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17.

BIOTECNOLOGIA E SAÚDE / AS VACINAS

AS DOENÇAS INFECCIOSAS

O cultivo de plantas e a domesticação de animais aumentaram a disponibilidade de alimentos e,


como consequência, a densidade das populações humanas e sua sedentarização. Essas condições
possibilitaram a passagem de germes dos animais domesticados ao homem, originando doenças
como a varíola, o sarampo e a gripe.
No século XIX, mais de 80% das crianças morriam de doença antes dos 10 anos de idade. Hoje,
na maioria dos países, elas estão protegidas por programas de vacinação sistemática que as
imunizam contra tuberculose, hepatite B, poliomielite, difteria, tétano, coqueluche, meningite,
sarampo, rubéola, caxumba e infecções por rotavírus e pneumococos.
Uma vacina é um produto destinado a estimular o sistema imune de maneira a prevenir ou
controlar uma infecção. A vacinação chega às crianças e aos grupos de pessoas sujeitos a maiores
riscos, como as mulheres (sarampo e rubéola), os maiores de 60 anos (gripe, pneumonias) e os
profissionais de saúde (hepatite B, antraz). Também resguarda os residentes em determinadas áreas
e os viajantes (febre amarela).
Por outro lado, a vacinação dos animais resulta duplamente eficiente, porque além de protegê-
los da doença, quebra o elo de transmissão ao homem. Pode-se dizer que nos duzentos anos que nos
separam de Jenner, o descobridor da primeira vacina antivariólica, temos alcançado o sucesso na
prevenção de um bom número de doenças infecciosas.
A melhora das condições econômicas de uma população repercute na saúde da mesma e,
inversamente, diminuindo a doença e suas sequelas de invalidez ou morte prematura, dá-se às
pessoas a possibilidade de melhorar suas condições de vida. O custo de implantação de um sistema
de vacinações é baixo, porque a proteção atinge não só a pessoa que as recebe como os que entram
em contato com ela.
Em uma variante do velho ditado “prevenir é melhor que curar”, segundo a WHO (Organização
Mundial da Saúde; do inglês, World Health Organization), o maior impacto na área de saúde se
consegue com água limpa e vacinas. Lamentavelmente, ainda morrem anualmente dois milhões de
crianças de doenças para as quais temos vacinas que não chegam até elas, devido aos conflitos
armados e à dificuldade de acesso aos centros de saúde. E ainda não temos vacinas para doenças
como o dengue, a malária ou para o HIV/AIDS.

A AQUISIÇÃO DE IMUNIDADE

Microrganismos infecciosos, suas moléculas e substâncias químicas são antígenos. Também podem
se comportar como antígenos as células de um organismo transplantadas a outro e materiais como o
pólen, pelos de animais e alguns alimentos nas pessoas sensibilizadas.
No primeiro contato com um antígeno estranho, o organismo reage com uma resposta
imunológica primária de intensidade baixa e curta duração, acompanhada de alguns sintomas como
febre, dor de cabeça, erupção cutânea. Essa primeira resposta está acompanhada da aquisição de
uma memória imunológica que facilitará a eliminação do antígeno estranho. A resposta secundária
envolve numerosas células e moléculas e se caracteriza por ser rápida, intensa e duradoura (Figura
17.1).

Copyright © Maria Antonia Malajovich


Biotecnologia: ensino e divulgação (www.bteduc.bio.br)
Maria Antonia Malajovich

FIGURA 17.1. A resposta primária e secundária do organismo.

Intensidade da
resposta imune

1 2 3 4 5 6 7 8

Semanas

Primeiro contato Segundo contato


com o patógeno com o patógeno
(antígeno) (antígeno)

FIGURA 17.2. A memória imunológica.

Antígeno

Detectado por células que ativam


os diferentes tipos de linfócitos

Linfócitos T citotóxicos Linfócitos T auxiliadores Linfócitos B

Síntese de
anticorpos
Células de memória

Eliminam as células infectadas Neutralizam ou marcam o antígeno


Ne
dando início a sua eliminação

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OS DIFERENTES TIPOS DE VACINAS

Todo patógeno ou antígeno estranho que penetre no organismo é detectado pelo sistema imune. A
resposta ao antígeno envolve uma ação humoral e uma ação mediada por células, ambas
coordenadas por diversos componentes do sistema imunológico.
Essas duas formas de ação estão relacionadas com o tipo de ataque do patógeno: o
pneumococo se multiplica nos pulmões, o bacilo do tétano produz uma toxina letal, o bacilo de Koch
e todos os vírus parasitam as células.
No caso de uma bactéria ou de uma toxina, os anticorpos específicos produzidos pelos linfócitos
B reconhecem os microrganismos ou toxinas circulantes, dando início a sua destruição. Os vírus e
algumas bactérias demandam outro tipo de ação, porque, ao invadir as células, ficam protegidos dos
anticorpos. Ao expor na superfície celular uma combinação de suas proteínas com algumas proteínas
do invasor, a célula infectada será reconhecida e destruída pelos linfócitos T matadores (também
chamados Tc, do inglês T citotoxic).
Tanto a ação humoral como a ação mediada por células dependem da participação dos linfócitos
auxiliadores Ta, também chamados Th (do inglês, T helpers), capazes de reconhecer o antígeno e
produzir moléculas que estimulem a proliferação das células B e T.
Uma vez finalizada a resposta primária, algumas células de memória (B, T) permanecerão no
sistema. Deve-se à memória imunológica a aceleração dos mecanismos de defesa em ocasião de um
segundo contato com o antígeno (Figura 17.2).
Uma vacina é um produto destinado a treinar o sistema imune no reconhecimento de
determinado patógeno, de maneira tal que este não possa desencadear uma infecção ou uma
doença. As vacinas estimulam a imunidade humoral, a imunidade mediada por células ou,
preferentemente, ambas ao mesmo tempo.
A vacinação estabelece o primeiro contato do organismo com um patógeno que está
incapacitado para causar a doença, conservando sua identidade molecular e a capacidade de induzir
uma resposta imune. Ativam-se assim os mecanismos de defesa, em previsão de um segundo
contato, desta vez com o patógeno original.

