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Eterna Túlasi

Eterna Túlasi
Eterna Túlasi

ETERNA TÚLASI
2a. Edição

EDIÇÃO DO AUTOR
CURITIBA
2019
Eterna Túlasi

FICHA TÉCNICA
Título: Eterna Túlasi
Ano de Publicação: 2016 – 1ª.Edição
Ano da 2ª. Edição: 2019
Autora: E. Walleska Krüger
Edição e revisão: E. Walleska Krüger
Fotografia da capa: Cadu Pilloto
Projeto gráfico e diagramação: E. Walleska Krüger
Ilustrações de Mandalas: Túlasi Krüger
Prefixo Editorial: 921392 - Número ISBN: 978-85-921392-0-9
Tipo de Suporte: Digital
Curitiba/ PR

Contato: elisa.walleska@gmail.com

https://www.facebook.com/livrotulasi/

© Todos os direitos reservados à Elisa Walleska Krüger Alves da Costa


Proibida alteração de partes ou do todo, sem autorização.
Divulgação, reprodução e compartilhamentos gratuitos e permitidos livremente,
desde que citada a fonte e autoria.
Eterna Túlasi

DEDICATÓRIA

Dedico este livro à todas as mães que perderam seus filhos e tentam, diariamente,
sobreviver. Em especial, à Maíra Fernandes.
Lembremo-nos: nossos filhos vivem, para sempre, em nossos corações!
Procurem, curtam e compartilhem, as hashtags das campanhas
#CachoeirasSeguras https://www.cachoeirasseguras.com/ e #RaulVive
http://www.rodasdapaz.org.br/pedalar-e-suave/ – exemplos de mães que
transformaram o luto em luta!

Para alguns de meus amores, Rafael e Sophia, Morgana, Gustavo e Valentina,


Carlos, Beatriz e Roberto, Mônica e Ewerton, Diana e Cadu, e Raissa. Vocês
mantiveram meu coração pulsando quando ele quase parou.

E ao meu sobrinho de coração, Kike, que me trouxe a cura de muitas dores e hoje
faz companhia para a Túlasi no céu.

E, principalmente, à minha filha Túlasi, meu amor eterno.


Eterna Túlasi

AGRADECIMENTOS

À equipe de Cuidados Paliativos do Instituto Nacional do Câncer. Em especial, à


médica Luísa Cordeiro, à psicóloga Mabel Krieger e às enfermeiras Sheila Almeida
e Naira Agostini. Também aos oncologistas Marcos Saramago e Lucas. O trabalho
de vocês é maravilhoso e indispensável.

À todos os amigos do
Grupo Virtual de apoio à Túlasi.
Eu jamais teria conseguido sem vocês!

Às amigas dos grupos “Nossa Vida Continua”, “Apoio às Perdas Irreparáveis” e


“Bosque dos Anjos” por nos apoiarmos mutuamente, pois só uma mãe que já
“perdeu” um filho entende, com mais precisão, o que a outra sente.

“Vai ser feliz, a vida é curta!” (Túlasi, 2015)


Eterna Túlasi

PRÓLOGO DA SEGUNDA EDIÇÃO

Passaram-se pouco mais de quatro anos desde que Túlasi se foi deste plano.
A dor suavizou, a vida seguiu, ainda que bem diferente e marcada pelo luto, as
lembranças ruins foram evanescendo e as boas mantêm-se vivas. Mas de fato, uma
coisa é certa: nosso amor é eterno e como ela mesma disse antes de partir, “estaremos
para sempre juntas”.
Nossa história tem tocado muitas pessoas e esse era o objetivo de minha filha.
Várias mães escrevem para nossa página do Facebook
https://www.facebook.com/livrotulasi/, alguns psicólogos escreveram suas
dissertações de mestrado utilizando o nosso caso como exemplo e vários professores
já me convidaram para aulas e palestras sobre temas de luto e cuidados paliativos.
Que coisa boa transformar tanto sofrimento em algo bom!
Meu sonho agora é transformar nossa história em filme ou documentário.
Creio que a forma como fomos aprendendo a lidar com a morte pode servir de
inspiração e exemplo para que outras pessoas passem por esta experiência de uma
maneira mais leve, menos dolorosa e com alguma poesia.
Não mudei quase nada nesta nova edição do livro, mas acrescentei dois novos
capítulos (“Mais Vítimas” e “Mais Coisas de Túlasi”). Já não há uma versão
impressa, pois é bem mais caro e difícil de compartilhar. O transformei numa versão
interativa e digital. Na última página tem os links da trilha sonora e dos filmes que
assistimos e nos inspiraram, espero que você goste de ler ao som de música.
Acrescentei cores, fotos, links, vídeos e algumas observações. Espero que gostem. E
que ela, de algum lugar, goste também.
Desejo, ardentemente, que você consiga passar pelas partes mais tristes e
densas desta leitura para extrair destas páginas boas reflexões, percebendo a lição
maior que a vida e a morte nos trazem: o Amor é mais forte que a morte!
Aproveito este prólogo para te apresentar minha filha. Neste vídeo abaixo ela,
apesar dela já estar bem debilitada pela doença, esbanja bom humor e alto astral. É
assim que ela gostaria de ser lembrada. Bem-vindos à nossa história...

https://www.youtube.com/watch?v=gJoqyDcD2_s
Eterna Túlasi

APRESENTAÇÃO

Este livro conta a história de uma parte importante e a mais difícil da minha
vida: a luta contra o câncer que acometeu minha filha Túlasi, aos 28 anos, seu
tratamento e partida. A doença, a despeito de tê-la levado à morte, não nos venceu e
este livro é a prova viva de que ela será eterna em nossos corações.
Antes de falecer, uma profissional que a acompanhava solicitou-nos
autorização para utilizar os dados de seu caso clínico para um trabalho científico.
Túlasi ficou muito feliz com a possibilidade e disse que isso traria certo sentido para
todo aquele sofrimento: ajudar outras pessoas que passassem por situação similar.
Dias depois, redigindo seu testamento vital, ela me disse, timidamente: “Mãe,
quando tudo isso acabar e você tiver cabeça, escreve a história toda? Quero que fique
registrado, pode ser que ajude alguém...”.
Bem, aqui está: eu tive uma filha, devolvi-a para a Luz, plantei uma árvore com
suas cinzas e escrevi seu livro. Para além de apenas cumprir uma promessa e meu
papel de mãe, esta experiência teve um lado bom: foi com ela que descobri, de fato,
a dimensão do que é AMOR ETERNO E INCONDICIONAL que hoje sinto por
todas as pessoas que amo. E estaremos para sempre juntas. Como ela me disse antes
de partir...
Eterna Túlasi

À GUISA DE PREFÁCIO

“Querida Tutty:
Quando nos conhecemos você estava já gravemente doente. Desde sempre me
impressionou a força da natureza que emanava de ti, a enorme vontade de fazer
coisas, de realizar os sonhos, os desejos, teus valores fortes, os princípios b em
marcados. Tudo isso envolto em um corpo frágil, numa voz vacilante, com um olhar
penetrante e sincero como poucos.
Você sabia tudo sobre o que vivia naquele momento, tinha um agudo senso de
realidade – quase chocante – de todos os aspectos da tua doença, das tuas
possibilidades e escolhas, da tua influência sobre toda e qualquer decisão a tomar.
Era muita energia que tu transmitias. Tanta vitalidade, como podia? Eras quase um
paradoxo vivo ali na minha frente.
Devo confessar que todas as vezes que estive contigo (poucas, infelizmente) saí
me perguntando o que estava acontecendo ali. Como era possível encarar a morte
daquela forma, com aquela tranquilidade, lucidez e energia? Em tempos de Star
Wars, você me parecia dotada da força jedi ainda não totalmente desenvolvida,
precisando ser lapidada; mas tudo ali, latente, potente, pulsando. Faltou tempo para
encontrar seu Yoda e seguir com tua busca pelo conhecimento e amadurecimento.
Mais de uma vez, nas nossas conversas sobre tuas escolhas, me sentia um tanto
desconcertada. Você pensava em tudo com muita lucidez.
Sabia como queria que fosse naquele momento: pediu e ganhou uma
cachorrinha, se divorciou menos de dois meses antes de morrer, se mudou de casa e
pintou o cabelo de vermelho. Deu pitacos em seu tratamento e exames, deixava claro
até onde queria tratamento, como queria ser tratada e como queria lidar com o
tratamento paliativo. Tinha também todos os planos para depois da tua partida: cada
detalhe, cada ritual (sempre ateu, pelo amor de Deus!), o que fazer com tuas coisas,
onde queria que tuas cinzas fossem dispostas pelo mundo e outros detalhes.
Era um sem fim de face-to-face com a morte que me deixava sem chão. Eu sentia
que estava despreparada para viver uma situação como aquela na minha vida. E
ainda sinto...
É muito difícil falar disso tudo sem mencionar o que me levou até você: a Elisa,
tua mãezona. Se você me surpreendia, não faz ideia do que sua mãe me provocava
Eterna Túlasi

e provoca ainda hoje. Também sou mãe, como você sabe, e a simples ideia de ter que
lidar com a morte da minha filha ou filho me paralisa. Elisa sentia tudo, estava
despedaçada, dilacerada, mas nunca, em nenhum momento, deixou a dor dela tomar
conta da situação.
Era uma onça, exigindo tudo que fosse o melhor pra você; e o melhor pra você,
ela sabia, era que teus desejos e vontades fossem respeitados, que você fosse tratada
como ser humano consciente e capaz de tomar decisões sobre sua própria vida. E ela
levou tudo isso às últimas consequências. Também quando exigiu que um hospital
que tem o subtítulo de Cuidados Paliativos realmente se comportasse assim.
Para isso, leu as recomendações internacionais sobre o tema, leu todo o guia
do INCA sobre o que se podia esperar desse tipo de tratamento. Levou o tema e as
formas à direção e, com toda a certeza, beneficiou muitos pacientes que estavam lá
naquele momento e outros e outras que vieram depois.
Era também mãe amorosíssima, cuidadora, conduzindo discussões complexas
com você, sem nunca te vitimizar, sem te tratar como uma doente ou incapaz. O
respeito que ela teve (e que mantém) acerca dos teus desejos é quase uma obsessão.
E entre uma internação e outra, ela vai a Brasília e defende sua tese de doutorado.
Definitivamente, vocês são jedi.
Confesso que achei que ela iria desmoronar em algum momento depois que
você partisse. Pensei em depressão, negação ou coisa do gênero. Qual nada; aí ela
me surpreende mais ainda. Nunca negou a dor, nunca se eximiu de senti-la, mas
também nunca se permitiu paralisar, nem se desesperar. Voltou ao trabalho, arrumou
outro (pasme, ela passou num concurso!), isso depois de cumprir os rituais previstos
por você. Em um deles participei e foi uma das maiores demonstrações de amor que
vi nos últimos tempos. Uma festa linda, no lugar que foi seu, uma floresta, uma
árvore, caveiras coloridas por todo o lado, brinde com tequila, gente amada,
emocionada, alegre por ter partilhado a existência contigo. Tenho esperança que um
dia você possa ter acesso a essas imagens. Tem TV a cabo por aí?
Aliás, nós mantivemos um grupo incrível virtual; pessoas solidárias, queridas,
que continuam trocando experiências, carinhos, empatia, dores e amores. Não
conheço quase ninguém pessoalmente, mas é como se conhecesse. Tua energia e o
amor da Elisa nos mantém ligados por fios invisíveis, mas bem tangíveis.
Eterna Túlasi

Elisa me surpreende de maneiras diversas; por exemplo, quando me disse que


estava escrevendo um livro sobre toda essa experiência vivida contigo. Me disse há
um mês e pouco, e já está quase completo, já tem editora, capa e sei lá mais quê.
Leitores e leitoras também...
O que a move é te manter por perto, num calorzinho gostoso, misto de saudade
com presença. Mas sem sofrimentos desnecessários; tem um amor ali que faz com
que tudo se torne poesia. Não que ela não sofra; sofre sim, que eu sei e ela não faz
questão alguma de esconder das amigas. Quando o nó aperta ela grita. E todas
estamos ali, para aparar, abraçar, acolher e, se preciso, chorar junto.
Vocês duas são feitas de uma matéria ainda um tanto desconhecida pra mim.
Mesmo com ajuda da espiritualidade, confesso que tenho dificuldade de me pensar
nesse lugar. Por outro lado, aprendi muito, reflito muito sobre a ressignificação da
morte, da doença, da perda, da vida sem a filha, da morte sem a mãe. Temo não
saber brincar disso, mas espero ter aprendido o suficiente para lidar melhor com essas
questões na vida.
Respeito, amor, partida, gratidão, mandalas, sonhos, a força dos desejos, as
afinidades, a família “moderna e esquisita”, a energia pulsante. Tudo isso e muitas
outras coisas, você e Elisa têm para ensinar. Espero ter absorvido a melhor parte de
vocês. Continuo por perto dela e sentindo você, como qualquer ser que fique perto
da Elisa. Noutro dia lembrei da tua maneira brincante de pintar mandalas e outros
desenhos, e de convidar tuas visitantes a pintar junto.
Essa tua capacidade de cativar e levar a gente junto ainda vai ter que ser
estudada. Por enquanto, me sinto só privilegiada por ter tido a oportunidade de te
conhecer e à Elisa; de ter partilhado esse momento tão doloroso e rico a um só tempo.
Tenho certeza que nos encontraremos de novo, em outra dimensão, outro
espaço e tempo. Fique bem. Um beijo enorme”.

Shirley Villela
Mãe, mulher, formada em letras e
coordenadora de um projeto de geração de renda para mulheres
na Redes de Desenvolvimento da Maré - RJ
Eterna Túlasi

NOTA

Aqui estão minhas recordações e interpretações pessoais dos fatos. Tive a colaboração de vários
amigos, familiares e profissionais que ajudaram com informações ou escritos pessoais*. Aliás,
sem eles eu sequer estaria de pé. Quem já acompanhou a doença grave de um ente querido
sabe que as informações ficam confusas e os fatos, muitas vezes, se embaralham. Não assumo,
portanto, o compromisso de um relato histórico rigoroso, muito menos científico, dos
acontecimentos. Tampouco pretendi criar um guia sobre “como fazer”, pois cada um vivencia
esse processo da melhor forma ao seu alcance. Decidi escrever pois talvez o relato colabore com
reflexões acerca do tema e auxilie outras pessoas que passam pelo mesmo que passamos.
Tampouco trata-se de um trabalho acadêmico profissional: escrevo apenas como mãe e não
como a psicóloga que sou. Algumas informações foram omitidas. Ou por não as considerar
relevantes, ou por terem me fugido à lembrança. Outros dados foram alterados, de forma a
preservar as pessoas envolvidas. Esperamos que, além de um mero relato de uma doença
trágica, este livro possa levar as pessoas a resignificarem seus conceitos sobre vida, morte,
cuidados paliativos, amor, vínculos e finitude. Boa leitura e reflexões...

* Este livro foi elaborado artesanalmente, sem revisores, diagramadores ou


copydesks. Erros podem ser encontrados, pelo que me desculpo. Mas a ideia
principal foi manter o fluxo e a escrita original, livres de qualquer tipo de
interferência, como em um diário pessoal.
Eterna Túlasi

TÚLASI

Túlasi é o nome de uma flor muito popular na Índia. Uma planta sagrada e
curativa. Quando eu estava grávida de minha filha, morava em um sítio no interior
de Minas Gerais e sempre fui muito ligada à natureza. Estava lendo o Bhagavad Gita
(livro sagrado do hinduísmo), pois na época eu praticava yoga e meditação, e
encontrei a menção a esta planta. Fiquei curiosa e resolvi pesquisar mais. Encontrei
uma lenda que dizia que existia uma mulher muito bondosa e devota de Krishna
(divindade máxima desta religião) havia chegado à velhice e temia a inevitável morte,
pois isso a impediria de continuar ajudando as pessoas e praticar o bem. Krishna,
comovido com a dedicação dela, prometeu transformá-la numa planta muito especial
que seria espalhada por toda a Índia e que enfeitaria os jardins sagrados de seu
palácio. Ela ficou muito feliz e quando morreu, seu corpo, após ser cremado (como
é um antigo costume hindu) mesclou-se à terra, dando origem a uma delicada flor
lilás de nome Túlasi. A planta é utilizada na confecção de incensos, artesanato, na
culinária e para chás e medicamentos. É a correspondente ao nosso Basilicum
(manjericão) – planta conhecida por suas propriedades medicinais.
Escolhi o nome pela sua sonoridade. Queria algo diferente, mas simples. Ela
adorava se chamar assim. Mas ninguém previu que um dia a vida fosse imitar a
lenda...
Eterna Túlasi

Túlasi nasceu no dia 5 de novembro de 1985, passado o tempo previsto para o


parto, parecia que não queria deixar minha barriga. Desde o momento em que
nasceu, chorava se a afastavam de mim. Não houve jeito de não viver no colo e
dormir no colo... Mamou até os dois anos e sempre foi um grude comigo. Era uma
bebê linda e eu adorava enfeitá-la de lacinhos e vestidos rodados. O apelido “Tutty”,
cheio de carinho, acompanhou-a por toda a vida.
Mas não cresceu manhosa. Gostava de ir para a escola e tinha amigos, mas
quando estava comigo era sempre segurando minha mão e sendo muito carinhosa.
Tanto que um dia, já adulta, agarrada à minha cintura e me beijando o rosto
enquanto descíamos uma escada rolante, atraiu o olhar preconceituoso dos passantes
que, por certo, acharam que éramos namoradas. Rimos muito da situação. Mesmo
depois de casada, sempre que eu a visitava, deixava o marido na cama de casal e
vinha dormir comigo.
Passou a vida dizendo a todos que eu era sua melhor amiga. Depois do advento
da internet, nos falávamos umas três vezes por dia. Antes, as contas de telefone eram
astronômicas, pois num certo momento passamos a viver em cidades diferentes.
Depois que ela tornou-se adulta, virou também minha confidente. E mais tarde,
companheira de trabalho. Havia um seriado americano chamado “Gilmore Girls”
que dizíamos ter sido baseado em nós. Era a história de uma jovem mãe e sua filha
universitária que eram muito unidas. O refrão da música de abertura virou nosso
chavão de uma para outra quando queríamos reafirmar nossa cumplicidade:

Loving you the way I do


I know we're gonna make it through
And I will go
to the ends of the earth,
'cause darling, to me that's what you're worth
Where You Lead
I will follow
Anywhere that you tell me to
If you need, you need me to be with you
I will follow
Where you lead
If you're out on the road
Feelin' lonely and so cold
All you have to do is call my name
And I'll be there
On the next train
Eterna Túlasi

E assim foi, durante seus 29 anos de vida. E de certa forma, continuará sendo.
A presença da Túlasi é uma constante em minha vida e meu amor, jamais se
acabará...
Na adolescência, ela me escreveu uma carta que dizia que ficar longe de mim
era a pior das sensações e que ela não queria nem pensar que um dia teria que perder
a pessoa que mais amava (referindo-se à minha possível morte). Hoje em dia esta
lembrança me faz questionar se foi mais fácil para ela ter ido antes de mim e não ter
que me ver partir. Como uma jovem romântica e amante de poesia, ela escreveu que
seu amor por mim era “maior que a soma das estrelas, multiplicada pelo número de
pessoas do mundo e elevado à potência dos oceanos”. Exageradamente, como era
de seu feitio, disse que “o número das batidas de seu coração era apenas um milésimo
do amor que sentia por mim”. E ainda declarou que eu era “a mulher mais feliz do
mundo, pois nem todos os amores da terra, somados, chegariam aos pés do que sente
por mim”. Terminou falando que sou “a mãe mais sortuda de todas, por ser a mais
amada do universo”.
Superlativos à parte, ela tinha razão. Até hoje sinto-me amada e extremamente
sortuda por ser (pois sempre serei) a sua mãe, tanto quanto de meus outros filhos.
Que um dia, em breve, possamos estar juntas novamente.
Eterna Túlasi

