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caput WV O Primeiro Reinado em revisao Gladys Sabina Ribeiro e Vantuil Pereira Quando ps Pode arr, inflam: 4 qualquer matéria ve ar O nome de liberdade ams Logo os espiritos.” MAKQUES DE QUEL Em 1828, em um gos momentos mais delicados Para o imperador d Pedro L a constatagao do marqués de Queluz situa adequadamente a ee blematica que atravessava a sociedade e a politica do recém-fundado im- pério do Brasil. oO senador sabia © que dizia. Como um dos principais assessores do rei d. Joao VI, vivera um dos momentos mais tensos do processo que levaria 4 independéncia brasileira. Mais adiante, concreti- zada a separacao entre Portugal e Brasil, entre 1825 e 1826 assumiu o cargo de presidente da provincia da Bahia, uma das mais agitadas do im- pério. No contexto do constitucionalismo e na época da chegada das primeiras noticias da Revolugio do Porto, em 1820, politicos como d. Pedro, José Bonifacio, Gongalves Ledo e Cipriano Barata participaram daquele tumultuado processo politico que atribuiu 4 palavra liberdade polissemia impar. Nao lutavam especificamente pelo que depois passamos a deno- minar Independéncia do Brasil.” No alvorecer daqueles anos, discutiam-se os rumos de Portugal e do Brasil. As ideias constitucionalistas tornaram-se pratica a partir do mo- vimento vitorioso do Porto e da chegada a corte do Rio de Janeiro das rovidence, em 28 de outubro de 1820. boas novas trazidas pelo brigue Pi urn ade O Povo e a Tropa saudaram a formagao de uma Constituinte que © finiria os rumos politicos do império luso-brasileiro. 139 pasit IMPERIAL — VOLUME 1 o8 na de viver a liberdade que levasse & sar; ma form de. A ideia de autonomia como | s "sfacay ava-se Ul i ibe > sidadese 3 ee a reportavam-se as nogdes nada #0 direito a vida e a a leituras nos contextos brasileiro ¢ Por ea do direito natural € ae ae retaao sobre o direito natural nem Pie Nao havia uma ee natural. Este era interpretados Plurg eoecem ee ae ee pelos chamados homens bons ¢ mir ar a de contratualista fundada nas Cortes, bem a see i ee entre 0 rei e seus stiditos,* em que o direit ea i de frear o poder. Igualmente era Vivenci: aeons livres pobres, que vetumbravam a Participaga ra publica como um caminho que se poderia levar a Em do: horizontes de suas vidas. : Aambiguidade e a tensao entre formas antigas e moder e agir, com pontos de superposic¢ao e de ruptura, marcarai ciais do Oitocentos. Nos prédomos do Brasil independent. Como dy © Se con. ado. como 0 na esfe. S €streitos nas de pensar 'M Os anos inj. © € NO periodg > que seria 0 7 de abril de 1831,? momento da conso- lidagao da autonomia!® € da derrota do imperador d. Pedro I pelos prin- Cfpios liberais,"1 Ecostume vermos os fatos Politicos serem apresentados com fraca conexao entre si, enfileirados Para explicar a abdicagio e os ANOS que se seguiram, Como consequéncia dessa visio de causa e efeito, Osentimento antilusitano”2 ¢ 140 © PRIMEIRO REINADO EM REVISAO Deixou-se de olhar para esse perfodo como a ocasiao em que todo o sitio legal ¢ politico do império foi montado, quando as instituigdes ge reergueram sob novos prismas, e novos marcos temporais foram in- yentados. Devemos, portanto, ampliar a ideia de uma crise limitada a fatos pontuals, cireunserita a um tempo coeso. E dessa época, por exem- plo. criagao dos principais mecanismos legais desse Estado, tais como aConstituigao de 1824, a lei dos juizes de paz, 0 Supremo Tribunal de Justiga, © Cédigo Criminal, entre outros. Os homens que pensaram o Estado imperial no primeiro decénio do Segundo Reinado também apareceram na cena publica nesse momento enele tiveram suas primeiras experiéncias politicas. Puderam vivenciar todas as tensOes, Os impasses e as possibilidades oriundas de um momento fmpar na histéria do império brasileiro, consolidando-se a partir de um estreito vinculo entre aparelho burocratico e a “sociedade civil”. Estamos diante da construgao de visdes concorrenciais acerca do Es- tado, do cidadao e de seus direitos. A construgao de nogées sobre as li- berdades civis e politicas, tomadas distintamente, foi sendo