A PRIMEIRA GERAÇÃO

As primeiras vacinas, também denominadas vacinas de primeira geração, são vacinas que incluem
patógenos vivos atenuados, patógenos mortos ou antígenos acelulares.

As vacinas de patógenos vivos atenuados

Nas vacinas de patógenos vivos, os microrganismos são atenuados mediante passagens sucessivas
em diversos meios de cultivo e/ou por tratamentos físicos em diferentes condições de temperatura,
pressão e pH. O procedimento permite selecionar mutantes que conservem a capacidade de induzir
uma resposta imune, apesar de ter perdido a patogenicidade.
Estas vacinas induzem uma resposta imune intensa e duradoura que envolve ambas as vias, a
humoral e a celular. Salvo em caso de imunização por via oral, basta uma única dose para obter a
imunidade desejada.
Apesar de mais eficientes, as vacinas de patógenos vivos atenuados apresentam alguns
inconvenientes. Além de serem inadequadas para as pessoas imunodeprimidas, existe o risco de uma
forma atenuada reverter para uma forma ativa. Outra desvantagem é a necessidade de manter uma
cadeia de frio para conservá-las refrigeradas.

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Utilizam-se na prevenção de doenças de origem viral, como a febre amarela, o sarampo, a


rubéola, a caxumba e a poliomielite (Sabin ou OPV, do inglês oral polyomyelitevaccine). A vacina
contra a tuberculose é a única preparada com uma bactéria viva, o bacilo de Calmette-Guérin ou
BCG.

As vacinas de patógenos mortos e toxoides

Estas vacinas incluem microrganismos mortos ou toxinas inativadas (toxoides) por procedimentos
físicos ou químicos. Conferem uma resposta imune de tipo humoral pouco intensa ou duradoura,
pelo que se devem administrar várias doses e, mais tarde, manter a imunidade com doses de reforço.
Requerem, também, a introdução de substâncias coadjuvantes para estimular a resposta imune.
Apesar de ser estáveis e não depender da cadeia do frio, estas vacinas devem ser modificadas
frequentemente para se adaptar aos sorotipos microbianos patogênicos que são muito variáveis.
Além de vacinas de toxoides contra a difteria e o tétano, existem vacinas de microrganismos mortos
contra a cólera, a gripe, a hepatite A, a peste, a poliomielite (vacina Salk) e a raiva.

As vacinas de subunidades de antígenos

Nestas vacinas se colocam, em vez do microrganismo todo, só as frações da superfície celular


capazes de induzir a resposta imune. Demandam um longo trabalho de pesquisa prévia para
determinar quais os melhores antígenos (subunidades) que deverão ser incluídos na vacina e
precisam de substâncias coadjuvantes para estimular a imunidade.
Por não levar mais que fragmentos do microrganismo, estas vacinas não apresentam os riscos
das vacinas de microrganismos vivos e independem da cadeia do frio. Existem vacinas de
subunidades contra a influenza ou gripe, a doença de Lyme, a hepatite B, a coqueluche e a
pneumonia.

A SEGUNDA GERAÇÃO

A engenharia genética revolucionou o campo das vacinas de primeira geração, substituindo muitas
delas por outras que envolvem modificações do genoma. A inativação dos microrganismos por
deleção de genes relacionados com determinados processos metabólicos básicos, por exemplo, é
uma forma mais segura de impedir a reversão a uma forma ativa.

FIGURA 17.3. A utilização da tecnologia do DNA-recombinante na vacina contra a hepatite B.

Gene codificador
Vírus HBV
do antígeno de
superfície HBsAg

Síntese do
antígeno

Vacina

Levedura Levedura transformada

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As vacinas recombinantes

A tecnologia do DNA-recombinante deu também um grande impulso à produção de vacinas de


subunidades ao possibilitar a produção do antígeno por um microrganismo transformado que possa
ser cultivado sem riscos em um fermentador (Escherichia coli, Saccharomyces cerevisiae, Picchia
pastoris).
O primeiro êxito alcançado foi com a vacina contra a hepatite B (Figura 17.3). Encontra-se em
fase experimental uma vacina contra o HIV/AIDS, assim como outra contra a malária. Contudo, as
vacinas de subunidades recombinantes estão limitadas à produção de antígenos de tipo proteico.

As vacinas conjugadas

Alguns microrganismos (pneumococos, meningococos) se protegem com uma cápsula de


polissacarídeos que dificulta sua identificação pelo sistema imune ainda imaturo de uma criança. As
novas tecnologias possibilitaram a associação de um toxoide às subunidades de polissacarídeo, de
maneira a estimular a resposta imune e o reconhecimento dos antígenos capsulares.
Estas vacinas de antígenos conjugados são utilizadas na imunização contra o Haemophilus
influenzae B (meningite) e o Streptococcus pneumoniae ou pneumococo. As vacinas contra este
último são modificadas frequentemente, adicionando outros antígenos capsulares das mais de 80
linhagens que causam pneumonia em seres humanos.

As vacinas vetorizadas

Outro tipo interessante de vacinas são as vectorizadas, em que o gene codificador do antígeno é
transferido a um microrganismo inócuo (bactéria ou vírus). Ao infetar o hospedeiro, o vetor se
multiplica e começa a produzir o antígeno, induzindo a resposta imune contra o patógeno. Com uma
vacina deste tipo imunizam-se as raposas, atualmente um dos principais elos na transmissão de raiva
na Europa.
Em um segundo tipo de vacinas vetorizadas, o vetor não se multiplica no hospedeiro, agindo
como seringa molecular para introduzir, na célula, o gene codificador do antígeno. Um vetor deste
tipo, por exemplo, é o canarypox, que se multiplica em aves, exclusivamente. As vacinas vetorizadas
se encontram em fase experimental, não havendo ainda nenhuma aprovada para uso humano.

A TERCEIRA GERAÇÃO

A tecnologia mais promissora parece ser a das vacinas genéticas, também denominadas vacinas de
DNA nu. Estas consistem de um vetor de expressão com uma construção gênica que inclui o gene
codificador do antígeno. Injetado diretamente no músculo, o DNA irá penetrar nas células
apresentadoras de antígeno (células dendríticas). Estas migrarão até os órgãos linfoides, onde
sintetizarão o antígeno, estimulando uma resposta imune de tipo celular que permitirá imunizar o
organismo hospedeiro.
Esta tecnologia deve resolver vários problemas adicionais. Como proteger o DNA, para que não
seja degradado ao ser fagocitado pela célula apresentadora do antígeno? Como aplicar a vacina, por
biolística ou eletroporação? Como limitar a expressão do gene transfectado às células
apresentadoras do antígeno dos tecidos? Persistem ainda algumas dúvidas em relação ao risco do
DNA se integrar no genoma da célula transfectada, ativando oncogenes ou desativando genes
supressores de tumor.

