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Barulho. Silêncio.

Trabalhando com os ecos


da pulsão de morte

Marion Minerbo

Revista Brasileira de Psicanálise Marion Minerbo  é membro efetivo


volume 50, n.4, p. 49-64 · 2016 e analista didata da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São
Paulo SBPSP.

Resumo
Tomando dois casos clínicos como eixo condutor, discute-se
a relação necessária entre processos de adoecimento psíquico
e estratégias terapêuticas. O primeiro caso se caracteriza por
um psiquismo tomado pelo barulho do embate ininterrupto
com seu objeto interno/externo; o segundo, pelo silêncio
de um mundo interno desertificado. A compreensão dos
respectivos processos de adoecimento determina duas
estratégias terapêuticas distintas: desativação do binômio
angústia-defesa no primeiro caso e revitalização psíquica no
segundo.
Palavras-chave
processo de adoecimento; estratégias terapêuticas;
desativação; revitalização.

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Introdução daquela que propicia a simbolização secun-


dária, quando o sofrimento é predominan-
temente neurótico (Roussillon, 1999). Não

E ste texto tem como objetivo discutir


a relação necessária entre os processos de
pretendo entrar nesse tema, que mereceria
um artigo à parte, exceto para dizer que a
grande diferença é a forma de presença do
adoecimento psíquico e as estratégias tera- analista.
pêuticas. Dois casos clínicos serão apresen- Em linhas gerais, diante do sofrimento
tados: um se caracteriza por um psiquismo neurótico, tendemos a trabalhar de modo
tomado pelo barulho do embate ininter- mais reservado (Figueiredo, 2008), ofe-
rupto com seu objeto interno/externo; o recendo com nossa presença discreta a
outro, pelo silêncio de um mundo interno sustentação transferencial para que boa
desertificado. Ambos serão entendidos parte da elaboração seja realizada pelo
como ecos da pulsão de morte. Como próprio paciente. Essa posição só faz sen-
veremos, a compreensão dos respectivos tido em função da organização psíquica
processos de adoecimento determina as desses pacientes: a estrutura enquadrante
estratégias terapêuticas mais produtivas interna está bem instalada e é capaz de
em cada caso. abrigar as representações (Green, 2010);
Em seu texto “Variedades clínicas da o duplo limite (entre sujeito e objeto, e
transferência” (1955/1988), Winnicott deixa entre as instâncias psíquicas) está relativa-
claro que não faz sentido trabalhar com o mente bem constituído, e a rede de repre-
sofrimento narcísico, no qual o eu ainda sentações também. Por tudo isso, podemos
não está suficientemente constituído, da contar com sua capacidade de associação
mesma forma que trabalhamos com o sofri- livre e de simbolização. Nessas condições,
mento neurótico. Plenamente de acordo a reserva do analista não só é possível como
com essa constatação clínica, Roussillon é necessária, e pode ser usada pelo paciente
(2001) se preocupou em justificá-la com de forma produtiva. Ou seja, ele tem todas
base em uma compreensão metapsicoló- as condições para, com a ajuda discreta e
gica. Para isso, ele mostra como os pres- a sustentação do analista, encarregar-se do
supostos sobre o funcionamento psíquico trabalho de simbolização secundária.
implícitos no que ele chama de primeira Quando estamos diante do sofrimento
metapsicologia – que surgiu com a clínica não neurótico (ou narcísico-identitário),
da neurose e vai até a virada de 1920 – são sabemos que a estrutura enquadrante
diferentes dos da segunda metapsicologia. interna apresenta falhas. A  função sim-
É nesse contexto que ele diferencia, do bolizante é precária. Angústias primiti-
ponto de vista das estratégias terapêuticas, a vas invadem e desorganizam o psiquismo.
condução do trabalho de simbolização pri-
mária, obrigatório nos quadros do que ele
denomina sofrimento narcísico-identitário,

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A relação com o objeto é de dependência intuição clínica notável na medida em que


absoluta. A  rede de representações está oscila – eventualmente sem se dar conta –
esburacada. Predomina a lógica da sobre- entre duas manifestações distintas da pul-
vivência e do desespero, que caracteriza são de morte: a destrutividade e a tendência
a clínica da pulsão de morte. Em termos ao zero de excitação. Naturalmente, ambas
de estratégia terapêutica, a prioridade é a estão relacionadas ao trauma precoce. No
progressiva instalação da função simboli- entanto, as estratégias defensivas colocadas
zante. Para retomar a distinção feita por em movimento pelo protossujeito para lidar
Roussillon, o analista trabalha no regis- com a dor/angústia acabaram por determi-
tro da simbolização primária, o que lhe nar formas clínicas opostas: alguns lutam
exige um modo de presença mais impli- por sua sobrevivência tornando-se violen-
cado (Figueiredo, 2008). Isso significa que tos; outros, ao contrário, “lutam” desistindo
ele precisará intervir no campo transferen- de lutar, tornando-se quase inexistentes.
cial-contratransferencial enquanto sujeito: Tenho em mente duas pacientes: Mar-
participar com seu próprio psiquismo não cia, há anos engalfinhada com o marido
apenas na construção do sentido das expe- numa luta de vida ou morte, e Paula, que
riências, mas também no processo de ins- de certa forma já está “psiquicamente
talação da função simbolizante. morta”  – desconectou-se de si mesma a
Em decorrência dessas ideias, entende- ponto de não conseguir afirmar nada de
-se que o analista tenha que trabalhar de próprio e verdadeiro. Na primeira, pre-
modo diferente com a transferência neu- domina o barulho psíquico ensurdecedor
rótica e a não neurótica. Com este texto, produzido pela onipresença do ódio em
pretendo acrescentar um elemento a esse relação ao objeto interno/externo. Na
debate, mostrando a relação necessária entre outra, o silêncio igualmente ensurdecedor
as estratégias terapêuticas e a psicopatologia do zero de excitação: a paz do cemitério.
no seio da própria clínica da pulsão de morte. Os processos de adoecimento são diferentes
Pretendo discriminar duas formas claramente em cada caso. Como veremos, as estraté-
distintas de presença implicada do analista – gias terapêuticas também.
ambas a serviço do processo de simbolização
primária e da instalação da função simbo-
lizante – em seu trabalho com as organi- Barulho
zações não neuróticas.
Para introduzir essa ideia, retomo uma Durante uma primeira longa fase da aná-
intuição poderosa de Freud em Além do lise, Marcia trazia mil situações cotidianas
princípio do prazer (1920/2010). Apesar de em que ficava profundamente irritada com
ser um texto especulativo, ele tem uma o marido. Qualquer coisa que ele dissesse
ou fizesse a irritava. Por exemplo, entrar
em casa e deixar sua mala de trabalho na
sala, em vez de colocá-la no escritório.

