 0) . E a partir daí começamos a viver. Paulo, que
viveu intensa e profundamente a experiência do Deus que
nos sonda , acena-nos com as palavras : «se verdadeira­
mente nos j ulgássemos a nós mesmos, não seríamos j ul­
gados» (1 Cor 1 1 ,3 1 ) .
Nutrindo e s s e espírito experienciarás a bênção que
David intensamente viveu, e fortalecido pelo Espírito dirás
a Deus: «As trevas, graças a ti, deixarão de ser obscuras, e a
noite será para mim tão clara como o dia, pois Tu tomaste
posse da minha mente» (SI 1 3 9 , 1 2 - 1 3 ) . Ao exprimir-se desse
modo, David desce às profundezas de si mesmo, sonda-se,
experiencia e sente a comunhão com Deus, e declara que
não somente Deus se tornou o único obj eto do desej o da
sua alma, como também cada centelha desse desejo no seu
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 769

corpo regressa à alma que a produziu e, mediante a alma,


ascende a Deus, liga-se a Ele, habita-o.
Homens desses, assim nimbados pela excelência que
decorre da força do Espírito, manifestam estar nos antípo­
das daqueles cuj o horizonte de vida não passa de uma
deplorável tristeza e cuj as aspirações estiolam de mediocri­
dade, rendidos como estão aos prazeres corruptíveis dos
sentidos. Não admira, com efeito, que matem na carne
todo o nobre desejo da alma, pois já se tornaram eles mes­
mos inteiramente carne, inviabilizando assim que o Espí­
rito de Deus os habite. Que júbilo não sentiriam eles se, à
semelhança dos outros, elevassem a mente a Deus, ligas­
sem a alma ao desejo divino, operassem uma conversão da
carne, desfrutassem assim, até à medula do osso, de uma
j ubilosa comunhão com Deus!
Isto é, essas coisas maravilhosas traduzir-se-iam assim
no quotidiano vivido : o grande milagre da conversão da
carne operar-se-ia; a luta da carne com o espírito cessaria;
a hostilidade a Deus pertenceria ao passado; de lugar de
inscrição da lei da morte a carne passaria a ser lugar de
inscrição de lei da vida. Tudo isso porque convertida a ser
espaço do domínio e da habitação de Deus, que faz novas
todas as coisas.

10. Entre estes dois lugares, o da carne e o da mente, o


espírito do mal mostra ser aquilo que é ao optar pelo lugar
da carne como o mais apropriado para a inscrição das suas
façanhas. Com efeito, provindo das regiões onde reina a lei
da morte, ele eleva-se contra nós ao dar força à carne no
que ela tem de corruptível. Ora, no dizer de Paulo, o após­
tolo, a uma tal lei da morte não pertence a última palavra.
A última palavra é aquela que é própria do Espírito, pois
faz com que a uma tal lei da morte suceda a lei da vida,
770 PEQUENA FILOCALIA

inscrita na mesma carne e não fora dela. Ela, carne, torna­


-se assim lugar de habitação do Espírito! (cf. Rm 7, 1 8) .
Por conseguinte, é sobretudo e m relação a ela, carne,
que se nos impõe nunca afrouxar a atenção nem claudicar
na vigilância. Como, então, fazê-la nossa? Como impedir
que o maligno a tome de ataque, sobretudo quando se
trata concretamente de nós, das nossas vidas, de nós que
ainda desco nhecemos como rej eitar o mal e ainda não
estamos totalmente sintonizados com as vias próprias do
Espírito? Uma resposta consciente do que está em j ogo
não poderá eludir um imperativo: educa-te nas vias que
implicam a tua atenção a ti mesmo ! E tem presente que
isso não exclui - pelo contrário, inclui - uma tomada de
atitude firme em relação ao teu mundo exterior!
Mas porquê falarmos só daqueles que se encontram
ainda no início de um percurso longo, pois o seu tirocínio
só agora começou? Sim, por que motivo falarmos só deles,
quando é certo haver outros, mais avançados do ponto de
vista da perfeição, que, não obstante, claudicam num ou
noutro ponto como orantes? Uma coisa é certa: Deus, na
sua imensa misericórdia, acolhe a todos, e isso não apenas
entre aqueles que viveram depois da vinda de Cristo, mas
também entre aqueles que antes dele viveram! Elias, esse, é
um caso que merece uma reflexão própria. Mas, por agora,
fixemo-nos apenas nisto: ele, em quem a perfeição atingiu o
mais elevado grau, quando colocado entre os agraciados
com a visão de Deus, manifestou ser um orante extraordi­
nário. Foi-o indubitavelmente, e de um modo fora do
comum, no esforço que fez para elevar a mente até ao ne­
cessário ponto de concentração, sem o que não há oração;
foi-o na postura de orante que assumiu, postura indiciadora
de força interior; foi-o no modo como concentrou a mente
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 771

em si mesmo; foi-o até, imagine-se, ao pôr fim, por Deus e


com Deus, a uma seca de numerosos anos! (cf. 1 Rs 1 8,42-45) .
Voltemos, porém, irmão, a esses tais homens dos quais
dizes ter ouvido as afirmações que evocaste. Julgo não
errar se, a partir do que me disseste, admitir que sofrem da
doença dos fariseus. Por esse motivo recusam-se a exami­
nar o interior do cálice e, claro, muito mais ainda a puri­
ficá-lo. Ora, o que fundamentalmente está em j ogo em
tudo isso - afirmemo-lo sem tibiezas - não é outra coisa
senão a recusa de purificarem o coração. Além de não se­
guirem as tradições dos Pais, esforçam-se com denodo por
gozar de privilégios, dos quais podemos destacar dois: o
exercício de uma primazia que encerra os outros numa de­
pendência estiolante; a pretensão de um magistério que os
leva a arvorarem-se em novos doutores da lei. Com um tal
procedimento mostram à saciedade o desdém que sentem
pela oração do publicano (cf. Lc 1 8 , 9- 1 4) . Mas não só isso:
estão também, implicitamente, a exortar os outros a des­
prezá-la. E , contudo, trata-se de uma oração central, que
mereceu a aprovação de Deus ! Atentemos nela: tal como
o S enhor diz no Evangelho, foi o publicano, que nem
sequer ousava levantar os olhos para o céu, o j ustificado.
Ora, é precisamente a ele, publicano, que procuram imitar
aqueles que, ao orarem, fazem incidir o olhar no seu pró­
prio corpo. Acontece, porém, isto: não obstante ser essa
uma genuína intenção, tornam-se alvo da chacota dos que,
inj uriosamente, desferem contra eles as suas críticas e os
apodam de omphalopsychoi (psíquicos umbilicais) . O que não
é mais do que um lamentável desej o de ridicularizar:
quem, com efeito, entre nós, disse já alguma vez que a
alma está localizada no umbigo?

