Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Diego Nunes
IX
Diego Nunes
lhos, como saber e poder no âmbito penal se enxergam e buscam um lidar com o
outro, seja pela deferência ou por tentativas de controle mútuos.
Adicionar a relação entre Europa e Brasil acrescenta a importante questão cen-
tro-periferia, fundamental em um momento histórico em que muda o eixo de cir-
culação das ideias jurídico-penais (NUNES, 2018). Se no modelo pré-moderno do
medievo e Antigo Regime se tratava de uma circulação “compulsória”, dadas as
características do mundo do ius commune, a modernidade jurídica trouxe a forma
código, de cunho nacional, que tornou a circulação “facultativa” aos modelos que
os estados entendiam adequados para as reformas legislativas que grassaram ao
longo do século XIX. Certo que, dadas as necessárias particularidades que os pro-
cessos de transplantes e transferências jurídicas sofrem – que, na realidade, só po-
dem ser vistos como emaranhamentos (DUVE, 2014, p. 3-25) – a divisão se dá para
fins didáticos e organizativos.
Abordam a primeira perspectiva os capítulos de Mario Sbriccoli, Ettore Dezza,
Paolo Marchetti, Arno Dal Ri Júnior & Kristal Moreira Gouveia e Diego Nunes.
Enfatizam os aspectos ligados ao segundo ponto de vista os capítulos de Murilo De
Robbio & Marina Tanabe Livramento, Giácomo Tenório Farias, João Luiz Ribeiro,
Bárbara Madruga da Cunha & Mário Davi Barbosa, Ricardo Ávila Abraham & Car-
los César Rodrigues, Vanilda Honória dos Santos & Biatriz Bittencourt de Assis,
Júlia Farah Scholz e, por fim, Bárbara Klopass Locks de Godoi & Tayná Ferreira.
X
Apresentação
consultando as várias legislações penais e de processo penal em países como Áus-
tria, Prússia, França e os estados italianos pré-unitários, comparando-as aos princi-
pais postulados da obra de Cesare Beccaria. Ainda que daquele momento em diante
o novo modelo de justiça penal estivesse sempre em debate, por vezes se negavam a
sua inserção na legislação.
Paolo Marchetti, aproxima os campos da Medicina e do Direito apresentando as
tentativas realizadas por pesquisadores do passado buscar uma explicação biológica
para o comportamento criminoso a partir dos estudos de Cesare Lombroso, bem
como de seus contemporâneos quanto a reprimir e prevenir o comportamento
criminoso pelo meio biológico podem abrir portas desconfortáveis para simplifica-
ções perturbadoras.
Arno Dal Ri Júnior e Kristal Moreira Gouveia trabalham sobre a função da per-
sonalidade jurídica atribuída ao Estado no Código Penal Italiano de 1930 para a
instituição de categorias autoritárias. Especificamente sobre a categoria personali-
dade do Estado, busca-se enquadrar o Código no debate doutrinário. Por meio da
ressignificação da expressão laesa maiestas, busca-se focar na relação entre a nova
figura do Estado no contexto do Código Penal e o deslocamento de tutela de reco-
nhecimento de bens jurídicos posterior, em especial no que se refere à virada puni-
tivista, que coloca o indivíduo como alvo e possível ameaça e não mais como sujeito
da tutela jurídica, alguns ainda presentes na atual legislação penal italiana.
Diego Nunes, encerrando este primeiro bloco, apresenta o tratamento jurídico
dado à extradição na Itália Fascista e no Brasil de Getúlio Vargas para compreender
se o instituto sofreu torsões autoritárias, seja no campo do direito interno como nas
relações diplomáticas entre os dois países. As legislações italiana (Código Penal de
1930) e brasileira (lei de extradição de 1938) continham importantes elementos
para a defesa de um Estado forte. Porém, o tratado Ítalo-Brasileiro de extradição de
1932 estava mais próximo à tradição liberal. O “Direito Penal fascista” não foi exa-
tamente uma revolução, pois apesar de introduzir alterações importantes coabitou
com o Direito Penal liberal.
Iniciando a segunda parte, Murilo De Robbio e Marina Tanabe Livramento ana-
lisam de que forma ocorria o regime de provas no Projeto de Código de Pascoal de
Mello Freire de 1789, verificando a maneira com a qual o jurista lidou com a pro-
XI
Diego Nunes
posta da reforma das Ordenações até então vigentes, principalmente no concernen-
te às provas no processo criminal ante a reformulação do ordenamento jurídico
português. O Projeto de Código elaborado por Mello Freire teve clara influência
dos princípios iluministas e seus dispositivos influenciaram os futuros códigos cri-
minais portugueses.
