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eviruos Unificagdo da elite: a caminho do clube Em parte como conseqiiéncia da propria estabilidade do sistema polftico imperial, outras caracterfsticas vieram reforcar os efeitos da educagdo e da ocupagio. A estabilidade permitia a construg4o de longas carreiras poli . fazendo com que a elite como do pudesse acumular vasta expe fa. de governo. O Império reviveu 2Velha pratica portuguesa de fazer circular seus administradores por varios postos e regides. No caso de Portugal essa politica visava, além do treinamento, evitar que os funciondrios se identifi- cassem demasiadamente com os interesses das colénias e desenvolvessem idéias subversivas. No Brasil a circulagdo era geografica e por cargos. A elite circulava p: pais ¢ por postos no Judicidrio, no Legislativo, no Executivo. Discutire: aqui os principais canais de circulagao ¢ seus efeitos para o treinamento da elite, assim como alguns mecanismos que atuavam na direc3o oposta, frutos dos desequilibrios ¢ rivalidades regionais. © fato tinha 40 Varios politicos nacionais foram nomeados presidentes de provincias com o objetivo explicito de lhes permitir ganhar experiéncia. Comecaremos por discutir a circulacao dos magistrados. Uma carreira tipica para o polis familia nao possufa influéncia bastante para lev4-lo diretamente 4 ara comegava pela magistratura. Com icial era centralizado, todos os juizes eram nomeados pelo ministro da . Logo apés a formatura, o candidato a carreira politica tentava conseguir uma nomeacao de promotor ou juiz municipal em locali- dade eleitoralmente promissora ou pelo menos num municipio rico', Na . Como a magistratura ligava-s clara conotagao politic: ente a elite, 121 JOSE MURILO DE CARVALHO impossibilidade de tunidade de ser tr lio de amigos ou de de ministérios, que eram constantes, constitufam ocasiées propicias grandes remanejamentos de funciondrios, inclusive magistrados, tanto pai garantir resultados eleitorais favordveis, nos casos em que as mudangas fo: sem também de partido, como para premiar amigos pessoais ¢ politicos, para cooptar aliados promissores. As vezes, as transferéncias se davam mes- mo em anos comuns. Em 1888, por exemplo, que nao foi ano de mudanga de partido, nem eleitoral, houve 418 atos governamentais nomeando, trans- ferindo, aposentando magistrados. Essa movimentagao atingiu 26,5% dos magistrados ent4o em exercicio’. seguir boa localizagio, a solugao era aguardar a opor- ° candidato a politicélpodia conseguir eleger-se para a Camara, as vezes de- pois de prévia (oO para alguma assembléia provincial, ¢ abandonar logo , como muitos o faziam, se eleito, continuar como magistrado rantia de futuras eleigdes ou simples- mente como fonte alternat segura de rendime: terceira possi- bilidade era a de que nunca se conseguisse que se contentar com a carreira de magistrado. Este foi, por exemplo, o caso de Albino Bar- bosa de Oliveira, cujas memoérias contém rica informagio sobre o funcio- namento dos mecanismos de recrutamento politi onto importante aqui é que desde o infcio o futur a conhecer outras provincias além da s rimeira nomeacio ja significava segunda provincia a conhecer, pois j4 tinham sido obrigados a sair de ca para estudar direito em Pernambuco ou Sao Paulo. Alguns certamente con- seguiam ser nomeados para suas préprias provincias e, se abandonavam a carreira muito cedo, nao tinham a oportunidade de servir em outra pro- vincia nessa fase da carreira. As fontes as vezes nao indicam 0 local de ser- vigo, raz4o pela qual os dados de circulagao estarao subestimados. Mas podem dar uma idéia da importancia do fendmeno. Segundo os dados, (seas para sIguaisinformaga (90% 85%, respectivamente) sr viu fora de suas provincias, alguns serviram mesmo no exterior (Portugal e Africa). Apés 9 terceiro periodo ha uma redugdo da circulagao para 50%, a carreira judicidria. Ou podia p 122 A CONSTRUCAO DA ORDEM certamente devida ao crescimento do ntimero de magistrados. Repete-se aqui o mesmo fendmeno de redug4o da homogeneidade e treinamento da elite a partir da metade do século. Desaparece a geracao de Coimbra, ha menos ministros magistrados e ha menos magistrados servindo fora das provincias. Em momento posterior da carreira era dada ao politico nova oportuni- dade de circu exercer 19 provi al apés ser eleito para a Camara, ou mesmo apés isterial, ele poderia ser nomeado presidente de uma das ias. Era um cargo importante, uma vez que dele dependia a vit6- ria do governo nas eleigdes. Mas mesmo em perfodos no eleitorais 0 presi- dente conservava atribuicées relevantes, uma vez que controlava nomeagoées estratégicas como a dos promotores, delegados e subdelegados de policia e oficiais inferiores da Guarda Nacional. Indicava ainda os oficiais do recruta- mento militar, reconhecia a validade de eleigdes municipais e encaminhava ao ministro do Império, com parecer pessoal anexo, os pedidos de conces- sao de titulos honorificos, a comegar pelos de nobreza}. Havia uma preocipacao explicita com o treinamento de presidentes de provincia. O imperador sempre insistiu na profissionalizacdo da carreira e houve mesmo um pr de leiem 