GRONDIN
PAUL RICOEUR
Tradução:
Sybil Safdie Douek
Edições Loyola
111111 •• H,lqln~1
,~UII, II I'. /li
'I" .. 111JIIIVtH
Hlllrn do France, 2013
I•. V""" !lulll", I!,60" - ParisCedex 14
I',IIN '11111II 060639 O
Grondin, Jean
Paul Ricoeur / Jean Grondin ; tradução Sybil Safdie Oouek. -- São
Paulo: Edições Loyola, 2015. -- (Coleção leituras filosóficas)
Título original: Paul Ricoeur
Bibliografia.
ISBN 978-85-15-04327-9
1. Filosofia francesa 2. Ricoeur, Paul, 1913-20051. Título. 11.Série.
15-07668 COO-194
Conselho Editorial:
Ivan Domingues (UFMG)
Juvenal 5avian (UNIFE5P)
Marcelo Perine (PUC-5P)
Mario A. G. Porta (PUC-5P)
Rogerio Miranda de Almeida (PUC-PR)
Capítulo 4 INTRODUÇÃO
O ARCO DOS POSSíVEIS DA INTERPRETAÇÃO................. 71
I. De interpretatione....................................................... 71
li. 00 conflito virtuoso das interpretações 76
111.A via curta e a via longa da hermenêutica........... 81
IV. A via da metáfora....................................................... 85
V. O arco hermenêutico e a flecha do sentido.................. 88
Capítulo 5
A HERMENÊUTICA 00 SI
NAS SUMAS DA MATURIDADE 93
I. A hermenêutica da consciência histórica
do tempo narrado porque contado............................... 94 Ricoeur! Todo ouvido normalmente atento terá escutado nesse
li. A hermenêutica tornada ética 99 nome melodioso duas das mais belas palavras da língua france-
111.A hermenêutica do homem capaz ai. O portador desse nome nada tinha a ver com isso, mas era
de .memória e esquecimento 106 efetivamente um homem de coração muito generoso (foi até às
vezes censurado por isso) e de quem se sabe que tinha um lado
ACABAMENTO - CONCLUSÃO......................................... 113
maroto. Paul Ricoeur (1913-2005) foi um dos mais importantes
BIBLIOGRAFIA................................................................. 117 filósofos franceses do século XX, certamente um dos mais lidos
Principais obras de Paul Ricoeur no estrangeiro. Seu pensamento teve e continua a exercer uma
e abreviações utilizadas...... 117 profunda influência sobre todas as ciências humanas, das quais ele
Textos autobiográficos importantes 120 foi também um dos mais brilhantes teóricos. Sua obra rica e com-
LIteratura secundária 120 plexa se desenvolve em uma sucessão de trabalhos frequentemente
imponentes, nos quais nem sempre é fácil encontrar um único
fio condutor. Não se encontra uma verdadeira obra mestra, mas
uma superabundância de livros que poderiam aspirar todo a st
título: A filosofia da vontade (publicado em dois grandes volurn s,
em 1950 e 1960), História e verdade (1955), Da interpretação (1965), O
conflito das interpretações (1969), A metáfora viva (1975), Tempo e narra-
19
tiva (três volumes, 1983-1985),Do texto à ação (1986), Si mesmo como pensamento é hermenêutico. Para parafrasear Terêncio, nada do
um outro (1990), A memória) a história) o esquecimento (2000), Percurso que é humano lhe é estranho, mas, sobretudo: nada do que foi
do reconhecimento (2004), para citar apenas os mais proeminentes. dito a respeito do homem pelos mitos, pelas religiões, pela lite-
Haveria um fio condutor que atravessa toda esta obra? ratura, pela história, pelas ciências humanas, assim como pelas
iências exatas, quer se trate da psicanálise ou das ciências cog-
11itivas , da filosofia mais clássica
.