Giácomo Tenório Farias busca compreender quais modificações legislativas re-
sultantes do movimento iluminista-penal, especialmente, a partir da concepção
humanitária de Beccaria no processo da codificação penal lusitana, especificada-
mente na adoção da morte como espécie de pena. Comparando os diversos diplo-
mas legais portugueses sobre a adoção da morte como pena, foi possível identificar
como se deu a permanência da adoção da morte como espécie de pena nas legisla-
ções portuguesa desde o século XVI até o XIX.
João Luiz Ribeiro faz a transcrição de uma interessante fonte jornalística acerca
do relato sobre a última execução da pena capital que se tem notícia na província do
Rio de Janeiro, em 1860, acompanhada de notas que auxiliam a contextualizar o
documento dentro da história do processo penal brasileiro durante o Brasil impé-
rio.
Bárbara Madruga da Cunha e Mário Davi Barbosa discutem o problema da cri-
minalização da mulher que abortava no Brasil do século XIX, partindo da análise
do Código Criminal do Império de 1830, onde se constata a ausência de criminali-
zação da conduta do autoaborto. Questionou-se o porquê da escolha dos legislado-
res daquela época de não inserir no texto do código esta conduta com ênfase no
escravismo e no patriarcalismo como elementos importantes para reflexão, tendo
como resposta que esta repressão se encontrava circunscrita às esferas privadas de
punição, visto que se tratava de uma conduta que feria o pátrio poder.
Ricardo Ávila Abraham e Carlos César Rodrigues analisam a possível continui-
dade entre o Código Penal de 1890 e leis penais especiais, datadas das primeiras
décadas do século XX, no que se refere à política criminal de drogas no Brasil. Ape-
sar de idênticas as terminologias e construções dogmáticas dos artigos que crimina-
lizavam condutas referentes às drogas nos referidos diplomas normativos, isso não
significou uma continuidade na política criminal de drogas no Brasil, que se iniciou
somente a partir da segunda década do século XX.
XII
Apresentação
Vanilda Honória dos Santos e Biatriz Bittencourt de Assis discutem a cultura ju-
rídica de criminalização das práticas religiosas afro-brasileiras, especialmente o
espiritismo e o curandeirismo, a partir da análise dos Códigos Penais de 1890 e
1940, utilizando a experiência de São Pedro do Uberabinha (atual cidade Uberlân-
dia/MG) pelas disposições do Código de Posturas que vigeu na cidade, de forma a
analisar a relação dos dispositivos penais com a cultura local, no que se refere ao
exercício da liberdade religiosa. As autoras concluíram que predominou a cultura
de preconceito e discriminação por meio da criminalização e punição das religiões,
criadas ou ressignificadas pelos africanos e seus descendentes, com reflexos no
tempo presente.
Júlia Farah Scholz buscou verificar se houve uma reinterpretação dos institutos
defendidos pela Escola Positiva Italiana no Código Penal brasileiro de 1940, especi-
almente em relação às medidas de segurança. A hipótese levantada é de que houve
uma reformulação dos conceitos e ideias propostas pela escola italiana, de modo
que o caráter técnico presente na codificação penal do século XX promoveu uma
adequação de seus institutos à realidade da época.
Enfim, Bárbara Klopass Locks de Godoi e Tayná Ferreira finalizam a segunda
parte com a análise a viabilidade de estudos interseccionais entre a História do Di-
reito Penal e os Pensamentos Feministas sobre a problemática do aborto, adotando
como marco teórico o pensamento feminista de Silvia Federici e tendo como recor-
te empírico as codificações penais brasileiras de 1940 e 1969. Como resultado, veri-
ficou-se o sucesso dessa interlocução para se compreender o aborto como expres-
são da autonomia das mulheres sobre seus corpos.
XIII
Diego Nunes
Sob a perspectiva teórica, o Ius Commune – bem como os pesquisadores brasi-
leiros e estrangeiros que colaboraram com a presente obra – aborda as experiências
jurídicas ocidentais como fenômenos culturais localizados historicamente, afastan-
do-se simultaneamente de certas abordagens que alçam as juridicidades a uma di-
mensão atemporal, bem como daquelas que reduzem as experiências jurídicas a
reflexos automáticos das formações sociais. Trata-se, portanto, de tomar as experi-
ências jurídicas como fenômenos com uma espessura própria, produtoras de senti-
dos e comportamentos sociais.