SOBRE A MORTE E O MORRER

A morte é um dos maiores tabus de nossa sociedade. Paradoxalmente, ela é a


ÚNICA CERTEZA humana. Nenhum de nós sabe se será pobre ou rico, gordo ou
magro, se casará ou não, nem que profissão exercerá, muito menos, quanto tempo
de vida terá. Entretanto, recusamo-nos infantilmente a tratar de tal tema. Agimos
como se não falar da morte pudesse evitá-la. Somos tomados de surpresa quando
alguém nos dá a notícia de um falecimento, como se não fossemos, todos, morrer
um dia. A falta de familiaridade com o assunto torna-o um tabu temido e
desconhecido. Desta forma, não nos preparamos emocional e psicologicamente para
lidar com ela, o que faz com que, na grande maioria das vezes, nos vejamos arrasados
por seus efeitos.
Conforme nos permitimos discutir, pensar, refletir e opinar sobre o tema,
apropriando-nos do assunto, podemos preparar-nos melhor para seu advento.
A morte de um filho, então, costuma ser o maior pesadelo da maioria das
pessoas. Alguns se referem à isso como “a dor inominável”. De fato, não há palavras
suficientes ou adequadas para definir o que uma perda assim provoca em nossas
vidas. Aos que perdem cônjuges, chamam-nos de viúvos e aos que perdem pais,
órfãos. Mas não há palavra que designe os pais que perderam seus filhos.
Demorei um pouco para entender o motivo, até que a pergunta de um motorista
de táxi me trouxe a resposta. Eu tive, tenho e sempre terei quatro filhos. Um deles
morreu, o que não faz com que eu tenha deixado de ser sua mãe, nem ela, minha
filha. Os vínculos de amor dão-se pelo que as pessoas nos causam e essa causação é
eterna: a cada lembrança dela, a cada saudade, ela faz-se presente em minha
subjetividade, em meu coração, em minha vida. O filho morre, mas o amor não. Por
isso, sempre me refiro a ela assim: Eterna Túlasi.
Muitos dizem que perder um filho vai contra a ordem natural das coisas e que
nós é que deveríamos morrer primeiro. De fato, parece inaceitável que o processo se
dê de forma inversa e quando isso ocorre, percebemos que eles nunca, jamais,
morrem antes de nós. Nos acompanharão ao túmulo pois habitarão, para sempre,
nossos corações e almas. Assim, minha atual resposta aos que me perguntam como
é perder um filho é: um filho não se perde, eles rebrotam dentro de nós.
Eterna Túlasi

Espero que ao tratar deste assunto, possamos “tirá-lo de dentro do armário”,


colocá-lo no meio da sala e lançar uma luz sobre ele. Quando desmistificamos um
temor, ele perde força. Com isso, o medo e o terror diminuem, permitindo que para
além das dores, possamos experimentar outras emoções e experiências que
acompanham o morrer de um ente querido.
A morte de minha filha me fez resignificar a vida, fazendo com que eu vivesse
mais intensamente, deixando coisas pequenas de lado e aproveitando melhor o
tempo que me resta. Hoje, já não temo falar da morte, pois aprendi a conviver com
ela. Não temo a minha própria, pois tornou-se tema já conhecido. Estar certa da
finitude nos faz mais conscientes de que somos, todos, “pacientes terminais”. Uns
com mais tempo que outros, mas como dizia Túlasi: “Estamos todos à beira da
morte, é só uma questão de quem irá primeiro”.
Quando a vi ter que abrir mão de viajar ou ir à praia, percebi quanta coisa deixei
de fazer por me prender a esta enganosa sensação de ter todo o tempo do mundo.
Não temos. Temos o agora, quiçá o hoje e é ele que devemos viver. Mas esta
percepção não me levou a um patamar hedonista e individualista. Pelo contrário,
hoje desejo, cada vez mais, ajudar os demais e ser útil (pois essa é uma das melhores
sensações da vida). Me desapeguei, ainda mais, das coisas materiais, afinal, ela não
pôde levar nada consigo quando se foi. Passei a evitar sofrimentos desnecessários e
situações que não me fizessem sentir bem. A vida já encarrega-se de apresentar-nos
situações desagradáveis das quais não podemos fugir. Eleger vivê-las é um grande
desperdício de energia.
Para aqueles que hoje vivem essa dura realidade, saibam: vale a pena estar junto
até o fim. Melhor estar ao lado deles do que omitir-se. Melhor organizar um enterro
do que chorar a sós em algum outro lugar. Se parir é dar a vida, hoje ouso dizer que
acompanhar a morte é dar a verdadeira luz, pois devolvemos nossos filhos à natureza
e à Criação. Uma força inexplicável surge nestes momentos, fazendo com que
sejamos capazes de coisas inimagináveis, como redigir um testamento em conjunto
ou decidir como será um velório. O que à primeira vista pode parecer mórbido,
adquire outra dimensão se pensarmos que sem nós eles morreriam com essas
angústias ou pior, teriam que providenciar tudo sozinhos, graças à nossa omissão.
Quem “perde” um filho passa por uma das maiores dores já imaginadas por
um ser humano. Resta-nos sucumbir à ela ou percebermos que após uma perda
Eterna Túlasi

assim, pouco há o que temer na vida. Fazer, das recordações e lembranças, matéria
prima para manter nossos filhos vivos dentro de nós. Aguar o amor, adubar o que
restou, honrar a memória e cuidar de si, pois somos, ainda, uma parte deles. Assim
como eles sempre serão parte de nós...
No fim, quando a poeira abaixa e a dor cede, ficam as recordações únicas e
belas de momentos inesquecíveis que dependem de nós para terem nuances de
alegria, solidariedade, cumplicidade, companheirismo e amor. Valeu a pena. Cada
segundo. Faria tudo de novo. Mas acreditei, firmemente, que não teria forças para
tanto. Porém, o amor é a maior de todas as forças!

Uma das mandalas pintadas por Túlasi


Eterna Túlasi

O PIOR DIA DE MINHA VIDA

Quem já acompanhou um paciente com câncer sabe da sensação de incerteza


que toma conta de nós cada vez que afirmamos que “este foi o pior dia da minha
vida”, no fundo, sabemos que sempre poderá vir (e geralmente vem) um pior do que
aquele...
Era maio de 2014 e Túlasi estava com 28 anos, cursando o último semestre da
faculdade de Direito. Acabara de passar na OAB, morava no Rio de Janeiro e estava
casada há alguns anos, mas nunca planejou ter filhos. Nos falávamos, diariamente,
por mensagens telefônicas, já que morávamos em cidades diferentes.
Numa tarde recebi uma mensagem dela, no celular, dizendo: “Mãe, tá
ocupada?” Eu estava no intervalo de atendimento entre dois pacientes, em meu
consultório em Brasília, onde há alguns anos exerço a Psicologia. Decidi ligar direto
ao invés de responder. Sua voz meiga me perguntou se estava tudo bem e se eu tinha
muito trabalho naquela tarde. Respondi que estava tudo tranquilo. Ela me disse que
fora ao laboratório buscar os resultados dos exames (há meses sentia cólicas e tinha
um sangramento persistente, pensávamos que talvez tivesse que tomar antibióticos
por alguma infecção ou que se tratasse de uma endometriose). Ela respirou fundo e
disse: “Mãe, não há uma forma boa de eu te dizer isso... eu estou com câncer”.
Uma sensação de anestesia e paralisia tomou conta de mim. Senti o chão sumir
sob os meus pés: estava em estado de choque! Nada no mundo me preparou para
aquilo e as palavras desapareceram de minha mente, não sabia o que fazer. Mas em
poucos segundo encarnei a mãe tranquilizadora e respondi automaticamente:
“Calma, filha, hoje em dia a medicina está muito avançada nestas questões, há
muitos tratamentos disponíveis e eu vou te ajudar...”. Falava isso mecanicamente,
como que cumprindo um protocolo, enquanto minha cabeça dava voltas, sentia que
meu peito ia explodir e uma sensação de profunda angústia ia tomando conta de
mim. A despeito de minha voz calma e tranquilizadora, no fundo eu só queria gritar:
NÃO, COM A MINHA FILHA NÃO!!!
Para minha surpresa, ela que sempre foi dengosa e um pouco ansiosa,
respondeu calmamente: “Sim, eu sei, não estou em pânico, só queria que você
soubesse...”. Creio que representava o mesmo papel que eu: inabalável por fora, mas
em desespero por dentro...
Eterna Túlasi

Respondi que estava indo pro Rio encontrá-la, mas ela recusou. Ignorei, pois
ela sempre evitava atrapalhar meu trabalho e enquanto falava ao telefone, fui
pegando minha bolsa para sair. Por sorte o paciente seguinte havia faltado e aquela
era a última consulta. Fui pra casa, desolada. Comprei uma passagem aérea pela
internet, avisei a universidade onde eu fazia doutorado e arrumei as malas. Tive uma
crise de choro convulsiva. Minha mãe falecera em decorrência desta mesma doença
(câncer de colo de útero) quando eu tinha apenas 14 anos. Não acreditava que viveria
todo aquele pesadelo outra vez. Não com a minha filha!
E foi assim que vivi o primeiro de uma série de “piores dias da minha vida”.
Mas eu tinha ser forte, ela precisava ter onde se segurar e eu sempre fui um Norte nas
situações difíceis pelas quais passou. Depois que tudo passasse, eu desabaria, mas
agora não, minha filha precisava de mim...

Túlasi e eu saindo do aeroporto, a caminho do médico.


Eterna Túlasi

O INÍCIO DE UMA DURA BATALHA

Cheguei ao Rio e a acompanhei à consulta com o oncologista. Tentei parecer


calma e equilibrada, pois queria que ela se sentisse segura e protegida. Eu tiraria
forças nem sei de onde, mas cuidaria dela.
Fomos a um médico particular, conceituadíssimo. Imaginamos que ele diria
tratar-se de uma lesão mínima, que talvez pudesse ser removida no próprio
consultório. Essas histórias bem sucedidas que vemos na TV. Mas não foi o que ele
disse. Explicou que seu caso era grave e necessitava de um tratamento sério e de
longa duração. Ficamos mudas. Ela tremia e segurava firme minha mão, mas
manteve a calma diante dele. Eu buscava mentalmente uma forma de não
enlouquecer ali mesmo. Foi então que ele nos explicou que, devido ao estado
avançado da doença, o local mais adequado para que ela recebesse tratamento era o
INCA (Instituto Nacional do Câncer) e que faria um encaminhamento. Fiquei ainda
mais horrorizada: minha filha teria que se tratar no SUS? Fantasias de fila de espera
e instalações sucateadas passaram por minha mente. Tínhamos plano de saúde e a
possibilidade de pagar um bom tratamento particular. Mas ele nos assegurou que a
melhor tecnologia e os melhores profissionais estavam lá. Medicou-a para que ela
pudesse aguardar até a primeira consulta e saímos duplamente desanimadas.
Choramos, mudas, no percurso até sua casa e ela segurava firme a minha mão, em
silêncio.
Conseguimos vaga para o tratamento, com facilidade (e hoje sabemos que isso
foi quase um milagre, afinal, o INCA é mesmo a maior referência nacional nesta área
e milhares de pessoas aguardam a chance de fazer o tratamento ali). Talvez sua pouca
idade e o estágio da doença tenham favorecido um atendimento mais rápido.
O INCA possui cinco unidades de atendimento e pesquisa no Rio de Janeiro e
cada um deles é designado por seu número (INCA 1, 2, 3, 4, 5 ou ainda, como HC
– Hospital de Clínicas 1, 2, 3 etc., pois este era o antigo nome da instituição). Na sede
(Inca 1), encontra-se a clínica médica oncológica para diversos tipos de câncer. É lá
que se localiza um dos melhores e maiores serviços de radioterapia do país e também
abriga a unidade 5, o centro de tratamento e transplante de medula óssea. Já no
INCA 2, estão os casos de câncer uro-ginecológico e de tecido ósseo conectivo. A
unidade 3 dedica-se exclusivamente ao tratamento do câncer de mama e o 4 oferece,
Eterna Túlasi

exclusivamente, cuidados paliativos para pacientes em estado terminal, já sem


possibilidades de cura.
Em julho ela fez sua primeira consulta com o oncologista do INCA 2, que
explicou sobre o estadiamento do câncer (grau de evolução e complicação) que vai
de 1 a 4 (subdivididos em A e B). Segundo ele, o caso dela, infelizmente, era do tipo
3B (dois níveis antes do estado terminal). Novamente não sabíamos o que dizer... o
chão parecia se abrir, novamente, abaixo de nós!
O plano era realizar 21 sessões diárias de radioterapia, 7 de quimioterapia
(estas, semanais) e 3 de braquiterapia – aplicações direcionadas de uma carga maior
de radiação - ao final dos dois primeiros procedimentos. A despeito da gravidade do
quadro, os médicos estavam otimistas: ela era jovem e tinha ótima saúde. Tentariam
tudo que fosse possível para minimizar a lesão, mas não cogitaram cirurgia, pois nos
informaram que a doença já havia se disseminado para outros órgãos, como bexiga
e reto. A despeito do impacto, ela concordou com tudo e todo o tratamento foi
agendado. Tentamos ser otimistas e corajosas.
A partir daí, nos preocupamos em como auxiliar o tratamento a surtir efeito.
Fomos ao supermercado comprar tudo de mais saudável que existisse. Baixamos
artigos e compramos livros sobre o tema. A despeito das péssimas notícias, decidimos
enfrentar tudo com coragem e determinação. Começava uma cruzada otimista e bem
disposta contra a doença! Neste dia, a trilha sonora no carro foi “Titanium” de David
Guetta...
DAVID GUETTA - TITANIUM
A Alma das Krüger...
https://www.youtube.com/watch?v=JRfuAukYTKg

As primeiras sessões de radioterapia transcorreram sem problemas. O único


efeito colateral perceptível era muita sede e uma fraqueza geral.
Durante este período vivi na ponte aérea: me dividia entre o Rio e Brasília e
tinha sempre uma mala pronta. Eu ministrava aulas na universidade, como parte de
meu doutorado, ajudava a coordenar um grande grupo de pesquisa e ainda atendia
em meu consultório. Minha renda se resumia à bolsa de estudos que eu recebia e aos
rendimentos da clínica (que não existiam caso eu não estivesse lá para atender meus
pacientes). Foi um período de grande contenção financeira e eu jamais teria
Eterna Túlasi

imaginado que estes imprevistos esperavam por mim quando planejei ampliar meu
currículo profissional. Não sabia o que era mais difícil, estar lá ou aqui. Longe, sofria
por não saber tudo o que estava acontecendo, mas também era uma oportunidade
para respirar e refazer as forças. Lá, me sentia segura por acompanhar tudo e poder
cuidar dela pessoalmente, mas a angústia era diária.
A rotina hospitalar e da doença foram se tornando perversamente difíceis de
vivenciar, mas ficar longe se tornara impossível. Mas no ano seguinte, acabei indo
para o Rio em definitivo, com minhas economias e uma reserva de força que nem sei
de onde tirei.
A quimioterapia começou e os efeitos colaterais foram mínimos: nada de queda
de cabelo, vômitos ou desmaios. Poucos meses antes ela havia cortado o cabelo e
doado para fazer peruca para outras pacientes com câncer. Chegou a comprar lenços
e brincos para quando ficasse careca, mas isso nunca aconteceu. Apenas muito enjoo
e fraqueza geral. Estávamos otimistas quanto ao sucesso de nossa cruzada!
Descobrimos uma linha de curativos com figuras de princesas e outros personagens
de desenhos animado: ela adorou e dizia que eles inspirariam cada veia sua. Minha
filha sempre foi um misto de uma mocinha doce com uma grande guerreira...

Quando eu ainda estava em Brasília, fotografava meu prato de comida e


enviava para ela. Ela fazia o mesmo. Resolvi seguir a mesma dieta, como forma de
motivação. Trocamos muitas receitas naturais e o espírito era de muita determinação
e bom ânimo.
Durante a Copa do Mundo (em julho de 2014) ela veio à Brasília: queria sair
do ambiente onde tudo remetia à doença. Decoramos o apartamento, compramos
pipoca e cerveja sem álcool. Enfeites e buzina. Só depois nos demos conta que
nenhuma das duas gostava de futebol... Mas o que importava era a farra. E como foi
Eterna Túlasi

bom! Passeamos pela cidade, tiramos fotos, dormíamos até tarde e eu preparava
“comidinhas de mamãe” para ela. Ela conseguiu descansar e se preparar para dar
continuidade ao tratamento.

Em poucas semanas havíamos baixado dezenas de artigos científicos sobre o


tema, comprado livros e assistido palestras e vídeos na internet. Os termos “quimio,
estadiamento e biópsia” passaram a fazer parte de nosso vocabulário. Mais tarde, os
mais temidos, como “metástase, morfina e estágio terminal” também foram
agregados. Em minha agenda, diversos hemogramas e consultas marcados. Me
inscrevi em fóruns e comunidades da internet, em busca de informação e tempos
depois, baixei também os manuais do próprio INCA, que orientavam os protocolos
de combate ao câncer. Certa vez ela postou, na rede social, uma foto minha, lendo
um manual internacional, com a legenda: “Para cuidar de mim a minha mãe não faz
chazinho, ela lê tratados de oncologia! ” E ela não ficava atrás, devorava tudo sobre
o assunto, até que começou a piorar, e aí o excesso de informações passou a deixa-la
ansiosa e tensa. Pedia que eu lesse e caso tivesse dúvidas, perguntaria para mim.
Quando eu estava no Rio, com ela, nosso passatempo era jogar vídeo game. Os
passeios de moto (ela era motociclista e adorava viajar pilotando) já não eram viáveis
e qualquer atividade física maior a exauria. Jogamos um jogo chamado “Diablo” (o
Eterna Túlasi

que uma mãe não aprende para alegrar uma filha!) e dizíamos que os inimigos e fases
do jogo eram nossa batalha contra o câncer.
E foi nestes dias de busca de informações que surgiu uma das críticas que tenho
aos sites e blogs que falam sobre o tratamento do câncer: neles, borbulham histórias
de sucesso e recuperação e quase não há nada para pessoas em estado mais grave. E
a linguagem é sempre evocando “coragem, otimismo e alegria” (que sem dúvida
auxiliam na postura de combate à doença) fazendo com que, muitas vezes, aqueles
que não obtiveram sucesso no tratamento sintam como se a culpa fosse sua.
A despeito de hoje em dia o câncer apresentar um bom potencial de cura, não
se pode ignorar que é uma doença grave com possibilidades de evolução ruim. Esta
força e alegria nunca nos faltaram, mas foi em vão no quesito cura. Serviu, sim, para
termos uma boa qualidade de vida. Mas atrelar o sucesso do tratamento ao estado
emocional, pode tornar-se algo bastante ruim em casos de fracasso. Os pacientes
terminais sentem-se excluídos, ignorados e fracos. E minha filha, ao final da vida,
chegou a perguntar à psicóloga se não havia sido forte o suficiente... Fora isso,
ficamos sem saber como proceder quando a situação se agrava, faltam informações,
dicas e sugestões. É como se além de nos sentirmos à margem da vida por ter câncer,
fôssemos duplamente estigmatizados por sermos pacientes terminais... E eis aqui um
fenômeno interessante: quem acompanha de perto alguém com doença grave, passa
a falar no plural. Nos tornamos pacientes também, nos internamos também, pois a
doença nos afeta também.
O “pior dia de minha vida” repetiu-se diversas vezes, com acontecimentos cada
vez mais densos sucedendo-se e roubando do anterior, o título de pior dia. Mas ao
final desta coletânea de dias ruins, fazendo uma retrospectiva, percebi que foram,
também, nossos melhores dias. As maiores trocas afetivas, o maior companheirismo,
as maiores lições. Hoje essas lembranças já não me são tão dolorosas, antes,
tornaram-se uma história densa, mas da qual valeu a pena participar. Valeu a pena
falarmos da perspectiva da morte, para que pudéssemos viver mais intensamente os
dias subsequentes. Ignorá-la não traz paz, ao contrário, deixa a angústia presa no
peito como um inimigo sempre à espreita. Como diz uma famosa oncologista: “A
morte é um dia que vale a pena viver. ”.
Assim, a primeira parte de seu tratamento terminou em novembro de 2014,
devido a alguns problemas com equipamentos, feriados e remarcações. Mas desde a
Eterna Túlasi

segunda semana ela já apresentava grande melhora do quadro geral. O sangramento


cessara e as cólicas haviam desaparecido. Bastava agora esperar os exames que
diriam o quanto a doença havia regredido. Os faríamos em março. Sabíamos que a
cura completa era quase impossível com apenas aquelas sessões, mas sua melhora
nos animava a encarar uma nova temporada de tratamento, caso fosse necessário.