ou da filosofia analítica - nada
I. Do coração de seu pensamento isso lhe é estranho. Todo o seu trabalho consistiu em integrar o
que estes saberes poderiam trazer para um pensamento respon-
Não se poderia reduzi-lo a um único tema sem violentá-lo, mas sável e refletido do esforço humano. Um pensamento refletido,
pode-se dizer, em uma primeira aproximação, acerca de todo o seu pois Ricoeur foi, em primeiro lugar, marcado pela grande tradi-
pensamento que ele foi uma acolhedora filosofia das possibilidades ão, notadamente francesa, da filosofia reflexiva (Maine de Biran,
do humano: enraizado na tradição reflexiva francesa, o persona- Ravaisson, Lachelier, Nabert, até seus prolongamentos no perso-
lismo e o existencialismo, seu primeiro (e talvez seu constante) nalismo de Emmanuel Mounier e no existencialismo de Gabriel
canteiro de obras foi o de uma filosofia da vontade que desembocou, Marcel e Karl]aspers), que busca responder à questão: o que é o
em seus últimos trabalhos, em um pensamento do homem capaz, h mem? Ou, mais simplesmente: quem sou eu? Para Ricoeur,
ao termo de um itinerário que nunca deixou de levar em conta roda filosofia nasce desta interrogação.
a contribuição de todas as disciplinas e de todos os campos que É que Ricoeur foi, em primeiro lugar, filósofo e historiador
tinham algo a dizer acerca das possibilidades do homem. A no- ia filosofia. Mas um filósofo de um tipo particular. Ricoeur era
ção de possibilidade evoca aqui várias coisas que Ricoeur pensa um universitário, um pedagogo apaixonado, cujo didatismo (que
conjuntamente, capacidade de "compreensão" que frequentemente le chegou a lamentar", mas como não saudar aí uma de suas
caracteriza os grandes pensadores. O leitor moderno pensará talvez qualidades mais notáveis, principalmente em uma época em que
aqui, sobretudo, na capacidade conquistadora que tem o homem tantos de seus contemporâneos se vangloriavam de ser hermé-
d mpreender coisas, de conhecer e de dominar a natureza. Isto, ticos?) está marcado em todos os seus escritos: quando trata
b m ntendido, faz parte do homem, mas, por possibilidade, é tam- de uma questão, ele tem a preocupação de lembrar com uma
h '111prc iso empreender que o homem pode sofrer, pode não estar limpidez e uma probidade exemplares o que os grandes filósofos
, .ilr urn 1('SlI:lS possibilidades, pode, portanto, fazer o mal, mas disseram sobre a questão e o que os autores de seu tempo, de
1,1111111'111
poli I' ,I},.il', :lI. r, nr I'I':Jr sua experiência, manter promes- todas as tradições, pensam dela. A cada vez, como um dramatur-
,,,'I 11\( ,,11(\P ,I 1divi 110.S~ o te nras possibilidades que
1",111'11111011,
11111111111 1111111 111li 11111'111,1 1II,IIII'il"I,ma .. to I. S 'Ias definem 2. Ver La critique et Ia conviction (CC), Paris, Calmann-Lévy, 1995, p. 44, 78
111 11111,1111,",11 I 111'11111111 1111111 (trad. p. 43, 73). Para a lista de abreviações que doravante utilizaremos, ver a
bibliografia. Para aliviar as referências, a indicação de uma paginação no corpo
111"11 1111111111 '111111111di I1,11 ti I 11111'111 'I' 111istra atenro a
do texto remete ao último trabalho citado. [Das obras de Ricoeur rraduzidas ao
1111111111111 I I 1111111'"1 11"ldl 11til 1l,lllll:ldamentepela português, sempre que possível, acrescentou-se entre colchetes a(s) página(s)
1111'"111111'11 111111111 1'11111111111111111".11'111 tivoqueseu da tradução. (N. da T.)]
111I t 111111
I Introdução I 11
11 11, 1'11', 11111'11'U ,IS I insõe ,até mesmo as contradições, na Sob a história, a memória e o esquecimento.
jll I1 ,1"111'111. 111I1l ":1 qucr ver oposições categóricas. Seu talento
Sob a memória e o esquecimento, a vida.
til di IIIIIIHI .'1I.1"mal1iadas conciliações" (CC, p. 97 [rrad., p. 90]) Mas escrever a vida é outra história.
\I li' ",\ Il's brir perspectivas complementares que ajudam a lnacabamento.