Desde sua fundação, o grupo florianopolitano privilegia a história do direito pe-
nal como tema de investigação. Vários seminários, grupos de estudo, pesquisas em
todos os níveis (graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado) e publicações
vem sendo dedicadas à história do direito penal. Dentre as publicações sobre o te-
ma, para além da obra seminal de Arno Dal Ri Jr. (2006), três outras coletâneas
antecederam esta que ora apresentamos: a primeira, focada no iluminismo jurídico-
penal (DAL RI JR. et al, 2009); a segunda, na construção da experiência jurídico-
penal moderna, desde as vésperas medievais, até as declinações específicas da pará-
bola moderna entre o final do século XIX e início do século XX (DAL RI JR.; SON-
TAG; NUNES, 2011); e a terceira, em continuidade com a anterior, vale-se da
mesma cronologia para discutir os confins entre o direito penal e a política (DAL RI
JR.; SONTAG; NUNES, 2020). Destacam-se, ainda, os vários anais de eventos que
trataram das inter-relações entre direito penal e justiça criminal e sua diferenciação
na modernidade (DAL RI JR; SONTAG, 2008; DAL RI JR.; NUNES, 2009; DAL RI
JR., 2010; DAL RI JR.; SONTAG; NUNES; AGUIAR, 2011; DAL RI JR., CORRÊA;
NUNES, 2020).
Desta vez, a preocupação foi articular as pesquisas em história do direito penal e
da justiça criminal do grupo de pesquisa com as atividades de ensino na pós-
graduação. Desde 2018 é oferecida anualmente a disciplina História do Direito Pe-
nal como optativa (Área de Concentração “Teoria e História do Direito”, Linha de
Pesquisa “Historicismo, Conhecimento Crítico e Subjetividade”) do Programa de
Pós-Graduação em Direito da UFSC. Desde então, inúmeras discussões foram tra-
vadas com os vários alunos que nela se matricularam a partir de textos como aque-
les que compõem a primeira parte desta obra. Como resultado, ao final do trimestre
eles produzem papers reagindo a estes textos a partir de fontes brasileiras, que re-
XIV
Apresentação
sultaram em alguns dos capítulos da segunda parte do livro.
Referências
DAL RI JR., Arno. O Estado e seus inimigos: a repressão política na história do direito penal. Rio
de Janeiro: Revan, 2006.
DAL RI Jr., Arno; CASTRO, Alexander de; SONTAG, Ricardo; DE PAULO, Alexandre Ribas. Ilu-
minismo e direito penal. Florianópolis: Boiteux, 2009.
DAL RI Jr., Arno; SONTAG, Ricardo (orgs.). ANAIS Encontros de História do Direito da UFSC: A
construção do direito e processo penal modernos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008.
DAL RI JR., Arno; NUNES, Diego (Org.). ANAIS Encontros de História do Direito da UFSC: RE-
XV
Diego Nunes
GIMES DE LEGALIDADE E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO PENAL MODERNO: a questão
do crime político. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
DAL RI JR., Arno (Org.). ANAIS Encontros de História do Direito da UFSC: ORDENAMENTOS
JURÍDICOS E A DIMENSÃO DA JUSTIÇA NA EXPERIÊNCIA JURÍDICA MODERNA E
CONTEMPORÂNEA: Diálogo entre História, Direito e Criminologia. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2010.
DAL RI Jr., Arno; SONTAG, Ricardo (orgs.). História do direito penal entre medievo e moderni-
dade. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
DAL RI JR., Arno; SONTAG, Ricardo; NUNES, Diego; AGUIAR, Márlio (Org.). ANAIS Encontros
de História do Direito da UFSC: PENSAMENTO JURÍDICO E DIMENSÃO INTERNACIO-
NAL: Experiências históricas e itinerários conceituais entre os séculos XIX e XX. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2011.
DAL RI JR., Arno; CORREA, Caetano Dias; NUNES, Diego. ANAIS XVI Encontros de História do
Direito da UFSC: Printing & Iconology as Legal-Historical Sources. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2020.
DAL RI Jr., Arno; SONTAG, Ricardo; NUNES, Diego (orgs.). História do Direito Penal: confins
entre direito penal e política na modernidade jurídica (Brasil e Europa). Florianópolis: Habitus,
2020.
DUVE, Thomas. Entanglements in legal history. Introductory remarks. In: DUVE, Thomas (ed).
Entanglements in Legal History: Conceptual Approaches. Max Planck Institute for European
Legal History. Berlin: Epubit, 2014.
MECCARELLI, Massimo. Criminal law before a State Monopoly (p. 633-655). In: PIHLAJAMÄKI,
Heikki; DUBBER, Markus D.; GODFREY, Mark (eds.). The Oxford Handbook of European Le-
gal History. Oxford: Oxford University Press, 2018.
NUNES, Diego. The “Code Pénal” in the Itinerary of the Criminal Codification in America and
Europe: “Influence” and Circularity of Models. In: MASFERRER, Aniceto. The Western codifi-
cation of Criminal law: A revision of the Myth of its Predominant French Influence. Heidel-
berg, New York, London: Springer, 2018.
XVI