Assim, pois, além de caluniarem mostram ser aquilo


11.
que são : homens dúplices q ue, por um lado, ultraj am
772 PEQUENA FILOCALIA

aqueles que são dignos de louvor e, por outro lado, convi­


vem sem nenhum problema com aqueles que vivem no
erro. E por que motivo as coisas são assim com eles?
Move-os o quê? Essencialmente estas coisas : o desej o
torpe d a calúnia e não o amor d a verdade; a incapacidade
de compreenderem o hesicasmo como uma vida a viver; o
egoísmo que os leva a pensar só neles, sem manifestarem
desej o algum de conduzir outros à sobriedade vigilante; a
vanglória que, no fundo, é motor das suas ações e os leva a
escrever o que escrevem.
Efetivamente, fazem tudo o que podem, sem hesitarem
no recurso aos mais variados e duvidosos meios, para lan­
çar o descrédito não apenas sobre a prática do hesicasmo
mas também sobre os próprios hesicastas. Sendo aquilo
que são, isto é, homens de baixo calibre, não hesitariam
um ápice em apodar de coiliopsychos (psíquico ventral) al­
guém que, como o salmista, ao sondar o mais íntimo de si
mesmo, confessasse: «A lei de Deus está no centro do meu
ventre» (SI 40 , 8 ) , ou que, como o profeta, ao experienciar
uma profunda comunhão com Deus, lhe confidenciasse:
«Ü meu ventre ecoará como uma cítara, e as minhas en­
tranhas como um muro de bronze por ti restaurado ! »
(Is 1 6, 1 1 ) . Sem dúvida alguma, encerrariam debaixo de uma
mesma acusação todos aqueles que, para representar as
coisas da m ente - divinas e espirituais - recorressem a
símbolos concretamente corpóreos.
Não se fique, porém, a pensar que esses tais, ao recorre­
rem aos processos a que recorrem, e ao usarem a lingua­
gem que usam, prej udicam um pouco que seja os hesicas­
tas. Pelo contrário! Com o seu procedimento marcado pela
indignidade dão-lhes ainda mais forças, enchem-nos de
beatitude, multiplicam as coroas celestiais com que são
coroados. Ao passo que eles, forjadores do indigno, perma-
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 773

necem fora dos véus sagrados, entregues à mediocridade


que os caracteriza, incapazes de, por pouco que seja, vis­
lumbrar as sombras da verdade. Nada podemos dizer ao
certo do seu futuro, a não ser admitir que os espera um
j usto j ulgamento, pois não somente entraram em rutura
com a comunidade dos irmãos, como ainda os combatem
aleivosamente com as suas palavras.

12. Tu conheces a vida de Simeão, o Novo Teólogo. Estás,


pois, consciente de como essa vida foi bafej ada pelo Espí­
rito: quase tudo é nela milagre, de tal modo Deus o glori­
ficou mediante milagres sobrenaturais. Dele conheces
também os escritos: de tal modo respiram a força espiritual
que animou Simeão, que em nada exageraríamos se lhes
chamássemos «escritos de vida» .
Conheces igualmente Nicéforo, esse santo que passou
longos anos no deserto, entregue à vivência do hesicasmo,
e que em seguida habitou as p artes mais desérticas do
Monte Santo (Monte Atos) . Com um elevado espírito de
abnegação consagrou uma parte da sua vida a uma tarefa
que deve merecer não só toda a nossa admiração como
também todo o nosso reconhecimento: durante anos en­
tregou-se ao trabalho de coligir os testemunhos dos Pais.
Além desse meritório trabalho legou-nos também um
outro: o exemplo de uma vida iluminada pela força do Es­
pírito manifestada na sua prática da sobriedade vigilante.
Que isso sej a para nós motivo de inspiração, pois de uma
tal prática podemos e devemos considerar-nos herdeiros.
E aí temos nós dois santos, dois incontestáveis mestres
da espiritualidade para aqueles que escolheram este modo
de viver e fizeram suas estas práticas que - segundo as tuas
palavras - estão a ser obj eto de múltiplos ataques. Mas
porquê limitar-me à evocação de santos de tempos passa-
774 PEQUENA FILOCALIA

dos? Não o vou fazer, pois próximos de nós, alguns mes­


mo nossos contemporâneos, têm vivido homens cujo tes­
temunho admirável - resultado da força outorgada pelo
Espírito - nos tem sido transmitido oralmente. Temos de
os evocar, pois não o fazer seria um procedimento dupla­
mente errado: o erro de uma ingratidão inadmissível, e o
erro de uma falta de reconhecimento da importância que o
seu trabalho tem para as nossas vidas.
Conta-se entre eles Teolepto, esse famoso e notável teó­
logo nosso contemporâneo. Efetivamente, Teolepto - cujo
nome significa inspirado por Deus é incontestável e mere­
-

cidamente reconhecido nos nossos dias como um autên­


tico teólogo e um seguro contemplativo da verdade dos
mistérios de Deus. É óbvio que estou a referir-me ao bispo
de Filadélfia ou, para me exprimir de um modo mais elo­
quente, àquele que, de Filadélfia, como de um candelabro,
ilumina o mundo.
E também Atanásio, ele que, durante muitos anos,
aureolou com a riqueza e a beleza da sua vida, animada
pela força do Espírito, o trono patriarcal. Ele que, no fim
de um percurso bafej ado pelo Espírito, teve na morte o
túmulo honrado por Deus.
E Nilo, orginário da Itália, émulo de Nilo, o Grande. E
Seliotes e Elias, que em nada lhe eram inferiores. E Gabriel
e Atanásio, j ulgados dignos de um carisma profético.
Ouviste, sem dúvida, falar desses homens e de muitos
outros que os precederam, ou foram seus contemporâ­
neos, ou lhes sucederam! Plêiade de testemunhas que, ba­
fejadas pelo Espírito, exortam e encorajam todos aqueles
que desej am abraçar esta tradição ! Tradição que esses
novos «doutores em hesicasmo» caluniam e rej eitam,
arrogando-se um conhecimento e uma autoridade que
não possuem: com efeito, nenhuma ideia têm do que é
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 775