Paul Ricoeur
1I1Illpn"n I 'r melhor a própria coisa. É uma das primeiras lições
dI' SU:l fil sofia da compreensão: quanto mais se leva em conta
Em uma de suas últimas entrevistas, ele aceitou que se possa
:1 Iiv .rsidade das perspectivas acerca de uma questão, mesmo, e
v r aí um epitáfio naquilo que pode ser considerado seu livro de
S brctudo, daquelas que parecem se opor, melhor se compreen-
, deus" (mesmo que escrevesse outros, como Percurso do reconhe-
d . Seu pensamento se encontra assim salutarmente ao abrigo de
imento em 2004). Se este texto permanece misterioso - Ricoeur
t dos os dogmatismos e de todas as clivagens. Ele tem menos a
não o esclarece verdadeiramente nesta entrevista de 2004 (a frase
preocupação de defender ideias revolucionárias ou iconoclastas
Ih veio em bloco, diz ele, e isto desde o início); mas em ~uas
do que de fazer justiça à complexidade dos fenômenos humanos, .
entrevistas antenores ele se censurava por ter " sempre fUgldo"
e clarecendo-os por todos os ângulos possíveis. ti tema da vida em sua obra (CC, p. 143 [trad., p. 1321) -, sua
Adivinha-se que isto lhe valeu críticas, a de ser muito con- última palavra, que forma uma espécie de frase, não o é. E sobre o
ciliador e de esconder seu pensamento atrás do pensamento in: abamento em que se acaba - e que sabe ter que se acabar -: a
dos interlocutores que ele apresenta. É preciso, sobretudo, re- ol 1':1 de Ricoeur, assim como a de todo esforço humano para eX1S-
conhecer aí uma insigne modéstia de seu pensamento, que des- Iir. homem é esforço e permanece necessariamente sendo-o. A
confia tanto das explicações peremptórias e unilaterais quanto questão de Ricoeur é um pouco: qual é o sentido desse esforç~,
. das pretensões de descobrir a verdade de maneira solitária. Ela uais são suas possibilidades e seus recursos? Pode-se aqm ouvir
reconhece que no mundo do pensamento, em que é tão fácil <1 questão de Kant sobre a qual Ricoeur jamai~ deixou de me,ditar:
opor perspectivas e escolas, só se tem a ganhar com o confron- que posso esperar, a despeito de minha finitude insuperável, a
to ;te posições opostas. Ricoeur prefere a síntese à antítese, ao ! peito do mal e do trágico da condição humana?
rn mo tempo em que resiste ferozmente à ideia (hegeliana) de
lima sínt se definitiva, principalmente porque ela poria um fim
, s possibilidades infinitas da reflexão e do agir humanos, que 11. Uma filosofia hermenêutica
.izcm qu " hi t ria, sobre a qual Ricoeur tão frequentemente
1;(' dchru ()11.I ermo 11' as mpre aberta, mas também porque Munido de tamanha consciência da finirude, que caracteriza, aliás,
It 1111'111'11'111 uiu ,'('IlS0;1 'lido do inr 3 arncnto essencial, se não mais influentes filósofos de seu século, o pensamento de Ri LIr
d.1 11" 'l'dl,l. ljlll' I .11"11 11'I'ií'.1II'S 01' 01111111, 11 para existir. Bem nsidera que esse inacabamento se encontra na raiz de todas as
111111111 di' fI ///1'/1//111.1, ,/ lu-uui« li 1'\(I'II'rllI/l'lllli (2000), uma suma
til (I 11111:11"" ljlll'I'II'llll1l1l1ll1l 111111,\I l.ulc I' 87 anos, ele fez 3. Entrevista de P. Ricoeur com B. Clément. Paire intrigue, faire question:
111'1'1111111 110111111111011101 '1Ihl, di 1"11 dllll1lll110 pítulo, um texto SUl' Ia litrêrature er Ia philosophie, in M. REVAULTD'ALLoNES, P. AzOUVI(Ed.),
Introdução 1 13
possibilidades e iniciativas humanas. Todas merecem ser levadas nas que praticam a arte da interpretação da realidade humana: a
em conta, nenhuma pode ser qualificada de inautêntica sob a ale- história, a exegese, a ciência comparada das religiões, a psicanálise
gação de que ela desviaria o homem de seu verdadeiro acabamento. as ciências da linguagem. Estes saberes não teriam algo a nos
Eis por que seu pensamento é o do diálogo, da esperança, da con- dizer, se pergunta Ricoeur, sobre o que é a interpretação e, assim
frontação das ideias e da abertura ao inédito da iniciativa humana. mão, sobre a realidade humana? Ricoeur se colocará, portanto,
Essa filosofia da escuta, Ricoeur a apresentou de bom grado sob o , escuta do que essas disciplinas têm a ensinar à filosofia, pois
termo hermenêutica. Sem ser o único, é sem dúvida o termo que LIma filosofia que se desliga das ciências fica, segundo ele, estéril.