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Esta tecnologia terá uma vantagem fundamental por ser um método genérico que facilita o
desenvolvimento e produção de novas vacinas (Figura 17.4). Estas poderão ser elaboradas
substituindo um gene por outro no cassete de expressão gênica, o que diminuiria os custos e o
tempo necessário para responder a uma emergência sanitária. Também se poderia conseguir uma
supervacina com vários genes codificadores de antígenos, capaz de imunizar o organismo contra
várias doenças simultaneamente. Por outro lado, as vacinas de DNA estimulam ambas as respostas,
humoral e mediada por células.
Na área veterinária, já foram aprovadas nos Estados Unidos uma vacina de DNA contra o vírus
IHNV, causante da necrose hematopoiética em trutas e salmões, e outra contra o vírus do oeste do
Nilo, que ataca os equinos. Na área humana, ainda em fase experimental ou em testes clínicos, se
encontram em andamento várias vacinas deste tipo contra HIV/AIDS, malária, herpes, tuberculose,
hepatite B, influenza, rotavírus etc.

FIGURA 17.4. Os diferentes tipos de vacinas virais.

Tipos de vacinas

V. patogénico V. relacionado V. atenuado V. morto Subunidades Recombinante

Transfecção

Linfócitos B e T
Linfócito

Doença e
recuperação

Imunidade Imunidade
adquirida adquirida
(espontânea) (artificial)

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A PRODUÇÃO DE VACINAS

PESQUISA E DESENVOLVIMENTO

Antes de comercializar uma vacina, existem certas etapas que devem ser cumpridas. A primeira,
exploratória e pré-clínica, tem uma duração de 3 a 6 anos e se inicia nas bancadas de laboratório com
experimentos que utilizam cultivos de células ou de tecidos. Estes estudos permitem selecionar o
melhor candidato vacinal. Sua capacidade de imunizar um ser vivo é comprovada em diversos testes
com animais de laboratório (camundongos, cobaias ou macacos). Se os resultados forem
satisfatórios, o candidato vacinal poderá passar a uma etapa clínica e ser testado em seres humanos.
Os estudos clínicos se iniciam em um grupo de 10 a 100 voluntários adultos, monitorados bem
de perto, a fim de verificar a ausência de toxicidade do candidato vacinal e sua capacidade de
imunizar um ser humano. Na segunda fase, que inclui de 100 a 3.000 pessoas da população alvo, os
testes focalizam as dosagens necessárias para a imunização. A terceira fase, que envolve de 3.000 a
40.000 pessoas, visa comprovar a eficiência do candidato vacinal em proteger os indivíduos
vacinados contra a doença. Nesta fase, compara-se a redução da incidência da doença em uma
população vacinada em relação a uma população não vacinada. Também são identificados os efeitos
adversos. A duração total dos estudos clínicos é de 6 a 8 anos para as vacinas humanas.
As pesquisas com seres humanos e, por conseguinte, todos os testes clínicos, devem ser
desenvolvidos dentro do marco ético elaborado pelo tribunal de Nuremberg, por ocasião do
julgamento de vinte médicos condenados como criminosos de guerra, devido aos brutais
experimentos realizados com prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial.
Segundo o Código de Nuremberg (1949), os experimentos em seres humanos devem visar o
bem da sociedade e serem levados a cabo por pessoas cientificamente qualificadas. Os participantes
receberão todas as explicações necessárias antes de dar livremente o seu consentimento. As
experiências serão a continuação de outras que, realizadas em modelos animais, permitam prever
um resultado tal que justifique a inclusão de testes em seres humanos. O sofrimento mental e físico
será evitado, e as pessoas receberão proteção em caso de ocorrer algum efeito adverso.
Nos testes clínicos de avaliação de uma nova vacina participam voluntariamente pessoas que
são informadas sobre os riscos e benefícios de sua participação. Contudo, há algumas dúvidas sobre
a validação do consentimento informado quando os testes são realizados em populações de escassos
recursos, com baixos níveis de instrução.
Se os resultados dos estudos clínicos não forem satisfatórios, será necessária a realização de
estudos adicionais, chegando, eventualmente, a interromper os estudos clínicos e proceder à escolha
de outro candidato vacinal. Contudo, uma vez comprovado que a vacina é segura e eficiente, a
indústria farmacêutica poderá solicitar aos órgãos competentes a licença para comercializar o
produto. Esta etapa dura de 12 a 18 meses.
A liberação da vacina marca o início do processo de manufatura e da fase de vigilância
farmacológica, um monitoramento amplo e rigoroso que coleta toda informação sobre algum efeito
adverso que possa ocorrer. Em 1999, por exemplo, uma primeira vacina contra o rotavírus teve que
ser retirada do mercado em consequência de alguns casos de intususcepção relacionados com sua
aplicação e identificados nesta etapa, a quarta dos estudos clínicos.
Atualmente, vários testes clínicos em seres humanos estão sendo realizados com vacinas contra
diferentes doenças, tais como HIV/AIDS, malária, dengue, cólera etc.
As vacinas veterinárias passam pelas mesmas etapas, mas as exigências são menores. É possível
simplificar os testes com animais de laboratório e testar o candidato vacinal no animal para o qual é
destinado o produto. O número de indivíduos necessários para os testes clínicos também é menor.

