Você está na página 1de 201

Polifonia

PERIÓDICO DO Programa de Pós-graduação


em Estudos de Linguagem-Mestrado

Número 19 – 2009 – issn 0104-687X

Estudos LINGUÍSTICOS

POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P. 1-189 2009 issn 0104-687x


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Reitora Conselho Editorial


Maria Lúcia Cavalli Neder Ana Antônia de Assis-Peterson – UFMT
Vice-Reitor António Manuel de Andrade Moniz – Universidade
Nova de Lisboa
Francisco José Dutra Souto
Cássia Virgínia Coelho de Souza – UFMT
Pró-Reitora Administrativa Célia Maria Domingues da Rocha Reis – UFMT
Valéria Calmon Cerisara Cláudia Graziano Paes de Barros – UFMT
Pró-Reitora de Planejamento Daniel Faïta – IUFM/FR
Elisabeth Aparecida Furtado Diana Boxer – University of Florida
de Mendonça Elias Alves de Andrade – UFMT
Enid de Abreu Dobránsky – USF
Pró-Reitora de Ensino de Graduação
Franceli Aparecida da Silva Mello – UFMT
Myrian Thereza Moura Serra
Helena Nagamine Brandão – USP
Pró-Reitora de Ensino de
Lúcia Helena Vendrúsculo Possari – UFMT
Pós-Graduação
Ludmila de Lima Brandão – UFMT
Leny Caselli Anzai Manoel Mourivaldo Santiago Almeida – USP
Pró-Reitor de Pesquisa Marcos Antônio Moura Vieira – UFMT
Adnauer Tarquínio Daltro Maria Inês Pagliarini Cox – UFMT
Pró-Reitor de Vivência Maria Rosa Petroni – UFMT
Acadêmica e Social Marilda C. Cavalcanti – UNICAMP
Luis Fabrício Cirillo de Carvalho Mário Cezar Silva Leite – UFMT
Nancy H. Hornberger – University Of Pennsylvania
Diretora do Instituto de Linguagens Piers Armstrong – Dartmouth College
Rosângela Cálix Coelho da Costa Rhina Landos Martinez André – UFMT
Roberto Leiser Baronas – UFSCAR
Coordenadora do Mestrado Simone de Jesus Padilha – UFMT
em Estudos de Linguagem Sônia Aparecida Lopes Benites – UEM
Cláudia Graziano Paes de Barros Stella Maris Bortoni – UnB
Vera Lúcia Menezes de O. e Paiva – UFMG
Coordenador da
Editora Universitária Editores Executivos
Marinaldo Divino Ribeiro Ana Antônia de Assis-Peterson
Maria Inês Pagliarini Cox
Maria Rosa Petroni

Organizadores
Ana Antônia de Assis-Peterson
Maria Inês Pagliarini Cox
Maria Rosa Petroni
Polifonia
PERIÓDICO DO Programa de Pós-graduação
em Estudos de Linguagem-Mestrado

Número 19 – 2009 – issn 0104-687X

Estudos LINGUÍSTICOS

POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P. 1-189 2009 issn 0104-687x


Universidade Federal de Mato Grosso
Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367
Bairro Boa Esperança – Campus Universitário Gabriel Novis Neves
CEP: 78.060-900 – Cuiabá-MT – Brasil
Fones: 0XX-65-3615.8408 – Fax: 3615.8413

Polifonia
Periódico do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagem – Mestrado
Instituto de Linguagens
Universidade Federal de Mato Grosso
Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367
Bairro Boa Esperança – Campus Universitário Gabriel Novis Neves
CEP: 78.060-900 – Cuiabá-MT – Brasil
Fones: 0XX-65-3615.8408 – Fax: 3615-8418
e-mail: polifonia@ufmt.br

Ficha Catalográfica - Biblioteca Central

Polifonia. Periódico do Programa de Pós-Graduação em Estudos de


Linguagem - Mestrado [do] Instituto de Linguagens, Universidade Federal de
Mato Grosso - Ano 17. nº 19. (2009). Cuiabá: Editora Universitária, V. I; 22,5 cm
189p.
Semestral

I. Universidade Federal de Mato Grosso ISSN 0104-687x

Capa, Editoração e Projeto Gráfico:


Candida Bitencourt Haesbaert

FAPEMAT
Fundação de Amparo à Pesquisa de Mato Grosso

Rua 03, s/nº, 3º andar, Prédio da IOMAT, C.


Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367 – Bairro Boa Esperança Fone 65-3613-3500 - Fax: 65-3613-3502
Fone: (65) 3615 8322 – fax: (65) 3615 8325 CEP 78050-970 - Cuiabá-MT.
Cuiabá – MT – 78.060-900 fapemat@fapemat.mt.gov.br
edufmt@cpd.ufmt.br www.fapemat.mt.gov.br
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.................................................7
ARTIGOS
A face do Brasil mostrada nas citações
da revista VEJA .............................................1
Sonia Aparecida Lopes Benites

Anotações sobre o funcionamento da


interdiscursividade cultural em
charges políticas.......................................29
Roberto Leiser Baronas

Edição de manuscritos: características


paleográficas..............................................43
Elias Alves de Andrade
Carmem Lúcia Toniazzo
Maria Margareth Costa de Albuquerque Krause

O outro em narrativas de aprendizagem


de línguas estrangeiras............................59
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
Iran Felipe Alvarenga e Gomes

Linguagem e mídia: discursos sobre a


língua inglesa na mídia brasileira..........81
Marisa Grigoletto

Relendo Bakhtin: reflexões iniciais.....103


Simone de Jesus Padilha

Falar rural e desvios da norma no texto


escrito: possíveis relações....................115
Joyce Elaine de Almeida Baronas

Leitura e mediação nos relatos de


estudantes de letras...............................133
Ana M. S. Zilles

Capacidades de leitura de textos


multimodais................................................161
Cláudia Graziano Paes de Barros
CONTENTS
EDITORS’ NOTE..................................................7
ARTICLES
The face of Brazil shown in the
quotations selected by VEJA magazine..... 1  
Sonia Aparecida Lopes Benites

Notes about the function of the cultural


interdiscursivity in political cartoons..... 29
Roberto Leiser Baronas

Manuscript editions: paleographic


characteristics............................................. 43
Elias Alves de Andrade
Carmem Lúcia Toniazzo
Maria Margareth Costa de Albuquerque Krause

The other in foreign language learning


narratives....................................................... 59
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
Iran Felipe Alvarenga e Gomes

Language and the media: discourses about


the English language in Brazilian media.... 81
Marisa Grigoletto

Rereading Bakhtin: preliminary


reflections .................................................. 103
Simone de Jesus Padilha

Rural dialect and deviations from


standard Brazilian Portuguese in the
written text: possible relations............ 115
Joyce Elaine de Almeida Baronas

Reading and its mediation in accounts


written by students of Letters.............. 133
Ana M. S. Zilles

Reading capacities of multimodal texts.... 161


Cláudia Graziano Paes de Barros
Apresentação
Mais um número do periódico Polifonia (Estudos Lin-
güísticos) sai da “boca do forno” – o número 19. Ele coloca
em circulação nove artigos de professores-pesquisadores
de diferentes universidades e programas de pós-graduação
stricto sensu brasileiros, refletindo a expansão da lingüística
contemporaneamente, para além do perímetro estreito de
ciência do núcleo duro da linguagem. Na primeira parte
da revista, agrupam-se os artigos que analisam práticas
variadas de linguagem, explorando a potencialidade de
determinados conceitos, teorias e perspectivas disciplina-
res. Já, na segunda, agrupam-se os artigos que, direta ou
indiretamente, fazem da linguística um lócus de reflexão
acerca de questões relacionadas ao ensino de línguas.
Sonia Aparecida Lopes Benites, professora da Univer-
sidade Estadual de Maringá, analisa citações da seção “O
Brasil em frases”, da edição comemorativa dos 40 anos da
revista VEJA, baseando-se nos estudos de Maingueneau
sobre o discurso relatado. Um das conclusões do estudo é
que o diálogo entre os enunciados destacados e dissociados
do texto fonte fixa certos sentidos de Brasil, alimentando o
imaginário a respeito da corrupção “presente no DNA dos
brasileiros”. E o leitor possivelmente se dá por satisfeito
com a capacidade crítica da revista, que o ajuda a enxergar
a “realidade”, a não se portar ingenuamente.
Roberto Leiser Baronas, professor do Programa de Pós-
Graduação em Lingüística da Universidade Federal de São
Carlos, revisita as ponderações feitas pelo lingüista Sírio
Possenti sobre o conceito de interdiscurso em Pêcheux,
Courtine e Maingueneau, com o objetivo de compreender o
funcionamento da interdiscursividade cultural em charges
políticas veiculadas pela mídia impressa brasileira, boliviana
e espanhola em 2001, 2005 e 2009, respectivamente. O au-
tor excogita que a interdiscursividade cultural se constitui
em mais um dos dispositivos que regem os múltiplos planos
do discurso, isto é, a sua semântica global.
Elias Alves de Andrade, Carmem Lúcia Toniazzo e
Maria Margareth Costa de Albuquerque Krause, professor
e alunas do programa de Mestrado em Estudos de Lingua-
gem da Universidade Federal de Mato Grosso, realizam um
estudo filológico de dois manuscritos pertencentes ao Ar-
quivo Público Municipal de Cáceres-MT, datados do século
XIX, de acordo com os princípios da Filologia e da Crítica
Textual, com a apresentação das edições semidiplomática
e fac-similar, seguidas da análise paleográfica que pode
contribuir para a caracterização do que se tem denominado
“dialeto caipira” no português brasileiro.
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva e Iran Felipe
Alvarenga e Gomes, professora e aluno da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, promovem uma revisão do papel
do outro em algumas teorias de aquisição de segunda língua
e mostram que a teoria sociocultural superestima o papel do
outro e ignora que professores e colegas podem funcionar
como obstáculos para os aprendizes de língua. Para defender
esse ponto de vista contundente, ancoram-se em excertos de
narrativas de aprendizagem de inglês escritas por aprendizes
japoneses, chineses, finlandeses e brasileiros.
Marisa Grigoletto, professora do Departamento de Le-
tras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, analisa os discur-
sos da mídia brasileira contemporânea acerca do Inglês. A
análise explora como certas ideologias são estabelecidas
por meio de um dizer hegemônico sobre a necessidade de
todos no Brasil saberem inglês e como esse dizer produz
um efeito imaginário de inclusão de todos os brasileiros.
Todavia, esse dizer é contradito por sentidos velados de que
a língua deveria permanecer conhecida por apenas uma
parcela da população.
Simone de Jesus Padilha, professora do programa de
Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Fede-
ral de Mato Grosso, pesquisadora, admiradora e estudiosa
de Bakhtin, reflete e se indaga, em tom ensaístico, sobre as
discussões do autor a respeito da relação entre vida e arte,
que, em outros termos, pode ser pensada como relação entre
vida e linguagem. Nessas indagações a autora, inescapavel-
mente, retoma a noção de linguagem como interação social,
nuclear à arquitetura conceitual de Bakthin, o pensador do
dialogismo, da polifonia. Para tanto, utiliza-se de alguns
exemplos do cotidiano e de textos literários.
Joyce Elaine de Almeida Baronas, professora da Uni-
versidade Estadual de Londrina, estuda a influência da ora-
lidade no texto escrito, estabelecendo um paralelo entre os
desvios da norma mais comuns e as marcas do falar rural.
Debruça-se sobre dois corpora coletados em pesquisa de
campo, um deles constituído de textos escritos por alunos
da 4ª série do ensino fundamental de uma escola pública
da cidade de Cambé-PR e outro de entrevistas com falantes
rurais do distrito de Paiquerê, no município de Londrina,
comparando-os e identificando a relação entre eles.
Ana Zilles, professora da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos, analisa relatos de estudantes de Letras, iden-
tificando concepções de leitura e leitor que revelam quem
são os mediadores e que papel têm no aprender a ler. Os
relatos são de alunos de diferentes instituições, em nível
de graduação e especialização. Os alunos foram provoca-
dos a relatar sua história pessoal de leitura, resgatando o
percurso desde o seu início, através da memória pessoal
ou familiar, bem como através de documentos ou outras
fontes e cobrindo o período e as vivências que julgassem
pertinentes e significativos.
Cláudia Graziano Paes de Barros, professora do progra-
ma de Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade
Federal de Mato Grosso, tendo em vista as demandas con-
temporâneas de leitura e escrita que requerem dos leitores
capacidades cada vez mais avançadas de letramento, apre-
senta resultados de uma pesquisa participante realizada
por ela com alunos de Ensino Fundamental de uma escola
pública brasileira. A pesquisa objetivou trabalhar a leitura
em uma perspectiva enunciativa bakhtiniana, utilizando
a primeira página de jornal impresso, considerada como
um gênero multimodal e, como, no dizer de Schneuwly
(1994/2004), um mega-instrumento para o ensino-apren-
dizagem de línguas.
Caros leitores de Polifonia, mostramos aqui algumas
nesgas de cada artigo, mas esperamos que essa “espiadi-
nha” seja suficientemente sedutora para levá-los aos textos
mesmos. No mais, boa leitura!
Ana Antônia de Assis Peterson
Maria Inês Pagliarini Cox
Maria Rosa Petroni
A FACE DO BRASIL MOSTRADA NAS
CITAÇÕES DA Revista VEJA 
Sonia Aparecida Lopes Benites1

Resumo: Este artigo focaliza as citações da seção “O Brasil


em frases”, da edição comemorativa dos 40 anos da revista
VEJA. Ancorando-se em reflexões de Maingueneau sobre
esse assunto (1976, 1984, 1989, 2004, 2006, 2008), a aná-
lise mobiliza conceitos como destacabilidade, sobreasseve-
ração, aforização, captação e subversão, em articulação com
a cenografia adotada na seção, concluindo que a seleção de
frases promove a fixação de certos sentidos de Brasil e de
brasileiro e a exclusão de outros.
Palavras-Chave: discurso relatado, citação, texto-fórmula,
aforismo, revista VEJA.
The face of Brazil shown in the quotations
selected by VEJA magazine
Abstract: This paper focuses on the section of quotations
published by VEJA magazine, in the commemorative edition
of its forty years. Based on the approach given by Main-
gueneau on quotations (1976, 1984, 1989, 2004, 2006 and
2008), this analysis applies concepts such as detachment,
aphorism, capture and subversion combined with the “sce-
nery” used in the section, concluding that the selection of
phrases promotes the setting of some senses for Brazil and
Brazilians and it excludes some others.
Keywords: reported discourse, quotation, formula text,
aphorism, VEJA magazine.

Considerações iniciais
Tendo como escopo a análise das citações da seção “O
Brasil em frases”, da edição comemorativa dos 40 anos da
revista VEJA, o presente trabalho baseia-se nos estudos de
Maingueneau sobre o discurso relatado. Os pressupostos

1 Professora Associada da Universidade Estadual de Maringá (UEM), pesquisadora colaboradora do IEL/


Unicamp, bolsista de pós-doutorado da CAPES. E-mail: salbenites@gmail.com.

POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P. 1-28 2009 issn 0104-687x


teóricos que norteiam a análise serão resgatados e arti-
culados com a cenografia da seção, pois esta, ao mesmo
tempo em que legitima os discursos selecionados, é por
eles legitimada.
A opção pela análise de uma revista semanal deve-se à
importância que esse tipo de veículo assumiu, na história
recente do país, tanto na circulação quanto na investigação
e resolução de diversas questões políticas. Esse papel já é
prenunciado pelo título imperativo de VEJA, que põe em
destaque sua vocação reveladora e fiscalizadora, em con-
traste, por exemplo, com a revista ISTO É, sua concorrente,
cujo título pressupõe uma vocação explicativa.
A opção pela cenografia constituída pela colagem de
declarações dessa edição de aniversário justifica-se pelo
caráter de síntese histórica sugerido pela seção, que cria a
expectativa de um resgate dos acontecimentos marcantes
para o período 1968-2008. Além do acontecimento histórico-
discursivo em que se constitui, pode-se inferir, entre os
critérios que levam um enunciado a destacar-se como um
dos mais significativos do período, sua forma inusitada e a
(i)legitimidade de seu enunciador.
Igualmente relevantes são os comentários sobre tais
declarações, que muitas vezes extrapolam a contextualiza-
ção, acrescentando sentidos ao enunciado e direcionando
a leitura. Até que ponto essas operações ocorrem na seção
em pauta e quais suas conseqüências nos efeitos de sen-
tidos de Brasil e de brasileiro é o que se pretende verificar
com a análise.

1. Pressupostos teóricos
Inicialmente, parece oportuno evocar o conceito de ce-
nografia ou, conforme Maingueneau (2006-a), a cena que
se constrói como elemento essencial de legitimação dos
discursos. A cenografia não se resume a um cenário, mas,
ao se desenvolver, constitui progressivamente o seu próprio
dispositivo de fala, sendo validada progressivamente por
intermédio da própria enunciação.
Ao percorrer alguns aspectos dos estudos realizados por
esse autor sobre a citação e suas interfaces, ao longo das

2
últimas três décadas, constata-se que ele caracteriza a cita-
ção como processo que consiste em “retirar um material já 
significante de dentro de um discurso para fazê-lo funcionar
dentro de um novo sistema significante” (Maingueneau,
1976, p.125). Classifica-a também em citação-prova, cita-
ção-réplica, citação-epígrafe e citação-cultura, lembrando
a possibilidade de ocorrência de uma interseção funcional
entre esses vários tipos.
Ressaltando a ambigüidade existente no distanciamento
entre o locutor que cita e o locutor citado, Maingueneau (1989)
afirma que este último aparece, ao mesmo tempo, como o
“não eu” em relação ao qual o locutor se delimita e como a
autoridade que protege a asserção. Isso permite ao locutor
citante dizer que sua fala é verdadeira porque não lhe perten-
ce propriamente, ou, ao contrário, permite-lhe autorizar sua
própria fala, pela evocação da autoridade de outrem.
O autor distingue o discurso direto e o discurso indireto
envolvidos no processo de citação, com base na encenação
que constitui o discurso direto, o que produz efeitos de
distanciamento e de autenticidade (embora não necessite
apresentar uma equivalência exata com a fala que é rela-
tada); já o discurso indireto é apresentado como uma in-
terpretação voltada para o conteúdo do pensamento, e não
para o relato de palavras exatas (1989, pp.140-141;149).
Alguns dos verbos delocutivos ou verbos dicendi, estreita-
mente ligados ao processo de citação são caracterizados
(Maingueneau, 1989), conforme incidam sobre o valor
de verdade da asserção (revelar, declarar), indiquem posi-
ção hierárquica entre as personagens envolvidas (ordenar,
pedir) ou posição cronológica entre diversos momentos da
fala (concluir, repetir).
Ao tratar especificamente do provérbio, uma das mani-
festações da citação-cultura, o autor introduz a noção de
“detournement”, procedimento que consiste na captação ou
na subversão do discurso de um enunciador de prestígio.
(Maingueneau e Gresillon, 1984). De acordo com o
texto, o detournement é uma máscara, por meio da qual o
locutor se investe do poder de outro ou o arruína; porém,
em lugar de esconder, essa máscara revela melhor uma
verdade mal conhecida. Pode revelar, por exemplo, que um

3
slogan tem a autoridade de um provérbio, ou, inversamente,
que o provérbio não é mais que o paradigma de um uso da
linguagem ligado a uma ordem falaciosa do mundo.
Maingueneau (2004) também retoma a diferença entre
apenas mencionar e, mais que isso, usar o discurso alheio,
presente na distinção feita por Authier-Revuz (1998) entre
autonímia e modalização autonímica. A modalização auto-
nímica, além de se manifestar em uma grande variedade
de categorias e construções comentadoras da fala daquele
que cita, pode fazê-lo por meio de marcas tipográficas,
como as aspas, o itálico, as reticências, os parênteses e o
travessão duplo. O autor aponta casos em que: tais mo-
dalizações indicam uma distância entre coenunciadores;
o enunciador alude a um outro discurso dentro de seu
próprio; o enunciador indica que as palavras empregadas
não correspondem exatamente à realidade que deveriam
designar; o enunciador aponta para o fato de que o sentido
das palavras é ambíguo.
Posteriormente, em artigo publicado no livro “Cenas da
Enunciação” (2006-a), o autor aborda um processo que não
se restringe à citação, embora possa envolvê-la. Trata-se
da destacabilidade de certas enunciações, que apresentam
autonomia, devido a algumas características formais (“são
curtas, bem estruturadas, de modo a impressionar, a serem
facilmente memorizáveis e reutilizáveis”; são, além disso,
“pronunciadas com o etos enfático conveniente” e generali-
zações “que enunciam um sentido completo”. 2006-a, pp.74-
77). As máximas, os provérbios e os slogans são enunciados
naturalmente destacados. Outros são destacáveis, isto é,
passíveis de serem destacados de um discurso, graças a
características como: a posição em que se encontram (final
de um capítulo ou de uma obra, por exemplo); o sentido
de definição ou generalização que lhe pode ser atribuído; a
marca de uma operação meta-discursiva (algo como “em re-
sumo...”, “para concluir...”); a forma sintética e inusitada.
Aprofundando a questão dos enunciados destacados
que circulam na sociedade, na conferência proferida no
Congresso Internacional da Abralin, em 2008, Maingueneau
afirma que um fragmento de texto pode ser submetido a
um destacamento forte, em que o leitor não tem acesso ao

4
texto-fonte, e um destacamento fraco, em que o enunciado
destacado é extraído de um texto apresentado ao leitor. O
destacamento fraco corresponde, em geral, a um título,
um subtítulo, uma legenda de foto, e é o mais freqüente na
imprensa escrita. Contudo, nesta ocorre também o desta-
camento forte, caso das citações dissociadas de seu texto
fonte, apresentadas sob rótulos como “frases da semana”.
Tais citações costumam ser seguidas de comentários
que, a pretexto de contextualização, muitas vezes, explici-
tam a ligação entre a frase e o acontecimento enunciado,
e não a situação de comunicação na qual a frase foi dita.
Coloca-se em relevo, dessa forma, determinado trecho da
fala ou a generalização de parte ou de todo o enunciado
destacado, fazendo com que ele acabe por não corresponder
ao texto efetivamente enunciado. Trata-se, nesse caso, do
fenômeno da sobreasseveração, que, pelo destacamento
em uma frase única e generalizante, altera o sentido de um
enunciado constituído, muitas vezes, por um movimento
argumentativo complexo, articulado em diversas frases e
modalizado pelo locutor.
Ainda no texto de 2008, Maingueneau utiliza o termo
aforização para designar “o regime enunciativo específico dos
‘enunciados destacados’” (p.159), focalizando suas proprie-
dades enunciativas, pragmáticas e antropolingüísticas, que
implicam descontextualização. Conforme o autor, existe uma
“tensão entre a aforização e o texto que a acolhe”, uma vez
que, ao contrário da enunciação textual, que inscreve cada
enunciado no horizonte global de um gênero de discurso, a
enunciação aforizante não se deixa enquadrar em um gênero.
Isso não significa que ela seja proferida fora de qualquer gê-
nero, sendo absoluta em si, mas, simplesmente, que ela tem
a pretensão ilocucionária de ser uma palavra absoluta.
As enunciações aforizantes são classificadas em sen-
tenciosas e pessoais. As primeiras referem-se a provérbios,
ditados, adágios e slogans, enunciações generalizantes,
naturalmente autônomas e basicamente polifônicas, cujo
responsável, um “hiperenunciador”, encontra-se em uma
instância anônima. Já as enunciações aforizantes “pessoais”
são atribuídas a indivíduos, indexados por nomes próprios,
e não são necessariamente generalizantes. Dessa forma, a

5
enunciação aforizante institui uma cena de fala em que a
instância responsável pela enunciação está em um plano
distante do enunciador que a evoca. Isso se aplica não só
à aforização sentenciosa, naturalmente voltada à repetição,
mas também à pessoal, que exibe claramente seu estatuto
de citação, ao convocar as palavras ditas em uma outra
cena por locutores autorizados.
No presente trabalho, a organização da seção “O Brasil
em frases” sob forma de uma relação de citações, na edição
comemorativa do quadragésimo aniversário da revista VEJA,
é encarada como uma cenografia, que é legitimada pelos
discursos que cita, ao mesmo tempo em que legitima o dis-
curso construído por tais declarações. A análise das frases
destacadas na seção pretende focalizar especificamente o
que Maingueneau denomina destacamentos fortes, aqueles
em que não é possível ao coenunciador recuperar a fonte de
onde foram extraídos. Além das citações, feitas em discurso
direto, serão considerados na análise os comentários que
as seguem, objetivando identificar sobreasseverações, isto
é, ênfases ou generalizações enunciativas.
As frases que compõem a seção compreendem slogans,
adágios, a fala de uma autoridade norte-americana (ex-
embaixador americano no Brasil), e, em maior número,
declarações atribuídas a brasileiros bem-sucedidos em di-
versas áreas: políticos, artistas, empresários, economistas,
esportistas, escritores e modelos. Trata-se, portanto, de
dois conjuntos de discursos relatados que possuem a pe-
culiaridade de remeter à fala do outro, sem que o sujeito se
apresente como responsável por elas: aqueles provenientes
de enunciador conhecido (pessoais) e os atribuídos a um
enunciador genérico (sentenciosos), que, por isso mesmo,
remetem à voz comum emanada do conjunto de integrantes
de um grupo cultural.
De maneira geral, os dados analisados compreendem
tanto enunciações aforizantes sentenciosas quanto pesso-
ais. Para os objetivos deste artigo, a enunciação aforizante
sentenciosa será considerada equivalente à “citação-cul-
tura”, e a enunciação aforizante pessoal, à “citação-prova”
(Maingueneau, 1976) ou “citação de autoridade” (BENI-
TES, 2002). Ambas servem para autorizar um discurso,

6
mas, enquanto umas o fazem pela importância individual do
autor evocado, outras ressaltam a importância do coletivo,
representado pela sabedoria popular.
Também se verificará se as enunciações aforizantes
sentenciosas constantes nos dados são alvos de desvios,
seja em direção à captação ou à subversão e se, nos casos
analisados, as referidas citações são apenas mencionadas
ou mencionadas e usadas. Antes da análise, ou melhor,
como parte dela, se procederá à depreensão das condições
de produção da seção “O Brasil em frases”.

2. Condições de produção da seção 


A premissa de que o suporte material é parte constitutiva
do discurso (Maingueneau, 2005) leva à compreensão
de que os efeitos de sentido dos dados são determinados
também por todo o conjunto de matérias relacionado às
frases que compõem a seção e ao momento histórico com-
preendido entre 1968 e 2008.  Daí o interesse deste trabalho
em focalizar, além das circunstâncias da enunciação, os
contextos histórico-sociais e ideológicos que fazem parte
da situação discursiva. 

2.1. Apresentação da revista   


As revistas semanais de maior penetração no público
brasileiro são aquelas que põem em circulação questões
políticas. Assuntos como o fim da ditadura militar, a es-
tabilização da economia e a consolidação da democracia
no país tiveram a participação crucial desses semanários,
igualmente responsáveis pelo anúncio, a apuração e o des-
fecho de um significativo número de escândalos políticos.
É nesse campo discursivo que se insere a revista VEJA,
na qual se encontra a seção que se pretende analisar. A
edição comemorativa dos 40 anos da revista apresenta na
capa, em letras douradas sobre fundo branco, a inscrição
VEJA 40 ANOS, com o ícone de um olho em substituição
à letra O, o que insinua sentidos de fiscalização e denúncia
também presentes no título do periódico: por meio do ver-
bo ver, no imperativo, a revista demonstra ver e mostrar,
revelar ou denunciar os fatos ao leitor.

7
Em 290 páginas de papel de ótima qualidade, a edição
apresenta matérias jornalísticas e publicitárias bem cuida-
das, cuja composição conserva características das edições
semanais, com adaptações que pretendem imprimir-lhe
um cunho de documento histórico. Dessa forma, além do
editorial são destacados trechos de entrevistas publicadas
nas últimas quatro décadas (“as melhores”), o melhor do
humor de Millôr Fernandes e Frases sintetizadoras do
Brasil. A seção “Imagens da Semana”, transformada em
“Imagens de 40 anos”, apresenta, ao longo de 57 páginas,
fotos acompanhadas de pequenos comentários sobre os
diversos setores da vida nacional e internacional.
A revista exibe uma divisão cronológica, com dois pólos,
voltados para o primeiro e o quadragésimo ano da revista,
entremeados por um outro bloco denominado “Transição”.
Os pólos de 1968 e de 2008 têm como temas um panorama
do Brasil e do mundo, cultura, comportamento, gente e po-
lítica internacional. A seção “Gente” é subdividida, no bloco
referente a 1968, focalizando pessoas que foram destaque
nacional e internacional, e enfatizando o aspecto cultural
(Brasil-Gente, Internacional–Gente e Cultura–Gente).
A “economia em 40 anos” recebe um tratamento privi-
legiado, sendo abordada especificamente no bloco “Tran-
sição”, que é desmembrado em “Os anos do milagre”, “Os
anos da hiperinflação” e “Os anos da estabilização”. Ainda no
mesmo bloco, a revista apresenta um ensaio do economista
americano Jeffrey Sachs, considerado “uma das maiores
autoridades mundiais em desenvolvimento sustentável”.
Sob o título “A importância de manter o rumo”, o ensaio
assinala a necessidade de o país manter e implementar polí-
ticas sociais, além de incentivar uma economia de mercado
globalmente competitiva.
Em seguida, há um bloco de variedades, intitulado “Al-
manaque”, que traça um paralelo entre o Brasil de ontem
e o de hoje, no que diz respeito a aspectos como Índice de
Desenvolvimento Humano (calculado a partir de dados sobre
educação, longevidade e renda), acesso ao ensino superior,
telecomunicações, transporte, energia elétrica, estrutura
familiar, religião e trabalho feminino. Ainda fazem parte
do Almanaque: uma pesquisa sobre o perfil dos leitores de

8
VEJA; curiosidades (como a apresentação do mais antigo
assinante e de um outro, nascido no dia do lançamento da
revista, além da personagem de uma notícia da primeira
edição); a relação das dez capas mais vendidas e a rotina
da produção e distribuição do semanário. Por fim, são apre-
sentadas todas as capas, ano a ano, acompanhadas de uma
síntese dos fatos que marcaram cada período.
Conforme pesquisa realizada pela editora da revista,
constante do “Almanaque” (p. 260), seu público é consti-
tuído basicamente por leitores pertencentes às classes A e
B (73%), ou seja, por potenciais compradores de produtos
e serviços, com curso de graduação completo (68%, dos
quais 24% são pós-graduados) e jovens (55% têm entre 20
e 49 anos). O fato de 30% assinarem a revista há mais de
cinco anos pode ser interpretado como um indício de que
boa parte do público leitor está de acordo com a formação
ideológica da revista. 

2.2. A revista e sua auto-imagem 


A auto-imagem da revista pode ser depreendida em
vários momentos: no vídeo publicitário exibido em seu
site (http://VEJA.abril.com.br), na “Carta do editor” e em
comentários constantes do tópico “Almanaque”. O vídeo
da campanha institucional, fiel ao papel insinuado pelo
título da revista, baseia-se na apresentação de imagens
de problemas nacionais, como miséria, corrupção, drogas,
violência e destruição da natureza, ao lado de outras, que
retratam as possíveis soluções para tais problemas, quais
sejam: educação, saúde, esporte, alimentação, igualdade de
direitos, punição aos corruptos e preocupação ecológica.
Sem ser verbalizado, o etos da revista, de órgão voltado à
denúncia e defesa dos direitos dos cidadãos, é “mostrado”,
pela forma de construção textual: imagens que falam por
si mesmas dialogam com o título (VEJA), de maneira que o
único comentário verbal restringe-se às frases “sim” e “não”,
bradadas por vozes infantis, que se revezam, conforme a
cena apresentada. Tais vozes justificam-se no discurso so-
bre as crianças “indefesas”, “futuro do país”, e principais
prejudicadas pelas injustiças sociais.

9
Ao final, ciente da situação e colocando-se como respon-
sável por ajudar a alterá-la, um adulto, possível coenuncia-
dor do semanário, enuncia o slogan: “VEJA, indispensável
para o país que queremos ser”. Evidentemente, é impossível
a qualquer leitor/navegador deixar de se incluir nesse “nós”
a que se refere a forma verbal: isso significaria discordar de
valores fundamentais, cuja defesa constitui, em princípio, a
razão de ser da revista. Daí o caráter de imprescindibilidade
de sua leitura, sintetizado no slogan, que afirma a impor-
tância das denúncias, informações e opiniões da revista na
construção de um país livre e socialmente justo.
Essa idéia é reforçada na “Carta do Editor”, em que o
presidente da editora Abril, Roberto Civita, afirma o com-
promisso do periódico, ao longo desses quarenta anos, em
“apresentar semanalmente não apenas um grande leque de
informações confiáveis, mas também o contexto e a análise
que permitem colocar os fatos em perspectiva e entendê-los
melhor” (p. 14). No mesmo texto, o editor atribui o sucesso
da revista, “a maior, a mais influente e a mais prestigiada”
do país, ao fato de ela ser “independente, isenta, inteligente
e responsável”.
Por fim, o “Almanaque” destaca que “VEJA se tornou a
terceira revista semanal de informação mais lida no mundo,
com circulação maior do que a soma das concorrentes” (sem
mencionar quantas e quais). Atribui, ainda, sua “indepen-
dência e credibilidade”, “pilares” sobre os quais se assenta,
ao fato de, durante esses quarenta anos, ter aumentado
em 300% o número de páginas destinado à publicidade
de empresas privadas, e diminuído, em 33%, os anúncios
estatais. Sintetizando, a revista, distribuída em 76 países,
se vê como uma potência no ramo da informação mundial,
influente, independente, confiável e engajada na solução
dos problemas nacionais.

2.3. Outro olhar sobre a revista


A imagem que a revista tem de si própria não é acatada
unanimemente. Um veemente crítico da revista VEJA, o
jornalista Luís Nassif, utilizando a rede mundial de com-
putadores como suporte preferencial (http://luis.nassif.
googlepages.com/home), atribui ao semanário o papel de

10
divulgadora do “estilo neocon” ou neo-conservador, uma
adaptação da linha da imprensa americana que defende
princípios liberal-conservadores.
No “blog” lançado no início de 2008, o jornalista acres-
centa que a revista privilegia notícias que têm como escopo
o benefício particular (o jabá, no jargão jornalístico), em
detrimento da informação real e de qualidade. Dessa forma,
acusa VEJA de “distorcer notícias”, “falsear a verdade” e
“propiciar tratamento discriminatório”. Tais acusações,
acompanhadas de detalhada descrição de diversos fatos,
levam-no a considerar o veículo “antiético”, “espécie de bal-
cão de negócios particulares”. Esse procedimento, quando
efetivamente se realiza, fere a liberdade de informação e de
crítica sem censura e o direito do cidadão de ser bem infor-
mado, conforme Lima (2009). Para a autora, “quando o jabá
é estampado numa página de revista, erra quem assessora
o cliente, quem veicula a ‘notícia’ e quem lê e não reprime
este tipo de atitude”.
Sem a intenção de afirmar que tal procedimento seja
característico da revista, dois aspectos da auto-imagem de
VEJA chamam a atenção: o primeiro refere-se à disparidade
entre os percentuais de inserções comerciais de natureza
pública e privada. Esse dado, se, por um lado, implica inde-
pendência em relação ao Estado e pouco compromisso em
divulgar e apoiar causas governamentais, por outro lado,
pode levantar a possibilidade de um comprometimento, em
alguma medida, com a iniciativa privada, ou ser sintoma
de um desentendimento com o governo.
Outro dado refere-se à fala do editor de VEJA, a respeito
da “isenção” da revista. Ora, tal isenção, além de se chocar
com a função comentadora e a interpretação dos fatos ine-
rentes ao trabalho jornalístico, entra em atrito com a pre-
sença humana, a participação, o engajamento em algumas
causas, características que a revista se auto-atribui, e que
se evidenciam, entre outros lugares, na seleção dos trechos
a citar, aspecto que será aqui abordado. Dessa forma, a afir-
mação do editor de que a revista procura “colocar os fatos
em perspectiva e entendê-los melhor” pode ser interpretada
como “colocar os fatos sob sua perspectiva e entendê-los de
acordo com certa ideologia”.

11
2.4. O momento histórico abrangido pelas “frases” 
O título da seção, O Brasil em frases, evoca um sentido
de síntese do percurso do país, nos últimos quatro decênios.
Assim, o esperado é que os relatos de fala selecionados men-
cionem fatos marcantes do período que vai do fim dos anos
sessenta ao fim de dois mil e oito, momento relevante para
a história recente do Brasil. Como afirma Roberto Civita, na
“Carta aos leitores”, os últimos 40 anos foram anos “agitados,
controvertidos, mas certamente estimulantes”. Para ele, “os
brasileiros finalmente começam a desfrutar da maturidade
econômica, política e social conquistada” (p. 14).
De fato, uma pequena comparação entre o estado de
coisas reinante no primeiro ano da revista e o ano de 2008
demonstra visíveis conquistas nos indicadores econômicos,
democráticos, políticos e sociais. Hoje, o Brasil possui um
estado de direito consolidado e goza de respeitabilidade
internacional. A expectativa de vida subiu de 53 para 74
anos; os índices de analfabetismo, embora ainda sejam ele-
vados (11%, mais os analfabetos funcionais), estão distantes
dos 33% de 1968. Os governantes, em todos os níveis são
eleitos por voto direto e universal. Se as leis apresentam
frouxidão, a liberdade de imprensa possibilita que muitas
das falcatruas venham a público e expõe os responsáveis
por elas ao julgamento popular.
Dessa maneira, em princípio, a síntese esperada deve
contemplar, dentre outros, os seguintes aspectos: momentos
importantes suscitados pela ditadura militar, tais como o
“Milagre brasileiro” e “o Projeto Brasil Grande Potência”, ou
aproveitados por ela, como o tri-campeonato mundial de
futebol; o surgimento de Luiz Inácio Lula da Silva na cena
política brasileira; o papel dos sindicalistas nas relações de
trabalho e na restauração da democracia; a união de lide-
ranças de todos os matizes em torno da defesa de eleições
diretas; a visão não romantizada do ano de 1968; o papel
dos estudantes universitários no período da ditadura; os
políticos que fizeram história, para o bem e para o mal; os
diversos períodos econômicos (“os anos do milagre”; “os anos
da hiperinflação”; “os anos da estabilização”); a eleição e a
morte de Tancredo Neves; a redemocratização do país; a

12
ascensão e a queda do Presidente Collor - o desastre de seu
plano econômico, o início da abertura para uma indústria
mais competitiva, seu impeachment e suspensão de direitos
políticos; Fernando Henrique Cardoso, o Plano Real e o fim
da inflação; a eleição e a reeleição de um ex-sindicalista,
para a presidência da República; a estabilização da eco-
nomia e a competitividade do Brasil no mercado global; a
mudança de posição do Brasil, de devedor a credor externo;
a denúncia e a apuração de atos de corrupção no seio dos
três poderes, sem comprometimento da ordem democrá-
tica. É importante destacar que muitos desses fatos são
abordados nos diversos blocos da edição comemorativa do
quadragésimo aniversário de VEJA.

3. “O Brasil em frases”: discurso e cenografia 


O conceito de “cena da enunciação” (Maingueneau,
2006-a) apresenta relevância para a análise das declarações
elencadas na seção “O Brasil em Frases” (revista VEJA,
nº 2077). Nessa perspectiva, o quadro cênico possui três
faces: a que se define a partir do tipo de discurso, ou cena
englobante; a que se refere ao gênero de discurso, ou cena
genérica, e a que se constrói como elemento de legitimação
dos discursos, ou cenografia. A cena englobante “define o
estatuto dos parceiros e um certo quadro espaço-temporal”,
de forma que, ante um texto de revista, todos sabem tratar-
se de um discurso jornalístico impresso, voltado a informa-
ção/opinião/ entretenimento. As cenas genéricas, por sua
vez, são “rituais sócio-linguageiros”, dentro dos quais são
definidos os papéis dos participantes. No caso em pauta, o
artigo de revista define como sujeito um editor que seleciona
diversos “autores” e enunciados, e se dirige aos coenuncia-
dores da revista, alguns fiéis e outros esporádicos.
Nos casos em que as cenas englobante e genérica são
insuficientes para definir o espaço em cujo interior o enun-
ciado adquire sentido, o próprio discurso aí institui a ce-
nografia, a partir da qual o texto aparenta originar-se. É o
que ocorre com as declarações selecionadas por VEJA, que
tecem um texto integral, coerente na unidade semântica es-
tabelecida pelo diálogo entre elas. A manifestação “original”
de cada um dos discursos evocados na seção deu-se por

13
meio de cenografias diferentes e, portanto, recebeu senti-
dos diversos daqueles que são construídos pela coletânea
apresentada nessa edição comemorativa. O leitor da coluna
recebe ao mesmo tempo uma amostra de discurso político-
midiático (cena englobante), uma seção da revista VEJA
(cena genérica), a enumeração de declarações relativamente
célebres sobre o Brasil (cenografia).
Como lembra Maingueneau (2006-a, p.113), “a escolha
da cenografia não é indiferente” e, se é verdade que o dis-
curso impõe sua cenografia, desde o início, é também ver-
dade que a legitimação desta se dá por meio de sua própria
enunciação. Portanto, longe de ser um mero cenário em que
o discurso se desenvolve, a cenografia resulta do esforço da
enunciação em constituir progressivamente o seu próprio
dispositivo discursivo. Ela legitima um enunciado que deve,
por sua vez, legitimá-la.
Decorre daí o fato de que, embora sejam abordados nas
diversas seções da revista, os acontecimentos que marca-
ram o período 1968-2008, acima referidos, paradoxalmente,
não aparecem na seleção de declarações que supostamente
sintetizariam essas quatro décadas, o que desvirtua o valor
documental da revista e não dá conta da síntese proposta
no título da seção.
As declarações selecionadas tematizam as mazelas do
Brasil, particularmente as relacionadas à corrupção, im-
punidade, desonestidade, desigualdade, ignorância e in-
competência. O processo de produção de sentidos da seção
apresenta o brasileiro, historicamente, por um discurso
que flutua entre ignorância/incompetência, por um lado,
e “jeitinho”/esperteza, por outro:
“Democracia neste país é relativa, mas corrupção é abso-
luta”. Paulo Brossard, então senador da República,
em 1978. 
“Estamos num país onde a esperteza passou a ser cha-
mada de competência”. O empresário Antônio Ermí-
rio de Moraes, em 1986. 
“As esquerdas brasileiras fora do poder são festivas; no
poder são aquisitivas”. O economista Roberto Cam-
pos, em 1987. 

