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A HISTÓRIA DO HIDROAVIÃO
UMA ANÁLISE CRÍTICO-LITERÁRIA
MIMOSO DO SUL
AGOSTO DE 2021
A HISTÓRIA DO HIDROAVIÃO
UMA ANÁLISE CRÍTICO-LITERÁRIA
1. RESUMO
Este artigo destina-se à realização de uma análise crítico-literária do texto “A HISTÓRIA DO
HIDROAVIÃO”, do escritor e psiquiatra português António Lobo Antunes, que traz como principal
marca, o saudosismo da África e o rio Tejo como pano de fundo para as reminiscências do personagem
Artur, do tempo passado em sua infância e juventude, em sua terra natal. Pretende-se realizar uma
análise dos aspectos literários de uma narrativa, linguísticos e talvez, históricos que forem possíveis
flagrar no texto estudado.
2. INTRODUÇÃO
COSTA1, aluna de Matr.: 20212001750, no curso de Especialização em Literatura e Ensino pela UFRN –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil, 2021.
RABELO2, Professor na UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal, Rio Grande do Norte, Brasil.
por Artur) para mostrar a cidade do Tejo, que ele tanto insistia em saber. Todavia, pela
afirmação do indiano, não se sabe se, realmente, ele conseguiu a façanha ou se
enganou ao cego insistente em saber como era Lisboa.
O Hidroavião se desenha como o elemento fantástico/misterioso a partir do
qual, se constrói um final aberto, com a dúvida de que eles voaram com ele para
Angola ou se aquele esqueleto de avião não havia sido removido dali para um ferro
velho (ou coisa assim).
Ele é um meio de transporte híbrido, meio avião de pequeno porte, meio lancha
que navega, possuindo partes dos dois móveis. É constituído de uma armação
metálica coberta de lonas, com asas, calda e 2 hélices, na parte avião e dois
barquinhos e leme na parte lancha. Decola e pousa na superfície da água.
Também, simbolicamente, pode assumir a personificação da liberdade, da
possibilidade do escapismo (da fuga) da realidade e alcançar o idealizado (o desejado
retorno à Luanda do passado, dos 47 anos de motorista de camião, dos tempos de
criança à casa materna).
Conforme se pode notar, tem um significado importante neste conto, observável
pelo seu título, que, apesar de possuir personagens, é justamente o hidroavião que
se destaca nele, isto é, a história não é de Artur, não é do cego, não é do indiano,
antes, é “A História do Hidroavião”, a qual se propõe analisar neste trabalho.
COSTA1, aluna de Matr.: 20212001750, no curso de Especialização em Literatura e Ensino pela UFRN –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil, 2021.
RABELO2, Professor na UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal, Rio Grande do Norte, Brasil.
3. CONTEXTO HISTÓRICO
4.1. O TÍTULO:
Pela análise do título, “A História do Hidroavião”, atentando-se ao significado
polissêmico da palavra “história”:
• História: ciência que estuda eventos passados com referência a um povo, país,
período ou indivíduo específico podemos afirmar que há nele um jogo
significativo entre tempo e espaço;
• História: texto narrativo sob forma de legenda real ou ficcional, com uma
estrutura e características próprias com finalidade de entreter, educar,
transmitir valores. Tomando a polissemia desta palavra, percebe-se duas
possibilidades na leitura do título.
Esse dualismo reforça uma ideia de paralelismo no texto Assim, se por um lado a
história do hidroavião voltar-se para o aspecto real de um aeroplano que originalmente
deveria decolar e pousar ("amarar" ou "amerissar") sobre a superfície da água, é
descrito no texto sob condições precárias de existência e, segundo o indiano, sem
qualquer condição de alçar voo, quanto mais voar:
“— Esse hidroavião não vale nada, coitado.
4.4. O TEMPO:
Ele se caracteriza, basicamente pelo tempo real, cronológico marcado pelas
semanas, horas, (havia três semanas que o homem sentado à frente de sua casa
chegara àquele lugar; o dia foi escurecendo e se acenderam e outros marcos
temporais.
“se calculava que fosse Alcochete, a brilhar, à noite, lantejoulas
de leque sevilhano.” (...) O homem morou quarenta e sete anos
em África” (ANTUNES, 1994, p. 1)
[...]
“...à medida que pelas redondezas começava uma agitação de
ralhos e de caldos em púcaros de folha...” (ANTUNES, 1994,
p.2)
[...]
“demorava-se crepúsculo adentro até o hidroavião
desaparecer nas luzinhas de Alcochete ou de Paris...”
(ANTUNES, 1994, p.2)
4.6.1. NARRADOR:
O narrador (quem conta a história, sob a perspectiva de narrador onisciente,
principalmente em relação ao personagem principal, Artur) caracteriza-se pela
narrativa em terceira pessoa transitando, simultaneamente, ora entre a realidade
daquele amontoado de gente desterrada de sua pátria e esquecida naquelas
condições de subvida, ora no subconsciente das lembranças de um tempo feliz. Cita
Alcochete (município de Lisboa, capital de Portugal) onde supostamente o autor
imaginava que ia dar o rio Tejo descrito como “um pântano cinzento, horizontal até
aos morros de Alcochete”.
