Você está na página 1de 16

E vão, felizmente, achar competidores.

Porque, afinal, a Bahia, talvez a mais


cinematográfica de todas as cidades brasileiras, começa a ser vista por sua juventude
e sua mocidade em termos de filme, como já era vista em termos de romance, de
conto, de poesia, de pintura, de música. Dois jovens de grande talento vêm de acabar
seus primeiros curtas-metragens, ensaios para obras maiores, no campo da ficção
ou da realidade. Pátio, de Glauber Rocha, é um filme experimental, uma procura
de plástica e de ritmo. Rampa do mercado, de Luiz Paulino, é um documentário,
transcrição em imagens, quase folclóricas, de uma das ambiências mais típicas
da cidade. Se, por temperamento, podemos estimar o último ainda mais do que
o primeiro, em ambos temos de reconhecer o fogo inicial de todas as vocações
legítimas. E será do encontro dos estilos de um e de outro que deverá, certamente,
nascer o filme para o qual estão dando as suas melhores esperanças: Barravento –
um elogio da terra e do homem que aqui existem, em seu contato criador e revelador
com o mar.
Se pequeno e obscuro teria sido o passado do cinema na Bahia, o futuro poderá ser igual,
talvez, à grandeza com que estão sonhando os seus jovens e promissores cineastas.
—Diário de Notícias, 8 e 15 de março de 1959, respectivamente. No livro O Eterno e o Efêmero,
2006, v. 2, p. 73-78.

A ARTE MODERNA: O CINEMA 1960

Tanto se fala em arte moderna, esquece-se que só há realmente uma: o cinema. Todas
as outras são antigas, são artes que se modernizaram – modernizadas digamos.
Em 1895, o cinema era uma invenção. A partir de 1913 e 1914 é que se tornou arte.
Griffith, Thomas Ince, Mack Sennett, nos Estados Unidos, Giovanni Pastrone, Enrico
Guazzoni, na Itália. Victor Sjöström, na Suécia, Louis Feuillade e Max Linder, na França,
foram os iniciadores.
Nenhuma significação teria, porém, sua origem contemporânea, seu nascimento
diante de nós, se, morfologicamente e sintaticamente, a linguagem fílmica não
correspondesse à necessidade de expressão do homem atual.
As outras artes têm procurado com insistência as virtudes que no cinema são uma
constância: o movimento, o ritmo, a força da imagem, a realidade além da imagem,
a realidade além da realidade, a vida fora da vida.

O corte brusco, a fusão lenta, o jogo dos fade-in e fade-out, o descritivo dos
panorâmicos e dos travellings, o processo criador do montage derivaram da
observação consciente da história das outras artes e assumiram em seguida, por
interação e reflexo, um papel reformar sobre a pintura e a escultura, o teatro e
a dança. Eisenstein se inspirou em El Greco e Da Vinci para fazer os seus filmes
e elaborar a sua teoria cinematográfica. Mas diversos artistas, mesmo Picasso,
transpuseram para seus quadros o efeito cênico da luz tomada pela câmera. E se a

266
dramaturgia do cinema surgiu da assimilação – ou da imitação – da mise-en-scène
teatral, a cenografia e a iluminação do palco assimilaram as novas experiências dos
cineastas.

Sendo uma arte eminentemente figurativa, o cinema é também a mais abstrata.


Diante dele, se lembra Montaigne: “Não pinto o ser, pinto-lhe a passagem”.
Porque, através da suprema objetividade, a imagem fílmica, se obtém o supremo
subjetivismo, a suprema abstração: o transitório e o efêmero da emoção que nasce,
vive e morre dentro do homem. Sem uma palavra, às vezes sem um movimento,
a simples visão do rosto ou das mãos transmite um estado de alma. O primeiro
plano dos olhos ou da boca – e eis o lirismo ou a sensualidade. E se o objeto captado
diretamente ainda não dá a medida exata da dimensão humana na sua fluência,
subsiste o recurso do símbolo, a transparência do ser advindo do conhecimento de
outras matérias.
Assim, para saber o nosso tempo, a vida de nosso tempo, não há arte como o cinema.
Diz-se: um quadro fica, também uma escultura, que fica de um filme? Há, sem dúvida,
o problema da conservação. Daqui a 100 anos, é possível não só que o filme, como
produto orgânico, tenha desaparecido, como também que, como produto artístico,
não interesse mais. Mas, enquanto não se souber que essa diluição se processou, é
preciso que o grande testemunho desta época seja guardado, preservado, posto em
museus como a pintura, a escultura, as outras artes.
O Museu de Arte Moderna da Bahia, que se inaugura, foi confiado à direção de uma
reconhecida inteligência no campo da conservação artística – e também no da
dinamização cultural. Lina Bo Bardi, quando morava na Itália, não acompanhava
apenas o trabalho criador dos artistas plásticos: o cinema lhe despertava uma
permanente simpatia, ligando-a a alguns dos realizadores mais sérios da
escola neorrealista. Revistas daquela época sob sua direção informam um agudo
entendimento das questões essenciais do cinema, dotando-a de uma intensa
receptividade para as relações estéticas entre a arte do filme e as outras artes.
Deve-se, portanto, esperar que o Museu de Arte Moderna da Bahia inclua entre as
suas atividades básicas todas aquelas que se destinam à valorização histórica do
cinema, inclusive como meio de documentação, interpretação e comunicação da
pintura, da escultura da gravura, do artesanato popular.
—Diário de Notícias, 6 de janeiro de 1960. No livro O Eterno e o Efêmero, 2006, v. 2, p. 119-120.

OS PRIMEIROS 25 ANOS DO CINEMA NA BAHIA 1960

No prefácio de sua Histoire de l’art du cinéma, Georges Sadoul,1 que já escreveu milhares
de páginas sobre a marcha histórica da invenção dos irmãos Lumière, adverte como

1 SADOUL, Georges. Histoire de l’art du cinéma. Paris: Flammarion, 1949.

267
é difícil o estudo das origens do cinema, não obstante seu nascimento recente. Num
tempo em que os homens conservam os menores testemunhos de seus mínimos atos,
os arquivos do cinema quase se volatizaram, antes que se começasse a compreender
que, com ele, surgira uma nova linguagem.