1860 que propunha medidas nessa dire- ¢4o*. Alguns politicos foram de fato quase que administradores profissionais de provincias. Hercul Ferreira Pena, por exemplo, administrou oito pro- vincias diferentes. O|projeto de 1860 dividia as provincias de acordo com sua importancia, col do como requisito para quem quisesse administrar as mais importantes rimeiro passado pelas de menor peso. A justificati- va era a necessidade de treinamento. Além da experiéncia administrativa e dos bons salérios, 0 politico tinha ainda, como presidente, a oportunidade, raramente desperdicada, de acele- rar a carreira, es} lo, precedidajoujnao por eleigao|parala|Camiara. Era um dos poucos mecanis- mos que lhe permitia conseguir uma senatoria por provincia que nao a sua propria. Na ri lade, a presidéncia de provincia, apesar dos esforcos do imperador em Contr4rio, era cargo muito mais politico do que administrati- vo, como o indi¢a a grande mobilidade de presidentes e 0 pouco tempo que permaneciam Postos (quadro 17), 123 JOSE MURILO DE CARVALHO QUADRO 17 Niimero de Presidentes de Provincia e Tempo Médio no Cargo, por Perfodos, 1824-1889 Periodos 1831-40 1824-31 Numero de Presidentes Efetivos Tempo Médio no Cargo (anos) Fontes: Bardo de Javari, Organicagées e Programas Ministeriais, ¢do dos Cidaddos que Tomaram Parte no Governo do Brasil no Perfodo de 18 de 1889. Os presidentes comecaram a ser nomeados em 1824, exceto os d Parand (1853) e Amazonas (1852). As fragdes correspondem a meses. O numero real de presidentes € menor do que o que consta No quadro 17 porque varios serviram em mais de uma provincia. Em contrapartida, o quadro computa apenas os que serviram como efetivos. Se acr tasse- mos 0s interinos, o nimero poderia ser acrescido em pelo menos 50%, Vé- se que era muito grande a mobilidade e que ela tendia a aumentarao longo do perfodo. Isto prejudicava o lado administrativo, mas sem divida con- _tribufa para fornecer experiéncia politica a um grande mimero de pessoas, al Iver Pp a. Outra fung4o importante cumprida pela grande mobilidade de presidentes era dar aos ministros a oportunidade de premiar os amigos. Os politicos|militates tinham ainda a possibilidade de circulacao pré- ‘o de Estado tinhaa possibilidade de cir- ilitar. Somando os trés . No total, 71% dos ministros serviram fora como magistrados, presidentes e comandantes militares, sem contar a permanéncia na capital do Império exigida pelo exercicio de fungdes legislativas e executivas. Num pais ge: icamente to diversificado e tao pouco integrado, onde pressé istas se faziam sentir com freqiién- cia, a ampla circulag: ‘a da lideranga tinha um efeito unificador poderoso. 124 A CONSTRUCAO DA ORDEM Além da mobilidade geografica, a prépria carreira politica servia com Se: alta circulagdo entre cargos e a bai circulagao para fora do circulo da elite. Vejamos como isso se dava. Acarreira politica era uniline cruzados os portais da politica naci na Camara, minhos assumiam o for! enas €m seus passos iniciais. Uma vez mente através de uma cadeira ‘0 mais pr6ximo do de um circu- lo do que de linha reta. O processo poderia ser representado como aparece no grafico’3. O mais dificil era entrar. Um diploma de estudos superiores, sobretudo em direito, era condigao quase sine qua non para os que pretendessem chegar até os postos mais altos. A partir dai varios caminhos podiam ser tomados, 0 mais importante ¢ seguro sendo a magistratura, secundariamente a imprensa, a advocacia, a medicina, o sacerdécio. Em alguns casos, a influéncia familiar era suficientemente forte para levar o jovem bacharel diretamente a Cama- ra. O apoio familiar e dos amigos e o patronato dos lideres j4 estabelecidos era, alias, presenga constante em todos os passos da carreira. Correndo um pouco por fora havia apenas os militares que em geral nao passavam pela Camara: entravam diretamente pata o Ministério ou para a presidéncia de provincias. a vez dentro da Camara, estava-se a um passo do circulo interno da , 20 qual se tinha acesso por uma combinago de capacidade e Ppatronato, exercendo o imperador papel ativo na selecao. A entrada no clube se dava pela nomeacao para um posto ministerial ou uma presidéncia de provincia. A partir daf havia intensa mobilidade ¢ acumulagio de c: podia exercer ao mesmo tempo seu mandato de s posto de conselheiro (apenas suspendia o exerci ministro renunciar ao cia. Havia, no entanto, algumas regras no escritas para a mobilidade dentr | do cube, Uma dels fa ia © Miniséro da Marina como reinanen > das forgas armadas. Outra regra j4 menciona ios. O fato pode indicar pouco aprego pelo posto, ma: pode também mostrar o bom relacionamento da elite civil com esse ram i ses cuidados se justifica: vam porque 0 estilo de carreira que vimos descrevendo podia comegar muit 125 oprisy ap oyjasuos ~~] [ Bpwey ye125) Jepuraoig ELIOJEUIS ¢—> OLDISIUIPA, «—— ogdeindaq «— ogseindag <«— vinjensidepy BIDUJAOIY ap erougpisarg | esuaidwy aqn[> op onuaq oynqnsa,, selrepeosy Boufog elosalesy, € oDd14yaD saroliadng sopnisy ap ewojdiq epenuy ap aeqiig A CONSTRUCAO DA ORDEM cedo, embora tivesse depois longa duracao. A idade Iftico atingia o posto de ministro