E independentemente de qualquer lugar que fosse, não se comparava, aos
olhos do personagem, com Luanda, capital de seu país. O narrador conhece e nos faz
conhecer por sua narrativa, os sentimentos de saudosismo de seu personagem, tal
qual o sentimento observado em o poema “Canção do Exílio” (Minha terra tem
primores/ Que tais não encontro eu cá / Em cismar sozinho à noite / Mais prazer
encontro eu lá /...”), de Gonçalves Dias (1843), ao mostrar a memória visual de seu
lugar de origem enquanto olhava (sem ver) o rio Tejo a sua frente.
4.6.2. PROTAGONISTA:
O personagem Artur, que aparece como protagonista da trama deste texto vai
paulatinamente sendo desenhado com adjetivos que esboçam sua nostalgia, suas
limitações financeiras, sua quietude e introspecção e aparente dificuldade de se
adaptar a esta nova realidade de exílio de sua terra natal provocado pela fuga da
guerra em seu país. Homem de poucas palavras de poucas frases que eram
reservadas para quando se atinha a jogar baralho, conforme se observa no trecho a
seguir:
“O homem morou quarenta e sete anos em África, a trabalhar
de motorista de camião ao serviço dos holandeses dos
diamantes, e custava-lhe habituar-se a uma terra de frio onde
ninguém o conhecia, (...) calado como era.” (ANTUNES, p.4).
[...]
“o cego ao lado dele. também sem caldo, impassível nos
óculos de mica, a puxar fósforos e a acender o cigarro na
colher da mão.” (ANTUNES, 1994, p. 2)
[...]
“curioso, a chupar o cigarro, numa voz que se confundia com
os grilos:” (ANTUNES, 1994, p. 2)
[...]
“O cego era criatura de adereços: possuía uma bengala de
metal que se encolhia e aumentava como os metros
articulados dos carpinteiros, e nas raras ocasiões em que se
levantava do balde caminhava de queixo ao alto, varrendo os
passos com aquela espécie de antena: ia do balde à
arrecadação ali perto, em que escondia um cobertor, e como,
por assim dizer, era sempre noite para ele, a bengala impedia-
o de esbarrar em algerozes e de tombar em valados. Talvez
fosse o único, dos que chegaram de África, capaz de caminhar
na cidade, seguindo a haste mágica que devia ter um mapa
das ruas no castão. Se quisesse ia de certeza de Cabo Ruivo
à Amadora (é um exemplo) sem uma hesitação para amostra,”
(ANTUNES, 1994, p. 3)
[...]
“De ideias fixas” (ANTUNES, 1994, p. 4)
4.7. ENREDO:
Caracteriza-se pela estrutura (as partes que o compõem) e sua natureza
ficcional. Suas partes geralmente são:
4.7.1. EXPOSIÇÃO: (ou introdução ou apresentação) geralmente coincide com o
começo da história, apresentando os fatos inicias (observa-se a descrição
dos personagens, a construção do tempo e o espaço no texto). Ajudando o
leitor a se situar no contexto da história.
4.7.2. COMPLICAÇÃO: (ou desenvolvimento) é a parte do enredo na qual se
desenvolve o conflito, que no caso é representado pela própria situação de
desterro, miséria e abandono em que aquelas pessoas se encontravam ali
ao pé dos fumos da Siderúrgica, no pântano do Tejo, tão distantes de sua
terra e sem perspectiva de vida e sem poder voltar.
4.7.3. CLÍMAX: é o momento culminante da história pode ser visto no momento
em que eles (Artur e o cego) planejam e hipoteticamente iniciam seu
sobrevoo por entre Alcochete e Lisboa, mas que poderia ser entre Malanje
e Luanda (ou vive versa);
4.7.4. DESFECHO (desenlace ou conclusão): é a solução dos conflitos, boa ou
má, vale dizer configurando-se num final feliz ou não. Há muitos tipos de
desfecho: surpreendente, feliz, trágico, cômico etc.
No caso do Texto de António Lobo Antunes, o desfecho é aberto, mesmo que
o indiano (anos depois do desaparecimento de Artur e do cego) ainda repita a quem
se dignar a ouvi-lo que o Hidroavião não arredou sequer um milímetro do lugar, há
quem diga que o Hidroavião ganhou o céu e se via os dois sobrevoando Lisboa,
tomando os rumos de Luanda, ganhando aquele espaço tão saudosamente registrado
pela memória e os olhos de amor de Artur. Assim, o desfecho, seja o real e desiludido
do indiano, ou o fantástico e maravilhoso do mergulho no espaço das reminiscências,
fica a critério do leitor.
Esse dualismo na perspectiva final do conto, essa entrega de responsabilidade
e interlocução com leitor na decisão do fim que melhor lhe agrada torna o texto mais
emocionante e deixa na imaginação o gosto de quero mais, o desejo da descoberta.