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ASPECTOS TECNOLÓGICOS

A produção de vacinas é uma tarefa delicada, e todos os cuidados devem ser extremados. Cada lote
da vacina deve passar por controles estritos a fim de garantir a qualidade e manter a credibilidade
não só da indústria, mas da própria vacinação.
A vacina Salk contra a poliomielite, preparada com vírus inativados, é aplicada correntemente
em vários países, sendo considerada hoje uma das vacinas mais seguras. Porém, em 1954, duas
semanas depois de liberada, esta induziu 260 casos de pólio, inclusive 10 mortes. O acidente, devido
à inativação incompleta de algumas partículas virais, resultou de um problema na fabricação da
vacina no Laboratório Cutter (Estados Unidos).
Uma vacina deve reunir várias qualidades, principalmente eficiência, pureza, segurança e baixo
custo. O processo industrial varia em função do microrganismo utilizado para a produção de uma
vacina, e responde a critérios estritos de qualidade (BPL ou Boas Práticas de Laboratório; BPF ou Boas
Práticas de Fabricação). Atualmente, o controle de qualidade ocupa 70% do tempo dedicado à
produção de uma vacina.
As bactérias se multiplicam em biorreatores, cujo volume dependerá da produtividade do
próprio processo fermentativo e das concentrações obtidas (bactérias, antígenos ou toxinas), assim
como do tratamento posterior para a obtenção de antígenos ou de toxoides.
Os vírus, parasitas obrigatórios, precisam de células para se multiplicar. Tradicionalmente,
utilizam-se a pele de bezerro e os ovos de galinha, mas a tendência é serem substituídos por culturas
celulares, possibilitando o desenvolvimento de vacinas virais para uso humano (poliomielite,
sarampo, rubéola, influenza, caxumba, raiva) e veterinário (febre aftosa, raiva, encefalite equina,
doença de Mareck e de Newcastle etc.). Do ponto de vista tecnológico, as mais complicadas são as
vacinas combinadas.
Vacinas antibacterianas podem ser preparadas em grandes quantidades, com equipamento
relativamente simples, enquanto as virais precisam de aparelhos sofisticados e, em muitos casos, de
um laboratório de cultura de tecidos. As proteínas recombinantes de vírus ou bactérias são
produzidas em biorreatores (leveduras) ou em cultivos celulares. Ao processo de extração seguem-se
várias operações de purificação por técnicas complexas (ultrafiltração, cromatografia em coluna).
Além do antígeno, na formulação de uma vacina incluem-se outras substâncias: os adjuvantes
permitem dosagens menores por serem capazes de estimular a resposta imune, os estabilizantes
impedem as alterações devidas ao calor, à luz ou à umidade, os preservantes conservam os frascos
com múltiplas doses.
Uma das tendências atuais na administração de vacinas é reduzir o número de doses mediante a
imunização simultânea para várias doenças em uma mesma injeção (tríplice viral ou tríplice
bacteriana). Também se dá preferência a sistemas que diminuam a necessidade de refrigeração, já
que esta contribui com 15% dos custos dos programas de vacinação.
Outras novidades virão da procura de novas formas de aplicação que substituam o uso de
seringas, tais como pistolas, géis, adesivos cutâneos, cápsulas, tabletes, inaladores e sprays nasais.
Estes últimos começaram a ser utilizados na aplicação de vacinas contra a gripe (FluMist, nos Estados
Unidos; NasVax, em Israel). As vacinas orais têm importantes aplicações na área veterinária.
Plantas e animais transgênicos produtores de antígenos poderão revolucionar alguns aspectos
da produção de vacinas. A ideia de ter vacinas “comestíveis” e de poder vacinar as crianças com uma
banana em vez de uma injeção é muito sedutora. Contudo, alguns problemas de segurança exigem
atenção, como, por exemplo, o risco de se misturar bananas-vacina e bananas-alimento,
contaminando os alimentos ou dificultando o reconhecimento de um medicamento como tal.
Provavelmente, os antígenos serão extraídos e administrados em tabletes ou cápsulas.

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BIOTECNOLOGIA 2011 / Capítulo 17: Biotecnologia e saúde - Vacinas

Em 2005, Dow AgroSciences registrou nos Estados Unidos uma vacina para a doença de
Newcastle em aves, produzida na planta aquática Lemna. Encontra-se em andamento uma nova
vacina contra a febre amarela em plantas de tabaco hidropônicas, pela Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) em parceria com instituições dos Estados Unidos.

ASPECTOS ECONÔMICOS

A produção de vacinas é uma atividade menos rentável que a produção de medicamentos. Contudo,
a chegada das novas tecnologias com base biológica despertou novamente o interesse do setor
farmacêutico. Atualmente, cinco grandes empresas (Sanofi-Pasteur, Merck, GlaxoSmithKline, Wyeth
e Novartis) concentram de 80% a 90% do mercado global de vacinas humanas, estimado em US$ 25
bilhões em 2015. O resto está ocupado por 200 a 250 empresas que desenvolvem mais de 600
produtos.
O processo de desenvolvimento de uma nova vacina leva de 14 a 25 anos, a um custo que pode
variar entre US$ 300 milhões e US$ 1 bilhão. Alguns produtos, como a vacina antimeningococo
Prevnar, atingiram níveis de vendas que superam o bilhão de dólares.
Estima-se que o mercado aumentará significativamente nos próximos anos, em função do
crescimento do setor adulto e especialmente das vacinas terapêuticas, que serão analisadas no
Capítulo 20. Também aquecerão o mercado produtos novos, tais como as vacinas para a gripe
(influenza) e as vacinas que protejam o turista (febre amarela) ou diminuam o abuso de drogas
(nicotina).
Em meio a numerosas crises econômicas, vários países latino-americanos (Argentina, Chile, por
exemplo) descuidaram de suas estruturas científicas e tecnológicas e passaram a importar as vacinas
necessárias para a população. No entanto, e por diferentes motivos, depois de várias décadas de
retração na área de produção de vacinas, esta começa a ser considerada novamente uma área
estratégica.
Para os países em desenvolvimento, o estímulo à produção nacional de vacinas é fundamental
como parte das obrigações frente a sua população e, em termos de saúde pública, para manter sua
independência nesta área. Trata-se de um setor que não pode ser negligenciado, observando-se
indícios sólidos de mobilização para recompor as estruturas produtivas.
Alguns países, como Brasil, China e Índia, contam com instituições de pesquisa e
desenvolvimento para a produção de imunobiológicos, sendo frequentes as parcerias com as
grandes empresas farmacêuticas. Fundações privadas, como a Bill & Melinda Gates Foundation,
fornecem fundos em prol de melhores e novas vacinas que protejam as crianças das doenças. Para
organizações internacionais como a WHO (World Health Organization), a vacina é a mais simples das
medidas preventivas possíveis na área de saúde.
Nos próximos anos, haverá progressos na preparação das vacinas preventivas e no
desenvolvimento de produtos novos, como as vacinas terapêuticas para alguns tipos de câncer ou a
doença de Alzheimer. Entretanto, esperam-se vacinas novas ou melhores contra as doenças que
afetam um número altíssimo de pessoas, tais como HIV/AIDS, malária, dengue e tuberculose.