Estávamos muito felizes. Passamos o Natal e o Ano Novo juntas: fomos para
Cabo Frio visitar seus irmãos. Nos divertimos, passeamos, fomos à praia e tiramos
fotos. Na virada do ano chegamos a fazer um brinde nos despedindo do câncer.
Aquele havia sido o pior ano de nossas vidas! Porém, mal sabíamos o que 2015 nos
reservava...
Eterna Túlasi

Na primeira foto, Túlasi e minha outra filha, Morgana com o filho (meu neto Gustavo, afilhado da
Tutty) num almoço inesquecível. Embaixo, eu e elas duas na praia de Arraial do Cabo.
Eterna Túlasi

UMA ESTRELA QUE NASCEU PARA BRILHAR

Dois meses antes do diagnóstico, Túlasi havia prestado a prova para a OAB.
Só eu sabia, pois ela não queria ser alvo de pressão. Mas passou de primeira e obteve
uma grande pontuação. Comemorou com Tequila, sua bebida favorita, que nunca
mais pode tomar depois que iniciou o tratamento. Este esforço para estudar para a
prova e para a elaboração de sua monografia foram responsáveis por ela ter deixado
um pouco de lado os sintomas que já vinham incomodando-a a algum tempo.

Faltava terminar a faculdade e em agosto de 2014, já em meio à quimioterapia,


veio sua formatura. Reservei uma cadeira de rodas em segredo. Mas ao saber, ela
franziu a testa e disse: “Era só o que me faltava... vou com meus próprios pés, nem
que seja me arrastando! ” Tínhamos um jargão: nosso sobrenome possui origem
alemã (Krüger) e remete à palavra “guerreiro” (krug). Nas ocasiões em que nos
sentíamos desafiadas ou desanimadas, brincávamos uma com a outra: “Ora, afinal
somos as Krüger! ” Mas seus professores lhe reservaram uma surpresa especial:
conhecendo seu estado, ao se aproximar da banca para receber o diploma, todos se
levantaram e inclinaram-se, fazendo uma reverência a ela. O auditório a aplaudiu de
pé por quase dois minutos... Foi uma das maiores emoções de sua vida!
Eterna Túlasi

Túlasi havia estudado informática, anteriormente, mas acabou abandonando o


curso: trocou por Direito, área de sua avó e minha, em certa medida – sou psicóloga
forense e trabalho com criminologia. Estudar foi um sacrifício, morava na Ilha do
Governador, no Rio, fazia estágio no Centro e sua faculdade era na Tijuca. Não
sobrava tempo nem dinheiro para nada. Mas ela nunca desanimou e a sala de sua
casa tinha mais livros de Direito que muita biblioteca.
Eterna Túlasi

Coordeno, em parceria com o padrinho dela, um grande grupo de pesquisa na


universidade onde me tornei, depois, professora temporária. Trabalhamos com o
sistema prisional e com a temática de Direitos Humanos. O Grupo Personna teve,
desde sempre, a colaboração da Túlasi (extra oficialmente no início). Toda dúvida
jurídica era ela que sanava. Um certo dia me surpreendi com um e-mail formal dela,
dirigido “aos coordenadores do Personna” e que vinha acompanhado de toda a
documentação que exigimos de nossos integrantes, para o processo seletivo. Lhe
telefonei perguntando do que se tratava e ela me respondeu que queria ser avaliada
como qualquer outro candidato e não como filha e afilhada de seus fundadores.
Agora que estava formada, queria fazer parte do grupo oficialmente, tanto para nos
ajudar como por admirar e apoiar o trabalho que realizávamos. Aquilo me deixou
profundamente feliz. Além de filha e amiga, ela agora seria minha parceira de
trabalho.

Alguns momentos de trabalho em conjunto com ela

Algumas semanas depois, ela navegava por minha rede social e perguntou:
“Mãe, você é amiga da Maíra Fernandes ???” Respondi que sim, tínhamos contato
profissional à distância. Ela então me disse que seu sonho era conhecê-la
pessoalmente. Já assistira palestras e lera textos, mas não sabia como se aproximar.
Tratava-se de uma grande referência em nossa área: era presidente do Conselho
Eterna Túlasi

Penitenciário do Estado do Rio e uma reconhecida e brilhante defensora dos Direitos


Humanos. Enviei uma mensagem para Maíra perguntando se minha filha poderia
enviar um currículo. A resposta foi positiva e Túlasi se apresentou. Após uma
conversa entre ambas, ela recebeu a resposta que tanto ansiara, sem minha
interferência. E ela começou a trabalhar acompanhando processos de pessoas
carentes que não podiam pagar advogados, além de participar das reuniões do
Conselho junto com a Maíra.
Em outra ocasião, fui chamada para uma reunião do Conselho Penitenciário
do Rio, onde elas trabalhavam. Foi um dia inesquecível: sentar-me à mesma mesa
de trabalho que minha filha! Um orgulho imenso. Durante o almoço que se seguiu
ao evento, alguns advogados presentes, que ouviam nossos relatos de trabalho, mas
desconheciam nosso vínculo, disseram: “Puxa, vocês duas fazem uma parceria e
tanto, se conhecem há muito tempo? ” Rimos muito e respondemos que sim, desde
a maternidade! Todos comentaram sobre a maravilha que era sermos parceiras de
ideais.
Pouco tempo depois Maíra ficou grávida e não pôde mais exercer algumas
funções. Túlasi foi indicada para representar a OAB na Comissão de Direitos
Humanos e realizar inspeções em presídios de todo o Brasil. Ver pessoas humildes
serem maltratadas e terem seus direitos violados, era algo que ela não suportava. Era
um grande sonho realizado e ela estava muito, muito feliz. E eu, era o retrato do
mais puro orgulho.
Orgulho este que era mútuo: certa vez fui convidada a dar uma palestra na
universidade em que ela estudava (Universidade Veiga de Almeida) e notava que ela
também estava muito orgulhosa de apresentar a palestrante a todos, sempre
completando: “Ela é minha mãe”.
Mas para ela, ainda faltava candidatar-se ao Mecanismo Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura, órgão vinculado ao Comitê Nacional de Prevenção
e Combate à Tortura (que funciona na Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República) do qual faço parte. Seu maior sonho era, a partir disso,
chegar até a ONU. Eu consultei algumas pessoas em Brasília e no Rio e todos me
afirmaram que ela teria amplas condições de fazer uma carreira de grande sucesso.
Fizemos sua propositura quando ela já encontrava-se internada, mas sabíamos que
caso ela fosse selecionada, dificilmente teria condições de assumir. Chorou muito e
Eterna Túlasi

me disse que mães geralmente têm filhos para darem continuidade às suas obras, mas
que em nosso caso, ela teria que contar comigo para dar continuidade à sua. Foi
muito doloroso ouvir isso, mas ao mesmo tempo, essa frase ecoa em minha mente e
é o que me dá a força necessária para continuar, cada vez que penso em desistir.
Uma das inspeções em instituição de privação de liberdade que ela realizou,
transformou-se num relatório que foi publicado. No dia de seu lançamento, em
Brasília, ela já havia falecido. Era um evento do meu trabalho e foi profundamente
emocionante ver minha filha ser homenageada in memoriam pelo Conselho Federal
da OAB diante de meus colegas. Nisso ela também terá minha eterna admiração: ela
brilhava por sua luz própria e nunca andou à minha sombra. Assim, quando ela se
foi, senti que perdi não apenas a filha, mas uma grande amiga e maravilhosa
companheira de trabalho. Se tenho tido forças para continuar, certamente devo à ela,
que antes de partir exigiu que eu continuasse, tanto pelo trabalho, quanto por minha
saúde mental.
A música abaixo ela me enviou falando que representava seus sonhos
profissionais de encontrar pessoas que pensassem igual a ela. Se tornou uma música
muito ouvida no meu grupo de estudos algum tempo depois...

COLDPLAY - PARADISE
https://www.youtube.com/watch?v=1G4isv_Fylg
Eterna Túlasi

Acima, à esquerda, eu e Túlasi no Conselho Penitenciário do RJ. À direita,


nós duas em reunião com a amiga Maíra Fernandes e demais colegas de trabalho.
Abaixo, lembrança de um dos dias de estágio dela, na UPP do Morro do Boréu,
com a amiga Mariana Lopes, que se tornou minha colega de trabalho anos depois.
Eterna Túlasi

Túlasi realizando vistorias de Direitos Humanos nos presídios


Eterna Túlasi

E A LUTA SÓ ESTAVA COMEÇANDO...

O carnaval de 2015 foi ruim, Ela viajara, mas passara mal: sentiu algumas dores
novamente.
Além disso, teve uma discussão com o marido. Há alguns anos as reclamações
sobre ele vinham aumentando. No início eram queixas comuns, sobre dificuldades
na divisão das tarefas domésticas, por exemplo. Mas conforme sua formatura
aproximara-se, sua escolha por trabalhar na área criminal e de direitos humanos
revelou ser um problema. Além disso, o diagnóstico de câncer trouxe-lhe uma
desconfiança. Ao se casarem, aviam realizado todos os exames pré-nupciais e ao
longo dos anos, ela mantinha a rotina de seus exames preventivos. Nenhum havia
dado resultado positivo. Mas ela leu que a maioria dos casos de câncer de colo de
útero eram provocados pelo vírus HPV e o questionou sobre como poderia ter
contraído isso se era monogâmica. Numa noite, ela me ligou no meio da noite,
andando a esmo pela rua, arrasada. Além de doente e com dores, agora estava em
dúvida sobre uma possível infidelidade que poderia ser a responsável por uma doença
grave, que poderia ser fatal. Disse-me que queria o divórcio e que ia pegar o primeiro
avião para cá. Fiquei muito preocupada e aconselhei-a a acalmar-se.
No domingo de Páscoa estávamos juntas. Fomos tomar um café da manhã
caprichado numa confeitaria próxima à minha casa. Junto conosco estava meu
amigo, sócio e colega de trabalho, Ileno. Ela ficou horas contando-lhe sobre seus
sonhos profissionais e ele a incentivava, dizendo que certamente ela teria um belo
futuro pela frente. Ele demonstrava muito carinho e admiração por ela, que mesmo
lutando contra uma doença grave, revelava força e desejo de continuar ajudando os
outros. Lhe presenteou com chocolates e aquele dia selou o que algumas poucas
conversas anteriores já haviam revelado: ela o queria como padrinho. E ele a
“adotou”. Se poucos são aqueles que topam a responsabilidade de apadrinhar uma
criança em início de vida, menos ainda os que topam ser padrinhos de alguém com
uma doença grave e pouca perspectiva de cura... A existência ele em nossas vidas
teve papel tão ímpar que mais adiante relato os detalhes dessa relação que tornou-se
tão especial. Certamente que as dificuldades de convivência com o pai biológico
contribuíram para que ela visse no padrinho, o porto seguro que tanto precisava.
Eterna Túlasi

Ao voltarmos para casa eu e ela conversamos sobre sua separação e lhe


aconselhei a ter calma, passava por um momento turbulento. Administrar um
divórcio agora seria uma carga extra de problemas para acumular. Ela concordou em
focar mais no tratamento e esperar o resultado dos exames finais para então se
decidir. Perguntou se eu a ajudaria a encontrar emprego em Brasília, caso decidisse
mesmo se separar. Lhe disse que sim e que ficaria feliz se morássemos juntas outra
vez.
No dia seguinte, fomos em busca de um filhote de gato. Era seu sonho, pois o
marido não concordava em ter bichinhos de estimação. Conseguimos um gatinho
preto, que a dona chamava de “Black”. Mas ela achou que o nome não combinava
e me pediu para o rebatizar. Na casa da ex dona havia uma imagem de São Miguel
Arcanjo, figura que sempre admirei. Sugeri o nome “Miguel” e ela adorou, dizendo
que ele seria nosso protetor, assim como o anjo. Passamos alguns dias brincando
com ele e providenciando sua adaptação. Ele teria que ficar comigo e caso um dia
ela se mudasse para cá, moraria conosco. Nos dias que se seguiram, sempre lhe
mandava fotos e vídeos do seu gatinho para que ela pudesse matar as saudades.

No último dia de sua estadia em Brasília, ela reclamou de cólicas leves e de um


leve inchaço na barriga. À noite, antes de ir para o aeroporto, contou-me que havia
Eterna Túlasi

sangue misturado à sua urina. Ligamos para o INCA no Rio e fomos orientadas a
que ela procurasse-os no dia seguinte. Caso houvesse piora até lá, deveria procurar
um pronto socorro. Ela embarcou, mas no dia seguinte sentiu-se melhor e decidiu ir
trabalhar. Porém, à noite voltou a passa mal e na manhã seguinte o marido a levou
para a emergência do hospital. Os médicos solicitaram exames e a internaram no
INCA 2 para observação e controle da dor. Aguardávamos ansiosas pelo resultado.
Começamos a pensar que poderia tratar-se dos efeitos colaterais da radioterapia.
Havíamos lido que danos à bexiga eram comuns nestes casos.
Mas alguns dias depois, o marido dela me ligou e a frase “meu mundo caiu”
nunca fez tanto sentido. Ele contou-me que a ressonância magnética revelara, não a
diminuição da doença como tanto esperávamos, mas ao contrário, sua franca
evolução. O câncer havia evoluído para o estadiamento 4A, fase pré terminal.
Segundo os médicos, já não havia mais possibilidade de cura, apenas tratamentos
paliativos que poderiam manter sua vida por algum tempo – meses ou talvez até
alguns poucos anos, era impossível prever. Pedi que o marido dela esperasse eu
chegar para contarmos tudo.
Eu estava no estacionamento da universidade e senti que ia desmaiar.
Encontrei o Ileno e contei-lhe o ocorrido, chorando muito. Ele tentou me acalmar e
fortalecer, dizendo-me para largar tudo e ir ficar com ela. No dia seguinte era meu
aniversário. Passei o dia trancada em casa, arrumando a mala e organizando a casa,
pois sabia que nem tão cedo poderia retornar. Chorei muito. Aquele foi o pior
aniversário da minha vida, sem dúvida alguma.
No dia seguinte, estávamos juntas. O marido não queria contar. Os médicos
diziam que só responderiam o que ela perguntasse. E eu não sabia o que fazer.
Achava injusto esconder dela, mas ao mesmo tempo não tinha coragem de lhe causar
tamanha dor, dando uma notícia tão triste. Decidimos falar aos poucos, conforme
ela fosse indagando.
Porém, a relação com o marido começou a tornar-se cada vez mais difícil:
discussões e choros eram cada vez mais frequentes e a equipe começou a temer que
seu estado emocional influenciasse negativamente em seu quadro já delicado. Um
dia ela me chamou e contou-me que havia conversado com ele e que ele afirmara
que caso seu quadro algum dia se agravasse, a manteria respirando por aparelhos,
por quantos anos fossem necessários, de forma que ele tivesse para quem olhar todo
Eterna Túlasi

dia. O que talvez tenha sido dito como uma declaração de amor, para ela teve o efeito
de uma sentença de prisão perpétua. Ela me disse que ficar presa a uma cama,
respirando por aparelhos, sendo alimentada por tubos e inconsciente, era sua visão
do inferno e que aquilo a enchia de pavor. Disse que achava que aquela era a coisa
mais cruel que ele poderia propor, pois não estava pensando em seu bem estar e sim,
no dele próprio. Túlasi sempre defendeu a eutanásia e sequer imaginou que um dia
este assunto se referiria a ela...
Aliado a isto, a piora de seu quadro clínico fez com que ela pedisse para
registrar seus desejos em papel, de forma a anexar este documento em seu prontuário.
Surgia ali, a primeira versão de seu testamento vital, onde ela proibia,
terminantemente, qualquer suporte à vida e retirava do marido todo o poder de
decisão sobre a sua saúde, incumbindo a mim e ao pai de seus cuidados.
Foi nesta fase que minha vida começou a sair completamente dos trilhos.
Quando recebemos o diagnóstico eu fui me familiarizando com os termos e
procedimentos clínicos. Fui adaptando-me à rotina de exames e procedimentos. Mas
o dia em que cheguei ao hospital e ela me pediu que trocasse a fralda dela, senti o
impacto da gravidade da situação. Agi com toda a naturalidade possível, até que ela
disse sorrindo: “Veja só, mãe, você vai voltar a trocar as minhas fraldas de novo,
como quando eu era bebê”. Sorri de volta e beijei sua barriga, mas naquele momento,
confesso que desejei trocar de lugar com ela. Parecia tão injusto e cruel! Nenhuma
mãe deseja ver uma filha naquela situação. Foi desesperador, mas tive que manter o
sorriso no rosto de forma a ela não sentir-se mal pela situação de vulnerabilidade em
que se encontrava.
Fui acostumando-me a esta nova rotina, até que ela começou a ter
sangramentos severos e eu tive que ter mais fibra que o normal, para nunca fazer cara
de assustada, sempre comentando sobre outros assuntos enquanto ajudava nos
procedimentos. Queria que ela se mantivesse o mais tranquila possível, pois sabia o
quanto isso era importante para o tratamento e seu bem-estar.
E isso repetiu-se com diversos outros procedimentos: é como se a mudança
deles representasse a transição para uma fase ainda pior: receber a primeira
transfusão de sangue, vê-la com uma sonda e coletor urinário, o uso de máscara de
oxigênio e a temida palavra “morfina” (que só perdeu em impacto para o dia em que
ouvi que ela já não fazia mais efeito e que seria necessário aplicar Metadona...).
Eterna Túlasi

O mesmo aconteceu quando a vi de muletas e numa cadeira de rodas pela


primeira vez: nada explica a dor e o desespero que senti, aliadas à cruel necessidade
de parecer otimista, para que ela ficasse bem...