Ao tentarmos estabelecer a história do cinema na Bahia, enfrentamos, em medida


menor, uma dificuldade semelhante. Veio acentuá-la a circunstância de que,
contrariamente à França, aqui o cinema ainda não foi admitido como um real valor de
cultura senão por uma escassa minoria.

As únicas fontes historiográficas existentes são o livro de Sílio Boccanera Júnior, Os


cinemas da Bahia, editado em 1919, e o semanário Artes & Artistas, publicado entre
outubro de 1920 e abril de 1922.
A falta de outra documentação, toda a pesquisa teve de se limitar ao exame da
imprensa periódica e diária, com a colaboração de alguns testemunhos orais e das
próprias recordações do cronista.

Do livro de Sílio Boccanera Júnior talvez se possa dizer que é o primeiro escrito no
Brasil: até esta data não há notícia de outro que o antecedesse. Cobrindo o período
1897-1918, contém informações preciosas, malgrado vários erros e a ausência de um
método de investigação. Sem ele, ter-se-ia perdido, em boa parte, o conhecimento
cronológico de muitos fatos que não deixaram vestígios escritos. Contemporâneos
dos mesmos, o autor de Os cinemas da Bahia vale mais como um informante do que
como um cronista na história, um informante, aliás, sob suspeição, porque movido
pelo preconceito de defender o teatro contra o “bacillus do cinema”, que “matará o
teatro assim como o jornal moderno e as revistas ilustradas vão, despercebidamente,
matando o livro”.
Quanto a Artes & Artistas, seus 68 números refletem uma encantadora ingenuidade
provinciana. Mas já é um esboço de avaliação cultural que se anuncia: desde a abertura
se fala em educação cinematográfica. Os editores, Fonseca & Filhos, não adivinharam
que a imagem de seu tempo, infelizmente só de seu tempo, seria encontrada, de
futuro, nas páginas da revista. Mas como repositório de nomes de atores, de títulos
de filmes, de galeria iconográfica, é de um valor extraordinário.
Não se pode dizer que na imprensa periódica ou diária haja iguais esclarecimentos:
se os intelectuais sempre desdenharam, por equívoco estético, os problemas
artísticos, sociais, econômicos do cinema, a inexistência de jornalistas realmente
especializados determinou que se perdesse, entre nós, a memória de muitos
acontecimentos importantes.

Restaria a documentação oral, mas esta, para ser autêntica, exige do depoimento
uma credibilidade nem sempre possível de verificação.

Como, entretanto, o cinema na Bahia só tenha tido até agora uma pequena história
– quer pela brevidade, quer pelo desvalor dos fatos –, as fontes achadas devem servir
para uma interpretação dos 63 anos que vêm desde 1897, quando o cinematógrafo
foi estrelado nesta cidade.

268
Os primeiros dias do cinematógrafo
O cinematógrafo tivera a sua primeira exibição pública mundial em Paris, no dia 28
de dezembro de 1895. O êxito comercial surpreendera os Lumière, seus inventores.
Desde a noite da inauguração, no Grand Café, no Boulevard des Capucines, o achado
científico se tornara um achado financeiro: todos queriam ver aquelas imagens
animadas.
Para que chegasse à Bahia, se passaram, entretanto, dois anos, só em 4 de dezembro
de 1897 foi apresentado no Politeama.
Dois dias antes, o Diário de Notícias publicara na primeira página, numa coluna central
(os jornais da época não abriam duas colunas), uma nota sobre “Cinematographo
e Graphophono”, pela qual se vê que, então como hoje, a imprensa tinha privilégios
concedidos pelos exibidores:

A convite do Sr. D. da Costa e do Sr. Feliciano Batista, fomos, ontem,


à noite, no Politeama assistir ao funcionamento desses aparelhos
trazidos de Paris por aquele cavalheiro em sessão que se realizou
exclusivamente para a imprensa – e não perdemos tempo, passando
ali poucas horas apreciando essas maravilhas da ciência aplicadas
às diversões.

Realmente são muito interessantes tais aparelhos, quando


aperfeiçoadas como os que vai exibir perante o público o Sr. D. da
Costa.

O cinematógrafo, que produz os efeitos, geralmente conhecidos,


das lanternas mágicas, tem sobre estas a grande novidade e
aperfeiçoamento de serem fotografias ou desenhos projetados
que reproduzem cenas da vida, representadas como se os seus
personagens fossem pessoas vivas e em movimento.

Assim, tivemos ontem ocasião de apreciar, entre outras cenas, o


desfilar de um esquadrão de cavalaria, destacando-se nitidamente
todos os movimentos dos cavalos com os pés e caudas, etc., cujo
efeito ótico era perfeito.

No dia 6 de dezembro, o Diário de Notícias comentava a noite de


estreia:

As cenas projetadas pelo cinematógrafo, a julgar-se pelas


manifestações de agrado que provocaram, foram bastante
apreciadas, principalmente O beijo, O minueto de Luiz XV e a Visão
d’arte, que é simbolizada por um tronco nu de mulher emergindo de
uma cesta de flores. Durante a quase total obscuridade em que se
torna preciso ficar a sala para o funcionamento do cinematógrafo,
os espectadores estiveram de bom humor, acompanhando de modo
cadenciado – ora com as bengalas e chapéus de sol, ora com palmas

269
– os trechos de música que executava a orquestra, dando assim um
certo tom de café-concerto ao espetáculo.

Também o Diário da Bahia participava desse entusiasmo:

O aparelho de Lumière apanha e reproduz a vida, os movimentos


em todas as suas fases. Para fazer-se idéia da perfeição deste
dispositivo, lembramos que em cada segundo passam 15 fotografias,
900 em um minuto e qualquer das cenas que os espectadores viram
são constituídas por cerca de 4.000 imagens numa longa película de
22 metros de comprimento, e não é só: a passagem de cada imagem
demora cerca de segundos.