melhor resume seu pensamento, assim como o de seu outro grande fi herrnenêutica será, portanto, para de não o nome de uma filo-
contemporâneo, Hans Georg Gadamer (1900-2002), mesmo que sofia "direta" da realidade humana, mas o nome de uma escuta
Ricoeur, como insistiremos aqui, tenha cbegado à hermenêutica racional e refletida das narrativas e abordagens que reconhecem
de modo bem diferente do pensador alemão. um sentido e uma direção ao esforço humano para existir. O ho-
A bermenêutica era antigamente - e ainda é - o nome que mem é um ser que "pode" interpretar seu mundo e se interpretar
se dava à disciplina que se interessava pelos métodos e regras da ,I i próprio. Quais são os poderes dessa hermenêutica? Esta será
, interpretação correta. Ela florescia em disciplinas como a teologia 11ma das questões diretrizes de sua filosofia.
e mais particularmente a exegese do texto bíblico, mas também
em campos como o direito e a história, aos quais Ricoeur dedicou
uma atenção constante. Pelo viés de pensadores como Dilthey e 111. Vila
Heidegger, a hermenêutica se tornou no século XX o nome de
uma filosofia geral da interpretação que considera o ser humano Ri oeur nasceu em 27 de fevereiro de 1913, em Valence". Sua vida
um ser de finitude que precisa de interpretação, que é capaz de estudiosa, dedicada à filosofia, ao ensino e à pesquisa, foi desde
interpretar e vive desde sempre no seio de um mundo de inter- In u ito cedo marcada por perdas trágicas, imemoriais, que pesaram
pretações", A questão crucial da hermenêutica se torna então , em seu caráter. Sua mãe morreu pouco depois de seu nascimento,
para um-autor como Heidegger, a de saber como devemos nos .s u pai, professor de inglês no liceu, morreu na frente de batalha
compreender a nós mesmos, isto é, como podemos nos libertar ('111Mame em 1915 (só se soube com toda a certeza quando ele
das oncepções inautênticas de nossa existência a fim de sermos 11~ retomou da frente de batalha em 1918; seu corpo foi encon-
, utcnri arn nte nós mesmos. Ricoeur foi marcado por essa am- Irado em um campo em 1932). Ricoeur nunca soube, portanto,
pli,l~':I(l lo SCI11id da h rmenêutica (para a qual ele mesmo con- o que era ter uma mãe ou um pai. Ele viveu a experiência cruel da
11rhuiu), 11\!I,ld,lllH'nl . por sua xt nsão no sentido da ética, mas 111rte de sua única irmã, Alice, em 1935, levada com a idade de 21
1 r:lh:1lh:1um I ou o d pressa demais
1,11'11111Idl'l.I '1"1' 111·idl'}'.>\I·r I1I10Spela tuberculose. Mais tarde se daria conta de que a morte
'1111111111 '1'1111111111'1'1111111
111111111 hr-rn n-n llli , dl'l1ossaexistência d seu pai na frente de batalha tinha sido "uma morte em vão", o
11"1 I 111111 11111111'111011111.1111111111di' dl',pl'II ....II' tod: as discipli-
5. Ver a biografia de F. DOSSE, Paul Ricoeur. Les sens d'une vie, Paris, La Décou-
I'111., ," I IIII~~()ue sais-je? sobre v .rre, 2008; e a biografia que ele redigiu com O. Abel no site do Fundo Ricoeur
1'111 I'111 lI) I I,
I (www.FondsRicoeur.fr).