Certo dia, no shopping, conseguimos um daqueles carrinhos elétricos de andar


e ela brincou a respeito, mas em alguns momentos, além de eu notar a tristeza em
seus olhos, ela disse que também sofria por mim, pois imaginava como eu me sentia
por ver minha filha naquela situação. E eu sempre lhe respondia que mãe nasceu
para isso: cuidar, fosse em que situação fosse. Nós duas nos animamos, consolamos
e fortalecemos uma à outra, para que conseguíssemos levar aquela situação até o fim.
E mesmo em meio ao caos das fases mais difíceis, ela nunca deixou de se preocupar
comigo...
Esta primeira internação, no INCA 2 durou um mês inteiro. Ela apresentava
febre, dificuldade para evacuar, infecção urinária, incontinência, dores e enjoos.
Cada dia acontecia uma coisa diferente e a despeito de toda dedicação da equipe, o
quadro só piorava.
Fui tentando delinear o quadro real, de forma que ela pudesse compreender o
que ocorria: explicava que certos sintomas eram frequentes em casos mais graves.
Eterna Túlasi

Mas ela se calava e mudava de assunto. Notei que ela não estava preparada para
saber. Respeitei seu momento e apenas lhe dava as informações que me pedia.
Até que um dia, teve um sangramento mais severo. O médico do andar soube
contornar a situação, contendo a hemorragia. Ele era muito doce e calmo e sua
postura fez toda a diferença durante aquela fase do tratamento. Até que um dia ela
me pediu que eu conversasse com ele e me inteirasse de absolutamente tudo sobre o
seu quadro. Fui e não imaginava como teria forças para voltar com uma cara boa
para o quarto. A despeito de eu já saber da gravidade do quadro, ouvir os pormenores
de alguém da equipe médica não seria tarefa das mais fáceis. Ele foi sincero e
explicou em detalhes a gravidade da situação, que piorava rapidamente. Tive cinco
minutos para passar uma água fria no rosto, tomar um copo de água gelada e retornar
ao quarto, com cara de que nada grave havia acontecido.
Apenas alguns dias depois, ela me questionou sobre a conversa com o médico.
Perguntei-lhe o que gostaria de saber e ela respondeu: “Tudo, menos quanto tempo
tenho de vida, isso me deixaria muito ansiosa...”. Falei que forma geral a situação
havia piorado e que algumas complicações começavam a surgir, deixando o quadro
um pouco mais grave do que pensávamos. Sugeri que ela mesma conversasse com o
médico e lhe perguntasse os detalhes, pois ele explicaria com termos técnicos e tiraria
todas as dúvidas que pudessem surgir. Ela concordou. Ajudei-a a caminhar até a sala
dele e os deixei a sós. Ela voltou em silêncio, mas calma. Mas eu conhecia muito
bem aquele jeito que ela tinha de disfarçar quando as coisas não iam nada bem.
Compreendi que não queria falar sobre o assunto e nos concentramos na rotina da
tarde. Soube, depois, que ela havia perguntado o mínimo e continuava sem conhecer
toda a gravidade da situação. Não deve ser nada fácil passar pelo que ela passou.
O marido dela preferiu não saber dos detalhes, só aceitava a perspectiva de cura
e cobrava que ela se alimentasse, como isso pudesse reverter o quadro. Numa tarde
em que deixei-os a sós, me telefonaram do hospital, avisando que ela estava muito
nervosa. Corri imediatamente para lá e encontrei-a aos prantos após uma discussão
com ele. Logo o casamento se desfaria por completo.
A situação começava a ficar insustentável para todos nós e mal imaginávamos
o quanto ainda iria piorar...
Eterna Túlasi

UMA DOCE FAMÍLIA

Somos uma família diferente. Ainda bem, do contrário, hoje sei que não
teríamos conseguido lidar com a situação. Compartilho aqui, um pouco de como
vivenciamos tudo, principalmente para os que não têm uma ou que, como nós,
possuem uma família que escapa aos padrões.
Nossa configuração familiar já foi motivo de brincadeira até na universidade
onde eu ministrava aulas de Psicologia, pois construir nossa árvore genealógica bem
que poderia se tornar uma das mais difíceis questões de prova.
Diana é minha irmã de coração. Sua mãe (Jurema) me adotou de coração após
a morte de minha mãe biológica. Fomos criadas juntas por alguns anos, eu tinha 16
anos e ela 12. Depois, com a entrada na vida adulta, seguimos caminhos distintos.
Mas o interessante é que se fôssemos gêmeas univitelinas não seríamos mais
parecidas: gosto musical, gastronômico e por aí vai. Há alguns anos atrás uma
primeira tragédia nos reuniu novamente: “nossa mãe” sofreu um acidente vascular
cerebral e como vivia mais perto de mim em Brasília, fizemos de minha casa o quartel
general para cuidar dela na fase inicial do tratamento. Nesta época, Diana casou-se
com meu cunhado Cadu, grande fotógrafo, com grandes dotes culinários e uma
calma que parece ter sido adquirida no alto do Himalaia. Ele é uma das pessoas que
mais adoro nesta vida. Diana teve uma filha antes de conhecê-lo, minha genial
sobrinha Clara, agora com 13 anos. E com Cadu teve meu sobrinho Vitório, uma
criança que parece ter saído de um conto de fadas. Com eles vive Micqueline, a
heroína faz-tudo da casa deles. Maranhense de uma simpatia incrível, coração
gigante e alegria ímpar.

Minha irmã Diana, minha filha Morgana e Túlasi.


Eterna Túlasi

Quando Túlasi pensou em se separar, no meio do tratamento, surgiu a questão


de para onde iríamos pois o apartamento onde ela vivia com o marido ficava muito
distante do INCA e por ele trabalhar mais perto de casa, fazia mais sentido que ele
permanecesse lá. Na primeira visita que minha irmã nos fez no hospital, colocou o
apartamento de nossa mãe à disposição, já que fica no andar acima do seu, no prédio
que pertence à família, na Tijuca. Acho que nunca esquecerei a expressão de dor nos
olhos da Diana naquele dia: sentada na recepção do INCA 2, ela parecia incrédula e
chocada conforme eu ia explicando o quadro. Choramos muito, abraçadas.
Foi ela quem protagonizou tráficos clandestinos de comida para o hospital
(nada demais, só itens de salada que não faziam parte do cardápio, mas que eram
liberados pela nutrição). Ela é jornalista em uma grande empresa de comunicação e
tem uma rotina pra lá de puxada, mas no caminho de ida ou volta para o trabalho,
sempre dava um jeito de desviar (e muito) o caminho, para levar mimos para a
sobrinha. Assim foi com a última visita da nossa cadelinha Cacau, com as pantufas
de coração que a presenteou, lápis de cor e várias outras coisinhas que ela bolava
para alegrar Túlasi. Posso imaginar como foi para ela viver tudo isso. Se por um lado
ela insiste em me dizer que se sente bem em ter nos apoiado e que a experiência de
acompanhar a parte final do tratamento e partida dela, é notório que os eventos
também trouxeram transtornos e muita, muita dor...

Túlasi e as comidinhas “traficadas” pela tia.

Na segunda internação no INCA 2, fiz uma viagem relâmpago à Brasília, para


resolver alguns assuntos urgentes. Bem neste dia a equipe resolveu dar alta para ela,
Eterna Túlasi

sem terem nos comunicado antecipadamente, afinal, o quadro dela sempre foi
bastante instável, apresentando melhoras e pioras do dia para a noite. Nos vimos
diante de um grande impasse: como havia decidido separar-se durante esta
internação, não sentia-se à vontade para retornar ao apartamento onde viveu com o
ex marido. Mas eu só retornaria no dia seguinte e Diana não tinha como ir buscá-la
naquele dia. Entrou em cena uma grande amiga, Ana Lúcia, que em visita à sua
própria filha que morava no Rio, hospedou Túlasi até que eu retornasse.

A querida amiga Ana Lúcia

No dia em que chegamos na casa da minha irmã, ela havia providenciado todo
tipo de comida saudável: sucos naturais, frutas, pães integrais e tudo o mais que
pudesse auxiliar no tratamento da Túlasi. Era carinho em forma de cuidado. Sua
assistente, Micky, se tornou uma grande companheira dos momentos bons e difíceis
também. Sempre preocupada com o estado de saúde dela, era muito solícita e várias
vezes me rendeu nos cuidados com ela, de forma que eu pudesse ir até a farmácia ou
ao supermercado. Certo dia, ela me contou que perdera uma prima muito próxima,
de câncer cerebral. Preocupei-me de como seria para ela vivenciar aquilo tudo
novamente, mas ela, com seu coração generoso, me assegurou: “Estamos nesse
mundo para cuidar dos outros, talvez essa seja a chance de eu superar a minha
dor...”.
Numa madrugada em que já havíamos nos mudado de apartamento, despertei
para checar a medicação da minha filha e não a vi na cama. Ouvi vozes na sala e fui
Eterna Túlasi

ver o que estava ocorrendo: do corredor pude ouvi-las conversando alegremente. Me


aproximei devagar e as vi pintando mandalas, juntas. Decidi não interromper, pois
vi que ela mesma já havia tomado a medicação e estavam num momento
descontraído, tão raro de acontecer. No dia seguinte me contaram que, sob efeito da
morfina, ela falara várias coisas sem sentido para a Micky, mas que haviam se
divertido muito!

Micky e minha filha Morgana

Quando a separação foi decidida e tivemos que cuidar da mudança, foi Diana
quem nos acompanhou e ajudou a separar suas roupas (tendo herdado algumas que
guarda com muito carinho). Túlasi estava muito enfraquecida neste dia, mas quis
participar organizando tudo, mesmo deitada na cama, sem quase conseguir se mexer.
Foram três dias de idas e vindas, encaixotando livros, documentos e pertences
pessoais. Nos demais, quem ajudou foi o Cadu, que carregou uma mala atrás da
outra, sempre com um sorriso no rosto. Acho mesmo que ele é uma alma elevada,
vinda de algum outro lugar que não esse nosso planeta tão cruel. Pois na última vez
em que ele esteve lá, a ex-sogra da Túlasi havia jogado o restante de seus pertences
no chão, amarrando-os com um pano em formato de trouxa. Ele apenas sorriu.
Eterna Túlasi

Meu cunhado Cadu, sempre positivo!

E também foi ele quem ajudou a amparar Túlasi, diversas vezes, para subir as
escadas que levavam ao primeiro andar do prédio. A despeito de sempre conversar
com ela num tom de voz otimista e carinhoso, quando me despedia dele, na porta,
via a expressão de frustração em seu rosto, talvez por não se conformar de não poder
fazer mais. Um dia, precisou viajar a trabalho para o Chile, país que Túlasi já visitara
e admirava muito. Fez uma linda foto de uma folha de árvore caída na neve e
publicou na rede social dela. Ela emocionou-se com o gesto de carinho, pois sabia da
rotina atribulada de trabalho que ele tinha. Lhe enviou um áudio de voz pelo celular
que o deixou, igualmente, muito tocado.
Foi ele também que, meses antes, quando recebemos o diagnóstico inicial,
havia preparado um book de fotos profissionais para ela. Na Floresta da Tijuca,
buscaram as melhores locações. Minha irmã ajudou na produção de roupas e
acessórios e descolaram um maquiador. Ela receava perder os cabelos após a
quimioterapia e queria guardar sua bela imagem para a posteridade. Mal sabia que
não perderia um fio sequer, mas que aquelas seriam suas últimas fotos com uma
aparência mais saudável...
E neste quesito, quando a doença já evoluíra bem negativamente, foi a Diana
quem lhe realizou um dos últimos desejos: pintar o cabelo de vermelho. Sempre quis
ser ruiva, mas segundo dizia, o ex-marido não aprovava. Aquela era a chance de
colocar seu antigo sonho em prática. No dia em que se divorciou, adentrou o cartório
exibindo os longos cabelos avermelhados, orgulhosa de sua independência!
Eterna Túlasi

Nasce uma ruiva!

Morando ao lado do apartamento em que ficamos, Patrícia e seu marido


Leonel (prima da Diana), também foram de um apoio maravilhoso. Além de nos
alegrarem com seus “bom-dia vizinhas” na escadaria, Patrícia (que é fisioterapeuta)
sempre nos visitava ou vinha pintar conosco. Trazia sopa, sorrisos e mensagens de
encorajamento. Foi Leonel que numa tarde de piora, nos levou às pressas para a
emergência do INCA 2 e também me deu algumas outras caronas nesta rotina de
idas e vindas do hospital. Sua alegria permanente fez com que momentos densos e
difíceis se tornassem mais leves e fáceis de atravessar. E foram eles quatro os
organizadores de um emblemático picnic na Floresta da Tijuca, um dos últimos
passeios ao ar livre que ela pôde realizar.
Eterna Túlasi

Abraçada com a Túlasi, Patrícia.

Engrossando o verdadeiro pelotão que nos auxiliou, do início ao fim, estiveram


a Mônica, seu filho Roberto, seu marido Ewerton e Beatriz, irmã de meus filhos.
Mônica foi a segunda esposa do pai de Túlasi, após eu e ele termos nos separado.
Com ele, eu tive meus três primeiros filhos: Rafael, Túlasi e Morgana. Mônica já
tinha o Beto, filho de seu primeiro casamento. E poucos anos depois, tiveram juntos
a irmã de Túlasi, Beatriz, a garota mais doce que já conheci. Meus três filhos tinham
cerca de 8 anos quando eles se casaram e Túlasi acabou por conviver bastante com o
Roberto, tendo por ele um carinho genuíno de irmãos. Ela e Beatriz só tornaram-se
próximas quando maiores, já que a diferença de idade delas era bem grande para que
brincassem juntas. Eu e Mônica sempre nos demos bem, mas a distância dificultava
uma convivência mais próxima. Quando ela e o pai de Túlasi se separaram, fizemos
todo o possível para que nossos filhos continuassem a se ver, tarefa das mais difíceis,
já que cada uma de nós foi morar num estado diferente. Na verdade, Beatriz acabou
sendo criada pelo Ewerton, que tornou-se seu referencial de pai, já que após a
Eterna Túlasi

separação, raríssimas vezes viu o pai biológico. Amoroso e cuidadoso, é impossível


dizer que ela e Ewerton não são pai e filha. Eu e Mônica, então, fizemos alguns
malabarismos para juntar a trupe de filhos nas férias: cada uma viajava uma parte do
caminho para nos encontrarmos e juntos, passamos algumas tardes maravilhosas em
Búzios. Para mim é difícil não considerar o Beto irmão deles, afinal, nossa família é
tão miscigenada que os laços de sangue nunca foram indicativos de muita coisa, ao
contrário dos afetivos (estes, sim, têm demonstrado força e perenidade).

Túlasi pintando com Ewerton, Mônica e a irmã Beatriz

Eu, Mônica e nossas filhas

O mesmo ocorre com, Carlos, filho de outro relacionamento que tive após
minha separação. Ele é irmão por parte de mãe de meus três primeiros filhos, mas
não tem laços sanguíneos com o Beto ou a Bia. Aliás, só nos demos conta deste
arranjo familiar tão diferenciado, quando o Carlinhos elogiou a beleza de Beatriz, se
mostrando interessado nela. Foi uma cena engraçada: eu e Mônica nos entreolhando
Eterna Túlasi

boquiabertas, por uns cinco segundos, até termos tempo de elaborar mentalmente os
vínculos sanguíneos e respirarmos aliviadas... Afinal, dentre todos os seis, uns são
irmãos e outros não. Parece complicado, mas nos damos muito bem.

Meu filho Carlos visitando a irmã no hospital

Isso sempre foi motivo de diversão para Túlasi: lembro-me da entrevista que
fizemos com a equipe do hospital, quando tentamos explicar quem eram as pessoas
da rede de suporte dela. A cara da assistente social foi muito engraçada!
E foi esta peculiar configuração que fez com que certo dia Túlasi anunciasse
que havia identificado uma música que, finalmente, definia a nossa família: Auto
Reverse, do grupo musical O Rappa, cujo refrão diz:

Uma doce família


Que tem a mania
De achar alegria
Motivo e razão
Onde dizem que não
Aí que tá a mágica, meu irmão

Até hoje nos emocionamos, lembrando dela, quando a escutamos. Fica o link:

https://www.youtube.com/watch?v=vgZwa7GKRCA
Eterna Túlasi
Eterna Túlasi

AS (MUITAS) PEDRAS NO CAMINHO

A dieta de um paciente com câncer é um capítulo à parte. O paladar e o apetite


variam, às vezes, várias vezes por dia. A comida favorita do sábado pode tornar-se
insuportável no domingo. Desde o início, tentamos uma alimentação bem saudável
e fomos adaptando-a, pois ela teve momentos de sentir muito enjoo, só de sentir o
cheiro de comida quente, por exemplo. Foi uma fase em que só comia alimentos
crus, ovos e verduras. E durou mais de um mês. A saída era improvisar receitas
variadas. Depois teve a fase de só comer frutas e sorvete. Desejos por café com leite.
Intolerância aos doces, seguida de um paradoxal desejo por deles. Aversão à carne
(essa a acompanhou por mais tempo), sendo que antes da doença ela era a rainha da
picanha sangrando.
A comida do INCA é excepcionalmente boa se comparada aos demais
hospitais que já conheci. Farta, variada e de excelente qualidade. Tínhamos direito a
pêssegos em calda, sorvetes, iogurtes, bolos, saladas, peixes etc. Mas como ela tinha
essas fases, as nutricionistas tinham que adaptar a dieta diariamente. Lembro de uns
três dias em que ela passou comendo arroz, ovo cozido e tomate, pois era a única
coisa que tolerava ingerir. A nutrição fazia dietas laxativas, para prender o intestino,
para aumentar o índice de ferro no sangue e até para melhorar sua energia e
disposição. Tudo era adaptado de acordo com as alterações de seu quadro.

Numa das vezes em que fomos para casa ela, praticamente, parou de se
alimentar. Comia castanhas e bebia isotônico. Marcamos uma consulta e a
nutricionista nos disse que era importante ela comer o que desejasse e, para evitar
uma desnutrição, receitou e forneceu um shake especial com formulação específica
para pacientes com câncer. Disse que esse padrão de alterações era comum em todos
Eterna Túlasi

os pacientes e que ficássemos tranquilas. Foi importante sabermos que não existem
alimentos milagrosos (chá de graviola, limão com bicarbonato e outras preparações
que as pessoas insistiam que ela usasse). Disse-nos, também, que não resolvia ingerir
altas doses de beterraba e feijão com o intuito de que isso resolvesse uma anemia
profunda, por exemplo. Era necessário o complemento das medicações e
procedimentos.

Nas fases em que ela tinha desejos exóticos, criamos a rede de pequenos
“contrabandos” de comida para dentro do hospital (e agora seremos descobertas!).
Pequenos prazeres como bolo de chocolate, uma salada mais sofisticada ou comida
japonesa. Nada que lhe fizesse mal, ou que fosse proibido pela nutrição (a quem
sempre consultávamos) apenas não havia disponível no hospital. Não sei o que a
divertia mais: satisfazer seus desejos por comida diferente ou burlar as regras da
instituição. Confira o flagrante aqui, rs... :

https://www.youtube.com/watch?v=M4KBX1RAhyQ

E assim fomos mesclando dissabores, sabores, tristezas e alegrias...