UM SETOR ESTRATÉGICO PARA A SOCIEDADE

No Brasil, onde existe uma tradição de um século na produção de imunobiológicos (vacinas, soros,
hemoderivados e reativos para diagnóstico), as vendas chegam a US$ 600 milhões por ano, o que
representa 3% do mercado da indústria farmacêutica.

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TABELA 17.1. As principais instituições produtoras de vacinas no Brasil.

INSTITUIÇÃO VACINAS
Instituto Butantan Dupla, Infantil (difteria e tétano)
Dupla, Adulto (difteria e tétano)
Tríplice (difteria, tétano e coqueluche ou pertussis)
Hepatite B recombinante
Influenza
Laboratório BioManguinhos Poliomielite
Tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola)
Meningites meningocócicas
(A/C, por Haemophilus influenzae, HIB e HIB/DTP)
Febre amarela
Tecpar Antirrábica de uso veterinário e humano (PV-BHK)
Fundação Ataulfo de Paiva Antituberculose (BCG)

Até a década de 1960, muitas vacinas humanas e veterinárias eram fabricadas no país. A perda da
autossuficiência criou uma situação crítica quando, em inícios da década de 1980, uma multinacional
retirou-se do mercado, deixando a população em risco de ficar sem vacina tríplice, soros antitóxicos
e antiofídicos. Evidenciou-se nessa ocasião que a produção de vacinas é um setor estratégico, ao qual
a sociedade deve ter o acesso garantido.
O Programa de Autossuficiência Nacional de Imunobiológicos (PASNI) de 1985 reverteu essa
situação mediante uma estratégia de substituição das importações que estimulou a modernização
das instalações e a incorporação de novas tecnologias nos sete laboratórios oficiais: Instituto de
Tecnologia em Imunobiológicos (Biomanguinhos, Fiocruz, RJ), Instituto Vital Brazil (IVB,RJ), Instituto
de Tecnologia do Paraná (Tecpar, PR), Fundação Ezequiel Dias (Funed, MG), Fundação Ataulfo de
Paiva (FAP,RJ) e Instituto de Pesquisas Biológicas (IPB, RS). Atualmente, o Instituto Butantan (SP) e
BioManguinhos (RJ) produzem 11 tipos de vacinas e respondem por 70% das vacinas distribuídas
pelo serviço público (Tabela 17.1).
Várias vacinas estão sendo desenvolvidas nas próprias instituições citadas anteriormente, e
também em parcerias entre elas ou com laboratórios estrangeiros (Sanofi Pasteur, GlaxoSmithKline,
Instituto Finlay etc.). Algumas das vacinas resultantes desses convênios protegem a população de
sarampo, caxumba e rubéola (tríplice viral), influenza, rotavírus, raiva (cultivo do vírus em células
Vero) etc.
Os diferentes acordos de cooperação internacional entre os países latino-americanos também
terão uma importância fundamental para o desenvolvimento de políticas de saúde pública que
garantam à população o acesso às vacinas.

O ROL DAS VACINAS NA ERRADICAÇÃO DA DOENÇA

De um modo geral, as vacinas protegem de 80% a 95% das pessoas imunizadas, e os efeitos adversos
que elas podem apresentar ocorrem em frequências muito baixas. O calendário de imunizações
depende das autoridades nacionais e, em vários países, a vacinação não é obrigatória.
O impacto das vacinas na morbidade infantil relega ao passado algumas das temíveis doenças
que assolaram o século XX (difteria, coqueluche ou pertussis, tétano, poliomielite, meningite,
caxumba, sarampo e rubéola). Estima-se que a cooperação entre a indústria, os governos e as
entidades não lucrativas poderia salvar 10 milhões de vidas entre 2010 e 2020.

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BIOTECNOLOGIA 2011 / Capítulo 17: Biotecnologia e saúde - Vacinas

Lamentavelmente, em algumas comunidades subsiste ainda a resistência às vacinas, seja por


motivos culturais, religiosos ou políticos. Intromissão na liberdade individual, desafio à vontade
divina, degradação dos costumes ou interferência no desenvolvimento nacional são alguns dos
argumentos utilizados.
As vacinas têm se mostrado eficientes na erradicação mundial da varíola e na eliminação da
poliomielite, pelo menos em vários países. Em relação à gripe, ainda não existe uma vacina capaz de
estimular a imunidade para as diversas linhagens. Contudo, dispomos hoje de vacinas para
numerosas doenças que afetaram a humanidade durante séculos.