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Levou tempo para que o caráter defensivo ameaçador do desinvestimento/abandono


da irritação pudesse aparecer e a angústia por parte dele torna a angústia de morte
da criança-nela pudesse ser acessada por onipresente. Como um espinho no pé,
trás daquele afeto. como um sapato apertado, fere a pele psí-
Por que ficava irritada com a mala na quica tão fina. Mas há muito tempo não
sala? Inicialmente, atribuía ao gesto um sente mais nem a dor nem o terror liga-
sentido convencional: “Ele não liga para dos a essa ameaça. Temos ecos longínquos
mim.” Aos poucos, foi ficando claro que, do disso apenas pela irritação, que também é
ponto de vista dela, esse gesto era uma afir- onipresente.
mação do poder e da superioridade dele, Esbocei aqui, em poucas palavras, minha
como se esfregasse na cara dela a assime- apreensão de seu universo subjetivo. Mas
tria da relação conjugal, assimetria que, era evidente que ela não fazia contato
aos olhos dela, se devia ao fato de que ele algum consigo mesma. Essas experiências
se sentiria superior por ser um empresá- eram vividas, produziam efeitos concretos
rio bem-sucedido e por sustentar a casa – em sua vida, mas não estavam simbolizadas.
embora reconhecesse que ele jamais havia Ao contrário, o que aparecia no cotidiano
sequer sugerido algo nessa linha. Por fim, era o ódio com o qual ela massacrava o
a face ameaçadora desse poder, ou dessa marido. Sem escuta analítica, seria impossí-
assimetria, também acabou aparecendo: o vel suspeitar do grau de dependência, fragi-
marido era vivido como uma “entidade” lidade e dor escondido por trás de tamanha
acima do bem e do mal. A mala na sala agressividade. Ele, com certeza, não estava
significava que ele podia tudo e ela nada, a em posição que lhe permitisse isso.
não ser se submeter, já que “dependia dele Por suas características pessoais, o
para tudo” – embora isso não correspon- marido era a encarnação perfeita de uma
desse, de forma alguma, à realidade, como mãe incapaz de empatizar com a “ranhe-
ela mesma reconhecia. tice” da criança, de interpretá-la como
Obviamente, o marido é um repre- expressão de algum tipo de sofrimento,
sentante do objeto primário com quem de fazer um gesto de acolhimento ou de
a criança-em-Marcia continua misturada tentar “traduzir” em palavras o que se está
e confundida. Esse objeto ainda é vivido tentando dizer por meio de um comporta-
como detentor dos poderes de vida e morte mento – embora de um jeito tão torto. Essa
sobre ela. Desde que se lembra por gente, figura interna/externa (mãe/marido) fazia
um terrível barulho de fundo acompanha justamente o oposto: acusava-a de ser exa-
sua existência: “Você não é o suficiente para gerada, chata e rancorosa. Essa resposta não
mim, não é quem eu esperava, não é quem empática e acusatória amplificava a angús-
eu desejava.” Essa é a voz aterrorizante do tia, no lugar de contê-la e transformá-la. E
objeto interno que não silencia nunca,
que a desorganiza psiquicamente e com
a qual se debate sem trégua. O espectro

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então o desespero da criança-em-Marcia em vez de angústia, cabe falar em agonia,


aumentava, porque se confirmava a certeza que é a entrega passiva à morte. Em vez de
de “não ser o esperado”, “não ser o dese- agitação e barulho, temos silêncio, desobje-
jado”, o que a deixava ainda mais irritada… talização, tendência ao zero de excitação: o
O fracasso do objeto em cuidar da angús- sujeito se faz de morto para sobreviver. Esse
tia põe em movimento um círculo vicioso: é o processo de adoecimento que veremos
quando a agressividade da criança é mal com o caso de Paula.
interpretada pelo objeto, este reage neces- Retorno a Marcia para insistir no fato
sariamente com graus variáveis de hostili- de que a ativação contínua das angústias
dade, o que pode ser vivido como ameaça à e defesas leva o processo ao paroxismo,
integridade somatopsíquica, amplificando prejudicando sua capacidade de realizar
a angústia. Defensivamente, ela se desco- trabalho psíquico. Muitas das cenas de
necta da experiência traumática, tornando- violência doméstica descritas podem ser
-se violenta para se defender do objeto que entendidas como efeito do curto-circuito
coloca sua existência em perigo. Ou seja, da capacidade de pensar. Mas o ódio tinha
a criança-em-Marcia adoece por ativação também a função de “neutralizar” a angús-
excessiva das defesas, o que acaba preju- tia de morte, contanto que fosse acionado o
dicando suas capacidades de trabalho psí- tempo todo e cada vez mais. Por isso os dois
quico (Figueiredo, 2016). O sofrimento daí se engalfinhavam há anos e a relação estava
decorrente se manifesta na forma de confli- cristalizada no modo da irritação recíproca.
tos mais ou menos barulhentos, agitação, Retomo o eixo condutor deste texto, a
ódio e violência, o que sinaliza a luta ativa saber, a relação necessária entre as várias
do eu por sua sobrevivência. modalidades de sofrimento psíquico, os
Esse caso ilustra exemplarmente os respectivos processos de adoecimento e as
adoecimentos por ativação, em contraste estratégias terapêuticas mais produtivas em
com os adoecimentos por passivação cada caso. Ao reconhecer adoecimentos
(Figueiredo, 2016), como veremos em deta- por ativação e por passivação, Figueiredo
lhes mais adiante. Nestes últimos, a capa- (2016) estabelece as bases metapsicológicas
cidade de defesa do psiquismo se esgotou, para delinear duas grandes estratégias tera-
e a sobrevivência se dá às custas da extin- pêuticas: (1) quando o adoecimento se dá
ção de áreas do psiquismo. Essa extinção por ativação excessiva do binômio angús-
ou necrose de tecido psíquico bem como tia-defesa, a estratégia necessária para resta-
as áreas do psiquismo que não chegaram a belecer a capacidade de trabalho psíquico
nascer (Roussillon, 2010) acabam interrom- é o que ele chamou de desativação – é o
pendo precocemente a capacidade de rea- que veremos agora em detalhe com o caso
lizar o necessário trabalho psíquico. Aqui, de Marcia; (2) quando o adoecimento se
dá por passivação, quer dizer, pela desis-
tência e pela entrega a uma forma de não
existência, de morte em vida, a estratégia