consolidada. Sobre as liberdades civis, havia o entendimento de que eram direito amplo evilido para todos os membros da sociedade, inclufdos os estrangeiros. Abarcariam a defesa de todas as liberdades, e nao s6 do direito de ire Vir; era, enfim, o direito que resguardava os individuos. As liberdades 0u 0s direitos politicos, entretanto, estavam reservados ao grupo conside- tado mais qualificado para o exerefcio da politica e dos direitos correlatos. Quanto aos poderes politicos fundados a partir da independéncia e da outorga da Constituigéo de 1824, uma tensdo permanente os envolvia: 4 disputa pela soberania e pela representagao da nagao. De um lado ti- tha-se a compreensao de que a soberania estaria sediada nos represen- tantes do Povo, os deputados. De outro, leitura da representagdo segundo we a figura do imperador, aclamado pelo povo e ungido pela Igreja, ° Primeiro representante da nagao. E tal polémica era fulcral, por- Qe trazia forte embasamento politico: dizia respeito ao equilfbrio de os seja, quanto os poderes poderiam exercer sue aon ou eA pee dos demais. Entre 1825 e 1831, x iscussao do conheceu a emancipagao revela essa polémica e divide a 141 is grupos: um, mais ligado a d. Pedro i enteng ncia e que via a necessidade de o tratadg Ser ¢ "2 Sep a Independéncia ¢ Be i fii tes do estabelecimento do ee a NEOs" © Outro ente a reciso o reconhecimento da independéncia, Primandg vd nao ser P' «com relagao a Inglaterra, mediadora do tratado,'s Pela, are chamamos ateng4o para 0 dae 5 nosto, de Sober, ia igualmente se aplicava a outros ae oe vi = eXercicig Sober. = do mercado'® dizia ee Ola ae Possibilitar 5 florescimento e 0 desprestigio de um a =a ay “A economia,” ¢. zia respeito A discussao sobre a baponancis io Telagoes internaciongis em relagio aos indices estabelecidos nos tra los. Nesse Sentido, no Py. meiro Reinado hd também confrontos nessa area, entre UM Projeto mais subordinado a Inglaterra e outro que procurava maior autonomia com relacio aquele pais. Por fim, ha que fazer um entrelagamento entre a politica em gerale © cotidiano. A populagao estava longe de estar a reboque das camadas dirigentes."* O povo foi ator politico fundamental na trama do Primeito Reinado, tanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando me- canismos formais, como petigdes, queixas e representacdes. No cenério tracado, julgamos ser fundamental rever o que foi o Pri meiro Reinado brasileiro para ultrapassar a datagdo tradicional: 1820 seria 0 inicio do perfodo, que extravasaria o marco temporal de 1831¢ chegaria a 1837, quando 0 regresso assinalou outro momento na politi- ca brasileira e a posterior maioridade foi momento de inflexdo impor tante para o destino do Segundo Reinado. Devemos compreender esse momento a luz da problematica gia." Fazemos, em prol de um: ‘Assembleia em do daqueles anos, nao como pura cronolo- entao, duas propostas: 1) ampliar os marcos cronolégices a leitura mais abrangente do Primeiro Reinado, que com Preenda a problematica da Construgao do Estado, da constituigéo 4: ine = ee identidade nacional e dos direitos como x wee ; — © direito basilar de todos), em lapso ed Se privilegiam fatos ” e 1837; 2) sair da leitura feita pelo alto, ieee da historia do Br, Politicos que costumeiramente balizam esse mont de asil, tais como o grito do Ipiranga, a Constituinte 142 ABO EM REVISAQ. 3,2 out ore da Constituigéo de 1824, Conf, 182 a da Cisplatina € © portuguesismo de d, Pe a a ndo pensamos, teria havido trés oui que envolveram intensos debates ¢ co ira vaga teria comegado a crescer com a che : anunciando 0 triunfo do Constitucional ; roximadamente 1824, quando comegou a d ga Cconstituigao, perdendo-se Nos acontecimen politicas em torno de interesses especificos e na celebragio do Tratad dePaze Amizade, que reconheceu a emancipacio efetiva do Brasil ae 4926, nova onda teria ganhado forga com a reabertura do ae com os ares alvissareiros das discussées sobre a lei da liberdade de = prensa. Questdes candentes teriam ocupado os debates, tendo-se come- gadoa discutir ¢ a criar uma legislagao “brasileira”. Nesse momento, a