viver segundo a sobriedade vigilante, e o seu espúrio en­


sino não passa de um palavrório construído artificialmente
com argumentos que passam completamente ao lado de
uma experiência vivida. E é a partir de um universo de
pensamento desse j aez que rejeitam a nossa tradição, de­
formando-a, desqualificando-a, ignorando-a completa­
mente, tudo isso, como é óbvio, sem nenhum proveito
para aqueles que escutam as suas arengas.
No que a nós concerne, não é da vacuidade estéril de
um tal universo que nasce o nosso discurso. Estamos ro­
deados de testemunhas que experienciaram e sentiram a
força do Espírito nas suas vidas. Falámos pessoalmente
com alguns desses santos, e tivemo-los por mestres.
Como, pois, poderíamos nós tê-los por nada, a eles cuj o
ensino está grávido de uma riqueza q u e não é outra senão
a da presença do Espírito nas suas vidas ? ! Se agíssemos de
outro modo estaríamos a menosprezar a insondável graça
de Deus que se manifestou nas suas vidas de um modo tão
surpreendentemente fecundo. E estaríamos assim a capi­
tular diante daqueles que se puseram a ensinar levados
pelo orgulho e desej o da disputa. Ora isso não acontecerá.
Jamais acontecerá.
Que posso, pois, dizer-te, além do que já te disse? Sim­
plesmente mais isto: sê prudente, e afasta-te de tais ho­
mens. Junta a tua voz à do servo de D eus D avid e diz:
«Bendiz, minha alma, ao Senhor, e tudo que está dentro de
mim bendiga o seu santo Nome ! » (SI 1 03 , 1 ) . Desse modo,
fortalecido pelo testemunho de tão importantes testemu­
nhas, de ontem e de hoje, e guiado pelos Pais, escuta aten­
tamente como eles te exortam a reconduzir sempre e de
novo a mente ao interior de ti mesmo.
776 PEQUENA FILOCALIA

No concernente à oração
e à pureza do coração

Três textos
1. Em virtude de D eus ser pura bondade, verdadeira
misericórdia, abismo de doçura - ou, antes, em virtude de
ser Aquele que abraça e abarca tudo isso, pois transcende
todo o nome nominável e ultrapassa todas as coisas con­
cebíveis - só mediante a união com Ele poderemos encon­
trar e viver a misericórdia.
Ora, unimo-nos a Ele - na medida do possível - quan­
do amamos as virtudes que Ele ama, o que supõe uma
comunhão que, naturalmente, sente necessidade de expri­
mir o seu j úbilo na oração e no louvor. E porque as virtu­
des se tornam assim similitudes de Deus, vivê-las implica
uma atitude de permanente abertura àquilo que é a eterna
novidade de Deus, uma abertura-disponibilidade que se
renova em cada manhã.
É , com efeito, a oração vivida no poder do Espírito que
celebra essa comunhão e cumpre essa ascensão do ho­
mem ao mundo de Deus. Um tal homem, ao vivenciar um
arrependimento, o seu, que o atinge no mais profundo de
si mesmo, experimenta o júbilo dessa celebração. Efetiva­
mente, a oração é o elo que liga ao Criador as criaturas
dotadas de razão, e é graças a ela que o orante, imerso na
sua experiência de orante, resiste ao assédio das paixões e
à invasão dos pensamentos. Trata-se de uma resistência
essencial, pois quando as paixões vencem e os pensamen­
tos devastam, a mente fica incapaz de atingir essa união
com Deus.
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 777

À mente não é possível, na verdade, descobrir a miseri­


córdia enquanto não atingir um tal estado orante. Ora,
atingi-lo supõe um trabalho de luto a que a mente deve
entregar-se: o trabalho de luto (abençoado luto!) pela de­
serção dos pensamentos. Com efeito, quanto mais ela
puder libertar-se dos pensamentos, tanto mais será capaz
de fazer o luto, assim como quanto maior for o seu luto
tanto maior será a misericórdia que experienciará. E que a
confortará de um modo surpreendente.
Por conseguinte, a partir do que já se disse, poderemos
compreender a importância de que se reveste o tempo
que, de um modo humilde, ela, mente, consagra à ascese.
É mediante uma rigorosa disciplina ascética que ela trans­
formará inteiramente a parte da alma vulnerável à paixão,
isto é, a sua parte passional.

2. Quando a mente, na sua singularidade, vive a sua di­


mensão tripla sem deixar de ser una, une-se à Unidade
Triádica da Divina Origem e fecha a porta às investidas do
erro. Mediante essa união eleva-se acima da carne, do
mundo, do maligno, e descobre-se a si mesma livre das ca­
deias desses inimigos. Encontra-se assim consigo mesma
e com Deus, e enquanto isso se mantiver, sendo o que é,
experiencia um profundo j úbilo espiritual que brota do
coração.
A unidade da mente exprime-se como triádica - perma­
necendo sempre una - ao reverter a si mesma e ao se
elevar a Deus: com a reversão ocorre o seu regresso a si
mesma, mediante o qual ela se afirma como guardiã de si
própria; com a elevação ela ascende a Deus, movimento
essencial que tem o seu início na oração. Oração caracteri­
zada por ser simples, isto é, sucinta, ainda que por vezes
possa ser mais elaborada na forma, o que implica um es-
778 PEQUENA FILOCALIA