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necessária é o que ele chamou de revitali- (2011) denomina de apaziguamento simbo-


zação – veremos adiante como isso foi rea- lizante, expressão que me agrada porque
lizado na análise de Paula. enfatiza a dimensão simbolizante da ativi-
Com Marcia, precisei encontrar cami- dade de cuidar/apaziguar/conter a angústia.
nhos para a desativação do binômio angús- Tudo isso faz parte do que Figueiredo (2016)
tia-defesa, o que me exigia uma posição chamou de estratégias de desativação.
mais implicada no campo transferencial- Durante muito tempo, o material clí-
-contratransferencial. Mas que tipo de nico de Marcia tinha o mesmo jeitão: rela-
implicação favorece essa desativação? Dife- tos das brigas com o marido. Como vimos,
renciando-se do objeto primário, o analista a violência indica que ela está se debatendo
precisará “cuidar da angústia” (Figueiredo, e lutando para salvar sua vida. O material
2016) para que ela não se torne excessiva. não tem características oníricas, e sim a
Temos que nos aproximar com cautela fixidez e a repetição do sonho de angús-
dessa expressão. Naturalmente, a empa- tia – são verdadeiros pesadelos cotidianos.
tia que permite reconhecer os afetos em Essas características indicam que o pro-
jogo é fundamental. É importante dizer cesso de simbolização primária foi inter-
algo como: “Se você entende que deixar a rompido pelo trauma precoce e precisa ser
mala na sala é uma maneira de esfregar na retomado na transferência.
sua cara a superioridade dele, eu entendo Cuidar da angústia significa, inicial-
que você fique com ódio.” mente, dizer a ela que eu sou sensível ao
Por outro lado, também é fundamental fato de que ela convive desde sempre com
ser capaz de conter e transformar a angús- um espinho no pé; que percebo que o local
tia. Ser continente não significa ser “afetivo” sangra continuamente e que, em vez de
nem dar razão ao paciente, mas dar inteli- cicatrizar ou de criar um calo, a ferida só
gibilidade à violência (defensiva) da crian- aumenta. Como não se dá conta de nada
ça-nela, que para o senso comum parece disso, eu preciso me encarregar de lhe con-
desproporcional. Além disso, será necessá- tar que sente um desconforto, mas que não
rio transformar a angústia, o que depende faz a menor ideia do que seja nem de onde
da possibilidade de criar sentido para as vem, e que talvez sua irritação tenha a ver
experiências. Será necessário imaginar com esse desconforto. Em vez de se ver
onde, como e por que aquela experiência apenas como “exagerada, chata e ranco-
está sendo vivida pela criança-no-paciente rosa” (“não sou o esperado”), começa a se
como ameaça à sua integridade somatop- perceber também como alguém que sofre,
síquica. Por exemplo, dizendo algo como: o que já é um esboço de sentido. Quando
“Você fica apavorada quando ele reclama eu lhe conto o que imagino que ela sente,
da sua chatice porque, para você, isso já é pode se reconhecer nas minhas palavras, e
a antessala do abandono.”
Esses dois tempos – continência e trans-
formação  – produzem o que Roussillon

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a conexão entre ela e ela mesma começa a Em algum momento, consegui me


se (re)estabelecer. identificar com a criança-nela e imaginar
Note-se que não estou apenas favore- a cena da mala como uma cena de abuso
cendo, ou aguardando, a emergência de de poder. Para a criança-nela, a mala lar-
associações, em uma postura mais reser- gada na sala é a “prova” de que o marido/
vada. Os  pesadelos cotidianos indicam a entidade/objeto primário pode tudo. Do
impossibilidade de representar (o traumá- alto de sua importância, ele certamente
tico interrompeu o processo de represen- não se interessa pela criatura insignificante
tação!), e portanto de associar livremente. que ela é. Sequer é capaz de enxergar suas
Minha postura é mais ativa na medida em necessidades, muito menos o estado de tur-
que compartilho com ela a imagem do espi- bulência e desorganização psíquica em que
nho no pé, que é uma produção do meu psi- ela é arremessada ao ver a mala na sala. Na
quismo, e dou meu testemunho a respeito cena que eu imagino, em vez de reconhe-
de uma dor que se desconhece enquanto cer sua participação na turbulência criada,
dor. Estou diretamente implicada na oferta e abusando de seu poder, o objeto primário
de “material psíquico” – representações – decreta que a criança é chata e exagerada.
que ela possa começar a usar. A repetição de cenas desse tipo acaba por
Cuidar da angústia para a desativação se inscrever “na carne” como uma identi-
das defesas pode exigir ainda mais do ana- ficação: “Não sou o esperado.”
lista implicado. Roussillon fala em ir “em É importante esclarecer que não estou
busca do traumatismo perdido” (2006, afirmando que o marido abusa dela, mas
p. 218). Não basta dar o meu testemunho que o termo “abuso” faz sentido do ponto de
de que há um espinho no pé. É preciso vista da experiência da criança. Se houvesse
também tentar “sonhar” por ela de que ali um terceiro, o suposto abuso poderia ter
espinho se trata. Em termos freudianos, sido significado por ele como absoluta falta
estamos no terreno das construções em aná- de empatia, o que teria relativizado o sen-
lise. A partir do material, o analista sonha/ tido imposto pelo objeto primário, vivido
constrói, fazendo uso de sua imaginação pela criança como absoluto (“chata e exa-
clínica, a cena (traumática) do passado, gerada”). É por isso que a estratégia de
que, correspondendo ou não a uma ver- desativação da angústia passa também pela
dade histórica, contém verdade emocional construção, na transferência, do lugar e da
suficiente para produzir um efeito de con- função do terceiro, que sistematicamente
vicção e relançar o processo associativo. não estava presente na cena. A construção
O analista procura oferecer material psí- desse lugar supõe que eu intervenha exer-
quico que ela possa usar para “cerzir” os cendo a função do terceiro. Então eu lhe
buracos de simbolização. digo: “Talvez você se torne chata quando
sente que ele pode tudo e você, nada.”
O trágico nisso tudo é que, com a ati-
vação progressiva do ciclo angústia/defesa,

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a criança-nela se tornava realmente insu- há três anos eu lhe dizia coisas nessa linha.
portável. Em seus outros relacionamentos, Mas só quando ela é capaz de reconhecer
Marcia é uma pessoa encantadora e engra- esse novo objeto na figura do chefe pode-
çada; estuda, trabalha, cuida dos filhos. mos ter certeza de que a relação, nascida
Naturalmente, gasta uma energia enorme no campo transferencial, foi de fato inter-
para viver, porque faz tudo isso apesar do nalizada. Ela começa a baixar a guarda,
barulho do embate com seu objeto interno, dando continuidade ao processo de desa-
que não cessa nunca. tivação das defesas.
Em algum momento, Marcia se deu Como sabemos, são as áreas de não
conta de que até torcia para que o marido separação sujeito-objeto que produzem
fizesse “algo errado” que justificasse seu o engalfinhamento com os representan-
ódio. Ao mesmo tempo, não aguentava tes atuais do objeto, indicando a atividade
mais brigar. E foi isso que nos colocou de um núcleo psicótico. Decorridos cinco
na pista de que precisava do ódio contra anos de análise, parece-me que a estraté-
o marido como um viciado precisa de sua gia de desativação acabou tornando pos-
dose diária de droga. Para que necessitava sível essa separação. Recolhidas todas as
desse ódio que tanto mal lhe fazia? Outra projeções, não é exagero dizer que ela está
associação importante foi que, ao contrário enxergando o próprio marido pela primeira
de sua amiga, que chorava praticamente vez. Ela mesma percebe essa diferença.
em todas as sessões de análise, Marcia não A mesma mala volta, agora em um con-
chorava nunca. Foi então que ela se deu texto completamente diferente. Ela havia
conta de que simplesmente não sabia o dito que ele precisava trocar sua mala de
que era ficar triste. Podia imaginar o que trabalho, que está bastante surrada, mas ele
seria ficar em “estado catatônico” (enten- não fez nada a respeito. Antes, essa atitude
da-se: melancólico), mas a tristeza lhe era seria o suficiente para ela pular de ódio no
inconcebível. Fomos reconhecendo que o pescoço dele, e isso por dois motivos: em
ódio lhe dava uma “força” que a protegia função da não separação sujeito-objeto, a
de “ficar catatônica”. “culpa” pelo marido andar com aquela mala
Depois de três anos de trabalho, um era vivida como se fosse dela, e o fato de ele
primeiro objeto empático aparece em sua não fazer nada a respeito era a prova de que
paisagem emocional. Ao comentar com o ele não dava importância ao que ela dizia.
chefe sobre uma situação difícil pela qual Hoje, é muito claro que ela não tem
passou quando morava em outro país, ela nada a ver com a mala que o marido usa
o escuta dizer: “Eu também morei fora do para trabalhar. O  estado daquele objeto
Brasil. Entendo perfeitamente o que você não diz nada sobre ela, apenas sobre
está dizendo.” Essa frase foi uma revelação, o dono. Por exemplo, que ele é “meio
um divisor de águas. Não se lembrava, ao
longo de 40 anos de vida, de jamais ter
escutado isso de alguém! Naturalmente,

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autista”  – provavelmente, nem reparou a rede social e profissional do marido, teria


no estado da mala e por isso não faz nada muitas opções. Seria muito fácil abraçar
a respeito. Muito aliviada, diz que a vida uma das causas sociais que ele apoia.
ficou muito mais leve agora que não gasta O  problema é que ela não consegue se
tempo e energia com essas brigas. Ao entusiasmar por nada. Não há ninguém-
mesmo tempo, a tristeza de perceber onde -nela capaz de ter uma ideia, formular um
e como desperdiçou sua vida, bem como a desejo ou investir alguma coisa no mundo.
solidão em que viveu todos esses anos, veio Depois de algum tempo de análise, já per-
com tudo. “Antes eu não chorava nunca. cebe vagamente que é esse o problema.
Agora choro o tempo todo.” Contudo, fica Adorava quando era secretária. Pergun-
muito surpresa ao constatar que tudo isso a to-lhe do que gostava. Ela responde que
deixa mais forte, e não “catatônica”, como gostava de ter um lugar para ir, horário
sempre imaginou. para cumprir, uma função e tarefas, que
executava de forma eficiente. Entendo que
esse trabalho era perfeito para ela em vários
Silêncio níveis. Funcionava como um enquadre que
lhe dava uma sustentação firme no tempo
Bela mulher de uns 30 e poucos anos, e no espaço. Não era necessário ter cria-
Paula namora um empresário de quem foi tividade, apenas eficiência. Como nunca
secretária. Na entrevista, fico sabendo que faltavam tarefas, estava engajada em um
foi sozinha passar o Natal na Disney. Estra- modo de vida operatório que a protegia do
nho a ausência de vínculos, e mais ainda tédio e do vazio que sente agora.
a escolha do lugar. Comenta que adora as A incapacidade de investir alguma coisa
sensações da montanha-russa. Só depois poderia ser confundida com um estado
isso fez sentido para mim: sensações fortes melancólico, mas esse vazio é o resultado
lhe proporcionam a experiência fugaz de da mais absoluta falta de criatividade psí-
estar viva. Mais tarde, venho a saber que quica. Não sabe o que fazer consigo mesma
na adolescência era adepta de esportes radi- nem com o seu tempo. Certa tarde, deci-
cais, ou seja, a busca de sensações fortes já diu arrumar armários. Conseguiu ocu-
era um modo de vida. par-se durante cinco horas. Pelo menos,
Casou-se com o empresário. Tem uma durante esse tempo, não ficou se atormen-
vida confortável. Mas agora vive atormen- tando com a ideia de que precisava encon-
tada pela ideia de que não trabalha. Não trar um trabalho. Uso a palavra vazio para
tem o que responder quando, nas festas, lhe descrever o sofrimento ligado ao silêncio
perguntam o que faz. Gostaria de poder ensurdecedor de seu mundo interno.
dizer que é empresária ou arquiteta. Com É terrível não conseguir se sentir uma
pessoa como os outros, mas um simulacro
de pessoa – e, para ela, trabalhar é ser como
os outros. Tento formular algo nessa linha,

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mas percebo que é prematuro, pois ela se para dentro, serve para encobrir a morte
agarra a uma justificativa convencional: em vida. Por tudo isso, a estratégia tera-
“Não quero ser apenas uma dona de casa.” pêutica tem de ser diferente daquela que
(Lembro-me da explicação igualmente usei com Marcia. O trabalho é mais difícil:
convencional que Marcia dava ao fato de construir – ou revitalizar – o próprio tecido
se irritar com o marido: “Ele não liga para psíquico que poderia vir a sentir alguma
mim.”) Acaba encontrando um caminho coisa.
para “ser como todo mundo”: engravida. Não foi difícil reconhecer o padrão
Quando lhe perguntarem o que faz, poderá transferencial que se instalou nas sessões.
responder: “Sou mãe. Cuido do meu Chega pontualmente, deita-se e cumpre
filho.” É uma atuação, mais uma maneira rigorosamente o que entende ser sua tarefa:
de tentar se construir de fora para dentro. falar. Mas o que é, para ela, falar? Não é
Preocupa-me perceber que não consegue dizer algo significativo, e sim preencher
sonhar o seu bebê. O marido parece mais o silêncio. É o que ela faz. Usa palavras
entusiasmado do que ela. que não são do seu vocabulário e discorre
A escuta analítica e, principalmente, a sobre temas que não conhece. Não conse-
contratransferência me permitiram ir cons- gue completar as frases. Enfim, é evidente
truindo uma compreensão de seu sofri- que ela não está realmente ali, naquilo que
mento. Como no caso de Marcia, há um está me dizendo. Paula é uma moça inte-
espinho no pé. Só que aqui é a ausência e ligente, mas não há ninguém ali dentro
o vazio que funcionam como uma presença que realmente tenha alguma opinião sobre
dolorosa, e não a onipresença do marido- alguma coisa. Por trás da personagem sor-
-entidade. Ao contrário de Marcia, que ridente e elegante, construída de fora para
pelo menos se irrita com ele – o que mostra dentro graças às roupas e acessórios, não
algum eco, ainda que longínquo, da dor do há nada. Ela sofre porque intui vagamente
espinho –, Paula encontrou uma solução que nada-nela é de verdade.
muito mais radical: amputou a parte de si Essa modalidade de transferência pro-
que poderia sentir dor. Ela não sente nada. duz em mim a sensação de estar falando
Vimos com Marcia que a ativação com um autômato. Esse campo trans-
excessiva das defesas travava a capacidade ferencial me permitiu reconstruir (para
de realizar trabalho psíquico. Com Paula mim mesma) a relação entre a criança e
é diferente: essa incapacidade tem a ver um objeto primário que não tinha acesso
com a falta de tecido psíquico. Ela não ao que chamamos de mundo emocional, de
se angustia. No lugar desse afeto temos o tal forma que áreas inteiras do psiquismo
tédio, o senso de futilidade, a depressão de Paula nunca foram vistas, reconheci-
sem tristeza. Essa configuração é típica das das e “ativadas” na relação intersubjetiva.
patologias do vazio e dos pacientes psicos-
somáticos. Mesmo o falso self, que é uma
tentativa de construir uma vida de fora

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Marion Minerbo

O  funcionamento operatório do objeto camadas de irritação, bem como a cena de


impede certas funções psíquicas de nas- “abuso de poder” por parte de uma figura
cerem: as preconcepções inatas permane- parental não empática. Aqui, meu trabalho
cem em estado potencial, não nascidas; ou era bem diferente. Eu tinha que acessar
então, as funções psíquicas, ainda incipien- algo de verdadeiro e genuíno soterrado por
tes, foram simplesmente desativadas. baixo do falso self.
Conta que, quando criança, a mãe resol- Quando volta de uma viagem, cumpre
veu que ela e suas três irmãs tinham que rigorosamente o que imagina ser sua tarefa:
aprender a tocar piano. Em sua casa, tudo “me entrega” relatórios fidedignos sobre
era por “atacado”. Ao fim do segundo ano, tudo o que viu. Não tenho a menor ideia
a professora chamou a mãe para dizer que do que dizer. Nada, absolutamente nada
a garota obviamente não gostava de piano. me ocorre. Experimento em mim o terrível
Mas Paula sequer tinha contato com o vazio produzido por uma fala totalmente
fato de que não gostava. Tinha que tocar operatória. É assustadora a ausência de um
e tocava. Nem ela se queixava, nem a mãe comentário mais vivo, mais pessoal. Como
percebia. já mencionei, imagino que essa tenha sido
Nessa família em que ninguém conver- a experiência da criança que ela foi, diante
sava com ninguém, foi através das letras das do psiquismo-autômato da mãe. Mas de
músicas que começou a fazer contato com vez em quando escapa algo como: “Adorei
algo além da concretude do cotidiano. Elas a loja X.” Aqui há verdade!
forneciam palavras para nomear experiên- Agarro a oportunidade: se eu conheço a
cias e sentimentos da adolescente que era. loja, faço algum comentário sobre ela; se
Até que foi obrigada a se desfazer de seus eu não conheço, peço que me descreva o
preciosos CDs, porque a mãe entendeu que que viu, o que comprou, e então comento
não eram boa influência para ela. Pergun- alguma coisa que faça sentido para mim.
tei se ela sofreu. A resposta foi não. A parte É uma maneira de resgatar e legitimar
de si que poderia sentir alguma coisa de algo de vivo e próprio, antes que submerja
próprio, de real, de verdadeiro, ou nunca novamente no mar da hiperadaptação ao
veio à luz, ou então foi desativada. outro. Trabalhar de forma implicada com
Como foi dito na introdução, o analista essa paciente significa “ir ao encontro de
que trabalha com o sofrimento não neuró- alguma vida ainda pulsante soterrada sob
tico se posiciona de forma implicada, quer grossas camadas de matéria morta” (Figuei-
dizer, faz um uso mais intenso de seu pró- redo, 2016).
prio aparelho psíquico. Vimos no caso de “Todas as tardes vejo pela janela uma
Marcia como foi importante eu tentar ima- velhinha assistindo TV.” A comunicação
ginar a angústia soterrada por camadas e se parece com uma manchete de jor-
nal. Depende de mim transformá-la em
algo mais vivo. Ela entraria em pânico
se eu lhe pedisse associações, pois não há

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60 Revista Brasileira de Psicanálise
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ninguém-nela para associar. Provavelmente inteligência, mas será mais uma manifes-
me daria uma resposta em falso self. Por tação em falso self. Aqui, o analista precisa
isso, cabe a mim fazer o que um autômato abandonar um modo de escuta quase auto-
não faz: usar minha criatividade psíquica mático (!) e se conformar: transparente é
para introduzir alguma espessura emocio- transparente.
nal no relato. Então eu lhe digo: “Talvez Descartado o uso metafórico, que sen-
fique entediada vendo TV. Talvez esteja feliz tido eu poderia dar a uma fala como essa?
por fazer o que gosta.” Que ela tem um olhar singular sobre o
Introduzo alguma matéria-prima psíquica mundo? Que esse olhar provém “do inte-
que, de alguma forma, lhe diz respeito. Não rior” de uma pessoa? Ou então, talvez ela
apenas tédio e solidão, mas também algo esteja em busca da imagem dela no meu
que apenas vislumbra: a alegria de poder “interior”: como as coisas que ela diz reper-
estar “de verdade” naquilo que se faz. Paula cutem em mim? Não sei. Mas é fundamen-
responde que acha terrível alguém gastar sua tal que eu lhe devolva o que poderia haver
vida assim, sem fazer nada. A resposta, que de vivo e genuíno no que acaba de dizer.
contém uma vibração afetiva, mostra que Então eu digo: “Tem coisas que estão aí bem
não só ela conseguiu usar a matéria-prima debaixo do nariz de todo mundo, mas pou-
que lhe ofereci como também acrescentou cos enxergam. Se você fosse fotógrafa, prova-
algo próprio (“É terrível gastar a vida…”). velmente daria uma foto diferente.”
Esse é um exemplo da estratégia de revita- Alguma sedução e um firme trabalho
lização de tecido psíquico através de uma de reanimação – recorrendo, sempre que
variante do jogo do rabisco: ela traz a cena possível, à minha criatividade psíquica –
da velhinha, eu proponho duas leituras, ela são manejos que fazem parte da estratégia
completa com a dela. de revitalização. A  mãe precisa seduzir
“Vi na esquina uma mulher albina. a criança para a vida. Assim como uso a
Nunca tinha visto uma pessoa quase trans- velhinha da TV para criar tecido psíquico,
parente.” A comunicação se encerra no uso sua observação sobre a pele quase trans-
puro relato do fato. Entendo que a pobreza parente para lhe contar que ali há um olhar
de vida interior a obrigue a ficar aderida singular de uma pessoa singular. Graças a
aos estímulos “de fora”, com os olhos gru- esse espelhamento, pode se perceber e se
dados na cor da pele de uma pessoa que ela reconhecer; firma-se, nesse processo, seu
vê na rua. Naturalmente, guardo isso para sentimento de existir.
mim. O que eu posso tentar fazer é conferir Além do manejo e do espelhamento, é
alguma espessura ao relato “cavando” um fundamental não deixar que a fala dela caia
espaço interior. no vazio. Nesses dois exemplos, não posso
Com Paula, eu não posso tomar o suges- ficar em silêncio. Luto contra o vazio que
tivo significante transparente em seu sen-
tido metafórico. Se eu fizer isso, ela até
pode aderir e manejar a metáfora com

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Barulho. Silêncio. Trabalhando com os ecos da pulsão de morte 61
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quase me paralisa e intervenho para lhe para sobreviver: eis o processo de adoeci-
oferecer uma sustentação  – não apenas mento que produziu essa forma tão parti-
com minhas palavras, mas com minha pró- cular de sofrimento psíquico.
pria atividade psíquica. Se no caso de Mar- Certa vez, no banho, ficou curtindo a
cia era fundamental conter e transformar água bem quente em seu corpo. Quando
a angústia, aqui, na ausência desse afeto, viu, estava chorando. Soluçava. Tive a
o que se impõe é oferecer um holding impressão de que no lugar da angústia
vigoroso. A  sustentação de um ambiente branca, da depressão sem tristeza, havia
psíquico na e pela transferência é funda- tristeza e angústia verdadeiras por perce-
mental para que se constitua, “de dentro ber o vazio dramático de sua existência.
para fora”, a experiência de ser e de existir. O tecido psíquico começa a se revitalizar.
Lentamente, as coisas começam a se Como muitas de minhas pacientes, adorou
mexer. Não por acaso, a primeira coisa o filme Aquarius. Descreve uma mulher que
que começa a investir genuinamente é o enfrenta as empreiteiras que querem com-
corpo. Começou a frequentar uma aca- prar seu apartamento. Paula fica tocada ao
demia de ginástica, e também o pilates, ver como essa mulher luta para preservar a
que lhe proporciona o prazer de sentir a vida – simples, mas plena – que havia cons-
flexibilidade do próprio corpo. Depois dos truído para si. Esse material sugere que está
exercícios, gosta de sentir as dores muscu- em trânsito entre a estratégia conhecida, de
lares, pois indicam que seu corpo existe. se fingir de morta para sobreviver, e outra,
Para além das roupas que estão a serviço na qual é possível afirmar algo próprio e
de construir uma personagem, começa a lutar pelo direito de existir.
haver um esboço genuíno de ego corpo- Começa a não querer coisas. De vez em
ral. Ainda é um prazer puramente senso- quando, comenta que não foi viajar com
rial, mas muito diferente da adrenalina da o marido para não perder sua rotina, suas
montanha-russa. sessões, sua ginástica. Conseguiu dizer
O rádio do carro está sempre na esta- para uma visita que não mostrava sinais
ção que toca música clássica, conforme de querer ir embora que sentia muito,
o gosto do marido. Hoje, vindo para a mas tinha que sair para um compromisso.
análise, ocorreu-lhe que poderia mudar Certa noite, disse ao marido que não que-
de estação para ouvir as músicas de que ria mais ver TV, preferia conversar. Para ela,
gosta. “Claro que depois eu deixo do jeito essas afirmações de algo próprio são gran-
que estava.” Digo então: “Tem medo que des conquistas.
percebam quem você é, do que você gosta; Um dia me anuncia que não quer
medo que percebam que você é uma pessoa.” mais vir à análise três vezes por semana.
Não deixar marcas, tornar-se transparente Eu havia me questionado se esse ritmo
não seria excessivo. Em duas ou três oca-
siões, eu lhe fiz essa pergunta, e a resposta
foi: “Não.” Hoje entendo que não havia

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ninguém-nela para saber se aquilo era, ou que se sente livre para deixar as marcas de
não, excessivo – como não houvera nin- sua singularidade. Não quis alugar para um
guém-nela para saber se ela gostava ou não casal que queria mudar a decoração. Con-
de piano. Como a mãe-autômato, ofereci seguiu alugar para outro, que adorou exata-
um enquadre “por atacado”, e ela sim- mente como estava, o que a deixou muito
plesmente aceitou. Confundi a resposta feliz. Tanto o fotógrafo quanto o casal que
de um sujeito ainda por nascer com a de adorou a decoração nos dão notícias do novo
um sujeito já em contato com seu desejo! objeto que vai sendo construído na transferên-
Viu uma exposição de fotos das malas de cia: aquele que é capaz de reconhecer – no
pessoas que tinham vivido em uma institui- duplo sentido de enxergar e valorizar  –
ção psiquiátrica. Soube que no começo o quem ela é “de verdade”.
fotógrafo procurou as fichas médicas para Esse processo, contudo, não se dá sem
saber quem tinham sido aquelas pessoas. resistências. Ela acompanha o marido em
Depois, percebeu que as próprias malas uma intensa vida social, na qual ocupa um
contavam muito mais de sua história do lugar discreto. Em certo jantar, inesperada-
que uma ficha. Esse material indica a pos- mente alguém lhe faz uma pergunta direta:
sibilidade de abandonar uma abordagem “Paula, em que maternidade vai dar à luz?”
operatória – as fichas médicas – em favor Sentiu uma flechada no peito, entrou em
de um olhar atento à singularidade de cada pânico e respondeu rapidamente. Nem
um – as malas. Em vez de precisarem ser bem se recupera, nova pergunta direta
apagadas  – como fez com a estação de sobre o bebê. Mesma sensação, mesma res-
rádio que toca as músicas que aprecia –, posta rápida. Essa cena mostra a que ponto
tais marcas são valorizadas, ou não esta- a “não existência” como defesa se cristali-
riam sendo expostas na galeria. zou e se tornou um modo de vida neces-
Tem um pequeno apartamento cujo alu- sário. É na transferência que a experiência
guel lhe proporciona uma renda. É princi- suficiente, mas não excessiva, de ser vista
palmente lá, na escolha de móveis e objetos, e de existir para o outro pode revitalizar
sua vida psíquica sem despertar resistên-
cias excessivas.

Finalizando

Retomo a discussão sobre a relação entre


processos de adoecimento e estratégias tera-
pêuticas indicando os elementos teóricos

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que dão sustentação às formas de traba- que o psiquismo tem capacidades inesgo-
lhar que apresentei. É importante que um táveis para se defender de forma ativa da
analista consiga justificar metapsicologica- angústia produzida pelas ameaças à integri-
mente o que faz, principalmente quando dade somatopsíquica. A segunda é a matriz
uma análise lhe exige intensa implicação, ferencziana. Aqui, ao contrário, os autores
e isso para evitar dois riscos opostos: o de admitem que as capacidades do psiquismo
uma clínica alheia à problemática singular de se defender do que ameaça sua sobrevi-
do paciente e o de outra alheia aos funda- vência podem se esgotar. O trauma precoce
mentos terapêuticos da psicanálise. pode aniquilar as capacidades de defesa de
Os dois casos apresentados me vieram à tal forma que as angústias são evitadas por
mente quando li o texto “Matrizes e mode- uma extinção de áreas do psiquismo.
los de adoecimento psíquico em psicaná- Marcia ilustra exemplarmente a matriz
lise”, de Luís Claudio Figueiredo (2016). freudo-kleiniana; Paula, a matriz ferenc-
A compreensão e nomeação dos processos ziana. Em Marcia, é o excesso de ativação
de adoecimento apresentada pelo autor, das defesas que trava a capacidade de rea-
bem como a compreensão e nomeação lizar trabalho psíquico; em Paula, a falta
das estratégias terapêuticas corresponden- de tecido psíquico vivo produz o mesmo
tes me ajudaram a pensar de forma mais resultado. A compreensão dos respectivos
organizada sobre o trabalho que vinha rea- processos de adoecimento determina e, ao
lizando com as duas pacientes. mesmo tempo, dá um embasamento teó-
O autor faz uma leitura crítica da his- rico às estratégias terapêuticas utilizadas:
tória do pensamento psicanalítico com o desativação do binômio angústia-defesa no
objetivo de reconhecer como a psicanálise primeiro caso, revitalização no segundo.
pensou os processos de adoecimento psí- Espero ter conseguido não apenas ilus-
quico, de Freud até os contemporâneos. trar, mas também justificar as duas moda-
O objeto de sua leitura não é a psicopato- lidades de implicação do analista que
logia em si – sofrimento neurótico ou não trabalha com os ecos da pulsão de morte.
neurótico –, mas como os autores pensa-
ram os processos que resultam em tais for-
mas de sofrimento. Esse autor encontrou
na literatura duas grandes matrizes teóri-
cas que permitem entender os processos
de adoecimento psíquico.
Nomeou a primeira de matriz freudo-
-kleiniana. Os  autores que trabalham
nessa matriz partem do pressuposto de

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64 Barulho. Silêncio. Trabalhando com os ecos da pulsão de morte
Marion Minerbo

Ruido. Silencio. El trabajo con los ecos de la pulsión Noise. Silence. Working with death drive echoes
de muerte
By building this paper upon two clinical vignettes, the
Tomando dos casos como eje conductor, la author discusses the necessary relationship between
autora analiza la relación necesaria entre los the psychopathological processes and therapeutic
procesos psicopatológicos y la especificidad de strategies. The first case is characterized by a psyche
las estrategias terapéuticas. El primer caso se that is taken by the noise of an uninterrupted collision
caracteriza por una psique tomada por el ruido with its internal/external object. The other case is
de la lucha ininterrumpida con su objeto interno/ characterized by the silence of an inner world that
externo; el segundo, por el silencio de un mundo becomes desert. Understanding these cases and their
interno desertificado. La comprensión de los respective psychopathological processes defines
procesos psicopatológicos determina las estrategias two different therapeutic strategies: deactivation
terapéuticas necesarias: la desactivación del binomio of the anxiety-defense binomial (i.e., anxiety-
angustia-defensa en el primer caso, y la revitalización defense mechanisms) in the first case, and psychic
psíquica en el segundo. revitalization in the second case.
Palabras clave: procesos psicopatológicos; estrategias Keywords: psychopathological processes; therapeutic
terapéuticas; desactivación; revitalización. strategies; deactivation; revitalization.

Referências
Figueiredo, L. C. (2008). Presença, implicação e reserva. In Roussillon, R. (2006). O traumatismo perdido. In R. Rou-
L. C. Figueiredo & N. Coelho Jr. (Orgs.), Ética e técnica ssillon, Paradoxos e situações limites da psicanálise (P.
em psicanálise (2a ed., pp. 13-66). São Paulo: Escuta. Neves, Trad., pp. 213-229). São Leopoldo, RS: Unisinos.
Figueiredo, L. C. (2016). Matrizes e modelos de adoeci- Roussillon, R. (2010). La perte du potentiel: perdre ce que
mento psíquico em psicanálise. Texto não publicado. n’a pas eu lieu. In A. Braconnier & B. Golse (Orgs.),
Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Dépression du bébé, dépression de l’adolescent (pp. 251-
Obras completas (P. C. de Souza, Trad., Vol. 14, pp. 264). Toulouse: Erès.
161-239). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho Roussillon, R. (2011). A  intersubjetividade e a função
original publicado em 1920) mensageira da pulsão. Revista Brasileira de Psicaná-
Green, A. (2010). O trabalho do negativo (F. Murad, Trad.). lise, 45(3) 159-166.
Porto Alegre: Artmed. Winnicott, D. W. (1988). Variedades clínicas da transferên-
Roussillon, R. (1999). Agonie, clivage et symbolisation. cia. In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise (J.
Paris: PUF. Russo, Trad., pp. 483-489). Rio de Janeiro: Francisco
Roussillon, R. (2001). Le plaisir et la répétition. Paris: Dunod. Alves. (Trabalho original publicado em 1955)

[Recebido em 26.9.2016, aceito em 10.10.2016] Marion Minerbo


Rua Alcides Pertiga, 78, Cerqueira César
01453-100 São Paulo, SP
Tel.: 11 3898-0074
marion.minerbo@terra.com.br

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