O CASO DA VARÍOLA

A varíola é uma doença eruptiva contagiosa transmitida por um vírus. A incubação dura de 7 a 17
dias; os sintomas principais são febre alta, fadiga e uma erupção de vesículas em todo o corpo. A
mortandade é de 30%, e os sobreviventes conservam lesões características.
A varíola teria sido levada até a Índia por mercadores do Egito, onde vitimara o faraó Ramsés V.
A doença se alastrou até a China (século I) e o Japão (século VI), retornando mais tarde ao Oriente
Médio e alcançando a Europa com os Cruzados (século XI-XII). A varíola não fazia distinção entre
camponeses, burgueses ou nobres, cobrando vidas de humildes e poderosos, como o rei da França
Luis XV.
Quem adoece uma vez e se recupera, não adoece uma segunda vez. Esta observação deu lugar à
primeira tecnologia para combater a varíola. No Oriente (Índia e China, século XI), as pessoas eram
inoculadas com pus das vesículas de doentes com uma forma benigna da doença. Ao desenvolver
também uma doença benigna, as pessoas inoculadas permaneciam protegidas pelo resto de suas
vidas. Apesar de 1% a 2% de essas pessoas terem morrido ao desenvolver a doença em sua forma
mais grave, a varíola regrediu entre os povos que praticavam a variolização.
Em 1520, com a chegada ao México de um escravo contaminado, a varíola entrou no continente
americano. Por ter convivido com a doença durante vários séculos, os europeus tinham desenvolvido
alguma forma de resistência, mas, para as populações ameríndias, o contato com um germe novo
levou ao extermínio de 95% de sua população em menos de duzentos anos.
A prática da variolização foi introduzida na Inglaterra no início do século XVIII. Anos mais tarde,
um inoculador, o médico Edward Jenner, observou que as ordenhadeiras nunca desenvolviam a
varíola. Segundo uma crença popular, essa resistência era consequência da contaminação com uma
doença inofensiva que se manifesta por pústulas no úbere das vacas.
Em 1796, quando Jenner inoculou a varíola vacum em uma criança e, poucos dias mais tarde, a
varíola humana, a criança não adoeceu. A partir desta experiência, surge o método de vacinação que
se estendeu rapidamente por toda Europa.
No Brasil, a vacinação foi introduzida em 1840 pelo Barão de Barbacena. Porém, quando, em
1904, sendo Oswaldo Cruz o Diretor Geral de Saúde Pública, o governo decretou a vacinação
obrigatória, a resistência se manifestou no Rio de Janeiro sob a forma de motins, estourando uma
revolta que obrigou o governo a rever a medida. Em 1908, depois de uma violenta epidemia de
varíola (10.000 casos diagnosticados), a população terminou aceitando a vacinação.
Apesar dos surtos terem se espaçado, calcula-se que, no século XX, 300 milhões de pessoas
morreram de varíola. Na década de 1970, a Organização Mundial da Saúde substituiu a vacinação em
massa por uma campanha de erradicação em anel.
A estratégia consiste em isolar os pacientes cada vez que um caso novo é detectado e vacinar
rapidamente todas as pessoas que tiveram algum contato com o doente. Como a vacina tem um
efeito muito rápido, os resultados foram extraordinários. Contudo, por ocasião de um surto havido

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Maria Antonia Malajovich

na Iugoslávia (1972) foi necessário complementar as medidas com uma vacinação em massa. O
último caso de varíola ocorreu na Somália em 1977.
Em 1978, o escapamento do vírus de um laboratório da Universidade de Birmingham (Reino
Unido) causou a morte de duas pessoas. Com a confirmação da erradicação da varíola em 1979, o
vírus da varíola começou a ser eliminado dos laboratórios. Dois estoques virais foram conservados
preventivamente, um deles no CDC (Center for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados
Unidos) e no VECTRO (Instituto para Preparações Virais, Moscou, Rússia). Apesar de estar prevista
sua destruição no ano 2000, esta não ocorreu.
A mera possibilidade de um ato de terrorismo é assustadora. Não se pode afirmar que não
existe algum estoque de vírus em outro lugar. Em caso de um surto, os médicos teriam dificuldades
em diagnosticar uma doença restrita aos livros. A população deixou de ser vacinada em fins da
década de 1970, de modo que uma boa parte da população nunca foi imunizada. Sem doses de
reforço, o restante pode ter perdido a imunidade. A validade de um pequeno estoque de vacinas que
sobrou de décadas atrás está comprometida. Existem contraindicações para a aplicação da vacina em
pessoas com eczemas ou imunodeprimidas, que hoje são muito mais frequentes que no início do
século XX.
Mesmo tendo erradicado a varíola, precisamos de vacinas antivariólicas eficientes e seguras,
formuladas mediante as novas tecnologias. Algumas já se encontram na fase dos estudos clínicos.

O CASO DA POLIOMIELITE

A poliomielite ou paralisia infantil é uma doença causada por um enterovírus que se transmite pela
água. O período de incubação é de 4 a 35 dias, e 10% das pessoas infectadas desenvolvem os
seguintes sintomas: febre, fadiga, dor de cabeça, vômitos, constipação ou diarreia, rigidez na nuca e
dor nas extremidades.
Em aproximadamente 1% dos casos, o vírus da poliomielite passa do intestino para a corrente
sanguínea e invade o sistema nervoso central, onde se multiplica destruindo os neurônios motores e
causando a paralisia das extremidades. Estas pessoas desenvolvem a forma paralítica da doença, e,
nos casos em que o vírus se aloja no bulbo, os pacientes precisam de ajuda mecânica para respirar. A
doença pode deixar sequelas motoras permanentes (SPP ou síndrome post-pólio).
Apesar de haver evidências da doença no Antigo Egito, os primeiros surtos epidêmicos
ocorreram a fins do século XIX. Em 1908, depois de inocular macacos com o tecido nervoso de um
paciente morto, K. Landsteiner confirmou que a poliomielite é uma doença infecciosa.
Na primeira metade do século XX, as epidemias de poliomielite deixaram numerosas vítimas,
principalmente entre as crianças, mas também entre os adultos como, por exemplo, Franklin Delano
Roosevelt, presidente dos Estados Unidos.
Suspeita-se que as melhores condições higiênicas do século XX diminuíram o contato prematuro
da população com o vírus. Porém, a exposição na idade escolar de um grupo vulnerável ao vírus teria
favorecido a aparição de surtos. Na década de 1950, a doença era aterradora. Havendo um surto, as
escolas fechavam e as crianças eram privadas do contato entre elas, permanecendo isoladas até o
perigo passar. A notícia de uma vacina teve uma repercussão extraordinária.
Em 1954 começou a ser aplicada a vacina de vírus inativados de Jonas Salk (IPV, do inglês,
injetable polio vaccine), que era elaborada com três tipos de poliovírus em rim de macaco,
inativando-o posteriormente com formalina. Em 1963, houve uma segunda opção, a vacina de vírus
atenuados de Albert Sabin (OPV, do inglês oral polio vaccine). Nos anos posteriores, devido a
modificações nos processos produtivos, a eficiência de ambas as vacinas aumentou
significativamente.

