Tanto se fala em arte moderna, esquece-se que só há realmente uma: o cinema. Todas
as outras são antigas, são artes que se modernizaram – modernizadas digamos.
Em 1895, o cinema era uma invenção. A partir de 1913 e 1914 é que se tornou arte.
Griffith, Thomas Ince, Mack Sennett, nos Estados Unidos, Giovanni Pastrone, Enrico
Guazzoni, na Itália. Victor Sjöström, na Suécia, Louis Feuillade e Max Linder, na França,
foram os iniciadores.
Nenhuma significação teria, porém, sua origem contemporânea, seu nascimento
diante de nós, se, morfologicamente e sintaticamente, a linguagem fílmica não
correspondesse à necessidade de expressão do homem atual.
As outras artes têm procurado com insistência as virtudes que no cinema são uma
constância: o movimento, o ritmo, a força da imagem, a realidade além da imagem,
a realidade além da realidade, a vida fora da vida.
O corte brusco, a fusão lenta, o jogo dos fade-in e fade-out, o descritivo dos
panorâmicos e dos travellings, o processo criador do montage derivaram da
observação consciente da história das outras artes e assumiram em seguida, por
interação e reflexo, um papel reformar sobre a pintura e a escultura, o teatro e
a dança. Eisenstein se inspirou em El Greco e Da Vinci para fazer os seus filmes
e elaborar a sua teoria cinematográfica. Mas diversos artistas, mesmo Picasso,
transpuseram para seus quadros o efeito cênico da luz tomada pela câmera. E se a
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dramaturgia do cinema surgiu da assimilação – ou da imitação – da mise-en-scène
teatral, a cenografia e a iluminação do palco assimilaram as novas experiências dos
cineastas.
No prefácio de sua Histoire de l’art du cinéma, Georges Sadoul,1 que já escreveu milhares
de páginas sobre a marcha histórica da invenção dos irmãos Lumière, adverte como
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é difícil o estudo das origens do cinema, não obstante seu nascimento recente. Num
tempo em que os homens conservam os menores testemunhos de seus mínimos atos,
os arquivos do cinema quase se volatizaram, antes que se começasse a compreender
que, com ele, surgira uma nova linguagem.
Do livro de Sílio Boccanera Júnior talvez se possa dizer que é o primeiro escrito no
Brasil: até esta data não há notícia de outro que o antecedesse. Cobrindo o período
1897-1918, contém informações preciosas, malgrado vários erros e a ausência de um
método de investigação. Sem ele, ter-se-ia perdido, em boa parte, o conhecimento
cronológico de muitos fatos que não deixaram vestígios escritos. Contemporâneos
dos mesmos, o autor de Os cinemas da Bahia vale mais como um informante do que
como um cronista na história, um informante, aliás, sob suspeição, porque movido
pelo preconceito de defender o teatro contra o “bacillus do cinema”, que “matará o
teatro assim como o jornal moderno e as revistas ilustradas vão, despercebidamente,
matando o livro”.
Quanto a Artes & Artistas, seus 68 números refletem uma encantadora ingenuidade
provinciana. Mas já é um esboço de avaliação cultural que se anuncia: desde a abertura
se fala em educação cinematográfica. Os editores, Fonseca & Filhos, não adivinharam
que a imagem de seu tempo, infelizmente só de seu tempo, seria encontrada, de
futuro, nas páginas da revista. Mas como repositório de nomes de atores, de títulos
de filmes, de galeria iconográfica, é de um valor extraordinário.
Não se pode dizer que na imprensa periódica ou diária haja iguais esclarecimentos:
se os intelectuais sempre desdenharam, por equívoco estético, os problemas
artísticos, sociais, econômicos do cinema, a inexistência de jornalistas realmente
especializados determinou que se perdesse, entre nós, a memória de muitos
acontecimentos importantes.
Restaria a documentação oral, mas esta, para ser autêntica, exige do depoimento
uma credibilidade nem sempre possível de verificação.