Numa das vezes em que fomos parar na emergência, devido a mais um
sangramento, ouvimos os médicos falarem sobre a possibilidade de uma cirurgia para
remoção da bexiga. Naquele momento nos preocupou pensar que caso isso
Eterna Túlasi

acontecesse, ela teria que andar, pelo resto da vida, com um coletor de urina colado
ao corpo. Mas a vida foi tão cruel que semanas depois já achávamos que esta seria
uma ótima opção, pois descobrimos que ela não poderia ser operada pois o tumor
havia espalhado-se por toda a região e que uma cirurgia de grande porte seria de um
risco impossível de assumir. Nossas esperanças foram sendo derrubadas como num
efeito dominó, uma a uma, de forma muito rápida. A situação era tão trágica e
impactante que um dia ela começou a fazer piada. Disse que merecia ganhar a faixa
de garota mais azarada do planeta e que se essa história de “karma” fosse verdade,
em outra vida ela devia ter matado um orfanato inteiro de criancinhas, para merecer
pagar um preço tão alto por sua existência.
Outro episódio profundamente desgastante foi quando um outro residente
decidiu enviá-la para realizar um exame no INCA 1. Saímos do INCA 2 de
ambulância, em jejum, com a medicação suspensa e sem fraldas ou roupas adicionais
pois não era caso de demora. Um erro burocrático na marcação do exame fez com
que vagássemos pelos corredores do INCA 1 sem saber para onde ir. Foram mais de
três horas de uma via sacra que a fez sentir-se exausta, com dor, com fome e sem
roupas para troca. Tudo isso para, no fim, o exame não ser realizado e voltarmos
arrasadas e furiosas. Para médicos e funcionários, trata-se apenas de “um erro no
agendamento” e algumas vezes eles parecem não fazer ideia de que um paciente com
câncer pélvico necessita de maca, fraldas, comida e remédio para suportar tamanha
espera. Isso só causou-nos um sofrimento adicional e não a ajudou em nada.
Também tivemos outros dissabores, como uma enfermeira conhecida no andar
por ser grosseira com todos. Sua rispidez era tamanha que um dia dirigi uma
reclamação à ouvidoria. Quando estamos bem, esse tipo de incidente não costuma
adquirir maiores proporções, mas quando estamos fragilizadas e em sofrimento, um
maltrato a mais é suficiente para acabar com o ânimo e a esperança durante
construídos. Se ela nos tratava assim (que temos um pouco mais de esclarecimento),
imagine como seria para uma pessoa humilde e sem recursos, lidar com tamanho
desrespeito? Mas foram casos isolados. A maioria dos funcionários era espetacular e
superou nossas expectativas.
As instituições hospitalares talvez desconheçam ou deem importância menor a
detalhes que podem acabar com a confiança de um paciente. No INCA 1, por
exemplo, as ambulâncias entram por uma rampa localizada na lateral do prédio e
Eterna Túlasi

param exatamente em frente ao necrotério, onde também estacionam os carros


funerários. Da mesma forma, no INCA 2, todos os acompanhantes passam pelo
necrotério na ida e na volta do refeitório. No INCA 4, a saída dos corpos de pessoas
que faleceram ocorre pela frente do hospital, exatamente na entrada de visitantes e
pacientes. Desnecessário descrever o que sentíamos cada vez que nos deparávamos
com um caixão saindo de um desses lugares...
Outra sensação muito ruim que nos acompanhou foi a necessidade de
extrairmos, em algumas ocasiões e quase na marra, informações sobre
procedimentos e quadro clínico. Ora nos sentíamos burras, como se não fossemos
capazes de absorver a realidade, ora como se estivéssemos sendo enganadas. Numa
das altas que recebemos, ela tinha febre, sangrava, sentia dores e ninguém nos
informava o motivo daquela liberação. Agem, algumas vezes, como se não
tivéssemos direito de escolha e informação e impõem sobre os pacientes, suas
decisões, sem serem questionados.
Essas coisas colaboram para a instabilidade emocional dos doentes e, sem
dúvida, afetam o relacionamento com a equipe e o comportamento dos doentes,
causando mais problemas ainda. Exemplo disso foi um dia que, já exausta das
informações contraditórias ou ausentes, desgastada pela relação com o marido, sem
o apoio psicológico que gostaria, impedida de ver a luz do sol e de receber as visitas
que precisava ou de comer o que desejava, Túlasi tentou fugir do hospital numa
madrugada. Na manhã seguinte, quando rendi o marido dela, informaram que ela
parecia um pouco desorientada pelo efeito da medicação e quando o enfermeiro a
procurou no leito, foi encontrá-la na escada, descendo em direção à saída. Após me
contar o ocorrido e de chorar bastante, pareceu mais aliviada. Passei a exigir os
direitos dela e a questionar essa tirania médica que desconsidera os sentimentos dos
pacientes, fixando-se apenas em procedimentos clínicos rotineiros.
Estar ao lado de pacientes em estado mais grave também contribui para o
aumento da ansiedade e instabilidade emocional. Certa vez, ao ver uma paciente em
estado grave, Túlasi chorava e dizia temer “ser a próxima”.
Mas nem tudo foram dissabores e nos dias em que se sentia mais animada, ela
fazia graça, brincadeiras ou tinha umas tiradas que deixava a todos, mudos de
espanto. Uma delas foi quando entraram no quarto as funcionárias da limpeza,
conversando e reclamando do fato de ficarem duas horas de pé, dentro ônibus, num
Eterna Túlasi

trânsito pesado e diário para poderem ir e vir ao trabalho. Túlasi fez “psiu” e
perguntou o nome de uma delas. “Cláudia”, a moça respondeu. E Túlasi disse:
“Cláudia, olha bem pra mim. Eu daria tudo para poder conseguir me manter em pé
por duas horas, apreciando a paisagem dentro de um ônibus e vendo o movimento
do trânsito. Reclama não, querida, bem pior seria estar deitada aqui em meu lugar”.
A moça saiu em silêncio e pensativa.
Em outra ocasião, após caminhar no corredor de camisola e carregando o
suporte de soro, disse para o médico que veio lhe examinar: “Olha, um dia virei aqui
mostrar pra vocês que não sou essa pessoa esquálida, descabelada, de fraldas e que
veste uma camisola ridícula. Virei de salto alto e elegante para que vocês vejam a
força que há em mim”. O médico sorriu e disse que isso era dispensável, pois apenas
uma pessoa muito forte passaria por aquela situação com bom humor e
espirituosidade que ela exibia.

Tabata, uma das melhores enfermeiras do mundo!!!

E na ausência de atividades físicas possíveis, ela brincava que estava na hora


de “malhar”, que era o que chamava nossas caminhadas no corredor, com o objetivo
de ativar a circulação das pernas, seguida de exercícios de erguer-se sobre a ponta
dos pés, ativando as panturrilhas e depois receber minhas massagens, de forma a
diminuir o edema que se formava devido ao excesso de tempo que passava acamada.
Eterna Túlasi

As campanhas de doação de sangue que fizemos também foram objeto de


piada. Ela quis fazer uma foto montagem dela como a personagem do filme
“Crepúsculo” (imitando uma vampira) para sensibilizar as pessoas de nossas redes
sociais a doarem o sangue que ela precisava. Hoje em dia penso na imensa força que
ela teve para manter o bom humor na maior parte do tempo!
Na última semana da primeira internação no INCA 2, seu irmão Carlos que
mora em Curitiba veio visitá-la. Foi uma grande alegria. Foi ele quem assinou a alta
dela, dizendo que isso daria sorte. Pudemos ir para casa por alguns dias e no fundo,
ali eu já sabia que aquele seria o meu último dia das mães com ela. Na manhã do
domingo, acordamos todos em casa e foram todos para a minha cama, como quando
eram pequenos. Morgana tinha ido com meu neto Gustavo e foi uma grande farra.
Fiz o almoço favorito deles: lasanha!
E esta foi a trilha sonora do dia:

PHARRELL WILLIAMS – HAPPY


https://www.youtube.com/watch?v=y6Sxv-
sUYtM&list=PL0b0z5BpzP4RSLOsYgGZSCMELbGclsMti&index=11

A suspeita de que seria o último dia das mães me fazia querer aproveitar cada
momento intensamente e eu estava muito feliz de estar com quase todos eles ali
(Rafael estava trabalhando e não pôde ir com minha neta Sophia). Ao mesmo tempo,
esta mesma ideia apertava meu peito, me causava uma revolta enorme e um desejo
imenso de chorar.
Me parecia tão injusto não ter mais a minha filha comigo, mas eu não tinha
coragem de gastar os momentos que ainda nos restavam com choro ou lamúrias,
Eterna Túlasi

queria que ela fosse feliz ao máximo. Se o pior acontecesse, eu me viraria com a
minha dor sozinha, não queria que ela sofresse mais do que a doença já impunha a
ela.

Túlasi, eu e meu filho Carlos

Farra na cama da mamãe!


Eterna Túlasi

Nosso último dia das mães juntas, neste plano.

Mônica, Beatriz, Ewerton, Diana e Cadu também nos visitaram nesta breve
pausa da internação. Fiz os sequilhos que eles tanto amavam na infância e tiramos
muitas fotos juntos.
E foi nessa semana que ela pediu que o pai também nos visitasse. Passeamos
os três, numa pracinha próxima à casa dela, e ela, muito feliz, pediu que tirássemos
uma foto juntos. Transformou-a em foto de capa de sua rede social. Ver os pais
próximos era algo que a emocionava e que ela sempre sentiu muita falta. Ele foi
bastante ausente durante seu tratamento. Mas ao comunicar ao pai o desejo de se
separar, a insistência dele para que pensasse melhor a deixou desconfiada e temerosa.
Quando relatou seu medo de ser mantida contra a vontade numa UTI, o pai
tentou argumentar e isso fez com que tempos depois, ela lavrasse nova versão de seu
Testamento Vital, excluindo-o das decisões relativas à manutenção de sua vida por
meio de suportes invasivos. Fiquei eu como única responsável por responder por ela
em caso de inconsciência.
Dado o rápido avanço da doença, nesta época, fiz contato com uma grande
amiga, psicóloga oncológica e paliativista em Brasília. Na minha cabeça, até então,
cuidados paliativos deviam se resumir a chazinhos e rezas para pacientes
moribundos. Eu precisava saber o que havia disponível para nós, quando a situação
se agravasse.
Começava a sentir que perderia a minha filha, mesmo que os médicos ainda
não falassem em desistir. Creio que coração de mãe sabe, sempre sabe...
Eterna Túlasi

UM ANJO SEM ASAS

Quando ainda estávamos internadas, pela primeira vez no INCA 2, certa vez à
noite, desci para jantar no refeitório do hospital. Não havia quase ninguém e me
sentei sozinha numa das mesas. Minutos depois um homem se aproximou e sentou-
se à mesma mesa, pedindo licença. Comentamos como era ruim jantar sozinho,
principalmente naquele lugar. Falamos de amenidades e ele perguntou se eu
trabalhava ali. Respondi que era psicóloga forense e acompanhava um familiar.
Seguiu-se a tradicional curiosidade sobre o motivo de eu ter escolhido uma profissão
tão difícil. Falei um pouco sobre minha necessidade de ajudar o próximo,
principalmente àqueles desacreditados pela sociedade. Ele sorriu e disse que
tínhamos algo em comum.
Perguntei o que ele fazia e me contou que era médico, fazendo residência em
oncologia ali. Dei risada: como alguém que cuida de pacientes tão graves podia achar
meu trabalho difícil? Rimos muito de nossas escolhas nada leves. Ele contou de sua
rotina: trabalhava até 100 horas semanais, pois não conseguia deixar os plantões com
pendências a resolver e ainda precisava estudar. Falou que muitos ali eram pessoas
muito humildes e carentes de cuidados e atenção. Disse que abraçara a profissão por
amor ao próximo, pois se dependesse de boa remuneração já a teria abandonado há
muito tempo. Os programas de residência pagam pouco no Brasil e exigem uma
carga de trabalho muito alta.
Ao final da conversa descobrimos que tínhamos muito em comum em nossas
profissões e posturas diante do próximo. Nos despedimos no elevador e cada qual
seguiu para seu andar. Seu nome é Marcos.
Dias depois ele passou pela porta do quarto de minha filha, me reconheceu e
entrou. Ele trabalhava em outro setor, estava ali apenas para falar com uma pessoa
da equipe. O apresentei a ela, a quem já havia contado sobre ele e sua vocação. Ele
foi simpático, mas tive a impressão de que estava mobilizado por ver uma pessoa tão
jovem, bonita e cheia de vida, naquelas condições. Não entramos em detalhes sobre
o tratamento ou seu quadro, ele apenas perguntou quem era seu médico e afirmou
que o médico que a acompanhava era um ótimo profissional. Nos despedimos.
Passamos a nos encontrar ao acaso, nos corredores, e como a correria era
sempre grande para ambos, trocávamos apenas poucas palavras – sobre seu plantão
Eterna Túlasi

ou minha filha. Marcos me pareceu ser uma daquelas pessoas que, se eu tivesse
conhecido em outras condições, viraria um grande amigo: inteligente, interessante e
bem humorado e eu entrevia, por detrás de seu jeito brincalhão, uma alma incomum:
abnegada e humana. Nutri simpatia por ele desde o primeiro momento, mas sabia
que dificilmente encontraríamos mais do que cinco minutos para conversar dali em
diante.
Quando tivemos alta e fomos para casa, curtir o dia das mães, um agravamento
do quadro logo se apresentou. As dores voltaram, o sangramento aumentou e ela
sentia-se fraca. Marcamos consulta na oncologia. Seria necessário replanejar o
tratamento e para isso seria necessária a orientação de um especialista. Amargamos
várias horas de espera no ambulatório. O médico que nos atenderia estava doente e
havia faltado, devíamos aguardar o atendimento de outro profissional. Quando a
porta se abriu, ficamos os três sem voz: era o Marcos quem nos atenderia. Passada a
surpresa inicial, voltamos ao clima amistoso de sempre. Ele nos disse que eu devia
estar rezando muito para ter tido a sorte de termos ele como médico. Rimos muito e
minha filha disse que a sorte era dele, de ter uma paciente tão fascinante quanto ela
e filha de alguém que já lhe tinha apreço. Alertou que ele teria responsabilidade
dobrada: para cuidar dela não poderia cometer nenhum erro ou se veria comigo! Ele
chamou-a, brincando, de “pirralha”, devido à sua pouca idade. O apelido pegou e
até hoje nos referimos a ela assim.
Eu acabara de ganhar um ótimo médico, mas dava adeus à breve amizade que
começara a se formar: os próximos meses seriam tensos e exigiriam de nós o máximo
de profissionalismo. Nossos encontros de três minutos no corredor não seriam nunca
mais uma pausa para um cafezinho, que nos aliviasse por alguns segundos do stress
da rotina hospitalar: daqui em diante cada vez que eu encontrasse, seria para ter
notícias do estado da minha filha e sabia que, daqui pra frente, elas quase nunca
seriam boas.
Exatamente como eu previa, nos minutos seguintes o clima amistoso foi se
dissolvendo. Não sei se ela percebeu, mas minha prática profissional notou a tensão
no semblante dele, ao ler seu prontuário. Mantendo o profissionalismo, ele pigarreou
e me olhando de soslaio, perguntou o quanto sabíamos do caso. Eu sabia mais que
ela, claro. A cada soneca que ela dava no leito eu buscava informações na internet,
Eterna Túlasi

pedia para me explicarem seus exames e procurava segundas opiniões entre os


médicos amigos meus. Sabia que a situação não era nada boa.
Ela lhe disse, então, que havia tido “uma recaída” após o tratamento e que
agora queria saber qual o próximo passo para que pudesse ficar curada. Ele me olhou
desconfortável. Eu lhe disse que podia responder tudo que ela quisesse saber. Muito
gentilmente ele começou a explicar que o tratamento não havia surtido o efeito
esperado. Que ao invés de minimizar o tumor, este havia se alastrado ainda mais.
Respondeu que diante de tal quadro já não se poderia falar em cura e sim, em
acompanhamento. As possibilidades terapêuticas curativas haviam se esgotado e nos
restava apenas, a possibilidade de uma intervenção paliativa. Estudaria a
possibilidade de mais uma sessão de radioterapia, uma cistoscopia (procedimento
hemostático na bexiga) para sanar o sangramento e mais algumas sessões de quimio.
E disse-lhe que agora seu estadiamento era 4A (apenas um nível antes do estado
terminal).
Novamente o chão se abriu sob nossos pés. A despeito de eu já saber, não
conseguia aceitar a dor que minha filha devia estar sentindo ao receber uma notícia
tão cruel. Desejei sumir ao ver seu semblante horrorizado. Balbuciando, ela
perguntou: “Ferrou, né? ” Mas o profissionalismo dele falou mais alto e ele passou a
descrever as possibilidades, técnicas e intervenções que ajudariam no alívio dos
sintomas. Mas estava claro que ele fez um grande esforço para manter o tom.
Mal ouvimos esta última parte e saímos de lá cheias de papéis para marcar
exames e procedimentos, anestesiadas pela péssima notícia. Mais uma vez choramos
o caminho todo até em casa e, desta vez, o rádio ficou desligado...
No dia seguinte, retornei ao hospital para buscar medicação, encontrei-o no
ambulatório e ele quis saber como ela havia recebido a notícia. Acho que minha cara
disse tudo e a dele também, o que não evitou que ele segurasse meu braço e com um
sorriso dissesse: “Força, estarei com vocês”. Creio que dar aquela notícia à minha
filha também não tenha sido nada confortável para ele. Sentíamo-nos confortadas
por estarmos nas mãos de uma pessoa de confiança, mas várias vezes nos
perguntamos como alguém consegue manter a calma numa profissão daquelas.
Dias depois, quando mais uma vez seu quadro agravou-se, internamo-nos no
INCA 2 novamente. Desta vez, no andar sob a responsabilidade do Marcos. Nos
sentimos mais tranquilas ao saber que seríamos acompanhadas diariamente por ele.
Eterna Túlasi

Eu tinha a impressão de que uma grande luta estava sendo travada dentro dele: a
sensação de impotência diante de uma doença tão agressiva parecia se misturar com
um desejo ferrenho de ajudar. Ora ele sorria animado, ora parecia claramente
contrariado com a evolução negativa do quadro. Por diversas vezes passei em frente
à sala dos médicos e via-o com o semblante franzido, cenho carregado, lendo exames
e analisando dados no computador. Meu sentimento, pela primeira vez, não era
apenas de uma cliente que exigia perícia do médico que a atendia: eu também me
compadecia de ver seu esforço dar em nada. Sabia o quanto cada vida era importante
para ele e podia imaginar a sensação de frustração que devia acompanha-lo a cada
piora no quadro de um de um paciente. Esse apreço por lutar contra o que já parecia
perdido me era muito familiar e fazia com que eu sentisse profunda empatia por ele.
Neste meio tempo, precisei vir a Brasília defender minha tese de doutorado.
Pensei seriamente em cancelar tudo, mas Túlasi era inflexível: queria ver meu
diploma, fruto de uma conquista que também pertencia a ela. Chegou a falar com
meus amigos da universidade, exigindo que me fizessem vir. Fui conversar com o
Marcos a respeito. Ele me assegurou que ela encontrava-se estável e que seria bem
monitorada. Outros familiares fariam companhia para ela durante o dia em que eu
me ausentasse. Ele desejou boa sorte, me deu um abraço e disse baixinho: “Por favor,
não demore...”. Entendi que corríamos contra o tempo e que tudo poderia acontecer.
Viajei com o coração na mão, mas certa de que ela estaria em boas mãos.
Ao final da defesa, recebi uma mensagem com uma foto dela, toda sorridente,
segurando um cartaz que dizia: “Dra. Mamãe é Phoda! ” Voltei correndo para o
aeroporto e logo estávamos juntas outra vez.
Eterna Túlasi

Nos dias em que as coisas corriam bem, Marcos costumava aparecer no plantão
às 7 da manhã. Às vezes, atendia algum caso mais grave antes de chegar à nossa
enfermaria. A maioria dos pacientes ainda dormia e eu nunca vi outro residente do
INCA chegar tão cedo ao trabalho, saindo, várias vezes, após as 19h.
Entrava, na penumbra de nosso quarto, com um frasco de álcool spray na mão.
Puxava os lençóis que cobriam os pés dela e jogava o líquido gelado em suas pernas.
Aquela brincadeira rendia protestos, gargalhadas e xingamentos amistosos. Ela era
dorminhoca e só assim acordava para responder as perguntas de rotina do plantão.
No final de seus impropérios, ela sempre lhe estendia mão e dava um sorriso. Dizia
que acordar e ver o rosto dele lhe dava paz e calma para enfrentar o dia. Os finais de
semana eram um desafio: ela jamais acatou os procedimentos dos plantonistas e
algumas vezes ameaçou a equipe de telefonar para ele para contar o que ocorria em
sua ausência.
Durante todo esse tempo ele teve minha admiração, confiança e respeito: não
é fácil para uma mãe ceder os cuidados de seu filho a terceiros, muito menos quando
há risco de morte envolvido. Minha outra filha, Morgana, havia tido uma grave
pneumonia na infância e me recordo da profunda insegurança que eu sentia em
relação ao médico, chegando a lhe ameaçar com um processo caso não cuidasse dela
adequadamente. Mas com o Marcos era diferente: acho que aquela conversa inicial,
quando nos conhecemos, sem um vínculo profissional, me deu a confiança de que
minha filha estava, de fato, nas mãos de uma pessoa dedicada e humana. Ele soube
ser um “cuidador suficientemente bom”, nos termos de famoso psicanalista, Donald
Winnicott: impunha regras, cobrava comportamentos, mas nos ouvia, considerava
seus desejos e era extremamente sincero e gentil ao nos comunicar as coisas. Cada
dificuldade era acompanhada por seu olhar carinhoso ou por seu sorriso confiante.
Nos tornamos um time.
Certo dia, ele entrou apreensivo na enfermaria: decidira pedir que a equipe de
radiologistas do INCA 1 avaliasse a possibilidade dela receber mais uma aplicação
com fins homeostáticos. Mesmo ela tendo feito todas as sessões, anteriormente,
havia a chance de que houvesse sobrado uma espécie de “saldo” de radiação que ela
tolerasse e que ajudasse a estancar o sangramento. Lá fomos nós. Naquele dia, pela
primeira vez, tive a impressão de que estava chegando a hora de minha filha nos
deixar. Cruzamos a cidade numa ambulância com sirenes e luzes ligadas, em alta
Eterna Túlasi

velocidade. Chegando lá, uma equipe já nos aguardava. Eram óbvias a urgência e a
gravidade do caso. Infelizmente, após exames e muitos cálculos, recebemos mais
uma má notícia: ela já havia recebido toda radiação possível e não era possível fazer
mais nada, em termos radiológicos. Quando nos reunimos com o Marcos, era
evidente a frustração em seus olhos. Aquele foi mais um momento muito difícil para
todos nós.