4.8. A LINGUAGEM DO CONTO
Em relação à linguagem no conto A História do Hidroavião” observa-se que ela
caracteriza-se pela construção simples, de um nível padrão, porém sem erudições,
marcada pelo léxico da língua portuguesa lusitana com termos e/ou expressões tais,
como: “alforrecas”, “quarta de chouriços”, “calhaus”, “contentor”, ”truca truca”, “a dar-
a-dar”, “musseque”, “algerozes”, “imbondeiros”, Expressões estas, as quais, muitas
delas têm significados diferentes do português falado no Brasil, sendo necessário
recorrer ao dicionário. O texto, justamente por se tratar de um conto de um autor
português, de Lisboa, é todo recheado de expressões do português lusitano,
Ainda sobre a linguagem, cabe destacar um aspecto interessante, que se estabelece
pela escolha do aspecto verbal (do tempo e o modo) na maioria das formas verbais,
predominando:
O pretérito imperfeito do modo indicativo referindo-se a um fato ocorrido no
passado, mas que não foi completamente terminado, observável desde o início do
conto com a expressão “Era uma vez um homem...” (ANTUNES, 1994, p. 1);
O imperfeito do subjuntivo utilizado na expressão de desejos, probabilidades e
acontecimentos que estão condicionados por outros. Pode indicar uma ação presente,
passada ou futura, como se observa em: “havia quem secasse camisas numa corda
entre dois paus, quem soprasse o lume de uma panela de esmalte, agachado para
um borralho de cinzas, havia cães arredios, medrosos de pedras,” (ANTUNES, 1994,
p. 1);
Isto pode transferir ao texto a conotação do aspecto do tempo imperfeito que é
o tempo não acabado, é um passado que continua enquanto se recapitula o passado
nas recordações, no mergulho das lembranças e evocações da infância
Assim sendo, esta linguagem vai sendo trabalhada e construída de tal forma, a
expressar e marcar um paralelismo marcante no texto.
Outro aspecto da linguagem que é significativo é a volta sempre as mesmas palavras
e expressões, e mesmo na construção frasal presente na pouca demarcação de
diálogo (quase monólogo) do texto onde o cego, insistentemente, pergunta: “_Como
é Lisboa, Artur?” (ANTUNES, 1994, p. 2, 3)
Então, cria-se uma espécie de paralelismo dentro do texto ao caracterizar
algumas situações, alguns sentimentos, algumas sensações dos personagens dentro
do contexto da história, e até mesmo, observa-se este paralelismo em flagrantes da
construção e caracterização dos próprios personagens que, no desenrolar do texto,
tramitam entre a realidade cruciante ali, naquele aglomerado de humanos desterrados
e sem perspectiva de vida e suas evocações do passado.
5. CONCLUSÃO
Após a leitura deste conto, com intenção de estabelecer uma análise crítica, de
reconhecer nele os elementos estruturais de um conto e tentar dialogar com o autor,
através de sua construção textual, é possível tecer algumas considerações
importantes.
Uma delas é constatar que o autor (escritor e psiquiatra) António Lobo Antunes,
em seu texto, apesar de lisboeta, mostra Lisboa de uma forma não convencionalmente
apresentada, focalizando um aspecto dela que os cartões postais ou a propaganda
turística não mostraria (a favela de Lisboa), um lugar deprimente, feio, desolador,
triste, sujo capitado pelos olhos do outro.
Este outro, representado pelos olhos do personagem principal, Artur, que
prefere fugir dessa realidade concreta e atual para uma passada e idealizada, que
guarda os encantos do princípio do prazer (sua infância feliz); pelos olhos desiludidos
e conformados do indiano racionalmente acomodados à deplorável visão, e por isso
permanece no lugar até o fim tentando racionalmente provar o óbvio a quem se
dignasse a ouvi-lo e; pelos olhos cheios de desejos do cego, justamente por não poder
ver a realidade, sendo, talvez, facilmente enganado pelo amigo Artur. Três visões
distintas que, ajudam a formar os argumentos que subsidiam a formação de um
paralelismo espaço-temporal no texto.
Uma outra conclusão seria em relação ao Hidroavião que, como, por um lado
é a carcaça velha, o esqueleto de um veículo imprestável, do outro, é o símbolo do
elemento mágico capaz de libertar os personagens daquela realidade infeliz, seja
através do escapismo pela ilusão (ou fantasia ou loucura ou morte) do voo sobre
Lisboa, sobre Luanda, sobre o passado em seu lugar ideal.
Por fim, nota-se que apesar de ser um texto curto (como caracteriza-se um
conto), de sua linearidade de espaço, tempo e ação, é riquíssimo em conteúdo
histórico, social, linguístico, simbólico e se agiganta à medida que se vai tecendo a
leitura.
É muito improvável conseguir esgotar todas as possibilidades de leitura e
análise nele. Além do fato de que, seu desfecho em aberto, cria com o leitor a
perspectiva da dúvida: o que será mesmo que aconteceu? E a oportunidade de atuar
como coautor deste fim, imaginando-o como melhor aprouver.
E esta, que dá por encerrada esta análise, prefere crer que eles ganharam o
céu e se coloca dentro do Hidroavião também, com destino à Luanda...
Irene Cristina dos Santos Costa, Mimoso do Sul, Espírito Santo, Brasil.
6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA