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28/12/2021 23:10 EPICURISMO | Divagando

19th December 2013 EPICURISMO


A cultura do terror/4
Foi num colégio de padres, em Sevilha. Um menino de
nove ou dez anos estava confessando seus pecados pela primeira vez.
O menino confessou que tinha roubado caramelos, ou que tinha mentido
para a mãe, ou que tinha copiado do colega de classe, ou talvez
tenha confessado que tinha se masturbado pensando na prima. Então,
da escuridão do confessionário emergiu a mão do padre, que brandia
uma cruz de bronze. O padre obrigou o menino a beijar Jesus crucificado,
e enquanto batia com a cruz em sua boca, dizia:
— Você o matou, você o matou... Júlio Vélez era aquele
menino andaluz ajoelhado. Passaram-se muitos anos. Ele nunca pôde
arrancar isso da memória.
(Eduardo Galeano - O LIVRO DOS ABRAÇOS)

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Epicuro, nascido de uma família de expatriados gregos de Samos, estabeleceu-se em Atenas por volta de 306 a.
C. e aí viveu até à sua morte, em 271. Os seus discípulos no Jardim, que incluíam mulheres e escravos, viviam
humildemente e mantinham-se afastados da vida pública. Epicuro escreveu 300 livros, mas tudo se perdeu, à
excepção de algumas cartas. Alguns fragmentos do seu tratado Da Natureza foram soterrados em lava vulcânica
em Herculano, aquando da erupção do Vesúvio em 79 d. C.; nos tempos modernos foram cuidadosamente
desenrolados e decifrados. Até hoje, contudo, o nosso conhecimento das doutrinas de Epicuro continua a apoiar-
se sobretudo num longo poema latino escrito no primeiro século da era cristã pelo seu discípulo Lucrécio, intitulado
Da Natureza das Coisas (De Rerum Natura).

O objectivo da filosofia de Epicuro é tornar possível a felicidade pela eliminação do seu grande obstáculo: o medo
da morte. É o temor da morte que leva o homem a procurar riqueza e poder, na esperança de a adiar, e a lançar-se
em frenética actividade para esquecer a sua inevitabilidade. O medo da morte é instilado em nós pela religião, que
prenuncia uma vida depois da morte cheia de sofrimentos e punições. Mas tal perspectiva é, para Epicuro, ilusória.
Lucrécio clarifica eloquentemente este aspecto: não precisamos de temer a morte, a sobrevivência ou a
reencarnação.

Que tem este papão, a morte, que tanto assusta os homens,

se tanto as almas como os corpos morrem?

Tal como antes de nascermos não sentíamos dor

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quando as armas púnicas infestavam a terra e o mar,

assim também quando se desagregar a nossa mortal ossatura

e o corpo sem vida for separado do espírito,

libertados seremos dos sentidos de dor e sofrimento,

nada sentiremos, porque nada seremos.

Ainda que se percam a terra nos mares e os mares nos céus

não nos mexeremos, seremos simplesmente pelo acaso remexidos.

Não, mesmo supondo que sofrida a consumação do destino

a alma possa sentir no seu estado dividido,

que nos importa isso a nós? Pois nós só somos nós

enquanto as almas e os corpos permanecerem unidos.

Não, ainda que os nossos átomos se revolvam ao acaso

e a matéria regresse à sua antiga dança;

ainda que o tempo pudesse devolver-nos a vida e o movimento

e fazer dos nossos corpos aquilo que outrora foram;

que ganharíamos nós com toda essa azáfama?

O homem novo seria uma coisa nova.

Foi para eliminar o medo da morte e para demonstrar que os terrores da religião não passavam de fantasias que
Epicuro concebeu a sua ideia da natureza e da estrutura do mundo.

Adoptou, com algumas modificações, o atomismo de Demócrito. Os átomos, unidades indivisíveis e imutáveis,
deslocam-se no vazio e no espaço infinito; inicialmente, todos se deslocam em sentido descendente a uma
velocidade constante e igual, mas por vezes mudam de direcção e colidem uns com os outros. Dessas colisões
resulta tudo o que existe nos céus e na terra. Como todas as outras coisas, também a alma é constituída por
átomos, que diferem dos outros por serem mais  pequenos e subtis. Com a morte, os átomos da alma dispersam-
se e tornam-se incapazes de sentir, porque já não ocupam o seu lugar apropriado num corpo. Os próprios deuses
são constituídos por átomos, tal como os seres humanos e os animais; mas, visto viverem em regiões menos
turbulentas, encontram-se a salvo dos perigos da dissolução.

Epicuro não era ateu, mas estava convencido que os deuses não se interessavam pelos assuntos deste mundo,
vivendo a sua própria vida em ininterrupta tranquilidade. Por este motivo, defendia que a crença na providência
divina era uma superstição e que os rituais religiosos eram, na melhor das hipóteses, inúteis.

Ao contrário de Demócrito, Epicuro pensava que os sentidos eram fontes seguras de informação e desenvolveu
uma ideia atomista acerca do seu funcionamento. Todos os corpos expelem finas películas dos átomos que os
constituem, películas essas que retêm a sua forma original, servindo assim como imagens (eidola) dos corpos
originais. A percepção ocorre quando estas imagens entram em contacto com os átomos da alma. As aparências
que atingem a alma nunca são falsas; correspondem sempre exactamente à sua fonte. Se nos enganamos quanto
à realidade, é porque usamos estas aparências genuínas como base para falsos juízos. Se as aparências são
contraditórias, como quando um remo parece dobrado dentro da água e recto quando fora dela, as duas
aparências devem ser entendidas como testemunhos honestos sobre os quais o espírito deve ponderar para
chegar a um juízo. Nos casos em que as aparências são insuficientes para esclarecer uma disputa entre teorias
rivais (sobre a verdadeira dimensão do Sol, por exemplo), o espírito deverá abster-se de qualquer juízo e
demonstrar igual tolerância para com todas as hipóteses.

A pedra basilar da filosofia moral de Epicuro é a doutrina segundo a qual o prazer é o princípio e o fim da vida feliz.
Contudo, Epicuro traça uma distinção entre os prazeres que resultam da satisfação dos desejos e os prazeres que
surgem uma vez satisfeitos todos os desejos. Os prazeres que resultam da satisfação dos nossos desejos ligados
à comida, à bebida e ao sexo são prazeres inferiores, já que estão ligados à dor: o desejo que satisfazem é em si
próprio doloroso, e a sua satisfação leva à renovação do desejo. Devemos procurar, pois, os prazeres tranquilos,
tais como o da amizade privada.

Embora fosse um atomista, Epicuro não era determinista; pensava que os seres humanos gozavam de livre-
arbítrio e procurou explicá-lo recorrendo às arbitrárias mudanças de direcção dos átomos. Sendo livres, somos
senhores do nosso próprio destino: os deuses não impõem necessidade nem interferem nas nossas escolhas. Não
podemos escapar à morte, mas se a olharmos de uma perspectiva verdadeiramente filosófica, ela deixa de ser um
mal.

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(Anthony Kenny - História Concisa da Filosofia Ocidental)

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Postado há 19th December 2013 por Thynus

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