14
“A burrice no Brasil tem um passado glorioso e um futuro
promissor”. Roberto Campos, em 1990. 
“A corrupção não é invenção brasileira, mas a impunida-
de é uma coisa muito nossa”. O humorista Jô Soares,
em 1995. 
“O Brasil continua sendo um estado cartorial, com
poder e privilégios concentrados nas mãos de poucos
e onde a democracia é exercida por semi-analfabetos”.
Lincoln Gordon, ex-embaixador americano no Brasil,
em 2003. 
“Todos nós somos corruptos”. Mário Amato, então
presidente da Fiesp, em 1992.
Na cenografia de que o discurso pretende originar-se,
apresentam-se indissociáveis as figuras do enunciador e
de coenunciadores, além de um momento – cronografia - e
um lugar – topografia (Maingueneau, 2006-b, p. 252). Da
mesma forma que o enunciador e os coenunciadores, o tem-
po e o espaço são históricos. A indissociabilidade entre esses
três elementos implica a determinação: 1) dos parceiros da
enunciação (brasileiros bem sucedidos e conhecedores da
“realidade” brasileira); 2) a definição de um conjunto de
lugares (“o Brasil em que a imprensa possui credibilidade
e liberdade”, “o Brasil em que se espera que as falcatruas
sejam denunciadas e punidas”); 3) a definição do momento
da enunciação (“o mês em que a revista comemora quarenta
anos de existência”).
Essa cenografia mobilizada por VEJA corresponde ao
mundo configurado pelo discurso, e, numa espécie de con-
gelamento temporal, desconsidera os diferentes momentos
históricos por que passou o país, do regime ditatorial à pau-
latina redemocratização. Em estreita conexão com esse dado,
o Brasil configura-se como um espaço homogêneo, consti-
tutivamente marcado pelo atraso e pela impunidade.
Como a cenografia é bem explorada, o leitor recebe esse
texto como uma mera enumeração de discursos relatados
proferidos nos últimos quarenta anos, e não como um texto
inserido no discurso que propala a ausência de seriedade e
de honestidade reinantes na política brasileira e no Brasil,
como um todo. Os discursos postos em circulação nessa

15
conjuntura histórica conferem maior credibilidade a essa
formação discursiva, ancorada na respeitabilidade e na au-
toridade de especialistas e personalidades que alcançaram
sucesso em diversas áreas.
Em um primeiro momento, as citações constitutivas
da seção poderiam ser classificadas como ocorrências de
autonímia simples, aquelas que, conforme Authier-Revuz
(2004, p.12), consistem em apenas exibir esse fragmento,
pela utilização de diacríticos ou de outros mecanismos que
marcam a delimitação do discurso. Contudo, a seleção e a
organização dos enunciados, associadas aos comentários,
glosas ou retoques, por meio dos quais o locutor procura
ajustar o processo de comunicação, transformam a seção
em um texto integral e dão ao processo de citação um sta-
tus de conotação autonímica por meio do qual o locutor, ao
mesmo tempo em que menciona o fragmento, faz uso dele:
inscreve-o na continuidade sintática do discurso e, simul-
taneamente, remete-o ao seu exterior.
Para comprovar que se trata efetivamente de um texto,
basta evocar Charolles (1988) e suas meta-regras. A seção
possui continuidade, uma vez que tem como unidade te-
mática a ignorância, a falta de seriedade, a corrupção e a
impunidade inerentes ao Brasil e aos brasileiros; possui
também progressão, já que focaliza aspectos diferentes do
tema, que se somam; não é contraditória e se articula sob
a forma de uma enumeração de declarações aspeadas, se-
guidas de indicações sobre suas condições de produção e
eventuais comentários.
Em estreita sintonia com a cenografia empregada, o tex-
to, simulando apenas mencionar declarações, constrói-se
nelas e por meio elas, empregando-as em lugar de apenas
mencioná-las. As declarações legitimam o texto e são legi-
timadas por ele.

4. Destacamentos fortes e sobreasseverações


na seção “O Brasil em Frases”
As citações em análise, inteiramente dissociadas de seu
texto fonte, compõem seções comuns na imprensa escrita
contemporânea, no processo que Maingueneau denomina

16
destacamento forte, visível, sobretudo, quando se trata de
páginas inteiras de citações, que o autor vê como uma es-
pécie de “patchwork”. É o caso da seção em análise, que
apresenta vinte e três enunciados destacados, provenientes
dos mais diversos locutores, sem verbo dicendi ou outro
introdutor. Um exemplo retirado dos dados é:
“No Brasil é assim: quando um pobre rouba, vai pra
cadeia, mas quando um rico rouba, ele vira ministro”
Luiz Inácio Lula da Silva, em 1988, quando ainda
não nomeava ministros. (VEJA, edição 2077, setembro
de 2008, p.92).
O enunciado explora lingüisticamente a contraposição
entre a desonestidade do “pobre” e a do “rico” e suas conse-
qüências paradoxais e inusitadas, de castigo para os perten-
centes ao primeiro grupo e de prêmio para os pertencentes
ao segundo. Porém, a justificativa para a seleção dessa fala
entre as mais significativas dos últimos quarenta anos não
se deve apenas à sua riqueza formal. Em 1988, proferida
por um membro do legislativo que representava os pobres,
a enunciação revestia-se de legitimidade.
O comentário que segue o enunciado destacado pela re-
vista não o relaciona, contudo, à situação de comunicação
em que foi proferido, mas, a pretexto de contextualizá-lo,
refere-se ironicamente à posição mais alta do poder Execu-
tivo, ocupada por Lula em 2008, que lhe permite nomear
“ricos que roubam”. Trata-se de um caso de sobreassevera-
ção presente no comentário, cujo movimento argumentativo
possibilita acrescentar sentidos ao enunciado e propõe que
a reflexão sobre o governo Lula se dê numa determinada
direção.
Por vezes, o comentário sobreasseverador decorre de
uma indicação ainda mais generalizante do “momento em
que se deu a fala”:
“Meu Deus, e se democracia for isso mesmo?” MILLÔR
FERNANDES, em 1992, no governo Collor. (VEJA, edição
2077, setembro de 2008, p.94).
Como se sabe, o ano de 1992 foi marcado por denún-
cias contra o governo Collor, por seu paulatino abandono

17
por parte da imprensa e de aliados, pela “CPI do PC”, pelo
processo de “impeachment”, pela renúncia do presidente e
sua cassação, em 29 de dezembro de 1992. Não é possível
saber, dessa forma, se a perplexidade evidenciada pela
declaração se refere a qualquer um desses episódios em
especial, ao desfecho final, ou é uma avaliação de toda a
conjuntura. A sobreasseveração leva em conta que qualquer
dessas interpretações justifica a declaração, dispensando
maiores detalhes da situação de fala. O mesmo se aplica
ao comentário implícito na “data” da emissão do enunciado
abaixo, igualmente direcionador da leitura, com apelos que,
excedendo em muito a mera informação, despertam efeitos
irônicos e humorísticos:
“O Brasil é realmente muito amplo e luxuoso. O serviço
é que é péssimo”. MILLÔR FERNANDES, em 1986, no
governo Sarney. (VEJA, edição 2077, setembro de 2008,
p.92).
Na problemática dos enunciados destacados, no cru-
zamento entre a linguística da enunciação e a análise
do discurso, Maingueneau (2008) inscreve a questão da
“enunciação aforizante”, que recobre o conceito de citação,
com nuances específicas. Derivado da noção de aforisma
como “frase de funcionamento sentencioso, que resume
em algumas palavras uma verdade fundamental” (Grand
Larousse de la langue française, em nota citada por Main-
gueneuau, 2008, p.159), o enunciado aforizante institui
uma cena de fala cujos protagonistas não se situam em um
mesmo plano, pois a instância responsável pela enunciação
está distante. Isso vale tanto para a aforização sentenciosa
(provérbios, ditados, adágios, slogans...), em que o locutor
atribui a responsabilidade de seu dizer à instância anônima
de um “hiperenunciador”, quanto na pessoal, que convoca
as palavras ditas em uma outra cena por locutores autori-
zados, cujo nome se destaca da comunidade e é colocado
na esfera das pessoas “competentes”. Trata-se, neste último
caso, das enunciações extraídas de um texto particular,
na lógica mais tradicional de citação, e constituídas de
enunciados breves como as “fórmulas”, os “pensamentos”
ou as “máximas”.

18
As enunciações aforizantes pessoais têm por referente
um autor específico e são de fácil circulação, pois seus
significantes, curtos e prenhes de sentido, são facilmente
memorizáveis. Um exemplo extraído da seção em análise
é a fala de um senador gaúcho, que critica o que seria o
comportamento paradoxal das esquerdas brasileiras em
espaços opostos, dentro e fora do poder. A repetição enfática
da palavra “poder” e a rima entre “festivas” e “aquisitivas”
comprovam o cuidado com a forma da enunciação: 
“As esquerdas brasileiras fora do poder são festivas;
no poder, são aquisitivas”. Paulo Brossard, então
senador da República, em 1978. (VEJA, edição 2077,
setembro de 2008, p.92).
Essa frase mereceria um comentário da revista que a
contextualizasse melhor, uma vez que foi pronunciada no
ano que marca o fim do governo Geisel e o início da gestão do
general João Figueiredo. Nesse momento histórico, o autor
da frase, senador Paulo Brossard, pertencia ao MDB, “opo-
sição institucionalizada” pelo governo militar (muito distante
das “esquerdas”), tendo sido candidato a vice-presidente da
República pelo partido, na chapa encabeçada pelo General
Euler Bentes Monteiro, em oposição a Figueiredo, candidato
da ARENA que se sagrou vencedor na eleição indireta.
Outro aspecto a ser ressaltado em relação à enunciação
aforizante é que, diferentemente da textual, que inscreve
cada enunciado no horizonte global de um gênero de dis-
curso, a enunciação aforizante tem “a pretensão pragmáti-
ca” de ignorar a necessidade de ocorrer no interior de uma
configuração textual. Assim, embora não tenha existência
fora de um texto, e, evidentemente, de um gênero, ela se vê
como uma ilocução sem contexto, absoluta.
Pode ocorrer, porém, de uma enunciação originalmente
ligada a uma situação com enunciador, coenunciadores,
tempo e lugar específicos, passar a funcionar nos moldes
de uma enunciação aforizante sentenciosa, tendo seu
caráter persuasivo garantido por sua estrutura e pelo re-
conhecimento popular. Essa independência em relação às
condições de produção originais pode ser identificada no
seguinte enunciado citado pela revista VEJA: 

19
Que país é este? FRANCELINO PEREIRA, presidente da
extinta Arena, em 1976, numa crítica aos que duvida-
vam da disposição do presidente Geisel em promover
a reabertura política. A frase, curiosamente, tornou-se
slogan da oposição. (VEJA, edição 2077, setembro de
2008, p. 92). 
Como se sabe, a história fez esse enunciado trabalhar,
trazendo-lhe novos efeitos de sentido, e desvinculando-o
de suas condições de produção originais, de maneira que
ele comporta, atualmente, a independência característica
dos provérbios. Dessa forma, além de decepção ou crítica,
a frase pode assumir, atualmente, o efeito de surpresa ou
estupefação. Transformada em uma fórmula genérica, pode
se referir a qualquer país e remeter a aspectos positivos ou
negativos; pode fazer referência às contradições de qualquer
povo ou governo; pode ser pronunciada dentro ou fora do
meio político; pode partir da voz da situação ou da oposi-
ção. Sua reedição, em 2008, embora não dê conta de toda
essa ampla gama de sentidos, após evocar suas condições
de produção originais, coloca-se como responsável pela
constatação um tanto simplista de que “curiosamente a
frase tornou-se slogan da oposição”.
A aforização, conforme concebida por Maingueneau
(2008), aproxima-se consideravelmente da citação, já que se
caracteriza por ser a repetição de uma fala. Isso fica evidente
tanto nos enunciados sentenciosos, voltados à repetição,
quanto nos pessoais, que exibem claramente seu estatuto de
citação. Entre as frases que constituem a seção em análise
ocorrem aforizações que remetem a condições de produção
distintas, e, portanto, a discursos diversos: 
Ninguém segura este país. Slogan ufanista encampado
pelo regime militar e que caiu na boca do povo depois da
conquista da Copa do mundo de 1970. (VEJA, edição 2077,
setembro de 2008, p. 92).  
Ninguém segura este país. O presidente LUIZ INÁCIO
LULA DA SILVA, em 2008, usando o velho slogan da
ditadura militar para comemorar a conquista do grau de
investimento pelo Brasil. (VEJA, edição 2077, setembro
de 2008, p. 94).

20
A retrospectiva histórica feita em outras seções da re-
vista deixa claro que os “anos do milagre” coincidiram com
um desempenho “genial” da seleção brasileira de futebol.
Politicamente, a esquerda considerava que ela só servia
para alienar ainda mais o povo, já distante dos problemas
nacionais; os generais a viam como uma “ótima forma de
fazer propaganda do regime” (p. 121). Conforme o trecho de
uma edição de 1968 relatado pela revista, os militares pro-
curavam interferir nas decisões do técnico João Saldanha.
O marechal Costa e Silva, em uma reunião com o técnico,
comentara haver necessidade de “disciplina, treinamento
e hierarquia”. Em seguida fora “ao que interessava: ‘Preci-
samos combinar, porque em 1970 eu ainda sou governo e
quero ver se dou ao Brasil esse tricampeonato’ ”.
Dessa forma, no interior do interdiscurso, o referido
lema assume um sentido negativo, de manipulação e ne-
gação dos preceitos democráticos, que não condiz com sua
segunda ocorrência. Ao trazê-lo à baila, a revista faz uma
sobreasseveração sobre sua inadequação, desconsideran-
do que se trata de dois discursos distintos, embora com o
mesmo enunciado.

5. “Detournements” das enunciações


sentenciosas: captação e subversão
Algumas das frases selecionadas pela revista são enun-
ciações aforizantes sentenciosas ou citações-cultura. Tra-
tando desse tipo de enunciações, Maingueneau e Gresillon
(1984) ressaltam a importância do provérbio, no qual a voz
do locutor se mistura a todas as vozes que proferiram o
mesmo dito, antes dele. Daí ele ser compreendido como “o
eco” de inúmeras enunciações anteriores, cuja proposição
é validada pela “sabedoria das nações”.
Sua interpretação supõe, além de conhecimento lin-
güístico, conhecimento da generalização de que deriva,
o que também se aplica ao adágio. Em ambos os casos,
o enunciador invoca um “hiperenunciador”, uma outra
instância não nomeada, mas reconhecida pelos membros
da mesma comunidade de experiência. A diferença é que,
enquanto no provérbio a comunidade é natural, no adágio,
é profissional.

21
Segundo os autores, o provérbio interessa tanto àqueles
que buscam dotar seus enunciados de autoridade quanto
aos que, ao contrário, pretendem problematizar as verdades
por ele estabelecidas. Tal percepção leva à definição de um
procedimento discursivo, o “detournement”, que consiste na
imitação lingüística da enunciação proverbial e comporta
duas estratégias, captação ou subversão, conforme se deseje
utilizar a autoridade proverbial em proveito próprio ou se
pretenda contestá-la.
O “detournement” proverbial pode consistir na alteração
de um provérbio ou de suas condições genéricas. Na alte-
ração efetiva, pode-se desviar tanto sua forma sintática e
prosódica quanto suas condições de emprego, que pressu-
põem uma verdade de “bom senso”, veiculadora da “sabe-
doria das nações” e endereçada a um alocutário universal.
Um detournement será tanto mais bem sucedido quanto
menor for a modificação feita no provérbio original, seja no
que se refere às condições de emprego, ao significado ou
ao significante.
Uma subversão proverbial bem sucedida, que exibe ni-
tidamente uma contradição entre as verdades proverbiais
usuais e o conteúdo do provérbio derivado, é realizada
por Millôr Fernandes. Após iniciar sua enunciação pela
retomada da fórmula proverbial “Diz-me com quem andas
e dir-te-ei quem és”, o humorista desqualifica-a, ao indivi-
dualizar a asserção e retirar dela o caráter genérico típico
dos provérbios, pela utilização do exemplo:
“Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és. Exemplo:
se andas sempre com um cara muito rico, é claro que és
empregado dele”. Millôr Fernandes, provérbio datado
de 1986. (VEJA, edição 2077, setembro de 2008, p. 88).        
A ruptura com o tom formal e arcaico do provérbio origi-
nal provoca estranhamento e, consequentemente, humor; o
emprego da gíria “cara” e da expressão “é claro”, comuns na
linguagem oral são outros aspectos formais que “moderni-
zam” o provérbio, auxiliando sua subversão, e valorizando
a asserção do humorista. Dessa forma, muda-se o foco da
influência exercida pelas companhias na personalidade e
no comportamento dos indivíduos, em prol da valorização

22
da asserção de Millôr, em relação à persistência da desi-
gualdade social no país.
Já a alteração das condições genéricas consiste em fazer
um pastiche do gênero proverbial, elaborar um pseudo-
provérbio, captando ou subvertendo suas “condições de
emprego.”  Por vezes, imita-se a forma de seus enunciados
curtos, estruturados em duas partes sintática e semantica-
mente simétricas, no tempo presente atemporal, com caráter
genérico ou de definição. O etos específico que contribui
para marcar a distância entre o enunciador e o locutor ci-
tado, dado como responsável pela asserção, é marcado na
entonação característica de textos-fórmula e de citações. É o
caso, por exemplo, do enunciado abaixo, que constitui uma
captação do gênero proverbial, pois implica utilização de
grupos nominais e de tempos verbais genéricos, apresenta
disposição binária, ritmo, repetição da forma verbal “gosta”,
enfim, revela um trabalho de estilização da linguagem, num
texto em que a forma está a serviço do sentido:
“Pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelec-
tual”. Carnavalesco Joãosinho Trinta, 1976.  (VEJA,
edição 2077, setembro de 2008, p. 92).
O enunciado foi uma resposta dada por Joãosinho
Trinta, então carnavalesco da Escola de Samba Beija-flor,
àqueles que criticavam o luxo com que ela se apresentava na
avenida. Entendiam esses críticos que tal luxo destoava das
condições de vida dos sambistas que desfilavam na escola,
provenientes, em sua maioria, de classes desfavorecidas,
e residentes na periferia do Rio de Janeiro. A enunciação
apresenta uma estrutura formal que leva a supor uma
coincidência entre um “hiperenunciador” que, atuando
como “sujeito universal”, validaria a citação, e os membros
da comunidade cultural em que se inseria o carnavalesco
carioca. Sua experiência como membro da referida comu-
nidade permitiu-lhe enunciar, em tom de verdade universal
comparável a um provérbio, uma fala que pretendia colocar
fim à polêmica. Pode-se supor que o enunciador foi bem
sucedido, pois esse simulacro parece ter-se transformado
em uma “verdade”, repetida por muitos.

23
No nível do significante, quanto maior a similitude entre
o enunciado de origem e o derivado, melhor o efeito obtido.
Maingueneau e Gresillon (1984) apresentam, entre os proce-
dimentos de desvio de significante mais correntes, a junção
de novos elementos ao provérbio, que pode ser observada
no adágio completado por Tim Maia, citado entre as frases
da revista VEJA. A forma original, “O Brasil é o único país
onde prostituta tem orgasmo, cafetão tem ciúme e traficante
é viciado”, foi assim complementada pelo cantor:
“O Brasil é o único país onde prostituta tem orgasmo,
cafetão tem ciúme, traficante é viciado e pobre é de di-
reita”. O cantor Tim Maia, em 1990, complementando
o adágio popular. (VEJA, edição 2077, setembro de
2008, p. 94).
Também pode ocorrer de um dito qualquer se transfor-
mar em slogan, uma enunciação com estatuto de verdade
de um grupo, cuja permanência é assegurada por objetivos
definidos (MAINGUENEAU e GRESILLON, 1984). Dessa
forma, os slogans reforçam a coesão de uma coletividade,
opondo-a a “um exterior hostil, ameaçador ou indiferente”.
Um grupo constituído por uma comunidade ligada a um
aparelho e dotada de uma memória compartilhada produ-
ziu uma fórmula que se tornou slogan do regime militar e
aparece entre as frases selecionadas pela revista: 
“Brasil: ame-o ou deixe-o”. Inscrição que começou a cir-
cular em adesivos em São Paulo, em 1970, e logo virou
slogan da ditadura. (VEJA, edição 2077, setembro de
2008, p. 92).
Trazendo implícito um conceito muito particular de amor
à pátria, o slogan situa a si e a seu alocutário como membros
de uma comunidade que partilha uma “verdade” parcial,
uma vez que deixar o país não se apresentava exatamente
como uma opção, mas como uma imposição a todos aqueles
que alardeassem sua discordância em relação às posições
do governo militar. Daí porque essa verdade não se insta-
lou entre as evidências coletivas, não se generalizou nem
passou a ser garantida por um enunciador de autoridade
incontestável, como acontece com slogans que assumem
estatuto de provérbios.

24
O espírito do referido slogan pode ser captado na re-
portagem de capa “Os militares: teoria e prática do poder”,
publicada pela própria revista VEJA, em 1º de abril de 1970
(edição 082), em comemoração aos 6 anos da “vitória do
movimento revolucionário de março”. Na reportagem, tecem-
se rasgados elogios a “esses homem saídos dos quartéis”,
a maioria “de origem humilde” que, para “enfrentar a crise
brasileira”, contaram com “a formação idealista e combativa
que receberam nas escolas e a unidade de objetivos que
cultivaram na vida da tropa”. As idéias e posições políticas
do ministro do Interior do governo Médici, General Costa
Cavalcanti, citadas na matéria, ilustram bem o espírito
“patriótico” do slogan:
“Sou nacionalista, sim, mas sem aspas; eu não admitiria
nunca ter entre os meus auxiliares um esquerdista; sou
contra o barateamento do conceito de segurança nacio-
nal; não há dúvida de que a maioria do Exército deseja
a democracia: mas que essa democracia plena venha
progressivamente, que não avancemos três passos para
recuar cinco”.
Em todos esses casos de imitação, os discursos apre-
sentam um etos específico que contribui para marcar a
distância entre aquele que coloca a declaração em circulação
e o responsável por ela.

Considerações finais 
A análise da seção “O Brasil em frases”, da revista VEJA,
baseada nos estudos de Maingueneau, busca comprovar a
asserção do autor sobre a relevância de certas cenografias:
aquilo que a seção pode dizer parece ser mais eficazmente
dito na cenografia em que se materializa. Nesse caso especí-
fico, a cenografia baseia-se na enumeração de declarações,
o que lhe permite falar, por meio dos discursos escolhidos,
despertando certos sentidos e silenciando outros.
Tal cenografia mobiliza declarações feitas sobre o Brasil
e os brasileiros, nos últimos quarenta anos, e resultam no
chamado destacamento forte, uma vez que não possibilitam
ao coenunciador o confronto com a enunciação “original”.
A seção, a pretexto de suprir essa necessidade de contex-

25
tualização, faz comentários que acabam por direcionar sua
interpretação, num movimento de sobreasseveração.
As frases da seção se constituem em aforizações, em um
sentido que, ampliado por Maingueneau, compreende, além
das frases de funcionamento sentencioso, como as máximas,
ditados e provérbios (que funcionam como citações-cultura),
certas modalidades de aforizações pessoais, que exibem
claramente seu estatuto de citação, funcionando, em sua
maioria, como citações-prova.
Alguns dos enunciadores das frases selecionadas bus-
cam dar a suas declarações pessoais a autoridade de afo-
rizações sentenciosas; outros questionam a autoridade das
verdades estabelecidas por tais sentenças. Decorre daí um
procedimento desviante, o “detournement”, que ora utiliza a
autoridade sentenciosa em proveito da enunciação pessoal,
num processo de captação, ora questiona tal autoridade,
promovendo uma subversão.
Todos esses procedimentos são articulados pela ceno-
grafia adotada na seção, em que as palavras, a construção
e o tom, somados ao lugar social dos enunciadores e dos
coenunciadores, o valor da revista como parte do mecanismo
da indústria cultural, tudo significa. E o fato de existirem
outros textos que garantem o que é dito nesses enuncia-
dos sedimenta os sentidos construídos e institucionaliza
o dizer.
O tom adotado pela coletânea mescla deboche e denún-
cia, na apresentação das “deficiências inerentes ao caráter
do político brasileiro”, tratado ironicamente, na maioria das
frases, a despeito do estatuto documental pretendido por
essa edição da revista. O resultado é um efeito de indignação
social (ou quem sabe, de conformismo, já que não há nada a
fazer), afinal, tudo indica que “política não é coisa de gente
honesta”, “o poder corrompe”, “todo político é corrupto”, “o
brasileiro é incompetente e ignorante”...
Ao operar a interpretação do sentido num viés tomado
como único, os discursos que constituem a seção fragmen-
tam e simplificam a identidade do brasileiro, num posicio-
namento denuncista e zombeteiro, que disciplina e reduz
a memória.   O diálogo entre esses enunciados reforça o

26
imaginário a respeito da corrupção “presente no DNA dos
brasileiros”. E o leitor possivelmente se dá por satisfeito
com a capacidade crítica da revista, que o ajuda a enxergar
a “realidade”, a não se portar ingenuamente.
O emprego de enunciados construídos com base no
verbo ser (ou equivalente), no presente do indicativo, e em
palavras ou expressões abstratas, tais como “democracia”,
“esperteza”, “esquerdas”, “burrice”, impunidade e “corrup-
ção” presta-se a explicar, ordenar, classificar, tendo como
resultado um sentido de essência, de marca constitutiva
da qual é impossível se livrar.  Assim, ainda que os fatos
abordados na revista demonstrem que a construção do
país vem sendo assumida e executada, paulatinamente,
por sucessivas gerações, a cenografia da seção indica uma
incapacidade do país em aprender com os erros e acertos
do passado.

Referências 
AUTHIER-REVUZ, J. Palavras Incertas: as não-coincidências
do dizer. Tradução de C. R. C. Pfeiffer et al. Campinas: Editora
da Unicamp, 1998.
AUTHIER-REVUZ, J. Entre a Transparência e a Opacidade. Um
Estudo Enunciativo do Sentido. Tradução de E. Lemos. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2004.
BENITES, S. A. L. Contando e fazendo a história: a citação no
discurso jornalístico. São Paulo: Arte & Ciência/ Núcleo Editorial
Proleitura, 2002.
CHAROLLES, M. Introdução aos problemas da coerência dos
textos. In: GALVES, C., ORLANDI, E. & OTONI, P. (orgs.) O texto/
escrita e leitura. Campinas, SP: Pontes, 1988.
GREIMAS, A. J. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Petrópolis:
Vozes, 1975.
LIMA, A. Revista: a mídia que fica. Revista Meio & Mídia. www.
revistameioemidia.com.br: 2009. Acesso em 7/4/2009.
MAINGUENEAU, D. Initiation aux Methodes de l’Analyse du
Discours - Problèmes et perspectives. Paris Hachette, 1976.
MAINGUENEAU, D. e GRESILLON, A. Polyphonie, Proverbe et

27
Dètournement ou un proverb peut em cacher un autre. Langages,
v. 19, n. 73, pp. 112-125, 1984.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso.
Tradução de Freda Indursky. Campinas, SP: Pontes: Editora da
Unicamp, 1989.
Maingueneau, D. Análise de textos de comunicação. São
Paulo: Cortez, 2004.
MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução de Sírio
Possenti. Curitiba: Criar, 2005.
Maingueneau, D. Cenas da enunciação. Curitiba: Criar,
2006-a.
MAINGUENEAU, D. Discurso literário. São Paulo: Contexto,
2006-b.
MAINGUENEAU, D. L’enonciation Aphorisante. in Congresso da
Associaçao Brasileira de Linguistica, 5., Belo Horizonte,
MG. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2008, pp. 155-164.
NASSIF, L. O caso de VEJA (Ensaios) http://luis.nassif.
googlepages.com/home. Acesso em 5/3/2009.
VEJA. 1970. Os militares: teoria e prática do poder. In: http://
veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_01041970.shtml. Acesso
em 7/4/2009.
VEJA. 2008. São Paulo: Abril, nº 2077, setembro de 2008. Edição
especial, comemorativa dos 40 anos.
VEJA. 2008. Vídeo publicitário da revista Veja: AlmapBBDO. In:
http://VEJA.abril.com.br. Acesso em 7/4/2009.

Recebido em 03/04/2009
Aceito em 22/06/2009

28
ANOTAÇÕES SOBRE O FUNCIONAMENTO
DA INTERDISCURSIVIDADE CULTURAL
EM CHARGES POLÍTICAS
Roberto Leiser Baronas1

Resumo: Neste artigo, partimos da discussão feita por


Possenti sobre o conceito de interdiscurso com o objetivo
de compreender o funcionamento da interdiscursividade
cultural em charges políticas veiculadas pela mídia im-
pressa brasileira, boliviana e espanhola em 2001, 2005 e
2009, respectivamente. Nas charges analisadas, a marca
cultural possui uma força grande na transformação dos
atores políticos em alvo de comentários e questionamentos
humorísticos, misturando as esferas pública e privada. A
marca cultural se constitui em mais um dos dispositivos
que regem os múltiplos planos do discurso, isto é, a sua
semântica global.
Palavras-Chave: interdiscurso, interdiscursividade cultural,
charge política.
Notes about the function of the cultural
interdiscursivity in political cartoons
Abstract: In this paper, starting with discussions by Possen-
ti on the concept of interdiscursivity, we aim to understand
the function of the cultural interdiscursivity in political
cartoons spread by Brazilian, Bolivian and Spanish printed
mass media in 2001, 2005 and 2009, respectively. In the
analyzed cartoons, the cultural mark has a strong impact
in the transformation of political actors targeted by humo-
ristic comments and questions mixing the public and pri-
vate spheres.The cultural mark constitutes another device
among those that rule the multiple plans of discourse, that
is, its global semantics.
K eywords : interdiscursivity, cultural interdiscursivity,
political cartoons.

1 Professor no Departamento de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Lingüística da UFSCar,


Professor Colaborador no Mestrado em Estudos da Linguagem da UFMT e Pesquisador do CNPq nível
2. email baronas@ufscar.br

POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P. 29-41 2009 issn 0104-687x


Primeiras palavras
Por que um artigo sobre análise discursiva de charges?
Em que medida analisar o funcionamento discursivo de
charges políticas poderia nos levar a recorrer a categorias
centrais da análise do discurso, fazendo-as ranger? A charge
interessa-nos pela relação de sentidos que estabelece não só
entre o acontecimento histórico e o acontecimento discur-
sivo dado a circular, mas também e, principalmente, pela
relação estabelecida entre o discurso e os diferentes tipos
de interdiscurso que o sobredeterminam. Questionando-
nos sobre a possibilidade de um tratamento discursivo das
charges, frente às abordagens pragmáticas e discursivas
dialógicas, acreditamos ser possível colocar em prática um
dos ensinamentos de Pêcheux, tal como foi lembrado por
Maldidier (2003, p. 15): o discurso não é qualquer coisa de
empírico da qual se deveria fazer análise, mas é “um lugar
teórico onde se encontram intrincadas, literalmente, todas
as questões sobre a língua, a história e o sujeito”.
Iniciamos nossa reflexão apresentando o texto Observa-
ções sobre interdiscurso2, publicado no livro Questões para
analistas do discurso. Nesse texto, partindo da idéia de que
não existem questões esgotadas em AD, Possenti discute
a noção de interdiscurso fazendo uma reflexão cuidadosa
sobre as postulações de Pêcheux, Courtine e Maingue­
neau. O percurso é mais que esclarecedor: toca em pontos
nevrálgicos das definições e permite perceber, a partir da
consideração de algumas análises, que é preciso tanto re-
finar definições, quanto reconhecer com maior propriedade
o que ocorre no funcionamento discursivo. As formulações
de interdiscurso e pré-construído presentes em Semântica
e Discurso (1975) de Michel Pêcheux são o ponto de partida
de toda reflexão.
Possenti inicia apresentando duas teses de Pêcheux
(1975, p. 162), que reproduzimos a seguir:
Toda formação discursiva dissimula, pela transparência de
sentido que nela se constitui, sua dependência com relação

2 Parte dessas discussões foi elaborada em conjunto com a colega e Amiga Fernanda Mussalim da Univer-
sidade Federal de Uberlândia – UFU a quem agradeço pelo diálogo sempre agradável e produtivo.

30
ao “todo complexo com dominante” das formações discur-
sivas, intricado no complexo das formações ideológicas...
E continua, afirmando que o autor propõe
chamar interdiscurso a esse “todo complexo com do-
minante” das formações discursivas, esclarecendo que
também ele é submetido à lei de desigualdade-contra-
dição-subordinação que (...) caracteriza o complexo das
formações ideológicas.
Dessas formulações, Possenti destaca a afirmação da
dependência da FD em relação ao “todo complexo com do-
minante”; a caracterização desse todo complexo como inter-
discurso; e a insistência em se afirmar que uma FD depende
do interdiscurso. Toda essa caracterização apresenta-se a
princípio muito aceitável, avalia o autor, mas, à medida
que outras categorias vão sendo definidas – como é o caso
da noção de pré-construído – começam a aparecer incon-
sistências. Destacamos, a seguir, a definição que Pêcheux
apresenta de pré-construído, tal como citada no artigo por
Possenti (2009, p. 155):
O pré-construído “corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpe-
lação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu ‘senti-
do’ sob a forma de universalidade (‘o mundo das coisas’)”.
De acordo com essa noção, os sujeitos falam a partir
do já-dito. Entretanto, analisa Possenti, não é exatamente
o já-dito que o interdiscurso põe à disposição (ou impõe)
aos sujeitos? Só se poderia aceitar a “convivência”, numa
mesma teoria, dessas duas definições, em certos aspectos
concorrentes, se se compreender ‘universalidade’ como
efeito de universalidade para determinada FD, e se assumir
que nem todos os pré-construídos estão à disposição (ou
são impostos) a cada sujeito, “mas apenas aqueles que ele
pode/deve dizer” (POSSENTI, 2009, p. 156).
Nessa perspectiva, o pré-construído não é da ordem do
interdiscurso, mas da ordem de cada formação discursiva
ou daquelas com as quais cada uma mantém uma relação
de aliança (o que fica mais evidente ainda quando os pré-
construídos se articulam na forma de discurso transverso).
Em outras palavras,

31
o “todo complexo” põe à disposição um conjunto x de
pré-construídos, mas, para cada sujeito, ou para cada
“comunidade” de sujeitos (ou, ainda, para cada FD), só
são selecionáveis os pré-construídos aceitáveis para essa
FD. Dizendo de outro modo, só estão disponíveis, para
cada FD, os pré-construídos cujo sentido é evidente para
essa FD. (POSSENTI, 2009, p. 156).
Desse modo, para Possenti não parece satisfatório definir
de interdiscurso como o todo complexo com o dominante;
seria mais pertinente considerá-lo, como o faz Courtine
(1981), como o exterior específico que domina uma FD,
“seja este exterior a outra FD determinada, ou um conjunto
delas, com a qual, ou com as quais, uma relação específica
e relevante se mantém” (POSSENTI, 2009, p. 157).
A teoria do interdiscurso exige do estudioso, que se
põe a analisar um corpus, que analise “um discurso que
se confronta com outro (e não com todos os outros)” POS-
SENTI (2009, p. 159). O trabalho de Courtine (1981) é um
bom exemplo disso, e Possenti retoma parte das análises
feitas pelo autor francês, a fim de mostrar ao leitor que os
enunciados dos comunistas dirigidos aos cristãos estabe-
lecem relações com formulações que se podem descobrir
no processo discursivo inerente à formação discursiva que
o domina, o que implica, segundo o autor da coletânea,
que cada formação discursiva fornece os elementos a se-
rem por ela retomados. Entretanto, a rede interdiscursiva
dos enunciados não se limita ao conjunto das formulações
pertencentes à FD que domina um discurso, porque essas
mesmas formulações “só têm existência discursiva na con-
tradição que as opõe ao conjunto das formulações (...) pro-
duzidas em CPs heterogêneas às suas” (POSSENTI, 2009,
p. 160). Cada FD, portanto, fornece os elementos a serem
retomados por ela, e a outra FD, a antagonista, fornece os
elementos a serem recusados. Nessa perspectiva, a forma
de incorporação dos pré-construídos e dos já-ditos não é
a mesma segundo se trate, em cada caso, de um ou de
outro discurso; o mesmo ocorre com o processo de contra-
identificação da formação discursiva, que tem a ver com o
lugar de onde derivam esses pré-construídos.

32
Posteriormente, Possenti apresenta as formulações de
Dominique Maingueneau em relação ao interdiscurso, mos-
trando que o analista de discurso francês traz uma contri-
buição muito relevante para pensar a noção. Maingueneau
(2008) postula o primado do interdiscurso, questionando a
concepção primária de fechamento estrutural da formação
discursiva. Esse movimento acaba por resolver uma série
de incongruências presentes nas noções anteriores, visto
que a questão não é mais analisar as relações entre diversos
“intradiscursos” compactos. O primado do interdiscurso
exige que se pense a presença do interdiscurso no coração
do intradiscurso. Na análise de Possenti (2009, p. 164), é
da radicalidade dessa postulação que decorrerá
o caráter essencialmente dialógico de todo enunciado
do discurso, a impossibilidade de dissociar a interação
dos discursos do funcionamento intradiscursivo. Essa
imbricação do Mesmo e do Outro rouba à coerência
semântica das formações discursivas todo o caráter de
“essência”, cuja inscrição na história seria acessória; não
é dela mesma que a formação discursiva tira o princípio
de sua unidade, mas de um conflito regrado.
Essas são algumas das reflexões que Possenti realiza
nesse artigo. Além da fina revisão teórica que faz, mos-
trando que uma tentativa de comparação entre as versões
de Pêcheux e Courtine, de um lado, e de Maingueneau, de
outro, esbarraria numa espécie de incomensurabilidade, o
autor ainda aponta, como já dissemos, para a necessidade
de uma melhor especificação sobre a natureza de certos ele-
mentos presentes nos discursos, sem falar na interessante
contribuição que dá nesse sentido, ao demonstrar, por meio
de resultados de análises, que há determinadas construções
que parecem pré-construídos, mas não são:
Há construções cujo efeito é idêntico ao do pré-cons-
truído, e que, no entanto, não se encontram no inter-
discurso. Ou seja, não pertencem, a rigor, a discurso
nenhum. A única explicação para seu aparecimento é
um dos efeitos da relação polêmica, o simulacro. (POS-
SENTI, 2009, p. 164)

33
Se, por um lado, tal como diz Possenti “há construções
cujo efeito é idêntico ao do pré-construído, e que, no entanto,
não se encontram no interdiscurso. Ou seja, não pertencem,
a rigor, a discurso nenhum”, pois são o resultado de um
determinado simulacro, defendemos que há outras constru-
ções que são da ordem da cultura3. Trata-se, na verdade, de
um conjunto de saberes cuja memória que os faz dizer não é
nem da ordem do acontecimento discursivo, nem da do pré-
construído e nem da do simulacro. Entendemos que nesses
casos se trata de uma interdiscursividade cultural.

Sobre a noção de interdiscursividade cultural4


Em seu trabalho sobre as relações entre a linguagem e
os cartoons, Riani (2002) nos afirma:
não se pode defender que haja um discurso “puro”,
originalmente inédito, mas sim uma reelaboração, uma
reconstrução, uma combinação de múltiplos discursos/
idéias, mesmo que a partir de fragmentos desses. Assim,
o que torna coerente e pertinente a proposição dialógica
de Bakhtin é principalmente o fato, inegável, de que ne-
nhum discurso nasce do nada [...] poderíamos afirmar
que essa talvez seja a especialidade do humorista gráfico:
a de reinterpretar, de modo perspicaz e irreverente, os
inúmeros discursos que nos rodeiam, possibilitando, na
maioria das vezes, uma leitura mais ampla e verdadeira
dos fatos. (RIANI, p. 49, 2002)
A afirmação de Riani (2002), ancorada na perspectiva
dialógica bakhtiniana, atribui ao humorista gráfico a capa-
cidade de “reinterpretar, de modo perspicaz e irreverente”
os acontecimentos históricos que nos constituem cotidia-
namente, “possibilitando, na maioria das vezes, uma lei-
tura mais ampla e verdadeira dos fatos”. No caso do nosso
objeto, as charges, seguindo a asserção de Riani (2002),
seria o chargista que retoma os acontecimentos históricos
e os transforma em acontecimentos discursivos, estes últi-

3 Essa expressão foi utilizada pela Professora Doutora Maria Cristina Leandro Ferreira da UFRGS durante
a sua palestra no IV SEAD, realizado em Porto Alegre – RS em novembro de 2009.
4 Parte dessas discussões foi publicada no número 01, volume 02 da Bakhtiniana: Revista de Estudos do
Discurso e está em linha no endereço www.linguagemememoria.com.br

34
mos diriam de forma “mais ampla e verdadeira” o que não
poderia ser dito em outro gênero, num editorial de jornal,
por exemplo. Observamos, contudo, uma charge publicada
na Folha de S. Paulo em 12 de maio de 2001.

Numa leitura dialógica dessa charge, tal qual a proposta


por Riani (2002), é possível constatar que ela faz inicialmen-
te alusão ao período da crise de energia elétrica pelo qual
o Brasil passou em 2001. Esse período foi designado pela
grande mídia como “Apagão”. O próprio título da charge é
APAGÃO e está materializado inclusive em letras brancas
com um fundo preto. No suposto cenário, entendemos que
os personagens das charges estão em uma conversa ao ar
livre, à luz do dia, no gramado do Congresso Nacional. A
charge está dividida em duas imagens dispostas vertical-
mente. Na primeira, temos FHC caricaturizado, apresen-
tando, entusiasmado, uma placa de energia solar para a
jornalista. Assim, o chargista caricaturiza FHC, toma de
empréstimo a sua voz e diz supostamente à jornalista: “Esta
placa capta energia solar”. Na segunda, é a jornalista que

35
questiona, apontando a outra placa: “E esta, presidente?”
Ele diz: “Energia Parlamentar”, apontando para uma placa
completamente tomada por maços de dinheiro. Pela cari-
caturização da jornalista, podemos apreender que a ex-
pressão facial que esta apresenta na primeira imagem é de
satisfação, já na segunda imagem a expressão é de susto,
de descontentamento. Entendemos que, neste momento,
a jornalista está sendo vista na posição de qualquer bra-
sileiro e, não exatamente, no papel de jornalista. Assim, a
expressão de decepção ajuda a fazer uma crítica aos parla-
mentares brasileiros pelo seu caráter facilmente subornável.
Essa crítica se constitui na retomada dos discursos que
circulam na sociedade brasileira. Teríamos nessa charge
do ponto de vista de Riani (2002) uma dupla (re)interpre-
tação de acontecimentos históricos. No primeiro caso, a
retomada aos discursos que dizem o Apagão e no segundo,
a retomada dos discursos que dizem o caráter corruptível
dos parlamentares brasileiros.
Cremos ser preciso considerar, no entanto, que a charge
em análise é também determinada por outro tipo de rela-
ção interdiscursiva, que não apenas aquela que possibilita
“reinterpretar, de modo perspicaz e irreverente, os inúmeros
discursos que nos rodeiam” e/ou os acontecimentos históri-
cos. Trata-se, na verdade, da retomada de uma interdiscur-
sividade cultural. Em outros termos, a charge em questão
não está apenas determinada pelos dois acontecimentos
históricos que ela ressignifica, mas está, sobretudo, deter-
minada por um imaginário social que torna sempre já em
derrisão os políticos brasileiros.
A charge em questão não está apenas dando a ler o Apa-
gão e o caráter corruptível dos políticos brasileiros numa
materialidade distinta do editorial de jornal, por exemplo,
ela está dando a ler, na verdade, um dos traços da cultura
brasileira, sobretudo no tocante ao humor. O que estamos
asseverando é que faz parte da cultura brasileira, enquanto
um traço que a distingue das demais, tornar em derrisão o
outro em textos humorísticos. Desse modo, independente-
mente dos conteúdos que o texto humorístico veicule, este
vem sempre sobredeterminado por essa marca cultural:
tornar o outro em derrisão.