eforma da Justiga teria alcangado contornos mais nitidos até desembocar nos codigos Criminal (1830) e Penal (1832). O papel da tropa no ce- nrio nacional, tao ativa nos primeiros anos da década de 1820, igual- mente teria esmorecido com as baixas na Cisplatina e com o que foi encarado como a derrota brasileira nessa guerra. Nessa ocasido, 0 édio ederagio d dro [. ° Equador, Poll Cas no Primeiro nflitos de rya.2 A pri- Bada das boas oer lismo. Teria durado até esvanecer com a outorga tos didrios, nas urdiduras popular contra os estrangeiros revigorou-se com as revoltas dos irlandeses edosalemaes, e com a chegada dos emigrados portugueses. A participa- cio dos corpos militares na abdicacio acabou marcando 0 final de uma fase durea da tropa, que s6 iria ser novamente vista por ocasido da Guer- tado Paraguai. Tudo isso tinha como pano de fundo a edigao de jornais ¢panfletos, chamados de incendidrios, e uma movimentagio popular Bee pata ver seus direitos reconhecidos, respeitados ¢ ampliados. Sem | ta, 0 povo aderiu aos acontecimentos que fecharam a segunda Ser Oano de 1831 marcaria o final de um movimento — ane ie Seria também o marco de uma terceira ¢ nova VaB% on quan ade torte do Rio de Janeiro e acabou batendo na praia em i ee Promulgacao do Ato Adicional. Dissolveu-s¢ em mes em 1837- Pic Os anos regenciais € que chegaram eee i Vi Sesion one ae : a8 da Constituigao- igos e sobre a re 143 9 BRASIL IMPERIAL — VOLUME 1 Nos limites desse texto ¢ a partir do enfoque que Propuse dtaremos das dns primeiras vagas. O ano de 1820 earrega ung marea com significados distintos para 0 governo e as classes domin, a amadas populares. No contexto do Constitucionalisny, antes econdmicos de grupos existentes no Brasil e em Po, abelecida no atual Sudeste e com interes: M05, cy, 9 dos Tlugal,2 9 : oe 8SCS ligads ao comércio de grosso trato passou a desejar que 0 entao reing do Brasi permanecesse autonomo e livre, em igualdade de condigées ¢ de direitos coma antiga metropole. O que estava em jogo era a autonomia Politica, uma vez que as decisdes vitais para a economia do império Portugués eram efetivamente comandadas pelos negociantes da praga do Rio de se respeito A economia americana ¢ desejava-se salvaguar. ¢ para as interesses classe dominante est Janeiro."* Pedi © que se havia ganho com a trans! nigragao da corte e coma metré- pole interiorizada. Os mesmos direitos eram reivindicados para os dois lados da nagio portuguesa, porém reiteradamente as cortes se negavam a reconhecer 0 Brasil como igual. Queriam tratd-lo como provincia, Valentim Alexandre’* analisou os debates e as politicas adotadas pelas cortes lisboetas e os relacionou aos interesses do comércio. Identificou quatro tendéncias: os “integracionistas”, os que queriam ceder aos dese- jos de autonomia do Brasil, os que queriam esmagi-lo com 0 envio de tropas, sobretudo para o Rio de Janeiro e para o Recife e os que muda- vam de lado a cada pouco. Em meio as camadas populares, as noticias do movimento portuense reforgaram as ideias que j4 circulavam entre os trabalhadores pobres da cidade do Rio de Janeiro. José Celso de Castro Alves, a0 analisar 9 jor nal © Alfaiate Portugués, menciona a existéncia de alfaiates, carpinteltos ourives, artesdos de todo tipo e ambulantes nos acontecimentos posterio” resa 1821. Segundo esse autor, o constitucionalismo popular fazia parte de um processo ideolégico e de um movimento social que pretendia ei Estado fundado em uma ordem que se definia enquanto comunidade a, rence ene lr ee ¢ debatiam teen ortugal. Os populares pretendiam um eid ae won como 0 que se convencionou chamar massacre € contorno da futura nagao. Ao analisar ° 144 © PRIMEIRO REINADO EM REVISAO romérci é Celso de -a do Comercio, José Celso de Castro Alvi aga es fez um | dart levantamento valhad® de quem participou, qual a profissio exercida local si ist0% apartir de um instigante documento encontrad « ty, aqueles que eram tidos como inimigos do p. péssima situagaio vivida na cid de mo- 0. no Arquivo go tamara ovo € a quem gerbuiam a : lade. Em atos do cotidiano, como w malhagao do Judas de 1821, exigiam