Ao contrário do que diz Sílio Boccanera Júnior em seu livro, o cinematógrafo não
fracassou na estreia. É um equívoco igual ao de afirmar que o cinema era falante,
“porque lhe estava adicionado um graphophono”. Os dois diários registrando a
“fenomenal criação da inteligência humana”, além de distinguir a exibição da “machina
falante – modelo 1897” do “graphophone americano” da exibição do “aparelho de
Lumière”, atribuíam ao cinematógrafo um grande sucesso. Deu-se apenas que as
sessões não continuaram no Politeama: passaram a ser no salão do primeiro andar do
Luso-Brasileiro, confeitaria situada à Praça Castro Alves, no local onde depois existiria
a Pensão Universal. Eram três funções por noite, das 7 às 9 horas. Haviam recomeçado
no dia 18 de dezembro e prosseguiram até os últimos dias do ano. No Politeama, a
cadeira de orquestra custara 2 mil réis e a geral um. No Luso-Brasileiro, o preço de
entrada era único: 1.000. Nessa época, o jornal era vendido por 100 réis, burros na
Cidade Alta ainda puxavam os bondes, a libra – moeda-padrão internacional – tinha
a cotação de 4 mil réis... No entanto, o Diário de Notícias advertia: “Que o público
não perca a ocasião de admirar mais essa maravilha devida a Edison, certo de que
empregará bem os seus 1.000, que são o módico preço da entrada”.

Mas, afinal, referindo-se o Diário de Notícias a Edison e o Diário da Bahia a Lumière


– qual teria sido, realmente, o aparelho usado nas primeiras projeções de “vistas
animadas”? Se julgarmos pela denominação, “cinematógrafo”, tratava-se do invento
dos irmãos Lumière. O aparelho brevetado por Edison em 1896 se chamava vitascope,
do mesmo modo que outros inventores, utilizando princípios científicos iguais, criavam
neologismos para identificar os seus: eidoloscope (de Lauste), mouvementographe
(Zion), mutograph (Casler), heliocinegraphe (Barret et Lacroix). Acresce que o
farmacêutico Dionísio Costa – o primeiro exibidor baiano – era um frequentador da
Europa, adiara até uma de suas viagens a Paris para atender à solicitação dos que
ainda desejavam ver o cinematógrafo. E certo, porém, que, nesses tempos primitivos,
reinava uma confusão enorme sobre a origem da cinematografia, e ela podia resultar
em que o primeiro anúncio entre nós publicado, no Diário da Bahia de 4 de dezembro
de 1897, se referisse à exibição “das últimas invenções de Edsion ainda não vistas na
Bahia”, conduzindo Sílio Boccanera Júnior ao engano de dizer que, “só em meados de
1898, viria a aparecer o Cinema Lumière, nome que recorda o grande aperfeiçoador do
aparelho Edison”. Se o aparelho era o de Edison, Dionísio Costa não havia adquirido

270
um cinematógrafo, porém um kinetoscópio que o inventor americano entrara a vender
em fins de 1896. A dúvida se resolveria se os filmes exibidos não causassem ainda
maior obscuridade: a chegada do trem, o regimento de cavalaria em marcha são,
evidentemente, do primeiro catálogo dos Lumière, mas o beijo – embora o Diário de
Notícias de 22 de dezembro de 1897 quisesse identificar no galã “um conhecidíssimo
ator parisiense” – é, na verdade, o célebre beijo de May Irvin e John C. Rice, atores da
Broadway, no filme de Raff and Gammon, realizado em 1895, que faziam, nesta cena,
“a primeira aplicação brilhante do grande plano” e também a primeira manifestação do
mais constante tema cinematográfico: o sexo.

O cinema ganha o público


Muitos anos se passariam sem que houvesse, na Bahia, após o ciclo de projeções
de Dionísio Costa, uma sala de espetáculos permanente. Em 1898, estiveram
funcionando por alguns meses novas experiências comerciais de exibição de filmes,
uma à Rua Carlos Gomes, 26, a outra do Luso-Brasileiro. A primeira de iniciativa do
italiano Nicola Parente, a segunda de Antônio de Oliveira Brandão. Em nenhuma
se usava eletricidade: o sistema de luz era o que Sílio Boccanera Júnior chamou de
“oxyethérica”, acrescentando ser muitíssimo perigosa, a ponto de haver determinado,
com uma explosão, a morte de Feliciano da Ressurreição Batista, em 20 de outubro
de 1904, quando, na sua oficina de pianos à Rua Carlos Gomes, insatisfeito com a
intensidade do foco luminoso, tentara uma pressão maior no aparelho.
Nicola Parente tinha 200 cadeiras e cobrava 2 mil: todos os seus filmes, desde a
Engraçada dança por uma egípcia num hotel até Os surpreendentes banhos de alvorada
em Milão, pertenciam à série dos Lumière. Dava sessões todas as noites, “às 8 e meia
em ponto”.
As exibições de Antônio de Oliveira Brandão não deixaram memória.

Até 1909, quando se inaugurou, à Rua Chile, o Cinema Bahia já com caráter permanente,
foi no Politeama Baiano e no São João que, entre as temporadas das companhias
líricas ou dramáticas, os filmes se projetavam, pagando esses velhos teatros, um de
1893, o outro de 1812, na pitoresca linguagem de Boccanera, “tributo ao imperialismo
desse outro kaiser, que, há uns pares de anos vem destruindo aos poucos, mais e mais
aniquilando, o bom teatro, a bela e nobre arte dramática”. No Politeama – onde hoje
há o Instituto Feminino –, se viu, pela primeira vez, A vida e paixão de Nosso Senhor
Jesus Cristo, “em 16 quadros animados”, com o acompanhamento de peças sacras
executadas pelos célebres cantores da Capela Sistina, de Roma.
No Teatro São João (depois do incêndio que o destruiu em 1922, ergueu-se, no local,
o edifício da Secretaria da Viação), as vastas proporções prejudicavam o efeito da
projeção cinematográfica, mas, a partir de 1899, os filmes não lhe deixaram a tela,
embora empresas teatrais continuassem a visitá-lo. Foi o primeiro na Bahia que
reduziu a entrada para o preço popular de 500 reais. Em fins de 1905, uma nova empresa
arrendatária – o São João pertencia ao Estado – fez exibir filmes cantados, associando
um grande fonógrafo à projeção: quando o público pedia bis, tinha-se de dar nova corda