36
Se a nossa hipótese de leitura estiver certa, isto é, se a
interdiscursividade cultural sobredetermina os sentidos da
charge, sobretudo as charges que dão a ler os atores políti-
cos, ela deverá dar conta também de charges veiculadas em
jornais de outros países. Para tanto, tomamos inicialmente
uma charge veiculada em 2005 no jornal boliviano La Razon.
Trata-se de uma charge com temática política semelhante
à qual analisamos.

A charge em questão apresenta de um lado um suposto


político boliviano num programa televisivo dizendo sobre
o seu trabalho no parlamento: “En el Parlamento estamos
trabajando arduamente para resolver los problemas” e de
outro, uma mulher boliviana, supostamente uma indíge-
na, pelo modo como está vestida, dizendo a uma criança,
provavelmente seu filho: “... Para cómo seguir mamando
del Estado”. Mulher e filho estão em pé observando a cena.
Não é possível assegurar o local onde se encontram, mas
podemos inferir que se trata de uma loja de eletrodomésti-
cos, pois há mais de um aparelho de televisão sintonizado
no mesmo político discursando. É possível dizer que esta
charge, diferentemente das charges veiculadas em jornais
brasileiros e que analisamos, não se apresenta a partir
de uma dupla perspectiva enunciativa: X disse Y (humo-
risticamente), porque pensa a partir de uma determinada
formação discursiva (seriamente) Z. A charge em questão
apresenta X dizendo Z porque pensa a partir de uma de-

37
terminada formação discursiva Z, ou seja, que os políticos
bolivianos são corruptos. Em outros termos, charge boli-
viana diferentemente da charge brasileira não esconde uma
significação figurada para além de um enunciado literal.
Ela veicula um sentido literal. Acreditamos que essa forma
de dizer da charge boliviana tenha a ver justamente com a
maneira de os bolivianos se colocarem diante do mundo.
Foge, entretanto, do escopo deste trabalho, uma vez que
implicaria uma visada antropológica e histórica, discutir
as razões pelas quais os bolivianos seriam mais diretos do
que os brasileiros.
Tomemos agora outro texto desta vez, uma charge que
foi publicada no jornal espanhol EL País em julho de 2009.
Trata-se também de uma charge que veicula uma temática
política.

Nessa charge, temos de um lado um suposto investigador


que diz: “Cuando investigamos a los terroristas nos acusan
de torturas... Cuando investigamos a políticos nos acusan
de filtraciones” e de um outro, um suposto político, que re-
plica a fala da primeira personagem dizendo: “Un respeto.
Nosostros no somos políticos. Somos estadistas!” E de um

38
outro lado ainda, uma voz anônima, vinda das costas do
político, que afirma sarcasticamente: “Con viento fresco del
levante”. As imagens apresentadas na charge são apenas a
do possível investigador e do político. Não aparece ninguém
dizendo este último enunciado, o que é apresentado na
charge é apenas o “balão” da conversa, tal qual um balão de
histórias em quadrinhos. Diferentemente, das charges bra-
sileiras e boliviana analisadas, a charge dada a circular no
jornal espanhol traz uma terceira perspectiva enunciativa:
a primeira é a voz do policial; a segunda é voz do político e,
a terceira, possivelmente a de um Sujeito Universal. Assim,
teríamos X disse Y e não-Y (humoristicamente em forma de
réplica) porque pensa a partir de uma determinada formação
discursiva (auto-sarcasticamente) Z. Esta última traz para
a enunciação um enunciado que faz parte do imaginário
social espanhol. Cremos que a forma de dizer da charge
espanhola materialize o auto-sarcasmo espanhol5 frente
às coisas do mundo.
Em suma, analisando as charges veiculadas nos três
países: Brasil; Bolívia e Espanha, teríamos as seguintes
perspectivas discursivas:
a) Charge brasileira: “X prefere dizer Y (humoristica-
mente) porque pensa a partir de uma determinada
formação discursiva (seriamente) Z”;
b) Charge boliviana: “X diz (seriamente) Z porque pensa
a partir de uma determinada formação discursiva
(seriamente) Z”;
c) Charge espanhola: “X diz (humoristicamente) Y e
(também humoristicamente – em forma de réplica)
diz não-Y porque pensa a partir de uma determinada
formação discursiva (auto-sarcasticamente) Z.

5 Claude Chabrol (2008) em seu trabalho sobre os atos humorísticos, ao defender que estes são bastante
sensíveis às variações culturais, cita o trabalho franco-espanhol realizado sob a direção de Patrick Charau-
deau e de José Bastos entre 2000 e 2004, que analisou os mais variados gêneros e subgêneros humorísticos
veiculados pelas mídias espanhola e francesa, concluindo por um contraste bastante grande entre os dois
corpora mobilizados.

39
Provisórias considerações finais
No nosso entendimento, as hipóteses levantadas sobre
as marcas culturais ou da interdiscursividade cultural na
sobredeterminação dos sentidos dos textos chárgicos, embo-
ra pertinentes, necessitam ainda de uma maior discussão,
sobretudo no tocante às charges boliviana e espanhola. Sem
uma pesquisa mais aprofundada a partir de uma ampliação
do corpus mobilizado, contrapondo-o com outros aconteci-
mentos discursivos humorísticos, seria pouco prudente de
nossa parte afirmar uma espécie de generalização culturali-
zante das charges: brasilianismo nas charges brasileiras; bo-
livianismo nas charges bolivianas e hispanismo nas charges
espanholas. Entretanto, tal análise aprofundada com charges
de diferentes países foge do escopo da nossa proposta neste
artigo, fica aqui o apontamento para um trabalho futuro. A
relevância deste apontamento está justamente no fato de
que, ao se estudar a charge, se dê importância não apenas
ao estudo dos efeitos visados, como a grande maioria dos
trabalhos que a mobilizam como objeto tem feito, mas prin-
cipalmente dos efeitos produzidos e da possibilidade de se
redesenhar categorias analíticas da Teoria do Discurso.
No caso das charges brasileiras analisadas, acreditamos
que a interdiscursividade cultural - a derrisão do outro (polí-
tico) presente no imaginário social brasileiro, historicamente
construído - possui um peso decisivo na sobredeterminação
dos acontecimentos discursivos dados a ler. Acreditamos
que nas charges analisadas a marca cultural possui uma
força grande na transformação dos atores políticos em alvo
de comentários e questionamentos humorísticos, misturan-
do as esferas pública e privada. A marca cultural se constitui
em mais um dos dispositivos que regem os múltiplos planos
do discurso, isto é, a sua semântica global6. Trata-se, na
verdade, de uma espécie de pré-discursivo sobredetermi-
6 O caráter global desta semântica se manifesta pelo fato de que ela restringe simultaneamente o conjunto dos
planos discursivos: tanto o vocabulário quanto os temas tratados, intertextualidade ou as instâncias de enuncia-
ção. Trata-se, com isso, de libertar-nos de uma problemática do signo, ou mesmo da sentença, para apreender o
dinamismo da significância que domina toda a discursividade: o enunciado, mas também a enunciação, e mesmo
além dela, como se verá. Recusamos a idéia de que há, no interior do funcionamento discursivo, um lugar onde
sua especificidade se condensaria de maneira exclusiva ou mesmo privilegiada (as palavras, as frases, os arranjos
argumentativos, etc). O que leva a recolocar o princípio de sua disseminação sobre os múltiplos planos do dis-
curso. Não há mais, então, lugar para uma oposição entre superfície e profundeza, que reservaria apenas para a
profundeza o domínio de validade das restrições semânticas (MAINGUENEAU, 2005, p. 22-3)

40
nando o discursivo. Ademais, do ponto de vista da Teoria
do Discurso, é possível postular que os exemplos arrolados
nos mostram que, ao pensarmos as relações mantidas entre
o acontecimento e a memória e entre o acontecimento e o
esquecimento, devemos levar em consideração não só os
saberes discursivos dos sujeitos – o que sujeito lembra e o
que ele esquece – mas também outros tipos de saberes tais
como a interdiscursividade cultural.

Referências
CHABROL. C. Humor e mídia: definições, gênero e cultura.
In: Gláucia Muniz Proença Lara, Ida Lúcia Machado, Wander
Emediato (orgs). Análises do Discurso hoje, volume 2. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: (re)ler Michel
Pêcheux hoje. Trad. Eni Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 2003.
MAINGUENEAU, D. Gênese dos Discursos. Curitiba, PR: Criar
Edições, 2005.
PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In:
GADET, F. e HAK, T. (org.) Por uma análise automática do
discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 1997.
_________________. Discurso: estrutura ou acontecimento. 2 ed.
Campinas, SP: Pontes, 1997.
POSSENTI. S. Questões para analistas do discurso. São Paulo:
Parábola Editorial, 2009.
RIANI, C. Linguagem & cartum...tá rindo do quê? Um mergulho
nos salões de humor de Piracicaba. Piracicaba: Editora da
UNIMEP, 2002.

Recebido em 27/09/2009
Aceito em 18/10/2009

41
EDIÇÃO DE MANUSCRITOS:
CARACTERÍSTICAS PALEOGRÁFICAS
Carmem Lúcia Toniazzo1
Elias Alves de Andrade2
Maria Margareth Costa de Albuquerque Krause3

A necessidade de construir textos autênticos se faz sentir


quando um povo de alta civilização toma consciência
dessa civilização e deseja preservar dos estragos do tem-
po as obras que lhe constituem o patrimônio espiritual.
(AUERBACH,1972, p.11)
Resumo: Este artigo visa ao estudo filológico de dois ma-
nuscritos pertencentes ao Arquivo Público Municipal de
Cáceres, Mato Grosso, datados do século XIX, de acordo
com os princípios da Filologia e da Crítica Textual, com a
apresentação das edições semidiplomática e fac-similar
seguidas da análise de suas características paleográficas.
Este estudo justifica-se pela importância histórica e social
dos referidos documentos para a cidade de Cáceres, além
do valor linguístico que apresentam, uma vez que neles é
possível verificar algumas mudanças ocorridas na língua
portuguesa, especialmente no tocante a aspectos paleográfi-
cos, procurando-se, assim, contribuir para a caracterização
do que se tem denominado “dialeto caipira” no português
brasileiro. Trata-se de trabalho articulado aos projetos de
pesquisa: “Estudo do Português em manuscritos produzidos
em Mato Grosso a partir do século XVIII” (MeEL/UFMT),
“Filologia bandeirante”(USP, UFMG, UFGO e UFMT) e “Ex-
pansão do Português paulista através do rio Tietê até Mato
Grosso a partir do século XVI”(USP).
Palavras-chaves: filologia, crítica textual, linguística, ma-
nuscritos, paleografia

1 Mestranda em Estudos da Linguagem – UFMT.


2 Professor Associado II do Departamento de Letras e do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem
do Instituto de Linguagens da UFMT, Doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela USP.
3 Mestranda em Estudos da Linguagem – UFMT e professora da UNEMAT.

POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P. 43-58 2009 issn 0104-687x


Manuscript editions: paleographic
characteristics
Abstract: This article is a philological study of two ma-
nuscripts that belong to the Municipal Archive of Cáceres,
Mato Grosso. The two manuscripts are dated from the
XIX century in accordance with the principles of Philology
and Textual Criticism with the presentation of the semi-
diplomatic and facsimile editions followed by the analysis
of their paleographic characteristics. This study is justified
by the historic and social importance of these documents
for the city of Cáceres because of their linguistic values as
some changes in the Portuguese language can be seen in
them especially regarding to paleographic aspects. In this
way this study contributes to the characterization of what
has been named “rural dialect’ (“falar caipira”) in Brazillian
Portuguese. The study is part of the large research projects
running by several universities in Brazil involving “Studies
of the Portuguese language in the manuscripts produced in
Mato Grosso dating from the XVIII century” (MeEL/UFMT),
“Pioneer Philology” (USP, UFMG, UFGO, UFMT) and “Ex-
pansion of São Paulo Portuguesec (“português paulista”)
across the Tietê river to the state of Mato Grosso dating
from the XVI century” (USP).
Keywords: philology, textual criticism, linguistics, manus-
cripts, paleography.

Introdução
Este artigo propõe-se a fazer um estudo filológico de do-
cumentos manuscritos visando, dentre outros objetivos, à
sua preservação, já que, como textos antigos, possuem valor
não só histórico e cultural, mas principalmente linguístico,
especialmente na perspectiva do estudo do que vem sendo
ultimamente chamado de português brasileiro.
Para tanto, serão feitas as edições fac-similar e semidi-
plomática e a análise paleográfica de dois manuscritos do
século XIX, o Ms1, de 20 de maio de 1885, e o Ms2, de 18
de novembro de 1895, pertencentes ao Arquivo Público Mu-
nicipal de Cáceres-MT, seguindo-se os principais procedi-
mentos pertinentes à Filologia e à Crítica Textual, conforme

44
abordagem a propósito feita por Spina (1994), Azevedo Filho
(1987), Acioli (2003), Spaggiari & Perugi (2004) e Cambraia
(2005), dentre outros.

1. Tipos de edição
Há diversas formas de tornar acessível ao público um
texto, sendo, para tanto, fundamental a escolha do tipo
adequado de edição a ser utilizado, pois cada um tem ca-
racterísticas próprias, desde a edição fac-similar, em que
o grau de intervenção do editor é nulo, até a interpretativa,
marcada por forte intervenção do editor. A opção aqui é
pela edição semidiplomática, por caracterizar-se por baixo
grau de intervenção do editor, sendo, por isso, destinada a
um público mais restrito e especializado, dentre os quais
linguistas, historiadores, antropólogos etc. (CAMBRAIA,
2005, p.95).

1.1. Edições fac-similar e semidiplomática


Editar um texto consiste em reproduzi-lo lançando-se mão
de variados graus de mediação. Aqui optou-se pela edição
fac-similar ou foto-mecânica, entendida como a “fotografia do
texto”, que reproduz com muita fidelidade as características
do texto original, e pela semidiplomática, que, segundo Spina
(1994, p. 85), “representa um tentativa de melhoramento
do texto, com a divisão das palavras, o desdobramento das
abreviaturas”, constituindo-se assim em “uma forma de
interpretação do original, pois elimina as dificuldades de
natureza paleográfica suscitadas pela escritura.”

1.1.1. Critérios adotados para a edição semidiplomática


Com o intuito de unificar os critérios de transcrição e
edição de manuscritos, a Comissão de Sistematização e
Redação do I Encontro Nacional de Normatização Paleo-
gráfica fixa, em novembro de 1990, diretrizes e convenções,
revistas durante o II Encontro Nacional de Normatização
Paleográfica, em 1993, e reformuladas por ocasião do II
Seminário para a História do Português Brasileiro, realiza-
do no período de 10 a 15 de maio de1998, em Campos do
Jordão – São Paulo.

45
Assim, seguindo-se as orientações do II Seminário para
a História do Português Brasileiro, realizado em Campos
do Jordão-SP, em 1998, a edição semidiplomática dos ma-
nuscritos Ms1 e Ms2 adotará os seguintes critérios:
1. Os manuscritos e as transcrições serão numerados;
2. As linhas serão numeradas de cinco em cinco;
3. A acentuação será mantida conforme no original;
4. A pontuação original será mantida;
5. As maiúsculas e minúsculas serão mantidas;
6. A ortografia original será mantida, não se efetuando
nenhuma correção ou atualização;
7. As abreviaturas serão desdobradas e as letras omitidas
marcadas em itálico;
8. As assinaturas serão indicadas por diples;
9. Os caracteres impressos serão registrados entre cha-
ves;
10. O “s” caudado será transcrito como “s”;

46
1.1.2. Edições fac-similar e semidiplomática dos
manuscritos
Ms1

47
Transcrição 01 – 1r4

Identificação: Arquivo Público Municipal de Cáceres


Comunicação de nomeação de alferes honorário do exército
Assunto pelo presidente da província de Mato Grosso
Local São Luiz de Cáceres – MT

Data 20 de maio de 1885

Assinatura Ideógrafo2

{Numero} 161 {Secretaria da Presidencia de Matto-Grosso}


{Em Cuyabá,} 20 {de} Maio {de 188}5
{1ª Secção}
{Illustrissim}os {Senhor}es
5 De ordem de Sua Excellencia o Senhor Presidente da provincia,
comunico a Vossas Senhorias, para os fins convenientes, que
por acto d’esta data foi nomeado o alferes honorario do exercito
Indalecio da Silva Rondon para servir o lugar de Juiz
comissario de medições desse municipio; ficando marcado
10 o prazo de um anno, contado de hoje, para dentro d’elle
serem medidas e demarcadas as terras do mesmo municipio,
comprehendidas nas attribuiçoões do Juiz comissario.
Deus Guarde a Vossas Senhorias Illustrissimos Senhores Presi
dente e mais vereadores da Camara
15 Municipal de Saõ Luiz de Caceres.
O secretario, <José Marques daSilva Pereira>

4 A identificação “1r” refere-se a fólio nº 1, recto, ou seja, frente.


5 O Ms1 é documento ideógrafo, ou seja, é produzido por escrivão a pedido de quem o idealizou, que o assina.

48
Ms2

49
Transcrição 02 – 1r

Identificação: Arquivo Público Municipal de Cáceres


Certidão de batismo de filho legítimo de escrava lavrada pelo
Assunto
vigário de São Luís de Cáceres-MT
Local São Luiz de Cáceres-MT

Data 18 de novembro de 1895

Assinatura Apógrafo6

Certifico que revendo o Livro de assen-


tamentos dos baptismos dos ingenu -
os celebrados nesta Parochia, nel-
le á folhas 5 verso, deparei com
05 o assento pedido, que de verbo
ad verbum é pelo theôr seguin-
te = Aos vinte nove de Maio de
mil oitocentos e setenta e quatro
baptizei e puz os Santos Oleôs
10 á Moysés, nascido em principi-
os de Junho de 1873, anno pas-
sado, filho legitimo de Eusebio
Garcia, e Henriqueta, escrava
de Vespasiano da Silva Nogueira;
15 foi padrinho Antonio Cardoso
da Silva, e madrinha a liberta
Maria Antonia. E para cons=
tar lavrei este termo, em que
me assigno. O vigario Casimiro
20 Ponce Martins – Nada mais se
continha em o dito assento,
que fielmente copiei, e a o qual
me reporto. Saõ Luiz de Caceres
18 de Novembro de 1895
25 <Padre Casimiro Ponce Martins.>
Parocho encõmendado.

6 O documento Ms2 é apógrafo, por tratar-se de cópia.

50
2. Paleografia
Para se proceder a uma análise filológica adequada
de um corpus, como o Ms 1 e o Ms 2, é preciso recorrer a
outras ciências que auxiliam a Filologia, dentre as quais
a Paleografia, que fornece subsídios também à História, à
Antropologia, ao Direito e a outras ciências que tenham a
escrita como material de análise.
Originária do grego, a palavra Paleografia significa: pa-
laios = antigo e graphien = escrita, segundo Spina (1977).
Por sua vez, Acioli (1994, p. 5) afirma ser a Paleografia o
estudo da escrita feita sobre material brando ou macio,
como as tábuas enceradas, o papiro, o pergaminho e o pa-
pel, podendo recorrer aos conhecimentos de ciências afins
e vice-versa.
A paleografia é, assim, antes de tudo, um instrumento de
análise de documentos históricos. Não cabe ao paleógrafo
somente ler textos; a ele compete igualmente datá-los,
estabelecer sua origem e procedência e criticá-los quanto
à sua autenticidade, levando em consideração o aspecto
gráfico dos mesmos. Das ciências auxiliares da História,
a Paleografia é a mais importante, porque ela se dedica ao
estudo da escrita sobre material brando, principal fonte
de informação do historiador. (ACIOLI, 1994, p. 6).
Segundo Cambraia (2005, p. 23-5), modernamente,
a paleografia apresenta duas finalidades: a teórica, que
se preocupa em entender como os sistemas de escrita se
constituem sócio-historicamente, e a pragmática, que se
detém na capacitação de leitores modernos para avaliarem
a autenticidade de um documento com base na sua escrita
e de interpretarem adequadamente as escritas do passado.
Além disso, continua o citado autor:
A relevância da Paleografia para o crítico textual é bas-
tante evidente: para se fixar a forma genuína de um
texto, é necessário ser capaz de decodificar a escrita em
que seus testemunhos estão lavrados. É muito comum,
aliás, existirem edições de texto que apresentam falhas
decorrentes de equívocos na leitura do modelo por parte
do editor. (CAMBRAIA, 2005, p. 23-4).

51
A análise paleográfica, minuciosa por natureza, requer
do pesquisador dedicação e muitas horas de trabalho,
exigindo um olhar atento para cada palavra do texto. A
paciente tarefa de vasculhar instituições, como bibliotecas
e mosteiros, lendo documentos, observando-lhes letra e
forma, era efetuada, em sua maioria, por religiosos das
mais diversas ordens.
A necessidade de analisar a autenticidade e a veraci-
dade dos documentos para poder julgar sobre a aceitação
ou a rejeição do seu conteúdo surgiu no início da Idade
Média, quando se organizaram verdadeiras coletâneas de
abreviaturas como, por exemplo, os “Comentari”, espécie
de dicionário que reuniu cerca de 5.000 Notas Tironianas,
atribuídas a Sêneca, sistema de abreviar as palavras, criado
para copiar mais rapidamente os discursos pronunciados
no Senado Romano.
Mais tarde, como consequência da Guerra dos Trinta
Anos (1618-1648), ocorrida entre protestantes e católicos na
Alemanha, castelos, terras e propriedades foram abandona-
dos, os arquivos desapareceram e, com eles, os documentos,
não tendo, dessa forma, os proprietários como comprovar
suas posses. Os juízes e os tribunais, então, assoberbados
com a quantidade de documentos falsificados, tomaram
a iniciativa de fazer um estudo minucioso dos mesmos.
Consolida-se, assim, a Paleografia como instrumento de
perícia forense, tornando-se ciência auxiliar da Justiça.
Estabeleceram-se, assim, os princípios da Paleografia à
qual cabe, dentre outras coisas, determinar o autor, o tempo
e o lugar em que um determinado documento foi escrito,
fornecendo ao perito os conhecimentos indispensáveis para
se distinguir os documentos verdadeiros e autênticos dos
falsos, deturpados, apócrifos, adulterados, etc.
A Paleografia foi introduzida como cátedra, primeira-
mente na Alemanha, nas escolas de Filosofia e Letras, nos
cursos de História, Filologia e Direito, tendo-se formado
um bom número de cultivadores da nova ciência, o que
ocorreu também na França, Itália e Alemanha. No Brasil,
no final do século XIX e início do XX, os estudos paleo-
gráficos desenvolveram-se inicialmente graças à iniciativa
particular de historiadores. Apenas em 1952, a Paleografia

52
foi introduzida na Universidade de São Paulo – USP, como
disciplina no curso de História.
A seguir, estão relacionadas algumas das finalidades
da Paleografia, segundo Román Blanco, citado por Dias e
Bivar (1986, p.16-17):
• Ensinar a ler corretamente e sem erros todo tipo de
documento, tanto antigo como moderno.
• Dar a conhecer a evolução da escrita através dos tem-
pos, das nações e dos indivíduos.
• Determinar o autor, o tempo e o lugar em que o do-
cumento foi escrito.
• Fornecer ao perito os conhecimentos indispensáveis
para saber distinguir os documentos verdadeiros e
autênticos dos falsos, deturpados, apócrifos, adulte-
rados, etc.
• Descrever as letras (forma, traçado, ângulo, módulo,
peso).
• Descrever os sinais braquigráficos (abreviaturas)
atribuindo-lhes significado exato e completo.
• Descrever os sinais estigmológicos (pontuação).

2.1. Comentários paleográficos dos manuscritos


Os documentos identificados aqui como Ms 1 e Ms 2 são
constituídos de 17 e 26 linhas, respectivamente, em pará-
grafos únicos. O escriba do Ms 1 possui mãos hábeis, ou
seja, é detentor de certo grau de instrução, pois a escrita,
em papel pautado, apresenta respeito às margens, homo-
geneidade e regularidade das letras quanto ao traçado ou
ductus – ordem de sucessão e sentido de seus traços, ângulo
– relação entre seus traços verticais e a pauta horizontal,
módulo – sua dimensão em relação à pauta, e peso – re-
lação entre seus traços finos e grossos (CAMBRAIA, 2005,
p.24). O Ms2, produzido em papel pautado, o que facilita
o traçado ou ductus das letras, apresenta respeito às mar-
gens, mas sinaliza ter sido produzido por amanuense ou
copista de mãos inábeis, ou seja, provavelmente possuidor
de baixo grau de instrução, pois as letras são irregulares
quanto à sua morfologia, traçado ou ductus, módulo, ân-

53
gulo e peso, além de mostrarem, em geral, um desenho de
formas ‘tremidas’.
Pode-se classificar a escrita dos dois manuscritos como
humanista, com tipo de letras cursivas, traçadas, no âmbito
da palavra, em sua maioria sem descanso das mãos, espe-
cialmente no Ms1, já que, no Ms2 predomina a separação
entre letras. Esse tipo de escrita, de acordo com Higou-
net (2003, p. 143-144), surgiu em manuscritos de 1423,
a partir da escrita carolíngea, por obra dos humanistas
italianos, sendo caracterizada como “suave, traçada com
penas pontudas, fortemente inclinada para a direita, com
todas as letras de uma mesma palavra unidas.” Observa-
se, nos documentos sob análise, que os escribas respeitam
a pauta, apresentam regularidade da escrita na inclinação
para a direita, em ambos estabelecendo as fronteiras entre
palavras, diferentemente do que se constata em manuscritos
produzidos até, aproximadamente, meados do século XIX.
Ms1 e Ms2 apresentam características ortográficas per-
tencentes ao que Gonçalves (2003, p. 40) chama de sistema
misto, que se constitui na convergência de vários princí-
pios “como a etimologia e a pronúncia, podendo verificar-
se versões mais ou menos fortes de etimologia, de grafias
históricas, de adopção de grafias fonéticas, ou de sujeição
ao uso” (sic).
Exemplos dessas características nos documentos sob
análise ocorrem em Cuyabá (Ms1-2)7, Moysés (Ms2-10), em
que a semivogal do ditongo está representada por y, podendo
ocorrer também como j. A duplicação de consoantes assim
como o uso de encontros consonantais, por influência do
período ortográfico etimológico ou pseudo-etimológico era a
tônica da grafia, como se pode verificar pelo uso de ct, cç,
pt, gn, ch, th, tt, ll, nn, mm, além, naturalmente, do ss e rr,
usual ainda hoje, como em: acto (Ms1-6), Secção (Ms1-3),
baptizei (Ms2-9), baptismos (Ms2-2), assigno (Ms2- 19),
Parochia (Ms2-3), Parocho (Ms2 - 26), theôr (Ms2-6), Mat-
to-Grosso (Ms1-1), e attribuições (Ms1-12), d’elle (Ms1-10),
nel-/le (Ms2-3 e 4)8, Illustrissimos (Ms1-4), lllustrissimos

7 Leia-se Ms2-2 como manuscrito 2, linha 2.


8 A barra diagonal (/) indica mudança de linha nas transcrições.

54
(Ms1-14), Excellencia (Ms1-5), anno (Ms1-10 e Ms2-11) e
com/munico (Ms1-5 e 6). Registra-se também a presença
de h como em comprehendidas (Ms1-12).
O uso de letras maiúsculas é outra característica dos
manuscritos sob análise aqui, como se pode verificar em
Maio (Ms1-2), Guarde (Ms1-13), Junho (Ms 2-11), Livro
(Ms2-1) e Presidente (Ms1-5 e 14). Observa-se, também,
a presença de ‘s’ caudado em desse (Ms 1-9) e comissario
(Ms1-9 e 12), além da indefinição quanto ao uso de ‘s’ ou ‘z’,
comum até final do século XVIII, como em puz (Ms2-9).
Registram-se no corpus abreviaturas por sigla, como em:
Sua (Ms1-5), Vossas (Ms1-6 e 13), ou por síncope com letras
sobrepostas, como em: Illustrissimos Senhores (Ms1-4),
Illustrissimos Senhores (Ms1-14), Excellencia (Ms1-5),
Senhor (Ms1-5), Senhorias (Ms1-6), Senhorias (Ms1-13),
Silva (Ms2-14) e Padre (Ms2-25).
A divisão silábica é assinalada com hífen simples, como
no Ms1, em: d’es-/ta (6 e 7) e In-/dalecio (7 e 8), e no Ms2,
em: assen-/tamentos (1 e 2), ingenu-/os (2 e 3), nel-/le
(3 e 4), seguin-/te (6 e 7), principi-/os (10 e 11) e pas-/
sado (11 e 12), e hífen duplo, como no Ms2, em: cons=/
tar (17 e 18). Em seguin-/te = Aos vinte nove... (Ms2-7),
aparece o hífen duplo, e em Ponce Martins – Nada mais...
(Ms2-20), o simples, nestas situações sinalizando, não se-
paração silábica, mas dois pontos, na primeira ocorrência,
e travessão ou ponto final, na segunda.
Com respeito à acentuação gráfica, os manuscritos
apresentam certas características como a acentuação de
monossílabo tônico, a exemplo de é (Ms2-6), das palavras
oxítonas, como se pode ver em Cuyabá (Ms1-2), José (Ms1-
17), Moysés (Ms2-10) e theôr (Ms2-6). Por outro lado, não
se acentuam as paroxítonas terminadas em ditongo, critério
estabelecido em acordos ortográficos posteriores, como em
Presidencia (Ms1-1), provincia (Ms1-5), honorario (Ms1-7),
comissario (Ms1-9 e 12), In-/dalecio (Ms1-7 e 8), muni-
cipio (Ms1-11), secretario (Ms1-16), ingenu-/os (Ms2-2 e
3), Parochia (Ms2-3), Eusebio (Ms2-12), Antonio (Ms2-15),
Antonia (Ms2-17) e vigario (Ms2-19), mas curiosamente
acentuando-se Oleôs (Ms2-9). Também as proparoxítonas
não são acentuadas, como em legitimo (Ms2-12), Cace-

55
res (Ms1-15 e Ms2-23) e Parocho (Ms2-23), curiosamente
acentuandos-se Oleôs (Ms1-2). Além do mais, a crase é
indicada pelo acento agudo e não pelo grave, como em á
folhas (Ms2-4) e á Moysés (Ms2-10), sendo que, a rigor,
nesta última ocorrência ela não caberia, pois trata-se de
nome próprio masculino, como mais tarde ficou estabelecido
em acordos ortográficos. Já em encõmendado (Ms2-26),
além da presença da consoante m como possível marca de
nasalização, há ainda o til (~) para indicá-la.
A propósito da pontuação empregada nos dois documen-
tos em estudo, vale dizer que pouco difere daquela usual
atualmente. Há registros, por exemplo, de uso da vírgula,
como hodiernamente, em: “De ordem de Sua Excellencia,
o Senhor Presidente da provincia, com/munico...” (Ms1-5
e 6), no caso de aposto, e também, de seu uso, corriquei-
ro até fins do século XVIII, como em: “...filho legitimo de
Eusebio/Garcia, e Henriqueta...” (Ms2- 12 e 13), antes da
conjunção aditiva ‘e’, utilizada aqui em sintagma, unindo
dois substantivos.
Observa-se, por fim, que o apóstrofo foi utilizado para
supressão de vogal antes de outra vogal, como em d’es-/
ta (Ms1-6 e 7) e d’elle (Ms1-10), o emprego da expressão
latina de verbo ad verbum (Ms2-5 e 6), até porque trata-se
de cópia de texto original redigido provavelmente por padre,
além de o Ms1 apresentar caracteres impressos, indicando
ser ocorrência já costumeira em repartições públicas.

Considerações finais
A Filologia, entendida como um dos campos de estudo
da linguística, tendo por objetivo o estudo da língua sob a
perspectiva histórica, no que é auxiliada pela Paleografia
e Diplomática, dentre outras, trabalha o texto, sem o que
ela não subsiste, restituindo-o à sua genuidade, enfim, à
última vontade de seu autor, preparando-o para o estudo
linguístico, histórico, antropológico etc.
Assim, descrever e compreender a língua portugue-
sa utilizada no Brasil em séculos anteriores, quanto aos
aspectos de natureza paleográfica, por exemplo, como se
procurou fazer aqui com as características ortográficas

56
dos documentos identificados com Ms1 e Ms2, é tarefa do
filólogo ou crítico textual.
Cáceres, local de produção dos documentos aqui
estudados, por estar situada na região de expansão da fron-
teira oeste do Brasil, na antiga província de Mato Grosso,
desmembrada da Capitania de São Paulo, desempenhou
estratégico papel, não apenas do ponto de vista político-
geográfico, pela proximidade com Vila Bela da Santíssima
Trindade, Cuiabá e a Bolívia, e por estar às margens do Rio
Paraguai, intensamente utilizado desde o século XVI pelos
bandeirantes paulistas, mas também por pertencer à área
de influência das monções, portanto de expansão da Língua
Portuguesa.
Estudos filológicos de documentos manuscritos pro-
duzidos no Brasil, a exemplo de Ms1 e Ms2, em especial
por pertencerem à área de abrangência do ‘dialeto caipira’,
visam a trazer alguma contribuição para a compreensão e
descrição do que se tem denominado ‘português paulista’,
língua trazida pelos bandeirantes para a fronteira oeste do
Brasil, alimentando as discussões do que ultimamente se
tem chamado de Português Brasileiro.

Referências
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil colônia. Recife:
Massangana/Fundação Joaquim Nabuco, 2003.
ANDRADE, Elias Alves de. Estudo paleográfico e codicológico
de manuscritos dos séculos XVIII e XIX: edições fac-similar
e semidiplomática. São Paulo: USP, 2007. Tese (Doutorado),
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, 2007.
AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Iniciação em crítica textual.
São Paulo: EDUSP, 1987.
CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. 1ª
edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CASTRO, Ivo. O retorno à filologia. In: PEREIRA, Cilene
da Cunha; PEREIRA, Paulo Roberto Dias. Miscelânia de
estudos lingüísticos, filológicos e literários in memoriam
Celso Cunha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p.
511- 520.

57
DIAS, Madalena Marques; BIVAR, Vanessa dos Santos
Bodstein. Paleografia para o período colonial. In: Paleografia
e fontes do período colonial brasileiro. Estudos CEDHAL
– Nova Série nº 11. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP,
2005, p.11-38.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas: manuscritos do
século XVI a XIX. 2ª edição. São Paulo: Editora UNESP; Edições
do Arquivo Público de São Paulo, 1991.
GONÇALVES, Maria Filomena. As idéias ortográficas em
Portugal e pronunciar com acerto a Língua Portuguesa – de
Madureira Feijó a Gonçalves Viana (1734 – 1911). Lisboa:
Edição Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência
e Tecnologia, MCES, 2003.
HIGOUNET, Charles. História concisa da escrita. São Paulo:
Parábola Editorial, 2003.
MELO, Gladstone Chaves de. Iniciação à filologia e à língua
portuguesa. 4ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica,
1971.
SAMARA, Eni de Mesquita. Fontes coloniais. In: Paleografia e
fontes do período colonial brasileiro. Estudos CEDHAL–Nova
Série nº 11. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 2005 p.39-85.
DIAS, Madalena M.; BIVAR, Vanessa dos S. B. Paleografia e fontes
do período colonial brasileiro. Estudos CEDHAL-Nova Série, nº
11, São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 1986, p. 11-37.
SANTIAGO-ALMEIDA, Manoel Mourivaldo. Aspectos fonológicos
do português falado na baixada cuiabana: traços de língua
antiga preservados no Brasil (Manuscritos da época das
Bandeiras, século XVIII). São Paulo: USP, 2000. Tese (Doutorado),
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, 2000.
SPAGGIARI, Bárbara e PERUGI, Maurizio. Fundamentos da
Critica Textual. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
SPINA, Segismundo. Introdução à Edótica (crítica textual). 2ª
edição. São Paulo: Ars Poética/EDUSP, 1994.
TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. 7ª Edição.
Lisboa: Sá da Costa, 1997.

Recebido em 07/04/2009
Aceito em 03/06/2009

58
O OUTRO EM NARRATIVAS DE
APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS
ESTRANGEIRAS
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva 1

Iran Felipe Alvarenga e Gomes 2

Resumo: Este texto faz uma revisão do papel do outro em


algumas teorias de aquisição de segunda língua e mostra
que, em um grupo de teorias, o outro é visto como um mero
provedor de input e, em outro como um parceiro essencial
no processo de aquisição, principalmente na teoria socio-
cultural. Argumentamos que a teoria sociocultural supe-
restima o papel do outro e ignora que professores e colegas
podem funcionar como obstáculos para os aprendizes de
língua. Para defender nossos argumentos, apresentamos
excertos de narrativas de aprendizagem de inglês escritas
por aprendizes japoneses, chineses, finlandeses e brasilei-
ros. A análise dos dados nos permite concluir que, embora
a colaboração do colega seja bem vinda, alguns se recusam
a colaborar e aprendizes menos proficientes sentem-se ini-
bidos pelos colegas mais proficientes.
Palavras-Chave: aquisição de segunda língua, o outro, nar-
rativas de aprendizagem de línguas
The other in foreign language learning
narratives
Abstract: This text reviews the role of the other in some of
the second language acquisition theories and points out
that, in a group of theories, the other is seen as a mere input
provider and in another group the other is considered as
an essential partner in the acquisition process, mainly in
the social-cultural theory. We argue that the social-cultural
theory overestimates the role of the other and ignores that
teachers and classmates can also pose obstacles for the
language learners. In order to defend our arguments we

1 Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva é professora titular na UFMG. Este trabalho contou com apoio
do CNPq e da FAPEMIG.
2 Iran Felipe Alvarenga e Gomes é aluno da UFMG e trabalhou na pesquisa que deu origem a este texto
como bolsista de iniciação científica da FAPEMIG.

POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P. 59-80 2009 issn 0104-687x


present excerpts from English language learning narratives
written by Japanese, Chinese, Finn and Brazilian learners.
The data analysis allows us to conclude that, although
partner collaboration is welcome, some classmates avoid
collaborating and less proficient learners feel inhibited by
the more proficient classmates.
Keywords: second language acquisition, the other, language
learning narratives

Introdução
Neste texto, reunimos algumas considerações teóricas
da primeira autora sobre o papel do outro nas teorias de
aquisição e os resultados da investigação de iniciação cien-
tífica do segundo autor sobre a participação do outro nas
histórias de aprendizagem de língua inglesa em narrativas
de aprendizagem de brasileiros, finlandeses, japoneses.
Esses resultados foram revisados pela primeira autora
que também acrescentou à análise dados de alunos chineses
coletados por Alice Chick3 em Hong Kong.
Os estudos sobre aquisição de segunda língua têm fa-
vorecido, como alerta Block (2003, p. 4), “uma concepção
cognitiva do fenômeno em oposição à social e a aquisição
tem sido vista como uma realização individual em oposição
à social”. De fato, a maioria dos estudos foca os processos
de aprendizagem individual ou os resultados obtidos pelos
aprendizes na ação de aprender uma língua sem levar em
conta a participação de outros atores nesse processo. Mes-
mo assim, o outro tem sempre um papel no processo de
aquisição, mesmo que não seja explicitado pelas teorias. Na
próxima seção, faremos uma breve incursão por algumas
teorias que tentaram explicar como uma segunda língua
(SL) é adquirida, procurando identificar o papel do outro.

1. O outro nas principais teorias de aquisição


Existe um grupo de teorias em que o papel do outro fica
restrito ao fornecimento de input. Dentre essas teorias des-

3 O corpus coletado por Alice Chic, a quem agradecemos a autorização de uso dos dados, está disponível
na Internet no link http://en2707home.wetpaint.com/page/Our+English+learning+histories.

60
tacamos o behaviorismo, a hipótese do input, o conexionis-
mo e, com menos ênfase, o modelo da gramática universal.
Outro grupo, onde incluimos a teoria da aculturação, as
hipóteses do input e do output, e a teoria sociocultural,
reconhece o papel do outro como parte constitutiva no
processo de aquisição.

1.1. O outro como mero fornecedor de input


Na teoria behaviorista, a aprendizagem de uma língua
(entendida como um conjunto de estruturas básicas) é um
comportamento verbal observável em forma de criação de
hábitos automáticos. Skinner (1992) define comportamento
verbal como “um comportamento reforçado pela mediação
de outra pessoa” (p.14). Sua tese central diz que “[E]m todo
comportamento verbal há três eventos importantes a serem
considerados: um estímulo, uma resposta e um reforço”
(p.81). Assim, uma criança adquire comportamento verbal
quando suas vocalizações surtem efeitos em uma dada
comunidade verbal e recebem reforço de outros partici-
pantes daquela comunidade. Na aprendizagem de línguas
estrangeiras, o outro, centrado na figura do professor, é o
modelo a ser imitado e o provedor de estímulos e de reforço.
O colega é um parceiro eventual nas atividades de repeti-
ção, sem foco comunicacional. Não haveria mesmo muito
espaço para o colega no processo de aquisição de uma SL,
tendo em vista que os modelos a serem oferecidos deveriam
conter amostras da língua padrão sem erros ou variações
linguísticas não prestigiadas.
Outra teoria, que apesar de muito contestada, ainda
permanece nas discussões sobre aquisição, é a modelo
monitor de Krashen (1978), também conhecida como hi-
pótese do input (KRASHEN, 1985) e mais recentemente
como hipótese da compreensão (KRASHEN, 2004). O outro
na teoria krashiana é um mero fornecedor de input, já que
sua hipótese é a de que a aquisição acontece quando há
compreensão de input. Krashen ignora o papel da interação
e nenhuma menção é feita a outros falantes ou aprendizes,
nem mesmo quando discorre sobre a hipótese do filtro afe-
tivo (KRASHEN,1985, p. 3) que define como “um bloqueio
mental que impede os aprendizes de utilizarem plenamente

61
o input compreensível que recebem para a aquisição de
língua”. Para Krashen, aprendizes pouco motivados, inse-
guros, ansiosos, e com baixa auto-estima teriam um filtro
afetivo alto, o que impediria o processamento do input. No
entanto, o autor não discute a provável influência do outro
nos filtros afetivos altos. Não seria o outro a causa da in-
segurança, da ansiedade e da baixa alta-estima?
O conexionismo também aposta suas fichas no input.
Nessa teoria, a mente é vista por uma perspectiva compu-
tacional, pois o processamento cognitivo é comparado ao
processamento de um computador onde os dados ou o input
entram na mente onde são processados e geram o produto
ou output. A aquisição é entendida como resultado de “um
processo de regularização de insumo e estabelecimento
de padrões de base estatístico-probabilística” (FERREIRA,
2007, p. 229). O papel do outro seria apenas o de prover
input nas experiências linguísticas. Tanto é assim que a
pesquisa investe em testes com computadores, onde neu-
rônios artificiais são alimentados com input semelhante ao
recebido pelo ser humano e suas respostas, ou output, e
são comparados com o comportamento humano.
Apesar de parecer razoável que o outro tenha pelo menos
o papel de fornecer input, o modelo da gramática universal
(GU) minimiza esse papel e defende que o input recebido do
ambiente não é suficiente para explicar a aquisição de uma
língua materna ou estrangeira e aposta todas as suas fichas
nas capacidades inatas dos aprendizes. Os que defendem
essa teoria postulam que o input que os aprendizes recebem
seria insuficiente para explicar a aquisição de conhecimento
linguístico tão complexo. “Esse argumento da pobreza de
estímulos, como é frequentemente chamado, conduz inevita-
velmente à postulação da existência de estruturas mentais
inatas que agem sobre o input linguístico para produzir
uma gramática mental” (GREGG, 1996, p. 52).