Como, entretanto, o cinema na Bahia só tenha tido até agora uma pequena história
– quer pela brevidade, quer pelo desvalor dos fatos –, as fontes achadas devem servir
para uma interpretação dos 63 anos que vêm desde 1897, quando o cinematógrafo
foi estrelado nesta cidade.
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Os primeiros dias do cinematógrafo
O cinematógrafo tivera a sua primeira exibição pública mundial em Paris, no dia 28
de dezembro de 1895. O êxito comercial surpreendera os Lumière, seus inventores.
Desde a noite da inauguração, no Grand Café, no Boulevard des Capucines, o achado
científico se tornara um achado financeiro: todos queriam ver aquelas imagens
animadas.
Para que chegasse à Bahia, se passaram, entretanto, dois anos, só em 4 de dezembro
de 1897 foi apresentado no Politeama.
Dois dias antes, o Diário de Notícias publicara na primeira página, numa coluna central
(os jornais da época não abriam duas colunas), uma nota sobre “Cinematographo
e Graphophono”, pela qual se vê que, então como hoje, a imprensa tinha privilégios
concedidos pelos exibidores:
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– os trechos de música que executava a orquestra, dando assim um
certo tom de café-concerto ao espetáculo.
Ao contrário do que diz Sílio Boccanera Júnior em seu livro, o cinematógrafo não
fracassou na estreia. É um equívoco igual ao de afirmar que o cinema era falante,
“porque lhe estava adicionado um graphophono”. Os dois diários registrando a
“fenomenal criação da inteligência humana”, além de distinguir a exibição da “machina
falante – modelo 1897” do “graphophone americano” da exibição do “aparelho de
Lumière”, atribuíam ao cinematógrafo um grande sucesso. Deu-se apenas que as
sessões não continuaram no Politeama: passaram a ser no salão do primeiro andar do
Luso-Brasileiro, confeitaria situada à Praça Castro Alves, no local onde depois existiria
a Pensão Universal. Eram três funções por noite, das 7 às 9 horas. Haviam recomeçado
no dia 18 de dezembro e prosseguiram até os últimos dias do ano. No Politeama, a
cadeira de orquestra custara 2 mil réis e a geral um. No Luso-Brasileiro, o preço de
entrada era único: 1.000. Nessa época, o jornal era vendido por 100 réis, burros na
Cidade Alta ainda puxavam os bondes, a libra – moeda-padrão internacional – tinha
a cotação de 4 mil réis... No entanto, o Diário de Notícias advertia: “Que o público
não perca a ocasião de admirar mais essa maravilha devida a Edison, certo de que
empregará bem os seus 1.000, que são o módico preço da entrada”.
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um cinematógrafo, porém um kinetoscópio que o inventor americano entrara a vender
em fins de 1896. A dúvida se resolveria se os filmes exibidos não causassem ainda
maior obscuridade: a chegada do trem, o regimento de cavalaria em marcha são,
evidentemente, do primeiro catálogo dos Lumière, mas o beijo – embora o Diário de
Notícias de 22 de dezembro de 1897 quisesse identificar no galã “um conhecidíssimo
ator parisiense” – é, na verdade, o célebre beijo de May Irvin e John C. Rice, atores da
Broadway, no filme de Raff and Gammon, realizado em 1895, que faziam, nesta cena,
“a primeira aplicação brilhante do grande plano” e também a primeira manifestação do
mais constante tema cinematográfico: o sexo.
Até 1909, quando se inaugurou, à Rua Chile, o Cinema Bahia já com caráter permanente,
foi no Politeama Baiano e no São João que, entre as temporadas das companhias
líricas ou dramáticas, os filmes se projetavam, pagando esses velhos teatros, um de
1893, o outro de 1812, na pitoresca linguagem de Boccanera, “tributo ao imperialismo
desse outro kaiser, que, há uns pares de anos vem destruindo aos poucos, mais e mais
aniquilando, o bom teatro, a bela e nobre arte dramática”. No Politeama – onde hoje
há o Instituto Feminino –, se viu, pela primeira vez, A vida e paixão de Nosso Senhor
Jesus Cristo, “em 16 quadros animados”, com o acompanhamento de peças sacras
executadas pelos célebres cantores da Capela Sistina, de Roma.