271
à voz do cantor... Nesse tempo, cada sessão incluía 12 filmes “pelo menos”, porque eram
de curta-metragem. Para o exibidor, as sessões saíam caríssimas. Não vigorava o
sistema atual de locação de filmes, todos eram comprados. Parece que o aluguel de fitas
só veio a existir por volta de 1911, quando, em dezembro, foi apresentado o chronophono
Gaumont, com um êxito extraordinário: a ilusão era completa, vendo-se e ouvindo-se,
simultaneamente, por meio desse engenhoso aparelho, cantores de nomeada. “Não se
descreve, por exemplo, o efeito da área do toreador da Carmen, com orquestra e coro
em cena”. Isto quer dizer que a Bahia conheceu, muitos anos antes de os americanos
inventarem o cinema falado – o movietone e o vitaphone –, o processo francês de Léon
Gaumont, que, desde agosto de 1906, lançara comercialmente o chronophono, tentando
sincronizar o som com a imagem em filmes que se limitavam à reprodução de árias
de óperas, como as de Fausto, Mignon e outras. Ainda no São João eram projetadas
os Pathé Jornal, que “tudo vê, tudo sabe, tudo informa”: todos coloridos, com o único
processo então existente – à mão, quadro a quadro.
O Cinema Bahia, de Umbelino Dias, aberto ao público em 21 de outubro de 1909, onde
presentemente existe a Chapelaria Baiana, durou dois anos. Na expressão sempre
pitoresca de Boccanera Júnior, constitui-se no “rendezvous elegante da sociedade
bahiana”. Louvado como obra de arte o seu salão de espera, nele havia a escultura de
uma gueixa ornada de um “riquíssimo colar de pérolas, com uma cruz de brilhantes”
que “nunca foi sentinela nem subtraída”, “prova bem significativa da superioridade
moral de todos os que freqüentavam aquele cinema”, convindo notificar que nele “não
tinha ingresso o elemento polícia”. Ali, se realizavam soirées floridas, publicando,
semanalmente, a Gazeta de Notícias uma relação das famílias que frequentavam o
Bahia, que “possuía um bom piano e conjunto eletrógeno”.
Logo depois de o Bahia encerrar suas atividades, inaugurava-se, em 14 de dezembro
de 1912, construído pelo coronel (da Guarda Nacional?) Rubem Pinheiro Guimarães,
um outro elegantíssimo cinema: O Iris-Théatre, com 300 cadeiras. Situado à Rua Dr.
Seabra (onde hoje está o Cinema Aliança), não tinha entrada por essa rua, e sim pelo
beco do “Leão de Ouro”: no local, existia um açougue e pelo terreno passava o Rio das
Tripas. Foi de dono em dono e de nome em nome: Eclair, Paz e Amor, Caraboo, até
1915, quando Borges da Mota, um dos mais famosos exibidores baianos em todos os
tempos, o arrendou dando-lhe a denominação de Cinema Olympia, transformando-
-lhe a arquitetura, inclusive de fachada já aberta para a Baixa dos Sapateiros e lhe
atribuindo a maior popularidade que uma sala de espetáculos cinematográficos
talvez tivesse na Bahia. Se o Teatro São João dava, em 1912, matinês com dez filmes,
começando a sessão a uma hora da tarde, o Olympia iria dar matinês com “trinta
grandes partes” (estava nos seus anúncios), principiando ao meio-dia... Borges
da Mota ficava à porta, batendo com um ferro num pedaço de trilho, a título de
chamamento, gritando sempre que a sessão ia começar, ainda que estivesse no
fim... Não havia infância que não sonhasse ir às matinês do Olympia, porém muitos
pais não consentiam, sob o fundamento de que ali reinava molequeira. E não havia
adulto que não desejasse ir às sessões “só para homens” que, com certos filmes,
começavam à meia-noite...

272
Borges da Mota tivera uma experiência anterior: a do Cinema Ideal. Localizado num
prédio contíguo ao Hotel Sul Americano, à Ladeira de São Bento (onde atualmente
está o edifício Sulacap), em junho de 1912 veio a ser alugado por Mota, que contratou
para as obras necessárias à sua adaptação o engenheiro italiano Rossi Baptista,
o pintor Aurélio Nochio e o eletricista Cario Fiango, também italianos. Ao ser
inaugurado em 21 de janeiro de 1913, era, como cinema, o mais chic da Bahia, como
uma lotação de 320 cadeiras. Durante as exibições, tocava um grupo orquestral de
oito figuras, regido pelo maestro espanhol Gervásio Laborda, e na sala de espera outra
orquestra de bandolinistas. Preferido da elegância baiana, as ciências e as artes, as
letras e o alto comércio o enchiam. As sessões começavam às duas da tarde e iam
até meia-noite. Foi no Ideal que o público viu o mais célebre filme da época anterior
à Primeira Guerra Mundial, o italiano Quo vadis?, de Enrico Guazzoni, realizado em
1912. Custou seu aluguel dez contos de réis, o preço mais alto até então pago. Foi
ainda no Ideal que se promoveu o primeiro concurso de beleza, sob o patrocínio do
Jornal Moderno e da Gazeta de Notícias, triunfando “a distinta senhorinha Yayá Viana,
de ilustre família baiana”, numa festa em que foi saudada pelo “talentoso jornalista e
poeta Altamirando Requião”, que ali, tempos depois, iniciava, com outros intelectuais,
um ciclo de conferências artísticas.
Antes do Ideal e do Olympia, à Rua Dr. Seabra, em 4 de março de 1910, a empresa João
Oliveira & Cia. abrira o Jandaia, com 450 cadeiras. Seu salão de espera se comunicava
com um bar e uma padaria dos mesmos donos. A exemplo do cinema de Borges da
Mota, se tornou popularíssimo. João Oliveira tinha muita imaginação: uma prova
foi a “sonorização” que deu a várias fitas. Atrás da tela, usando objetos ou pessoas
diversas, fazia imitar tempestades, mares revoltos, cantos litúrgicos acompanhando
o Nascimento, vida, paixão e morte de N. S. Jesus Cristo, de que adquirira uma cópia
– ou cópias – que, mesmo depois de sua morte, já nos anos 1940 e 1950, o Jandaia
continuou exibindo com o mais espantoso sucesso. Outra prova de sua imaginação:
vendia ingresso para dois tipos de lugares: em frente da tela e detrás da tela, estes
a 500 réis... Sempre sonhou com um grande cinema – queria elevar a lotação para
1.500 lugares – mas, quando, com sacrifício, afinal em 1931, terminou a construção
do seu belo cine-teatro, faleceu, deixando aos exibidores o exemplo de sua ampla
sala de espetáculo.