I1I I 11111111
1111 Introdução I 15
qu' 111' rouxe um "agudo sentimento de injustiça social", para ridade intempestiva do texto bíblico, que Ricoeur nunca cessaria
lua! l.e encontrava em "sua educação protestante, encoraja- I ler e comentar. Ele dedicou seu mernorial (ainda inédito) do
m mo e Justificação" (RF, p. 19). Criado por seus avós paternos e liplorna de estudos superiores à questão de Deus em dois repre-
uma tia, ele foi classificado como "pupilo da nação", isto é, filho S ntantes, hoje pouco conhecidos, da filosofia reflexiva francesa:
de uma vítima da Primeira Guerra Mundial, de cuja educação o Método reflexivo aplicado ao problema de Deus em Lachelier e Lagneau
Estado se encarregava (CC, p. 11 [trad., p. 13]). Ele se encontrou (1932)1. Em 1935, obteve sua agregação em filosofia na Sorbonne
então "entregue ao desenho, à leitura, em um tempo em que os (na época, não se preparava tese de doutorado) e publicou seus
lazeres coletivos eram ainda pouco desenvolvidos e as mídias ain- I rimeiros artigos na: revista Terre Nouvelle, órgão dos "cristãos re-
da não tinham se encarregado das distrações da juventude" (RF, v lucionários pela união de Cristo e dos trabalhadores para a
p. 13)6. Nesta época, abençoada, lia-se e estudava-se: "É assim que I' volução social'". Protestante muito engajado, foi próximo dos
o essencial de minha vida, entre 11 e 17 anos, se passou entre a se ialistas, geralmente pacifistas (portanto, ingênuos, ele se cen-
minha casa e o liceu para meninos de Rennes, ao ensino ao qual suraria mais tarde), eleu afundo a obra de Marx (CC, p. 22 [trad.,
eu estava muito ligado, a ponto de devorar, desde antes da volta p. 23]), ao qual dedicou um de seus primeiros artigos, impetuosa-
às.aulas, os livros recomendados pelos professores" (RF, p. 14). Foi m 11 te intitulado "Necessidade de Karl Marx" (na pequena revista
ali que o bom aluno adquiriu seu senso dos clássicos e sua fasci- I?fre [1937-1938]). Ensinou filosofia no liceu de Colmar, depois
nação pelos autores gregos, lidos como contemporâneos. Ricoeur i-m Lorient, antes de ser mobilizado em 1939. Em maio de 1940,
tornou-se em 1933, muito cedo portanto, professor de liceu, em oi aprisionado no vale de Mame, ali mesmo onde seu pai tinha
Saint-Brieuc. O fato de ter sido "lançado" tão rapidamente na c.iído em 1915, e mandado para um campo de prisioneiros nalon-
profissão de professor seria determinante para ele, pois todo o seu \ nqua Pomerânia, onde passou o resto da guerra. Com outros
trabalho de filosofia - reconheceria Ricoeur mais tarde - sempre prisioneiros, entre os quais Mikel Dufrenne (1910-1955), o amigo
esteve ligado ao ensino (CC, p. 21 [trad., p. 20-21]). Ao se tornar' ,I qual ele dedicaria sua entrevista "A crítica e a convicção", for-
professor de filosofia na Universidade em 1948, ele se fixou como m LI um pequeno clube de filósofos. O cativeiro não afetou em
tarefa, conforme~uma excelente máxima herrnenêutica, ler a fun- nnda sua inclinação pela cultura alemã, visto que aí aproveitou
do, a cada ano, a obra de um autor filosófico (RF, p. 27). I ' ra aprofundar seu conhecimento de ]aspers, ao qual Marcel o
Se~!sprimeiros passos no universo do pensamento seguiram havia iniciado, e de Husserl. Ele traduziu então a obra mestra de
s arnin hos traçados por Gabriel Marcel, cujo ensino socrático ele II usserl, suas Ideias diretrizes para uma fenomenologia pura, de 1913,
11, margens do texto, por falta de papel.
, ornp: I1h li rn Pari e que ia visitar toda sexta-feira (CC, p. 21
111'.HI..p. I).Pnrti ipando, 111 lefariaportodaasuavida,de Em 1945 foi liberado por canadenses. De volta a Paris, foi
\1111 I )'1 di' I I i.~1dllN ,~O( i.il 111('I1Il' l'ng. j. dos, I fi i marcado pelo ,) lhido como um filho por Gabriel Marcel (CC, p. 35 [trad., p.