do governo reagao imediata e ediam, por exemplo, que se enforeasse Bento Maria Targine, secretdrio galo-portugues do Tesouro. Solicitavam com igual desenvoltura que se panisse Vilanova Portugal, conselheiro do rei.2* a partir das perspectivas 3 cima que reforgamos o que Maria Odila aasilva Dias denominou interiorizagao da metrépole: a Independéncia foi um combate pela liberdade dentro da nagao portuguesa.?” Nao foi pensada como ruptura desde finais do século XVIII, a partir dos movi- mentos nativistas e de problemas ligados a famosa crise do sistema colo- rial, As ages finais foram tomadas pelos “homens bons” a partir e dentro docontexto luso-brasileiro e europeu, de acordo com seus interesses € sabedores de que a patria era o lugar reservado para si, que se chamavam de patriotas e se reconheciam por nexos de propriedade e de privilégios, além do desejo de consolidar da unidade a partir do Centro-Sul do Brasil. Nio era mais possivel construir a nagéo portuguesa como um todo. Era preciso afirmar o centro do governo no Rio de Janeiro e proteger a “Causa da liberdade”, gradualmente transformada em “Causa da Nagao” e em “Causa do Brasil”. Essa classe dominante do Centro-Sul brasileiro era Pressionada por seus interesses, pelo medo da revolugio — iminente, como lembra 0 escrito de Sierra y Mariscal* —, e pelos anseios populares ne nce movimentos de rua, tanto naqueles que assumiram maio- Wosdecaee s quanto nos conflitos mitdos que revelavam a eee : etnia e disputas no mercado de trabalho j4em onmacios minantes i lebate das cortes depreendemos ae as cl asst ie cnervaey "i lados do hemisfério a liberdade a ‘icava O i ; is ample 4 a Propriedade, fosse em ambito priva lo ouno circle “ esabelecig lo comércio internacional e dos aes € pol Oui etnacde oa Nessa igualdade da liberdade, reivindica a interpares S, exclufam-se os escravos ¢ libertos dos direitos de cidadao. 145 o BRASIL IMPERIAL — VOLUME 1 Aliberdade, conceito genérico, descia a0 concrete das Tuas €a0 Cotidiang + todos. Devemos afirmar, como Joao J. Reis, que ninguém ee de todos. cussio hipécrita sobre a liberdade, em um pais Majoritaria i ao chegasse a populagao dita de cor’, fosse ela escrava ava a todos os homens pobres, fossem cles sar que a dis mente escravista, ‘ou forra. Mais ainda, cheg; ‘ também brancos € despossufdos, como eram os imigrantes lusitanos que aqui chegavam em busca de oportunidades de conquistar sua autonomia através do trabalho. - / j Os documentos que tratam desse periodo registram a atuacio ladoa lado da tropa e do povo em acontecimentos marcantes. Os lideres dos grupos e os chamados partidos nao estavam sozinhos. A Populagao Pobre estava sempre presente. Gritava palavras de ordem. Identificamos em suas ages e nos “vivas” interesses politicos: a liberdade enquanto forma de autonomia e a participagdo estavam presentes. Para a maioria das Pessoas que compunham 0 povo, ter liberdade traduzia-se em atos pequenos do cotidiano que foram tomando forma ao longo do século XIX e se cons- tituiram em direitos maiores, vinculados a cidadania e ao que passamos a chamar de direitos civis. O fundamental era obter diferentes ganhos, que iam de aspectos pessoais até vantagens sociais, econémicas e politicas. Para os escravos o maior dos beneficios era a alforria, para a qual muitos — mas nem todos — lutavam com todas as forgas. Se por um lado nao devemos esquecer que homens livres pobres, escravos e forros nao tinham necessariamente a mesma interpretag4o dos direitos naturais que sacramentavam os pactos elaborados pela classe dominante, por ou- tro, devemos lembrar que 0 direito Positivo foi ganhando seu espago a0 longo do século XIX, corporificado nos cédigos e na jurisprudéncia. Pés abaixo outras formas tradicionais de direito e de entendimento da pol ticae da liberdade. Propostas politicas populares que envolviam projetos variados para os destinos da nagao foram derrotadas. Elas abriam esP* Sos Para outras leituras de liberdade e do pacto social, mais democraticas- E impressionante quando recordamos os fatos em que existe

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