era em torno de conseguiram nos trinta e alguns nos vinte, Nabuco falasse de uma neocr: dos mais brilhantes ‘dia com que um po- anos, mas muitos 0 dando motivos a que Joaquim onde do Uruguai, por exemplo, um mpério, recebeu a primeira oferta de um Ao completar 50 anos comecou a retirar- se da politica, considerando-se um homem ja velho, e dedicou-se a escrever seus dois livros tornados classicos. Morreu aos 59 anos’. Daf que nos Minis- térios havia em geral uma combinagio de novos Politicos com outros mais experientes. Houve apenas uma exce¢ao com Martinho Ca em cujo Ministério nenhum dos membros tinha expe conhecido como o Ministério do Jardim-de-Infanc! Para se ter uma idéia da seletividade do clube e da mobilidade interna, basta dizer que durante os 67 anos que durou o Império elegeram-se 23. senadores e foram nomeados 219 ministros e 72 conselheiros de Estado (con! tando apenas o segundo Conselho), num total de 526 PosigGes, que fora: preenchidas por apenas 342 pessoas. O quadro 18 esclarece melhor a mulagao. impos Fica evidente a variedade de PosigGes por que Passava 0 politico nacio- nal. No Segundo Reinado apenas sete ministros nao ocuparam uma ou outra das posigées listadas no quadro 18. O fenémeno era ainda mais acentuado entre os conselheiros de Estado, sem diivida os elementos com maior tirocf- nio politico do Império. Basta dizer que 71% dos conselheiros foram tam- bém ministros, senadores e deputados gerais, era a coroacao da carreira e rarissimamente 14 se chegava sem prévia € longa experiéncia em variados cargos politicos. com menor diversidade de experiéncia €, portanto, supostamente r treinamento, €ra novamente o dos senadores que nao foram Sua carreira limitava-se entio a eleigao para deputado geral e dai para o Senado de onde nao safam (apenas 10% foram (CEessiseniss te provinciaie Seeonselicfp. Encravavam no Senado que se tornava para eles uma espécie de Sibéria, na expressio de Joaquim Nabuco, Eram em geral proprietarios rurais sem educacdo superior, mas com influénci: 127 JOSE MURILO DE CARVALHO politica suficiente para se elegerem nas listas triplices. Como a sentoria vitalfcia, 14 ficavam sem conseguir convocagao para outros cargos,mas bém sem deixar o lugar para outros mais capazes ou mais jovens. Senad entio, acabava constituindo um bloqueio 4 circulagao das elites, princip: mente a circulagao para fora do miicleo central, o que veio a ter efeios ne! tivos para o sistema como um todo. QUADRO 18 Posigées Politicas Ocupadas pelos Ministros, 1822-1889 (%) Periodos Posigdes 1822-40 1840-89 Ital Senador 423 $8,75° 5153 Conselheiro 30,50 35,62 M24 Deputado Geral 37,28 67,50 5836 Presidente de Provincia 13,55 21,87 1963 Deputado Provincial 3,38 31,25 1374 Nenhuma dessas 13,55 4,37 684 (N = 59) (N = 160) (N=i19) Obs.: No perfodo 1840-89 esto inclufdos também 0s polfticos que atingiram posigivs ministe- riais pela primeira vez no perfodo anterior, A circulagao para fora do sistema, que € o sentido original daexpres- s4o como usada por Pareto, pode ser observada por meio da adlise de coorte®, Esse tipo de andlise revela a maior ou menor renovacio das eli- apre: s. Treina melhor seus mem- bros mas pode perder em representatividade, ter reduzida a capacidade de percep¢ao de novos problemas e novas forgas politicas emergentes €, conseqiientemente, favorecer a formagao de contra-elites que erentual- mente as substituirao por um processo revoluciondrio de tomada de po- der. Apresentamos no quadro 19 a andlise de coorte para os ministros, considerando cada um dos cinco perfodos e o perfodo inicial da Reptbli- ca como sendo cada um uma coorte. 128 A CONSTRUGAO DA ORDEM QUADRO 19 Porcentagem de Coorte Remanescente em Perfodos Sucessivos Perfodo do N° total de Numero Porcentagem primeiro cargo ministros da remanescente depois ministerial no periodo coorte de N periodos 123 4 5 1822-31 45 45 27 15 7 = = 1831-40 47 35 48 144- = - 1840-53 45 23 48 - - = = 1853-71 69 50 2 - - = - 1871-89 80 66 3 - - - = 1889-1910 90 88 - - -e- ef Aprimeira revelacao do quadro 19 refere-se 4 surpreendente longa vid dos ministros do Primeiro Reinado. Eles sofreram severo corte durante Regéncia, quando apenas 27% sobreviveram, mas os que ficaram resistir por muito tempo 4 marginalizac4o. Alguns ainda atuavam entre 1853 e 187, A segunda revelacao refere-se 4 alta sobrevivéncia, a médio prazo, das s gunda ¢ terceira coortes. Mais de 40% dos ministros dos periodos de 1831 40 e 1840-53 permaneceram em postos ministeriais nos perfodo} subseqiientes. Os dois fatos confirmam a importancia politica da geragio d Coimbra e a maior homogeneidade da elite até a metade do século, que vi mos consistentemente encontrando nos dados. Em termos de coortes, ¢: homogeneidade vai até 1871, quando se verifica um aumento acentuado circulagao da elite. No perfodo 1871-89 nao encontramos um sé ministr remanescente dos trés primeiros perfodos e somente 28% dos do period anterior ainda estao presentes. As mudangas na educacio, ocupaciio e mobi lidade geogrfica sio acompanhadas pelo aumento na circulagao 4 medi que o Império se vai aproximando do final. Menos magistrados, menos litares, mais