forço maior. Por conseguinte, graças a estas três coisas: ao


desdobramento de si mesma; à sua concentração no divi­
no; à observância de uma estrénua disciplina propiciadora
de um avanço crescente na reflexão divina - graças a tudo
isso, a mente leva-nos a descobrir o indizível, a saborear
antecipadamente o gosto do mundo futuro, a conhecer
como o Senhor é bom. No fundo, outra coisa não diz o
salmista q uando nos exorta j ubilosamente: « Saboreai e
vede como o Senhor é bom! Felizes são aqueles que en­
contram nele a sua habitação! » (SI 34,9) .
Talvez não sej a muito difícil para a mente descobrir-se
tripla, sem, no entanto, deixar de se sentir como intrinse­
camente una. Supõe, sem dúvida, algum esforço para ser
guardada e guardar-se, sem perder de vista um só momen­
to o seu empenho numa atitude orante.
Mas já é extremamente difícil manter-se durante muito
tempo nesse estado de onde podem brotar muitas coisas
nimbadas pelo inefável. Todos os esforços exigidos pelas
outras virtudes são mínimos e suportáveis quando compa­
rados a este. Daí não serem poucos aqueles que - incapa­
zes de suportar o esforço necessário para atingir o estado
orante e viver a sério a virtude da oração - ficam pelo ca­
minho, claudicando perante as exigências de uma neces­
sária disciplina. Ora, com essa sua desistência tornam in­
viável a caminhada necessária para se atingir a plenitude
dos dons divinos.
Pelo contrário, aqueles que vivem o quotidiano da per­
severança e avançam resistindo, criam desse modo a con­
dição para que o socorro divino se manifeste nas suas
vidas. Socorro que os protege, os engrandece, os transpor­
ta, os sustém, os impulsiona, os capacita para a vivência
diuturna de uma atitude orante. Podemos até dizê-lo:
torna-os por assim dizer angélicos, ao fortalecê-los na sua
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 779

relação com o sobrenatural. Melhores palavras do que as


do profeta não encontraremos: «aqueles cuj a perseverança
está no Senhor renovarão as suas forças. Subirão com asas
como águias, correrão e não se fatigarão, caminharão e não
fraquejarão» (Is 40 ,3 1 ) .

3 . À atividade intelectual que consiste e m pensar e em


intuir chama-se mente. Esta é, pois, por natureza, um
poder capaz de ativar tanto o pensamento como a intui­
ção. A um tal poder chama também a Escritura coração.
Ora, é em virtude de a mente ser entre os nossos poderes
o mais importante que a nossa alma é racional.
Naqueles que se consagram à oração - e como orantes
privilegiam a monofrásica Oração de Jesus - a atividade noé­
tica da mente facilmente se afirma e encontra o caminho
para uma necessária purificação. Mas o poder que está na
origem dessa oração não seria purificado se não o fossem
também todos os outros poderes da alma. Esta é, com
efeito, uma única entidade possuidora de poderes múlti­
plos. É , assim, atingida pela mácula quando o mal a assola
e desfigura um só que seja desses poderes. Efetivamente, o
mal propaga-se entre eles, bastando para isso que só um
deles sej a atingido.
Ora, em virtude de tais poderes produzirem energias
diferentes entre si, é possível, com diligência e vigilância,
purificar temporariamente uma dessas energias. Mas o
poder em causa não fica completamente puro em virtude
de comungar com todo o resto. Admitamos que um certo
homem, mediante a oração, a diligência, o empenho, puri­
ficou a sua energia intelectual e conheceu a iluminação,
quer graças à luz do conhecimento natural quer em vir­
tude de um acréscimo de iluminação noética. Pois bem: se
um tal homem, só por isso, já se vê a si mesmo puro, tor-
780 PEQUENA FILOCALIA

na-se o engano de si mesmo! E mais: assim presumido es­


cancara a porta do seu ser à entrada do demónio, esse es­
pecialista nas artes do engano com que nos ilude.
Mas se, pelo contrário, consciente da impureza do seu
próprio coração pede a aj uda dos outros poderes da alma,
não soçobrará . Reconhecendo a sua impureza, mas com as
forças renovadas, é posto a caminho, descobrindo-se a si
mesmo ao progredir na humildade, ao continuar o traba­
lho de luto, ao encontrar os remédios adequados a cada
poder da alm a . E ocorrerá assim a purificação quer do
poder prático, quer do poder cognitivo, quer do poder
contemplativo: do poder prático mediante a práxis; do
poder cognitivo mediante o conhecimento; do poder con­
templativo mediante a oração. E desse modo ele atingirá a
perfeita, a verdadeira, a segura pureza do coração e da
mente. Trata-se de uma pureza essencial que não nos é
oferecida de mão beij ada. Todo aquele que a persegue terá
de assumir no quotidiano da sua vida a seriedade de uma
exigência. O que implica: perfeição na prática ascética; in­
tegridade na práxis; contrição duradoira; vivência da con­
templação; oração contemplativa.
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 781

Sobre a Sagrada Transfiguração


do Nosso Senhor e Deus
e Salvador Jesus Cristo

Homilia 35
1.O profeta Isaías anunciou antecipadamente, acerca do
Evangelho : « Ü S enhor dará sobre a Terra uma palavra
concisa» (Is 1 0 ,23) . Ora, concisa é a expressão, que contém
em poucas palavras um mundo de sentido. Reflitamos,
pois, de novo, as palavras evangélicas que já hoj e merece­
ram a nossa atenção, aj untando-lhes as restantes, de
molde a sermos de novo levados pelo sentido íntegro nelas
contido e possuídos por uma divina inspiração.

2. «Naquele tempo, Jesus toma consigo Pedro, Tiago e


João e condu-los a um elevado monte, a sós, e foi transfi­
gurado diante deles, e a sua face começou a resplandecer
como o Sol.»
Irmãos, «eis agora o tempo favorável, eis agora o dia da
salvação» - dia divino, e novo, e eterno, não medido em
parcelas de tempo, que não aumenta nem diminui, nem é
fendido em dois pela noite. É, efectivamente, o dia do Sol
da Justiça, no qual não há mudança nem sombra de varia­
ção, Aquele que desde então, pela boa vontade do Pai e
pela sinergia do Espírito Santo, resplandeceu amorosa­
mente sobre nós e « nos fez sair das trevas para a sua
admirável luz»; é Ele que, resplandecendo, estende conti­
nuamente o tempo sobre as nossas cabeças, Ele o Sol
inacessível.
782 PEQUENA FILOCALIA