Incêndios advertem o poder público


Enquanto o campo da exibição cinematográfica ia se alargando na Bahia, com a
instalação de muitas outras salas efêmeras ou duradouras (a dos Salesianos em
Nazaré, a Bijou na Calçada, a Popular em Itapagipe, a Avenida no Rio Vermelho, a
Castro Alves no Largo do Carmo, a Rio Branco, no Saldanha, a Soledade na Ladeira
desse nome, a Petit Cinéma nas Pitangueiras, a do Centro Católico no Largo de Santo
Antônio da Mouraria, a Parisiense no Campo Grande, a Central na Ladeira de São
Bento – no local do Serviço de Águas e Esgotos – a da Barra na Rua Barão de Sergi),
enquanto o público ia crescendo e achando nos filmes o seu melhor divertimento, num
período em que o futebol ainda não despertava maior atração e tinha noticiário escasso

273
nos jornais, o poder público principiou a inquietar-se. No Diário de Notícias de 30 de
dezembro de 1912, se refere que, em sessão do Conselho Municipal, fora apresentada
pelos edis João Gonçalves da Cruz, Queiroz Monteiro e Heráclito Pires uma indicação
“considerando que é urgente atender a todas as necessidades do público, seriamente
ameaçado, na própria vida, nas casas em que funcionam vários cinematógrafos”.
Resolviam os antigos vereadores, “que o Intendente não permita o funcionamento de
nenhum cinematógrafo nesta Cidade e seus arredores sem que, primeiramente, sejam
com rigor, observadas as seguintes condições da garantia para a vida e a incolumidade
pública”.

Entre essas condições estavam:

a. as portas de saída devem ficar abertas durante as sessões cinematográficas,


adaptados, em seus lugares, leves reposteiros;

b. os aparelhos de projeção devem ficar instalados em câmeras incombustíveis;


c. o edifício em geral e, especialmente, as arquibancadas devem ter toda a solidez
e incombustibilidade, sendo expressamente proibida a entrada de explosivos e
inflamáveis e exigidas para as transmissões elétricas todos os processos de isolamento
aconselhados pela técnica moderna;

d. a comodidade do público deve ser observada pelo arejamento da casa, asseio,


disposição da luz e suficiente espaço para acomodação de cada espectador,
estabelecendo o intendente a lotação que julgar conveniente. As multas seriam de
100 mil réis a um conto, haveria prisão de 5 a 15 dias se não fossem pagas, ficando o
cinema interditado, com ou sem perda de licença, enquanto subsistisse a causa.

As precauções tinham fundamento: como já acontecera em tantas cidades do mundo


e ainda iria acontecer, em 2 de outubro de 1910, quando se inaugurava o cinematógrafo
em Santo Amaro no Teatro São Pedro com a presença de 800 espectadores ocorrera
um incêndio, em virtude da combustão de uma fita, ficando o edifício em ruínas. Os
espectadores assistiam, num acaso curiosíssimo, um filme cômico sobre um grande
incêndio. Felizmente, ninguém morreu, embora a cabine fosse localizada à entrada
do teatro, que não tinha saída pelos lados ou pelos fundos, e sob ela estivessem, na
ocasião, 32 latas de gasolina.
Os espectadores saltaram pelas janelas laterais e um empregado teve a coragem de
atirar as latas à rua.

Doze anos depois, o Teatro São João, após um século de existência em que vários
fatos e personagens históricos viveram em seu palco ou em sua plateia, também foi
destruído pelo fogo. Fora fechado na véspera do Natal de 1920 para obras, e já haviam
desmontado a sua cabine que ficava no “camarote do imperador” – o camarote central
– quando, segundo rumores da época, o incendiaram para ser recebido o seguro.
Em 1934, outro cine-teatro repetiu a fatalidade de Santo Amaro: o São Jerônimo.
A princípio, a Obra Social Católica fizera esse cinema funcionar no andar superior da

274
Catedral, no lado que dá para a Baía de Todos os Santos. Aí ficou de 1917 até 1924.
Segundo refere Artes & Artistas (n. 78, fevereiro de 1922), a Mitra teria adquirido por
65 contos “o grande prédio em construção na Rua do Arcebispado, junto ao Palácio
Arquiepiscopal, a fim de ser instalado o Cinema Recreio S. Jerônimo”. Na realidade,
ali veio a levantar-se uma grande casa de espetáculo, composta de plateia, galeria,
camarotes e três ordens de torrinhas, da última das quais, de tão alta, os filmes eram
vistos quase em vertical. Todos esses andares eram de madeira: piso e teto. Imitava,
de certo modo, os teatros europeus e tinha, apesar de uma decoração sem gosto,
imponência arquitetônica. Quando o incêndio se deu, nada restou. O fogo partiu da
cabine de projeção. Matéria, naquele tempo demasiadamente inflamável, uma fita
desenrolada entrou a comburir-se. O operador tentou abafar a combustão com o
próprio corpo, morrendo como a única vítima do incêndio, numa tentativa heroica.
Por 150 contos, o São Jerônimo estava segurado, embora, na data do incêndio, aqueles
antigos 65 contos de réis tivessem passado a valer milhares de contos. Mas os
proprietários logo aproveitaram o terreno: ali está o Cinema Excelsior inaugurado em
17 de abril de 1935.

Europeus antes, americanos depois


Sob o ponto de vista do mercado mundial, o cinema americano é um produto
da Primeira Grande Guerra. Antes dela, os filmes europeus dominavam os cinco
continentes. Enquanto franceses e alemães, austríacos e italianos, ingleses e russos
travavam batalhas, Hollywood crescia e suas fitas passavam a substituir, mesmo na
França e na Itália, as produções da Gaumont e da Pathé, da Cinès e da Itala.

A Bahia não saiu do esquema dessa história econômica. Não podia fazê-lo. Até 1914, o
Brasil tinha na Europa o seu centro de exportação e importação. O dólar nem aparecia
nas cotações da bolsa. Só a libra, o franco e o marco.
Os filmes franceses, italianos e dinamarqueses compunham quase totalmente a
programação dos cinemas baianos. O divismo exaltava Francesca Bertini, Pina
Menichelli, Emilio Ghione, Valdemar Psilander, Asta Nielsen, Max Linder, Musidora.
Em vão se procuraria na imprensa, ainda sem clichês, o nome de um artista americano.