A caminho dos exames no INCA 2

Ela não melhorava e seu quadro agravava-se dia-a-dia. Nada foi capaz de parar
seu sangramento, a não ser a cistoscopia, um procedimento extremamente doloroso,
que trata-se da aplicação de formol no interior da bexiga, de forma a cauterizar os
vasos sanguíneos, interrompendo a hemorragia. Ela já apresentava uma anemia
severa e a essa altura, tomara cerca de vinte bolsas de sangue. Corria risco de morte
e ele tentava dar-lhe mais tempo. Ao saber do que se tratava, ela protestou, como
esperado. Ao ficarmos a sós, porém, ela me confidenciou: “Mãe, se o Marcos quer
fazer isso, eu confio nele. Se há uma chance de eu melhorar, ele conhece qual é.
Vamos lá, vou encarar o procedimento e depois eu xingo ele! ”
E o procedimento não foi nada fácil. Como esperado, ela sentiu muito
desconforto e vendo minha filha encolhida na cama, tive que evitar cruzar com ele
Eterna Túlasi

no corredor. Mães, em alguns momentos, são seres irracionais e a sensação que eu


tive era muito parecida com quando levamos nossos bebês para tomar vacina e eles
choram: sabemos que é para o seu bem, mas dói no fundo da alma. Achei que se
encontrasse com ele não conseguiria ser muito simpática, afinal, minha
irracionalidade só lembrava que ele havia prescrito algo que lhe causara dor. Mas ao
final do dia, ao passar a visita, tive a impressão de que ele também se sentia um pouco
assim: entre a certeza de ter feito o melhor e a angústia por vê-la sofrendo. Foi muito
gentil no exame, nos assegurou que havia tudo para dar certo e a medicou. Despediu-
se acariciando seus cabelos, com um sorriso que nos acalmou. Era quase como se
estivesse se desculpando por tê-la feito passar por isso, apesar de ter um bom motivo
para fazê-lo.
Os dias que se seguiram foram tensos: ficamos na torcida de que o sangramento
parasse, mas ele nos informou que esse efeito não seria imediato, pois até que o
organismo liberasse todo o sangue retido, a urina ainda sairia tingida junto com o
soro ministrado. No terceiro dia, quando ao acordar vimos a urina translúcida, na
bolsa coletora, foi uma alegria geral!
Mas ela não durou muito: o avanço do tumor fazia com que outras áreas
apresentassem sangramento, o que agravava a anemia e a deixava cada vez mais
fraca. Ele decidiu, então, fazer um “mutirão de fortalecimento” com o intuito de
mandá-la, ao menos por uns dias, para casa – de forma que pudesse descansar melhor
e se distrair da rotina do hospital. Lá veio suplemento de ferro, soro, mais transfusões,
medicação reforçada para dor e o mesmo com a alimentação. Muito repouso e foco
na possibilidade de alta. Deu certo! O sangramento diminuiu para um mínimo e ela
sentia-se mais forte e bem disposta.
Marcos propôs que agendássemos a quimioterapia paliativa. Seria mais uma
possibilidade de conter o avanço do tumor por mais algum tempo. Mas eu sabia que
os efeitos colaterais poderiam ser fatais. Ainda assim, ele me disse que ela “tinha”
que tentar. Foi a primeira vez que batemos de frente. Respondi-lhe que minha filha
não “tinha” que fazer nada e que ela só o faria, se achasse melhor. Ele rebateu
dizendo, aborrecido, que estava tentando salvar a vida dela. E eu retruquei dizendo
que, de minha parte, queria dar-lhe qualidade para a pouca vida que restava a ela.
Percebemos que não entraríamos em acordo. Nos despedimos pensando qual seria o
desfecho daquilo tudo.
Eterna Túlasi

Agendamos uma consulta com o especialista para este caso, para uns dias
depois, e ela me pediu minha opinião. Respondi que ela deveria fazer o que achasse
melhor e que eu apoiaria qualquer decisão, independente de concordar com ela ou
não.
Fomos para casa. Mas sabíamos que, mais uma vez, seria por pouco tempo.
Porém, este tempo extra que ele conseguiu lhe dar, foi precioso e sou extremamente
grata por isso. Vivemos dias intensos e inesquecíveis, onde, longe do hospital, Túlasi
pôde ter pequenas alegrias e viver mais um pouco, cercada pelos que a amavam.
Dias depois, na consulta com o outro oncologista responsável pela quimio
paliativa, novo choque. Ele explicou detalhadamente o procedimento, frisando que
tratava-se apenas de uma medida para tentar minimizar sintomas e fornecer uma
sobrevida um pouco maior. E perguntou o que mais ela desejava saber. Ela quis saber
os percentuais de chance de sucesso. Ele respondeu que havia 30% por cento de
chance do procedimento funcionar e ela melhorar um pouco. Mas ela quis saber, se
caso não funcionasse, o que ocorreria. Ele explicou que havia 30% de chance de não
ocorrer absolutamente nada e outros 30% de dar errado e ela passar muito mal. Foi
quando ela, espertamente, disse: “Estão faltando 10%, doutor...”. E ele respondeu:
“Sim, você tem razão” e permaneceu mudo, olhando para ela. Até que ela mesma
completou: “Pode dar muito mais errado ainda, certo?” Ele acenou concordando.
Túlasi fez umas contas nos dedos da mão, para só então concluir: “então você está
me propondo um tratamento difícil, com alta chance de dar errado, com boas
chances de eu morrer e tudo isso apenas para eu ficar um pouco melhor, só por alguns
meses?” Ele respondeu que sim com a cabeça. Ela respirou fundo, endireitou-se na
cadeira, colocou os cotovelos na mesa e o olhou fixamente. Disse: “Doutor, minha
mãe aqui é especialista em comportamento humano... vou lhe fazer uma pergunta e,
dadas as minhas condições, espero que no mínimo, o senhor seja 100% honesto!”
Ele concordou e ela perguntou: “se fosse o senhor em meu lugar, faria este
tratamento?” Ele respirou fundo, ajeitou-se, pigarreou e respondeu: “Não, Túlasi,
não faria”. Ela pareceu satisfeita e aliviada com sua sinceridade e perguntou, neste
caso, o que mais poderia fazer. Então ele disse: “Tudo, tudo o que você quiser e
conseguir. Vá viajar, jante fora, passeie com sua mãe, tire fotos, vá a bons
restaurantes... vá viver, Túlasi”.
Eterna Túlasi

E fomos. E foi dali que surgiu a frase em seu diário, que ela postou em sua rede
social e depois virou marcador de livro: “vai ser feliz, a vida é curta”.
Ela ficou de pensar no assunto e deixou agendada a consulta obrigatória que
deveria ser feita um dia antes do procedimento, caso topasse.
Chegando em casa, mais sorvete, vídeo game e um silêncio absoluto sobre o
tema da consulta. No dia seguinte, iniciamos uma lista de desejos, mas pular de
paraquedas já estava fora de cogitação...
Dias depois retornamos ao hospital para a tal consulta prévia para a quimio.
Ela queria tirar mais algumas dúvidas e necessitava buscar mais remédios e fazer um
hemograma. Ao ir ao banheiro, retornou pálida e me disse que estava expelindo
coágulos grandes. Fomos da sala de espera das consultas ambulatoriais, direto para
a emergência. Durante todo o dia o sangramento não cedia. Foi necessária mais uma
transfusão de sangue e nova internação.
Ela me perguntou, uma última vez, o que eu achava sobre a quimioterapia e só
consegui responder que ela deveria fazer tudo o que quisesse e que fosse qual fosse a
sua decisão, eu estaria ali ao lado dela.
E Aliado a tudo isso, descobrimos um fato que nos desagradou: Marcos seria
transferido para o INCA 1 dentro de alguns dias. Nos sentimos preocupadas, afinal,
ele conhecia tudo sobre o caso. Mas ele nos garantiu que as próximas equipes
estariam a par de tudo o que dissesse respeito a ela. Foi nesta época que passamos a
usar um jargão: quando alguém da equipe deixava a desejar, falávamos uma para a
outra: “Não é exatamente um Marcos! ”
Dias depois, conseguimos mais uma alta (igualmente curta) e quando
retornamos para a que seria nossa terceira, última e breve internação no INCA 2, ele
já não trabalhava mais lá. Peguei seu contato com o pessoal da equipe, caso houvesse
algum imprevisto. Mas só voltaríamos a nos ver um dia antes dela morrer...
Eterna Túlasi

SEU NOME ERA TRABALHO

Diálogo matinal na fila para fazermos exame de sangue, no INCA 2:


- Mãe, o que estamos fazendo aqui? São sete da manhã e estamos numa fila de
ambulatório. Deveríamos estar nos preparando para assistir audiências num tribunal
ou tendo reuniões no Ministério da Justiça. Talvez, preparando relatórios sobre
violações de Direitos Humanos para a ONU. Mas não, estamos aqui! Que
decadência, hein, doutora?
E riu sem graça, apertando minha mão, com os olhos cheios d’água. E
acrescentou: “Obrigada por ter descido ao inferno comigo, mãe...”. Respondi que
o inferno era fichinha para nós duas e que faríamos o possível para transformar
aquele pesadelo todo em, ao menos, um pedacinho do paraíso. Nos abraçamos e
propus um café, frisando que não seria um cappuccino duplo, como ela gostava. No
máximo, uma média da lanchonete, mas ela retrucou rindo: “O pior dos cafés, em
sua companhia, torna-se um expresso irlandês, mãe! ”
Ao longo das internações Túlasi não conseguia parar quieta sem trabalhar,
tanto pelo tédio, como pelo senso de dever que sempre a acompanhou. No INCA 2
ficou internada ao lado de uma senhora idosa que se mostrava bastante ansiosa
devido à necessidade de resolver questões burocráticas referentes a seu único imóvel.
Túlasi conversou com ela, orientou os acompanhantes, deu as instruções jurídicas
cabíveis e um belo dia um representante da instituição com a qual negociava,
compareceu ao hospital para assinatura dos documentos. Aos 71 anos, ela chorava
de alegria e agradeceu-nos por ter, finalmente, conseguido regularizar a situação de
sua casa própria.
Ficamos muito felizes pois se tratava de uma ajuda muito simples e pequena,
mas que a fizera tão feliz. Esta mesma senhora, no dia das mães, chorou bastante
quando todas nós que éramos mães (pacientes e acompanhantes) ganhamos um kit
de produtos de beleza de presente das voluntárias do hospital. Achei que ela estivesse
emocionada e fui lhe dar um abraço, mas ela me confessou que estava triste com
nossa situação e rezava dia e noite para que Deus não levasse minha filha e eu não
sofresse. Pela lógica dela, seria ela quem deveria morrer, pois já era idosa e
improdutiva, ficava abalada de ver uma moça nova tão doente. Por sorte, tivemos
alta dias depois e ela não presenciou a piora da Túlasi.
Eterna Túlasi

Houve também o caso de uma senhora que acompanhava a sogra e outra que
acompanhava a irmã. A primeira estava com o marido preso, mas a saúde da mãe
dele piorara rapidamente. Túlasi orientou-a a como proceder para que o filho fizesse
a requisição de uma saída especial. Infelizmente ela faleceu no dia seguinte, mas
graças às instruções fornecidas, o rapaz conseguiu comparecer ao funeral de sua mãe.
A segunda, não sabia como fazer para cuidar da irmã idosa e em estado grave, pois
trabalhava o dia todo e não tinha ninguém para ajudar. Túlasi instruiu-a para que
buscasse informações sobre o INCA 4 e lhe explicou o que eram cuidados paliativos.
Tudo correu bem e ela foi transferida. Assim, se muitas vezes não encontrávamos
alívio para nosso próprio sofrimento, era do auxílio aos demais que extraíamos um
pouco de alegria.
Nos dias em que mantinha-se ocupada, minha filha sentia-se melhor. Mas o
tédio se abatia quando a permanência no hospital era longa. Numa dessas vezes,
perguntou ao médico se poderia ajudar em algo no posto de enfermagem. Era uma
situação inusitada, mas a equipe concordou com a ideia e nas tardes em que ela se
sentia melhor, sentava-se no postinho e auxiliava a arquivar papeis, tirar cópias,
separar documentos e receitas. Ficava resplandecente de alegria e a equipe lhe queria
muito bem. Tanto que numa outra internação, em outro andar, os profissionais iam
visitá-la no horário do almoço ou ao final do plantão, com saudades de seu bom
humor.

Túlasi ajudando no posto de enfermagem do INCA.


Eterna Túlasi

Também houve o caso de um senhor, fanático por futebol, que passava o dia
lendo sempre o mesmo jornal, pois não havia outro. Ela ficou muito triste de vê-lo
assim, no corredor e pediu-me que eu fosse até a banca e comprasse jornais novos e
revistas sobre o tema. Fez questão de ela mesma pagar, disse que seu dinheiro já não
tinha muita utilidade ali dentro e que fazer outro paciente feliz seria a melhor
destinação que ela poderia dar.
Por ocasião da defesa de meu doutorado, ela também quis me ajudar e pediu
que eu ensaiasse a apresentação com ela. Levei o laptop e ela ficou muito feliz de ter
sido a primeira a conhecer como seria a defesa da tese. Além disso, quando seu
quadro se agravou e já estávamos no outro hospital, ela se mostrou preocupada com
o futuro de nosso grupo de pesquisa, do qual ela fazia parte. Tivemos uma breve
reunião onde contei para ela a situação atual e ela então, sugeriu que agilizássemos
o novo processo seletivo e disse baixinho: “Você vai precisar de reforços, mãe, eu
talvez não possa ajudar no próximo ano”. Dei-lhe um beijo na testa, mas não
consegui lhe responder nada...
Em novembro de 2015, quatro meses após sua morte, realizamos esta seleção
que ela ajudou a organizar e dentre os slides, havia duas fotos dela com a equipe. Foi
muito emocionante para todos. Hoje, o núcleo jurídico de meu Instituto leva o nome
dela...
Seu último trabalho foi o auxílio que prestou a um dos enfermeiros, já no INCA
4. Enquanto lhe prestava cuidados, ele perguntou sobre sua profissão de advogada e
lhe contou que vivia uma pendência judicial que não se resolvia. Túlasi pediu que ele
lhe mostrasse os documentos e lhe orientou como proceder para resolver a
pendência. Isso aconteceu poucos dias antes dela falecer.
O trabalho, que para muitos não passa de um fardo e uma obrigação, para nós
sempre funcionou como uma motivação para reagirmos contra as agruras da vida.
Se hoje consigo me levantar pela manhã, devo ao exemplo dela, de nunca ter parado
de ajudar o próximo, minha principal força para combater a depressão.
Eterna Túlasi

PINTANDO O SETE

Não é fácil enfrentar meses ou anos de uma doença como esta. Sem dúvida, o
bom humor é um grande aliado, desde que não nos impeça de perceber e lidar com
a realidade. Como nossa realidade nunca pode ser negada, tentamos ao máximo
amenizar as angústias e os momentos ruins, intercalando-os com momentos alegres
e descontraídos. Túlasi sempre foi muito irônica e sarcástica: dona de um senso de
humor escorpiano, conseguia fazer graça até das situações mais constrangedoras.
Uma dessas situações difíceis nos pegou de surpresa: pegamos um
engarrafamento gigantesco na Linha Vermelha, voltando do hospital para casa. Os
carros mal andavam. Como o câncer já havia atingido a bexiga, ela sentia muito
desconforto ao tentar segurar a urina. Ao vê-la com cara de dor, não pensei duas
vezes: liguei o pisca-alerta, parei no acostamento e cortei uma garrafa plástica de
água, com minha tesourinha de unhas. Como o carro tinha película escura, ela não
teve problemas para aliviar o desconforto. Rimos muito, imaginando que as pessoas
não sabiam o que acontecia dentro de nosso carro. Daquele dia em diante, não
saíamos de casa sem nosso “kit”, que foi enriquecido com lenços umedecidos, copos
descartáveis e fraldas.
Uma das belas recordações que tenho, foi quando tivemos a primeira alta do
INCA 2, após um mês de internação, na véspera do dia das mães. Dentro do carro,
a caminho de casa, o clima era de festa! Ela colocou suas músicas favoritas em
volume alto, cantamos em coro e gravamos alguns vídeos. Ela gritava alto: “Oba!
Engarrafamento, fila de supermercado, monóxido de carbono...”. Sua alegria, por
estar livre novamente, era contagiante. Confira o vídeo aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=KK4V_d376wY&list=PL0b0z5BpzP4R
SLOsYgGZSCMELbGclsMti&index=29

Outro momento inesquecível foi quando, finalmente, ela pôde comprar um pet.
Havia perguntado ao médico se poderia ter um gatinho, como o Miguel, mas ele não
concordou. Unhas afiadas e alguns parasitas felinos eram contraindicados para a
baixa imunidade dela. Mas ele não via problemas que ela comprasse um cachorro.
Logo fomos em busca de anúncios. Uma linda Lhasa Apso, com apenas 45 dias,
Eterna Túlasi

chegou em casa na forma de uma linda bolinha peluda. Ganhou o nome de Cacau,
devido a sua cor. Ela transformou a Túlasi completamente. Sua atenção e cuidado
para com a cadelinha eram impressionantes. Logo ela tinha uma bela coleção de
brinquedinhos, cama, coleira e tudo o mais. Num dos dias em que ela sentia-se bem,
fomos a uma grande loja de produtos para animais. Ela mimou sua nova “filha” e
posou para uma foto, toda feliz. Neste dia, ela andava devagar, sentindo alguma dor
e desconforto, além de tontura, mas o sorriso não saía de seu rosto, nem por um
minuto. Ao longo dos meses, ela se mostrou uma cuidadora dedicada e generosa,
sempre preocupada com o bem estar da filhota. E foi Cacau quem teve a honra de
entrar, oficialmente, pela porta da frente do hospital de cuidados paliativos quando
sua “mãe” piorou de saúde. Foi muito engraçado ouvir latidos dentro de um hospital,
sem falar dela pulando em cima da cama e tentando morder as cânulas de soro! Foi
Cacau quem consegui lhe arrancar um sorriso poucos dias antes de morrer, tudo
registrado nas lindas fotos que fizemos para guardar de recordação deste momento
tão tocante e especial. Esses breves momentos, hoje, povoam minha mente que, aos
poucos, tenta deixar de lado as recordações mais dolorosas. Poder viver bem, ainda
que por pouco tempo, é o único bálsamo numa situação tão adversa.

https://www.youtube.com/watch?v=uJsiw-
boKFY&list=PL0b0z5BpzP4RSLOsYgGZSCMELbGclsMti&index=24
Eterna Túlasi

Shirley, grande amiga do Rio e companheira de trabalho na luta pelos Direitos


Humanos, também foi uma visita constante nesta época. E sempre aparecia com
delícias para comer: tapiocas, massas caseiras, pãezinhos e por aí vai. Me lembro de
uma tarde em que ela nos visitou ainda no apartamento da Túlasi, na Ilha do
Governador, pouco antes de termos o diagnóstico de câncer terminal. Era uma tarde
quente e nos animamos a costurar a boneca de pano modelo “Frida Khalo” que sua
irmã Beatriz lhe deu de presente. Shirley ficou lá conosco, um tempão, conversando.
Túlasi falava calmamente sobre a doença, mas era perceptível sua revolta, ainda que
sob controle. Ela sempre usou de ironia quando a vida lhe colocava numa sinuca e
só restava a ela fazer piada com a situação. Lembro também que quando minha
amiga precisou ir embora, conversamos a sós, por uns minutos, debaixo do prédio.
Foi a ela que confessei minha exaustão, meu desespero, minha vontade de sumir, a
raiva dos familiares omissos, a saudade de nossa vida normal e do trabalho. Ela me
ouviu carinhosamente e ao invés de me julgar, disse que ficava espantada de como
eu ainda estava de pé diante daquela situação toda. Junto com o bom humor, a
possibilidade de desabafar e compartilhar a dor, é indispensável para continuarmos
uma luta tão árdua.
Eterna Túlasi

Outra diversão foi assistir filmes. Assistimos “A Culpa é das Estrelas” no


cinema, quando ela ainda conseguia andar. Quase engasguei quando ela me pediu
para ir. Perguntei se ela sabia que o roteiro era sobre uma moça que morria de câncer
e ela respondeu que sim. Lhe avisei que provavelmente sairíamos do cinema
arrasadas e em lágrimas, mas ela me disse que achava que não. Minha filha me
conhecia, mesmo, muito bem. Fomos as únicas a darmos muitas risadas durante o
filme, pois ao contrário dos demais espectadores, nos identificávamos com cada
situação retratada na tela e ríamos das semelhanças. A parte que ela sempre contava
para todo mundo, era uma cena em que a protagonista gritava o nome da mãe e esta
saía desesperada do banho, temendo uma crise ou queda, mas a moça queria apenas
compartilhar uma novidade que vira na internet. Isso virou motivo de Túlasi me
sacanear várias vezes, dizendo que se falasse meu nome um pouco mais alto eu seria
capaz de infartar! Não choramos no final, ao contrário do resto do cinema que
soluçava. No acender das luzes, ela segurou minha mão e disse: “Mãe, se prepara,
pois é isso que nos aguarda. Posso contar com você? ” Apertei sua mão e assegurei-
lhe que sim. E ela, engraçada como sempre, recomendou que eu começasse a tomar
calmantes ou teria ataques como a mãe do filme!
Também conseguimos assistir “A Teoria de Tudo”, filme baseado na vida do
físico Stephen Hawking. Dele, ela extraiu uma frase que copiou, mais tarde, na
agenda: "Não importa o quão ruim a vida possa ser, há sempre alguma coisa que
você pode fazer e ter sucesso. Enquanto há vida, há esperança...". Esta frase rendeu
diversas conversas sobre limitações e possibilidades e creio que acabou por
influenciar, talvez inconscientemente, a sua decisão final...
Eterna Túlasi

Nossas sessões de filmes e cinema. Carinho e risadas para


enfrentar a dor...

Quando já não era mais possível andar ou passar longo tempo sentada, ela
procurava uma posição mais confortável. Eu providenciava petiscos que lhe
agradassem e ela escolhia o que queria ver na televisão. E foi numa tarde fria, entre
cochilos e comentários sobre o filme, que vimos “Pronta para Amar”, um romance
americano que também falava de uma jovem com câncer e que, às vésperas da morte,
pediu aos amigos que organizassem uma festa no lugar de um funeral, quando ela se
fosse. Ela olhou pra mim e disse: “Nossa, que legal, quero isso quando eu morrer! ”
Não dei muita bola, pois encarei como um comentário vago, além disso, naquele
momento, o assunto morte não era uma pauta comum em nossas conversas.
Um outro filme que nos marcou foi “50/50”. Esse era sobre um rapaz, com um
câncer grave e suas desventuras com a namorada, os amigos, as festas etc. Mostrava
as dificuldades que Túlasi também passou, mas sem um tom melodramático ou
vitimista. No filme, o rapaz havia sido traído pela namorada que o rejeitara devido à
doença. O comentário dela foi: “Ao menos não foi ela quem transmitiu HPV pra
ele...”. Como esta questão era muito dolorosa para ela abordar, o assunto acabou aí.
Por último, assistimos “Antes de Partir”, com os atores Morgan Freeman e
Jack Nicholson. Nele, dois homens adultos encaravam um câncer terminal e
elaboraram uma lista de desejos para os últimos dias de suas vidas. Terminado o
filme, sua reação foi me pedir um bloquinho e caneta para que pudéssemos elaborar
Eterna Túlasi

a lista dela também. Por orientação dos médicos, aproveitamos para logo colocarmos
em prática sua lista de desejos. Durante as internações, nosso empenho em aproveitar
a vida não diminuía, exceto em momentos de crises de dor.
E foi assim que fizemos dois lindos picnics e tiramos belas fotos. O primeiro,
no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, foi um grande sacrifício. Sob sol forte e num
dia de alguma dor, ela queria ver o céu e pesquisar plantas para as pinturas que
estávamos fazendo em casa. Levamos colchonete, manta, almofadas e todo o kit SOS
(morfina, fraldas etc.). Acomodamo-nos debaixo de uma linda árvore e ela apontava
a planta que queria que eu fotografasse. Eu ia até lá, fazia a foto e mostrava para ela.
Foi a forma virtual que ela encontrou de ver de perto as flores que lhe agradavam, já
que caminhar estava fora de cogitação. Lanchamos ali e fomos embora felizes, com
ela deitada no banco de trás do carro. Alguns meses depois de sua morte, voltei ali
com seu padrinho. Sentamos no mesmo banco em que eu a fotografara. Só então
percebi o quanto é importante criar bons momentos e ter boas recordações. Todo
aquele sacrifício do passeio valeu a pena. Hoje vejo as fotos e recordo do dia
ensolarado, que a fez tão feliz!
Eterna Túlasi

Nossos passeios na Ilha do Governador e no Jardim Botânico do Rio.

O outro picnic foi na Floresta da Tijuca. Minha irmã e minha prima de coração,
Patrícia, organizaram tudo. Era um lindo dia de domingo, sol ameno e temperatura
agradável.

Túlasi nas escadas com meu sobrinho Vitório

Preparamos salada de frutas, sucos, sanduíches, bolos, biscoitos etc. Minha


outra filha, Morgana, foi conosco. Levamos música, toalha xadrez, máquina
Eterna Túlasi

fotográfica, mantas, travesseiros e tudo o mais que ela precisasse. Ela acomodou-se
debaixo da maior árvore do local, que se chama “Gruta Paulo & Virgínia”, destino
perfeito para picnics e comemorações, pois possui mesas e bancos de concreto,
banheiro público, lixeiras, estacionamento e trilhas de fácil acesso. Depois de comer
e de apenas lamber algumas gotas da taça de champanhe que minha irmã levou (a
morfina a impedia de tomar bebida alcóolica), conseguiu dar uma volta pelo local.
Sentou-se numa pedra e lhe fotografei. Foi neste local que fizemos, posteriormente,
a celebração em sua memória...

Ela chamou a todos e fizemos várias fotos. Depois, recostada nas almofadas
sobre sua manta favorita, teve os melhores ângulos para fotografar o céu, com as
copas das árvores e a vegetação ao seu redor. Uma das fotos que fez nesta clareira,
serviu para que comentasse que se algum dia se internasse novamente, era daquele
cenário que se lembraria.
Eterna Túlasi

O céu de Túlasi

No final da tarde, quando já nos preparávamos para ir embora, ela me abraçou


e disse baixinho em meu ouvido: “Acho que aqui é o melhor lugar para se fazer uma
festa. Creio que eu moraria aqui para sempre e seria muito feliz. Esse é meu lugar
favorito, entendeu, Dona Elisa Walleska?” Infelizmente, eu entendi. Muito bem. Ela
acabara de sinalizar em que local gostaria de repousar para sempre. Ao entrarmos no
carro para partir, olhei o local pela última vez e uma dor lancinante atravessou meu
peito, imaginando que na próxima vez em que eu estivesse ali, minha filha estaria
morta. Por sorte, eu estava de óculos escuros e pude disfarçar os olhos marejados.
Menos para ela, que mesmo sem notar minhas lágrimas, parecia adivinhar o que me
ia pela alma. Me deu um abraço forte, sorriu e disse: “Seja uma moça forte, ok?
Conto com você, mãe. ”. Só consegui acenar afirmativamente com a cabeça. A
próxima vez em que voltei ali foi para trazer as cinzas dela...
Eterna Túlasi

Túlasi e a irmã Morgana e abaixo, a árvore onde hoje


estão depositadas suas cinzas.

KEANE - SOMEWHERE ONLY WE KNOW


A música de nosso lugar, onde um dia estaremos juntas...
https://www.youtube.com/watch?v=I-eF8e4BJ8E

De fato, o mais perto que Túlasi chegou de uma floresta outra vez, foi na “Sala
do Silêncio” no INCA 4, um local com plantas, fonte de água e um pôster de
cachoeira.
Eterna Túlasi

A vida estreitava-se cada vez mais e a angústia ia ficando difícil de suportar.


Uma das coisas que nos auxiliou a manejar todo este estresse foi a pintura. Na
primeira vez em que fui para o Rio, acompanhar seu tratamento, soube de uma
mania que se espalhava: a pintura em livros de colorir. Muitos psicólogos estavam
recomendando-os como técnica para alívio da ansiedade. Decidi comprar e lhe
presentear, junto com uma caixinha de 12 lápis de cor. Ela sorriu e agradeceu, mas
confessou que pintura nunca havia sido o seu forte. Mas eu não desisti, achei que ela
só precisava tentar, que logo iria gostar. Resolvi começar a pintar perto dela, com o
intuito de animá-la. Deu certo! No segundo dia, para me ajudar na tarefa, ela pediu
para pintar uma parte do desenho comigo. Foi o início de vários meses, diversas
páginas, inúmeros desenhos e muitas mandalas, que tornaram-se seu tema favorito.
Ela deu algumas de presente e as que ficaram comigo, hoje, estão emolduradas e
enfeitam as paredes de minha casa. A caixinha inicial de lápis de cor transformou-se
numa coleção de mais de 25 caixas, de todos os tipos e efeitos, alguns importados,
que ganhou da Mônica e de nossos amigos. Abaixo, ela pintando com as irmãs.
Beatriz à esquerda e Morgana à direita.

Confira abaixo alguns vídeos dela pintando:

https://www.youtube.com/watch?v=VXIIOSTyzlI&list=PL0b0z5BpzP4RSLOsY
gGZSCMELbGclsMti&index=1
Eterna Túlasi

Outro vídeo:

https://www.youtube.com/watch?v=pZMMqf8UlEU&list=PL0b0z5BpzP4
RSLOsYgGZSCMELbGclsMti&index=18

Ela pintava muito bem e recebia muitos elogios. Dizia que a pintura era tão
importante quanto a morfina, pois se essa lhe tirava a dor, pintar lhe transportava
para um universo onde conseguia até esquecer a doença. E foi quando ela não
conseguia mais pintar que seu desejo de insistir no tratamento, cessou. A pintura foi
tudo que lhe restou nos últimos dias de vida. Eram horas e horas conversando, rindo,
pintando, trocando segredos, trocando afeto. Até que um dia lhe mostrei a biografia
da Frida Kahlo. Ela riu e disse que poderiam ser quase irmãs gêmeas, tão parecidas
eram suas histórias de vida. A pintora mexicana lutava contra a doença e pintava
quadros coloridos, procurando posição no leito devido às fortes dores que sentia.
Frida tornou-se uma personagem importante em nossa história.
Eterna Túlasi

Assista:

https://www.youtube.com/watch?v=F6tyhJpt37A&list=PL0b0z5BpzP4RSL
OsYgGZSCMELbGclsMti&index=27

Nesta época ela também passou a gostar de incenso. Seu preferido era de uma
marca que leva seu nome, encontrado facilmente em bancas e lojas de produtos
naturais e a fragrância favorita, rosa vermelha. Este perfume ficou marcado em
minha lembrança. Fez parte do kit de recordações que montamos para as pessoas
que foram à festa em homenagem à sua vida, na Floresta da Tijuca, logo após sua
morte. Até hoje, quando sinto saudades dela, acendo um desses incensos e é como
se sua presença se espalhasse por toda a casa.
Ainda não consegui voltar a pintar. Sinto um misto de falta da companhia dela,
com uma sensação de que não seria tão divertido fazer isso sozinha. Mas a vontade
existe e creio que após o término desse livro, talvez eu consiga fazer uma mandala
Eterna Túlasi

em homenagem à nossa história. Um símbolo de nossa energia, nosso ciclo, nossa


renovação. E, de alguma forma, acho que ela estará presente comigo nesta hora...

AQUARELA – Toquinho
https://www.youtube.com/watch?v=IG1ZU56tsdo

Mas para além das pinturas, quando estávamos internadas, a rotina hospitalar
era mais massacrante do que estar em casa, afinal, o cenário e a rotina nos
impossibilitavam esquecer a doença, mesmo que por pouco instantes. Fomos
inventamos outros meios de burlar aquela tensão. Protagonizamos uma corrida de
cadeira de rodas no corredor do INCA 2, em uma de suas internações. Tudo com a
supervisão da equipe que ficava encantada com a força e alegria dela. No fundo,
buscamos quase que desesperadamente por um pouco de luz em meio à escuridão
que teimava em se abater sobre nós. Não era, decerto, uma alegria genuína que nos
movia. Creio que a transformamos a revolta e a impotência em risadas e brincadeiras,
nossa forma de protestar e não aceitarmos o destino cruel que se apresentou diante
de nós. Chorar e esbravejar, só nos deixaria piores e mais fracas, então, decidimos
não nos entregar. Juntas, sorrimos até o fim...
Certa noite, ela recebeu mais uma transfusão de sangue. No meio da
madrugada, o técnico de enfermagem, ao acender a luz para verificar sua pressão,
encontrou-a sentada em posição de yoga, fones no ouvido, dançando um rock pesado
da banda Metallica. Ela disse que achava que o sangue devia ser de algum baiano
muito animado pois estava sentindo-se cheia de energia! Sua ideia foi copiada por
mais duas pacientes, que nos dias subsequentes chegaram a protagonizar
coreografias na enfermaria!
Numa outra ocasião, nos dedicamos a encenar um teatro de bonecos, cujos
personagens que viviam uma história de amor, eram luvas cirúrgicas com olhos e
bocas feitos com canetas coloridas. Eles ganharam nomes e roteiro e as enfermeiras
que passavam no final da tarde, ficavam uns minutos para assistirem o episódio do
dia.
Eterna Túlasi

Ela também apelidou todos os acessórios hospitalares, do vidro de soro,


passando pelo coletor de urina e às bolsas de sangue que recebia, todos ganharam
apelidos carinhosos como Godofredo (o suporte para dar conforto para as pernas),
Teobaldo (um dos personagens criado com a luva cirúrgica) e Alfredo, o coletor da
nefrostomia. Sempre que chegava uma enfermeira nova ela apresentava Godofredo,
dizendo que aquele seria seu último romance sério!
E também tivemos um dia de day-spa, auxiliadas por uma das enfermeiras:
banho demorado, massagem, manicure e pedicure, escova no cabelo e maquiagem
caprichada, tudo arrematado por perfume e brincos novos! Aqueles momentos nos
davam uma pausa e renovavam nosso fôlego para o tobogã emocional em que
vivíamos, sempre tendo cada vez menos dias felizes e vendo essas pausas tornarem-
se cada vez mais raras.
Também fizemos amizade com uma paciente da enfermaria ao lado, jovem
como Túlasi, que também havia aderido aos livros de pintura e sempre que ambas
sentiam-se bem, trocavam dicas. Era o programa possível de final de tarde: passear
até o quarto ao lado para trocar ideias sobre as melhores cores a serem utilizadas nos
desenhos de ambas.
Eterna Túlasi

Sentimos muita falta de um espaço de lazer e interação enquanto estávamos no


INCA 2. Nem as visitas têm onde sentar direito, não há uma sala, um espaço, nada
que permita ao paciente sair um pouco das quatro paredes de seu quarto. E sair do
andar é proibido. Ficávamos, então, confinadas e tentado criar o que era possível em
termos de distração.
Aos sábados, quando o movimento era menor, ficava tudo silencioso.
Inconformada com o tédio da situação, “saíamos para balada”, o que consistia em
sentarmos nas poltronas da varanda, ouvir música do celular, tomar suco, comer
bolachas e falarmos amenidades com os outros pacientes que conseguiam se
locomover. Chamávamos estas noites de “open bar de soro”. Era divertido, ao menos
tirava-a daquela rotina horrorosa, de ficar deitada o dia todo. Nosso maior sonho era
fugir até o jardim, mas nunca nos deixaram.

ONE REPUBLIC - COUNTING STARS


https://www.youtube.com/watch?v=hT_nvWreIhg&list=PL0b0z5BpzP4RSLOsY
gGZSCMELbGclsMti&index=5&t=0s
Eterna Túlasi

Portanto, burlar as regras do INCA virou um de nossos passatempos favoritos!


Uma das enfermeiras, sensibilizada pela falta que Cacau fazia na vida dela, consentiu
que ela descesse até a porta dos fundos, de cadeira de rodas, guiada por ela, com
luvas e máscara, para ver sua cadelinha por uns minutos. Foi uma alegria só! Serei
eternamente grata por boa vontade, humanidade e gentileza de seu gesto.
Muitas regras são importantes, mas a qualidade de vida dos pacientes,
dependendo do estágio em que se encontram, deveria ser alvo de mais atenção.
Passar 40 dias deitada, olhando para o teto, sem quase nenhuma atividade de lazer,
com poucas visitas e esperando a morte chegar, pode levar qualquer ser humano à
loucura.
Numa segunda fase, após ela ter se divorciado e já no outro hospital, a diversão
era dar nota para a beleza dos enfermeiros e maqueiros. Para avaliá-los, ela deitava
com a cabeça nos pés da cama, assim, tinha a visão de quem passava no corredor.
Um deles chegou a flertar com ela, mas perdeu qualquer chance quando lhe
perguntou por que motivo ela não depilava as sobrancelhas: foi o fim de qualquer
possibilidade de paquera!
Em uma de suas altas, fomos até o shopping center comprar lápis de cor para
suas pinturas. Como ela já apresentava dificuldade para andar, foi de cadeira de
rodas. Tirou uma foto, toda sorridente, com a cesta lotada de produtos. Nos
tornamos especialistas em driblar a tristeza, rir das situações mais constrangedoras e
desfrutar de todo e qualquer pequeno momento de alegria que se apresentasse. Com
ela, de fato, eu aprendi a ser feliz. Hoje em dia, raramente algo me abate. Nenhum
Eterna Túlasi

problema consegue fazer frente aos dias terríveis que passamos e não há um dia
sequer que eu não acorde com um sentimento de gratidão por mais um dia de vida
que se inicia.
Numa outra oportunidade, livres do hospital, conseguimos uma cadeira de
rodas, de forma que ela não se cansasse tanto e fomos comer sua comida favorita:
sushi. Este dia foi diferente, pois os médicos haviam aumentado a dose de morfina e
ela parecia bastante “aérea”, sorria de tudo e bocejava todo o tempo, mas ainda
assim, se divertiu. Para relembrar a infância, pediu para comprarmos um bonequinho
do McDonalds. Chegando lá, vimos a coleção dos “Minions”, que lhe dei toda de
presente. Ela parecia uma menina feliz, cheia de brinquedos no colo e lambuzando-
se de torta de chocolate!