3. Mas, sendo o Sol da Justiça e da Verdade, não emite o


seu brilho sobre os que cultivam a mentira, nem se dá
claramente a reconhecer àqueles que falam, com voz toni­
truante, a inj ustiça, ou a manifestam mediante os actos.
Manifesta-se, contudo, aos artífices da j ustiça e aos aman­
tes da verdade. Por estes Ele é crido, e a estes Ele alegra
com o seu resplendor. E isto é o que a Escritura diz: «A luz
desponta para o justo, acompanhada da alegria.» Também
o profeta salmista canta a Deus: «Tabor e Hermon rejubi­
larão no teu nome», predizendo assim a alegria comuni­
cada por aquele esplendor aos que, na montanha, o viram.
E Isaías diz: «desfaz cada laço inj usto, desata os nós das
transacções forçadas, quebra toda a acusação inj usta.» E
que acrescenta ele? «Então a tua luz jorrará como a au­
rora, e a tua saúde rapidamente voltará; a tua j ustiça irá à
tua frente e a glória de Deus cobrir-te-á»; e de novo: «se
abolires o j ugo da opressão, o gesto de apontar com o
dedo e a pal avra culpada, e deres ao faminto pão da tua
alma, e saciares uma alma humilhada, então a tua luz le­
vantar-se-á nas trevas, a tua escuridão será como o meio­
-dia . » Na verdade, este Sol faz de todos, sobre os quais
manifestamente brilha, outros sóis, porque «também os
justos brilharão como o Sol no Reino do seu Pai».

4. «Renunciemos, pois, irmãos, às obras das trevas» e


operemos as obras da luz, a fim de não só andarmos de­
centemente como devemos num tal dia, mas também nos
tornarmos filhos do dia.
E vinde, subamos à montanha onde Cristo resplande­
ceu, para que vej amos as coisas lá ocorridas; ou antes, se
estamos prontos e nos tornámos dignos de um tal dia, a
Palavra de Deus, ela própria, nos fará subir no momento
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 783

oportuno. Mas agora, esforçai-vos e levantai o olhar da


vossa inteligência em direcção à luz da mensagem do
Evangelho - é isso que vos p eço - de molde a serdes,
entretanto, transformados pela renovação da vossa mente;
e assim, tendo atraído sobre vós o divino resplendor do
alto, vos torneis conformes à semelhança da glória do
Senhor cuj a face resplandeceu como o Sol, hoj e, no alto
da montanha.

5. Como o Sol? Como assim? Um tempo houve quan­


do a luz solar não estava no disco solar como num vaso:
essa luz foi a primeira a nascer, enquanto o disco solar,
esse, só no quarto dia foi produzido por Aquele que con­
duziu todas as coisas, acendendo para ele a luz, criando-o
assim como luzeiro para produzir e manifestar o dia.
Assim, pois, também a luz da divindade já existia antes de
existir - como num vaso - no Corpo de Cristo. Porque,
enquanto ela é preexistente, o corpo que o Filho de Deus
recebeu de nós, e que por amor de nós foi elevado, tendo
recebido em si a plenitude da divindade, manifestou-se
como uma luminária simultaneamente deificante e res­
plandecente de brilho divino. Assim, a face de Cristo res­
plandeceu como o Sol, e as suas vestes tornaram-se bran­
cas como a luz. Marcos, esse, escreve : « extremamente
brancas como neve, tanto que nenhum lavadeira da Terra
as poderia assim branquear. »

6 . Foi, pois, com a mesma luz que o venerável Corpo de


Cristo resplandeceu e resplandeceram as suas vestes, mas
não da mesma maneira: com efeito, a sua face resplande­
ceu como o Sol, mas as vestes foi em virtude da proximi­
dade do corpo que se tornaram luminosas. São-nos assim
784 PEQUENA FILOCALIA

mostradas as vestes de glória que, no tempo futuro, reves­


tirão aqueles que se aproximam de Deus, e as túnicas da
impecabilidade de que - por causa da transgressão - Adão
se desvestiu, após o que, vendo-se nu, sentiu temor.
Por sua vez, Lucas, o divino, diz: «E aconteceu que o as­
pecto da sua face se modificou, e que as suas vestes se tor­
naram de uma brancura esplendorosa» - narrando assim
todo o acontecimento sem recorrer a uma comparação.
Marcos, esse, iconiza as vestes, mas ao dizer «extrema­
mente brancas como a neve» mostra o quanto as imagens
e os exemplos lhe falecem perante a contemplação daque­
las vestes: efectivamente, a neve é branca, mas de nenhum
modo resplandecente. De facto, ela tem sempre um as­
pecto anómalo, como se fosse toda composta de miúdas
bolhas de água, por causa da mistura do ar nela existente.
Com efeito, não estando ainda a nuvem completamente
formada, e não podendo espremer o ar nela introduzido, é
condensada pela violência do frio e precipita-se assim no
ar, tendo uma certa semelhança com a espuma, tanto pela
sua brancura como pelo seu aspecto anómalo.

7. D este modo - dada a insuficiência da brancura da


neve para explicitar o prazer provocado por aquele espec­
táculo - o Evangelista acrescenta «resplandecer» . Além
disso, através do que diz, ele mostra que aquela luz, que
torna as vestes luminosas e brancas, é uma luz sobrenatu­
ral. Com efeito, não é próprio da luz tornar brancas e res­
plandecentes as coisas por ela iluminadas, mas sim
mostrar qual a sua cor. Ora aquela luz - assim parece - re­
velou ou, melhor, alterou aquelas vestes, coisa que não é
própria de uma luz perceptível aos sentidos. Mais para­
doxal ainda é ela, depois de as ter alterado, as ter mantido
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 785

inalteradas, como pouco depois foi mostrado. Onde é que,


na luz que nos é familiar, se encontra uma tal virtualidade?
Motivo pelo qual o Evangelista, ao mostrar que não
apenas o esplendor e a beleza transcendentes da face do
Senhor, mas também a magnificência das suas vestes, eram
sobrenaturais, distinguiu estas das coisas próprias da
natureza, j untando o resplendor ao branco da neve. E visto
que também a arte parece imaginar uma beleza dada como
acréscimo à natureza, o Evangelista, colocando essa beleza
por cima dos adornos da arte, diz: «tanto que nenhum
lavadeiro da Terra as poderia assim branquear. »

8 . Ora, a Palavra preexistente, feita carne p o r nós, Sabe­


doria hipostática do Pai, transporta plenamente em si
mesma a mensagem do querigma evangélico: qual veste, a
sua letra - límpida e evidente - é simultaneamente tam­
bém brilhante e resplandecente como nácar. E além disso
é digna de Deus e divinamente inspirada para aqueles que,
no seu espírito, veem as realidades do Espírito e dilucidam
dignamente os enunciados da Escritura, e mostram que as
palavras do querigma evangélico são tais que nenhum la­
vadeiro na Terra - isto é, nenhum sábio deste mundo -
pode iluminar. Iluminar? Com efeito, nem sequer as pode
compreender se um outro não lhas explica! Lá diz o Após­
tolo: «porque o homem natural não acolhe o que é pró­
prio do Espírito, nem pode compreendê-lo. » Motivo pelo
qual erradamente interpreta como percetíveis aos sentidos
as iluminações divinas e espirituais que ultrapassam a in­
teligência, «as coisas que, sem discernimento, viu, inchado
de vaidade pelo pensamento da sua carne» .