Aliás, entre 1900 e 1910, é muito difícil a verificação, pelos jornais, dos títulos dos filmes,
mesmo de seus intérpretes. Se a imprensa de 1897 saudara com tanto entusiasmo
a chegada do cinematógrafo, logo a seguir cercara de silêncio as exibições. Embora
não se ache registro, é possível que tivesse se estendido até nós o preconceito que
muitos intelectuais franceses, vivamente admirados no Brasil, como Anatole France,
mantinham em face desse “passatempo de iletrados”.
Ademais, não se desenvolvera o costume das casas de espetáculos anunciarem
os programas: ver-se-á, por volta de 1921-1922, através de Artes & Artistas, que os
distribuidores se incumbiam da propaganda de sua produção, sem que os exibidores
também o fizessem. Há, por fim, a considerar que, antes da Primeira Guerra Mundial,
cada sessão incluía diversos filmes, pois raríssimos atingiam três ou quatro partes,
importando somente, para o público, de quantos filmes o programa constava.

275
Mas já em 1916, segundo se pode ler em A Renascença, revista mundana da época, o
Cinema Jandaia estava a exibir os “indefectíveis” Fatty (Chico Bóia) e Carlitos. Essa
nota nos leva a crer que as fitas dos dois cômicos tinham chegado rapidamente à
Bahia: os primeiros Fattys datam de 1913, só em 1914 começa a carreira cinematográfica
de Chaplin. Se já eram “indefectíveis” em 1916 é porque, louvando-nos no significado
dessa tenebrosa palavra, sua presença nas telas baianas se tornou infalível. Com
eles, pois, deviam estar vindo os outros atores americanos, as comédias e os dramas
de Hollywood. O divismo de Bertini e Menichelli fora substituído pelo vampirismo
de Theda Bara. Pearl White em seus Os mistérios de Nova York fizera totalmente
esquecer Os mistérios de Paris. Suas aventuras de beleza loura em Os perigos de
Paulina iniciavam uma das modas mais populares e duradouras do cinema: os
seriados. Correspondendo ao romance em folhetim na literatura, enquanto os
cinemas davam, de oito em oito dias, uma nova série, que terminava sempre com
um “Voltem na próxima semana”, os jornais publicavam, dia a dia, um novo episódio
dos dramalhões de Xavier de Montépin e Michel Zévaco. Moeda quebrada com Eddie
Polo, O homem da meia-noite com James Corbett – o campeão mundial de boxe –
empolgavam os baianos. O tempo dos filmes de cowboy, de Tom Mix e Buck Jones,
ainda ia chegar.
Em 1919, terminada a guerra, a Europa tinha praticamente desaparecido das telas
baianas. Nesse ano, a inauguração do Kursaal Baiano – seis meses mais tarde Teatro
Guarani, como até hoje – foi a sensação da véspera de Natal. Situado na praça mais
central da cidade, seu estilo arquitetônico “novo” servia para realçar-lhe as grandes
dimensões: o Politeama e o São João comportavam mais espectadores. Perdiam,
porém, em beleza. Mil e onze pessoas podiam sentar-se nas suas cadeiras: plateia,
galeria, camarotes e frisas.
Já no ano seguinte, os dez cinemas da Bahia – entre eles, o então aberto pelo Liceu
de Artes e Ofícios, no primeiro andar do admirável Paço do Saldanha – contavam
com o retorno da produção europeia. Em 12 de outubro de 1920, saía, em segunda
edição (é de não se acreditar hoje!), o número 1 de Artes & Artistas: nele, o cronista
Jim Artfons (pseudônimo de quem?) escrevia sobre uma nova guerra, a guerra das
fitas:
Ontem, todas (as nações) contra a Alemanha; hoje, todas contra os Estados Unidos!
Não é fita de guerras, são guerras de fitas: fitas americanas combatendo com as
congêneres europeias.
A julgar pelas programações, o fato fundamental consistia, realmente, na
interdependência, dentro do nosso mercado, entre a produção americana e a
europeia, esta representada pelos franceses, alemães, italianos e dinamarqueses.
Quando, em 1921, se levantou a estatística dos filmes importados, apurou-se que
293 procediam dos Estados Unidos, 169 da Alemanha, 88 da Itália, 73 da França, 10
da Dinamarca, 9 de Portugal, 3 da Inglaterra e 3 da Áustria.
Queixavam-se, então, os baianos de não haver, na cidade, vida noturna, limitando-se
aos cinemas. Mas a frequência em 1920 não ultrapassava de 11,5% da população,

276
embora, no Politeama, um certo José Simões Coelho viesse a pronunciar, em 1921,
uma conferência sob o título: “Por que é que toda gente gosta de cinema?”.

Essa toda gente já devia saber que a indústria cinematográfica figurava como a
terceira nos Estados Unidos. Mas Artes & Artistas publicava, em 21 de agosto de 1921,
um artigo de Hamilton Barata, remetido de Paris, com uma análise, surpreendente
para a época, das escolas americana e europeia, comparando-as sob o título:
“Pensamento ou técnica?”.

Na competição entre os Estados Unidos e a Europa, Artes & Artistas, refletindo


certamente o pensamento baiano, se exaltava, em agosto de 1921 (n. 46), com
a recuperação da França, que “retoma o seu antigo posto, apresentando-nos
verdadeiras obras de arte, interpretadas pelos melhores artistas, em desafio às
fábricas americanas”. Seria exemplo, segundo Jim Artfons, J’accuse, de Abel Gance,
“cuja encenação e efeitos fotográficos, especialmente aquele campo de morte que,
pela sua extensão e grandiosidade, emociona o espectador, estão acima da crítica
mais exigente”. Se considerarmos que, historicamente, Abel Gance é uma figura
cinematográfica da maior importância entre os cineastas, havido quase como um
homem de gênio, e que J’accuse foi o filme que, antes de La roue e de Napoleão, lhe
deu celebridade a partir de 1919, se verifica que não faltava intuição crítica a alguns dos
colaboradores de Artes & Artistas. Por 200 réis (depois 500 réis), a revista oferecia, em
20 páginas, a atualidade cinematográfica...

Cresce a influência do cinema


Nos anos imediatos à Guerra Mundial, o cinema adquiriu uma importância social e
cultural análoga à economia. Artes & Artistas, editando 78 números, é uma prova
magnífica: jamais posteriormente a Bahia possui uma revista sobre problemas
cinematográficos. Ao completar seu aniversário em 16 de outubro de 1921, dizia
orgulhosamente em seu editorial de abertura:

No Brasil, é a única no seu gênero, e, por isso mesmo, vitoriosa, sem


recear competições nem antagonismos.