H'IIII!!I'I' 1'>\1'1 IIHIII\'IH.llíll'J{.Id l~ll'lh (','('(11'('!Orl1radical à auto-
7. Ver a apresentação esclarecedora de M. A. VALLÉE. O primeiro escrito
tilosófico de Paul Ricoeur: método reflexivo aplicado ao problema de Deus em La-
rhelier e Lagneau, Études ricoeurtennes 3 (2012) 144-155 (revista eletrônica fácil
li ' encontrar na internet),
8. Biografia de Paul Ricoeur no site do Fonds Ricoeur.
essa publicação lhe valeu sem dúvida o fato de ter sido nomeado I'\'presentativo da incúria geral, um estudante virou uma lata de
professor de filosofia em Estrasburgo em 1948, onde passaria oito I1 sobre sua cabeça. Ricoeur se demitiu do cargo de decano em
anos. Ele se aproximou então dos intelectuais da revista Esprit e de março de 1970. Não foi o único fracasso de Ricoeur: em 1969 ele
seu fundador, Emmanuel Mounier, que morreu subitamente em h.ivia apresentado sua candidatura ao Collêge de France, que pre-
1950. Destinado à carreira de professor de universidade, defendeu I -ri I, em seu lugar, Michel Foucault. O "estruturalismo" reinante
sua tese, iniciada em cativeiro e que se tornaria o primeiro volume Ii.ivia vencido a hermenêutica de Ricoeur, considerada coisa do
de sua Filosofia da vontade, O voluntário e o involuntário, dedicado a p.issado. Em seus escritos, Ricoeur permaneceu, contudo, o único
Gabriel Marcel. Seguiu-se em 1955 uma importante coletânea ,I ' nduzir um debate sereno entre a hermenêutica e o estrutura-
de estudos, História e verdade. Em 1957, foi nomeado professor 1,'111,de cujos numerosos elementos ele se apropriou e cuja do~-
na Sorbonne, onde sua notoriedade, realçada por seus talentos 11ina le frequentemente apresentou de modo infinitamente mais
de pedagogo, cresceria, mesmo que sentisse saudades do convívio li i I. ico do que o fizeram seus representantes. .
entre professores e estudantes que era ainda possível em Estras- Permanecendo ao mesmo tempo professor em Nanterre, Ri-
burgo. Em 1960 publicou o segundo volume de sua Filosofia da I I ('LIr deu, de bom grado, cursos no exterior, em Louvain, Montreal
vontade e começou a dedicar vários de seus seminários à obra de I' n.i Oivinity School da Universidade de Chicago, onde aceit?u a
Freud, tema de seu próximo grande livro, Da interpretação. O tra- 1.1\'iraJohn-Nuveen, que ocupou de 1970 a 1992 e que detinha
balho notável, uma obra-prima de hermenêutica, seria, todavia, .nt 'S dele Paul Tillich. Ele constatou que sua obra no estrangei-
sistematicamente denegrido pelos lacanianos. I11, onde contava numerosos antigos estudantes, se beneficiava de
Em 1964 Ricoeur, um pouco idealista, se cansou dos anfitea- 111113 fama e de um prestígio que ela não tinha na França, ao menos
tros latadas, porém anônimos, da Sorbonne e aceitou ser nomea- IIIIS p quenos círculos da vanguarda parisiense. Ele aproveitou
d na nova Universidade de Nanterre, onde reencontrou seu com- 'III,IS stadias na América para aprofundar seu conhecimento da
I anh ir de cativeiro, Dufrenne, e onde faria nomear Lévinas, \ d lS fia analítica anglo-saxã que marcaria todos os seus escritos
cnu o P li O nhecido. Nanterre se tornaria uma cidadela da 01p, rtir do início dos anos 1970. Em 1979, enquanto dava uma
10111(','1.1\.10('$( ud: nt il. 111suas convicções SOClalSe comumtá- .rul: em Nanterre em um dia de chuva torrencial, ele constatou
1IIi',IIlIH'III'.iIllP,llizlurom.IYIII11:lsda r ivindicações dos con-
II1IChavia apenas um único estudante em sua aula. A~res:ntou ~ua
1\"H 111II111'l'lldl'l I.II'IIIII'III.II·li>,,II.'
1111:111nclos c : rgUI11ntadosque
.lernissão no dia seguinte (tendo de qualquer maneira F atingido
I 1111111111
11'111 11' MIl/11ft' di' "" li 111di' I')(IH" (I' \lU ' irritariarn seus co-
I, \,111111 111111111111111) t~IlIIlIIIIlIIl,I"II1I'I,I"Or:1paranuancese
10. Acerca deste episódio, ver F. Dosse, op. cit, p. 381-418, e o testemunho
di' S ·u colega de Nanterre R. RÉM.oND, Paul Ricoeur à Nanterre, m Paul Ricoeur
'1 I I 101 I "I' ,I I, P. ris, L'Herne, 2004, p. 44-56.