9.Mas Pedro, com a inteligência iluminada pela beati­


tude da visão, e elevado a um maior amor e desej o de
786 PEQUENA FILOCALIA

Deus, não querendo de nenhum modo separar-se daquela


luz, disse ao Senhor: « É belo estarmos aqui; se queres, le­
vantemos aqui três tendas, uma para ti, outra para Moisés,
e outra para Elias - ele não sabia o que dizia» . Com efeito,
o tempo do restabelecimento de tudo não tinha ainda
vindo, mas uma vez esse tempo chegado já não neces­
sitaremos de tendas feitas por mãos humanas. Mas nem
era preciso tornar os servos iguais ao Senhor através da
semelhança das tendas. Porque Cristo, enquanto Filho ver­
dadeiro, está no seio do Pai, mas os profetas, de modo
análogo, enquanto filhos verdadeiros de Abraão, habitarão
no seio de Abraão.
Falava, pois, Pedro - e fazia-o sem saber o que dizia -, e
eis que «de súbito uma nuvem luminosa os cobriu», inter­
rompendo as suas palavras e mostrando qual a tenda ade­
quada a Cristo. Mas o que é esta nuvem? E como é que,
sendo luminosa, pôde cobri-los com a sua sombra? Não é
esta a luz inacessível, na qual Deus habita, luz de que Ele
está revestido como se de um manto se tratasse? Está, com
efeito, escrito: «Ü que faz das nuvens seu carro» e «Ü que
pôs as trevas como seu lugar oculto; o seu tabernáculo à
volta dele » . Contudo, no dizer do Apóstolo, D eus é «O
único que possui a imortalidade, que habita na luz ina­
cessível» - assim, luz e trevas são aqui a mesma coisa, e se
ela os cobre com a sua sombra, isso deve-se à transcen­
dência do brilho com que brilha.

10.Mas a luz outrora vista pelos olhos dos Apóstolos é


também testemunhada pelos santos teólogos como
inacessível: «Porque hoje o abismo da luz inacessível, hoje
a efusão ilimitada da claridade divina iluminam, no monte
Tabor, os Apóstolos. » E o grande Dionísio, afirmando ser
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 787

trevas a luz inacessível onde se diz que Deus habita, acres­


centa: « É nela que nasce todo aquele que é digno de
conhecer e de contemplar Deus. »
Por conseguinte, eram idênticas a luz que os Apóstolos
viam irradiando da face do Senhor e a luz da nuvem lumi­
nosa que, pouco depois, os cobriu com a sua sombra. Mas
neste caso, brilhando mais indistintamente, ela permitiu
ver; subsequentemente ela resplandeceu muito mais e
tornou-se-lhes invisível em virtude da transcendência da
sua claridade. E, desse modo, ela cobriu com a sua sombra
a fonte da luz divina e inesgotável, o Sol da Justiça, Cristo.
Porque no caso do sol percetível aos sentidos, a luz que
permite ver, graças aos seus raios luminosos, é a mesma
que, a seguir, retira a visão, quando se olha para esse
mesmo Sol; com efeito, o resplendor por ele irradiado
ultrapassa a capacidade dos nossos olhos.

1 1 . Ora, enquanto o Sol perceptível aos sentidos des­


ponta naturalmente (ainda que sej a incapaz de aparecer
quando quer e somente a quem quer) , já o Sol da Verdade
e da Justiça, Cristo, não tendo somente uma natureza, um
resplendor e uma glória naturais, mas também uma von­
tade correspondente, brilha, prudente e salutarmente, só
para aqueles que quer e tanto quanto quer.
Esse o motivo por que, tendo querido, apareceu como o
Sol e foi visto pelos olhos dos Apóstolos, e isso a pouca
distância deles. Em seguida, tendo brilhado voluntaria­
mente com uma forte intensidade, tornou-se invisível aos
olhos dos Apóstolos, em virtude da transcendência do seu
brilho, como se tivesse entrado numa luminosa nuvem.
Mas também uma voz se fez ouvir a partir da nuvem: «Este
é o meu Filho, o Amado, em quem me comprazo. Escutai-
788 PEQUENA FILOCALIA

-o! » Assim, pois, tendo o Senhor sido baptizado no Jordão,


abriram-se os Céus e a mesma voz manifestou-se, plena,
vinda daquela glória - a mesma glória que mais tarde
Estêvão, tendo-se-lhe aberto os Céus e cheio do Espírito
Santo, viu, fixando nela o olhar. E agora ei-la, essa mesma
voz, a fazer-se ouvir vinda da nuvem que cobriu Jesus com
a sua sombra.
Por conseguinte, a glória de que aqui se trata é a mesma
glória de Deus: a que transcende o Céu. Como, pois, pode­
ria ser percetível aos sentidos a luz que transcende o Céu?

12. Ora, a voz do Pai vinda da nuvem ensinou que todas


aquelas coisas que tinham existido antes da vinda de
Nosso Senhor, Deus, e Salvador Jesus Cristo - os sacrifí­
cios, as leis, as adoções - eram imperfeitas e não tinham
sido promulgadas nem cumpridas segundo a vontade pri­
mordial de D eus, devendo-se antes a sua aprovação à
expectativa da vinda e da manifestação futuras do Senhor.
É Ele, o Filho Amado, aquele em quem o Pai põe o seu
agrado, em quem repousa e em quem se compraz comple­
tamente - daí a sua exortação a ouvi-lo e a obedecer-lhe.
Assim, quando diz: « Entrai pela porta estreita, porque
larga é, e espaçosa, a que leva à perdição, mas estreito e
apertado é o caminho que conduz à vida» - escutai-o ! E
quando diz que esta luz é o Reino de Deus, escutai-o, acre­
ditai nele, tornai-vos dignos de uma tal luz!