advogados, mais profissionais liberais, menos treinamento, m: circulac4o: 0 sistema politico estava dando sinais de mudanga. A mudan: completou-se com a total renovacao do nmiicleo da elite: somente dois mini tros do Império ocuparam postos ministeriais durante a Republica. A aguda renovagao verificada em torno de 1871 reflete-se nas queixas de Caxias quando da morte do visconde de Itaborai em 1872: 129 JOSE MURILO DE CARVALHO “Seu vacuo nao sera preenchido, como nao foi o de Eusébio, Parand, Uruguai e Manoel Felizardo ¢ muitos outros que nos ajudaram a sustentar esta igrejinha, desmoronada ou quase desmoronada em 7 de abril de 1831”. Estao af mencionados os politicos que formaram o nicleo principal do Partido Conservador. Acrescentando 4 lista Vasconcelos, Calmon e alguns outros, terfamos os principais artffices do Regresso que culminou com a proclamagio da maioridade ¢ 0 infcio do Segundo Reinado, apés os anos turbulentos da Regéncia. A geragao que estava no poder quando Caxias fez a observacao acima, além de todas as diferengas que j4 menci- onamos, apresentava ainda outra muito i nao passara pela dramatica experiéncia da fais, quando o sistema imperial esteve proximo da derr: . A experiéncia foi marcante tanto para con- servadores como para liberais, na medida em que estes, em sua maioria esmagadora, também nao apoiavam mudangas radicais, politicas, econé- micas ou sociais. Ela constituiu outro elemento de socializagao da elite da primeica metade do século, AGSR3464 Gal BOURSES] . A grande ameaga que turva- va os horizontes da geragao da Regéncia, a fragmentacao do pais, nao era mais percebida como perigo sério. O outro grande perigo, a rebeliao es- crava, estava também desaparecendo lentamente pela aboligao gradual. O caminho para a Repiblica foi tranqiilo e o seria mais ainda se nao ft se a intervengao da contra-elite militar gerada por circunstancias esp: cfficas. Nio fizemos andlise de coorte para os senadores. Mas, como a senatoria era vitalicia, podemos esperar af maior permanéncia no cargo. De fato, a longevidade dos senadores pode ser avaliada dividindo-se o ntimero de anos que durou o Senado (63) pelo ntimero total de senadores (235) e multipli- cando o resultado pelo namero legal de senadores em cada momento (em torno de 55). A operagio nos dé uma vida média no cargo de 15 anos, Em ¥ a permanéncia média no cargo dos 53 senadores em exercicio era de 13 anos. Um deles estava no Senado hé 41 anos. Di! temente do Conse- Iho de Ministros, o Senado apresentava baixa circul. eos velhos senado- res tendiam a isolar-se mais e mais das tendéncias da\época, com excegao de 130 A CONSTRUCAO DA ORDEM uns PoUucos que eram ainda chamados para o Ministério, ou que pertenciam ao Conselho de Estado. Muitos podiam ser bem treinados, mas, dadas as mudangas nos problemas a serem enfrentados, seu treinamento se tornava inadequado: eram treinados para tarefas erradas. O perigo de permanéncia excessiva no cargo nao era muito grande entre os conselheiros. Havia 12 conselheiros ordindrios e 12 extraordinérios. Os ordindrios podiam ser demitidos ad nutum do imperador, convocando-se um extraordindrio. E: i indri indri 0 mo 2 arg RnEAnaaititanT” n O Conselho era entio uma instituigdo mais equilibrada do que o Senado em termos de treinamento e circulagao de seus membros. Entre os deputado: circulagao era muito alta, como indica a andlise de coorte das 23 legisla do Império. A composigao da Camara se renovava em mais ou menos 50% a cada nova legislatura. Essa taxa € muito mais alta do que as encontradas por Frey na Turquia e por David Fleischer em seu estudo dos deputados mineiros durante a Primeira Republica’, A auséncia de eleitorado independente tornava Possivel o fendmeno das camaras undni- mes: nte O fenémeno fica mais facil de perceber se utilizarmos outra técnica de anilise (quadro 20), que consiste em calcular o tempo de duragio de fragdes de um nono, um tergo emetade das coortes. Vemos af que as coortes perdiam rapidamente metade de seus membros e em trés anos ficavam reduzidas a um tergo de seu ntimero inicial. Mas a vida de um nono era bastante alongada, © que sugere a eliminagao rapida do grosso da coorte (alguns sem divida Promovidos ao Senado), e a permanéncia Por periodo longo de um grupo Pequeno. Salientam-se como exce¢ao a(legislatuira Conservadora ded 843 ca , que levaram 14 15 anos respectivamente para serem redu- zidas a um tergo. Na andlise de coorte as duas também apresentam longa duragao ao lado de suas congéneres, a conservadora de 1838 ea liberal de 1861. Isso vem indicar uma mudanga de geragdes também na Camara, com a predominancia de uma geracio da ordem no infcio e uma gera¢ao das re- formas ao final. Ver quadro 20. 