123
primeiro a filosofia reflexiva e a fenomenologia. Esta :rind~de é 111111:(111 qlll" imerrogasobre si próprio, e ela tem por finalidade
esclarecedora, tanto no conteúdo quanto na cronologia, pOISela 1'I 1,11'1'(-10 sobre si próprio. Neste sentido amplo, a filosofia
tende a apresentar a herrnenêutica como um ponto ~e chegada ao II'III'XIV,II" monta ao "conhece-te a ti mesmo" de Sócrates, assim
termo de um itinerário que parte da filosofia reflexiva e da feno~ 1111110,"qu stão que eu sou para mim mesmo", de Agostinho.
menologia. Se a fenomenologia - esta grande corrente, lançada .' 1'11 I' (l11unde então com a própria filosofia. É nesta linhagem
por Edmund Husserl (1859-1938), depois transformada em um '1111 I' ~itu: de bom grado Ricoeur, que, no entanto, sabe - e a
sentido hermenêutico por Heidegger (1889-1976), e que conheceu ",'111 l(l I filosofia reflexiva já o afirmava contra Descartes _
importantes prolongamentos na França (Sartre, Merleau-Ponty, '11111IUI,gito é um cogito ferido, frágil, vulnerável, que não pode
Lévinas, Marion) - é em geral bem conhecida, a linha de uma I 1\'11d(' undamento inabalável, mas que por isso mesmo está
filosofia reflexiva na qual se situa Ricoeur o é infelizmente bem. 11111111'1,]I uma justa compreensão de si mesmo edesuaspos-
menos. Em sua acepção mais restrita, a filosofia refle~va franc~sa ",dlll.llks, cuja exploração dá vida à obra de Ricoeur,
está associada a pensadores do século XIX como Pierre Mame
J \,." ' iu finito, fraturado, engajado, Ricoeur o encontrou tanto
de Biran (1766-1824), Félix Ravaisson (1813-1900), Jules Lache-.
1111IWI'5 nalismo de Mounier quanto no existencialismo, nota-
lier (1832-1918), e do século XX como Jea.n Nabert (1881-1960).
d.IIIII'IllC o de Marcel, Jaspers e Sartre (e sua ideia de "para si").
Lembramos que é a Lachelier e a Lagneau, que também pertence a
I 111 li, própria genealogia, Ricoeur invoca, no entanto, menos
esta tradição, que Ricoeur havia dedicado seu diploma de estudos
111 1',1(!11ialismo que a fenomenologia, não sem marcar uma pe-
superiores. O pensamento reflexivo bu cava resistir à visão pura-
'111111.1 I'~S rva: seu pensamento, diz ele, "permanece na esfera de
mente materialista ou sensualista (diríamos hoje naturalista) do
1I11I11111i da jenomenologia husserliana", deixando entender com
homem, que prevalecia em certos filósofos franceses das Luzes,
I 111/1'(' 'Ie permanece lhe sendo fiel apesar de algumas de suas
como Condillacque queriam reduzir o homem aos seus nervos e
I 11111 I}\I11":1.ções nas quais ele nunca se reconheceu. Nisso ele não
ligamenros que a anatomia estava então descobrindo. A ideia forte
, '111'<1 II1Iiexceção entre os fenomenólogos. Da fenomenologia, o
de uma filosofia reflexiva é a de que não se pode compreender o .