13.Mas é-nos dito que quando a nuvem luminosa bri­


lhou, e a voz do Pai se fez ouvir, provinda da nuvem, os
discípulos caíram com a face por terra. Isso, porém, não
por causa da voz, pois esta também se fez ouvir em outras
circunstâncias, não só no Jordão, mas também na paixão
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 789

salvífica que conduziu a Jerusalém. Com efeito, tendo o


Senhor dito «Pai, glorifica o teu nome», uma voz veio do
Céu que dizia: «Glorifiquei-o, e glorificá-lo-ei de novo» - e
toda a multidão a ouviu, sem que ninguém tivesse caído
com a face por terra. Ora, neste caso não houve somente
uma voz, mas também uma luz imensa que brilhou em
simultâneo com o ressoar da voz.
Deste modo, os Pais Teóforos terão, verosimilmente,
reconhecido que não foi por causa da voz, mas sim por
causa do resplendor extraordinário e sobrenatural da luz
que os discípulos caíram com a face por terra; de facto, já
antes de a voz se ouvir eles estavam, no dizer de Marcos,
cheios de medo - estavam-no, evidentemente, por causa
daquela teofania.

14. Ora bem, quando através de todos estes sinais esta


luz se revela divina, sobrenatural e incriada, que experi­
mentam ainda aqueles que, incapazes de reconhecer as
coisas do Espírito, eram partidários, mais do que o devido,
de um ensino profano e carnal? Lançam-se num outro
precipício: dizem - em divergência com o que nós apren­
demos de Deus e dos teólogos - que esta luz não é nem a
glória de Deus, nem o seu Reino, nem a sua beleza, nem a
sua graça, nem o seu resplendor, e afirmam, ao contrário,
ser ela a essência de Deus, da qual diziam antes ser ela per­
ceptível aos sentidos e criada.
Ora o Senhor, nos Evangelhos, diz que esta glória não é
comum somente ao Pai e a Ele mesmo, mas ainda aos
santos anj os, tal como o divino Lucas escreve : « Porque
aquele que, nesta geração, se envergonhar de mim e das
minhas palavras, o Filho do homem dele se envergonhará
quando vier na glória que é sua, e do Pai, e dos santos
790 PEQUENA FILOCALIA

anjos. » Os que sustentam que esta glória é a essência dirão


certamente ser a mesma a essência de Deus e a dos anj os,
o que é a impiedade máxima!

15. Assim pois, não somente os anj os, mas também -


entre os homens - os santos participam nesta glória e
neste Reino. Contudo, enquanto o Pai e o Filho, com o Es­
pírito divino, é por natureza que possuem esta glória e este
Reino, os santos, anjos e homens é pela graça que nela e
nele participam, daí recebendo a iluminação. E Moisés e
Elias - vistos com Ele nesta glória - são disso a prova. Ora,
não foi só nesta altura, no monte Tabor, que Moisés apare­
ceu em comunhão com a divina glória; já assim aparecera
em uma outra altura, quando o seu rosto foi glorificado ao
ponto de os filhos de Israel não poderem fixar nele o seu
olhar. Demonstração disso encontramo-la nas palavras do
[S. Basílio] que diz: «Moisés acolheu num rosto mortal a
glória imortal do Pai»; e a Eunómio - que sustentava não
partilhar o Filho da glória do Todo-Poderoso - o mesmo
[S. Basílio] retorquiu: «fosse uma tal doutrina acerca de
Moisés, nem mesmo assim eu a desposaria. »

16. Por conseguinte, comum a Deus e aos santos - e una


- é esta glória, e o Reino, e o resplendor. Por isso, canta o
salmista profeta «o resplendor do nosso Deus está sobre
nós» . Mas até hoj e ainda ninguém teve a ousadia de dizer
que uma mesma essência é comum a Deus e aos santos.
E, na montanha, o resplendor divino mostra ser comum à
divindade do Verbo e à carne. Dizer, porém, que a essência
é comum à divindade e à carne é afirmar algo que é
próprio de Eutico e de Dióscoro, mas não daqueles que
aspiram à piedade.
SÃO GREGÓRIO DE PALAMAS 791

E todos verão esta glória e este resplendor, quando o


Senhor aparecer resplandecente do Oriente ao Ocidente.
E hoj e, aqueles que subiram com Jesus, viram-no também.
Mas ninguém pertence à substância e à essência de Deus,
nem ninguém viu ou divulgou a natureza de Deus. E esta
luz divina é dada com medida, e recebida em maior ou
menor quantidade, segundo a dignidade daqueles que a
acolhem, sendo dividida indivisamente. A prova disso
temo-la imediata: o rosto do Senhor resplandeceu mais
que o Sol, e as vestes tornaram-se luminosas, mostrando
uma brancura própria da neve. E também Moisés e Elias
apareceram na mesma glória; nenhum deles, contudo, bri­
lhou com uma intensidade qual a do Sol. Os discípulos,
esses, viram a luz, mas não puderam fixar nela o seu olhar.

1 7 . Assim, pois, medida e fracionada indivisamente,


aquela luz admite o mais ou o menos. Uma parte dela dá­
-se a conhecer agora; a outra parte, mais tarde. Pelo que o
divino Paulo diz: «Agora conhecemos em parte, e em parte
profetizamos».
Integralmente indivisível e inexpugnável é a essência de
Deus, e nenhuma das essências pode admitir ser aumen­
tada ou diminuída. É próprio dos execráveis messalianos -
sobretudo deles - pensar que a essência de Deus se dá a
ver àqueles que dela se tornam dignos.
Quanto a nós, afastando-nos dos heréticos do passado
e do presente - e crendo, de acordo com o ensino rece­
bido, que os santos veem e recebem em comum o Reino, a
glória, o esplendor, a luz inatingível e a graça de Deus, mas
não a sua essência -, caminhemos em direcção ao cinti­
lante brilho da luz da graça, para que assim possamos re­
conhecer e venerar a divindade de cintilação tripla, Ela que
792 PEQUENA FILOCALIA

brilha de modo único, o clarão inefável que jorra de uma


única natureza em três hipóstases. E elevemos o olhar do
nosso pensamento em direcção à Palavra - Ela que, neste
tempo presente, tomou lugar, com o corpo, para além da
abóbada do céu. Sentada à direita da Maj estade divina,
como supõe a sua dignidade, Ela dirige-nos - como se fosse
de longe - estas palavras : «Se alguém quer permanecer
nesta glória, então que imite, na medida do possível, o meu
caminhar na terra, uma conduta de que dei o exemplo.»