No Teatro São João (depois do incêndio que o destruiu em 1922, ergueu-se, no local,
o edifício da Secretaria da Viação), as vastas proporções prejudicavam o efeito da
projeção cinematográfica, mas, a partir de 1899, os filmes não lhe deixaram a tela,
embora empresas teatrais continuassem a visitá-lo. Foi o primeiro na Bahia que
reduziu a entrada para o preço popular de 500 reais. Em fins de 1905, uma nova empresa
arrendatária – o São João pertencia ao Estado – fez exibir filmes cantados, associando
um grande fonógrafo à projeção: quando o público pedia bis, tinha-se de dar nova corda
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à voz do cantor... Nesse tempo, cada sessão incluía 12 filmes “pelo menos”, porque eram
de curta-metragem. Para o exibidor, as sessões saíam caríssimas. Não vigorava o
sistema atual de locação de filmes, todos eram comprados. Parece que o aluguel de fitas
só veio a existir por volta de 1911, quando, em dezembro, foi apresentado o chronophono
Gaumont, com um êxito extraordinário: a ilusão era completa, vendo-se e ouvindo-se,
simultaneamente, por meio desse engenhoso aparelho, cantores de nomeada. “Não se
descreve, por exemplo, o efeito da área do toreador da Carmen, com orquestra e coro
em cena”. Isto quer dizer que a Bahia conheceu, muitos anos antes de os americanos
inventarem o cinema falado – o movietone e o vitaphone –, o processo francês de Léon
Gaumont, que, desde agosto de 1906, lançara comercialmente o chronophono, tentando
sincronizar o som com a imagem em filmes que se limitavam à reprodução de árias
de óperas, como as de Fausto, Mignon e outras. Ainda no São João eram projetadas
os Pathé Jornal, que “tudo vê, tudo sabe, tudo informa”: todos coloridos, com o único
processo então existente – à mão, quadro a quadro.
O Cinema Bahia, de Umbelino Dias, aberto ao público em 21 de outubro de 1909, onde
presentemente existe a Chapelaria Baiana, durou dois anos. Na expressão sempre
pitoresca de Boccanera Júnior, constitui-se no “rendezvous elegante da sociedade
bahiana”. Louvado como obra de arte o seu salão de espera, nele havia a escultura de
uma gueixa ornada de um “riquíssimo colar de pérolas, com uma cruz de brilhantes”
que “nunca foi sentinela nem subtraída”, “prova bem significativa da superioridade
moral de todos os que freqüentavam aquele cinema”, convindo notificar que nele “não
tinha ingresso o elemento polícia”. Ali, se realizavam soirées floridas, publicando,
semanalmente, a Gazeta de Notícias uma relação das famílias que frequentavam o
Bahia, que “possuía um bom piano e conjunto eletrógeno”.
Logo depois de o Bahia encerrar suas atividades, inaugurava-se, em 14 de dezembro
de 1912, construído pelo coronel (da Guarda Nacional?) Rubem Pinheiro Guimarães,
um outro elegantíssimo cinema: O Iris-Théatre, com 300 cadeiras. Situado à Rua Dr.