1.2. O outro como parte constitutiva do processo de aquisição


Uma teoria que dá destaque ao outro é a teoria da acul-
turação de Schumann (1978). Schumann vê a aquisição
como resultado de aculturação. Para ele, os aprendizes
podem ser inseridos em um continuum tendo em um ex-

62
tremo a proximidade social e psicológica dos falantes da
língua alvo e, no outro, a distância social. As condições
ideais para aquisição são as que se inserem no extremo da
proximidade, aquelas que contribuem para que o aprendiz
esteja socialmente integrado ao grupo da SL. Essa integra-
ção proporciona contato suficiente com o outro, facilitando
a aprendizagem. Além disso, a proximidade é um indicador
de que o aprendiz vê os falantes da língua alvo como um
grupo de referência e, consciente ou inconscientemente,
adota seus valores e estilo de vida. Assim o contato social
e o psicológico com o(s) outro(s), com grupo da língua alvo
seria a condição essencial para a aquisição.
Hatch (1978, p. 404) considera que “se aprende primeiro
a conversar, a interagir verbalmente, e nessas interações
são desenvolvidas as estruturas sintáticas”. O outro, nessa
perspectiva, funciona como um professor informal. Hatch
e Long (1980, p.1) ressaltam que o discurso é importante
se queremos entender a aprendizagem de língua. Hatch
(1983), citada por Ellis (1990, p.134 e 136) explica que a
fala do falante estrangeiro tem funções semelhantes à fala
das mães, pois promove a comunicação, estabelece laços
afetivos com o falante nativo e serve como ensino implícito.
Em contexto de língua estrangeira, podemos hipotetizar que
a interação com falantes mais proficientes pode ter a mesma
função. A hipótese interacionista não se propõe a ser uma
teoria completa, como alertam van Patten e Williams (2007,
p.175), mas é uma das principais postulações teóricas que
valoriza o papel do outro.
Swain (2000) reafirma sua hipótese (SWAIN, 1985) de
que “o output impulsiona o processo da aprendizagem de
língua com mais profundidade – com mais esforço mental –
do que o input”. O pressuposto é o de que nós adquirimos
a língua quando tentamos nos comunicar e não somos bem
sucedidos, pois ao fazermos as correções e ajustes necessá-
rios para que nosso parceiro nos entenda, adquirimos novas
formas linguísticas. É com o outro que testamos nossas
hipóteses e é em função do outro que ajustamos nossas
mensagens. O papel do outro é então nos ajudar a calibrar
nossas mensagens, sinalizando o não entendimento ou nos
ajudando a fazer os ajustes.

63
Para Gass e Mackey (2007, p.176) não se separam input,
interação e output e a hipótese interacionista “é um modelo
no sentido de descrever os processos envolvidos quando os
aprendizes encontram input, são envolvidos na interação
e recebem feedback e produzem output”. O outro estaria
então presente como fornecedor de input, como parceiro na
interação, como provedor de feedback e como destinatário
do output.
Mas é na teoria vygotskiana que o status do outro é
verdadeiramente reconhecido e valorizado como veremos
na próxima subseção.

1.3 O outro na teoria Vygotskiana


A apropriação do pensamento de Vygotsky pelos pes-
quisadores na área de línguas estrangeiras conferiu desta-
que especial ao papel do outro devido ao conceito de “zona
proximal de desenvolvimento” (ZPD) que Vygotsky define
como “a distância entre o nível de desenvolvimento real,
determinado pela solução independente de um problema,
e o nível potencial de desenvolvimento determinado pela
solução de um problema sob a orientação de um adulto ou
de pares mais capazes”4 (VYGOTSKY, 1978, p. 86).
Consideramos que a tradução mais adequada para “zone
of proximal development” seria “zona próxima ao desenvolvi-
mento”, tendo em vista que o conceito se refere a um estágio
no desenvolvimento da criança em que ela está prestes a
atingir mais uma etapa no seu desenvolvimento, ao executar
uma atividade que não conseguiria realizar sozinha, mas o
faz com a ajuda de alguém. O pressuposto é o de que se a
criança consegue fazer algo com a colaboração de outrem,
ela será capaz de fazer o mesmo sozinha depois.
A proposta de Vygotsky surgiu de sua insatisfação com
os testes de inteligência que avaliavam apenas a capaci-
dade de uma criança resolver um problema sozinha, pois
segundo ele “...desse modo, só é possível medir a etapa já
concluída do desenvolvimento da criança, o que está longe
de representar a totalidade do processo” (VYGOTSKY, 1987,
p. 88). Para ele, é importante avaliar também o potencial de

4 Tradução da primeira autora da versão em inglês da definição.

64
aprendizagem. “Com o auxílio de outra pessoa, toda criança
pode fazer mais do que faria sozinha – ainda que restrita
aos limites estabelecidos pelo grau de seu desenvolvimento”
(VYGOTSKY, 1987, p. 89). Em um dos estudos realizados
com crianças de oito anos, Vygotsky verificou que “uma
das crianças podia, em cooperação, resolver problemas
elaborados para uma criança de doze anos, ao passo que
outra não conseguia ir além dos problemas concebidos para
crianças de nove anos” (VYGOTSKY, 1987, p. 88-89). Esse
resultado o levou a inferir que a ZPD era de quatro anos
para uma criança e de um ano para outra.
Apesar de os estudos vygotskianos se referirem apenas
a crianças, suas idéias foram transplantadas tanto para a
aprendizagem de línguas por adultos como para a forma-
ção de professores. Muitos estudos foram desenvolvidos
no Brasil e no exterior como, por exemplo, o de Figueiredo
(2005) sobre a aprendizagem colaborativa de escrita em
inglês e o de Schettini et al (2009) que reúne vários traba-
lhos sobre formação de professores. No exterior, dois bons
exemplos são as coletâneas de Lantolf e Appel (1994) e
Lantolf (2000).
A aprendizagem de qualquer língua é tipicamente um
tipo de aprendizagem que só se faz com a participação de
outras pessoas, mas, curiosamente, a maioria das teorias
de aquisição não dá destaque de forma explícita ao papel
do outro. A única a jogar o foco no papel do outro é a teo-
ria sociocultural, mas chama a atenção o fato de a teoria
mostrar apenas o lado bom da interação e ignorar como
o outro pode representar, também, uma barreira para a
aprendizagem de seu parceiro. O outro pode representar
ameaça à face do aprendiz, pode lhe causar intimidação,
constrangimento e medo.

2. O outro nas narrativas de aprendizagem do


projeto AMFALE
O projeto AMFALE é um banco de narrativas de apren-
dizagem de línguas estrangeiras (inglês, francês, alemão,
italiano, português) hospedado no site da primeira autora
(http://www.veramenezes.com/amfale.htm). O banco recebe

65
contribuições de pesquisadores brasileiros e internacionais.
No momento, a grande maioria das narrativas é de aprendizes
de língua inglesa brasileiros, finlandeses, japoneses e chine-
ses da cidade de Hong Kong. Para este artigo, selecionamos
uma amostra de 80 narrativas de aprendizes de língua in-
glesa, divididas em 4 grupos de 20 narrativas coletadas em
4 países: Finlândia, Japão, China e Brasil.
As narrativas finlandesas foram coletadas pelo grupo
ALMS5 (Autonomous Language Learning Modules) no Cen-
tro de Línguas da Universidade de Helsinki na Finlândia.
As narrativas chinesas foram coletadas por Alice Chik, na
Universidade da Cidade de Hong Kong, e as japonesas foram
coletadas por Tim Murphey na Universidade de Dokkyo. As
narrativas brasileiras foram coletadas pela primeira autora
na Faculdade de Letras da UFMG.
A seguir apresentaremos como os aprendizes represen-
tam o outro em suas histórias de aprendizagem. O outro
aparece no papel de professor, parente, famílias estrangei-
ras, amigos, colegas e artistas.

2.1. O professor
O outro mais frequente nas narrativas dos quatro países
é o professor de inglês. Ele aparece ora no papel de grande
incentivador da aprendizagem de seus alunos e ora como
vilão, recebendo críticas severas, principalmente nas nar-
rativas brasileiras e finlandesas, pois os alunos asiáticos
fazem mais elogios e raramente criticam seus ex-professo-
res. A figura do professor estrangeiro é também bastante
prestigiada nas narrativas asiáticas. Alguns narradores
retratam o professor como o responsável pela motivação
inicial e como fonte de inspiração e modelo a ser seguido.
No entanto, em muitas narrativas, o professor é demoni-
zado e acusado de ser o responsável pelos fracassos, pela
queda da motivação e pelas frustrações e medos. O excerto
(1), de uma narrativa finlandesa, descreve bem esses dois
tipos de sentimentos:

5 O grupo ALMS oferece ao aluno um ambiente de aprendizagem onde eles podem se tornar mais indepen-
dentes, estudando sozinhos, em pares ou em grupos, com maior ou menor suporte do professor.

66
(1) Some teachers made language learning real fun6 and
some made it felt like court of justice :)
Na grande maioria das narrativas japonesas e chinesas,
essa influência é registrada de forma positiva. Os alunos
contam sobre professores que falam das culturas dos países
de língua inglesa e incentivam seus alunos a ouvir música
em inglês no radio. O professor é também citado pela gran-
de maioria dos narradores brasileiros de forma elogiosa e
alguns chegam a demonstrar deslumbramento com seus
professores. Um tipo de professor elogiado é o que estimula
os alunos com aulas dinâmicas, utilizando músicas, filmes
e jogos e não fica aprisionado ao material didático adotado
em sua escola.
Exemplos de representação positiva dos professores nos
quatro países podem ser vistos nos excertos de 2 a 5.
(2) Then, my English teacher, the most significant per-
son7 in my English learning history helps me to start
my English learning journey. (Hong Kong)

(3) I started studying English at a private school, and


I dreamed to be like my teacher because she told me
many interesting stories which she had experienced in
foreign countries. (Japão)

(4) My teacher was sweet, made the language feel inte-


resting and didn’t put too much pressure for learning.
We played games and watched videos in addition to
real studying. There was hardly any oral rehearsal.
(Finlândia)

(5) When I was about 16 years old, I had my first English


teacher. When I heard her English, I found it was so
interesting that I decided to study the language. I was
fascinated by the pronunciation. (Brasil)
Nas narrativas finlandesas, apesar de alguns comen-
tários positivos, predominam as críticas aos professores
que são retratados pela maioria dos 20 aprendizes como

6 Todos os excertos foram mantidos em sua forma original e não sofreram nenhuma edição de forma ou
conteúdo.
7 Grifo da narradora.

67
pessoas sarcásticas, irônicas, cansativas e amedrontadoras.
Eles intimidam os alunos e estes sentem medo e humi-
lhação. Finlandeses e brasileiros questionam, também, a
forma tradicional das aulas centradas no professor e onde
raramente se fala inglês. Esse tipo de experiência também
aparece em narrativas coletadas no Japão e na China, mas
em proporção muito menor.
Em algumas narrativas, a crítica é mais severa, como
as dos excertos 6 a 9, onde os narradores demonstram sen-
timentos bastante negativos em relação ao professor:
(6) I had a very scary teacher in the middle school and
she made everybody hate English. All the lessons went
thinking of when is my turn to read out loud and will I
make mistakes! So, nobody learned anything because
they couldn’t concentrate in learning. (Finlândia)
(7) I disliked having English lessons at first, as those
teachers were all evils and pushed me so hard. Every
single week, we were forced to recite a long list of prin-
cipal parts and parts of speech. I cried over and over
when I failed in dictations or simply forgot to bring my
textbooks. As a result, English was the worst subject in
my mind in early stage… (China)
(8) In high school, teachers do a lot for entrance exams
and ignored the lower students even when they asked for
help.  We had to memorize a great deal in a short time so I
couldn’t get good scores in the tests.  No matter how much I
wanted to know more about something, most of them said,
“it’s useless to know more. You have only to remember. If
you care such things, you won’t improve your marks!”
So, now in university, I’m happy that most of the tea-
chers don’t reject my questions nor requests nor opi-
nions. (Japão)

(9) But today I see that I had a lot of teachers that makes
the classes very boring. Some teachers were in the cen-
ter of the process all the time and they didn’t give the
students the opportunity to show what they want to
learn. (Brasil)

68
Narradores finlandeses, chineses e brasileiros parecem
lidar mal com feedback negativo do professor, como pode-
mos ver nos excertos de 10 a 12. Já os narradores japoneses
não fazem alusão a feedback ou correção.
(10) I remember when we had to keep some kind of pre-
sentation. I was talking about the movie Moulin Rouge.
The feedback I got was terrible because it didn´t coincide
the feeling I had myself from it. The teacher said that I
should relax more and not to be afraid to talk in front
of the classroom and even my talking isn´t that good, I
should practise without the paper. I was so hurt because
I hated beeing the center of attention and talk and I felt
that my performance went well and I didn’t even read
all the time from the paper. I felt that the teacher didn´t
encourage me at all even if she knew that I didn’t like
performing alone. (Finlândia)
(11) The turning point of my history of learning English
was my teacher called Ingrid. In fact, she was so harsh
to us. She always tried to push us to limit. I had lots of
homework everyday, including memorizing vocabulary
items and memorizing dull English grammar rules.She
said: ‘I only consider 80% as your passing rate. Otherwise
you have to redo your quizzes or homework.’ I felt stressed
and nervous when I was having her lessons. Therefore,
I was serious in the preparation of all English lessons.
My classmates shared experience of our tight schedule
of English lessons. I often felt frustrated when seeing my
marks was 60-70%.Then my teacher would say:”Try to get
80%.You can do this.” In fact, this sentence was so normal
that everyone would not take it serioursly. (China)
(12) when I came back from Scotland I was at a mini
English class at a camping vacation and when the te-
acher asked who knew how to say the color black in
English and I answered with my Scottish accent black,
everybody laugh at me and even the teacher corrected
me! I was so embarrassed and didn’t understand why
everyone thought I was wrong. That wasn’t very good
for someone that was already shy, so I felt intimidated
to speak in English. (Brasil)

69
Essas e outras reflexões sobre a correção na frente dos
colegas demonstram que os aprendizes se sentem bastante
desconfortáveis quando seus erros são expostos publica-
mente.

2.2. Parentes
Parentes também são mencionados como peças impor-
tantes nas condições iniciais de aprendizagem de inglês para
muitos narradores. Um narrador finlandês explica que foi
impulsionado a aprender inglês por causa de um primo que
morava nos Estados Unidos e não sabia falar finlandês:
(14) I have cousins in Colorado, US, who don’t speak
finnish, which has motivated me to learn english in the
first hand. (Finlândia)
Avós, pais, com predominância das mães, primos e
irmãos são agentes motivadores de muitos de nossos nar-
radores. As mães matriculam os filhos em cursos de inglês
e incentivam os aprendizes a terem contato com a língua.
Muitas vezes os parentes funcionam como professores in-
formais e conversam em inglês com os aprendizes.
(15) My history of English learning started when I was in
elementary school. My mother thought that English was
necessary for me and I went to an English conversation
class for children. It was not like study. It was almost
a game. I do not remember exactly what I learned then,
but I am sure that it awakened my interest in learning
English. (Japão)
(16) My sister, who is four years older than I, taught me
how to study it. First, she pronounced the word and I
repeated after her. Then I tried to write words. It worked
and I became interested in English. My sister was a big
influence. (Japão)

(17) For as long as I can remember, I was surrounded


by English. I used to sit on my father’s lap watching
English movies and soaps. (China)
(18) My learning history started when I was about 6 years
old and my mother started to expose me to songs by the

70
Beatles, Queen and other American and British bands.
At this point, my objective was to know how to “sing” the
songs, not produce meaning from the words. (Brasil)

2.3. Amigos e colegas


Amigos e colegas de sala de aula aparecem frequente-
mente nos relatos tanto de forma positiva quanto negativa.
Alguns aprendizes reconhecem a importância de seus co-
legas para o desenvolvimento do idioma, como comprova o
excerto (19), outros praticam o idioma com correspondentes
estrangeiros, como exemplificado em (20).
(19) … the class had few students and all of us got along
very well, so we talked a lot. That year was when I really
learned to communicate in English. (Brasil)
(20) I like writing, thanks to my long-time pen pal. Since
I was in secondary two, I already started exchanging long
e-mails in English with my friend on a weekly basis which,
when I look back now, I believe was the foundation and
threshold of my life-long English-learning. (China)
Os amigos estrangeiros funcionam como modelos ou
professores indiretos e auxiliam no aprimoramento da ex-
pressão oral. Quanto aos colegas de sala de aula, eles nem
sempre atuam de forma positiva. Alunos mais “competen-
tes” acabam inibindo os “iniciantes” e são muitos os relatos
semelhantes aos que podemos ler em (21):
(21) New school life in the university. But as I attended
classes, I was getting depressed because I felt a strong
sense of inferiority. Everyone seemed to speak English
like a native English speaker. (Japão)
O estudante desse ultimo relato, em outro ponto da nar-
rativa, admite que a experiência em conviver com colegas
com mais proficiência em inglês do que ele não era algo
tão negativo.
Com a grande influência da teoria sociocultural e a opção
por abordagens mais comunicativas, é comum o uso de ati-
vidades em pares nas aulas de línguas estrangeiras. Relatos
positivos em relação ao trabalho em par são encontrados
em (22) e em (23). Em (22), apesar de o aprendiz reconhe-
cer que os outros o ajudavam a aprender, ele reclama dos
71
parceiros que sabem menos ou que não se preparam bem
para as aulas.
(22) I think changing a partner every week was espe-
cially helpful. I was able to learn much vocabulary from
many partners. Above all, it was fun to talk with many
partners. I enjoyed talking with them. It helped me to
learn English. (…)
The bad partners I regarded were those who did not
prepare for the classes. They did not have their opinions
and spent precious time on thinking. I did not like those
partners. I avoided them. (Japão)
(23) I learned English fast because it was fun to speak
with new friends. (Brasil)
Narradores dos quatro países demonstram que o outro
também pode ser um fator de constrangimento. O fato de
colegas terem desempenho superior ao do narrador é um
dos fatores que, geralmente, deixa os aprendizes inibidos
e com medo de se expressarem em inglês na sala de aula.
Experiências semelhantes às narradas em (24) e (25) são en-
contradas nos quatro países dos corpura que analisamos.
(24) At first, I was surprised that my classmates spoke
English very well. My speaking ability and theirs were
quite different. I didn’t try to speak actively. Because I was
ashamed of talking with them in English. I thought they
might look down on me. So I often explained in Japanese
what I couldn’t express in English. But we learned that
mistakes are good. I believed these words. (Japão)
(25) Very few occations I can remenber talking in the
classroom IN ENGLISH. Too bad I think because I didn´t
get the confidence to talk. I have got it outside the school,
talking with the foreigners. (Finlândia)
O desconforto aumenta quando os colegas não são soli-
dários e o medo é acrescido à vergonha e ao sentimento de
inferioridade, como vemos nas experiências representadas
em (26) e (27).
(26) According to my memory, I was laughed at by some
of my naughty classmates when I misread “kitchen”

72
and “chicken”. A trivial hiccup though it was, I did kept
remembering for quite a long time. As a result, I con-
sidered speaking English was a frightening activity.
(China)
(27) I was very happy when the classes started, but
sadly, it was a disappointment. Most of my classmates
already studied the language at private courses, so they
could answer the teacher’s questions very well and very
quickly too. The teacher followed their pace. To make
things worse, the students who knew more were very
cruel to those who made pronunciation mistakes or that
asked ‘stupid’ questions, because of this, I would never
interrupt the class to solve doubts. (Brasil)

2.4. O contato com estrangeiros


Uma experiência que é muito valorizada é o contato com
falantes nativos. Nos excertos (28) e (29), alunos japoneses
avaliam de forma bastante positiva a oportunidade de con-
viver com colegas estrangeiros.
(28) One of the best memories in my history was when
an exchange student came from New Zealand when I
was in the eleventh grade. He studied in my class for
a year. I was just so curious that I wanted to talk with
him very much. “What in the world does he think? What
is his country like? Why did he come to Japan?....He
came from a totally different part of the universe...That
is great!” (Japão)
(29) My high school furthered international exchange
and I belonged to an English course. I had chances to
talk to students who came from abroad to study and a
native speaker (ALT) from Canada and it was one of the
most wonderful experiences for me. (Japão)
Os falantes nativos servem de modelo e representam opor-
tunidades de prática imitativa como narrado em (30) e (31).
(30) Also, I was alerted when someone nearby were talk-
ing in English, especially the foreigners. I would like to
imitate their tone, speed and accent. I wanted to become
native in using English. (China)

73
(31) In order to discover and learn more, I did not only
watch more comedies and listen to the radio; I was also
waiting and looking for the opportunities to be got along
with the foreigners. (China)
Outras oportunidades de contato com estrangeiros e,
consequentemente, de uso da língua são as experiências
no trabalho e em viagens ao exterior onde os aprendizes
interagem com pessoas de várias nacionalidades com me-
diação da língua inglesa. No excerto (32), temos um exemplo
do mundo do trabalho na Finlândia e, em (33), (34), (35),
os narradores falam de suas viagens e da interação com
estrangeiros.
(32) I am very eager to speak English every time I have an
opportunity to do so. In my job in the Old Market Hall I
meet a lot of tourists from all over the world. Naturally,
most of them speak English. That is why I also hear
lots of different accents when having conversations with
people for instance from Ireland, Canada and Australia.
What I think is the most delighting is the famous British
politeness. (Finlândia)
(33) I went to Disney Land and Universal Studios! I
made many friends with people from several countries,
France, Mexico, China and also America. I stayed with
an American family. There was a mother and a baby.
Her husband was in the navy and he stayed in Cuba so
I could not see him. The host mother was 19 years old
and senior to me by only two years! We talked about a
lot of things every day and she taught me a little Spanish
that she learned in HS. My English improved every day
thanks to her. That is my great experience. (Japão)
(34) I had a trip to the United States last summer. Peo-
ple there were quite nice, but sometimes, I just couldn’t
catch up with their speed of speaking. Besides, I realized
that a lot of words and phrases they use in daily life were
totally different from what I learnt during my English
lessons. There were lots of slangs which I had never
heard of! I was quite shocked and lost my confidence
in speaking and listening to English. It seems that the

74
trip to the States was not a very good experience to me,
yet, it was. The trip reminded me that learning English
should be on-going. The English I’ve learnt from books,
songs’ lyrics or TV programmes was simply not enough
for me to use in the real world. I now understand that
practical English communication skills are really more
important than learning just vocabulary. (China)
(35) London was also a great experience for life, besides
being where I actually became proficient in English. I was
so much involved with English that I was hard to speak
Portuguese to my parents over the phone (of course after
a few minutes it was OK). There, I also learned a lot about
the European culture in general, since I had not only
British friends, but Polish, Italian, Spanish, and Russian
friends as well. I am what I am today because of what I
went through there with these friends. (Brasil)

2.5. Cantores e bandas


Manifestações culturais também foram encontradas
como forte influência na aprendizagem. O outro está in-
diretamente representado nos textos, filmes e canções.
As canções têm um papel fundamental na aprendizagem,
pois, além dos textos das letras, o aprendiz tem o input na
voz dos cantores e, muitas vezes de seus vídeos, o que se
caracteriza como um input rico. Muitos narradores, como
em (36), gostam de música e isso os ajuda a colocar a lín-
gua em uso.
(36) It started with pure boredom when I began to
madly go after American dramas, movies and shows,
but it ended up having a profound impact on me and
my English; not to mention my long-time passion for
foreign music. All these essentially contributed to my
early exposure to this lingua franca. These are, in my
opinion, some of the most interesting and effective ways
to learn English. (China)
Alunos interessados em bandas e cantores de língua
inglesa relatam terem ficado motivados a estudar inglês
pelo simples interesse em cantar junto com as bandas e

75
cantores. Inúmeros narradores citam as canções como fon-
te de aprendizagem, pois imitam a pronúncia e aprendem
novas palavras.
(37) I also learned a lot of English through songs from
American and British bands. I listened to a lot of those
and I never liked Brasilian music. My favorite kind of
music was rock whose lyrics usually have a lot of slang
and I think this helped me a lot in my ability to speak
and understand informal English. I always liked to lis-
ten to the songs and read the lyrics because I couldn’t
understand them just by listening. One of my favorite
bands when I was a teenager was Nirvana. As most of
the kids my age, I knew all the songs from the album
Nervermind.  Although there was a lot of language input
on these songs I soon understood that they were not
reliable for learning since they were informal English.
An example is the song Jesus don’t want me for a sun-
beam. (Brasil)
(38) I need english almost every day. All the textbooks
and articles I read are written in english. Like TV. I’ve
watched movies and series in english as long as I can
remember. Music has brought me something too: I like
to sing in English. (Finlândia)
(39) “And Aubrey was her name, I never knew her, but I
loved her just the same, I loved her name…” (MetroLyrics.
com, 2008), is an excerpt from Aubrey, my father’s favou-
rite song, originally performed by the Bread. Since I was
born, I was given this lovely name and was very much
inspired by the song’s lyrics. This song was beautifully
written in English. It enabled me to appreciate the lan-
guage and as well my father’s love for me. This became
a steppingstone of mine that underlaid my enthusiasm
towards learning English. (China)
(40) After I entered Junior High School, I became inter-
ested in the Beatles. I listened to their songs all the time,
and I sang along with them. I did not know the meanings
of the lyrics though. It helped me to pronounce the words
correctly, to learn phrases, and to acquire the ability to
listen. I think, if I did not like the Beatles, I would not

76
have learned English as fast. Songs are good to help
us learn foreign languages faster. Because songs are
repetitive, rhythmical, and fun. I often listen to music
now, too. (Japan)

Conclusão
Nas narrativas brasileiras, observamos que, em geral, a
influência do outro é registrada como algo positivo. O outro
desperta o interesse pelo estudo do inglês, auxilia no pro-
cesso de aprendizagem e na formação cultural do estudante.
Mas existem casos onde o outro funciona negativamente,
fazendo com que os narradores se intimidem. Alguns de-
sistiram de aprender, mas outros superaram as influências
negativas e partiram para um estudo autônomo. O par mais
competente ainda é relatado como um auxiliar no processo
de aprendizagem e funciona de forma positiva para ambos,
para o que ensina e para o que aprende.
Fazendo uma breve comparação entre as narrativas
finlandesas, japonesas, chinesas e brasileiras detectamos
algumas diferenças interessantes. Enquanto a grande
maioria das narrativas brasileiras e asiáticas aponta para
a influência positiva do professor, a maioria das narrativas
finlandesas relata experiências negativas com relação aos
mestres.
A participação de colegas de classe aparece com mais
frequência nas narrativas japonesas, na maior parte, de for-
ma negativa, pois o estudante se depara com falantes mais
fluentes na língua e se sente constrangido, envergonhado
e com medo de cometer erros. O medo de errar foi mais
encontrado nas narrativas japonesas. Não encontramos
nenhum relato com relação a isso nas narrativas finlandesas
e poucos em narrativas brasileiras.
Na presença de falantes “mais competentes” estudantes
se sentem embaraçados e acabam se fechando para a con-
versação. Além disso, o outro “mais competente” sente-se
prejudicado com o seu parceiro “menos competente”, alguns
alunos sentiram-se prejudicados em ter que ajudar colegas
menos “competentes”, relatando que poderiam aprender
muito mais com outros colegas com o mesmo nível de co-

77
nhecimento. No entanto, a análise dessas narrativas indica
que o trabalho com o par mais competente em sala de aula
ainda é algo positivo para a maioria dos narradores.
Um ponto comum entre os quatro países é o papel da
produção cultural, pois, além dos agentes humanos, o
outro está indiretamente presente nos artefatos culturais,
tais como livros, programas de TV, música, filmes, etc. A
música é uma constante nas narrativas dos quatro países
e funciona como input e também como oportunidade de
prática de pronúncia e de aquisição de vocabulário.
Os resultados de nossa pesquisa corroboram os achados
de Paiva (inédito) na análise de 252 narrativas brasileiras
e nos mostram que o outro não é tão colaborativo como
prevê a teoria sociocultural. Tanto naquele estudo como
no que apresentamos aqui, os resultados nos permitem
fazer algumas generalizações a respeito do papel do ou-
tro na aquisição da língua inglesa por aprendizes em três
continentes. Os colegas podem ter uma influência bastan-
te negativa, assediando o colega moralmente com risos e
deboches, deixando-o constrangido. O professor, também,
pode amedrontar ao aluno, principalmente quando esse
aluno é resistente a feedback negativo.

Referências
BLOCK, D. The social turn in second language acquisition.
Washington, D.C.: Georgetown University Press, 2003.
ELLIS, R. Understanding second language acquisition. Oxford:
Oxford University Press, 1990.
FERREIRA JÚNIOR, F.G. Dos grupos de discussão às redes neurais:
reflexos sobre o desenvolvimento de um léxico mental. Revista
Brasileira de Linguística Aplicada, v.5, n.2, p.231-252, 2007.
FIGUEIREDO, F. J. Q. de. Semeando a interação: a revisão
dialógica de textos escritos em língua estrangeira. Goiânia:
Ed. da UFG, 2005
GREGG, K. R. The logical and developmental problems of second
language acquisition. In: RITCHIE, W.; BHATIA,T.K. (Eds.).
Handbook of second language acquisition. San Diego: Academic
Press, 1996. p.49-81

78
HATCH, E. Discourse analysis and second language acquisition.
In: HATCH, E. Second language acquisition: a book of readings.
Rowley, MA: Newbury Houley, 1978.
HATCH, E.; LONG, M. Discourse analysis, what’s that? In: LARSEN-
FREMAN, D. (Ed.). Discourse analysis in second language
research. Rowley, MA: Newbury Houley, 1980.p.1-40.
GASS, M. S.; MACKEY, A. Input, interaction, and output in second
language acquisition. In VanPATTEN, B.; WILLIAMS, J. (Eds.)
Theories in second language acquisition: an introduction,
2007. p.175-199.
HATCH, E. Simplified input and second language acquisition. In:
ANDERSEN, R. (ed.). Pidgnization and creolization as language
acquisition. Rowley, Mass.: Newbury House,1983.
KRASHEN, S. D. Applying the Comprehension Hypothesis: some
suggestions. 2004; International Journal of Language Teaching.
v.1, p. 21-29, 2004. Disponível em: http://www.sdkrashen.com/
articles/eta_paper/ index.html, acesso em 29/12/2007.
KRASHEN, S. D. The monitor model for second-language
acquisition. In: GINGRAS, R. C. (Ed.) Second-language
acquisition & foreign language teaching. Washington: Center
for Applied Linguistics, 1978.p.1-26.
KRASHEN, S. D. The input hypothesis: issues and implications.
London and New York, Longman, 1985.
LANTOLF, James P.; APPEL, Gabriela (Eds.). Vygotskian
Approches To Second Language Research. 1ª ed. Ablex
Publishing Corporation. New Jersey, 1994.
LANTOLF, J.P. (Ed.) Sociocultural theory and second language
learning. Oxford: Oxford University Press, 2000.
SCHETTINI, R.H. et al. Vygotsky: uma revisita no início do
século XXI. São Paulo: Andross, 2009.
SWAIN, M. Communicative competence: some roles of comprehensible
input and comprehensible output in its development. IN GASS, S;
MADDEN (Ed.). SWAIN, M. Input in second language acquisition.
Rowley, MA: Newbury House, 1985.
SWAIN, M. The output hypothesis and beyond: mediating
acquisition through collaborative dialogue. In LANTOLF, J.P. (Ed.)
Sociocultural theory and second language learning. Oxford:
Oxford University Press, 2000. p.97-114

79
PAIVA, Vera Lucia Menezes de Oliveira e. O outro na aprendizagem
de línguas. Disponível em: < http://www.veramenezes.com/
outro.pdf>. Ultimo acesso em: 03 mar. 2008.
VanPATTEN, B.; WILLIAMS, J. (Eds.) Theories in second
language acquisition: an introduction. Mahwah, New Jersey;
London: Lawrence Erlbaum, 2007.
SKINNER, B.F. Verbal behavior. Cambridge: Prentice Hall, 1992.
(B.F. Skinner Reprint Series, edited by Julie S. Vargas)
SCHUMANN, J. H. The acculturation model for second-language
acquisition. In: GINGRAS, R. C. (Ed.) Second-language
acquisition & foreign language teaching. Washington: Center
for Applied Linguistics, 1978. p.27-50
VYGOTSKY, Lev Sernenovich. A formação social da mente:
o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.
Organizadores: Michael Cole. [el al.] ; tradução: José Cipolla Neto,
Luís Silveira Menna Barreto. Solange Castro Afeche. -6ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
VYGOTSKY, L. S. Mind in society: the development of higher
psychological processes. Cambridge: Harvard University Press,
1978.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução: Jeffferson
Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

Recebido em 03/05/2009
Aceito em 11/07/2009

80
LANGUAGE AND THE MEDIA:
DISCOURSES ABOUT THE ENGLISH
LANGUAGE IN BRAZILIAN MEDIA1
Marisa Grigoletto2

Abstract: This paper analyses the ways contemporaneous


Brazilian media influence the production and circulation
of discourses about English, examining how the English
language is represented in media discourse. I shall explore
how certain ideologies are established by means of a he-
gemonic discourse about the need that everyone in Brazil
should know English, and how this prevalent meaning
produces an imaginary effect of inclusion of all Brazilians.
However, this discourse is contradicted by covert meanings
that English should remain the possession of only a seg-
ment of the population.
K eywords : English, media discourse, Brazil, identity,
market, inclusion, exclusion
Linguagem e mídia: discursos sobre a língua
inglesa na mídia brasileira
Resumo: Este artigo analisa a influência da mídia brasilei-
ra contemporânea na produção e circulação de discursos
sobre a língua inglesa, a partir da observação sobre como
o Inglês é representado nesse discurso. A análise explora
como certas ideologias são estabelecidas por meio de um
dizer hegemônico sobre a necessidade que todos no Brasil
teriam de saber inglês e como esse dizer produz um efeito
imaginário de inclusão de todos os brasileiros. Todavia,
esse dizer é contradito por sentidos velados de que a língua
deveria permanecer conhecida por apenas uma parcela da
população.
Palavras-chave: Inglês, discurso da mídia, Brasil, identidade,
mercado, inclusão, exclusão

1 A first version of this paper was presented at the 15th World Congress of Applied Linguistics of the
International Association of Applied Linguistics (AILA), which took place in Essen, Germany, 2008.
2 Docente da Universidade de São Paulo, Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas. Doutora em linguística pela Unicamp.

POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P. 81-101 2009 issn 0104-687x


Introduction
Although there is no novelty in stating that knowledge of
English is publicized as a requirement of absolute necessity
worldwide, in this paper I depart from the claim that there is
some specificity in the ways discourses about the necessity
of knowing English are produced and distributed in each
country and in how these discourses reach their audiences.
In this view, I follow the argument put forward by Mignolo
(2000), that there is no universal place from which one can
enunciate, or rather, that there are only “local histories”. It
is thus the specificity of our (Brazilian) local history with the
English language that is the focus of my research through
the analysis of discourses about this language. It is neces-
sary to research these “local histories” in order to under-
stand how Brazilians are placed vis-à-vis their relationship
with the English language, what kind of social imaginary
is produced about this foreign language in Brazil and how
these discourses construct representations that suggest the
imaginary inclusion of all Brazilians but that result mainly
in the exclusion of a segment of the population.
In my current research project3 I inquire about forms
of the imaginary and symbolic presence of the English
language in Brazil through the analysis of political and
educational discourse as well as media discourse about
the English language. The objective of the analysis is to
increase our understanding of the ways these discourses
produce identifications for us with a view to contributing
to the reflection about the English language, in particular,
but also about the Portuguese national language, mainly in
institutional contexts of language teacher education.
Drawing on the assumption that media discourse is
highly influential in the construction of meanings and the
shaping of identities in contemporaneous societies, this pa-
per analyses the specific ways contemporaneous Brazilian
media influence the production and circulation of discourses
about English, the way the English language is represented,
the manner of representing Brazilians’ relationship with
this language and the impact of those representations on
the construction of social identities in Brazil.
3 CNPq Research Project nº 311357/2006-7.

82
The theoretical background of the study is a theory
of discourse analysis (PÊCHEUX, [1975]1988; ORLANDI,
1992, 1999 and others) which critically examines the his-
torical discursive production of subjects and meanings.
Meanings are constituted interdiscursively, in the sense that
they are shaped by an intricate array of discourses already
produced and existing in a discursive memory displayed
in many different networks of discourses. Meanings are
also shaped by elements that can either be remembered or
forgotten and this is what constitutes a discursive memory.
Subjects, in their turn, are positions occupied by individuals
in the process of producing discourses; in Foucault’s terms
(FOUCAULT, [1969]1987), a subject position is a position
opened by a discourse and that may be occupied by differ-
ent individuals. In this process subjects suffer ideological
interpellation which, if successful, causes the subject’s
identification (PÊCHEUX, [1975]1988).
The research corpus consists of two types of texts: 1)
articles in Brazilian printed press which have the Eng-
lish language as theme, distributed in such topics as: the
teaching and learning of English, business, tourism and
market trends in teaching; 2) print and TV advertisements
shown in Brazil’s media and in which the verbal content
is partially in English mixed with Portuguese. These are
advertisements of products such as cars and clothes, not
of English language courses, in which case statements in
English would be expected. The corpus comprises articles
published in some of the country’s major newspapers and
current affairs magazines, in the last fifteen years and print
and TV advertisements published in the last four years.
In the printed press articles, my objective is to analyse
the dominant representation of the English language and
how the reader/interlocutor is ideologically interpellated
to identify with this representation. In the ads, my aim is
to reflect upon the effects of unfamiliarity with the foreign
language in contexts in which the unexpected use of this
language provokes a certain degree of rupture in the social
imaginary due to the fact that the foreign language is being
used in unconventional spaces.

83
1. Language representation and subject
interpellation
In the printed press, the statement4 that runs through
all the references to the learning of English is: “Knowing
English is an absolute necessity for Brazilians in their
professional lives.” This statement (énoncé) signifies in
sentences such as
[S.1] O brasileiro descobriu que aprender a falar inglês é
tão necessário quanto saber trabalhar com computador
(Veja, 28/10/1998)
(Brazilians have found out that learning to speak English
is as necessary as learning how to operate a computer)
[S.2] Saber falar inglês é “muito importante” para a maio-
ria da população [a frase resume o resultado de pesquisa
sobre “a importância do inglês para um profissional” e
que assinala 86% de escolha para a categoria “muito
importante”] (Folha de S. Paulo, 12/12/2004)
(Knowing how to speak English is “very important” for
most of the population [the sentence summarizes the
result of a survey about “the importance of English for
a professional”, in which the category “very important”
scored 86%])
in which the English language is reduced to its utilitarian
meaning of “vehicle for communication in today’s globalized
world”. This meaning is produced by what we could call the
discourse of the market and its process of marketization
that turns everything into goods offered for consumption.
In this process of marketization, the English language takes
on the value of a commodity to be acquired.
The reduction of the meanings and value of a language
to a means of communication that serves the global market
contrasts with other meanings and values of languages,
especially if considered from the point of view of foreign
language teaching and learning as a school subject.

4 Statement is being used in the Foucauldian sense of énoncé, that is, as a meaning that can be repeated in
different formulations, each forming a unique enunciative event (Foucault, [1969]1987).

84
In education many educators and applied linguists (in-
cluding me) defend that learning a foreign language should
not be considered merely for its utilitarian and immedi-
ate meaning of preparation for the professional market,
but rather as an opportunity for students to acquire an
awareness of other systems of signifying the world and
of other cultures. This awareness would thus develop the
students’ reflection about diversity and their tolerance for
difference.
In the texts (S. 1 and 2), the market perspective about
the English language, formulated as an absolute necessity
of knowing English in one’s professional career is imagi-
narily attributed to “Brazilians” in general (“o brasileiro”) or
to “most of the population” (“a maioria da população”). The
interlocutor (reader) of these texts is thus interpellated into
agreeing with this representation of the language, inasmuch
as he or she identifies with the position of all “Brazilians” or
“most of the population” that acknowledge the value of this
commodity. In designating those that know the importance
of English as “Brazilians” or “most of the population”, this
discourse constructs a subject position to be occupied by
the potential interlocutor/reader (who is Brazilian him/
herself).
Another characteristic of this discourse is that the texts
address the interlocutor in a straight open manner some-
times, by interpellating this interlocutor/reader as an indi-
vidual – “you”, as illustrated in sequences 3 and 4 below.
[S.3] Do you speak english [sic]? Se a resposta foi “no”
ou “o que você disse?”, vale a pena começar a pensar no
assunto, porque o mercado de trabalho pertence cada vez
mais a quem fala uma segunda língua, principalmente
o inglês. (O Globo, 15/8/1993)
(Do you speak english? [written in English in the text,
the way it is reproduced here, with a small “e” in Eng-
lish] If your answer was “no” or “what did you say?”, it
is worth starting to think about the subject, because the
job market increasingly belongs to those who speak a
second language, mainly English.)

85
[S.4] Saber combinar as 26 letrinhas em inglês, hoje, é
essencial para quem quer ser cidadão do mundo [...] Do
you speak English? Não? Então comece já, senão você
corre o risco de ser uma ilha cercada de inglês por todos
os lados. (Folha de S. Paulo, 7/8/1999)
(Knowing how to put together the 26 small letters of the
English alphabet today is essential for those that wish to
be world citizens […] Do you speak English? [the ques-
tion is written in English in the text] No? So start now,
otherwise you risk being an island surrounded by English
all around.)
If in S.1 and S. 2 (above), the enunciator5 speaks from
the perspective of someone who knows Brazilians’ opinion
about the importance of the English language, in S.3 and
S.4, on the other hand, the enunciator places itself in the
position of someone who attests the importance of knowing
English and appeals to its addressee from this position.
One more aspect to be noticed is that of S. 3, in which
there is a relative clause introduced by the pronoun “who”
(“quem”), in “the job market increasingly belongs to those
who speak a second language, mainly English”. The relative
pronoun “who” introduces a restrictive relative clause whose
antecedent (“those”) is indeterminate (who exactly is referred
to as “those who speak a second language”?). According to
Pêcheux (1988), it is a characteristic of restrictive relative
clauses to refer to indeterminate elements, which are thus
non-saturated elements in the text. This constitutes for
Pêcheux ([1975]1988) and Henry (1975) a pre-constructed,
that is, a lexical item that refers to a previous and indepen-
dent construction that signifies interdiscursively. In this
particular construction, the pre-constructed element may
be expressed like this: there are those who speak another
language and to whom the job market belongs. The element
that signifies in the utterance as a pre-constructed (or that
produces an effect of a pre-constructed statement), as if it
belonged to an anterior and exterior discursive domain,

5 In Oswald Ducrot’s polyphonic theory of enunciation (cf. Ducrot, [1984]1987; Guimarães, 1995), the
enunciator is the discourse figure that establishes the perspective from which an utterance is enunciated
and the addressee (“destinatário”) is its corresponding interlocution figure.