Seu programa definido de arte e para a arte, tem se mantido com


favor de Deus... e se há de manter... porque, de ninguém a não ser o
público que lhe esgota as edições de cinco milheiros de exemplares,
precisa amparo e aplausos.

Esse número tinha 50 páginas e 42 fotografias de atores e de filmes.

Febre do momento, o cinematógrafo fazia pensar na morte do teatro, como hoje a


televisão tem feito na do cinema:

[...] o cinematógrafo venceu o teatro e a prova mais eloqüente dessa


vitória está na fuga constante de atores da cena falada a se evadirem

277
para o campo da cena muda onde há compensação econômica e,
quiçá, dada a internacionalidade do filme, a sua rápida propagação
pelo mundo, compensação artística e celebridade [...] E o cinema
tomou nos costumes de todos os povos um papel saliente, um
hábito que se enraizou, tanto e tanto, que já o temos como parte
integrante de nós mesmos.

Nesse artigo de 4 de setembro de 1921, Artes & Artistas transcrevia palavras de Ruy
Barbosa, glorificando o cinema da tribuna do Senado:

O cinema, senhores, (gosto do cinema) é o teatro condensado e


rápido. E o drama ou a comédia tendo por fundo a realidade, a
natureza e o universo, universo na variedade infinita de todas as suas
cenas. Não tem bastidores, não tem fingimentos, não tem mentiras.
Ali não se fazem as cenas de brocha, papelão ou trapos. Correm os
rios; erguem-se as montanhas; despenham-se as cascatas; vêem-
se os rebanhos nas pastagens, a natureza se ostenta na variedade
incalculável das suas cenas e a ação humana se produz em toda a
plenitude de seu movimento.

O fanatismo diante do cinema chegava a manifestar-se por uma singular forma: o


soneto. Muitos versos foram dedicados à fama e à beleza de Mary Pickford, Francesca
Bertini, Pola Negri, Priscilla Dean, Mae Murray, Pina Menichelli, Pearl White – sendo
que o poeta Álvaro Gomes Soares também fez um soneto “Ao intérprete da arte muda
William Farnum”, exclamando no primeiro terceto:

Teus calmos gestos são de mímico perfeito.


O público admira a suprema eficácia
dos teus braços de ferro e do teu amplo peito.

Já um outro sonetista baiano, Ajax de Andrade, se inflamava por Theda Bara:

Que nação produziu glória tamanha?


Qual foi o berço desta grande artista A América? O país que o Nilo
banha?...
Eu sinto uma emoção sublime, rara,
Doce emoção de estética e arte mista,
Quando na tela assoma Theda Bara...

Esse delírio coletivo deve ter determinado o pensamento de censurar-se o cinema.


O Diário da Bahia de 22 de dezembro de 1920 noticia que o deputado Deodato Maia
apresentara à Câmara Federal um projeto de lei estabelecendo a censura dos

278
filmes. Funcionaria junto ao Ministério do Interior uma comissão de três a cinco
membros, integrada por elementos de reconhecida competência em assuntos de
arte, pedagogia e literatura.

O projeto foi aceito. Porque, no primeiro semestre de 1921, já os filmes eram censurados.
Submeteram-se à censura 633 fitas: 444 dos Estados Unidos, 81 da Alemanha, 60 da
Itália, 27 de França, 7 do Brasil etc. Obtiveram aprovação total 570, 59 com supressões,
29 foram tidas como impróprias para menores e 2 proibidas. Os censores agiam com
tolerância muito maior que a atual.

Mas se o cinema alcançava tamanho prestígio, por que o Ideal, havido como tão
elegante, fechou suas portas, em 1921, “por falta de público”? Acaso por que timbrava
(diziam os proprietário) em exibir filmes d’arte, quando os espectadores, já fascinados
pelo estilo americano, exibiam filmes de divertimento?

Tentativas de produção cinematográfica


Entre 1920 e 1922, a Bahia também conheceu as mais insistentes tentativas de
produção cinematográfica, somente comparável, na sua história, ao período que vem
de se abrir, com uma nova geração febril, em 1959.

Datavam, entretanto, de 1910 as experiências iniciais. A Fotografia Lindemann,


esta estabelecida à Piedade, gravara, em abril daquele ano, as Regatas da Bahia,
historicamente o primeiro curta-metragem baiano. A partir daí, crendo-se em Sílio
Boccanera Júnior, a Lindemann explorara a indústria até outubro de 1914, gastando
cerca de 150 contos e filmando 100 mil metros de película. A firma, composta por
Diomedes Gramacho e José Dias da Costa, não tinha subvenção dos governos e seu
único freguês nesta capital era o Teatro São João, cujo arrendatário, Rubem Pinheiro
Guimarães, trouxe, em 1911, de Paris para Lindemann “novo e aperfeiçoado poste de
tomada (câmera), que custou dez mil francos”. Entre os documentários realizados
por esses pioneiros, se destacavam Exploração da indústria da borracha na Bahia,
com 1.100 metros (ou há engano de informação ou para a época o filme possuía uma
metragem excepcional, sendo lamentável que tanto ele como os outros se hajam
perdido); Carnaval da Bahia, de 1911, com 950 metros (de novo, uma surpreendente
duração); N. S. dos Navegantes; Segunda-feira do Bonfim, Festa da bandeira. Além
dessas reportagens, seis Lindemann Jornal.
Retomando as atividades em abril de 1919 – a guerra devia tê-las interrompido pela
carência de filme virgem, importado como ainda hoje –, a Photo Lindemann tomou
as cenas da visita de Ruy Barbosa à Bahia, anunciando na revista Renascença que se
achava “vantajosamente aparelhada” a sua seção de cinematografia – “cuja montagem
obedece às exigências da arte no momento”.
Logo a seguir, aparece-lhe uma concorrente: a Nelima Film. Seus sócios J. G. Lima e
Nelli tinham escritório à Rua da Misericórdia, 14, e atelier à Avenida Luiz Tarquínio, 65.
No período de ouro do esporte do remo, a Lindemann estreará com as Regatas da
Bahia. Em 1921, com o futebol já representando uma atração tão popular quanto o

279
cinema, a Nelima viria a conquistar seu maior êxito com a reportagem sobre O América
na Bahia. Dividido em “5 longas partes”, esse “belo filme nacional” incluía as partidas
jogadas pelos cariocas contra os clubes baianos.