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BIOTECNOLOGIA 2011 / Capítulo 17: Biotecnologia e saúde - Vacinas

Ambas apresentam vantagens e desvantagens. Para ser aplicada, a IPV demanda agulhas e
seringas estéreis, um procedimento mais caro e complicado que a ingestão por gotas da OPV. Em
contrapartida, por ser uma vacina de vírus atenuados, a OPV exige a manutenção da cadeia de frio, o
que a IPV dispensa.
Do ponto de vista da eficiência, a OPV confere uma imunidade mais ampla porque abrange a
mucosa digestiva, impedindo a entrada do vírus selvagem no organismo e a infecção das células
nervosas. Porém, como o vírus atenuado é eliminado nas fezes e permanece no ambiente, a OPV
acaba por atingir outras pessoas, afetando os não vacinados e os imunodeprimidos presentes no
entorno. Por isso, alguns países preferem a IPV e outros a OPV.
Novas vacinas estão sendo pesquisadas como, por exemplo, uma de tipo recombinante que leva
o gene codificador de uma proteína do capsídeo viral, inserido em Escherichia coli. A síntese dessa
proteína por uma bactéria, que coloniza normalmente o intestino, possibilitaria a imunização do
hospedeiro.
Apesar do sucesso alcançado pela vacinação, a erradicação da doença parece ser bem mais
difícil do que o esperado. A pólio subsiste ainda em algumas regiões da África, do subcontinente
indiano e do extremo Oriente, onde as campanhas de vacinação são complexas e muitas vezes
interrompidas por conflitos bélicos.
Um surto da doença atingiu um grupo que se opõe à vacinação por motivos religiosos,
mostrando que o vírus selvagem continua presente no ambiente (Países Baixos, 1992-1993). Em
2000, a pólio reapareceu no Haiti e na República Dominicana. Na ocasião, revelou-se que o vírus
atenuado pode reverter a sua forma patogênica, e que, mesmo tendo desaparecido a doença, a
vacinação terá que ser mantida. Em 2004, com a aparição de um novo surto de pólio em países do
oeste africano, confirmou-se que o objetivo ainda se encontra distante.

O CASO DA INFLUENZA

A influenza ou gripe é uma doença causada pelo vírus da influenza e apresenta os seguintes
sintomas: febre, dores musculares, garganta inflamada, fadiga e dor de cabeça.
O material genético do vírus é RNA, que está rodeado por um capsídeo proteico e um envelope
derivado da membrana celular do hospedeiro. O RNA confere a seu portador uma enorme
variabilidade porque, diferente do DNA, os erros de replicação não são reparados por nenhum
mecanismo celular.
Em função das proteínas do capsídeo, os vírus da influenza são classificados em três categorias
(A, B e C). As variantes de duas proteínas do envelope, a hemaglutinina (HA) e a neuraminidase (NA)
determinam os diferentes subtipos como, por exemplo, H1N1, H5N1 etc.
Os vírus da influenza da categoria A são os mais perigosos porque se multiplicam tanto no
homem como em outras espécies (aves, suínos, cachorros, cavalos). Ao pular de uma espécie a outra,
o material genético de diferente origem recombina formando vírus com características novas. Para
desencadear uma pandemia é necessário que esse vírus infecte o homem e sofra uma mutação que
possibilite a transmissão pessoa a pessoa.
Ao longo do século XX, várias pandemias de gripe assolaram a terra. Em 1918, um surto de gripe
sobreveio na Espanha, de onde se espalhou pelo mundo todo causando a morte de 40 a 70 milhões
de pessoas. O vírus H1N1 da gripe espanhola circulou durante várias décadas, embora tenha perdido
parte de sua patogenicidade a partir de 1920.
Em 1957, uma segunda pandemia originou-se na China. A gripe asiática, devida ao subtipo
H2N2, causou a morte de 2 milhões de pessoas. Poucos anos mais tarde, em 1968, o subtipo H3N2
apareceu em Hong Kong e alastrou-se pelo mundo, deixando 47.000 mortos.

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Maria Antonia Malajovich

A gripe aviária (subtipo H5N1) surgiu na Ásia, em 1997. Embora a transmissão tenha sempre
ocorrido no sentido ave-ave e ave-homem, milhares de aves foram sacrificadas durante os surtos de
2003 e 2004 devido ao temor de uma mutação que possibilitasse a transmissão do homem ao
homem.
O H5N1 traz uma limitação em relação aos métodos tradicionais de produção de vacinas, já que
estes utilizam embriões de frango. Selecionando a informação genética relevante do vírus e
transferindo-a para um vírus de laboratório obtém-se um protótipo viral para a produção da vacina.
Este reúne a informação para estimular a resposta imune ao H5N1 e pode crescer em embriões de
frango.
A gripe A (subtipo H1N1) ou gripe suína apareceu no México em 2009. Diferentemente das
variantes anteriores, esta causou mais vítimas entre os jovens e as mulheres grávidas. A resistência
dos mais velhos pode ser explicada por um contato prévio com vírus de tipo H1N1 que circularam
por um tempo na população.
A existência de medicamentos antivirais contribuiu para o controle da pandemia. Contudo, a
rápida mobilização das autoridades nacionais e internacionais, assim como das empresas
farmacêuticas, foi decisiva para a obtenção de uma vacina adequada.
Durante esta última pandemia, algumas fraquezas foram expostas. Uma delas é a dificuldade de
produzir rapidamente uma vacina em ovos embrionados, porque se estima que sejam necessários
900 milhões para obter 300 milhões de doses da vacina. Em caso de urgência, a produção em cultivos
celulares resultaria mais rápida.
Mutação do RNA e recombinação de RNAs de diferente origem são as duas estratégias que
explicam a enorme variabilidade do vírus da influenza e justificam a necessidade de mudar
continuamente os antígenos da vacina. O candidato vacinal de hoje pode ser inócuo amanhã, sendo
difícil prever contra quais antígenos do vírus dirigir a vacina. Por isso, as vacinas contra a gripe são
preparadas anualmente, escolhendo as linhagens que se supõe causarão a próxima epidemia.