86
confers to the utterance the value of something that pree-
xists to this utterance, the value of a truth already there,
and about which one does not need to think. This is exactly
the effect of the ideological interpellation on the subject, the
addressee, in this case. As a result of the ideological effect
provoked by the pre-constructed, the discourse addressee,
individualized in the “you” (você) position, is invited to join
“those who speak a second language” and who are aware
of its importance.
Summing up the function of designation and address in
this discourse, the effect of ideological interpellation occurs
by means of two mechanisms:
Homogenization: the first mechanism is the designation
of all or most Brazilians, and through this mechanism the
addressee is “invited” to occupy the subject position of
“Brazilians” or “most Brazilians”. This designation manner
produces an effect of homogenization over the subject and,
as a consequence, leaves no room for divergent discourses
that might question or criticize the hegemonic position in
which English is placed;
Individualization: the second mechanism is the indivi-
dualization that results from the form of address (“you”),
complemented by the effect of a pre-constructed element
(“those who”), which interpellates the addressee into occu-
pying the position of those who “adequately prepare them-
selves for the job market”.
The form of ideological interpellation that individualizes
the subject produces the effect of rendering this subject
responsible for his or her acts and choices. The individual
is the form of subject that characterizes the capitalist mode
of production: the subject of law, according to Haroche
([1984]1992). This subject is defined by his or her rights and
duties in relation to the State, and by his or her individual
responsibility. In the media discourse under analysis, this
subject is interpellated from the position of an individual
that should consider him or herself responsible for lear-
ning English: “You are responsible for learning English if
you want to prepare yourself for the job market adequately
etc.” This subject, rendered responsible for his or her acts,

87
is summoned to respond and to know him or herself, in a
process of self-subjectivation that is increasingly expected
of the modern subject, according to Foucault (1988). The
philosopher defines as technologies of the self the techno-
logies that make the individual work for his or her own
subjectivation, in the sense that the individual is tied to a
particular identity. In this case, the form of identity that
the addressee of this discourse is tied to is the identity of a
Brazilian person who invests in his or her present or future
career by acquiring the tools such as English that will make
him or her fit for the job market.
This discourse constructs a subject position for the Bra-
zilian individual. It is my argument here that this position
may be occupied by real individuals (readers) that identify
with (or rather, that attend to the ideological call of) such
statements as “English is the foreign language that is neces-
sary for every Brazilian always for the same reasons, the job
market, and it is my individual responsibility to learn this
language.” This ideological effect of identification operates
as a mechanism of imaginary inclusion: the inclusion of all
those who identify as “Brazilian” and who are concerned
with their professional careers.
Also, in the discourse of the press there is either im-
plicitly or explicitly a comparison between English and its
high value for the job market and Portuguese in Brazil.
Explicitly, for example, we find a conflict between the two
languages in the same magazine article that states that
“Brazilians have found out that learning to speak English
is as necessary as learning how to operate a computer”,
illustrated by this excerpt:
[S.5] Quem desembarca na Suécia, Noruega ou Holanda
descobre países bilíngües onde, além da língua materna,
todo mundo fala inglês – do caixa de banco ao motoris-
ta de táxi. Num movimento desigual e silencioso, um
pedaço do Brasil começa a viver esta situação. Enca-
rando o português das escolas públicas, a maioria dos
brasileiros sobrevive longe de qualquer idioma parecido
com o inglês. Mas uma fatia cada vez mais numerosa da
população já deixou a condição de monoglota para pais
e avós. (Veja, 28/10/1998)

88
(A person who lands in Sweden, Norway or Holland
discovers bilingual countries where everyone speaks
English besides their native language – from bank tellers
to taxi drivers. In an unequal and silent movement, a
portion of Brazil begins to live this situation. Facing the
Portuguese language [teaching] of State-run schools, most
Brazilians survive far from any language that is similar
to English. But a fast growing slice of the population has
left the status of monoglots behind to their parents and
grandparents.)
A strange relationship between “the Portuguese language
of State-run schools” and English – or rather its absence
in this context – is established: supposedly poorly taught
Portuguese might prevent the learning of English or might
at least render it more difficult. The unfavorable light that
is shed on the teaching of Portuguese suggests that most
Brazilians that survive without English have a less than
adequate standard of living, since the necessity that is em-
phasized in statements such as “Brazilians have found out
that learning to speak English is as necessary as learning
how to operate a computer” (Sequence 1) and others in the
article is not being fulfilled.
I have argued that this kind of media discourse empha-
sizes languages’ market value, an emphasis that “naturally”
presents English as the most valuable language on the glo-
bal market nowadays. Compared to English from a market
perspective, the Portuguese language obviously has a great
deal less market value. This mode of making languages me-
aningful influences and may even determine the way we are
called upon to relate to languages ideologically, and it is a
consequence, I daresay, of media discourse: languages are
commodities whose chief characteristics are their relative
value vis-à-vis other commodities and general demand, and
as commodities their value is measured by their usefulness
for immediate purposes. In this view, the lack of prestige of
Portuguese is evident: a language that is not “adequate” or
“fit” for the global market.
If media discourse (as much as other discourses) in-
fluences identity construction in the ways individuals are
interpellated and if we accept the idea that the media have

89
great influence in current processes of meaning production,
a question may be asked: what kind of impact on the identity
construction of real Brazilian individuals is possibly caused
by this discourse, especially on those individuals who see
themselves in a position of deprivation, such as those who
“survive” without English or who do not yet “master” this
language? What is the possible impact on those who are
imaginarily excluded from the ideological call of identifying
with the subject position of “individuals who struggle for a
career and thus testify the absolute necessity of knowing
English in Brazil”?
These projections of deprivation, insufficiency or ina-
dequacy on the identity of Brazilians may be of use to
understand, at least to some extent, the fascination with
the English language that seems to be a common identifi-
cation among Brazilians (as analysed in Grigoletto, 2003).
By occupying this subjective position, individuals made
subjects are led to identify with the hegemonic discourse
of a particular language’s superiority over others and of
languages’ market value.

2. A divided enunciative space


The analysis of the advertisements focused on two as-
pects of the enunciative space6 constructed by the ads: a
specific mode of enunciation which mixes two languages,
Portuguese and English, and the mode of “communication”
with the virtual reader/spectator of those ads. It must be
said that the printed ads were published in newspapers
and magazines of wide circulation and aimed at a general
audience of people seeking information on current affairs.
No advertisement was collected from specialized magazines
in some scientific, economic or cultural domain.
The first aspect to be noticed is that the ads present a
divided enunciative space due to the mixture of the two
languages. This mixture causes the first effect of unfamilia-
6 The concept of enunciative space (“espaço de enunciação”) is proposed by Guimarães (2002) to designate
the divided space in which a language and its speakers operate, in the sense that a language is normatively
divided and the individuals who are speakers of that language are unequally divided between included
and not included (or not included in the same way). It is a space regulated by disputes and is, therefore, a
political space. In this text, the concept of enunciative space is being considered in contexts in which two
languages, Portuguese and English, symbolically and imaginarily divide the same space.

90
rity produced by the ads. A second effect is the particular
way of “communicating” with the reader/spectator: the ads
always show something unclear and obscure about the pro-
duct or enterprise that is being advertised. This effect may
be achieved by two mechanisms: either the text does not
clearly reveal what is being advertised or what is stated in
English has no direct or clear relationship with the product
being advertised.
The first two ads illustrate the mechanism of not clearly
revealing what is being advertised. In the first, spread across
two pages of a magazine (see Appendix 1), what is strange
and unclear is that the ad does not inform what products
are made by the company, whose name, LanXESS, appears
alongside the words in English Energizing Chemistry (on
the second image). Nor is there any information about the
kind of business the company does in Brazil. Thus, what is
advertised is probably unclear to the general public of the
magazine, as if the ad was addressed to a particular audien-
ce that would be familiar with the subject (i.e., chemistry
to produce some kind of energy) and with the company.
The strange effect caused by the words in English may be
increased by the reproduction of the chemical formula for
sugar drawn above the photo of the Sugarloaf Mountain,
in Rio de Janeiro. A formula that is inscrutable to the non-
initiated as much as the statement in English may be.
A second illustration of the same mechanism is the ad
in Appendix 2, which puts two foreign languages side by
side, English and Spanish, composing the slogan of the ad.
In Spanish comes the word España; in English, the words
technology for life. Similarly to the first ad, this ad does not
clarify the product or brand being advertised. In fact, what
seems to be advertised is the country Spain itself, by means
of advertising its air traffic control capacity (the statement
written in Portuguese means Traffic control – Spain is world’s
number one in air traffic control). An internet search on the
site www.spainbusiness.com.br, publicized at the bottom of
the page, reveals a homepage written in English that belongs
to the Official site of the Spanish Institute for Foreign Trade.
Thus, the interpretation of this ad also seems to be available
only to some business people but not to the general public.

91
In other ads, there is the use of English in statements
that seem to have no clear relationship with the product
being advertised, as in the two examples below.
In the ad of the clothes manufacturing company Diesel
(Appendix 3), the few words and phrases that are included
are all in English: Diesel for successful living and Global
warming ready. Two factors may be found strange: the use
of the English language and the phrase “Global warming
ready”. Why was this phrase included in a clothes ad? Be-
sides, the photo composition suggests that global warming
has already caused damage to the world. In the background
it is possible to distinguish the well-known four effigies of
former American presidents carved on the rocks of Mount
Rushmore, in a scenario in which the mountain seems to
be almost totally submerged under the sea. This scenario
suggests that global warming has already caused vast
floods on our planet. Therefore, the question may be posed
again: What is the immediate relationship between a global
warming threat and a clothes manufacturing company that
makes casual clothes for the young?
The second and last example is a TV advertisement
(not included in the appendices for obvious reasons). The
spectator is shown a short film in which a character that
looks like the idiotic, simple-minded and pure-hearted
character of the movie Forrest Gump tells an older man
seated beside him on a park bench how he got into his car
and drove nonstop and with no destination for a long time.
The whole monologue is narrated in American English by
the character with a Southern American accent and with
subtitles in Portuguese. The images that follow the narra-
tive show the Forrest Gump-like character driving his car
through a typical North American Southern country town
that looks very real with its people in the streets and shops
showing signs written in English. The ad advertises the new
Volkswagen Golf car. Some possible effects that may cause
strangeness: why does the ad allude to the movie Forrest
Gump, featuring a simple-minded and pure-hearted fellow,
to advertise a sophisticated German car manufactured by
a company that has a subsidiary in Brazil? And why use
English?

92
It might be argued that contemporary advertisements
are meant to cause impact by resorting to unfamiliar asso-
ciations, unexpected features, unusual slogans and strange
characters. Fontenelle (2002), for instance, describes how
contemporary advertising media discourse focuses more on
imprinting the brand name and image on the spectators’
mind and memory than on a specific product. To achieve this
aim, advertisements use spectacular effects that will most
probably be retained and remembered. It is also common
knowledge that ads are targeted towards a specific audience
that are expected to be familiar with the brand or to recogni-
ze the product and who are its potential consumers. It might
be added that ads are designed to appeal to the spectator
primarily through its visual content and only secondarily
through its verbal content. This is all true. But the fact that
the English language has been chosen to help convey these
characteristics should not pass unnoticed. Would the same
effects of strangeness, unexpectedness and unfamiliarity
be caused if the only language used in the ads had been
Portuguese? What potential exclusion is established when
English, not Portuguese, is selected? Who is potentially
excluded? Certainly, for a start, the people who read or see
the ads but do not understand English. Of course, it may
be claimed that these ads address an audience constituted
by people who know English and among whom the potential
consumers of those products will be. But this supposition
only adds to my argument that this discourse is anchored
on a basis of exclusion: those that cannot understand the
appeal of the ads possibly because of their unfamiliarity
with English are not part of the target audience and thus
do not count. With their whole or partial linguistic content
in English, the ads produce a division among the Brazilian
population: those that know English and are thus eligible
as target audience/consumers and those that do not know
English and are cut off from the communication chain.
The ads reveal a mode of enunciation that is based on a
double effect of strangeness, a double absence: the obscurity
of the product being advertised and the incomprehension
of the English language for those segments of spectators
that cannot understand this language. Both the visual and

93
verbal language elements compose an aura of strangeness
and mystery. My claim is that the verbal elements in En-
glish contribute to increasing the effect of strangeness that
seems to be sought by these advertisements. In this search,
the ads cultivate an obscure language to which the use of
English is one more addition: even for those spectators who
can overcome the language barrier another obstacle awaits
them in some cases: the enigma of what is advertised.
As regards the association with English, the specific
mode of enunciation of the ads as well as their mode of
“communication” with the virtual spectator point to an un-
derlying conception of English as a language restricted to
those who are able to decipher not only the language itself
but also the more or less secret codes of the ads.
The English language thus seems to have a role in these
ads in the way contemporary subjects are interpellated. In
the enunciative space underlying the ads, English is repre-
sented as more important than Portuguese and perhaps also
more legitimate. For the spectators of these ads, English is
represented as a language that may grant them access to
the secret codes of the ads, to understanding their messa-
ges. The others, those who cannot decipher the contents
in the foreign language, are excluded and obliterated from
this virtual communication space.
According to Guimarães (2002, p. 21), “any and all
languages are divided […] and this division is marked by
a hierarchy of identities. That is, this division unequally
distributes speakers according to the values that pertain
to this hierarchy” [my translation]. In his text, Guimarães
refers to the varieties of the Portuguese language in the
Brazilian enunciative space, but it seems to me that his
reflection may be extended to disputes between two different
languages – Portuguese and English in this case – in the
same enunciative space as constructed by media discourse
in particular. In the ads under analysis, the spectator is
placed between Portuguese and English, in a hierarchical
dispute which discloses issues of legitimacy, inclusion and
exclusion.

94
Final thoughts
Concluding this paper, one can see how certain ide-
ologies are established and reinforced in Brazilian media
discourse through the production and circulation of a hege-
monic discourse about the need that all Brazilians should
know English, while this discourse is contradicted by veiled
meanings that English should remain the possession of a
(already) selected segment of individual citizens. Through
various means English is also covertly constructed as a
more legitimate language than Portuguese.
My final claim is that in a country in which so many are
excluded from access to quality education or to any kind
of education at all, these discourses only contribute to the
reinforcement of this exclusion by imaginarily and sym-
bolically placing individuals across an enunciative space
that unequally distributes two languages, Portuguese and
English, and that, as a result, also unequally segments
groups of individuals. On one end are those who are able
to respond to the Market’s call and who, therefore, iden-
tify with the maxims of this discourse (i.e., that mastering
English is an absolute necessity, that it is the individual’s
own responsibility to go after the skills that are required by
the job market, and so on). On the other end are those who
are excluded from the start because they “survive without
English” and are thus not fit for the global market.
The emphasis on the view of languages as commodities
and on the market value of languages, present in Brazilian
media discourse, contributes to the production of a reduc-
tionist concept of languages and of the possible relationships
between individuals and one or more languages. Although
a discussion about foreign language teaching and learn-
ing in secondary school education in Brazil is beyond the
scope of this paper, the scenario drawn by Brazilian media
discourse vis-à-vis the English language, as illustrated by
this analysis, certainly produces significant and lasting ef-
fects on the minds of individuals concerned with this field
(educators, learners, policy-making administrators) and on
their discourses and actions.

95
In fact, we start wondering how much of this hegemonic
view of the English language as a commodity has already
influenced educators, learners and families, when we con-
sider that a pervasive statement (énoncé) in discourses that
circulate in schools is that “English language learning does
not take place in (State-run) schools”. Or when we consider
that one of the meanings which can be attributed to this
statement is that there is no learning of English because
the process is not geared towards teaching the students the
tools required by the market. One wonders therefore how
State-run school students feel when confronted with a he-
gemonic discourse that attributes just one meaning to the
English language – i.e., its market value – and disregard all
other possible objectives of foreign language learning and
all school practices in teaching a foreign language.

References
DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, [1984] 1987.
FONTENELLE, I. A. O mundo de Ronald McDonald: sobre a marca
publicitária e a socialidade midiática. Educação e Pesquisa, 28,
nº 1, 2002, p. 137-149.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense,
[1969] 1987.
_________. Technologies of the self. In: Martin, L. H.; Gutman, H.;
Hutton, P. H. (ed.). Technologies of the self: a seminar with
Michel Foucault. Amherst: The University of Massachusetts
Press, 1988.
GRIGOLETTO, M. Um dizer entre fronteiras: o discurso de
professores e futuros professores sobre a língua inglesa. Trabalhos
em Lingüística Aplicada, 41, 2003, p. 39-50.
GUIMARÃES, E. Os limites do sentido – um estudo histórico
e enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes, 1995.
_________. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes,
2002.
HAROCHE, C. Fazer dizer, querer dizer. São Paulo: Hucitec,
[1984] 1992.
HENRY, P. Constructions relatives et articulations discursives.
Langages, 37, 1975, p. 81-98.

96
MIGNOLO, W.D. Local histories/ global designs: coloniality,
subaltern knowledges, and border thinking. Princeton:
Princeton University Press, 2000.
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio – no movimento dos
sentidos. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992.
__________. Análise de discurso: princípios e procedimentos.
Campinas: Pontes, 1999.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação
do óbvio. Campinas: Ed. da Unicamp, [1975] 1988.

Recebido em 13/11/2009
Aceito em 21/12/2009

97
Appendix 1

98
99
Appendix 2

100
Appendix 3

101
RELENDO BAKHTIN: REFLEXÕES INICIAIS1

Simone de Jesus Padilha2

Resumo: Este artigo pretende travar uma discussão inicial


de algumas idéias de Bakhtin sobre a linguagem, princi-
palmente sobre seu conceito de linguagem como interação
social. Utilizaremos, para tanto, alguns exemplos do coti-
diano e de textos literários.
Palavras-chave: interação social, dialogismo, enunciado

Rereading Bakhtin: preliminary reflections


Abstract: This article aims to initiate a discussion about
Bakhtin’s studies of language, mainly his concept of lan-
guage as a social interaction. We will utilize, for this pur-
pose, some examples of quotidian and literary texts.
Keywords: social interaction, dialogism, utterance

Para Bakhtin, todo evento da linguagem - mesmo aquilo


que sonhamos, na última solidão do ser - é a atualiza-
ção de uma relação entre sujeitos históricos e sociais.
(TEZZA, 2003)
Para iniciar nossa reflexão nesse artigo, tentemos um
olhar contemplativo, que pede a leitura deste texto, à moda
de um haicai:
o arrozal lindo
por cima do mundo
no miolo da luz
(Guimarães Rosa)
É mania de gente das Letras se perguntar: O que Gui-
marães quis dizer com esse haicai? Eu digo: Quis dizer: “o
arrozal lindo, por cima do mundo, no miolo da luz.”

1 Este artigo é produto das discussões realizadas pelo Grupo de Pesquisa “Relendo Bakhtin”, por nós co-
ordenado, e quem tem a participação de docentes e alunos do Programa de Pós-graduação Mestrado em
Estudos de Linguagem – MeEL-UFMT.
2 Professora do Departamento de Letras e do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem –MeEL/UFMT.

POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P. 103-113 2009 issn 0104-687x


A linguagem pode ser apenas o que é. As pessoas po-
dem não querem dizer nada com coisa alguma. Ou melhor,
podem não querer dizer outra coisa ou outras coisas. Mas,
também, podem o tempo todo dizer tudo com qualquer
coisa, com o jeito de sorrir, com o jeito de andar, com o
brilho do olhar....
Olhemos alguns trechos dessa canção:
Bem mais que o tempo que nós perdemos
ficou pra trás também o que nos juntou
Ainda lembro, que eu estava lendo
Só pra saber o que você achou
dos versos que eu fiz
e ainda espero resposta
(...)
Bem mais que o tempo que nós perdemos
ficou pra trás também o que nos juntou
Ainda lembro que eu estava lendo
só pra saber o que você achou
dos versos seus tão meus que peço
dos versos meus tão seus que esperam que os aceite
(Resposta, de Samuel Rosa e Nando Reis)
É claro que quando pedimos respostas pedimos
também aceitação, quando damos resposta, demonstramos
aceitação ou não. Mas, nesse momento, da resposta, os ver-
sos já deixam de ser só meus e passam a ser seus e meus,
nossos. A linguagem, em suas múltiplas manifestações,
nos serve para que possamos dar respostas ao mundo, ao
outro, e quando o fazemos, fazemos também com o outro,
com a palavra alheia que tornamos palavra própria.
É em meio a essas reflexões que gostaríamos de apresen-
tar, neste artigo, um pouco da figura de Mikhail Bakhtin.
Ele foi um pensador russo que muito se indagou o tempo
todo a respeito da linguagem, e o seu conceito de dialogismo
trazia no seu bojo essa idéia de resposta, de compreensão-
resposta, de compreensão ativa. Que prevê o eu e o outro
opondo contrapalavras. Nem sempre presentes no mesmo
tempo e espaço, nem sempre duas pessoas distintas, nem
sempre duas pessoas “físicas”.

104
Bakhtin... por que é importante estudar esse tal de
Bakhtin? Para nós, nós das Ciências Humanas? Bakhtin
foi um pensador que, apesar de sofrer sérias coerções e pri-
vações em sua época, foi capaz de discutir sobre assuntos
muito diferentes: ele passeou pela Filosofia, pela Literatura,
pela Linguística.
Como acontece com outros fundadores de discursividade,
é necessário considerar os vários conceitos mobilizados pelo
Círculo de Bakhtin3, de uma forma articulada, e compreen-
dê-los à luz deste arcabouço. De forma destacada do solo
teórico que os nutre, conceitos como gênero do discurso,
enunciado concreto, dialogismo, compreensão ativa, entre
outros, passam a adquirir outros sentidos, de acordo com
o querer-dizer de diferentes interlocutores, cujos domínios
teóricos nem sempre podem ser considerados compatíveis
com o pensamento bakhtiniano.
Uma das coisas que mais nos fascinam no pensamento
bakhtiniano, e que aqui nos interessa como estudiosos da
linguagem, é a relação que ele estabelece entre vida e arte
e que, em outros termos, pode ser pensada entre vida e
linguagem. Pode parecer um absurdo pensar, mas é um
fato que, em muitas épocas, os estudos sobre a linguagem
desassociaram dela a vida e, com ela, o ser humano.
Assim, na obra do autor russo, podemos ver sempre
estes dois pontos imbricados, o que pode ser traduzido
num esforço filosófico do autor em unir ética e estética.
Num dos primeiros manuscritos do autor russo, datado de
1919-1921, e mais tarde intitulado Para uma Filosofia do
Ato, o jovem Bakhtin, então com 20 e poucos anos, num
texto denso, de teor filosófico, já lançava as sementes de
seu pensamento, que mais tarde dará origem a categorias
como exotopia, cronotopo, as relações autor-herói, enunciado
concreto etc. Nessa obra inicial, Bakhtin concebe a atividade
ética com um ato responsável, no seu processo de “estar se
fazendo” num momento único, concreto, de sua realização.
Sempre partindo de e se endereçando a um ser humano,

3 O Círculo de Bakhtin é a denominação que recebeu um grupo formado por intelectuais próximos a
Mikhail Bakhtin, apaixonados pela filosofia e debate de idéias, que se reuniam, segundo Clark & Holquist
(1998), em 1918, em Nevel (entre eles, Volochinov), e depois em Vitebsk, ao final de 1919 (entre o quais,
Miedviédiev).

105
envolvido nesse evento (ou “ser evento-único”, ou “evento
único do ser”) o ato pode ser entendido como uma ação de
qualquer natureza, um pensamento, um enunciado verba-
lizado ou não, escrito ou não. Ao ato, ao evento único do
Ser, Bakhtin alia, numa simultaneidade, num todo indis-
solúvel, os valores que são mobilizados por meio da relação
eu e outro, num tempo e lugares também únicos. Segundo
Clark & Holquist (1998, p. 90),
Bakhtin supõe que cada um de nós “não tem álibi na
existência”. Nós próprios precisamos ser responsáveis ou
respondíveis, por nós mesmos. Cada um de nós ocupa
um lugar e um tempo únicos na vida, uma existência
que é concebida não como um estado passivo, mas ati-
vamente, como um acontecimento. Eu calibro o tempo
e o lugar de minha própria posição, que está sempre
mudando, pela existência de outros seres humanos e
do mundo natural por meio dos valores que articulo em
atos. A ética não se constitui de princípios abstratos,
mas é o padrão dos atos reais que executo no aconteci-
mento que é minha vida. Meu self é aquilo mediante o
que semelhante execução responde a outros selves e ao
mundo a partir do lugar e do tempo únicos que ocupo
na existência.
Assim, nosso evento-único do Ser, aqui, neste artigo,
neste momento preciso, como pesquisadora, admiradora e
estudiosa, é refletir e nos indagar sobre as discussões de
Bakhtin a respeito da linguagem, ou sobre como estamos
respondendo a elas. É ver o evento da linguagem constituin-
te e constituindo o evento do Ser, e vice-versa, de trás pra
frente, de ponta cabeça. Por falar em evento único do ser,
ninguém melhor do que a poesia para nos dizer exatamente
a que Bakhtin estava se referindo:
Quero
Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

106
Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo??
Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais,
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira
a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.
No momento em que não me dizes:
Eu te amo
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amaste antes.
Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.
(Carlos Drummond de Andrade)

É claro que ninguém aqui quer se precipitar no caos, na


coleção de objetos de não-amor. Esse não é o nosso preten-

107
dido “evento-único do ser.” Isso porque significa ficar sem
resposta, sem linguagem, sem poder construir quaisquer
sentidos através do que diz o outro e sem poder ter espe-
rança de aceitação. Além da resposta, a aceitação. Além da
linguagem, o outro que responde e nos aceita. Ou não.
Esse poema ilustra, ainda, muito bem, o que o próprio
Bakhtin quis dizer com o conceito de enunciado concreto.
Esse “eu te amo”, de Drummond, é o próprio enunciado
concreto, não é uma abstração, não é apenas um texto, é a
materialização aqui de uma atitude valorativa do autor, o
ato ético do amor se torna ato estético que recria não só o
próprio ato, mas dá à linguagem, à força do dizer, a criação
do mesmo. Mas isso está nas mãos do outro. Vivemos pelo
outro, pela mobilização da linguagem pelo outro, que nos
dá vida e sentido. Para Bakhtin, segundo Holquist (1998), a
outridade é o fundamento de toda a existência, e o diálogo,
a estrutura primacial de qualquer existência particular,
representando uma constante troca entre o que já é o que
não é ainda.
Nesse sentido, ao se pensar em quaisquer conceitos da
obra bakhtiniana, é preciso articulá-los sempre, em qual-
quer tempo e situação, à concepção de linguagem como
interação. E mais do que isso, é preciso bem compreender
os fundamentos e consequências desta concepção, pois
qualquer evento de linguagem, como bem diz a citação na
epígrafe deste texto, “é a atualização de uma relação entre
sujeitos históricos e sociais”. Historicamente, em relação à
linguística e aos estudos de linguagem, tal visão supera a
noção de língua saussureana e qualquer outra que entreveja
a língua como conjunto de materialidades, de abstrações
ideais e falantes ideais, sem que a questão do sentido e
das construções de efeitos de sentido sejam levadas em
consideração.
A significação, para Bakhtin ([1929]1990, p. 132), não
está na inscrição lingüística per si, mas se realiza apenas
no momento do encontro entre dois interlocutores, na in-
teração social:
A significação não está na palavra nem na alma do
falante, assim como também não está na alma do in-

108
terlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do re-
ceptor produzido através do material de um determinado
complexo sonoro. É como uma faísca elétrica que só se
produz quando há contato dos dois pólos opostos. (...)
Só a corrente da comunicação verbal fornece à palavra
a luz da sua significação.
A faísca marca, pois, este momento único e irrepetível,
que carrega consigo uma série de elementos combinados
que o constituem e o consolidam, inclusive a própria língua.
Assim, qualquer enunciado só faz sentido para nós ou para
qualquer pessoa nesta arquitetônica, da qual participamos
de forma mais ou menos ativa; porém, sempre o fazemos,
pois, como bem dizia o jovem Bakhtin em sua Filosofia do
Ato, “não temos álibi na existência”.
Tal reflexão sempre nos remonta a uma situação típica,
a qual sempre ilustra nossas aulas quando o assunto é a
concepção de linguagem como interação social:
“Um casal de classe média, domingo pela manhã. O
marido encontra-se sentado no sofá, controle remoto na
mão, televisão ligada, corrida de fórmula 1. A mulher
um tanto aflita, anda pra lá e pra cá em passos rápidos.
Passa na frente da tevê, volta, o marido desvia a cabeça,
pra lá e pra cá para não perder nenhum lance da corrida.
De repente, a mulher para atrás do sofá, suspirando:
- Benhê...tô cuma preguiça hoje...
O marido não se mexe, apenas suas sobrancelhas se
levantam levemente:
- Eu também bein...tô cuma preguiça hoje...
A mulher volta cabisbaixa para a cozinha, e começa a
preparar o almoço”.
Vejamos que se trata se uma situação bastante co-
nhecida nossa, em que os papéis sociais ali, de marido e
mulher, encontram-se bem definidos. No curto diálogo da
breve interação entre eles, podemos verificar a existência
da informação central em apenas uma frase, que é de con-
cordância de ambos:
“tô cuma preguiça hoje...”

109
Deixando de lado possíveis observações sobre os traços
da oralidade na escrita, podemos afirmar que se trata, sim,
de uma frase do português brasileiro contemporâneo. Como
já dizia Chomsky, qualquer falante de sua língua é capaz de
reconhecer uma frase dela. Já em termos do que se diz, am-
bos os falantes expressam sentirem-se preguiçosos naquele
dia. Qualquer dúvida sobre a veracidade das informações
não procede, pois, ao que parece, nenhum dos dois está
mentindo sobre sentir-se preguiçoso. Ou não?
Na verdade, o que cada um quer dizer, naquele exato
momento, por serem quem são e por se reconhecerem, de
suas interações anteriores, é outra coisa. A esposa quer, na
verdade, com seu “Benhê...tô cuma preguiça hoje...” sugerir
algumas dessas possibilidades, ou aproximadamente:
1) - Pode levantar daí? Podemos ir almoçar fora? Não
quero fazer almoço hoje, cozinhei a semana toda!!
2) - Me leva pra almoçar fora?
3) - Pode prestar atenção em mim?
Já o esposo, de alguma forma, revela, com seu “Eu
também bein...tô cuma preguiça hoje...”, os sentidos pe-
remptórios:
4)- Não saio daqui. Não me amola...
5)- Quero ver a corrida. Vai lá tratar do almoço...
6)- Não enche...
Vejamos que os “verdadeiros” sentidos, o “tema bakhti-
niano” daquele diálogo, só podem ser decifrados, pois os
interlocutores participam e se compreendem não só na
situação imediata, num cronotopo – o diálogo de um casal
brasileiro na sala de estar num domingo – mas também
são co-participantes de um contexto social mais amplo,
em que são claras as apreciações valorativas sobre quem
é o outro para si (no caso, quem a mulher representa para
o marido e vice-versa). A interação aqui, enraizada nos
papéis sociais ideologicamente marcados e historicamente
constituídos, permite a intercompreensão das significações
que, de fato, querem dizer alguma outra coisa relevante. É

110
por isso que a esposa retorna à cozinha, para preparar o
almoço. Entre eles, já há um contrato discursivo que não
permite certas falas, apenas outras – aparentemente cor-
diais, mas os sentidos que se estabelecem brotam quase
que de forma independente do enunciado pronunciado – “to
cuma preguiça hoje...”, e de forma quase oposta entre os
interlocutores, pois para a esposa a preguiça é motivo de
sair, para o marido, é motivo de ficar.
Este exemplo cotidiano e bastante simples permite que
vislumbremos o que Bakhtin queria expressar por uma com-
preensão da linguagem como interação social. Em nenhum
momento é possível depreender os sentidos a não ser pela
compreensão maior do que são nossos relacionamentos
com o outro, como estabelecemos os contratos nas relações
e como organizamos nossos discursos a partir daí. Mais
do que analisar as situações face a face, mais do que uma
perspectiva pragmática, Bakhtin pensa em vínculos ideo-
lógicos que determinam as formas e conteúdos de nossos
enunciados.
Por isso, uma concepção de linguagem que Bakhtin
oferece é algo que, primordialmente, resgata a ser humano
como um centro de valores, não colocando aqui a palavra
valor no sentido de valores morais, mas no sentido de que
somos sempre mesmo um centro de valores, assimilados
e assumidos em nossa estória de vida, refletidos mas tam-
bém refratados, e que atribuímos valores a cada coisa, ao
outro, ao que o outro nos diz, ao gesto que ele faz, à arte
que ele nos apresenta, ao conceito que ele nos mostra, ao
conteúdo que ele nos ensina. Nossas atitudes em direção
ao outro e às coisas são valorativas. Até mesmo o que guar-
damos em nossa memória é seletivo, obedece a critérios e
prioridades, sejam eles claros ou não, explícitos ou não,
conscientes ou não.
Mas pensar o ser humano com centro de valores e como
centro de atenções, como o fez Bakhtin, é, para nós, que
somos educadores, essencial. Pensar no ser humano acima
de tudo como um centro de valores, e sedento por valores
e por valorar.

111
Bakhtin é, antes de mais nada, um grande humanista,
que pensa a linguagem não como uma abstração, mas que
a reinsere na vida, com e a partir do ser humano. E aponta
para o fato de que o que somos se define muito pelas relações
com os outros, que são assim definidos por nós também. E
como esses outros mudam e esses outros em nós mudam
e nós mesmos mudamos sempre, nada na linguagem será
estático, tudo é vivo, tudo muda, ou, no que concerne à
linguagem, tudo tem o potencial para. Termino com um
poeminha, de uma autora jovem, inédita
INTERAMOR
Em ti
De tua boca
Sou eu mesmo, assim.
Assim sendo
Sei me ver agora
A menina maluquinha
A que está em pânico
A que quer colo
A que dorme demais
A que dorme em paz
Em tuas palavras
que me...confinam?
Confio?
Há brechas?
Ou mudas?

Não preciso ser mais ninguém


Pois me defines ao fim
Infinito-finito de mim
Nos lábios teus
(Simone Padilha)

Referências
BAKHTIN, M. M. (1919-1921). Toward a Philosophy of the Act.
Austin, University of Texas Press, 1993. Versão para o português
com o título Para uma Filosofia do Ato, para uso didático e
acadêmico, com tradução provisória de Calos Alberto Faraco e
Cristóvão Tezza.

112
BAKHTIN, M. M. /VOLOCHINOV, V. N (1929) Marxismo e
Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1990.
CLARK, K. & HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. São Paulo:
Perspectiva, 1998.
TEZZA, CRISTÓVÃO. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o
formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

Recebido em 12/11/2009
Aceito em 17/12/2009

113
FALAR RURAL E DESVIOS DA NORMA NO
TEXTO ESCRITO: POSSÍVEIS RELAÇÕES
Joyce Elaine de Almeida Baronas1

Resumo: Este artigo pretende estudar a influência da ora-


lidade no texto escrito e apresentar um paralelo entre os
desvios da norma mais comuns e as marcas do falar rural.
Para tanto, num primeiro momento, serão expostos alguns
pressupostos teóricos sobre os desvios da norma padrão
e posteriormente serão analisados dois corpora,um deles
constituído de textos produzidos por alunos da 4ª série do
ensino fundamental de uma escola pública da cidade de
Cambé-PR e outro de entrevistas com falantes rurais do
distrito de Paiquerê, no município de Londrina, a fim de
compará-los e identificar uma provável relação entre eles. A
partir da análise dos dados, contatou-se a relação entre os
corpora em estudo, pois verificou-se que muitas característi-
cas do falar rural já são presentes na fala coloquial de uma
grande parcela da população e não são, necessariamente,
restritas a falantes da zona rural. Além disso, constatou-se
que tais traços se estendem à modalidade escrita, compro-
vando a influência da oralidade na escrita.
Palavras-chave: oralidade, escrita, ensino de língua portu-
guesa
Rural dialect and deviations from standard
Brazilian Portuguese in the written text:
poSsible relations
Abstract: This article aims to study the influence of orality
in the written text and to make a parallel between the most
common deviations from standard Portuguese and the
marks of rural dialect. Thus, at first, some theoretical as-
sumptions about deviations from standard Portuguese will
be shown and then two corpora, one consisting of written
texts produced by 4th grade students of a public school in
the town of Cambé, Paraná and the other one of interviews
with rural speakers, will be analyzed to compare them

1 Docente do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina.

POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P. 115-131 2009 issn 0104-687x


and identify a probable relation between them. The data
analysis showed the relation between the corpora under
study as it was observed that many characteristics of the
rural dialect are already present in the colloquial language
of a large portion of the population and that they are not
necessarily restricted to the speakers of the rural area.
Besides this, it was shown that such features also extend
to the written modality proving the influence of orality in
the written text.
Keywords: orality, writing, teaching of Brazilian Portuguese

Introdução
Este estudo pretende estudar os desvios da norma
padrão em textos escritos e compará-los com fenômenos
comuns no falar rural, a fim de melhor compreender esses
desvios e fornecer subsídios ao professor de língua portu-
guesa no tratamento de tais ocorrências linguísticas. Para
isso, na parte teórica, serão apresentadas algumas questões
relacionadas à variação linguística, posteriormente serão
apontados estudos sobre o falar rural e, em seguida, serão
comentados estudos a respeito dos desvios da norma. Já na
parte analítica, serão comparados textos de alunos de uma
escola de Cambé-PR com dados do falar rural de Paiquerê-
PR, a fim de identificar algumas semelhanças, buscando
comprovar a influência da oralidade no texto escrito.

1. Pressupostos teóricos

1.1. Variação linguística


A linguagem é, por natureza, um objeto sujeito a altera-
ções, por ser uma parte constitutiva do ser humano. Ora, se
o homem está sempre evoluindo, mudando sua aparência,
suas ideias, seus valores, é perfeitamente normal haver
variações e mudanças linguísticas. Segundo Labov (1962),
a variação linguística é natural, é essencial à linguagem
humana. Dessa forma, o que exigiria explicação seria a
ausência da variação na linguagem e não a sua presença.
Meillet já apontava, em 1906, o fato social como moti-
vação fundamental para ocorrerem alterações linguísticas:

116
“Por ser a língua um fato social resulta que a linguística
é uma ciência social, e o único elemento variável ao qual
se pode recorrer para dar conta da variação linguística é a
mudança social” (MEILLET apud CALVET, 2002, p. 16).
Na mesma linha de pensamento, Coseriu (1980) afirma
que a diversidade linguística pode ocorrer devido a vários
fatores e propõe uma classificação para as diferentes for-
mas de variação: diacrônica, diatópica, diastrática e diafá-
sica. Segundo o autor, quando há alterações linguísticas
resultantes da passagem do tempo, elas se denominam
diacrônicas. Como exemplo para este tipo de variação, há
o pronome você, enquanto resultado das mudanças na
expressão Vossa Mercê.
As variações resultantes das características regionais,
ou diatópicas, são representadas pelos distintos sotaques,
evidenciados, por exemplo, pelas diferentes pronúncias do
/r/ em regiões paulistas e nordestinas. Além dessas, as va-
riações diatópicas também se evidenciam em outros níveis,
como o lexical, por exemplo, com os variados nomes exis-
tentes para um mesmo objeto; ou o morfossintático, como
a distribuição regional do emprego do pronome tu/você.
Há também as alterações na linguagem resultantes
dos diferentes estratos sócio-culturais, denominadas
diastráticas e que podem ser comprovadas com estudos
comparativos entre falantes alfabetizados e analfabetos,
por exemplo.
Finalmente existem as variações diafásicas, que, segun-
do o estudioso, são as distinções entre os diversos tipos
de modalidade expressiva. Para o autor, “as variedades
lingüísticas que caracterizam – no mesmo estrato social –
os grupos ‘biológicos’(homens, mulheres, crianças, jovens)
e os grupos profissionais podem ser consideradas como
‘diafásicas’.” (COSERIU, 1980, p. 110 e 111).
Tais apontamentos são de relevância para o presente
estudo porque defende-se aqui a interferência da fala na
escrita, e, como afirma Cagliari (1999, p.124), “a variação
linguística, característica inerente a toda e qualquer língua
do mundo, pode constituir um grande problema para quem
está adquirindo o sistema da escrita.” Isto porque o aluno

117
pode transpor as variantes distantes da norma para o texto
escrito. Em outro estudo, o autor ainda aponta que “o erro
mais comum dos alunos é caracterizado por uma transcri-
ção fonética da própria fala” (CAGLIARI, 1992, p.138).

1.2. Falar rural


O falar rural constitui rica fonte de estudo por conservar
traços do português antigo. Trata-se de uma linguagem
bastante conservadora pelo fato de concentrar-se em regiões
distantes da urbanização onde impera a cultura escrita.
Entre os trabalhos que abordam as variedades rurais, serão
comentados os trabalhos de Amaral (1920), de Rodrigues
(1974), de Veado (1982) e de Penha (1997).
Amadeu Amaral (1920) enfoca o falar característico de
moradores de zona rural paulista, nomeando-o dialeto cai-
pira. Em seu estudo, o autor afirma que o dialeto caipira
sofreu alterações em função do meio social, mas ainda existe
em determinadas regiões:
Hoje, ele (o dialeto caipira) acha-se acantoado em
pequenas localidades que não acompanharam de
perto o movimento geral do progresso e subsiste,
fora daí, na boca de pessoas idosas, indelevelmente
influenciadas pela antiga educação. Entretanto,
certos remanescentes do seu predomínio de outrora
ainda flutuam na linguagem corrente de todo o Es-
tado, em luta com outras tendências, criadas pelas
novas condições. (AMARAL, 1920, p. 42)2
Para apresentar as distinções entre o dialeto caipira e o pa-
drão, o pesquisador destaca, em seu estudo, questões relacio-
nadas à fonética, à morfologia, à sintaxe e ao vocabulário.
Em relação à fonética, o autor afirma serem os fonemas
do dialeto caipira em geral os mesmos do português, apesar
de existirem algumas variantes fisiológicas características
de cada povo. Segundo o autor, para essas variantes, “só
a fonética experimental poderia dar uma noção precisa”
(AMARAL, 1920, p. 47).

2 Ressalta-se que atualmente o falar rural, embora se encontre disperso, espalha-se pelas
diversas regiões rurais do Brasil.

118
Sobre o aspecto lexicológico, o pesquisador aponta o
caráter restrito do vocabulário do dialeto caipira, resultante
da simplicidade de vida de seus falantes. Conforme Amaral
(1920), o vocabulário desse dialeto é formado de:
a) elementos oriundos do português usado pelo primitivo
colonizador, muitos dos quais se arcaizaram na língua
culta;
b) termos provenientes das línguas indígenas;
c) vocábulos importados de outras línguas, por via in-
direta;
d) vocábulos formados no próprio seio do dialeto. (AMA-
RAL, 1920, p. 55)
O vocabulário é apresentado pelo autor a partir de um
glossário de brasileirismos correntes em São Paulo. Segundo
o autor, tal glossário é composto “de vocábulos em uso entre
os roceiros, ou caipiras, cuja linguagem, a vários respeitos,
difere bastante da da gente das cidades, mesmo inculta”
(AMARAL, 1920, p. 82).
Ao abordar as questões de ordem morfológica, o pesqui-
sador enfatiza que o dialeto caipira foi bastante fértil, dada
“a formação de numerosos substantivos e adjetivos, quer por
composição, quer por derivação” (AMARAL, 1920, p. 68)
Para comentar a sintaxe, o estudioso ressalta que a com-
plexidade dos fenômenos sintáticos dificulta uma sistemati-
zação e acrescenta que “só depois de acumulado muito ma-
terial e depois de este bem verificado e bem apurado é que se
poderão ir procurando as linhas gerais da evolução realizada,
e tentando dividi-lo em classes” (AMARAL, 1920, p. 74).
Com essa abordagem, Amaral reúne um interessante
material, compondo uma espécie de dicionário do léxico
rural.
Rodrigues (1974) também aborda o falar rural. A autora
aponta a existência do “dialeto caipira”, em 1969, na região
de Tietê e Porto Feliz:
Constatou-se, guardadas as devidas cautelas impostas
pelos rápidos contatos e sem escolha rigorosa de locu-
tores, que o chamado dialeto caipira, ao contrário do

119
que previa Amadeu Amaral, poderia ainda existir com
apreciável vitalidade. (RODRIGUES, 1974, p. 21)
A partir desta verificação, Rodrigues se ocupou da aná-
lise da fala de informantes da região de Piracicaba, por
meio de critérios morfossintáticos, fonéticos e fonológicos.
Como resultado de seu trabalho, conclui que seu objeto de
estudo – a fala de moradores de Piracicaba – constitui-se
num dialeto:
Pode-se, portanto, pensar em uma forma divergente
da língua-padrão, num grupo específico, numa área
geográfica restrita. Os resultados obtidos levam, assim,
à conclusão de que se trata de um dialeto. No consen-
so dos moradores da área urbana, este dialeto é uma
fala ‘caipira’ e os próprios informantes têm consciência
disso quando, para fugir à conotação pejorativa que se
atribui ao caipira, tentam ‘melhorar’ os seus recursos
de expressão. (RODRIGUES, 1974, p. 170)
O falar rural é também estudado por Veado (1982),
com base na descrição e análise da língua falada por infor-
mantes não escolarizados, residentes em zonas rurais da
região Sanfranciscana Januária em Minas Gerais, a fim de
fornecer dados para a elaboração de materiais didáticos
de leitura e escrita adequados àquela clientela. Tal estudo
tem o objetivo, também, de dar subsídios para trabalhos
sobre diferenças lingüísticas, contribuindo para baixar o
alto índice de analfabetismo dos moradores da zona rural.
Conforme aponta a pesquisadora, um dos grandes motivos
do analfabetismo reside no desconhecimento da realidade
linguística (e pragmática) da clientela a ser alfabetizada,
por parte dos docentes e/ou por parte, principalmente,
dos responsáveis pela elaboração do material de leitura e
escrita destinado à alfabetização do adulto da zona rural.
(VEADO, 1982, p. 9)
Segundo a pesquisadora, o educador, diante da lingua-
gem rural diferenciada, deve optar por formas mais simples,
como por exemplo, o ‘a gente’ em vez do ‘nós’, nos casos
de concordância verbal, e só posteriormente introduzir a
concordância padrão.

120
Uma das conclusões da autora foi a verificação de que
“as formas linguísticas em uso efetivo no dialeto rural são
também bastante usadas no português coloquial urbano.”
(VEADO, 1982, p. 97). Para Veado, algumas formas – tais
como o ‘se’ indeterminado, o ‘se’ reflexivo, a passiva ‘ser
-do’, o futuro do subjuntivo, o presente do subjuntivo e a
relativização regida de preposição – estão se extinguindo da
língua falada em geral, tanto rural como urbana, e estão se
tornando cada vez mais exclusivas da língua escrita.
Outro pesquisador que toma o falar rural como objeto de
estudo é Penha (1997), que trata da relação existente entre
os textos regionalistas, a fala popular e os textos antigos.
Segundo o autor, em seu trabalho:
está a prova de que os escritores regionalistas são em
geral fiéis às formas da fala popular, e estas, por sua
vez, repetem muitas que usaram os escritores antigos,
especialmente os que escreveram no século XVI e XVII,
fase de início e prosseguimento da colonização brasileira.
(PENHA, 1997, p. 14)
Para a elaboração de seu estudo, o pesquisador compa-
rou estudos por ele realizados anteriormente: A Arcaicidade
da Língua Popular Brasileira (1971), Aspectos da linguagem
de São Domingos (1972), Vocabulário Rural-Mineiro (1976),
A Linguagem de Mário de Andrade (1974), Os Lusíadas de
Camões e o Português Popular do Brasil (1977), e a Variante
Rural de Minas na Literatura Regional do Brasil (1981), além
de uma vasta bibliografia literária, de textos arcaicos e de
estudos dialetológicos.
A partir desse trabalho, o autor comprova a conservação
do português antigo na linguagem popular.
Com base nesses dados, pode-se reafirmar o caráter
conservador deste falar, trata-se de uma forma linguística
peculiar, apresentando dados muito interessantes para a
pesquisa sobre a língua. Desse modo, não se pode afirmar
que tal dialeto seja destoante e sem razão de ser, pois traz,
em suas formas diversas, alguns traços da língua portu-
guesa em sua formação.

121
1.3. Desvios da norma
O texto escrito, como é sabido, exige a norma padrão,
entretanto é comum a existência de dificuldades dos alu-
nos na assimilação desta norma, gerando incorreções de
ordem gramatical e ortográfica. Mattoso Câmara, em artigo
publicado em 1957, já estudava os chamados “erros esco-
lares”. Em seu estudo, o autor analisou textos de alunos de
escolas particulares do Rio de Janeiro identificando desvios
da norma padrão e apontando os fenômenos ocorridos. Os
textos analisados eram resultantes de ditados e de algu-
mas questões de ordem gramatical e o autor os analisou
classificando-os em três aspectos: fonético, morfológico e
sintático. Salienta-se que, entre os 20 itens apontados pelo
autor, 13 são de ordem fonética, ou seja, dizem respeito à
oralidade presente no texto escrito. Finalizando seu estudo,
o autor reforça a ideia da influência da oralidade na escrita
ao apontar que seu objetivo, ao efetuar tal estudo era “do-
cumentar certas tendências coletivas da língua coloquial no
Brasil, ou mais especialmente no Rio de Janeiro” (MATTOSO
CÂMARA, 1957, p. 95).
Lemle (1978) também aborda os desvios da norma em
textos de alunos do MOBRAL-Rio. A autora efetuou seu es-
tudo a partir da Sociolinguística Quantitativa, identificando
regras variáveis que dependem de contextos linguísticos
e sociais. Paiva (1984), sob orientação de Miriam Lemle,
também analisou questões relativas à norma em sua dis-
sertação de mestrado em que compara textos de alunos
de uma escola municipal do norte do Rio de Janeiro com
textos de alunos de uma escola particular da zona sul da
cidade. A pesquisadora identificou “erros” resultantes da
interferência da oralidade e “erros” ortográficos, concluindo
que o dialeto dos alunos da escola municipal era o fator
responsável pelo maior número de “erros” comparados com
os da escola particular.
Outra pesquisa direcionada a tal fenômeno é a de
Bortoni-Ricardo (2005), na qual aplica a técnica de análi-
se e diagnose de erros, que, segundo a autora, “permite a
identificação dos erros, bem como a elaboração de material
didático destinado a atender às áreas cruciais de incidência”
(2005, p. 53).

122
A autora aponta quatro categorias de erros, que se se-
guem:
1. Erros decorrentes da própria natureza arbitrária do
sistema de convenções da escrita;
2. Erros decorrentes da interferência de regras fonoló-
gicas categóricas no dialeto estudado;
3. Erros decorrentes da interferência da regras fonoló-
gicas variáveis graduais;
4. Erros decorrentes da interferência de regras fono-
lógicas variáveis descontínuas. (BORTONI-RICARDO,
2005, p. 54)
Como se pode constatar, apenas a primeira categoria
não tem relação com a oralidade, pois diz respeito à questão
ortográfica, um exemplo desta ocorrência seria a troca de
letras com semelhança fonética, como em tassa/taça. As
outras três são, como afirma a pesquisadora, “decorrentes
da transposição dos hábitos da fala para a escrita” (2005,
p. 54) e se distiguem entre si. A segunda categoria se carac-
teriza pela interferência de regras fonológicas categóricas,
ou seja, seriam fenômenos sempre presentes no dialeto em
questão, um exemplo dessa ocorrência seria a “neutraliza-
ção das vogais anteriores /e/ e /i/ e das posteriores /o/ e
/u/ em posição pós-tônica ou pretônica” (2005, p.56), como
em cantu/canto. A terceira categoria se constitui da inter-
ferência de regras fonológicas variáveis graduais, portanto
diz respeito a ocorrências que dependem de determinados
fatores, pelo fato de serem variáveis, e que não são estig-
matizadas, pelo fato de serem graduais; um exemplo deste
fenômeno seria a monotongação de ditongos decrescentes,
como em fera/feira. A última categoria se distingue da
terceira por se tratar de fenômenos que diferenciam os fa-
lantes e os definem, estando “presentes no repertório verbal
de alguns estratos e ausentes na linguagem dos demais”
(2005, p.56), um exemplo desse fenômeno seria a ausência
de concordância verbal, como em nóis vai.
A autora utiliza o termo “erros” para os desvios da nor-
ma e, em estudo realizado em 2006, justifica a utilização
de tal termo. Segundo Bortoni-Ricardo (2006), a fala prevê

123
a variação, já a escrita não, ou seja, devem-se respeitar as
variadas formas de expressão linguística na modalidade
oral, entretanto “na modalidade escrita, a variação não está
prevista quando uma língua já venceu os estágios históricos
da sua codificação. A uniformidade de que a ortografia se
reveste garante sua funcionalidade.” (2006, p. 273) Borto-
ni_Ricardo ainda comenta o papel do professor na tarefa de
corrigir os alunos na modalidade escrita e afirma:
Considerar uma transgressão à ortografia como um erro
não significa considerá-la uma deficiência do aluno que
dê ensejo a críticas ou a um tratamento que o deixe hu-
milhado. O domínio da ortografia é lento e requer muito
contato com a modalidade escrita da língua. Dominar bem
as regras de ortografia é um trabalho para toda a trajetória
escolar e, quem sabe, para toda a vida do indivíduo.
O presente estudo não utilizará o termo “erro”, entretanto
corrobora as ideias de Bortoni-Ricardo, ao afirmar que a
escrita não permite a variação linguística.

2. Análise dos dados


Nesta parte, serão comparados (i) dados extraídos da
monografia de Lini (2007) em que a estudiosa analisou
textos de alunos da 4ª série do ensino fundamental de uma
escola pública de Cambé-PR, buscando os desvios da norma
e comparando-os com dados de manuscritos do século XVIII
e (ii) dados extraídos da tese de Almeida Baronas (2005),
em que a pesquisadora analisou a fala de informantes da
zona rural buscando traços do falar rural. Tal comparação
se dará com o objetivo de identificar uma possível relação
entre as características do falar rural e os desvios da norma,
comprovando a provável interferência da fala na escrita. A
composição dos corpora se justifica pela proximidade tem-
poral e local, enquanto o estudo de Lini se deu em 2007,
na cidade de Cambé-PR, muito próxima a Londrina PR; o
de Almeida Baronas, se deu em 2005, no distrito da cidade
de Londrina, nomeado Paiquerê.
A seguir, serão apresentados os fenômenos ocorridos nos
textos dos alunos da escola de ensino fundamental para
posteriores comentários, a partir dos casos presentes no

124
falar rural. Ressalta-se que houve uma seleção dos dados,
uma vez que se buscou identificar o que há em comum
entre os dois corpora; os casos que se restringem à ques-
tão ortográfica, por exemplo, por dizer respeito às próprias
convenções da escrita, não estão presentes, já que ocorrem
apenas no texto escrito:
a) neutralização das vogais e e i (LINI, 2007, p.39).
b) neutralização das vogais o e u (LINI, 2007, p.39).
c) monotongação de ditongos decrescentes (LINI, 2007,
p.40).
d) queda do /r/ final nas formas verbais (LINI, 2007,
p.40).
e) ditongação (LINI, 2007, p.41)
O item (a) é comprovado com a presença, no corpus, dos
termos presenti, conviti, consigui, bronsiar/ bronsiada e o
item (b) com o termo engulia. Trata-se da interferência do
fenômeno alçamento, comum no falar rural. No estudo de
Almeida Baronas ocorre tal fenômeno em diversos momen-
tos de fala dos informantes, ocorridos nos seguintes termos:
nutícia (AM), prifiru (AM), ligítimu (AM), dipois (CM), impididu
(CM), mintira (CM), pricisa (CM), iscutu (FF), subrinha (FF),
siguinu (FF), sigui (FF), siguru (GM), istudu (HF)3(ALMEIDA
BARONAS, 2005, p.102).
Nesses vocábulos, ocorre o fenômeno do alçamento, fato
considerado natural no dialeto caipira por Amaral (1920,
p. 49).
Castro (1995) estudou a harmonização vocálica – “ele-
vação ou fechamento das pretônicas /e/ e /o/ e/i; o/u
seguidas de uma tônica alta (/i/ ou /u/)” (CASTRO, 1995,
p. 243) – nos dados do Atlas Prévio dos Falares Baianos
(APFB). A autora pesquisou a ocorrência de 29 vocábulos
que considerou relevantes para tal estudo e constatou que
“a elevação das pretônicas /e/ e /o/, quando seguidas de
tônica alta, é uma tendência bastante notável na Bahia”,
reconhecendo o contexto tônica alta como desfavorecedor
da abertura das pretônicas /e/ e /o/.

3 As letras correspondem à ordem dos informantes (A/B/C/D...) e ao sexo (M e F).

125
É interessante ressaltar que essa alteração ocorre em
outras variedades do português brasileiro e do português
europeu, independentemente de se tratar de variedade
urbana ou rural.
O item (c) ocorre nos termos hove, janero, mangedora,
pexaria, quemadinho, presentes no corpus de Lini (2007,
p.40); este fenômeno também se faz presente no corpus de
Almeida Baronas (2007, p.140-142) nos seguintes casos:
1. Monotongação de ei para e: di primeru (BF), primera
(BF), bera (CM), cumpanheru (CM), primeru (CM, HF,
DF), dinheru (DF), infermera (DF), dexava (HF), dexô
(HF), tercera (FF).
2. Monotongação de ou para o: otru (AM, BF, GM, HF),
ota (BF), istragô (CM), pocu (CM), ô (DF. EM), otu (DF),
otus (DF), ropa (DF, HF), sô (DF, HF), vô (DF, EM), otra
(GM, HF), tocô (HF), vortô (HF).
3. Monotongação de ai para a: baxu (GM)
Segundo Amaral, a redução de ei para e se dá pelo con-
tato com a consoante seguinte ao ditongo. Conforme aponta
o autor, o ditongo ei “reduz-se a ê quando seguido de r, x ou
j” (AMARAL, 1920, p. 50). Já em relação ao segundo caso
de ditongos, o autor afirma que o ditongo ou, acentuado ou
não, no dialeto caipira, contrai-se em o.
Embora Amaral descreva esse processo como próprio
do dialeto caipira, pode-se afirmar que o fenômeno da
monotongação se constitui num traço muito comum na
língua falada em geral. Paiva (1998a) aborda tal tendência
a partir da análise da redução de ditongos ocorrida em
44 entrevistas do Projeto Censo de Variação Linguística no
Município do Rio de Janeiro. Para a autora, (1998a, p. 234),
“a redução dos ditongos decrescentes /ey/ e /ow/ a vogais
simples é mais um entre os diferentes processos de que a
língua se utiliza para evitar cadeias sintáticas complexas”,
não constituindo, pois, índice de variação diastrática, mas
resultando de fatores estruturais. Em outro estudo, Paiva
(1998b) procura analisar a relação entre a tendência de
reduzir os ditongos e os fatores socioculturais. Para isto,
verifica se variáveis estratificadas (escolarização, sexo,
idade) e variáveis não estratificadas (mercado ocupacional,

126
sensibilidade lingüística, mídia e renda) influenciam a su-
pressão da semivogal dos ditongos e conclui haver apenas
uma leve e parcial influência das variáveis estratificadas
escolarização e idade nos falantes adultos.
Portanto, pode-se afirmar que a redução dos ditongos já
constitui um fenômeno natural na fala coloquial, não sendo
uma característica estritamente relacionada ao falar rural
nos dias atuais.
Melo (1981, p. 79), ao abordar tal processo, recusa a
possibilidade de ele se dar por influência africana, conforme
aponta Mendonça (1935, p. 118). Para Melo, tal fato resul-
ta de influência latina. Paiva (1998a) segue a mesma ideia
de Melo, afirmando que a tendência de evitar os ditongos
é “atestada no português ao longo de toda a sua história”
(1998a, p. 219), pois, no latim vulgar, já se evidenciava tal
tendência.
Antes desses autores, Boléo já afirmava:
A redução dos ditongos ei a ê e ou a ô– bêjo, pêxe, ôro,
‘dêxa de brincadêra’– não é facto lingüístico próprio
do Brasil: encontra-se em várias regiões de Portugal,
e com bastante freqüência. Na Beira Baixa, província
que conheço melhor, é êle correntíssimo. (BOLÉO, p.
1943, p. 24)
Reforçando as ideias citadas, Delgado (1951) apresenta
em seu estudo casos de monotongação ocorridos em Por-
tugal como, por exemplo, “otro” e “roxinol”.
Também Cintra (1970) aponta a possibilidade da origem
européia para tal fenômeno. O autor verificou a distribuição
dos ditongos oi e ei e suas variantes em Portugal e constatou
que, em determinadas regiões, se conservam os ditongos em
sua forma original, noutras regiões os ditongos se alteram
e há também a ocorrência da monotongação em algumas
localidades.
O item (d) se apresenta no seguinte termo do corpus de
Lini (2007, p. 40): viaja. Trata-se do fenômeno fonético clas-
sificado como apócope, também presente na tese de Almeida
Baronas (2007, p.154) nos termos: muié (AM), qualqué (BF),
quisé (BF), pa í (CM), í (DF)

127
Segundo Amaral (1920), no dialeto caipira tal ocorrência
é comum. Melo (1981, p. 81) entende que tal ensurdecimen-
to seja uma influência latina, recusando a tese de Mendonça
(1935, p. 115) de que haja aí uma influência africana. A
supressão de segmentos em fim de palavra é um processo
que caracteriza o latim vulgar e que se manteve presente e
atuante na história das línguas latinas.
Boléo (1943) afirma que, em Portugal, “a supressão do
r em frases é ainda mais freqüente nos falares populares.”
Com isso, a origem européia é a mais provável.
O item (e) ocorre nos seguintes termos da monografia de
Lini (2007, p. 41): pessouas, voceis, voua. Tal processo se
identifica nas seguintes expressões do corpus de Almeida
Baronas (2007, p.142-143): às veiz (AM), faiz (AM, BF, CM,
DF), gáis (AM), mêis (AM, CM, EM, GM), luiz (CM, FF), nóis
(CM, DF), trêis (GM, HF), veiz (GM, HF).
Identifica-se, nesses vocábulos, o processo de ditongação
das vogais seguidas de fricativas, fenômeno apontado por
Amaral (1920, p. 48), ao abordar as vogais do dialeto caipira:
“As tônicas, em regra geral, não sofrem alteração. O único
fato a assinalar com relação a estas é que, quando seguidas
de ciciantes (s ou z), no final dos vocábulos, se ditongam
pela geração de um i: rapaiz, mêis, péis, nóis, lúiz.”
Apesar de Amaral considerar o processo de ditongação
como marca do falar rural, tal traço é muito comum na
fala de muitas localidades, como no Rio de Janeiro, por
exemplo.
Pode-se perceber, pela análise dos dados, que há uma
semelhança entre os dados selecionados do corpus do tra-
balho de Lini (2007) e os dados de Almeida Baronas (2005).
A neutralização das vogais, a monotongação, a apócope e
a ditongação, que são fenômenos comuns no falar rural
estudado por Almeida Baronas (2005), estão presentes nos
textos analisados por Lini (2007), o que pode indicar uma
provável relação entre os dois corpora, ou seja, traços do
falar rural já não se reduzem a este falar, estando também
presentes no texto escrito.

128
Considerações finais
A modalidade escrita se diferencia da modalidade oral
por diversos fatores, pode-se até afirmar que são línguas
distintas, pois não é possível transpor as normas da fala para
escrita nem as da escrita para a fala. Apesar disso, é comum
haver transposição da oralidade no processo da escrita,
principalmente quando o aluno não tem familiaridade com
esta modalidade, ocorrendo incorreções de várias ordens.
O presente estudo pretendeu constatar tais afirmações,
procurando observar características do texto oral no escrito,
mais especificamente, do falar rural no texto de alunos de
escola pública. A partir da análise dos dados, contatou-se
a relação entre os corpora em estudo, pois verificou-se que
muitas características do falar rural já são presentes na
fala coloquial de uma grande parcela da população e não
são, necessariamente, restritas a falantes da zona rural.
Além disso, constatou-se que tais traços se estendem à
modalidade escrita, comprovando a influência da oralidade
na escrita. Com isto, espera-se contribuir com o ensino de
Língua Portuguesa, levando o professor a repensar sua prá-
tica de correção de textos, considerando os aspectos aqui
levantados, a fim de que possa agir com maior segurança e
eficiência na sala de aula, pois a partir do momento em que
ele sabe o motivo pelo qual os alunos apresentam dificulda-
des na escrita, saberá como lidar com elas.

Referências
ALMEIDA BARONAS, Joyce Elaine de. A influência da urbanização
na fala de informantes rurais. 2005. 272p. Tese (Doutorado em
Lingüística e Língua Portuguesa) – Universidade Estadual Paulista
Júlio Mesquita, Araraquara. www.fogãoalenha.com.br
AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: Anhembi,
1920.
BOLÉO, Manuel de Paiva. Brasileirismos: problemas de
método. Coimbra: Coimbra, 1943.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola
e agora?: sociolingüística e educação. São Paulo: Parábola,
2005.

129
______. O estatuto do erro na língua oral e escrita. In: GORSKI,
Edair Maria, COELHO, Izete Lehmkuhl (orgs.) Sociolingüística e
ensino: contribuições para a formação do professor de língua.
Florianópolis: EdUFSC, 2006.
CALVET, Louis-Jean. Sociolingüística: uma introdução crítica.
São Paulo: Parábola, 2002.
CASTRO, Vandersí Sant’Anna. A harmonização vocálica na Bahia
(dados do APFB). ALFA, São Paulo, v. 39, p.243-250, 1995.
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. 5.ed. São
Paulo: Scipione, 1992.
______. Diante das Letras: a escrita na alfabetização. São
Paulo: Fapesp, 1999.
CINTRA, L. F. Lindley. Os ditongos decrescentes ou e ei: um
esquema de um estudo sincrônico e diacrônico. In: Simpósio De
Filologia Românica, 1., 22 a 28 de agosto de 1958, Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Anais... Rio de
Janeiro: MEC, 1970.
COSERIU, Eugenio. Lições de lingüística geral. Rio de Janeiro:
Ao Livro Técnico, 1980.
DELGADO, Manuel Joaquim. A linguagem popular do Baixo
Alentejo. s. l: s. e., 1951.
LABOV, W. The social history of sound change on the island
of Martha’s Vineyard, Massachusetts. Master’s essay, Columbia
University, 1962.
LEMLE, Miriam. Heterogeneidade dialetal: um apelo à pesquisa.
Tempo Brasileiro, 53/54(Lingüística e ensino do vernáculo):
60-94, 1978
LINI, Vanessa. A escrita de alunos do ensino fundamental:
uma visão diacrônica. 2007. 57p. (Monografia) Especialização
em Língua Portuguesa. Universidade Estadual de Londrina,
Londrina.
MATTOSO CÂMARA JR, J. Erros escolares como sintomas
de tendências lingüísticas no português do Rio de Janeiro. In:
Dispersos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972.
MELO, Gladstone Chaves de. A língua do Brasil. 4.ed. Rio de
Janeiro: Padrão, 1981.
MENDONÇA, Renato. A origem africana no português do Brasil.
2. ed. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1935.

130
PAIVA, Maria da Conceição Auxiliadora. Supressão das semivogais
nos ditongos decrescentes. In: SILVA, Giselle Machline de Oliveira;
SCHERRE, Maria Marta Pereira. Padrões Sociolingüísticos:
análise de fenômenos variáveis do português falado na cidade
do Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1998a. p. 217-236.
_______. Atuação das variáveis sociais na supressão das
semivogais anteriores nos ditongos decrescentes. In: SILVA,
Giselle Machline de Oliveira; SCHERRE, Maria Marta Pereira.
Padrões Sociolingüísticos: análise de fenômenos variáveis do
português falado na cidade do Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998b. p. 325-333.
_______. Variação dialetal e aprendizagem de ortografia. In:
Anais do VIII Encontro Nacional de Lingüística. Rio, PUC,
1984. p.123-129.
PENHA, João Alves Pereira. Português rural de Minas numa
visão tridimensional. Franca: UNESP, 1997.
RODRIGUES, Ada Natal. O dialeto caipira na região de
Piracicaba. São Paulo: Ática, 1974.
VEADO, Rosa Maria Assis. Comportamento lingüístico do
dialeto rural – MG. Belo Horizonte: UFMG/PROED, 1982.

Recebido em 12/11/2009
Aceito em 22/12/2009

131
LEITURA E MEDIAÇÃO NOS RELATOS DE
ESTUDANTES DE LETRAS1
Ana M. S. Zilles2

Resumo: Este trabalho analisa relatos de estudantes de Le-


tras, identificando concepções de leitura e leitor que revelam
quem são os mediadores e que papel têm no aprender a
ler. Os relatos são de alunos de diferentes instituições, de
graduação e especialização. Cada um deveria contar seu
percurso de leitura desde seu início, cobrindo o período que
julgasse pertinente. Os resultados mostram que a leitura
não é vista como prática social, e sim como ato individual,
circunscrito à decodificação de texto, ou, no outro extremo,
à leitura prazerosa de textos literários. Ser leitor é, assim,
ser capaz de decifrar ou de gostar de ler. A leitura crítica é
raramente mencionada. O mediador lembrado é, em geral,
um membro da família, mas professores de literatura são
também mencionados. Conclui-se com observações rela-
cionadas à ausência do professor do ensino fundamental
nestes relatos e à visão de leitura e leitor que os mesmos
revelam.
Palavras-chave: leitura, mediação, educação escolar

Reading and its mediation in accounts written


by students of Letters
Abstract: In this paper I analyze accounts written by stu-
dents of Letters, identifying conceptions of reading and
reader that they reveal, who the mediators are, and the
role they have in learning to read. Accounts were written
by undergraduate and graduate students of different ins-
titutions. Each one should tell how they became readers
from the start covering the period of time they considered
important. Results show that reading is not perceived as
social practice, but as and individual act, circumscribed to
1 Este texto é uma versão revisada e ampliada de comunicação apresentada no Congresso Internacional
Linguagem e Interação, realizado em 22 a 25 de agosto de 2005 na UNISINOS, São Leopoldo, RS. A
análise dos dados contou com a colaboração de Hires Héglan Borges Batista, bolsista PIBIC/CNPq/UFRGS
até julho de 2005, sob minha orientação. Agradeço suas muitas sugestões e o rigor na análise empreendida
2 Professora e pesquisadora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), atuando na graduação
em Letras e no Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada.

POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P. 133-160 2009 issn 0104-687x


text decoding, or to enjoying reading literary texts. Thus,
to be a reader means to be able to decode a text or to enjoy
reading it. Critical reading/literacy is rarely mentioned. In
general, a family member is mentioned as the mediator of
the process, but teachers of literature are also mentioned.
I conclude with remarks about the lack of comments to
primary school teachers in these accounts and about the
conceptions of reading and reader the accounts reveal.
Keywords: reading, mediation, school education

O que as pessoas fazem nas narrativas nunca é por aca-


so, nem estritamente determinado por causa e efeito; o
que elas fazem é motivado por crenças, desejos, teorias e
outros “estados intencionais” (J. BRUNER, 2001:131).

É preciso problematizar a leitura


A importância de coletar relatos de leitura de alunos, nos
cursos de graduação ou de especialização voltados para a
formação de professores, como forma de compreensão in-
direta das práticas e concepções de leitura, estabeleceu-se
com clareza, em minha prática pedagógica na universidade,
como consequência da leitura de Dalla Zen (1997). Essa au-
tora defende o princípio de que a formação do professor não
pode estar dissociada de sua história pessoal e de vida, de
seus valores e crenças. Nesta obra, ela então traça seu pró-
prio percurso como leitora e como professora de leitura, que
caracteriza como processo social, de construção coletiva e
cooperativa dos sentidos atribuídos aos textos. De seu ponto
de vista, a tomada de consciência de sua própria trajetória
e a reflexão crítica sobre ela tem o potencial de conduzir a
uma definição mais clara de objetivos e de orientações para
o futuro profissional, e nesse sentido, levá-lo a buscar uma
prática mais condizente com tais objetivos e orientações.
Assim, ao debruçar-se criticamente sobre suas experiências,
o (futuro) professor pode definir valores para a leitura na
escola e na sociedade e persegui-los com seus alunos.
A projeção de uma prática de leitura bem informada e
crítica por parte dos professores, em que eles possam ser
mediadores eficientes da leitura realizada pelos alunos na
escola, contrasta com os resultados de um estudo levado a

134
cabo por Bohn (2004). Segundo ele, no estudo dos processos
de formação do leitor, há que se considerar o fato de que o
mediador preferentemente lembrado por relatos de leitores
é muito frequentemente um membro da família e poucas
vezes um professor. Dentre as reclamações expressas pelos
participantes de sua pesquisa, destaca-se “a ausência da
leitura e da escrita, das histórias infantis, na sala de aula
e na escola, as mágoas desta ausência” e ainda “a ausência
das bibliotecas na escola e na comunidade” e “a ausência
de livros e outros portadores de textos”.
Para este autor:
Parece haver, tanto no letramento como na alfabetização,
momentos mágicos em que o alfabetizando descobre o
valor quase mítico da linguagem, inserindo-se na quase
infindável criação de sentidos, nunca inteiramente do-
minados ou estabelecidos, móveis (Bakhtin /Volochinov,
1999), sempre no devir, próprio do ser humano. O pro-
cesso vitalício do letramento e o momento significativo
da alfabetização precisam, antes de tudo, de atitudes
apropriadas, de interlocuções, o aluno sentindo-se enun-
ciador, criando-se condições para a produção de sentidos;
e não há criança que resista à magia deste convite.
Dentro desta perspectiva, os materiais didáticos sofis-
ticados, apesar das histórias de apelo pedagógico na
alfabetização, não parecem o elemento vital para um
bem sucedido trabalho de alfabetização. Os convites
para significar, para usar a linguagem nas práticas
sociais; os sentidos escondidos nas próprias palavras
e [nas] dos outros, nos textos, formulando convites
para a interpretação, parecem mais importantes que
materiais sofisticados, produzidos nos laboratórios das
gráficas eletrônicas das modernas editoras do século
XXI (BOHN, 2004).
Assumindo uma postura semelhante à de Bohn, ado-
tamos a visão sociointeracional da leitura e do ensino da
leitura, valorizando acima de tudo a interlocução do aluno
com seus pares e seu professor para a co-construção de sen-
tidos, que são sempre situados histórica e socialmente. Os
“convites para significar” feitos aos alunos os valorizam tan-

135
to no plano cognitivo quanto no plano socioafetivo e abrem
múltiplas perspectivas para o seu desenvolvimento.
Também Terzi (2002), entre outros, caracteriza a leitura
como uma prática social historicamente situada, envolvendo
necessariamente a relação com o outro, na e pela interlocu-
ção com o outro. A autora ressalta dois aspectos que, a meu
ver, são fundamentais para que a interlocução professor-
aluno seja realmente benéfica e produtiva: a afetividade e a
valoração (TERZI, 2002, p.23). Vejamos mais de perto esses
dois construtos para avaliar melhor sua importância.
Terzi (2002, p. 23) assume “a existência de um compo-
nente afetivo capaz de interferir na interação, componente
este difícil de ser definido, mas que teria por base o respeito
mútuo e a confiança dos participantes.” Em suas próprias
palavras, trata-se de
confiança do aluno em que o professor está interessado
em seu progresso que buscará os meios necessários para
ajudá-lo em seu desenvolvimento; confiança do professor
em que o aluno deseja aprender e que, portanto, oferecerá
um feedback contínuo para que o adulto possa adequa-
damente direcionar sua prática. A confiança mútua pres-
supõe o respeito mútuo: respeito do professor para com o
aluno como ser humano, o conhecimento que traz consigo,
sua maneira de aprender, seu ritmo de aprendizagem;
respeito do aluno para com o professor como aquele que
sabe mais e que, como tal, está em condições de orientar
o processo ensino-aprendizagem (TERZI, 2002, p.24).
Já a valoração refere-se ao fato de que aquilo que está
sendo ensinado deve ter um valor, deve ter um sentido
tanto para quem ensina como para quem aprende. Para a
autora, então, “é esse sentido que faz com que os partici-
pantes considerem que vale a pena se engajar na interação”
(TERZI, 2002, p.24) e manter o engajamento na busca dos
objetivos propostos. A valoração tem caráter sociocultural
e “reflete crenças e valores sociais”.
Assim, prossegue Terzi (2002, p.24), “o objeto da apren-
dizagem é colocado em relação a uma experiência que lhe dá
sentido”. E para tornar mais clara sua proposta, a autora
exemplifica e detalha o conceito em questão:

136
Essa valoração poderá ter origens diversas, condicio-
nadas socialmente. Para o adulto, poderá originar-se
na consciência da importância do domínio do assunto
para o desenvolvimento da criança, na necessidade de
cumprir o programa, na preocupação com sua própria
avaliação profissional etc. Já a criança poderá participar
do processo ensino-aprendizagem pela própria relevância
atribuída ao saber, por considerar que tal conhecimento
lhe trará benefícios futuros, ou porque ele lhe possibilita-
rá a aprovação para a série seguinte; poderá engajar-se
na interação para agradar a professora, para atender
às expectativas dos pais. Porém, em qualquer dos casos
temos, na base, uma decisão de valor que reflete crenças
e valores sociais” (TERZI, 2002, p. 25).
Não é preciso grande esforço para se perceber que a
concepção sociointeracional de leitura não é a concepção
predominante, nem no contexto social amplo, nem nas
práticas escolares. Percebe-se facilmente, também, que as
práticas escolares muitas vezes não revelam adesão aos
valores decorrentes dos conceitos de afetividade e valoração.
De acordo com Britto (2003, p. XX),
A leitura, ao invés de ser compreendida como prática
social, é imaginada como um ato redentor, capaz de
salvar o indivíduo da miséria e da ignorância. O livro,
tomado como objeto sagrado, que encerraria saberes
extraordinários e ensinamentos maravilhosos, ganha
contornos de panacéia.
Sob essa perspectiva, o ato de ler é concebido como fun-
damental para o desenvolvimento intelectual dos sujeitos,
dele resultando, presumidamente, a construção de uma so-
ciedade equilibrada, em que haveria justiça, produtividade
e criatividade. Segundo Britto, a simples assunção de que
ler é um valor positivo em si mesmo não contribui para que
este objetivo possa ser alcançado. O autor, analisando o
porquê de se compreender a experiência de leitura de uma
forma absolutizada, aponta para a existência de cinco mitos
sobre leitura, assim especificados:
1. Cada leitor tem sua interpretação (p. 101)

137
2. O sujeito que lê é criativo, descobrindo novos caminhos
e novas oportunidades (p. 102)
3. Uma sociedade leitora é uma sociedade solidária (p.
103)
4. A leitura é fonte inesgotável de prazer (p. 103)
5. Quem lê viaja por mundos maravilhosos (p. 104)
Tanto os meios de comunicação quanto as editoras,
associações de leitura e instituições escolares difundem
amplamente esses mitos. Os slogans ou lemas das Feiras
do Livro nos dão exemplos cabais; vejamos alguns, colhidos
aleatoriamente da Feira do Livro de Porto Alegre: “Ler é des-
cobrir”, em homenagem aos 500 anos de descobrimento do
Brasil (45ª edição, 1999); “Ler é querer saber” (50ª edição,
2004); “Todas as emoções estão aqui” (53ª edição, 2007); “Ler
enriquece” (54ª edição, 2008) e “Tem sempre uma emoção
esperando por você” (55ª edição, 2009). Trata-se, é claro, de
um importante e tradicional evento de promoção do livro e,
por conseguinte, da sua leitura, mas não, propriamente, da
leitura em seu sentido social amplo, freireano, de leitura do
mundo e da palavra. Trata-se da promoção e do elogio da
leitura do livro como um valor em si, muitas vezes fetichizado.
Esses slogans, essas representações idealizadas da leitura
– de livros, não esqueçamos – constantemente repetidas na
mídia antes e durante a realização do evento, têm uma força
difícil de avaliar com precisão, mas inegável: reverberam e
convencem.
É o que se observa também em títulos de reportagens
de jornal que refletem os mitos descritos por Britto. Ve-
jamos apenas dois, aleatoriamente recolhidos do jornal
Zero Hora: “Ler é uma diversão” (Zero Hora, Caderno Meu
Filho, 22/06/2009, p. 1); “Ler faz diferença no mercado de
trabalho”3 (Zero Hora, Caderno Empregos & Oportunidades,
05/11/2006, p. 1)
Mais clara ainda é a reafirmação desses mitos no docu-
mento denominado Manifesto do Povo do Livro, disponível
no sítio da Feira de 2006 na Internet e transcrito na íntegra

3 O subtítulo que segue a este título é, ironicamente, assim: “Profissionais que falam bem e cometem poucos
erros ao escrever têm mais chances de conquistar um (sic!) vaga”. Na matéria lê-se que “é consenso que
os livros ajudam a reforçar como escrever o bom português e melhorar o raciocínio”.

138
como anexo a este artigo. Acrescentamos, a cada início de
parágrafo, o número da linha correspondente, de modo
a facilitar a referência. Vejamos uma primeira passagem
desse manifesto:
A leitura gera condições para decodificar, interpretar,
compreender e se fazer entendido, criando, assim, as con-
dições necessárias para o ser humano se comunicar com
os seus iguais. De tal forma que, ao promover o seu desen-
volvimento em todos os aspectos, o ato de ler o credencia a
buscar maior participação social e política e a exercer sua
cidadania em plenitude (Manifesto do Povo do Livro, linhas
15 a 19 no anexo).
Essa passagem está relacionada com os mitos 2 e 3
acima, uma vez que a leitura é vista como redentora, “ao
promover o seu [do leitor] desenvolvimento em todos os
aspectos”. Além disso, ao enfatizar a importância da leitu-
ra para “o ser humano se comunicar com os seus iguais”
e para o exercício pleno da cidadania, o Manifesto faz crer
que a leitura abre caminhos para um mundo mais justo
e solidário, como se todos os textos fossem “do bem” e
levassem o homem a superar suas mazelas, incertezas,
egoísmo, etc. A leitura, é bom que se diga, não “melhora”
as pessoas. Mas as interlocuções que se estabelecem entre
leitores (sejam amigos, familiares ou professores e alunos)
e entre os leitores e os autores podem contribuir para dar
sentido à leitura, mais ainda, à prática da leitura (e não ao
idealizado “gostar de ler”) como parte da vida.
Às vésperas de se comemorar os 200 anos da criação da
indústria do livro no país – que ocorreu em 1.808, com a
instalação da primeira tipografia e editora, a Impressão
Régia – faz-se urgente e indispensável tornar o Brasil
uma nação verdadeiramente de cidadãos leitores. A
prática social da leitura é, afinal, o caminho para onde
apontava a legião de brasileiros notáveis – integrada
por escritores como Monteiro Lobato e tantos outros –
como a estratégia de enfrentamento do drama da fome,
da pobreza, da ignorância e da violência urbana para
colocar o Brasil, aí sim, no rumo do desenvolvimento,
da justiça social e da solidariedade (Manifesto do Povo
do Livro, linhas 40 a 45 no anexo).

139
Nesta passagem, é evidente a inversão de valores: é “o
enfrentamento do drama da fome, da pobreza, da ignorância
e da violência urbana” que vai contribuir para que a socie-
dade se torne mais justa e permita a instauração da prática
efetiva da leitura, seja ela informativa, reflexiva, prazerosa,
acadêmica, ou ainda outras possibilidades. Mas, então,
estaremos falando de leitura como prática necessariamente
democrática (não elitista, não autoritária).
Tais mitos, constantemente reiterados na sociedade,
tendem a repercutir na forma como os estudantes (já pro-
fessores ou ainda não) compreendem e representam sua
formação leitora. Isso ficará evidente adiante nos resultados
da análise dos relatos.
Por ora, importa destacar que, com tais mitos sobre-
postos às atividades pedagógicas, dificilmente se alcançará
o que consideramos ser a finalidade última do ensino de
leitura na escola: o desenvolvimento da capacidade de ler
criticamente. Para isso, a interlocução aberta e democrática
em sala de aula é indispensável: é preciso que os alunos
se sintam confiantes e tenham oportunidades para ques-
tionar, comentar, avaliar; é preciso também que se sintam
apreciados e valorizados ao ser questionados, ao receber
comentários e avaliações que os façam avançar em sua
compreensão do mundo e de si mesmos.
Para que esse tipo de ensino ocorra, é essencial que os
educadores adotem o papel de mediadores da leitura. Evi-
dentemente, não estamos favorecendo o sentido de mediador
como aquele que dirige o aluno para uma única interpre-
tação legitimada dos textos. Por mediador, entendemos
o interlocutor da criança, que a valoriza como aprendiz e
atua no sentido de diversificar sua relação com a escrita,
com a leitura, com as funções da leitura. Para essa defini-
ção de mediador, baseamo-nos na concepção vygotskyana
de mediação. Por seu caráter sintético, transcrevemos o
comentário de Zacharias (2005, p. 1) a respeito:
“(...) enquanto sujeito do conhecimento o homem não tem
acesso direto aos objetos, mas acesso mediado, através
de recortes do real, operados pelos sistemas simbólicos
de que dispõe”. Neste sentido, a construção do conhe-

140
cimento precisa ser entendida “como uma interação
mediada por várias relações, ou seja, o conhecimento
não está sendo visto como uma ação do sujeito sobre
a realidade, assim como no construtivismo, e sim, pela
mediação feita por outros sujeitos. O outro social pode
apresentar-se por meio de objetos, da organização do
ambiente, do mundo cultural que rodeia o indivíduo.
Inevitável não lembrar de Elias Canetti (1987) contando-
nos sobre a importância da interação com o pai em seu
processo de tornar-se leitor:
Mas as mais belas conversas daquele tempo eram as
que eu mantinha com meu pai. Pela manhã, antes de
ir para o escritório, ele vinha ao quarto das crianças e
tinha palavras adequadas a cada um de nós (CANETTI,
1987, p. 49).
Alguns meses depois de meu ingresso na escola, acon-
teceu algo solene e excitante que determinou toda a mi-
nha vida futura. Meu pai me trouxe um livro. Levou-me
para o quarto dos fundos, onde as crianças costuma-
vam dormir, e o explicou para mim. Tratava-se de The
Arabian Nights, As Mil e Uma Noites, numa edição para
crianças. Na capa havia uma ilustração colorida, creio
que de Aladim com sua lâmpada maravilhosa. Falou-
me, de forma animadora e séria, de como era lindo ler.
Leu-me uma das histórias; tão bela como esta seriam
também as outras histórias do livro. Agora eu deveria
tentar lê-las, e à noite eu lhe contaria o que havia lido.
Quando eu acabasse de ler este livro, ele me traria outro.
Não precisou dizê-lo duas vezes, e, embora na escola eu
começasse a aprender a ler, logo me atirei sobre o ma-
ravilhoso livro, e todas as noites tinha algo para contar.
Ele cumpriu sua promessa, sempre havia um novo livro
e não tive que interromper minha leitura um dia sequer
(CANETTI, 1987, p. 50).
Tendo por base relatos como esse e os pressupostos te-
óricos antes referidos, apresentamos as questões que nos
propomos a discutir neste trabalho.