O objetivo da Nelima consistia, porém, na ficção de longa-metragem. Para alcançá-


-lo, tomou providências: abriu um concurso de argumentos, fundou uma escola de
interpretação, contratou

[...] o Dr. Carlos Monden para assumir a sua direção técnica, como
primeiro ator, por sua alta competência no gênero, porquanto foi
ele, antes da guerra européia, o metteur-en-scène da famosa marca
francesa Gaumont, de Paris, havendo dirigido e colaborado com as
afamadas artistas Max Linder, Sanchez, Rigadin, Suzanne, e outros
artistas célebres.

(Foi-nos impossível localizar o nome desse ator e metteur-en-scène nas mais minuciosas
histórias do cinema, como as de Georges Sadoul e de René Jean e Charles Ford, levando
a omissão à crença de que Monden não fosse nem ator nem metteur-en-scène, mas
um dos muitos aventureiros que, através dos anos, aqui vieram iludir com a sua falsa
experiência artística).

O concurso teve como vencedores o jornalista Mattos Filho e o poeta Áureo Contreiras,
com um argumento sob o título Salvai-a, considerado superior aos de O poder do
amor, Amores no sertão, Os abandonados e Páginas da vida. Mas logo se anunciou que
o argumento não seria filmado “senão oportunamente”...

O adiamento acabou com a escola cinematográfica. Suas aulas teóricas e práticas


haviam começado com 60 alunos, entre os quais “gentis senhorinhas de nossa
elite”. Numa certa manhã de março de 1921, na Barra, vira-se um espetáculo inédito:
os ensaios ao ar livre de arte cinematográfica. Confiando nessa escola de artistas,
indagava a revista de Fonseca & Filhos se poderíamos ter para o futuro, nos arredores
da Bahia, uma Cinelândia ou uma Filmópolis. “Para tudo isto, é preciso perseverança,
boa vontade, temeridade, e sobretudo descortinamento dos nossos Rotschilds das
enormes vantagens do emprego de capitais na grande indústria cinematográfica”.
Os Rotschilds baianos jamais se convenceram dessas enormes vantagens. Quem se
convenceu de tirá-las da cinematografia foi a Intendência Municipal. O prefeito chamou
os exibidores e lhes expôs a ideia de cobrar 10% sobre a renda diária dos cinemas com o
fito de custear o Asilo de Mendicidade. Os exibidores atenderam, mas resolveram, por sua
vez, aumentar em 10% as entradas. É a origem do imposto de caridade, que não é imposto
porque é taxa, não sendo mais “de caridade” porque é de diversões públicas. Desde 1921,
cada 1.000 réis ou cada cruzeiro obriga a um tostão ou dez centavos para o município.
Alguns anos depois, em 1929, a revista A Luva, em seu número 97, estampava um
anúncio que equivalia ao ressurgimento das tentativas de realização e formação
profissional. A Academia Cinematográfica Bahia Films, fundada em 1927 e sediada à
Rua Carlos Gomes, 27, “tendo já pronto para filmagem um grandioso filme intitulado

280
Sangue do meu sangue” aceitava “rapazes de boa aparência, senhoritas e crianças”.
“Informações a qualquer hora do dia na Rua Dr. Seabra 82 ou 108”. “Bahianos!”, concluía
o anúncio, “auxiliai o desenvolvimento da cinematografia bahiana”.

Parece que nenhum baiano atendeu aos apelos de Francisco Adamo, diretor assistente,
e Hélio Luxardo, operador: Sangue do meu sangue nunca foi realizado.
Só 30 anos mais tarde, em 1959, um grupo de jovens viria a cumprir com Redenção,
produzido pela Iglu Filmes, a ideia de um longa-metragem dramático.
—Diário de Notícias, 6 de março de 1960. No livro O Eterno e o Efêmero, 2006, v. 2, p. 123-135.

DEZ ANOS NO CINEMA 1960

Fundado em junho de 1950, o Clube de Cinema da Bahia correspondeu ao mesmo


sentido cultural que caracterizava, naquela época, dois outros movimentos: na
literatura, o de Caderno da Bahia, liderado por Vasconcellos Maia, Wilson Rocha e
Cláudio Tavares; nas artes plásticas, o que iniciava Carlos Bastos, Mário Cravo Júnior
e Genaro de Carvalho. À ficção e à poesia, à pintura e à escultura, vinha juntar-se, para
renovação do espírito baiano, o conhecimento do cinema como a expressão estética
mais representativa do mundo contemporâneo.
A primeira exposição de Cravo e de Bastos de volta do estrangeiro, num salão da Biblioteca
Pública, alvoroçara a placidez provinciana ainda existente. Na boate, do Hotel da Bahia,
Genaro traçara um mural folclórico de linhas modernas. A revista deVasconcellos, Cláudio
e Wilson retomava, depois da guerra, o itinerário das gerações anteriores, começado por
Arco e Flecha, Hoje, Flama e Seiva. O Clube de Cinema, nascido de Carlos Coqueijo Costa,
Hamilton Correia e de mim, tentava uma experiência sem tradição no Brasil.
Naquele tempo, o filme era uma obra de arte muito mais desprezada do que hoje, conquanto
não houvesse andado, até agora, o caminho necessário ao seu prestígio definitivo. Os
homens dedicados ao cinema sofriam uma solidão intelectual mais profunda do que a
dos artistas plásticos e a dos escritores. Assim, talvez porque precisassem de amparo
mútuo, os três movimentos colaboraram muitas vezes em suas atividades.
O Caderno da Bahia, afinal, desapareceu. Os pintores e escultores modernos
venceram e se multiplicaram. O Clube de Cinema nem teve um triunfo semelhante
ao dos artistas plásticos, nem deserdou de suas finalidades. É certo que chega ao seu
décimo aniversário sem o brilho da primeira fase. Mas, recordada a contribuição que
realmente prestou à cultura baiana, a medida de seus êxitos não se avaliará pelas
grandes iniativas que distinguiram a sua época inicial, porém pelo que tem deixado de
sutil e de sério na atual mentalidade cinematográfica da Bahia, sobretudo no campo
da criação ou da crítica em que tanto já procuram trabalhar as novas gerações.
Nos últimos anos, o mecenato privado ou oficial permitiu o desenvolvimento da pintura

281

Você também pode gostar