homem sem partir da autorreflexão que o caracteriza e que uma I I"llIl\) Ricoeur propôs a mais saborosa definição, dizendo que
análise biológica ou mesmo cerebral nunca atinge. . I1 1'1,1" soma da obra husserliana e das heresias que nasceram
Se esta tradição caiu hoje em um relativo esquecimento, 01, IIIISS rl" (EP, p. 9 [trad., p. 8]). O que o fascina na corrente
a filosofia reflexiva em sentido amplo, tal como a compreende I, 1111111 11 lógica não é o leitmotiv husserliano de uma fundação
Ricoeur é "vinda de Descartes e Kanr'", no sentido de que ela Idlllll,l (RF, p. 56), das ciências e das evidências da consciência,
procede' do caráter prioritário do cogito, compreendido, se não hll ti inspirado, segundo Ricoeur, pelo modelo dedutivo de um
como fundamento inabalável, ao menos como o ponto de par- I'tldl(' irnento matemático em Husserl, nem sua preocupação
tida e de chegada da atividade filosófica: osofia é assunto de 100I,disla de uma dedução destas evidências a partir de um ego
I 1III',LÍlLIinte,um pouco ao modo de Fichte, nem mesmo o "rné-
1111111' da redução ou daépoche em sentido estrito. Ricoeur sempre
L P. RtCOEUR, Écrits et conférences 2. Herméneutique. Paris, Le Seuil, 201_0,
P: 22. [Escritos e conferências 2. Hermenêutica. Trad. Lucia Pereira de Souza, Sao 11I11I1'v distância em relação a esta versão, que ele diz ser idealista,
Paulo, Loyola, 2011, p. 18.]. 1.111'11l11enologia, sem dúvida encorajado nisso pelo exemplo de
gia atenta à experiência do sentido, mas Merleau-Ponty lhe terá Ii a. Como se deve então compreender a variante "herrnenêurica"
apresentado uma versão liberada de seus empecilhos idealistas d,1 fenomenologia proposta por Ricoeur? Mesmo que tenhamos
e fundacionais. Ricoeur dirá mais tarde que ele quis fazer para a de prestar uma atenção especial ao contexto em que emerge a te-
vontade e toda a esfera afetiva o que Merleau-Ponty havia realiza- 111, rica da hermenêutica em 1960, a resposta mais correta consiste
do no campo da percepção (p, 23). Ricoeur sem dúvida não igno- 1'111 dizer que ela corresponde a toda a filosofia de Ricoeur. É que
rava, quando trabalhava em sua filosofia da vontade, que a ideia ,I oncepção que Ricoeur se fez da hermenêutica e de suas tarefas
de uma fenomenologia hermenêutica liberada de seu idealismo I'V luiu de modo significativo ao longo das obras. Em Reflexão feita
havia também sido proposta por Heidegger em Sere tempo (1927). 1'1, distinguirá, aliás, três concepções diferentes da hermenêutica
Simplesmente não é esta vertente da fenomenologia que parece !Ju teriam se sucedido em sua obra. Todas elas nos interessarão.
ter incitado Ricoeur a se lançar na hermenêutica. Ricoeur nunca N; o resta dúvida de que a primeira virada hermenêutica acontece
guardou segredo de sua distância em relação a Heidegger: mesmo 1'111 1960, em Finitude e culpabilidade, quando Ricoeur procura dar
que ele tenha a cada vez apostado em autores que a posteridade , )11 ta do fenômeno do mal e da vontade maligna, colocando-se à
trataria de modo bem ingrato, ele preferiu ]aspers a Heidegger,' ,'S ata dos símbolos, religiosos e míticos, que representaram essa
assim como havia preferido Marcel e Merleau-Ponty a Sartre. experiência da falibilidade humana. A ideia central de Ricoeur que
Em sua autobiografia intelectual de 1995, ele confessa, con- I 11arca, se quisermos, sua ruptura com a filosofia reflexiva clássica
tudo, ter sido sensível à crítica formulada pela hermenêutica hei- ,', fenomenologia em seu sentido estrito e husserliano é a de que
deggeriana (e pós-heideggeriana, portanto gadameriana) em rela- pego não pode se compreender a si mesmo pela introspecção, o
ção à fenomenologia (p. 56). Mas a partir de quando ele o foi? A retorno reflexivo sobre si: ele deverá se servir da via longa da inter-
resposta a esta questão tem sua importância se quisermos com-
!lI' tação dos símbolos se quiser se conhecer a si mesmo e, mais
preender sua fundada pertença ao que ele denomina a "variante
p, rticularmente, dar contada experiência do mal. Essa concepção
I. hermenêutica se ampliará após 1960, para se estender a toda a
2. Ver PV 1, p. 34, onde Ricoeur fala deste "pensamento não redutivo, mas
descritivo, não naturalista, mas respeitoso daquilo que aparece como cogito, em
suma, este tipo de pensamento que Husser! denominou fenomenologia". 3. TA, p. 11-35.
129
28 I Paul Ricoeur