141
1. Questões propostas
Pela análise de relatos escritos de estudantes de gra-
duação e de egressos de Letras participantes de cursos de
especialização, este trabalho procura responder às seguintes
questões:
1. Qual é a concepção de leitura que transparece nos
relatos?
2. Quem é mencionado como mediador do processo de
aprender a ler ou de formar o leitor?
3. Que papel é atribuído a este mediador?
4. Em que eventos de leitura familiares ou escolares o
mediador é lembrado?
5. Qual é a concepção de leitor que os relatos revelam?

2. Sistemática e objetivo da coleta dos relatos


Os relatos analisados neste estudo foram obtidos em
diferentes momentos e instituições, em disciplinas de
graduação ou especialização que tratassem de Linguística
Aplicada ao ensino da língua na escola.
Foram analisados 51 relatos, sendo 10 de alunos de
graduação e 41 de alunos de cursos de especialização4,
dos quais a maioria já atuava como professor em escolas
da rede pública e da rede privada de ensino. O tempo de
experiência variou muito, entre estar recém começando
a trabalhar até ter mais de 20 anos de exercício do ma-
gistério. Convém registrar que havia, entre os alunos do
curso de especialização da UFRGS, três com formação em
Jornalismo. O quadro a seguir mostra a distribuição dos
relatos por instituição, nível de curso e ano em que foram
produzidos e coletados.
Instituição Nível N. de relatos Ano
La Salle Especialização 12 1998
UFRGS Especialização 29 2004
UNISINOS Graduação 10 2005
Total: 10+41=51, sendo 7 homens e 44 mulheres

4 As disciplinas ministradas foram as seguintes: Aquisição da Leitura (La Salle), Aquisição da Linguagem
(Especialização da UFRGS) e Leitura e Letramento (UNISINOS).

142
Em geral, os relatos foram produzidos antes da leitura
e discussão da literatura sobre aprendizagem da leitura e
da escrita, baseando-se, centralmente, nas concepções que
os estudantes traziam de sua formação e vivência prévias,
bem como de suas crenças. A solicitação foi a de que cada
um relatasse sua história pessoal de leitura, se possível,
resgatando o percurso desde o seu início, através da memó-
ria pessoal ou familiar, bem como através de documentos
ou outras fontes e cobrindo o período e as vivências que
julgassem pertinentes. Neste sentido, não havia perguntas
norteadoras específicas. Também não havia limites quanto
à extensão do texto a ser apresentado.
A atividade tinha como objetivo tornar os estudantes
conscientes de sua história de leitura, fazê-los refletir
sobre o papel do professor de língua e, com base nisso e
nas leituras especializadas, traçar o perfil do professor de
leitura que desejavam ser. Procurava-se desenvolver uma
visão crítica da leitura ou da falta de leitura na escola, bem
como a consciência da importância de experiência com a
leitura em ambiente familiar no desenvolvimento posterior
das crianças na escola. Além disso, as discussões dos re-
latos e o estudo sobre leitura e ensino de leitura buscavam
desenvolver a percepção das funções da leitura na vida em
sociedade e das relações entre as concepções de leitura e
leitor, de um lado, e história social, de outro.

3. Procedimentos de análise dos relatos


A idéia de realizar a análise das concepções de leitura,
leitor e mediação surgiu da discussão desses relatos com
seus autores, em sala de aula, e do fato de que a figura do
mediador raramente era o professor das séries iniciais ou o
professor de língua do ensino fundamental. Optamos por fa-
zer a análise de conteúdo dos relatos, procurando responder
às questões acima mencionadas. Cada relato recebeu um
número que o identificasse, relacionado com a instituição
onde fora coletado e o respectivo ano de coleta.
Após a leitura cuidadosa dos relatos, procedeu-se à
identificação dos temas tratados, fazendo-se um extensivo
e detalhado levantamento (tabulação), ao qual acrescenta-

143
mos citações e referências às respectivas fontes, usando-se
a numeração antes mencionada.
Os temas tratados constituíram grandes categorias de
análise, dentro das quais se estabeleceram tantas possibi-
lidades quantas haviam sido as mencionadas. Por exemplo:
para mediador registraram-se as respostas: mãe, pai, avó,
avô, irmão mais velho, irmã mais velha, professor alfabeti-
zador, professor de literatura do ensino médio, etc.
Feito o levantamento, selecionamos os conteúdos que
pareceram essenciais para a elaboração de uma repre-
sentação das representações de leitura, leitor e papel do
mediador no processo de tornar-se leitor. Evidentemente,
essas representações estavam limitadas ao que os grupos de
alunos haviam produzido. Nosso interesse não era buscar
representatividade no sentido estatístico, mas sistematizar
aspectos que pareciam comuns aos relatos independente-
mente de terem sido produzidos por pessoas na casa dos 20
anos, recém-formadas e com pouca experiência de ensino,
ou por pessoas nas casas dos 30 ou 40 anos, formadas há
mais tempo e, em muitos casos, com larga experiência de
ensino, inclusive nas séries iniciais. Chamava a atenção
também que os aspectos comuns apareciam tanto em re-
latos de alunos de graduação como de especialização, de
diferentes instituições e localidades, o que foi interpretado
como um argumento a favor do caráter autobiográfico dos
relatos, ou seja, os alunos estavam de fato atendendo ao
pedido de contar com base na memória pessoal ou fami-
liar, sem se preocupar em fazer uma reflexão acadêmica
a respeito do tema proposto. Mais importante, contudo, é
que o fato de termos encontrado muitas relações entre o
conteúdo dos relatos e os mitos sobre leitura descritos por
Britto (2003), como veremos a seguir, reforça a generalidade
desses mitos na sociedade brasileira, além de trazer à tona,
como no estudo de Bohn (2004), “silêncios e reclamações”
a respeito do papel da escola em relação a seu papel mais
óbvio: ensinar a ler.
Realizamos apenas uma contagem simples das res-
postas, sem submetê-las a qualquer tipo de tratamento
estatístico. Uma das razões para esta escolha é a de que
os relatos foram obtidos em momentos e instituições dife-

144
rentes e depois reunidos para análise, sem que se tivesse a
pretensão de, assim constituir uma amostra representativa
dos estudantes da área de Letras (futuros) professores. A
outra razão tem a ver com o fato de que a base de nossa
análise são relatos de diferentes extensões e graus de deta-
lhamento; a comparação das “respostas” interessa mais por
seu conteúdo e diversidade do que por sua quantidade. De
qualquer modo, acreditamos que as contagens de respostas
apontam para tendências no modo como os autores dos
relatos representam sua história como leitores.

4. O que dizem os relatos analisados


Os resultados da análise dos relatos são apresentados
sob a forma de respostas às perguntas inicialmente pro-
postas.

Concepção de leitura
Os resultados mostram que, nos relatos, a leitura não
é vista como prática social, e sim como ato individual, por
vezes circunscrito à decodificação de texto ou ao resultado
da alfabetização, ou, no outro extremo, à leitura prazerosa
de textos literários. A leitura crítica praticamente não é
mencionada, a não ser quando diz respeito a julgamentos
do tipo “achar um texto bom ou ruim”.

Mediador
O mediador lembrado é, na maior parte das vezes, um
membro da família: mãe, avós, irmãos, apesar da gritante
pobreza de materiais de leitura disponíveis, como se observa
nos exemplos a seguir:
Vivi numa casa, muito solidária, porém não possuía
livros. Ausente de histórias infantis, lá havia, apenas,
as histórias de vida contada por nossas vizinhas. O
trabalho se fazia mais presente que os livros. (Relato
10 – Especialização, UFRGS dez/04)
Lá em casa não havia livros. Eles começaram a aparecer
quando minha mãe iniciou seu ensino superior. (Relato
2 – Graduação, Unisinos 2005/1)

145
Em nossa análise, as pessoas mencionadas como me-
diadores foram divididas em dois âmbitos da vida social:
a) Âmbito familiar: familiares ou pessoas que convivem
com a criança neste ambiente (pai, mãe, avós, tios, ir-
mãos, padrinhos, amigos, babá etc.).

b) Âmbito escolar: professores ou pessoas desse ambien-


te (alfabetizadores, professores da pré-escola ao ensino
superior, supervisores, bibliotecários, diretores etc.).
Na figura 1, caracterizamos as menções de mediadores,
quanto ao gênero, no âmbito familiar. As chamadas refe-
rências genéricas são aquelas em que nenhuma pessoa em
particular é mencionada, mas há, ainda assim, menções,
como a de ler-se em casa etc.

Figura 1: Mediadores mencionados nos relatos, em números


absolutos

Foram, no total, 65 menções a mediadores no âmbito


familiar, sendo 43 delas a mulheres e 18 a homens (menos
que a metade). Observando a figura 1, fica claro que, no âm-
bito familiar, o mediador mais lembrado é a mãe e, no geral,
as figuras femininas. Pode-se supor que essa configuração
esteja associada com o fato de que os eventos lembrados, em
sua grande maioria, estão localizados na infância, período
em que, em nossa sociedade, é mais comum a criança ficar
sob a guarda da mãe ou de mulheres cuidadoras. É preciso

146
registrar, porém, que vários relatos mencionam o fato de a
mãe ser professora, diretora de escola ou atuar em órgão
ligado à educação: ter tido acesso a uma formação escolar
mais ampla pode resultar na maior associação entre gênero
feminino e formação intelectual infantil.
Quanto ao âmbito escolar, foram encontradas 44 men-
ções referentes a mediadores da ou na escola. Chama
atenção que um quarto delas (11 menções) não evocam a
figura específica de um professor, apesar de se situarem
temporalmente em algum período escolar. A distribuição
detalhada das 33 menções específicas (a professores) está
representada na figura 2.
Figura 2: Mediadores professores mencionados nos relatos,
em números absolutos

A professora do período de alfabetização é lembrada com


mais freqüência, mas como mediadora da aprendizagem da
leitura concebida como decodificação do material escrito,
tendo, muitas vezes, seu nome próprio explicitamente cita-
do no relato. Esse fato chamou atenção, porque reflete, ao
que parece, uma lembrança bem individualizada e, pode-se
supor, marcante.
Em contrapartida, verificam-se poucas menções ao
professor das séries iniciais (apenas 5) e das séries finais
(8 menções). Essa ausência por silenciamento, como sus-
tenta Bohn, é acompanhada por referências ao professor do
ensino fundamental (séries iniciais e finais) como alguém

147
que obriga a ler, mas também como aquele que dá a opor-
tunidade do contato com os livros (em geral inexistentes
no âmbito familiar) ou que ensina a leitura de um “livro
inteiro”. De qualquer modo, ele não é representado como
um “professor de leitura”. Percebe-se, portanto, que a repre-
sentação deste período escolar leva à concepção de leitura
como decodificação, e ao mediador escolar como aquele que
ensina o código. Já nas poucas referências a professores
do ensino médio e universitário (5 menções), a concepção
de leitura passa a ser a do “gostar de ler” ou mesmo a de
“ler de verdade”. Para alguns estudantes, essa experiência
aparece como um resgate de algo que, de alguma forma,
estavam perdendo, resgate propiciado pela interlocução que
media esse desenvolvimento.
Neste ponto, é interessante ressaltar a relativa seme-
lhança entre o que dizem nossos relatos e os resultados da
Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil de 2008. Segundo
este documento, as pessoas que mais influenciaram os lei-
tores a ler foram a mãe (ou responsável mulher), com 49%
das indicações; a professora, com 33% de indicações; e,
em terceiro lugar, o pai (ou homem responsável), com 30%.
Cabe esclarecer que essas respostas foram estimuladas e
se podia escolher duas alternativas; além disso, é impor-
tante destacar que essas respostas foram dadas apenas
por leitores que haviam dito gostar de ler. Nesse sentido,
há diferenças entre a metodologia usada na pesquisa do
Instituto Pró-Livro e a que realizamos com nossos alunos
(futuros) professores.
Cunha (2008), ao encerrar sua análise da Pesquisa
Retratos da Leitura no Brasil, não só revela um resultado
fundamental sobre a importância do mediador, como tam-
bém apresenta uma perspectiva alentadora. Diz ela:
na pergunta sobre quem mais influenciou o entrevistado
no seu gosto pela leitura, a resposta “ninguém” vem sendo
cada vez menos acionada pelos mais jovens: de 34% entre
os mais velhos, a opção vai decrescendo até os mais novos,
para os quais ela chega a apenas 5%. E, pelo menos na me-
mória dos entrevistados, os professores atualmente lêem
mais para seus alunos – o que é uma espécie de “dica”.

148
Papel do Mediador
Nos relatos analisados, o contato com a leitura pode se
dar de várias formas, dependendo do mediador e da reali-
dade da criança. Nesta categoria, procurou-se caracterizar
as atitudes do mediador que o relator lembra e considera
como contribuições para sua história de leitura.
a) Alfabetizar: o mediador ensina a decodificar, indepen-
dente do método utilizado ou se isto foi feito na escola
ou em casa.
Exemplo: “Eu comecei a ser alfabetizado pela minha
mãe. Antes de casar ela trabalhou com alfabetização de
crianças na periferia de Uruguaiana” (Relato 23, Espe-
cialização – UFRGS dez/2004).
b) Ensinar a ler: o mediador apresenta a possibilidade
da leitura de textos inteiros.
Exemplo: “Mesmo depois de termos sido alfabetizados,
a professora continuava as leituras de livros infantis”
(Relato 14, Especialização – UFRGS dez/2004).
c) Ensinar a gostar de ler: o mediador desperta o gosto
pela leitura.
Exemplo: “Houve muito incentivo para a leitura e, prin-
cipalmente, por parte da minha mãe. (...) Assim, passei
a gostar de ler, escrever e desenhar” (Relato 16, Espe-
cialização – UFRGS dez/2004).
d) Formar um “bom leitor”: tendo a concepção de um
leitor como intelectual, o mediador se preocupa em
formar um “bom leitor” - aquele que leu textos bons,
não “duvidosos”.
Exemplo: “Acredito que me tornei leitora quando entrei
na faculdade, confesso que foi um pouco tarde, mas foi
a partir daí que comecei a ter acesso a bons livros, tinha
também sugestões de leituras dadas pelos professores”
(Relato 5, Graduação – Unisinos 2005/1).
e) Proporcionar acesso à leitura: muitos alunos recla-
mam da dificuldade de ter acesso aos materiais de
leitura. Nesta categoria, o mediador é apontado como
responsável pelo acesso à leitura, seja comprando ou

149
emprestando livros, seja levando os autores dos relatos
a bibliotecas.
Exemplo: “Lembro-me do primeiro livro, O gato de botas,
que depois de muita insistência e expectativa se iria tê-lo
ou não, acabei ganhando de minha madrinha” (Relato
12, Especialização – La Salle jun/1998).
f) Ler para a criança: o mediador lê para a criança ainda
analfabeta ou em processo de alfabetização.
Exemplo: “Comecei a admirar a escrita entre os quatro
e cinco anos de idade, quando via meus irmãos mais
velhos fazerem os temas de casa e lerem para mim as
histórias que continham nos livros deles” (Relato 8,
Graduação – Unisinos 2005/1).
g) Oferecer um bom exemplo: o mediador é visto como
exemplo de leitor e, por isso, como incentivador da
leitura.
Exemplo: “Na imagem de meu pai, já idoso, o exemplo
do leitor contumaz, ávido por informação” (Relato 7,
Especialização – La Salle jun/1998).
h) Contar histórias: mesmo não sendo a partir de textos
escritos, o contar histórias é apontado como impor-
tante papel do mediador para a formação do leitor.
Exemplo: “Acreditando encontrar o mundo das histórias de
meu pai, saí à procura de livros, aprender a ler me tornou
independente das criativas histórias de meu pai, pude sen-
tir o prazer de reinventar as histórias que lia, imaginando
um colorido próprio baseado na minha sensibilidade pes-
soal” (Relato 6, Especialização – La Salle jun/1998).
Em todas essas referências, o mediador aparece como
interlocutor da criança, como alguém que, por acompanhá-
la, por convidá-la a ler, abrir-lhe o acesso aos textos, cria as
condições para seu desenvolvimento, em maior ou menor
grau. Estes processos são lembrados principalmente em
relação ao ambiente familiar.
Eventos de leitura em que o mediador é lembrado
Incluem-se neste item os casos em que os autores dos
relatos falam da pessoa do mediador ou da própria me-

150
diação. Também estão divididos em eventos dos contextos
familiares ou escolares.
a) Eventos de Leitura Familiares:
• Contar histórias antes de dormir: estabelecer o hábi-
to de contar histórias para a criança nesse momento
específico.
Exemplo: “Lembro de quando eu era pequena, que minha
mãe contava histórias para eu e o meu irmão dormir, eu
adorava” (Relato 3, Graduação – Unisinos 2005/1).
• Brincar de escolinha com parentes, outras crianças, bo-
necos ou amigos imaginários como alunos: a criança se
coloca na posição de professor para seus mediadores.
Exemplo: “Acredito que o que me ajudou bastante a ter
uma leitura razoável e, conseqüentemente, a gostar de
ler foi a forma de como eu fazia: passava horas e horas
brincando de dar aulas com um quadro enorme que
tinha pendurado na área da minha casa. Os meus alu-
nos não eram bonecas ou imaginários, eram meus tios,
minha avó, minha mãe ou quem chegasse na hora da
aula, eu lembro que eles viviam brigando comigo, pois
eu lia os textos em voz alta e todo mundo que passava
na rua ficava olhando” (Relato 1, Graduação – Unisinos
2005/1).
• Ajudar nas tarefas da escola: o mediador acompanha e
ajuda a criança nas tarefas escolares ou as corrige.
Exemplo: “Minha mãe preparava um copo enorme de leite
com chocolate para eu tomar enquanto estudava. Muitas
vezes ela me ajudava quando eu tinha dúvidas e também
quando eu tinha que pintar um desenho muito grande e
não conseguia terminá-lo ela fazia o finalzinho pra mim”
(Relato 18, Especialização – UFRGS dez/2004).
• Dar aulas: o mediador do âmbito familiar alfabetiza a
criança ou lhe dá aulas de fato em casa.
Exemplo: “Já entrei na escola alfabetizada, pois era a
última filha, e a minha professora e companheira em
casa era a minha irmã mais próxima (meus pais mal
sabiam ler e escrever)” (Relato 5, Especialização – UFR-
GS dez/2004).

151
• Promover reunião familiar com leitura: momento em
que a família se reúne e se verifica algum evento de
leitura, como contar histórias, discutir notícias, ler
juntos algum texto ou mesmo a Bíblia.
• Ouvir leitura em voz alta: ler textos da escola ou quais-
quer outros em voz alta para familiares.
• Fornecer materiais de leitura: o mediador leva a
criança a comprar ou compra para ela livros, revistas,
etc.
• Realizar socialmente a prática de leitura: o mediador
lê na frente da criança e isto é citado como incentivo
à leitura.
• Propiciar jogos relacionados com leitura: jogos que
envolvam números, letras, enfim, leitura de alguma
forma.
b) Eventos de Leitura Escolares:
• Promover a Hora da Rodinha: momento da rotina esco-
lar em que os alunos contam alguma história (relacio-
nada a livros, mas também a filmes e histórias orais)
ou um acontecimento de sua vida para professores e
colegas.
• Promover a Hora da Leitura: juntos, professor e alunos
leem um texto, ou o professor distribui livros para os
alunos lerem.
• Frequentar a biblioteca: o mediador acompanha os
alunos à biblioteca para que possam examinar e es-
colher materiais de leitura.
• Dar aula propriamente dita: durante a aula ou em
alguma atividade o professor incentiva a leitura ou a
torna interessante.
• Conversar fora da sala de aula: o mediador discute ou
indica leituras extraclasse.
• Ler em voz alta individualmente: o mediador lê em voz
alta para toda a turma, oferecendo-lhe modelos dessa
modalidade de leitura.
• Ler em voz alta em coro: o mediado lê em voz alta com
toda a turma.

152
• Incentivar a leitura: muitas vezes, o professor é citado
como incentivador da leitura, porém, não há identifi-
cação exata da ação executada.
• Emprestar livros: o mediador escolar empresta seus
próprios livros, ajudando o aprendiz a ter acesso a
materiais de leitura.
• Contar histórias: mesmo que não sejam de livros, as
histórias são citadas como incentivadoras da procura
de outras leituras.
Observando os eventos lembrados, percebe-se, em sua
grande maioria, uma grande diversidade e, ao mesmo tem-
po, o forte traço comum do caráter interacional das ações
realizadas pelos participantes. Comparando-se os eventos
citados nos dois âmbitos (familiar e escolar), encontramos
em comum as seguintes menções: ler com ou para o apren-
diz; fornecer materiais de leitura, sugerindo o que ler; contar
histórias; ensinar a ler (decodificar a escrita); promover mo-
mento específico de leitura. No entanto, parece haver maior
diversidade de atividades de leitura no âmbito familiar, em
relação ao qual foram mencionadas a brincadeira de faz de
conta envolvendo leitura (brincar de escolinha); a ajuda na
realização das tarefas escolares; ler frente à criança para
que ela presencie essa atividade; desenvolver jogos que
envolvam leitura de palavras, números, etc., atribuindo, ao
que parece, caráter lúdico à leitura. No âmbito escolar, além
de as atividades serem menos variadas na lembrança dos
autores dos relatos, são mais formais, mais institucionali-
zadas e, ao que parece, pouco lúdicas. Cabe refletir sobre
essa maior diversidade de atividades de leitura no âmbito
familiar e sua relação com os conceitos de afetividade e
valoração acima discutidos. A família parece estar sendo
mais bem sucedida do que a escola no sentido de respeitar
a criança, valorizar seus interesses e seus progressos, bem
como no sentido de criar um clima de confiança mútua que
embase o desenvolvimento sociocultural e, em particular,
das práticas de leitura.

153
Concepção de leitor
Como os exemplos citados já mostraram, tornar-se leitor,
nos relatos, é tornar-se capaz de decifrar o código escrito;
é também gostar de ler ou, ainda, ser capaz de evadir-se
deste para outros mundos. Pode-se, mesmo, dizer que os
mitos identificados por Britto transparecem amplamente
nos relatos analisados.
A grande lacuna é, precisamente, a falta de menção ao
desenvolvimento do senso crítico do leitor. A crença que
parece sobrepujar as demais nos relatos é, exatamente,
a de que “ser leitor” equivale a “gostar de ler”, uma visão
empobrecida e insatisfatória, particularmente se pensarmos
que se trata de relatos de (futuros) professores de leitura!
Na Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil há, nova-
mente, certas semelhanças com nossos relatos. Ao indagar
sobre as motivações dos leitores para ler livros, sobressai,
com 63% o prazer, gosto ou necessidade espontânea do
leitor; em segundo lugar aparecem a atualização cultural e
os conhecimentos gerais, com 53%; em terceiro lugar apa-
rece a exigência escolar, com 43%. Percebe-se, portanto,
a reafirmação (por milhões de brasileiros entrevistados)
da concepção segundo a qual é leitor aquele que gosta de
ler. Evidentemente, essa concepção está atrelada ao equa-
cionamento segundo o qual ser leitor é gostar de ler livros.
Ora, há tantos outros suportes de textos e tantas outras
práticas de leitura na sociedade que só nos resta dizer que
esta concepção é reducionista e excludente, além de ser
pouco democrática.

Considerações finais
Quando se trata de lembranças relacionadas com apren-
der a ler, o grande ausente dos relatos analisados (no sentido
de não ser lembrado, não ser mencionado) é o professor do
ensino fundamental:
“Não tenho nenhuma lembrança sobre o papel de
minhas professoras quanto à construção de sentido
nos textos lidos”. (Relato 1, UFRGS dez/2004).

154
É impossível não relacionar esse fato com a visão crítica
do trabalho escolar de leitura apresentada por Terzi (2002).
Se a escola reduz a leitura à decifração e limita seu escopo
a exercícios de interpretação voltados para a reprodução de
informações factuais que podem ser localizadas e copiadas
sem ser compreendidas, os autores dos relatos têm razão
de não lembrar desses eventos ao contar como se tornaram
leitores, e não meros decodificadores.
A visão de leitura e de leitor que os relatos revelam é
aquela que a escola preconiza e a sociedade sanciona. Os
mitos descritos por Britto transparecem claramente, num
retrato pouco auspicioso, a menos que a escola reveja suas
crenças, seus objetivos e seu modo de proceder no ensino
da leitura. É preciso que a leitura seja vista como prática
social, como ação cultural. E mais, é preciso reconhecer,
com Britto, que
O produto que resulta desta ação não é jamais a simples
acumulação de informações, não importa de que natu-
reza sejam estas, mas a representação da representação
da realidade presente no texto. Um valor, portanto. Um
valor que não é criação original do sujeito, mas algo que
se articula com o conjunto de valores e saberes social-
mente dados (BRITTO, 2007).
É o que se observa, ainda que parcialmente, neste trecho
do pungente relato que fez uma aluna:
O período da academia serviu para me tornar um ser
humano melhor e compreender que tenho o dever de
utilizar o conhecimento que adquiri, com todas as mi-
nhas limitações, para auxiliar as pessoas, mostrar que o
estudo pode ser o caminho para a liberdade, quem sabe
se a descoberta dos livros por parte da minha prima, sim
aquela que batia em mim e no irmão mais novo, não teria
dado a ela outro destino, diferente deste das seis crianças
mal nutridas e do companheiro violento, quem sabe meu
primo mais novo a quem eu dava aulas de brincadeira,
tivesse sido salvo da prisão, se tivesse passado pela cre-
che ou pela escola Lassalista, e meu irmão que tornou-se
um adulto desprovido de caráter e se formou na escola
da picaretagem, estivesse em uma faculdade ou em um

155
pós-graduação, a leitura foi o mapa que me guiou para
longe do caminho que me estava destinado no berço
(Relato 1 – Especialização, La Salle jun/98).
O papel redentor da leitura e da escola ainda transpa-
recem neste relato, apesar do senso crítico em relação à
realidade social. Parece faltar ainda a clareza sobre o caráter
interacional da leitura e da aprendizagem. Não foi a leitura
como um “bem em si” a chave para uma trajetória de vida
diferente daquela à que a autora do relato parecia condena-
da pela pobreza e pela exclusão social, e sim sua inclusão
em um ambiente onde o conhecimento resultava de uma
prática social na qual ela podia se inserir. Foi o acesso a
essas práticas e aos portadores de texto, às bibliotecas das
escolas que frequentou e à interlocução que se estabeleceu
a partir daí, que promoveu mudanças em sua vida, e não a
leitura em si como algo mágico.
Neste sentido, cabe retomar a reflexão de Britto sobre
a relação entre escrita e conhecimento. Para este autor,
“a idéia de um mundo da escrita diz respeito às formas de
organização da sociedade e do desenvolvimento do conhe-
cimento”, de modo que “não há como imaginar que seja
possível aprender a escrita [neste conceito se inclui a expe-
riência com a leitura] sem conhecer os conteúdos que a ela
se associam e, portanto, entrar neste mundo da escrita é,
de fato, entrar no mundo do conhecimento” (BRITTO, 2007,
p.26, grifos no original).
Acima de tudo, o que podemos verificar da análise em-
preendida é que os relatos repercutem o senso comum do
que seja leitura e a percepção de que as referências e valores
culturais das pessoas são determinantes em sua forma. Pela
leitura dos exemplos, podemos sustentar a interpretação
de que se trata de uma memória culturalmente construída,
como, aliás, não podia deixar de ser. Em outras palavras,
os autores dos relatos, frente ao tipo de solicitação que lhes
foi feita, tenderam a reproduzir um valor, uma forma de
compreender o real que se conforma à lógica predominante
do que seja leitura e conhecimento. Os mitos do que seja
a boa leitura não “nascem” da sua memória dos fatos vivi-
dos nem de sua experiência direta, mas da aprendizagem
e da incorporação de concepções de senso comum que se

156
reproduzem constantemente nos discursos da mídia e da
prática escolar.
Espero, assim, que a reflexão aqui empreendida tenha
o efeito que teve, nas salas de aula em que os relatos aqui
analisados foram colhidos, a reflexão que se fez pelo con-
fronto dos próprios relatos com o aporte teórico da literatura
acima apresentada. Acredito firmemente na constante pos-
sibilidade de melhorar a formação de professores e o próprio
ensino da leitura. Espero ter contribuído para isso.

Referências
BOHN, Hilário I. Os silêncios significativos nas histórias de
letramento e de alfabetização. VI Encontro do Celsul, UFSC,
Florianópolis, novembro de 2004.
BRITTO, Luís Percival Leme. Contra o consenso: cultura escrita,
educação e participação. Campinas: Mercado de Letras, 2003.
_______. Escola, ensino de língua, letramento e conhecimento. In:
Calidoscópio, v. 5, n. 1, jan/abr 2007. p. 24-30.
BRUNER, Jerome. A cultura da educação. Porto Alegre: Artmed
Editora, 2001.
CANETTI, Elias. A Língua Absolvida. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
CUNHA, Maria Antonieta. Acesso à Leitura no Brasil: considerações
a partir da pesquisa. In: Instituto Pró-Livro. Retratos da Leitura no
Brasil. 2008. p.12-17. Disponível no sítio www.prolivro.org.br.
DALLA ZEN, Maria Izabel. Histórias de leitura na vida e na
escola. Porto Alegre: Mediação, 1997.
TERZI, Sylvia. A construção da leitura. Campinas: Pontes,
2002.
ZACHARIAS, Vera Lúcia Câmara F. Vygostsky e a Educação.
2005. Fonte:
http://www.centrorefeducacional.com.br/vygotsky.html

Recebido em 05/08/2009
Aceito em 11/10/2009

157
ANEXO:
Manifesto do Povo do Livro
http://www.oei.org.br/manifesto_livro/index.php, acesso em
24/01/2008
1. O acesso ao livro e a outras formas de leitura – como jornais,
revistas e Internet – deve ser assegurado a toda a nação
brasileira.  Independentemente de credo, raça, faixa etária,
necessidade especial, escolaridade ou condição econômica, todo
brasileiro, como ser humano que é, deve ter garantido seu direito
inalienável à leitura – como meio de transmissão do conhecimento,
entretenimento, de desenvolvimento pessoal e profissional e,
portanto, de cidadania.
5. Em um país como o Brasil – onde apenas um entre cada quatro
habitantes está habilitado para a prática da leitura; onde nossas
crianças ocupam os últimos lugares nos estudos internacionais
sobre compreensão leitora; onde o índice nacional de leitura é de
menos de 2 livros lidos por habitante/ano; e onde a maior parte
dos milhões de alfabetizados nas últimas décadas tornou-se
analfabeta funcional – a leitura precisa e deve ser tratada como
uma prioridade nacional.
10. A Educação e a Cultura são áreas estratégicas dentro do
projeto do desenvolvimento nacional e da cidadania. A escrita
e a leitura constituem não só o mais forte amálgama entre elas
como o caminho indispensável para a formação do cidadão crítico,
emancipado, inserido em seu meio e capaz de modificá-lo. Embora
não seja a via única de acesso ao conhecimento e à informação
– o que compartilha com outras linguagens, como a visual e a
eletrônica –, o livro continua a ser a maior invenção do último
milênio e a ocupar um papel central na sociedade.
15. A leitura gera condições para decodificar, interpretar,
compreender e se fazer entendido, criando, assim, as condições
necessárias para o ser humano se comunicar com os seus iguais.
De tal forma que, ao promover o seu desenvolvimento em todos
os aspectos, o ato de ler o credencia a buscar maior participação
social e política e a exercer sua cidadania em plenitude.
19. As conquistas e os avanços obtidos nos últimos anos nas
esferas federal, estadual e municipal necessitam ser preservados,
mas não só. Precisam ser ampliadas e ganhar a dimensão que o
tema merece. Programas e projetos de acesso ao livro e às outras
formas de leitura, de formação de agentes multiplicadores (como
os educadores, os bibliotecários e os voluntários), de valorização

158
do ato de ler no imaginário coletivo, e, ainda, de fortalecimento
da economia do livro devem ser convertidos em política de estado
– acima dos governos e das pessoas.
24. Tornar a questão do livro e da leitura uma política pública
significa aprofundar o vínculo das ações de Educação e Cultura
e, sobretudo, dotar a área de uma estrutura administrativa e
orçamentos capazes de atender às grandes demandas existentes.
Os esforços feitos até agora pelos diferentes governos merecem
o devido respeito, porém ainda são insuficientes para o Brasil
começar a saldar essa dívida social com o cidadão e a cidadania,
com o livro e a leitura.
28. O Estado deve garantir as condições necessárias de acesso
ao livro gratuito aos seus cidadãos. A biblioteca é um serviço
público e dever do Estado, tal como a saúde e a educação. Para
tanto, o Estado deve cumprir, de forma cabal, a Política Nacional
do Livro e dar, a partir de 2007, prioridade total à revitalização
da biblioteca pública. É ela o meio mais eficiente de proporcionar
educação continuada à população e, dessa forma, ser instrumento
de democracia e de política social.
33. É, pois, fundamental e urgente que todos os municípios
brasileiros tenham pelo menos uma biblioteca e que a rede
existente – municipal, estadual, federal, escolar, universitária
e comunitária – seja fortalecida e reequipada para atender ao
cidadão brasileiro dentro dos padrões mínimos internacionais:
com bons e diversificados acervos de livros e outros materiais;
pessoal qualificado e estimulado; e recursos permanentes para
manutenção, atualização, formação e fomento. A Lei do Livro, a
Câmara Setorial e o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) devem
ser aprofundados e ganhar maior efetividade, materializados em
projetos, programas e investimentos, em todos os rincões do país,
sobretudo nas áreas menos favorecidas.
40. Às vésperas de se comemorar os 200 anos da criação da
indústria do livro no país – que ocorreu em 1.808, com a instalação
da primeira tipografia e editora, a Impressão Régia – faz-se urgente
e indispensável tornar o Brasil uma nação verdadeiramente de
cidadãos leitores. A prática social da leitura é, afinal, o caminho
para onde apontava a legião de brasileiros notáveis – integrada
por escritores como Monteiro Lobato e tantos outros – como a
estratégia de enfrentamento do drama da fome, da pobreza, da
ignorância e da violência urbana para colocar o Brasil, aí sim, no
rumo do desenvolvimento, da justiça social e da solidariedade.
Brasil, Setembro de 2006

159
CAPACIDADES DE LEITURA DE TEXTOS
MULTIMODAIS

Cláudia Graziano Paes de Barros1



Resumo: Na atualidade, as demandas sociais de leitura e
escrita têm exigido dos sujeitos capacidades de letramento
cada vez mais avançadas. Estudos recentes têm apontado
para a necessidade de se atentar para as diferentes lingua-
gens presentes em um texto, quer seja impresso ou digital.
Neste artigo, discutiremos as capacidades que se mobilizam
na leitura de textos em que essas diferentes linguagens se
fazem presentes – textos multimodais (VAN LEEUWEN,
2004; DIONÍSIO, 2005; PAES DE BARROS, 2005) – a partir
de dados por nós coletados em ambiente escolar, com alunos
da oitava série (nono ano) do Ensino Fundamental.
Palavras-chave: letramento, textos multimodais, ensino
fundamental

Reading capacities of multimodal texts


Abstract: Currently, the social demands of reading and
writing are required of the subjects of increasingly advan-
ced literacy skills. Recent studies have pointed to the ne-
cessities of paying attention to the different languages in a
text, whether printed or digital. In this article, we discuss
the capabilities that are mobilized in the reading of texts in
which these languages are present - multimodal texts (VAN
LEEUWEN, 2004; DIONÍSIO, 2005; PAES DE BARROS,
2005) - from the data we collected elementary schools with
eighth-grade students.
Keywords: literacy, mutimodal texts, elementary schools

As atuais demandas de leitura e escrita têm exigido dos


leitores capacidades cada vez mais avançadas de letra-
mento, por exemplo, atribuir sentidos a textos multimodais,
quer sejam impressos ou digitais. Em nossas pesquisas,

1 Professora do Departamento de Letras e do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem – MeEL/


UFMT.

POLIFONIA CUIABÁ EDUFMT Nº 19 P. 161-186 2009 issn 0104-687x


observamos muitos trabalhos que tratam das capacidades
de leitura relacionadas aos textos verbais, mas, para que
pudéssemos observar o aprendizado dos alunos quanto à
leitura dos textos não-verbais e daqueles que aliam o verbal
ao não-verbal (textos multimodais), tivemos que recorrer à
literatura da Semiótica Social e da Psicologia Cognitiva para
refletir sobre esse aprendizado e elaborar as capacidades
de leitura desses textos.
Assim, neste artigo, apresentamos alguns dados sele-
cionados a partir de uma pesquisa por nós realizada com
alunos de Ensino Fundamental de escola pública brasilei-
ra, que objetivou trabalhar a leitura em uma perspectiva
enunciativa bakhtiniana, utilizando a primeira página de
jornal impresso, considerada como um gênero multimodal e,
como no dizer de Schneuwly (1994/2004), como um mega-
instrumento para o ensino-aprendizagem de línguas.
Segundo a semiótica social, a língua faz parte de um
contexto sociocultural no qual a cultura é produto de um
processo de construção social. Nessa medida, nenhuma
modalidade de linguagem pode ser inteiramente estudada
de maneira isolada. A língua – falada ou escrita – não pode
ser entendida senão ligada a outros modos de representação
que participam da composição de um texto.
De acordo com essa teoria, os textos são construtos
multimodais, sendo que a escrita é tão somente uma das
modalidades de representação. Essas, por sua vez, são cul-
turalmente determinadas e constantemente redefinidas no
interior dos grupos sociais em que estão inseridas. Assim, o
ato de ler não deve se centralizar apenas na escrita, já que
esta se constitui como um elemento representacional que
coexiste com a presença de imagens e de diferentes tipos
de informação. Delphino (2005), baseando-se em Kress &
Van Leeuwen (1996), pondera que:
1. Um número variado de modos semióticos está sem-
pre envolvido em uma determinada produção textual
ou leitura, pois todos os signos são multimodais ou
signos complexos, existindo num número de modos
semióticos diferentes;

162
2. Cada modo tem sua representação específica, produ-
zida culturalmente, além de seu potencial comunica-
cional;
3. É necessário um entendimento sobre como ler estes
textos.
Para a semiótica social, o texto escrito per si é multimodal,
isto é, também se compõe por mais de um modo de repre-
sentação. Numa página, por exemplo, além da linguagem
escrita, outras formas de representação, como a diagrama-
ção, a qualidade do papel, o formato e a cor das letras, entre
outros elementos, contribuem e interferem nos sentidos dos
textos. Dessa forma, nenhum sinal ou código pode ser en-
tendido em sua amplitude quando estudado isoladamente,
já que os elementos se complementam na composição dos
sentidos. A opção pelo emprego de certos elementos e não de
outros, de certas formas de representação e não de outras,
deve ser entendida em relação ao seu uso e em situações
de circulação e de interlocução específicas.
Desse modo, Van Leeuwen (2004) defende que os gêneros
da fala e da escrita são, de fato, multimodais: os gêneros
da fala combinam a linguagem oral e a ação, num conjunto
integrado. Os gêneros da escrita combinam a linguagem
escrita, imagens e gráficos, também compondo um conjunto
integrado. O autor defende que os gêneros da fala podem ser
chamados de “performed” e os gêneros da escrita de “inscri-
bed”. No caso de nosso objeto de estudo, o jornal impresso,
podemos refletir, com o autor, que este se constitui em um
gênero inscribed ‘’inscrito’, ou seja, que suas significações
se constituem a partir do ‘entalhe’ dos elementos verbais e
não-verbais presentes em suas páginas.
Em pesquisa realizada com alunos de oitava série (nono
ano) de escola pública (PAES DE BARROS, 2005), buscamos
não somente observar as capacidades de leitura que os es-
tudantes já traziam, como também desenvolver um projeto
de ensino-aprendizagem de leitura da primeira página de
jornal impresso, tomando-o como um gênero discursivo
multimodal no qual encontramos a linguagem visual em
fotografias, gráficos, infográficos, que aliam a materialidade
visual à escrita, à diagramação, ao tamanho e formato de
tipos, constituindo-a em um gênero multimodal.