Seabra (onde hoje está o Cinema Aliança), não tinha entrada por essa rua, e sim pelo
beco do “Leão de Ouro”: no local, existia um açougue e pelo terreno passava o Rio das
Tripas. Foi de dono em dono e de nome em nome: Eclair, Paz e Amor, Caraboo, até
1915, quando Borges da Mota, um dos mais famosos exibidores baianos em todos os
tempos, o arrendou dando-lhe a denominação de Cinema Olympia, transformando-
-lhe a arquitetura, inclusive de fachada já aberta para a Baixa dos Sapateiros e lhe
atribuindo a maior popularidade que uma sala de espetáculos cinematográficos
talvez tivesse na Bahia. Se o Teatro São João dava, em 1912, matinês com dez filmes,
começando a sessão a uma hora da tarde, o Olympia iria dar matinês com “trinta
grandes partes” (estava nos seus anúncios), principiando ao meio-dia... Borges
da Mota ficava à porta, batendo com um ferro num pedaço de trilho, a título de
chamamento, gritando sempre que a sessão ia começar, ainda que estivesse no
fim... Não havia infância que não sonhasse ir às matinês do Olympia, porém muitos
pais não consentiam, sob o fundamento de que ali reinava molequeira. E não havia
adulto que não desejasse ir às sessões “só para homens” que, com certos filmes,
começavam à meia-noite...
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Borges da Mota tivera uma experiência anterior: a do Cinema Ideal. Localizado num
prédio contíguo ao Hotel Sul Americano, à Ladeira de São Bento (onde atualmente
está o edifício Sulacap), em junho de 1912 veio a ser alugado por Mota, que contratou
para as obras necessárias à sua adaptação o engenheiro italiano Rossi Baptista,
o pintor Aurélio Nochio e o eletricista Cario Fiango, também italianos. Ao ser
inaugurado em 21 de janeiro de 1913, era, como cinema, o mais chic da Bahia, como
uma lotação de 320 cadeiras. Durante as exibições, tocava um grupo orquestral de
oito figuras, regido pelo maestro espanhol Gervásio Laborda, e na sala de espera outra
orquestra de bandolinistas. Preferido da elegância baiana, as ciências e as artes, as
letras e o alto comércio o enchiam. As sessões começavam às duas da tarde e iam
até meia-noite. Foi no Ideal que o público viu o mais célebre filme da época anterior
à Primeira Guerra Mundial, o italiano Quo vadis?, de Enrico Guazzoni, realizado em
1912. Custou seu aluguel dez contos de réis, o preço mais alto até então pago. Foi
ainda no Ideal que se promoveu o primeiro concurso de beleza, sob o patrocínio do
Jornal Moderno e da Gazeta de Notícias, triunfando “a distinta senhorinha Yayá Viana,
de ilustre família baiana”, numa festa em que foi saudada pelo “talentoso jornalista e
poeta Altamirando Requião”, que ali, tempos depois, iniciava, com outros intelectuais,
um ciclo de conferências artísticas.
Antes do Ideal e do Olympia, à Rua Dr. Seabra, em 4 de março de 1910, a empresa João
Oliveira & Cia. abrira o Jandaia, com 450 cadeiras. Seu salão de espera se comunicava
com um bar e uma padaria dos mesmos donos. A exemplo do cinema de Borges da
Mota, se tornou popularíssimo. João Oliveira tinha muita imaginação: uma prova
foi a “sonorização” que deu a várias fitas. Atrás da tela, usando objetos ou pessoas
diversas, fazia imitar tempestades, mares revoltos, cantos litúrgicos acompanhando
o Nascimento, vida, paixão e morte de N. S. Jesus Cristo, de que adquirira uma cópia
– ou cópias – que, mesmo depois de sua morte, já nos anos 1940 e 1950, o Jandaia
continuou exibindo com o mais espantoso sucesso. Outra prova de sua imaginação:
vendia ingresso para dois tipos de lugares: em frente da tela e detrás da tela, estes
a 500 réis... Sempre sonhou com um grande cinema – queria elevar a lotação para
1.500 lugares – mas, quando, com sacrifício, afinal em 1931, terminou a construção
do seu belo cine-teatro, faleceu, deixando aos exibidores o exemplo de sua ampla
sala de espetáculo.