131 JOSE MURILO DE CARVALHO *LOb-297 °d ‘siouarsnayy spupsoag 9 s2oSozurkC ‘wexel ap ovreg :21U0y - tt TE TZ OL VE HT HT HU ZZ HZ TE 9T OT HZ BT VE OT TT HT oT OT TT ow - - - 6% 9% Cr H9 1% OSL OE GE Of GE HT HE THI BT LT Bt OE HZ OT BE OSs - ODT SLE ELE HT O'8T 96T TET 96 CLL UL O'6t czt 7'8 I< ‘8 TIL ouou WIXX WXX IXX XX XIX MAX WAX TAX AX AIX MIX HX 1X X XP MWA WA IA A Al I OW 1 8PIA Oe spanqops13a] ee (soue wa) ereUtyD eu $913003 ap sodniy ap elougueUtag 0z Ovavnd 132 A CONSTRUCAO DA ORDEM Podemos concluir que a grande maioria dos politicos que atingiam o topo da carreira €fasubmetidala uma intensa circulagao geografica como magistrados, como presidentes de provincia ou como comandantes mili- tares. Essa circulagéo nao poderia deixar de afetar poderosamente sua viséo e comportamento com referéncia aos interesses nacionais. A circu- lagdo entre cargos e para fora apresentava aspectos mistos. A carreira extensa e diversificada sem duvida permitia a aquisic¢ao de experiéncia administrativa e politica. Também, um pouco surpreendentemente, nao era muito limitada a circulagdo para fora, com excecao do Senado que constitufa claro bloqueio a entrada de novos elementos. M4SlONHGHeFO limitadissimo de pessoas que atingiram o topo da elite mostra que, mes- mo com a acentuagao da circulagao para fora nos perfodos finais, o cfr- culo interno do poder se tornava cada vez mais restrito relativamente ao constante aumento de aspirantes, provocado pelo crescimento da oferta de bacharéis, pela inquietacao militar e pelo aumento da riqueza fora da Provincia do Rio de Janeiro. A importancia da nacionalizagao da elite para a manutengao da unidade do pais pode ser avaliada pelo fato de que, apesar dela, as(tendéncias centri- fugas, provinciais e regionais, se fizeram sentir durante todo o periodo, ede manéita|violenta)ate1850. Mesmo apés o fim das rebelides e apés a conso- lidagdo do sistema centralizadogaltivalidade provincial e regional permane- cem como dado constanté@a politica imperial. A desigualdade das provincias €m termos populacionais e de riqueza levava ao maior favorecimento de umas em relac4o as outras, gerando ressentimentos sobretudo nas que perdiam influéncia devido a decadéncia econémica. & importante salientar esses as- Pectos para que nao fique a impressio falsa de uma unidade perfeita da elite. Exatamente porque nao correspondia & realidade socal e econdmica do pais, exatamente por ter sido politicamente criada, ¢ quea@lunidade foNimiporan- te para evitar que forgas centrifugas levassem o Pais ao mesmo destino da América Espanhola. O peso de fatores provinciais pode ser avaliado por uma série de indica- dores. Um deles é a origem provincial dos ministros. Basta examin4-lo para Se ter uma idéia da predominancia de um grupo de provincias sobre as ou- tras (quadro 21)’. 133 JOSE MURILO DE CARVALHO UADRO 21 oO 1822-1889 (%) Periodos Provincias 1822-31 31-40 40-53 $3-71 71-89 Total Bahia 17,78 22,86 26,09 20,00 15,16 19,18 Rio/Corte 13,34 17,15 17,39 26,00 16,66 18,27 Minas Gerais 15,56 11,43 21,75 8,00 13,63 13,25 Pernambuco 6,66 14,29 4,34 6,00 15,16 10,05 Sao Paulo 6,66 857 21,75 10,00 9,09 ~——-:10,04 Rio G. do Sul 0,00 11,42 0,00 4,00 12,12 6,39 Subtotal 60,00 85,72 91,32 74,00 81,82 77,18 Outras Provincias 6,66 8,57 8,68 20,00 18,18 13,69 Outro Pais 33,34 5,71 ~ 6,00 - 9,13 Total 100,00 100,00 100,00 + 100,00 + 100,00 100,00 (N = 47) (N =35) (N= 23) (N= 50) (N= 66) (N= 29) Mais oumenos 80% dos ministros em todo o perfodo provinham de ss m. Apesar de ter havido nos dois periodos finais aumento na representagao das provincias menores, a concen- tragio ainda permaneceu alta. A avaliagio do desequilibrio adquire ainda maior sentido quando introduzimos dados de populagao ¢ riqueza das di- versas provincias (quadros 22 e 23). Nao foi possfvel encontrar dados sobre o valor da produgio para 1845, daf termos utilizado as receitas provinciais como indicador de riqueza. Mi- nas Gerais fica prejudicada por essa decisio, de vez que boa parte das re- ceitas provinha de impostos de exportacao e a provincia exportava pelo porto do Rio de Janeiro, [ERGUAIQueE aod lea EAFSIGUEIASGHGs ens na lagdo e em riqueza. HA, entre as grandes provincias, alguns casos desviantes no que se refere ao ntimero de ministros e a riqueza. So principalmente os de Sao Paulo, Minas Gerais e Pernambuco. O fato se explica, além da res- salva j4 feita para Minas, por ter sido a década de 1840 dominada pelos liberais, mais fortes em S40 Paulo e Minas. O aspecto mais marcante dos dados, no entanto, continua sendo o desequilibrio em favor das grandes provincias. 134 A CONSTRUGAO DA ORDEM QUADRO 22 iO Segundo Reinado (%) N°? N° Provincias Populagdo* Riqueza** Ministros*** Deputados Bahia 14,33 17,42 26,09 13,33 Rio/Corte 15,63 eS 17,39 9,52 Minas Gerais 16,93 . 21,75 19,05 Pernambuco 12,37 14,34 4,34 12,38 Sao Paulo 6,51 ww 21,75 8,57 Rio G. do Sul 2,62 4,57 0,00 2,85 Subtotal 68,39 68,83 91,32 65,70 Qutras Provincias 31,61 31,17 8,68 34,30 Total 100,00 100,00 100,00 100,00 (N = 7.677.800) (N = Rs 4.980.895) (N=23) (N= 105) *Estimada para 1854 pelo ministro do Império, no Relatério de 1856, p. 409. **Indicada pela receita provincial de 1840-41. Amaro Cavalcanti, Resenha Financeira do Ex-Impé- rio do Brasil em 1889, p. 280. ***Perfodo de 1840-53, Os mesmos dados para 1885 apresentam resultados semelhantes. A re- presentacao de deputados continua mais ou menos proporcional 4 popula- ¢40, com sub-representagao nitida apenas para Minas Gerais. A representagao ministerial continua muito desigual em favor das grandes provincias. Entre essas, Continua uma super-representagao da Bahia e invertem-se as situagdes de Sao Paulo ¢ Pernambuco. Ver quadro 23. In in- d lo quadro 23 colocamos entre parénteses 0 valor oficial da produc cola exportada no periodo de cinco anos que vai de 1881-2 a 188. te indicador subestima muito a parte de Minas e superestima a do Rio de Janeiro, devido 4 exportagdo do café mineiro pelo porto do Rio. Mas, fora isto, da melhor idéia da riqueza das grandes provincias, uma vez que a exportacao agricola era na época a base do co- mércio internacional do pais, garantia das importagées e de mais da meta- de dos impostos do governo geral. Com 0 novo indicador acentua-se a super-representacao ministerial da Bahia, mantém-se a de Pernambuco e 135 JOSE MURILO DE CARVALHO agtava-se muito a sub-representagao de Sao Paulo. Ha af 0 esboco de um nitido quadro de descompasso entre a economia ea politica que estava por trés do movimento republicano e federalista e que j4 foi explorado como fator de explicagio da politica nacional ao final do Império e durante a Re- publica’, QUADRO 23 Populacao, Riqueza e Representacao Politica das Provincias no Final do Império (%) N? N° Provincias Populagdo* Riqueza** — Ministros*** Deputados Bahia 13,39 9,70 — (0,28) 15,16 11,20 Rio/D. Federal 9,76 13,28 (29,31) 16,66 9,60 Minas Gerais 22,21 10,49 (10,79) 13,63 16,00 Pernambuco 7,19 8,52 (8,39) 15,16 10,40 Sao Paulo 9,66 12,53 (22,08) 9,09 7,20 Rio G. do Sul 6,26 8,55 (8,02) 12,12 4,80 Oe Subtotal 68,47 63,07 (78,87) 81,82 59,20 Outras Provincias 31,53 36,93 (21,13) 18,18 40,80 S$ Total 100,00 100,00 (100,00) 100,00 100,00 {N = 14.333.910) (N = Rs 33.110.876) (N= 66) (N= 125) *Censo de 1890. **Indicada pela receite provincial de 1888-89. Amaro Cavalcanti, Resenha Financeira, p. 281. Entre parénteses esté o valor oficial da produgao agricola exportada, de 1881-82 a 1885-86, mesma fon- te, p. 293. ***Perfodo de 1871-89, Outro indicador da forga dos lagos provinciais € 0 fato de que os politi- | ¢0s raramente conseguiam eleger-se fora de suas provincias para a Camara ¢ meSii0 para 6 Senado, apesar da circulagio geografica a que eram submeti- dos. O caso do carioca dor. Depois de servir como juiz de direito Bh peer depois de casar em importante familia local, ainda assim enfrentou sélida oposig¢ao quando ten- tou candidatar-se a deputado geral. A resisténcia s6 foi quebrada pela inter- feréncia de lideres nacionais do Partido Conservador. A mesma dificuldade teve seu colega de jornalismo, Justiniano José da Rocha, também carioca, que viu até mesmo sua condigio de mulato ser utilizada como argumento 136 —————— ee eee A CONSTRUGAO DA ORDEM para dificultar sua eleigio por Minas, que afinal se deu'!. No que se refere ao Senado, apenas para o primeiro gruy 50 senadores houve muitos eleito- res fora da prépria provincia (34 levido a aberta interferéncia de Pedro Ino processo eleitoral. Entre que se elegeram apés 1831, apenas 37 (19%) o foram em va eS sua. E destes, 26 tinham sido presi- dentes dessas provincias ou as tinham representado na Camara. Os eleitos que nao tinham vinculagao alguma eram em geral figuras nacionais cuja can- didatura era imposta 4s pequenas provincias, como foi o caso de Miguel Calmon, Rio Branco, Torres Homem e outros. Provincias como o Amazo- nas, o Espirito Santo e Mato Grosso nunca conseguiram eleger um de seus filhos para as oito vagas que tiveram no Senado. E nenhum politico de pro- vincia menor conseguiu eleger-se em provincia maior. Mesmo a circulacdo geografica de magistrados era em boa parte limitada as grandes provincias. Entre 1849 ¢ 1889, por exemplo, 76% das nomea- gGes de magistrados que posteriormente se tornariam ministros se deram para as grandes provincia, S6 umaldesas0 Rio Grande do Sul nieve enh . uve Ss que iniciaram a Carreira no sgmmmamaaaaann “aammnrmenieerninietalan dava poucos estudantes a Coimbra. nova informagao sobre magistrados vem reforgar a idéia da menor integragao da provincia na vida nacional no que se refere formagao da elite politica. A desigualdade das provincias foi oficialmente reconhecida num projeto, enviado 4 Camara em 1860. Nele se propunha a divisio das provincias trés classes: a prime: i i a terceii Parana, Espirito Santo, Rio Grande do Norte, Amazonas € Piauf. Até os salarios dos presidentes variariam de acordo com a classificagao". Outro indicador da importancia politica das grandes provincias ceu na discussao da ES. Uma das motivagées do pro- jeto apresentado pelo governo era quebrar a unidade das grandes bancadas, evitando assim que elas bloqueassem a ago do Executivo. Esperava-se que deputados cleitos por distritos, ou circulos, fossem menos afetados pelo provincialismo. A oposigao ao projeto foi grande, embora a Camara fosse 137 JOSE MURILO DE CARVALHO unanimemente conservadora e governista. Argiliu-se que o Proje) apenas substituia 0 provincialismo pelo localismo, sendo este pior do quaquele. | As provincias, foi dito, serviam como importantes intermedidriasoliticas entre os governos central e local". O governo do marqués do Pand teve que transformar a discussio do projeto em questo de gabinete pra vé-lo aprovado. E 0 irénico da historia € que a