A AMEAÇA DAS DOENÇAS EMERGENTES

À medida que eliminamos ou controlamos doenças, outras novas emergem e algumas das antigas
reaparecem. Os microrganismos adquirem resistência aos medicamentos e a destruição de habitats
naturais deixa o homem a mercê de agentes infecciosos com os quais não teve contato prévio. O
crescimento da população, as mudanças climáticas, o incremento das viagens internacionais e do
comércio, assim como as mudanças comportamentais, são outros fatores determinantes para a
dispersão de agentes infecciosos.
A gripe espanhola, a hepatite B, as febres hemorrágicas (Junin, Lassa, Marburg, Ebola etc.), a
doença de Lyme, a doença dos Legionários, a AIDS (do inglês, agude immunodeficiency sindrome), a
Escherichia coli 0157:H7 contaminante dos alimentos, o vírus do Nilo ocidental, a BSE (encefalopatia
espongiforme bovina) e a dengue são alguns dos exemplos de doenças emergentes.
Várias dessas doenças contam com testes diagnósticos, e, para algumas, já temos vacinas
(hepatite B, doença de Lyme). Mas, desde a descrição ou a identificação do patógeno
correspondente até a produção de uma vacina, passa um tempo considerável.
Por enquanto, a mais insidiosa talvez seja a HIV/AIDS, porque destrói a capacidade do sistema
imune de responder a infecções oportunistas. Os primeiros casos apareceram em 1981 e se
estenderam rapidamente pela população. Estima-se que 3,1 milhões de pessoas morreram e que 5
milhões foram contaminadas em 2002, chegando ao total de 42 milhões de pessoas atingidas.
Aproximadamente 90% das novas contaminações ocorrem nos países em desenvolvimento,
especialmente o sul da África e a Ásia. No rasto da HIV/AIDS (e da adição a drogas injetáveis), a
tuberculose reaparece com germes resistentes aos medicamentos.

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BIOTECNOLOGIA 2011 / Capítulo 17: Biotecnologia e saúde - Vacinas

Apesar das medidas preventivas e dos grandes progressos alcançados no tratamento da


HIV/AIDS, o ideal seria encontrar uma vacina. As dificuldades são enormes porque, para ativar a
resposta imune, devem-se ativar as células T auxiliadoras que a coordenam, e são justamente estas
as que o vírus destrói. Como geralmente o vírus penetra no organismo por via anal ou vaginal,
permanecendo um tempo na corrente sanguínea antes de invadir as células, a vacina deveria
estimular ambas as vias, a humoral e a celular, e se estender às mucosas.
Na luta contra o HIV/AIDS, diversas estratégias são possíveis; uma delas seria impedir a invasão
do organismo pelo vírus, a outra, ajudar o organismo a impedir a progressão e/ou a transmissão da
doença. A falta de um modelo animal adequado e as frequentes mutações do vírus complicam a
tarefa. Embora os resultados obtidos até agora tenham sido decepcionantes, estão sendo realizados
os estudos clínicos correspondentes a vacinas de subunidades, de vetores virais recombinantes e de
DNA. Talvez nos encontremos um pouco mais perto de controlar a doença.
A primeira epidemia emergente do século XXI é a SARS (do inglês, severe acute respiratory
sindrome), uma doença de origem viral que apareceu na China (2003). Transmitida pelo ar, a SARS
disseminou-se rapidamente por 30 países, matando 10% a 15% das pessoas afetadas.
Diferente dos vírus da pneumonia ou da influenza, o agente infeccioso da SARS é uma linhagem
patogênica de coronavírus. Completado rapidamente o sequenciamento genético, este pareceria ser
o resultado de uma recombinação ocorrida naturalmente entre um vírus de ave e outro de
camundongo. Espera-se que o progresso tecnológico permita obter uma vacina rapidamente.

O BIOTERRORISMO

Esporos disseminados pelos correios causaram um surto de antraz, logo depois do atentado às torres
do World Trade Center (Estados Unidos, setembro de 2001), alertando o mundo sobre a ameaça de
bioterrorismo.
Não foi a primeira vez que as armas biológicas foram utilizadas. Os romanos usavam animais
mortos para infectar os poços de seus inimigos. Na América (do Sul e do Norte) os colonizadores
exterminaram tribos indígenas com cobertores contaminados deixados como presente.
Antes de levantar o sítio à cidadela de Kaffa (Crimeia, 1346), o exército tártaro de Janibeg
catapultou para dentro das muralhas os mortos de peste, iniciando uma terrível epidemia que se
difundiu na Europa e dizimou a população. Ainda hoje, a peste mata 2.000 pessoas por ano, na África
e na Ásia. Em 1941, durante o conflito sino-japonês, o exército do Japão disseminou a peste bubônica
no norte da China, em cinco ocasiões.
Estima-se que uma dúzia de países teria armas biológicas de destruição em massa, envolvendo
aproximadamente 70 agentes infecciosos. Atualmente, ou em curto prazo, existem vacinas para
alguns deles (Bacillus anthracis, Clostridium botulinicum, Yersinia pestis, Francisella tulariensis,
varíola e hantavírus). Entretanto, de um ponto de vista científico, sanitário ou financeiro, a vacinação
poderia não ser o método de combate mais eficiente. Por isso, boa parte do esforço antiterrorista
está sendo orientado atualmente para o melhoramento de diagnósticos e a procura de novos
medicamentos antivirais e antibacterianos.
Outro motivo de preocupação está na quantidade de informação referente ao genoma de
patógenos disponível nos bancos de dados públicos, porque se teme que esse conhecimento possa
ser utilizado para elaborar armas biológicas.
Em 2002, um grupo de pesquisadores americanos mostrou que partículas infecciosas sintéticas
de poliovírus podem ser obtidas a partir da sequência genômica disponível na Internet. Esses
pesquisadores sintetizaram alguns fragmentos de DNA e encomendaram outros a empresas
especializadas. Juntando os pedaços, eles construíram uma molécula de DNA de 7.500 pares de
bases. Depois de transcrever a informação e colocar o RNA em um meio com componentes celulares,

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eles obtiveram partículas virais. Recentemente, outro grupo de pesquisadores utilizou o mesmo
método para sintetizar o vírus da gripe espanhola.
No fim do ano 2011, pesquisadores holandeses e norteamericanos noticiaram ter conseguido
manipular o vírus H5N1 em laboratório, tornando-o facilmente transmissível em seres humanos. O
trabalho, que poderia servir tanto para elaborar uma vacina como para criar uma arma letal, levanta
o problema da liberação dos dados da pesquisa que, normalmente, são compartilhados por
pesquisadores de todos os países.
O perigo do bioterrorismo não deve ser subestimado. Denomina-se biosseguridade a nova
disciplina que lida com a utilização inadequada do conhecimento biológico e, particularmente com as
pesquisas consideradas de uso duplo.

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