163
Pensando no ensino de leitura de um gênero multimodal
como este, remetemo-nos a Dionísio (2005, p. 160), quando
afirma que, na “sociedade contemporânea, a prática de le-
tramento da escrita, do signo verbal deve ser incorporada à
prática de letramento da imagem, do signo visual”. A autora
ressalta que a multimodalidade é um traço constitutivo tanto
do discurso oral como do escrito e que a escrita tem apre-
sentado “cada vez mais arranjos não-padrões” em função do
desenvolvimento tecnológico, o que requer dos leitores modifi-
cações em seus modos habituais de ler. Com a autora (2005,
p. 161), levamos em consideração, neste trabalho, que:
1. As ações sociais são fenômenos multimodais;
2. Gêneros textuais orais e escritos são multimodais;
3. O grau de informatividade visual dos gêneros textuais
da escrita se processa num contínuo;
4. Há novas formas de interação entre o leitor e o texto,
resultantes da estreita relação entre o discurso e as
inovações tecnológicas.
Com a autora também consideramos que os gêneros
orais e escritos se constituem em fenômenos multimodais,
porque, quando falamos ou escrevemos um texto, usamos
pelo menos dois modos de representação: “palavras e ges-
tos, palavras e entonações, palavras e imagens, palavras e
tipográficas, palavras e sorrisos, palavras e animações etc”
(DIONÍSIO, 2005, p. 161-162). Desse modo, ao utilizarmos
a linguagem, realizamos “operações individuais e sociais
que são manifestações sócio-culturais, materializadas em
gêneros”. Em uma primeira página de jornal impresso, os
aspectos verbais e visuais se aliam e se complementam de
um modo tal que se tornam uma unidade textual, cada
elemento contribuindo para um todo de significação.
Dionísio (2005) também defende a idéia que os meios de
comunicação de massa escritos e a literatura são espaços
sociais muito produtivos para a experimentação de arranjos
visuais. A autora reforça que até mesmo a disposição gráfica
dos textos no papel ou na tela do computador igualmente
se constitui como fenômeno multimodal.
Para discorrer sobre as estratégias utilizadas para a
construção dos sentidos de textos multimodais, levamos

164
em consideração os achados de pesquisa do grupo de Ri-
chard E. Mayer (2001), da Universidade da Califórnia. Seus
estudos sobre a psicologia cognitiva e educacional têm se
centrado na aprendizagem dos multimedia. Concordando
com Dionísio (2005, p. 173) ao afirmar que a “Teoria Cog-
nitiva da Aprendizagem Multimídia (TCAM) pode ser inse-
rida na elaboração e análise de materiais didáticos como
suporte para o tratamento da multimodalidade dos gêneros
textuais no contexto de ensino-aprendizagem”, recorremos
a Mayer (2001).
O pesquisador define como multimedia o material que
associa palavras ao material pictográfico, sendo que pala-
vras designam os textos verbais (tanto em impressos como
em textos orais) e o material pictográfico inclui gráficos,
ilustrações, fotografias, mapas. Assim, o termo multimedia
“abrange não somente os textos digitais como também os
textos impressos”.
Mayer realizou uma série de estudos experimentais que
se basearam em testes de retenção e transferência das infor-
mações a partir de textos instrucionais. Esses testes foram
baseados em sete princípios e seus resultados demonstra-
ram que há especifidades na leitura de materiais visuais e
escritos. De seus resultados, apontaremos três que, a nosso
ver, aplicam-se à leitura de textos jornalísticos:
• Princípio multimídia - os estudantes aprendem melhor
através das palavras e das imagens do que apenas
pelas palavras;
• Princípio da contiguidade espacial - os estudantes
aprendem melhor quando as palavras estão perto das
imagens correspondentes;
• Princípio da contiguidade temporal: os estudantes
aprendem melhor quando palavras e imagens são
apresentadas simultaneamente.
O autor ilustra cada princípio, observando a aprendizagem
tanto em materiais impressos como por computador. Ele es-
boça também uma estrutura teórica para uma teoria cognitiva
da aprendizagem dos multimedia, segundo a qual o sistema
humano de processamento de informações possui dois ca-
nais: um para o material verbal e outro para o material visual.

165
Segundo o autor, ambos os canais têm capacidade limitada.
A aprendizagem dos multimedia superaria essa limitação, pois
se dirigiria a ambos os canais simultaneamente.
Mayer (2001) considera, portanto, que uma aprendiza-
gem realmente significativa envolve uma conexão de ambos
os canais de processamento cognitivo. Desse modo, sele-
cionar, organizar e integrar a informação de ambos canais
é a chave para uma aprendizagem realmente significativa
dos textos que aliam a materialidade visual à escrita. Po-
deríamos refletir, então, que a construção dos sentidos na
leitura desses textos deve ativar outras capacidades cogni-
tivas, além daquelas já descritas. Podemos concluir, então,
que os leitores têm de recorrer ao que nomeamos (PAES
DE BARROS, 2005) de estratégias de observação da multi-
modalidade, estratégias que utilizam na reconstrução dos
sentidos dos textos multimodais. A seguir, será exposto um
esquema que elaboramos, objetivando desvelar o processo
cognitivo desenvolvido na leitura dos textos que aliam a
materialidade visual à escrita:
1. Seleção e verificação das informações verbais – refe-
re-se à ativação das capacidades de compreensão e
apreciação da leitura dos textos verbais, como parte
do processo de compreender a significação do texto
como um todo.
2. Organização das informações da sintaxe visual – trata-
se da observação dos elementos pictográficos de modo
a selecionar e organizar as informações relevantes à
construção da significação.
3. Integração das informações verbais e não verbais
– trata-se da capacidade de observar e conjugar as
informações da materialidade verbal à pictográfica,
relacionando-as no ato de construção dos sentidos
dos textos.
4. Percepção do todo unificado de sentido que se com-
põe através da integração dos materiais verbais e não
verbais – trata-se da ativação de diversas capacidades
linguístico-discursivas e de leitura aliadas à organiza-
ção e observação das informações, através das quais
o leitor constrói um todo de significação.

166
Desse modo, as especificidades dos textos que aliam a
materialidade verbal à pictográfica exigem que o leitor recor-
ra não somente às estratégias de compreensão e apreciação,
mas também a estratégias particulares de observação mul-
timodal que o levam a selecionar e verificar as informações
verbais e organizar as informações da sintaxe visual. Estas
últimas proporcionam a integração dos materiais verbais e
pictográficos que, por sua vez, ocasiona a percepção do todo
unificado de sentido que se compõe através da integração
dos materiais verbais e visuais.
A compreensão desses processos cognitivos complexos
que se realizam na leitura dos textos multimodais (de ma-
teriais impressos e também digitais) levou-nos a refletir
sobre a importância do ensino-aprendizagem da leitura de
textos multimodais na escola. A partir dessas considerações,
elaborou-se um plano de curso para trabalhar a leitura da
primeira página do jornal impresso, tomada como um gêne-
ro discursivo multimodal, com alunos de duas salas de 8ª
série (nono ano) do Ensino Fundamental, em um percurso
didático que partiria da identificação e reconhecimento de
cada um dos componentes da primeira página: fotografias,
manchetes, diagramação, observando-se também aspectos
lingüísticos, como os tempos verbais presentes nas man-
chetes, por exemplo, - entre outras etapas de ensino -, com
o objetivo de levar os alunos a lerem o jornal impresso,
desvelando o não-dito presente nas primeiras páginas e
percebendo que a compreensão de um texto necessita de
diferentes recursos (inclusive não-linguísticos) para ter
eficácia.
Essas aulas compreenderam um período de dois meses e
totalizaram dezoito em cada turma. Para este trabalho2, se-
lecionamos apenas alguns dos episódios coletados, a partir
dos quais discutimos as capacidades de leitura mobilizadas
pelos estudantes na leitura de textos multimodais.
A introdução do jornal impresso na escola pública não
é fato novo. Os alunos, sujeitos de nossa pesquisa, tinham
contato com jornais impressos em seu ambiente escolar

2 Para os objetivos deste artigo, selecionamos apenas alguns dos episódios por nós analisados. Para uma
melhor compreensão das diferentes etapas que constituíram o curso, sugerimos a leitura da nossa tese de
doutorado (PAES DE BARROS, 2005).

167
diariamente, já que a escola escolhida como locus da pes-
quisa fez parte, naquele ano, do projeto Correio Escola, uma
parceria da Rede Anhangüera de Comunicações e escolas da
rede pública de Campinas. Este projeto previa a entrega de
exemplares diários do jornal Correio Popular, e a capacitação
de professores, em que estes recebiam instruções variadas
de desenvolvimento de trabalhos com o jornal de maneira
interdisciplinar. Além disso, os exemplares eram expostos
no pátio escolar, o que colocava os alunos em contato com
o jornal impresso diariamente.
Mesmo com este contato constante com o jornal, a cada
aula de leitura, os alunos se mostravam sempre interes-
sados e participativos. Desde o momento em que recebiam
os jornais, já começavam a ler suas manchetes, viravam as
páginas, discutiam seus conteúdos.
Nas aulas iniciais, que foram dedicadas principalmente
ao conhecimento do gênero escolhido, particularidades de
sua construção composicional, de sua esfera de produção
e circulação, observávamos os alunos preocupados com
as questões que levantávamos (oralmente ou por escrito).
Nesses momentos, muitas eram suas perguntas quanto ao
tipo de resposta que deveriam dar.
Organizamos os alunos em pares, buscando, com
Vygotsky (1930), observar como a interação com o outro (par
mais avançado) interferia na construção dos significados dos
textos. Cada dupla recebia um exemplar de jornal diferente do
de seus colegas; dessa forma, as respostas não se repetiam, o
que gerava certa insegurança nos alunos, e, provavelmente,
também um maior interesse pelas atividades:

Episódio 7 - 07/10/2003
Os alunos estão divididos em duplas e observam diferen-
tes primeiras páginas do jornal Folha de S. Paulo e o exercício
solicita que observem manchetes, os títulos das chamadas,
legendas, cabeçalho dos jornais, fotografias, atentando para
sua localização nas páginas e seu conteúdo (uma página
fotocopiada com os verbetes legenda, manchete, olho, foto-
manchete etc., extraídos de um manual de redação de jornal,
foi entregue a cada dupla para que observasse os verbetes e
os relacionasse aos componentes das páginas):

168
Cam. — Ô dona, precisa copiar?
P. (dirigindo-se a todos) — É... vocês poderiam colocar
a data do jornal que estão observando e que manche-
te ele traz, também dizer quais são as fotografias...
Coloquem também o que o jornal traz no cabeçalho...

169
Olhem na folha que eu dei para conferir se vocês estão
dando os nomes corretos às partes do jornal...
And. — Mas o que é pra falar da foto? É pra copiar o
que tá embaixo...?
P. — Como é o nome do que vem escrito embaixo de
uma foto? Lembra? A gente já viu...
Als. respondem: — É legenda...
P. — Então é interessante colocar também o conteúdo
das legendas...
P. — As fotografias... seria legal se vocês conseguissem
descrever o que elas trazem, qual é o seu assunto...
(...)
Adel. — Ô dona, esse jornal aqui, a foto tá mais em
cima... a...como chama mesmo?... Tá debaixo da
foto...
P. — Interessante isso, Adel. Alguém mais tem um
jornal assim? Vamos olhar os jornais, levantem as
páginas... Olha, o que aparece mais em cima? (aponta
para a manchete de um deles) Como é mesmo o nome
disso aqui?
Als. — Manchete...
P. — Essa foto do jornal do Adel. está no lugar da
manchete, é chamada foto-manchete...
(...)
P. — Vocês estão vendo algo em comum nesses jornais?
Qual é o principal assunto dessas páginas?
Al.1— Guerra..
Als. — Quase todos tão falando da guerra...
Lê. — Do Iraque...
P. — Vocês têm acompanhado as notícias sobre o que
está acontecendo no Iraque?
Adel. — É a reação dos Estados Unidos ao ataque...
Al.1 — É o assunto mais falado quando teve o ataque
do 11 de setembro, os Estados Unidos procurando os
culpados... (vozes se misturam). Os alunos passam a de-
bater as questões que envolvem a invasão ao Iraque.

170
(...)
A professora seleciona dois dos jornais e leva ao quadro,
chamando a atenção dos alunos para eles.
P. — Pessoal, preste atenção nesses jornais... Qual é
o assunto das manchetes?
Ju. — ONU...
Jac. — Crescem as reações anti-EUA no Iraque!
Fla. — Estados Unidos...
Al.3 — EUA devem in..ten...sificar ação di...plo...má-
tica na ONU...
Lê. — Tão falando dos Estados Unidos e do Iraque...
Inicialmente, o que chama a atenção nesse episódio
é a famosa frase modelar das práticas escolares: Precisa
copiar? De tal modo habituados a atividades escolares que
envolvem a reprodução pela cópia, os alunos tendem a re-
produzir, mesmo nas aulas de um projeto de leitura, aquilo
que compreendem faça parte de uma atividade escolar: o
exercício de copiar informações.
Outro dado que se pode observar nesse episódio é os
alunos procurarem alicerçar a construção dos sentidos dos
textos principalmente em seu conhecimento de mundo, le-
vantado a partir das perguntas da professora e da corrente
discursiva gerada nas discussões do grupo; além disso,
procuravam fundamentar seus construtos na localização
das informações nos textos das chamadas. Alguns deles
extraem palavras das manchetes; outros repetem, revoze-
ando, aquilo que está escrito:
Ju. — ONU...
Jac. — Crescem as reações anti-EUA no Iraque!
Fla. — Estados Unidos...
Al.3 — EUA devem in..ten...sificar ação di...plo...
mática na ONU...
Lê. — Tão falando dos Estados Unidos e do Iraque...
Não se observa, nesse evento, a construção dos sentidos
desses textos por parte dos alunos: é como se estivessem
passivos diante daquilo que têm de compreender, já que
apenas reproduzem o já dito. Bakhtin (1934-1935/1975,
p. 90), discutindo esse tipo de leitura, defende que

171
A compreensão passiva do significado lingüístico de um
modo geral não é compreensão; é apenas seu momento
abstrato, mas é também uma compreensão passiva mais
concreta do sentido da enunciação, da idéia do falante.
Permanecendo puramente passiva, receptiva, não tra-
zendo nada de novo para a compreensão do discurso,
ela apenas o dubla, visando, no máximo a reprodução
completa daquilo que foi dado de antemão num discur-
so já compreendido: ela não vai além do limite do seu
contexto e não enriquece aquilo que foi compreendido
(ênfase adicionada).
Quando as questões da professora se dirigiram às fo-
tografias, os alunos parecem hesitar um pouco mais em
responder:
Episódio 8 - 07/10/2003
P. — E as fotografias?... O que vocês me dizem dessas
fotos? (aponta para as foto-manchetes)
Lê. — (apontando para um dos jornais) Nessa daí tem
um homem em cima dum troço.
Al.1 — Na outra tem batata frita... (risos)
Al. 2— O que é isso na cara do cara?
Adel. — É uma máscara...
A.P. — Parece com a propaganda do Mc Donald’s...
Al.3 — É uma fotografia do Mc Donald’s!...
And. — O homem daquela tá em cima duma bota...
P. — Vocês não viram na televisão nenhuma imagem
parecida com essa? Não se lembram de ter visto?
(os alunos levantam-se, observam as fotografias e dão
risadas, falam frases inaudíveis... voltam aos seus
lugares)
Adel. — O cara tá em cima de uma estátua do Sa-
ddam...
P. — Muito bem, Adel...(o garoto continua falando)
Adel. — Dona, tipo assim, eu li né... (o garoto dá risa-
das) Tá escrito aí do lado...

172
Como se vê, ao falar do conteúdo temático das foto-
grafias, os alunos se atêm a descrevê-las, focalizando os
elementos das imagens de maneira isolada; não parecem
observar as fotografias como textos que trazem um con-
teúdo de significação e um tema, nem fazem comentários
que revelem terem visto a relação da ironia presente na
fotografia da propaganda do Mc Donalds e a legenda: “Sol-
dado americano passa por estande de fast food no Kuait,
durante treinamento para possível ação no Iraque”. Quando
Adel descreve o que viu na fotografia da estátua, dá risadas,
porque leu o que estava escrito ao lado do homem retra-
tado, em uma legenda deslocada para dentro do corpo da
fotografia. Provavelmente, o menino ri porque seus colegas
já tinham olhado para a fotografia e não tinham visto a
legenda. A risada do garoto parece ironizar o fato de que
a compreensão do conteúdo da fotografia poderia estar na
leitura do texto escrito, ignorado por seus colegas.
Percebe-se, nessa sequência, que os alunos buscam a
compreensão alicerçada naquilo que reconhecem, sobre o
que têm segurança. Também na observação das fotografias,
eles alicerçam seus construtos de sentido sobre o conheci-
mento de mundo que trazem:
A.P. — Parece com a propaganda do Mc Donald’s...
Al.3 — É uma fotografia do Mc Donald’s!...
É necessário comentar que o objetivo das aulas desse
dia era colocar os alunos em contato com os componentes
particulares do gênero, para que percebessem seu papel
e para que também fossem atentando para os aspectos
composicionais da primeira página. Dessa maneira, não era
nosso objetivo específico, nesse momento, preocuparmo-nos
com o que os alunos conseguiam ou não ler. Era preciso
constituir as diferentes etapas de ensino-aprendizagem
traçadas, para que eles relacionassem os textos verbais aos
não-verbais e fossem se apropriando das características do
gênero, até que pudessem chegar a ler o todo enunciado
formado nas primeiras páginas e a desvelar o não-dito,
muitas vezes aí presente.
Uma dessas etapas de ensino-aprendizagem consistia
na observação dos tempos e modos verbais presentes nas

173
manchetes e títulos. Como expusemos anteriormente, essas
aulas tinham, como atividades preparadas pela professora, a
observação, seleção e reflexão sobre os tempos e modos ver-
bais. Todavia, no momento de se realizar a tarefa, os alunos
demonstraram não conhecer ou ter dúvidas sobre esta catego-
ria lingüística. Assim, novas aulas foram desenvolvidas, nas
quais, a partir das dúvidas e colocações dos alunos, pôde-se
ensinar o conteúdo gramatical. Por não ser foco específico
deste trabalho, não discorreremos sobre esse conteúdo.

Episódio 10 - 28/11/2003
Nessas aulas, algumas primeiras páginas são expostas
no quadro negro e a professora vai lendo, em voz alta, suas
manchetes e chamadas, solicitando aos alunos que procu-
rem relacionar as fotografias aos textos verbais presentes
nas páginas:
P. — Pessoal, observe esta manchete: “Cresce a
aprovação do governo Lula”... Agora vejam a foto-
grafia...
Le. — Ô dona, é uma foto bonita... enorme, mas o que
tá escrito na legenda?
P. — Muito bem, Le. Você lembrou bem...é importante
observar a legenda... (alunos levantam-se e observam
atentamente a página e seus enunciados)
Le. lê em voz alta: — “Grávidas da campanha - Mulhe-
res que apareceram grávidas em peça de propagan-
da do então candidato Lula, veiculada na televisão
em 2002; agora, quando o governo petista entra no
nono mês, elas fazem críticas, mas revelam paci-
ência com a situação do país e também esperança
no futuro”
(Após a leitura, alguns dos alunos começam a ex-
pressar frases de reconhecimento, como se tivessem
já compreendido o que a professora ainda não havia
perguntado)
(A.P. se aproxima de Lê e ambos vão fazendo a leitu-
ra, o resto da sala ouve e interrompe com frases de
concordância:)

174
A.P. — Ah, dona, esse tá fácil: olha... (fala baixinho)
Lê. auxilia a colega: — É mesmo dona, olha só...tipo
assim: A manchete diz que o povo tá aprovando o go-
verno do Lula, né?
A.P. — E daí aparece essa foto bem bonita, cheia de
mulher com bebezinhos no colo e o povo, tipo assim,
bate o olho e pensa: “hum o governo tá bom”...
Le. Interrompe a colega e diz: — Só que isso num é
verdade, dona... Por que se olhar a legenda da foto...
(Faz-se um alvoroço na sala e Ju. lê a legenda nova-
mente:)
Ju. — “Grávidas da campanha - Mulheres que apa-
receram grávidas em peça de propaganda do então
candidato Lula, veiculada na televisão em 2002; ago-
ra, quando o governo petista entra no nono mês, elas
fazem críticas, mas revelam paciência com a situação
do país e também esperança no futuro”...
A.P. — É, dona, se olhar bem, o jornal quer passar a
idéia pro povo de que o governo ta bom, mas quem ler
pra valer, vai ver que num é isso...
Andri. — É por que tem essa foto bonitinha, mas a
legenda fala que elas não tão contente com o gover-
no...
Lê. — É, elas tão criticando...
Esse episódio, diferentemente dos anteriores, mostra os
alunos em um outro nível de domínio de certas caracterís-
ticas composicionais do gênero primeira página de jornal
impresso; não hesitam mais em nomear gêneros que o
compõem:

Le. — Ô dona, é uma foto bonita... enorme, mas o que


tá escrito na legenda?
Com Bakhtin (1974/1979, p. 412), vemos que a com-
preensão também ocorre quando o alheio se transforma
em pessoal:
Palavra do outro e palavra pessoal. A compreensão
concebida como transmutação em “alheio-pessoal”. O

175
princípio de exotopia. A complexa relação entre o sujeito
compreendente e o sujeito compreendido, entre o cro-
notopo do criado e o cronotopo do compreendente que
introduz a renovação.
Podemos perceber, no exemplo acima, que os alunos
começam a reproduzir aquilo que efetivamente aprenderam:
a fala da professora transparece na do aluno, é aquilo que
Vygotsky (1930) chamou de processo de internalização - no
discurso do aluno o desvelar de seu aprendizado. Com o au-
tor, percebemos o aluno “sendo afetado pelos signos e sen-
tidos produzidos nas relações com os outros” (VYGOTSKY,
1930, p. 75).
Além disso, pode-se observar a facilidade com que vão
relacionando o conteúdo da legenda ao que se encontra na fo-
tografia. Nesse evento, diferentemente dos anteriores, quan-
do o colega lê a legenda em voz alta, ouvem-se expressões
de concordância, interjeições, risadas: os alunos respondem
ao enunciado, mesmo antes de a professora formular cla-
ramente o que espera que eles percebam nas relações de
significação entre manchete, fotografia e legenda.
A.P. — Ah, dona, esse tá fácil: olha... (fala baixinho)
Esse exemplo também nos desvela outro nível de apren-
dizado. Inicialmente, os alunos se restringiam a reproduzir
aquilo que enxergavam nas imagens ou a repetir o que
estava escrito. Nesse momento, a leitura dos alunos passa
de mera reprodução (verbalização) do que veem para uma
leitura inferencial, já que vão construindo os sentidos
através da reflexão sobre as relações entre a imagem e os
textos escritos, relacionando-os também ao contexto de
produção dos textos. O tema surgido do diálogo entre os
textos verbais e não-verbais só é passível de ser apreendido
através de uma leitura que desvela a dialogia entre eles e o
contexto de produção em que foram criados. Nesse evento,
vemos os alunos apreendendo o tema, respondendo ativa-
mente a ele, lançando mão, mais uma vez, da capacidade
de réplica. No momento da compreensão ativa, o ato de ler
se torna “fácil”.
Observa-se, também, que a dupla A.P. e Le. vai cons-
truindo conjuntamente os sentidos dos textos, em um

176
processo que possibilita e facilita a construção dos conhe-
cimentos. É esse processo interacional que faz com que eles
possam ir se constituindo como sujeitos de seu aprendizado,
já que, de acordo com Vygotsky (1930, p. 117-118), este [o
aprendizado] “desperta vários processos internos de desen-
volvimento, que são capazes de operar somente quando a
criança interage com pessoas em seu ambiente e quando
em cooperação com seus companheiros”.
(A.P. se aproxima de Lê e ambos vão fazendo a leitu-
ra, o resto da sala ouve e interrompe com frases de
concordância:)
A.P. — Ah, dona, esse tá fácil: olha... (fala baixinho)
Lê. auxilia a colega: — É mesmo dona, olha só...tipo
assim: A manchete diz que o povo tá aprovando o go-
verno do Lula, né?
A.P. — E daí aparece essa foto bem bonita, cheia de
mulher com bebezinhos no colo e o povo, tipo assim,
bate o olho e pensa: “hum... o governo tá bom”...
Le. Interrompe a colega e diz: — Só que isso num é
verdade, dona... Por que se olhar a legenda da foto...
Faz-se um alvoroço na sala (...)
De acordo com o autor, essa interação é importante, pois é
através dela que o homem se comunica e vai se constituindo
através das relações interpessoais. Essas relações permitem
a categorização do mundo, a possibilidade de abstração e
generalização dos objetos. Esse processo interacional de
construção de conhecimentos promove a compreensão: o
alvoroço que se ouve na sala revela a atitude responsiva dos
alunos frente ao que estão compreendendo; é, no dizer de
Bakhtin (1970-1971, p. 382), “o encontro com o que é gran-
de, concebido como encontro com o que determina, obriga,
envolve, é o momento supremo da compreensão”.
Refletindo mais detidamente sobre as capacidades de
leitura a que os alunos recorrem nesses eventos, observa-
mos como o aprendizado interferiu para a construção dos
significados. Em primeiro lugar, temos o conhecimento dos
alunos sobre o gênero primeira página de jornal impresso.
Nesse evento, os alunos, além de nomearem mais adequa-
damente os gêneros intercalados na primeira página, já

177
demonstram reconhecer as características peculiares dessa
intercalação. Percebem, então, que esse gênero se compõe
de outros intercalados que dialogam ativamente entre si e
que esse diálogo entre os gêneros produz novos significados
que precisam ser apreendidos. Em segundo lugar, vemos a
capacidade de relacionar as informações, daquelas que vão
lendo no jornal às que se referem ao contexto de circula-
ção do gênero – no momento de produção e circulação da
página, começa no país um certo desagrado com relação
ao governo Lula.
Em terceiro lugar, vemos a capacidade de inferência dos
alunos quando apreendem, na leitura das informações ver-
bais e não-verbais, a apreciação valorativa do jornal sobre
seus leitores:
A.P.— É, dona, se olhar bem, o jornal quer passar a
idéia pro povo de que o governo tá bom, mas quem ler
pra valer, vai ver que num é isso...

178
179
Episódio 11 - 28/11/2003
Algumas primeiras páginas dos jornais Folha de S. Paulo
e O Estado de S. Paulo estão expostos no quadro negro. Os
alunos começam falar sobre o que veem estampado nas
páginas. Leo. pergunta:
Leo. — O que é isso aí, é um barco?
P. — É um barco...
P. — Eu vou ler as manchetes e as legendas das fo-
tos...
(...)
P. — Olha só, vocês lembram aquela aula, que a gente
discutiu, sobre o mito da notícia?... Se ela é isenta...
ou não é isenta... Pensa agora, constrói na sua cabeça
uma relação entre essa manchete e essa foto aqui...
Al.1 — É o que está escrito ali... se tem a ver...???
P. — Não tá escrito... Quero que vocês vejam o que
não está escrito... A intenção por trás do jornal...
Ed. — Bancada do PT...
Al.1— É um barco, né? (referindo-se à fotografia). Num
tô vendo nada de barco, ali... (referindo-se à manche-
te).
Ed. — É... os projetos de Lula indo por água abai-
xo...
P. — Muito bemmmm!!!!!!
Als. — Ehhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!!!!
Al.2—Olha só que menino inteligente!!
(grande algazarra)
P. — Olha só, moçada... Na verdade, se a gente for
observar, nas coisas escritas... O que está escrito,
não tem relação nenhuma realmente, mas essa não
relação, é feita de propósito, para aparecer um outro
texto, que é esse texto que o Ed. acabou de falar, que é
o quê? Que os projetos de Lula estão naufragando...
O episódio transcrito acima apresenta um pequeno
trecho de aula em que os alunos vão atribuindo sentidos
aos textos verbais e não-verbais, procurando desvelar o

180
não-dito como um elemento de tema nas primeiras páginas
de jornal. Já mais acostumados a observar as fotografias
e manchetes, os olhares dos alunos se direcionam não so-
mente ao conteúdo das fotografias, mas também procuram
estabelecer relações entre as informações da materialidade
verbal e a pictográfica.
Conforme expusemos anteriormente, uma aprendi-
zagem realmente significativa dos gêneros multimodais
ocorre quando os leitores são capazes de aliar a materia-
lidade verbal à pictográfica. Assim, podemos notar nestes
episódios que os alunos recorrem a outras estratégias de
compreensão:
Al.1 — É um barco, né? (referindo-se à fotografia). Num tô
vendo nada de barco, ali... (referindo-se à manchete).
Na atitude responsiva do Al.1 ao observar a fotografia e a
manchete, podemos notar que o garoto – de modo totalmente
diverso do que ocorria no episódio 8, em que os alunos se
atinham a descrever as imagens presentes nas fotografias
– observa a fotografia, procurando construir sentidos não
somente naquilo que está explícito e que pode descrever,
mas também aliando o que vê (a imagem de um barco) ao
que está escrito na manchete. Observamos, neste evento,
que a localização de informações se torna mesmo uma estra-
tégia de construção de significados. Como um degrau que se
alcança mais facilmente e que conduz a outro no processo
de atribuição dos sentidos. Observando a fotografia, o aluno
procura galgar um outro degrau que o auxilie a compreender
o que lê. Este episódio revela a localização de informações
não somente como reprodução, mas como uma etapa da
construção da compreensão dos textos. Inicialmente, víamos
os alunos localizando informações, atendo-se somente a
verbalizar aquilo que viam. De diferente modo ocorre nesse
momento: a localização é a base que os levará a desvelar a
intertextualidade dos textos.
Na leitura de textos multimodais, a construção dos senti-
dos parte de estratégias de observação da multimodalidade,
que envolvem a seleção, verificação e organização das in-
formações da sintaxe visual, para que ocorra a integração
das informações verbais e não-verbais.

181
Observamos, recorrendo à literatura acerca da multi-
modalidade, que a leitura de textos multimodais requer do
leitor a capacidade de observar e conjugar as informações
da materialidade verbal à pictográfica, relacionando-as no
ato de construção dos sentidos dos textos. A partir dessa
integração e conjugação dos sentidos dos textos verbais e
não-verbais, os leitores podem perceber o todo unificado
de sentido que se compõe através da integração dos
materiais verbais e não-verbais, ou seja, a leitura dos
textos multimodais requer do leitor a ativação de diversas
capacidades de leitura aliadas à organização e observação
das informações, através das quais o leitor constrói um
todo de significação.
Quando observamos, no episódio acima, o aluno Ed.
expressar a sua compreensão daquilo que apreende da pá-
gina analisada “— É... os projetos de Lula indo por água
abaixo...”, podemos refletir que o aluno inferiu o tema do
texto não mais preso ao léxico utilizado nas manchetes, nem
tentando reproduzir o que se achava escrito na legenda,
mas foi capaz de perceber a ambigüidade presente entre os
enunciados verbais em relação com o conteúdo temático da
fotografia. De acordo com Brait (1996, p. 71),
É possível flagrar a ambigüidade, reconhecendo um
efeito de sentido irônico, humorístico, desde que seja
estabelecida uma relação literal entre a foto e a imagem,
ou seja, que se leia o texto como legenda da foto ou a
foto como ilustração do texto.
A expressão ‘estão indo por água abaixo’, que não está
escrita em nenhum lugar da página, desvela o todo de sig-
nificação composto por ambos os enunciados que o aluno
foi capaz de apreender no seu ato de compreensão.
Retomando Bakhtin (1970-1971, p. 382), refletimos que
“a compreensão completa o texto: exerce-se de uma maneira
ativa e criadora”. É essa compreensão ativa e criadora que
vemos os alunos irem exercendo durante as aulas minis-
tradas. Se pensarmos com Schneuwly & Dolz (1997/2004)
sobre as práticas de linguagem desenvolvidas e aquilo que se
pode ensinar durante as aulas, poderíamos dizer que estas
se constituíram como um espaço de construção conjunta

182
de significados e temas dos textos através da interação, de
forma que o outro interferiu de maneira fundamental nesses
construtos e o gênero primeira página de jornal impresso
atuou como um instrumento de ensino-aprendizagem de
leitura que possibilitou a ampliação das capacidades de
leitura dos alunos, através da observação e integração dos
materiais verbais e pictográficos.

Episódio 12 - 28/11/2003
Os alunos observam vários jornais, a professora pede à
Cam. que leia um deles:
(A aluna, intimidada, responde, baixinho)
Cam.— É só pra ler, né, professora?
A professora chama a atenção dos alunos: — Moçada,
ajuda aqui a Cam. Pedi a ela que lesse aqui (aponta
para o jornal, afixado no quadro negro) e ela disse: “É
só pra ler né, professora?”... Eu disse: É... na minha
concepção de leitura... Como é que eu concebo a lei-
tura? O que é ler... pra mim? Nesses meses que vocês
estão comigo... O que é ler?
Cam. — Vai gente, me ajuda aqui...
Al.1 — É entender...
Al.2 — É entender o que tá escrito...
Al.3 — É compreender ... do meu jeito...
(os alunos dão essas respostas quase simultaneamen-
te)
P. — Escrito? (vozes se misturam)...
Als. — Não...
Al.3 — Não.... não é só... isso...
Dan. — É entender... o que tá e o que não tá escrito
também... é compreender...
Inicialmente – conforme demonstram os episódios 7 e
8 – os alunos alicerçavam a construção dos significados
dos textos em duas capacidades de leitura principais: o
conhecimento de mundo que traziam e a localização de
informações. No transcorrer do curso, pudemos observar
como o conhecimento sobre o gênero foi promovendo novas

183
possibilidades de leitura, indicando novos caminhos para
as reflexões que iam sendo tecidas no ato de compreender.
Nesses momentos de interação é onde melhor notamos o
ato de leitura “como um processo de compreensão ativa”,
em que as palavras do outro – colega ou professora – consti-
tuíram elos na cadeia da enunciação verbal que se ligavam
e construíam novos sentidos.
Inicialmente, notou-se que os alunos – ainda não habi-
tuados à observação e análise de textos não-verbais – quan-
do liam uma imagem, como as foto-manchetes, apenas se
atinham a descrever o que estava retratado, sem atribuir
uma unidade de significação às imagens.
Refletindo sobre os dados, referentes às capacidades de
leitura, aliados aos que correspondem às práticas letradas
dos alunos dentro e fora da escola (dados coletados durante
a realização da pesquisa, através de questionários e entre-
vistas), podemos concluir que essas práticas – ler jornais, re-
vistas e livros, ainda que eventualmente – contribuíram para
que os alunos se envolvessem com o projeto de leitura que
desenvolvemos. Poderíamos refletir sobre os dados de suas
capacidades letradas como o seu nível de desenvolvimento
real (VYGOTSKY, 1930). Sua participação interessada que,
muitas vezes, ampliava a leitura prevista (da primeira página
para as demais), promoveu muitos debates e ampliou as
possibilidades de ensino-aprendizagem. Pudemos observar
o gênero primeira página de jornal impresso atuando como
instrumento mediador da aprendizagem e vimos os alunos
avançar em seu conhecimento. O desenvolver do processo de
ensino-aprendizagem procurou proporcionar as possibilida-
des de aprendizado dos gêneros não-verbais, intercalados na
primeira página do jornal impresso, e aliá-los também aos
textos verbais para que os alunos conseguissem construir
os sentidos dos textos e chegar a entender... o que tá e o
que não tá escrito também... (a) compreender...

Referências
ABREU, M. Diferença e desigualdade: Preconceitos em leitura.
In: M. MARINHO (org.) Ler e Navegar: Espaços e percursos da
leitura. Campinas/ São Paulo: Mercado de Letras/ Associação
de Leitura do Brasil - ALB, 2001, pp. 139 - 157.

184
______ Os números da cultura. In: RIBEIRO, V. M. (org.)
Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. pp.33-45.
BAKHTIN, M./VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da
linguagem. 6a edição. São Paulo: Editora Hucitec, 1992..
BAKHTIN, M. O discurso na poesia e o discurso no romance.
5º edição. In: Questões de Literatura e Estética – a teoria do
romance. São Paulo, Editora UNESP- Hucitec, 2002. pp.85-106.
______Os gêneros do discurso. 3ª edição. In: Estética da Criação
Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2000. pp. 277-326.
______ O problema do texto. 3ª edição. In: Estética da Criação
Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2000. pp 329-358.
______ Apontamentos. 3ª edição. In: Estética da Criação Verbal.
São Paulo, Martins Fontes, 2000. pp. 369-397.
______Observações finais.. 5º edição. In: Questões de Literatura
e Estética – a teoria do romance. São Paulo, Editora UNESP-
Hucitec, 2002. pp.349-362.
______Observações sobre a epistemologia das ciências humanas.
In: M. Bakhtin Estética da criação Verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. pp. 401 – 414.
BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação.
ÂNGELA DIONÍSIO E JUDITH C, HOFFNAGEL (organizadoras).
São Paulo: Cortez, 2005.
BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Editora
da UNICAMP, 1996.
DELPHINO. Uma leitura multimodal de um texto publicitário
(disponível em http://www.cefetsp.br/edu/sinergia/fatima2.
html) acesso em 17/06/2005.
DIONÍSIO, A. P. Gêneros multimodais e multiletramento. In:
KARWOSKI, A. M. GAYDECZKA, B. BRITO, K.S.(org.) Gêneros
textuais: Reflexões e Ensino. Palmas e União da Vitória:
Kaygangue, 2005.
GRILLO, S.V.C. Formas de produção do real na imprensa
brasileira: greve dos petroleiros e gêneros do discurso nos
jornais Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo. Tese de
doutorado, USP nº 1865682. São Paulo, 2001.
KLEIMAN, A. B. Leitura: Ensino e pesquisa. 2ª edição. Campinas:
Pontes, 1996.
______ Texto e Leitor: Aspectos cognitivos da leitura. 7ª ed.
Campinas, Pontes, 2000.

185
______ Oficina de Leitura, 8ª ed.. Campinas: Pontes, 2001.
______ (org.) Os significados do letramento: uma nova
perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas,
Mercado das Letras, 1995.
KRESS & VAN LEEUWEN, T. Reading Images. The Grammar
of Visual Design. London: Routledge, 1996.
LABERGE, D. e SAMUELS, S. J. Toward a theory of automatic
information processing in reading. In: SINGER, H. e RUDDEL,
R. B. (Orgs.). Theoretical models and processes of reading.
Newark, Delaware: IRA, 1980.
MAYER, R. Multimedia learning. Cambridge: Cambridge
University Press, 2001.
PAES DE BARROS, C.G. Compreensão ativa e criadora:
uma proposta de ensino-aprendizagem de leitura do jornal
impresso. Tese de doutorado apresentada ao LAEL da PUC São
Paulo, 2005. Disponível em www.pucsp.br/pos/lael/lael-inf/
def_teses.html
____ Gêneros discursivos: contribuições teóricas e aplicadas.
In: PETRONI, M.R. Gêneros do discurso, leitura e escrita:
experiências de sala de aula. São Carlos: Pedro & João Editores/
Cuiabá: EdUFMT, 2008.
VAN LEEUWEN, T. Ten reasons why linguistics should pay
attention to visual communication. In: LEVINE, P. SOLLOMN,
R.. Discourse E Technology: Multimodal Discourse analysis.
Georgetown: Georgetown University Press, 2004.
VYGOTSKY, L.S. Implicações educacionais. In: M. COLE, V.
JOHN-STEINER, S. SCRIBNER & E. SOBERMAN (orgs). A
Formação Social da Mente: O desenvolvimento dos Processos
Psicológicos Superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998. pp.
117-118.

Recebido em 16/11/09
Aceito em 19/12/09

186
INSTRUÇÕES AOS AUTORES PARA
PUBLICAÇÃO DE ARTIGOS NO
PERIÓDICO POLIFONIA

A revista POLIFONIA publica artigos originais na área de


linguagens, em português, inglês, francês e espanhol.
Uma vez publicada, cada articulista receberá três exem-
plares.
Além da versão impressa, a Polifonia é também disponibi-
lizada no site do MeEL/UFMT (http://www.ufmt.br/meel).
Para o envio de artigos, devem ser obedecidas as seguin-
tes instruções:

1. Os artigos devem ser enviados para o e-mail polifonia@


ufmt.br, digitado com o processador de texto MSWORD
FOR WINDOWS, tamanho A4 (210 mm x 297mm), com
título, sem o nome do(s) autor(es).

1.1. A identificação do autor deverá ser feita em um arqui-


vo à parte, com as seguintes informações:
• título do trabalho;
• nome completo do(s) autor(es);
• titulação acadêmica máxima, instituição onde
trabalha(m), atividades exercidas
• telefone, e-mail (indicar se o e-mail pode ser divul-
gado na revista) e endereço completo para corres-
pondência;
• apontar (caso necessário) a origem do trabalho, a
vinculação a outros projetos, a obtenção de auxí-
lio para a realização do projeto e quaisquer outros
dados relativos à sua produção.
1.2. Formatação do texto:
• título do trabalho: em português, antes do Resumo
e das Palavras-chave e, em inglês, antes do Abs-
tract e Keywords. Usar maiúsculas e negrito, fonte
Times, 12, centralizado;
• Texto: deverá ter de 12 a 20 laudas. Espaço 1,5.
• Resumo: máximo de 08 linhas, seguido de 3 a 5
palavras-chave, ambos em português e inglês.
• Títulos das seções e subseções: letra minúscula e
negrito
• Caso haja necessidade de destacar algum termo, no
texto, fazê-lo em itálico.
• Citações: com três linhas ou mais, deverão ser re-
cuadas em 4 cm da margem esquerda. A margem
da 1ª linha deve ser de 1,5 cm. Times New Roman,
alinhamento justificado, espaço simples, fonte 11.
Elas serão indicadas no corpo do texto por chama-
das assim: (CHAUI, 2002, p. 57).
Citação com até duas linhas: sem recuo, no próprio
corpo do texto, entre aspas, seguida da indicação
bibliográfica (CHAUI, 2002, p. 57).
• Citações em outras línguas (opcional): caso o autor
queira fazer a tradução, esta deverá ser colocada
em rodapé, antecedida pela expressão Tradução do
autor.
• Rodapé: deve ser usado apenas para notas expli-
cativas e não mais para referência bibliográfica,
que deve ser feita no próprio texto. Ex: (ANDRADE,
1980, p. 7).
• Referências bibliográficas: USAR SÓ A PALAvRA
“REFERÊNCIAS”. Devem ser apresentadas nas Re-
ferências somente aquelas obras que foram efetiva-
mente citadas no corpo do texto. Quando citados
no corpo do texto, os títulos das obras devem ser
colocados em itálico.
As Referências devem ser colocadas em ordem alfabética
ao final do texto, seguindo a NBR 6023. Transcrevemos des-
sas normas, abaixo, alguns casos de maior ocorrência:

LIVRO
GOMES, L.G.F.F. Novela e sociedade no Brasil. Niterói:
EdUFF, 1998. (Coleção Antropologia e Política)
ARTIGO EM PERIÓDICO
GUIRRA, M.C.S. Da teoria à prática: o lugar da constitui-
ção do professor de Língua Portuguesa. Revista Panorâmi-
ca. Cuiabá, v. 06, p. 25-37, jan.jul. 2006.

CAPÍTULO DE LIVRO
SANTAELLA, L. A crítica das mídias na entrada do século
21. In: PRADO, J. L. A (Org.) Crítica das práticas midiá-
ticas: da sociedade de massa às ciberculturas. São Paulo:
Hacker Editores, 2002. p. 44-56.

TRABALHO APRESENTADO EM EVENTO


BRAYNER, A R A; MEDEIROS, C.B. Incorporação do tempo
em SGDB orientado a objetos. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO
DE BANCO DE DADOS, 9...*, 1994, São Paulo. Anais...
São Paulo: USP, 1994, p.16-29.

*NUMERAÇÃO DO EVENTO (SE HOUVER)

DOCUMENTO COM AUTORIA DE ENTIDADE


BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Relatório da Diretoria-
Geral: 1984. Rio de Janeiro, 1985, 40p.

ARTIGO E/OU MATÉRIA DE REVISTA, BOLETIM ETC EM


MEIO ELETRÔNICO
RIBEIRO, P.S.G. Adoção à brasileira: uma análise sócio-
jurídica. Dataveni@, São Paulo, ano 3, n.18, ago.1998.
Disponível em: <http://www.datavenia.inf.br/frame.artig.
html > Acesso em: 10 set. 1998.
• São permitidas imagens, mas a impressão será feita
em preto e branco. No caso de fotografias, deve-se
anexar o nome do fotógrafo e autorização dele para
publicação, além da autorização das pessoas foto-
grafadas.
• Após a aprovação do artigo para publicação, a Edi-
toria irá comunicar e enviar ao autor a ‘Carta de
Autorização para Publicação’, na qual ele ainda de-
clare sua responsabilidade pelo conteúdo do res-
pectivo texto.

Você também pode gostar