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nos jornais, o poder público principiou a inquietar-se. No Diário de Notícias de 30 de
dezembro de 1912, se refere que, em sessão do Conselho Municipal, fora apresentada
pelos edis João Gonçalves da Cruz, Queiroz Monteiro e Heráclito Pires uma indicação
“considerando que é urgente atender a todas as necessidades do público, seriamente
ameaçado, na própria vida, nas casas em que funcionam vários cinematógrafos”.
Resolviam os antigos vereadores, “que o Intendente não permita o funcionamento de
nenhum cinematógrafo nesta Cidade e seus arredores sem que, primeiramente, sejam
com rigor, observadas as seguintes condições da garantia para a vida e a incolumidade
pública”.
Doze anos depois, o Teatro São João, após um século de existência em que vários
fatos e personagens históricos viveram em seu palco ou em sua plateia, também foi
destruído pelo fogo. Fora fechado na véspera do Natal de 1920 para obras, e já haviam
desmontado a sua cabine que ficava no “camarote do imperador” – o camarote central
– quando, segundo rumores da época, o incendiaram para ser recebido o seguro.
Em 1934, outro cine-teatro repetiu a fatalidade de Santo Amaro: o São Jerônimo.
A princípio, a Obra Social Católica fizera esse cinema funcionar no andar superior da
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Catedral, no lado que dá para a Baía de Todos os Santos. Aí ficou de 1917 até 1924.
Segundo refere Artes & Artistas (n. 78, fevereiro de 1922), a Mitra teria adquirido por
65 contos “o grande prédio em construção na Rua do Arcebispado, junto ao Palácio
Arquiepiscopal, a fim de ser instalado o Cinema Recreio S. Jerônimo”. Na realidade,
ali veio a levantar-se uma grande casa de espetáculo, composta de plateia, galeria,
camarotes e três ordens de torrinhas, da última das quais, de tão alta, os filmes eram
vistos quase em vertical. Todos esses andares eram de madeira: piso e teto. Imitava,
de certo modo, os teatros europeus e tinha, apesar de uma decoração sem gosto,
imponência arquitetônica. Quando o incêndio se deu, nada restou. O fogo partiu da
cabine de projeção. Matéria, naquele tempo demasiadamente inflamável, uma fita
desenrolada entrou a comburir-se. O operador tentou abafar a combustão com o
próprio corpo, morrendo como a única vítima do incêndio, numa tentativa heroica.
Por 150 contos, o São Jerônimo estava segurado, embora, na data do incêndio, aqueles
antigos 65 contos de réis tivessem passado a valer milhares de contos. Mas os
proprietários logo aproveitaram o terreno: ali está o Cinema Excelsior inaugurado em
17 de abril de 1935.
A Bahia não saiu do esquema dessa história econômica. Não podia fazê-lo. Até 1914, o
Brasil tinha na Europa o seu centro de exportação e importação. O dólar nem aparecia
nas cotações da bolsa. Só a libra, o franco e o marco.
Os filmes franceses, italianos e dinamarqueses compunham quase totalmente a
programação dos cinemas baianos. O divismo exaltava Francesca Bertini, Pina
Menichelli, Emilio Ghione, Valdemar Psilander, Asta Nielsen, Max Linder, Musidora.
Em vão se procuraria na imprensa, ainda sem clichês, o nome de um artista americano.
Aliás, entre 1900 e 1910, é muito difícil a verificação, pelos jornais, dos títulos dos filmes,
mesmo de seus intérpretes. Se a imprensa de 1897 saudara com tanto entusiasmo
a chegada do cinematógrafo, logo a seguir cercara de silêncio as exibições. Embora
não se ache registro, é possível que tivesse se estendido até nós o preconceito que
muitos intelectuais franceses, vivamente admirados no Brasil, como Anatole France,
mantinham em face desse “passatempo de iletrados”.
Ademais, não se desenvolvera o costume das casas de espetáculos anunciarem
os programas: ver-se-á, por volta de 1921-1922, através de Artes & Artistas, que os
distribuidores se incumbiam da propaganda de sua produção, sem que os exibidores
também o fizessem. Há, por fim, a considerar que, antes da Primeira Guerra Mundial,
cada sessão incluía diversos filmes, pois raríssimos atingiam três ou quatro partes,
importando somente, para o público, de quantos filmes o programa constava.