aprovagao se deveu em ba parte ao apoio macigo da bancada mineira, a maior da Camara, ao mineinParand. Ea principal oposigao veio também das bancadas do Cearde de Pernmbuco, em atritos com 0 gabinete desde seu inicio™. Podemos concluir a andlise do processo de socializagao e de treiamento da elite imperial. Qsjdadoslapresentadossobre|educacao) ocupagio: carrei- ra permitem-nos concluir que existiu no Brasil um grupo especial ¢ politi- cos distinto do que se formou nos outros paises da América Litina. A especificidade desse grupo nao era devida A origem social. Ela se pendia a socializacao e treinamento deliberadamente introduzidos para garatir de- terminada concep¢io de Estado e capacidade de governo. Tanto liber's como conservadores, nos perfodos turbulentos de consolidagio do poderguando varias alternativas se colocavam como vidveis politicamente, cOnetdAVal em alguns pontos bdsicos referentes 4 manutengao da unidade dcpais, a condenagio de governos militares de estilo caudilhesco ou absolutista,i defesa do sistema representativo, A manutengao da monarquia e, sem divia, tam- bém & necessidade de preservar a escravidao. Houve divergéncias, e algumas importantes, mas em geral refeentes a concepgées distintas sobre que modelo de organizacao do Estadoliberal deveria ser adotado no Brasil. (Dividiram-se os conservadores, maistavora- veis 4 centralizagdo do tipo francés, dos liberais entusiasmados COiios mo- delos inglés e americano, mas Sem Se arriscarem ao salto Tepublicam.. Essas divergéncias nao eram académicas, pois continham elementos concertos de interesses econdmicos divergentes, assim como, sem divida, parte io con- senso da elite como um todo se devia a condicionamentos de classe.) pon- to nao é negar a base classista da elite brasileira, ou de qualquer elite. Ofiieleo da questao é afirmar exatamente que origem de classe, mesmo quanderazoa- velmente homogénea, pode deixar em aberto uma série de cursos alernati- vos de agao sobre os quais a elite como um todo, e portanto o Estaio, tefl poderideldecisao. E seria ilusorio dizer que, por ser limitado pela esrutura 138 CO Le eS ee ee A CONSTRUGAO DA ORDEM de classe, esse poder seria de menor importancia para o entendimento da evolucio politica de um pais. A andlise de decisées sobre grandes problemas do Império, a ser feita em Teatro de Sombras, deixard esse ponto mais explicito. Os dados mostraram também que a homogeneidade da elite variou =§ longo do periodo. Na segunda metade do século, sobretudo apés 1871, houve mudangas significativas que afetaram a homogeneidade de treinamento e socializag4 da - As desigualdades provinciais também se faziam Presemesapesade todas na desprovinsaiago, eno somente por para compeo por ret assom bss gman ¢@SSES|ECOHOmCds. Esses pontos sao importantes a fim de nao se exagerar o aspecto de monolitismo da elite a ponto de tornd-lo obstaculo em vez de auxilio 4 compreensao do sistema imperial. A discussao é pertinente em face de um estudo interessante que com- para a elite imperial com os mandarins chineses’’. Trata-se de outro estu- do elaborado paralela e independentemente do nosso e que no geral chegou a algumas conclusées semelhantes. Mas a comparagio com os oe: que também nos ocorrera em estgios iniciais do trabalho, pode mente exagerada, uma vez que ao lado de semelhangas havia im- portantes diferengas a separar as duas elites e naturalmente os dois siste- mas politicos. Os mandarins chineses, os /iterati, passavam por um sistema muito mais elaborado de treinamento que durou mais de mil anos. Passa- vam 35 anos estudando para os exames que eram forcados a fazer e nos quais gastavam 160 dias. O conteddo, a forma e os procedimentos que regulavam os exames eram totalmente controlados pelo governo imperi- al, que também impunha uma ideologia oficial, o confucionismo. Os fun- ciondrios publicos eram escolhidos entre os que fossem aprovados nos exames's, Este processo rigoroso de treinamento e recrutamento era fruto de um Estado muito mais centralizado e muito mais poderoso do que o Es- tado imperial brasileiro. Na China até mesmo os administradores locais eram nomeados pelo governo imperial dentre os mandarins, Eles repre- sentavam o imperador no nivel local e nao podiam servir na terra natal 139 JOS€ MURILO DE CARVALHO nem permanecer por muito tempo no mesmo lugar (em geral nao mais de trés anos)'”, Na sociedade agroadministrativa chinesa, para usar a expres- so de Wittfogel, havia um verdadeiro Estado de aparato, e a principal estratificagao era a que se dava entre governados e governantes. A maior parte do excedente agricola era apropriada pela administracao e o poder dos proprietdrios rurais era incomparavelmente inferior ao dos congéneres brasileiros. Muitos deles eram impedidos de ter acesso a cargos ptiblicos por terem fracassado nos exames. Um simples indicador do maior poder do Estado em relaco aos proprietérios rurais esta no fato de que na China a fonte mais importante de rendas piblicas era o imposto territorial, ao passo que no Brasil imperial todas as tentativas de introduzi-lo se revela- ram infrutfferas". No Ss nen @TSEHETSONSHOPHEEem o Exado io forte, Dito de outro