18. Contemplemos, portanto, com os nossos olhos inte­


riores, este grande espetáculo: a nossa natureza a habitar
eternamente o fogo imaterial da divindade. E às túnicas de
pele com que nos revestimos, desde a transgressão adâ­
mica - isto é, os nossos pensamentos terrestres e carnais -
abandonemo-las, e firmemos os pés numa terra santa !
Que assim cada um de nós mostre que a sua terra é santa,
graças à sua virtude e ao seu desejo de Deus! E tenhamos
a ousadia confiante própria daquele que permanece na luz
de Deus, acorrendo para ser iluminados e, sendo-o, viva­
mos eternamente na glória j ubilosa do resplendor simul­
taneamente tri-solar e integralmente uno - agora e pelos
séculos dos séculos. Ámen.
Índice

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Nota do tradutor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Santo Antão, Abade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


. 15
O carácter dos homens e da vida virtuosa .. ......................... 17

Santo Evrágio, o Monge . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


. 67
O discernimento das paixões e dos pensamentos . . . . . . . . . . . . . . . 69
Epítome .
. . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. .... .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
Os sonhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 72
O demónio da acédia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 81
A vanglória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 83
A oração - centro e cinq uenta e três capítulos ....... . . . . . . . . . . . . . 94

São João Cassiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 25


Ao bispo Castor, sobre os oito pensamentos de malícia . . . . . 1 27
A continência do estômago . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 27
A impudicícia e a concupiscência da carne . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 30
A avareza ..........................................................................
. 1 34
A cólera . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 42
A tristeza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 49
O tédio ou acédia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 52
A vanglória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156
O orgulho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158

São Marcos, o Asceta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


. 161
D uzentos textos sobre a lei espiritual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... 1 63

São Hesíquio de Batos, o Sinaíta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 99


Textos acerca da sobriedade vigilante . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . . 201
D e Hesíquio, Presbítero, a Teodulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
794 PEQUENA FILOCALIA

São Máximo, o Confessor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281


Quatrocentos textos sobre o amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
Preâmbulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 283
Primeira centena de capítulos sobre o amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284
Segunda centena de capítulos sobre o amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 308
Terceira centena de capítulos sobre o amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342
Quarta centena de capítulos sobre o amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 376

São João Damasceno, Nosso pai entre os santos . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 405


Discurso útil à alma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 407

São Macário, o Egípcio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 423


Paráfrase de algumas das suas homilias por S imeão, o Meta-
frasta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 425
No concernente à oração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 440
No concernente à persistência e ao discernimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 454
No concernente ao despertar da mente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 484
No concernente ao amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 506
No concernente à liberdade d a mente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 542

São Simeão, o Novo Teólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 581


Discurso sobre a fé . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 583
Dirigido àqueles que dizem ser impossível, a quem vive n o mundo
e assume as provações daí decorrentes, atingir a virtude na sua
peifeição. Trata-se de um discurso de grande utilidade . . . . . . . . . . . 583

São Nicéforo, o Monge o u Solitário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 597


Textos s o b re a s o b riedade, a vigilância e a d i s c i p l i n a do
coração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 599
Da vida do nosso Santo Pai António . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 603
Da vida de São Teodósio, o Cenobita . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . 604
Da vida de Santo Arsénio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 605
Da vida de São Paulo do Monte Latros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 606
Da vida de São Sabbas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 607
Da vida do abade Agathon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 607
Do Abade Marcos a Nicolau . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 608
De São João Clímaco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 609
ÍNDICE 795

De Isaías, o Anacoreta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 61 1
De Macário, o Grande . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 612
De Diadoco . ........................................................................ 613
De Isaac, o S írio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 614
De ]oãíJ Carpácio . ................................................................ 614
De SimeãíJ, o Novo Teológo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 615
De Nicéforo, ele próprio . ....................................................... 61 7

São Gregório, o Sinaíta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 621


Sentenças diversas sobre mandamentos, dogmas, ameaças
e promessas. E ainda sobre paixões e virtudes, bem como
sobre hesicasmo e oração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 623
No concernente ao hesicasmo e aos dois modos de oração 704
Como orar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 705
Da respiraçãíJ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 707
Como salmodiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .... . .
. . . . . . . . . . . . . . 708
No concernente às diferentes maneiras de salmodiar . . . . . . . . . . . . . . . . . 709
No concernente à ilusão . . . . . . . . . . . . . ...
. . . . . . ....... . . . . . .. .
. . . . . . . . . . . . . . ..... 717
No concernente à leitura . . . . . . . . . . ..... . . . . . . .. ......... .....
. . . . . . . . . . . . . . . .. . 71 9
No concernente à oração . . . . . . . . . . . . . . .... . . . . .
. . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . . 728
Como dizer a oraçãíJ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 72 9
Como controlar a mente . ....................................................... 730
Como expulsar os pensamentos .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . 731
Como salmodiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 733
A alimentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 737
O erro e alguns outros assuntos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 40

São Gregório de Palamas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 1


E m defesa dos santos hesicastas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . 753
Uma segunda pergunta que lhe é feita . . . . . . . . . . . . . . . . . .. ...
. . . . . . . . . . . . .. 753
Resposta a essa pergunta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 754
No concernente à oração e à pureza do coração . . . . . . . . . . . . . ..
. . 776
Três textos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 77 6
Sobre a S agrada Transfiguração do Nosso Senhor e Deus e
S alvador Jesus Cristo . . . . . . .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . 78 1
o
Kt)
u
®
CLI
Sabedoria
8 C R I STÃ

O diálogo com Motovilov


- Serafim de Sarov

2 Tratado da oração, do jejum e da esmola


- Frei L uís de Granada

3 Relatos de um peregrino russo


ao seu pai espiritual

4 Tratados e Sermões
- Mestre Eckhart

5 Tratado breve da oração


- Dom Manoel de Portugal

6 Pequena Filocalia

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