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Mas já em 1916, segundo se pode ler em A Renascença, revista mundana da época, o
Cinema Jandaia estava a exibir os “indefectíveis” Fatty (Chico Bóia) e Carlitos. Essa
nota nos leva a crer que as fitas dos dois cômicos tinham chegado rapidamente à
Bahia: os primeiros Fattys datam de 1913, só em 1914 começa a carreira cinematográfica
de Chaplin. Se já eram “indefectíveis” em 1916 é porque, louvando-nos no significado
dessa tenebrosa palavra, sua presença nas telas baianas se tornou infalível. Com
eles, pois, deviam estar vindo os outros atores americanos, as comédias e os dramas
de Hollywood. O divismo de Bertini e Menichelli fora substituído pelo vampirismo
de Theda Bara. Pearl White em seus Os mistérios de Nova York fizera totalmente
esquecer Os mistérios de Paris. Suas aventuras de beleza loura em Os perigos de
Paulina iniciavam uma das modas mais populares e duradouras do cinema: os
seriados. Correspondendo ao romance em folhetim na literatura, enquanto os
cinemas davam, de oito em oito dias, uma nova série, que terminava sempre com
um “Voltem na próxima semana”, os jornais publicavam, dia a dia, um novo episódio
dos dramalhões de Xavier de Montépin e Michel Zévaco. Moeda quebrada com Eddie
Polo, O homem da meia-noite com James Corbett – o campeão mundial de boxe –
empolgavam os baianos. O tempo dos filmes de cowboy, de Tom Mix e Buck Jones,
ainda ia chegar.
Em 1919, terminada a guerra, a Europa tinha praticamente desaparecido das telas
baianas. Nesse ano, a inauguração do Kursaal Baiano – seis meses mais tarde Teatro
Guarani, como até hoje – foi a sensação da véspera de Natal. Situado na praça mais
central da cidade, seu estilo arquitetônico “novo” servia para realçar-lhe as grandes
dimensões: o Politeama e o São João comportavam mais espectadores. Perdiam,
porém, em beleza. Mil e onze pessoas podiam sentar-se nas suas cadeiras: plateia,
galeria, camarotes e frisas.
Já no ano seguinte, os dez cinemas da Bahia – entre eles, o então aberto pelo Liceu
de Artes e Ofícios, no primeiro andar do admirável Paço do Saldanha – contavam
com o retorno da produção europeia. Em 12 de outubro de 1920, saía, em segunda
edição (é de não se acreditar hoje!), o número 1 de Artes & Artistas: nele, o cronista
Jim Artfons (pseudônimo de quem?) escrevia sobre uma nova guerra, a guerra das
fitas:
Ontem, todas (as nações) contra a Alemanha; hoje, todas contra os Estados Unidos!
Não é fita de guerras, são guerras de fitas: fitas americanas combatendo com as
congêneres europeias.
A julgar pelas programações, o fato fundamental consistia, realmente, na
interdependência, dentro do nosso mercado, entre a produção americana e a
europeia, esta representada pelos franceses, alemães, italianos e dinamarqueses.
Quando, em 1921, se levantou a estatística dos filmes importados, apurou-se que
293 procediam dos Estados Unidos, 169 da Alemanha, 88 da Itália, 73 da França, 10
da Dinamarca, 9 de Portugal, 3 da Inglaterra e 3 da Áustria.
Queixavam-se, então, os baianos de não haver, na cidade, vida noturna, limitando-se
aos cinemas. Mas a frequência em 1920 não ultrapassava de 11,5% da população,
276
embora, no Politeama, um certo José Simões Coelho viesse a pronunciar, em 1921,
uma conferência sob o título: “Por que é que toda gente gosta de cinema?”.