modo, no Beasillnao havia)como na China, er- fe ia. Daf que o sentido da homogeneidade da elite brasileira era também distinto, nam sses. Na auséncia da sociedade hidrdulica administrada pela burocracia estatal, o choque de inte- resses privados ¢ as alternativas que se abriam para a prépria organizacao ou desorganizagao do poder davam ao treinamento e socializagio da elite brasi- leira talvez até uma importancia maior do que no caso chinés, na medida em que podia pesar mais nas opgdes a serem tomadas. Esse fato se torna nitido se observarmos que o Império durou 67 anos, ao passo que s6 a dinastia Ching durou mais de 250; ¢ 0 sistema chinés de exames sobreviveu em torno de 1.300 anos. Dai que 0 peso da tradigao desse sistema tornava a curto e mé- dio prazos o impacto do treinamento da elite menos dramitico do que no caso brasileiro. De qualquer modo, nao ha diivida de que a nobreza regular chinesa foi um dos exemplos mais tipicos de formagao sistematica de elites antes do advento do Estado moderno. Como diz Wittfogel, “O sistema competitivo de exames era um meio excelente para doutri- nar os plebeus ambiciosos e obrigar os filhos talentosos de funciondrios e familias burocraticas nobres a submeterem-se a uma formacio ideoldgica profissional extraordinariamente completa”. 140 A CONSTRUCAO DA ORDEM Mas, por tratar-se de sociedade radicalmente distinta da brasileira, na medida em que precedeu a prépria formagao do Estado moderno do Ocidente, que nos vem servindo de ponto de teferéncia, a comparagio corre © risco de cair no formalismo, isto é, pode haver aspectos semelhantes no treinamento da elite, mas “esiedades¢ 0 sentido do préprio Estado si radicalmente distinis™ NOTAS ivas . Albino José Barbosa de Oliveira, por exemplo, escolheu Sao Joao del-Rei por- que Minas possuia a maior bancada no Congresso, 0 que aumentava as possibi- lidades eleitorais. Ver suas Memdrias de um Magistrado do Império. 2. Ver Relatério do Ministro da Justiga, 1889. 3. Para uma descrigao das atribuigées legais dos Presidentes de provincia, ver Cae- tano José de Andrade Pinto, Atribuigées dos Presidentes de Provincia, 4. Andrade Pinto, op. cit., p. 22. 5. Amelhor fonte de informagao sobre o visconde do Uruguai € José Antonio Soa- res de Sousa, A Vida do Visconde do Uruguai (1807-1866). 6. Sobrea anilise de coorte ver, entre outros, Norman B. Ryder, “The Cohort as a Concept in the Study of Social Change”, American Sociological Review, XXX (1965), p. 843-61. As idéias de Pareto sobre circulagao das elites podem ser encontradas em S. E. Finer, “Introduction”, em Vilfredo Pateto, Writings, p. 51-71. 7. Citado em Nelson Lage Mascarenhas, Um Jornalista do Imptrio, p. 243. 8. Ver Frederick Frey, op. cit., p. 213; e David V. Fleischer, O Recrutamento Polf- tico em Minas, 1890-1918, p. 49-50. 9. Os critérios para escotha das seis provincias como mais importantes foram demograficos, econdmicose politicos. O critério Politico foi aplicado ao caso do Rio Grande do Sul, que era menos populoso que o Cear4 e menos rico que © Pard, pelo menos no inicio do perfodo. Mas a produgio do charque e os problemas de fronteira o tornavam mais importante do que as duas outras provincias. Sociological 10. 14. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. OSE MURILO DE CARVALHO Para definir a origem provincial dos ministros adotamos 0s seguintes critériog; a) em princfpio a provincia de nascimento foi considerada provincia de origem; b) nos casos em que foi muito curtaa permanéncia na provincia de nascimento, a provincia de origem foi considerada aquela em que 0 politico viveu ¢ fez sua carreira politica (assim, Vergueiro, nascido em Portugal, foi considerado paulista; Uruguai, nascido na Franga, fluminense etc.); c) uns poucos nascidos na Cisplatina foram considerados gatichos. Ver Simon Schwartzman, So Paulo e o Estado Nacional. Ver Nelson Mascarenhas Lage, op. cit., p. 65, € 0 jornal O Brasil de 23 de mar- go de 1843. Andrade Pinto, op. cit., p. 22. Ver os debates nos Anais da Camara dos Deputados, Tomo IV, 1855, especial- mente os discursos de Zacarias de Gées € Vasconcellos, Carrao, e Bandeira de Melo, em 28 e 29 de agosto. Sobre esses atritos ¢ o gabinete Paran4 em geral, ver Wanderley Pinho, Cotegipe e seu Tempo. Primeira Fase, 1815-1867, p. 386. O projeto do governoeode- bate envolviam outros problemas além do da influéncia das grandes bancadas, como veremos no capitulo 7. Ver Eul-Soo Pang e Ron L. Seckinger, “The Mandarins of Imperial Brazil”, Comparative Studies in Society and History, IX, 2 (inverno, 1971), p. 215-244, Sobre a nobreza chinesae sobre o sistema de exames, ver 0 trabalho de Chung - li Chang, The Chinese Gentry. Studies in their Role in Nineteenth Century Chinese Society. Sobre a administragdo local na China, ver John R. Watt, The District Magistrate in Late Imperial China. Ver Karl A. Witrfogel, Despotismo Oriental, p. 26 e passim, e Chang, op. ct. 38, Despotismo Oriental, p. 396. Ver a respeito das sociedades burocraticas hist6ricas do tipo da chinesa oclissi- co texto de S. N. Eisenstadt, The Political Systems of Empires. 142

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