Essa toda gente já devia saber que a indústria cinematográfica figurava como a
terceira nos Estados Unidos. Mas Artes & Artistas publicava, em 21 de agosto de 1921,
um artigo de Hamilton Barata, remetido de Paris, com uma análise, surpreendente
para a época, das escolas americana e europeia, comparando-as sob o título:
“Pensamento ou técnica?”.
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para o campo da cena muda onde há compensação econômica e,
quiçá, dada a internacionalidade do filme, a sua rápida propagação
pelo mundo, compensação artística e celebridade [...] E o cinema
tomou nos costumes de todos os povos um papel saliente, um
hábito que se enraizou, tanto e tanto, que já o temos como parte
integrante de nós mesmos.
Nesse artigo de 4 de setembro de 1921, Artes & Artistas transcrevia palavras de Ruy
Barbosa, glorificando o cinema da tribuna do Senado:
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filmes. Funcionaria junto ao Ministério do Interior uma comissão de três a cinco
membros, integrada por elementos de reconhecida competência em assuntos de
arte, pedagogia e literatura.
O projeto foi aceito. Porque, no primeiro semestre de 1921, já os filmes eram censurados.
Submeteram-se à censura 633 fitas: 444 dos Estados Unidos, 81 da Alemanha, 60 da
Itália, 27 de França, 7 do Brasil etc. Obtiveram aprovação total 570, 59 com supressões,
29 foram tidas como impróprias para menores e 2 proibidas. Os censores agiam com
tolerância muito maior que a atual.
Mas se o cinema alcançava tamanho prestígio, por que o Ideal, havido como tão
elegante, fechou suas portas, em 1921, “por falta de público”? Acaso por que timbrava
(diziam os proprietário) em exibir filmes d’arte, quando os espectadores, já fascinados
pelo estilo americano, exibiam filmes de divertimento?
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cinema, a Nelima viria a conquistar seu maior êxito com a reportagem sobre O América
na Bahia. Dividido em “5 longas partes”, esse “belo filme nacional” incluía as partidas
jogadas pelos cariocas contra os clubes baianos.
[...] o Dr. Carlos Monden para assumir a sua direção técnica, como
primeiro ator, por sua alta competência no gênero, porquanto foi
ele, antes da guerra européia, o metteur-en-scène da famosa marca
francesa Gaumont, de Paris, havendo dirigido e colaborado com as
afamadas artistas Max Linder, Sanchez, Rigadin, Suzanne, e outros
artistas célebres.
(Foi-nos impossível localizar o nome desse ator e metteur-en-scène nas mais minuciosas
histórias do cinema, como as de Georges Sadoul e de René Jean e Charles Ford, levando
a omissão à crença de que Monden não fosse nem ator nem metteur-en-scène, mas
um dos muitos aventureiros que, através dos anos, aqui vieram iludir com a sua falsa
experiência artística).
O concurso teve como vencedores o jornalista Mattos Filho e o poeta Áureo Contreiras,
com um argumento sob o título Salvai-a, considerado superior aos de O poder do
amor, Amores no sertão, Os abandonados e Páginas da vida. Mas logo se anunciou que
o argumento não seria filmado “senão oportunamente”...
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Sangue do meu sangue” aceitava “rapazes de boa aparência, senhoritas e crianças”.
“Informações a qualquer hora do dia na Rua Dr. Seabra 82 ou 108”. “Bahianos!”, concluía
o anúncio, “auxiliai o desenvolvimento da cinematografia bahiana”.
Parece que nenhum baiano atendeu aos apelos de Francisco Adamo, diretor assistente,
e Hélio Luxardo, operador: Sangue do meu sangue nunca foi realizado.
Só 30 anos mais tarde, em 1959, um grupo de jovens viria a cumprir com Redenção,
produzido pela Iglu Filmes, a ideia de um longa-metragem dramático.
—Diário de Notícias, 6 de março de 1960. No livro O Eterno e o Efêmero, 2006, v. 2, p. 123-135.
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