Esses passeios a deixavam muito alegre e ela sempre expressava satisfação por
poder ver gente, andar de carro, ver o sol, sentir o vento no rosto. Segundo ela, até
de congestionamento e fumaça dos automóveis ela sentia falta.
Quando já morávamos na Tijuca, e já havíamos sido transferidas para a
unidade de pacientes terminais, ela quis sair de casa para dar uma volta. Decidiu me
acompanhar até o supermercado, que ficava pouco depois da esquina. Demoramos
cerca de meia hora para fazer o trajeto, pois ela caminhava devagar e com o auxílio
das muletas. Fomos parando no caminho e apreciando as árvores. Chegando lá,
trocamos as muletas pela cadeira de rodas do mercado e pudemos andar por todas
as gôndolas que ela desejava. Num dado momento, seu rosto se iluminou, ela abriu
Eterna Túlasi

um largo sorriso e disse alegre: “Mãe, agora que estou em estado terminal, posso
voltar a comer batata frita e tomar refrigerante! Não preciso mais cuidar da dieta...
vamos comprar todas as porcarias do supermercado...”. Ri muito de sua forma de
encarar as coisas e, principalmente, da cara de espanto das pessoas que passavam
perto.
E foi assim, entre risos e lágrimas que encerramos a primeira parte desta dura
batalha, passada no INCA 2. Mas, infelizmente, o que nos aguardava era ainda
pior...
Eterna Túlasi

O PRINCÍPIO DO FIM

Passados apenas alguns dias daquela nossa comemoração do dia das mães em
casa, ela sentiu-se mal e retornamos para a emergência. Esta foi sua terceira e última
internação no INCA 2. Túlasi estava muito debilitada, mas ainda não tomara uma
decisão definitiva quanto à quimio paliativa. Após receber mais uma transfusão de
sangue, soube que teria nova alta, já no dia seguinte. Nos falaram, então, da
possibilidade de conversarmos com a oncologista chefe do hospital. Ela compareceu
à nossa enfermaria e disse que estava ali para tirar todas as dúvidas que tivéssemos
acerca do procedimento.
Túlasi fez as mesmas perguntas de antes, sobre os percentuais de chance de
sucesso e se a própria médica faria o procedimento caso fosse ela própria a paciente.
As respostas foram idênticas. Pouca chance de sucesso e não, a médica não optaria
por fazer. Então, ela perguntou o que poderia fazer em termos de tratamento e a
médica nos explicou melhor sobre os cuidados paliativos e a unidade hospitalar para
pacientes terminais, o INCA 4. Foi muito difícil ouvirmos aquilo tudo, apesar da
médica explicar que seríamos bem tratadas, teríamos uma excelente equipe à nossa
disposição e que o tratamento proveria o melhor nível de conforto possível. A médica
afirmou que caso aceitássemos, chamaria a enfermeira responsável pelas
transferências para o INCA 4, de forma que ela pudesse nos fornecer mais detalhes.
Ficamos a sós para que ela pudesse pensar. Ela tornou a pedir minha opinião e
eu só me sentia à vontade de repetir as probabilidades e dizer que ela contasse com
meu apoio para a decisão que achasse melhor. Ela então me perguntou: “Mãe, você
vai cuidar de mim até o fim?” Senti como se uma espada atravessasse meu coração,
mas sorri com ternura, a abracei e assegurei-lhe que sim. Ela também quis saber se
eu seguiria todas as vontades que ela havia expresso em seu Testamento Vital e eu
afirmei que poderia ter certeza disto. Ela, então, pediu para falar com a enfermeira.
Por coincidência, ela encontrava-se em nosso andar, tratando de um outro
assunto e foi até nós, rapidamente. Seu nome é Naira e possui uma voz doce e rosto
angelical. Ela nos deu todos os detalhes, explicando que lá não haveria mais
tratamento para o câncer e sim para nós, pois os cuidados paliativos incluem a família
e suas necessidades. Falou da sala do silêncio onde poderíamos meditar, do ginásio
de fisioterapia, do serviço de psicologia, dos especialistas, das oficinas de arte, das
Eterna Túlasi

festas, do espaço dos familiares, da possibilidade de termos visitas ampliadas e até de


recebermos a visita de nossa querida Cacau. Eles também oferecem suporte espiritual
e uma rede de voluntários para atender as demais necessidades. Vi o rostinho dela se
iluminar. Já não suportava ficar presa naquela cama sem nada para fazer.
Naira nos deixou pensar por alguns minutos e passamos a conversar sobre as
vantagens e desvantagens. Aquela nos pareceu a única (e até muito boa) saída, pois
teríamos uma boa qualidade de vida e atendimento especializado, o que seria
impossível em casa. A decisão dela baseou-se, primordialmente, no desejo de manter
a qualidade de vida. Já que lhe restava pouco tempo, não fazia sentido gastá-lo presa
uma poltrona de quimioterapia, lidando com os terríveis efeitos colaterais e o que era
ainda pior: a perspectiva de sentir-se até pior do antes, vendo a morte aproximar-se
rapidamente.
Mas doeu e como doeu... Foi a sensação mais paradoxal que eu já havia sentido
em toda minha vida: alegrar-me por minha filha ser encaminhada para um local onde
teria o máximo de conforto e cuidados, me causava alívio. Ao mesmo tempo,
imaginar que era ali que ela passaria seus últimos dias, me arrasava.
E foi assim que tomamos a decisão, assinamos os papeis, recebemos alta e
fomos para casa, sabendo que nosso próximo destino era a unidade de pacientes
terminais...
Mas como se não bastasse toda esta tensão, as desavenças com alguns
familiares agravaram-se. De pedidos para que ela assinasse, previamente, escrituras
de imóveis (com o intuito de evitar trabalho na fase de espólio) a absurdos pedidos
de devolução de presentes (com a justificativa de que que ela morreria mesmo e não
iria mais utilizá-los), as situações esdrúxulas se acumulavam. Chantagens
emocionais, crises, agressões verbais e desentendimentos diversos eram o pano de
fundo onde nosso desespero maior se desenrolava. Não quero me estender sobre este
tópico, pois não é o foco principal da história, mas asseguro que, de longe, o clima
de animosidade familiar transformou-se em páreo duro para os sofrimentos do
câncer. Difícil avaliar o que era mais desgastante. Ver minha filha lutando contra
uma doença tão grave, ser importunada, chorar de desgosto, decepção e tristeza,
fazia-me sentir uma fúria que eu mesma desconhecia existir dentro de mim. Muita
meditação e autoconhecimento fizeram com que eu mantivesse o controle e pudesse
consolá-la. É compreensível que num momento de profunda dor como este, as
Eterna Túlasi

pessoas se desestabilizem, mas causar transtornos emocionais a uma pessoa à beira


da morte, é algo que escapa à minha tolerância.
Nem todas as pessoas receberam bem a notícia de seu divórcio e os julgamentos
sobre o que ela devia ou não fazer a exasperavam. Porém, conforme os dias iam se
passando, era visível que mesmo com a aparência cada vez mais debilitada pela
doença, ela voltara a sorrir de forma mais intensa e a demonstrar melhor disposição
emocional para enfrentar os percalços do tratamento. Não cansava de repetir que
sentia-se livre e mais feliz, ainda que as circunstâncias fossem as mais adversas
possíveis no quesito saúde física.
Foi um momento de grande aprendizado: os amigos e parentes mais distantes
tornaram-se nossos melhores companheiros e apoios e, justamente algumas das
pessoas com as quais pensávamos contar, nos abandonaram no meio do caminho.
Se algo bom aconteceu nesta fase, foi uma grande reestruturação familiar. Agora,
passada a tempestade, nossa união está cada vez mais forte, ainda que longe da
configuração inicial.
Para tentar relaxá-la, enquanto estávamos em casa, eu fazia belos cafés da
manhã, com as frutas que ela tolerava, flores na bandeja e suas músicas favoritas.

Até que chegou o dia marcado para que eu comparecesse à reunião para
familiares de pacientes do INCA 4. Gostei de ir sozinha, antes dela, assim, me
sentiria mais à vontade para tirar todas as dúvidas, sem medo de que minhas
perguntas a deixassem preocupada. Rumei para o hospital que fica a poucas quadras
do apartamento em que estávamos. Fiquei positivamente impressionada com as
instalações, os serviços e a equipe. Tudo muito bonito, organizado, bem decorado.
Eterna Túlasi

Surpreendente para um hospital público. Fui recebida por uma pessoa da equipe que
me explicou o funcionamento e os procedimentos. Perguntei tudo o que me afligia e
recebi diversos folhetos explicativos que levei para ela.
Cheguei em casa mais aliviada por saber que o local não era um depósito para
moribundos, como algumas pessoas insinuavam ser uma unidade de cuidados
paliativos. Lhe expliquei detalhadamente e depois de tirar todas as dúvidas ela sorriu,
me abraçou e disse que se tinha o selo de “aprovado pela mamãe”, ela ficava mais
tranquila.
Dois dias depois, seguimos para a triagem ambulatorial. Passaríamos a manhã
recebendo atendimento de cada profissional (fisioterapeuta, oncologista, psicóloga,
enfermeiras e assistente social). Ao entrar no hospital seu semblante iluminou-se e
com o passar dos minutos, a tensão que ela exibia ao sair de casa, foi-se desfazendo.
No final da manhã, mesmo muito cansada, ela me abraçou e disse sorrindo: “Gostei,
mãe, me senti bem tratada e segura, aqui”. Meu coração de mãe tranquilizou. Se eu
não podia curar a minha filha, ao menos podia lhe proporcionar o melhor possível
para que passasse por aquilo tudo, com o máximo de calma e tranquilidade possíveis.
Fomos para casa abarrotadas de coisas: medicamentos, fraldas, injeções,
pomadas, colchonete ortopédico, muletas, receitas e manuais de instruções. Pelas
minhas contas, havia ali uma pequena fortuna em produtos hospitalares. A cada dia
que passava a saúde pública me surpreendia ainda mais.
Com relação ao tratamento, a equipe de fisioterapia de lá merece um elogio em
particular: não pouparam esforços e criatividade para atende-la diariamente,
emprestar equipamentos que auxiliassem sua mobilidade, criar suportes que
facilitassem seu conforto (cortaram colchões, improvisaram rolinhos para descanso
das pernas, faziam compressas quentes e frias sempre que necessário). Nos ensinaram
a usar um aparelho muito importante para alívio da dor: o Tense. Era ele que
permitia que ela ficasse sentada por horas, pintando, sem desconforto. Com eles
aprendemos a tirar melhor proveito das muletas e a utilizar almofadas de gel para
minimizar as dores.
Uma semana depois, estávamos de volta para mais uma consulta de rotina no
ambulatório. Ela queixava-se de uma dor na articulação do fêmur com a bacia e a
oncologista solicitou uma tomografia para descartar a possibilidade de metástase
óssea.
Eterna Túlasi

Enquanto ela realizava o exame, aproveitei para conversar com a médica. Criei
coragem e fiz uma pergunta necessária, mas que no fundo eu preferia não conhecer
a resposta. Queria saber qual era o prognóstico de tempo de nossa permanência
naquela unidade. As coisas que passei, sem estar preparada, foram muito
extenuantes, eu preferia saber o que me aguardava pela frente. A médica respirou
fundo e me afirmou, mais uma vez, a gravidade da situação. Disse que o curso da
doença era imprevisível e que poderíamos pensar em termos de alguns meses, mas
não mais do que um ano. É indescritível a sensação de ouvir uma afirmação como
essa. Um misto de desejo de sair dali correndo e levá-la para fazer tudo que desejava,
vontade de gritar de revolta, desejo de morrer no lugar dela e dificuldade de acreditar.
Tudo isso misturado e ao mesmo tempo.
As lágrimas brotaram, mas eu não podia dar vazão ao choro naquele momento,
pois poucos minutos depois ela estaria de volta à sala e notaria meus olhos
marejados. Engoli em seco e rezei para que a hora do banho chegasse logo e eu
pudesse extravasar minhas lágrimas silenciosamente, atribuindo ao shampoo os
eventuais olhos vermelhos. De fato, logo ela retornou e quis saber o que
conversamos. Respondi que pedira instruções quanto a massagens que aliviassem a
dor local. Por sorte, ela acreditou ou fez de conta que sim. Fomos para casa e eu só
torcia para poder ficar um momento a sós e elaborar aquela tormenta de emoções
que me consumia.
Ela se adaptou bem à nova medicação e aos exercícios propostos. Passamos
alguns dias tranquilos, sem grandes intercorrências. A irmã dela, Beatriz, nos visitou
diversas vezes. Eu procurava deixa-las a sós para que pudessem partilhar aqueles
momentos sem a minha interferência. Mônica e Ewerton também sempre vinham e
além deles, amigas de Brasília também foram ao Rio nos visitar: Flávia e sua
companheira Nara e minha querida conselheira sobre Cuidados Paliativos, Giselle.
Gravamos vídeos, tiramos fotos, pintamos juntas e inventávamos comidas diferentes
para o paladar, cada vez mais instável, dela.
Eterna Túlasi

Até que certo dia, Micqueline esqueceu a porta da cozinha aberta enquanto
temperava o feijão. Corri para fechar, imaginando o forte enjoo, seguido de uma crise
de vômito, já que comidas quentes, temperadas e carne a faziam passar mal desde a
época da primeira internação. Qual não foi minha surpresa quando ela disse:
“Hummmm, que cheiro bom, mãe, será que eu posso comer um pouco?” Fiquei
muito surpresa, mas não vi problema, afora o fato de preparar todos os apetrechos
caso ela “devolvesse” a comida no instante seguinte. Mas, inacreditavelmente, ela
comeu um prato digno de trabalhador braçal, com arroz, feijão e carne moída,
pedindo para repetir depois. Imaginamos que se tratava de um episódio esporádico,
mas ela incorporou o prato ao cardápio diário e voltou a se alimentar normalmente,
sem nenhuma restrição, daquele dia em diante.
Parece que o fato de não existir mais ninguém pressionando-a para comer isso
ou aquilo, em grandes quantidades, tivera um efeito relaxante e ela agora sentia-se
novamente livre para escolher o que achasse melhor. Abaixo, registro de um atarde
de tapiocas com os sobrinhos.
Eterna Túlasi

FIM DA LINHA

A nova medicação, que tinha como objetivo aliviar a dor no fêmur, não foi
suficiente por muito tempo. Alguns dias depois, a noite, ela não encontrava posição
para sentar ou deitar. Ligamos para a emergência do hospital e fomos instruídas a
aumentar um pouco a dose de morfina. Resolveu temporariamente e ela conseguiu
dormir no colo da irmã, Morgana. Quando observei a cena, me partiu o coração:
Túlasi deitada no sofá e a irmã acariciando seus cabelos, chorando em silêncio, sem
sequer poder expressar a dor que lhe dilacerava ao ver sua irmã partindo lentamente.
Eu sofria duplamente, por minhas duas filhas...
Infelizmente, este alívio durou pouco tempo e dias depois ela tomou uma
decisão muito difícil. Umas semanas antes, ela havia me dito que só se internaria no
hospital quando ficar em casa se tornasse totalmente inviável para ela. Queria
aproveitar cada segundo no ambiente familiar, cercada das pessoas e coisas que tanto
gostava. Perguntou se eu concordava e explicou à irmã e à tia que isso era muito
importante para ela, pedindo que não insistíssemos em hospitalizá-la, mesmo que ela
ficasse muito mal e, claro, todos concordamos. Mas frente às fortes dores e à fraqueza
em geral, ela precisava ter alívio para aquele sofrimento todo. Me chamou no quarto,
numa segunda-feira, fim de tarde e disse com lágrimas nos olhos: “Mãe, agora eu
preciso ir pro INCA, não estou suportando mais”. Concordei imediatamente e
comecei a arrumar suas coisas para irmos. Quando ela estava pronta, chamou Cacau
e pediu que ela se comportasse como uma mocinha. Olhou para o quarto do
apartamento e segurando minha mão, disse: “Adeus casa, acho que não voltarei
mais...”. Não consegui processar aquilo e usando a desculpa da pressa em aliviar sua
dor, desviei de assunto, dizendo que logo estaria tudo melhor, era apenas mais um
dia ruim. Ela sorriu e me abraçou, dizendo: “Coragem, Dona Walleska, estamos
perto do fim, mas estamos juntas e isso é que importa”. Concordei e engoli as
toneladas de gritos de dor e os rios de lágrimas que sentia brotarem em meu peito.
Rumamos para a emergência do INCA 4 e nos deparamos com três situações
mais graves que a nossa. Aguardamos por longos minutos, mas fomos atendidas por
uma médica muito educada e gentil que desculpou-se pela demora. Entrevistou e
examinou a Túlasi, prescrevendo doses mais altas de morfina injetável, a intervalos
curtos. Mas para isso, teríamos que ficar em observação, nos boxes do pronto-
Eterna Túlasi

socorro, para o caso dela ter alguma reação adversa. Explicou-nos, também, que
alguns outros procedimentos poderiam ser realizados, caso ela desejasse, buscando
alívio dos sintomas, como uma nefrostomia, que aliviaria a dor na região lombar que
a incomodava cada vez mais. Detalhou-nos o problema, explicando que o câncer
havia afetado os ureteres, canais que ligam os rins à bexiga e que graças a isso, seus
rins estavam trabalhando de forma irregular e apresentavam tamanho aumentado,
pressionando os nervos da região, o que fazia com que sentisse dor naquele local.
Acomodou-nos num leito ao final do corredor e passava a cada 15 minutos para
saber se a dor estava cedendo. Cerca de 40 minutos depois Túlasi já sorria
novamente. A medicação lhe causava sono e ela cochilava, respirando
tranquilamente. Mesmo vendo minha filha numa cama de hospital, ligada a fios e
aparelhos, era o seu semblante de paz que me acalmava. Alguns minutos depois, a
médica veio vê-la novamente e disse que a internação poderia ajudá-la a se sentir
mais confortável nesta fase. Era interessante como ela não omitia dados, explicava
tudo detalhadamente, mas sem dar uma conotação trágica à situação, falando
calmamente. Sentimo-nos esclarecidas e seguras. Este comportamento da equipe nos
dava a sensação de podermos confiar, afinal, não havia omissão ou mascaramento
dos fatos e tudo era relatado de forma calma e tranquila. Era bom saber o que
tínhamos pela frente e melhor ainda, que isso não precisava ser motivo para pânico
e desespero. Túlasi agradeceu tanta atenção e disse à médica (lia-se o nome
“Germana” no bolso do jaleco) que faria um elogio, sobre o atendimento, à direção
do hospital. Ela sorriu timidamente e respondeu: “Eu sou a diretora...”. Arregalamos
os olhos e ficamos mudas! O que fazia a diretora de um grande hospital, às 23h de
um dia de semana, atendendo pacientes no pronto-socorro? Ela nos explicou que as
funções administrativas eram seu cargo, mas que sua paixão era o atendimento dos
pacientes em cuidados paliativos e que se sentia muito bem ali. Naquele momento
compreendemos que estávamos numa unidade especial. E isso fez toda a diferença...
Túlasi segurou a minha mão e disse: “Mãe, vamos internar, não quero mais
sentir dor e passar mal. Aqui sei que vou ficar bem”. Concordei, claro e logo
estávamos sendo encaminhadas para o quinto andar. No caminho, a maca passou
pela porta do necrotério. Pela primeira vez não senti horror daquilo, apenas uma
tristeza profunda que me fez perceber que dali para frente eu precisaria de muito mais
força do que havia tido até aquele momento. Não adiantava mais tentar ignorar a
Eterna Túlasi

morte. Ela chegara com malas e bagagens em nossas vidas e teríamos que aprender
a conviver com ela.
Fomos recebidas por uma enfermeira sorridente que nos acomodou num
quarto confortável. Pudemos descansar sem que ela sentisse dor. Acomodou-se
debaixo do cobertor e me puxou para perto. Colocou um de seus fones de ouvido em
minha orelha e ligou a música do celular. Abraçadas, escutamos “Who wants to live
forever” do Queen. Deixei o choro vir, em silêncio. Ela acariciou meus cabelos e
sorriu ternamente, também entre lágrimas. Adormeceu e dormiu profundamente até
o dia seguinte.
Pela manhã recebemos a visita da médica do andar que nos deu as boas-vindas,
verificando o estado geral dela e prescrevendo as medicações que a manteriam
confortável e tranquila. Ao final, pediu que a acompanhasse até a sala de
atendimento familiar, para que eu recebesse as instruções gerais para os
acompanhantes.
Entretanto, quando cheguei, encontrei vários profissionais reunidos e para
além das explicações tradicionais (como horário das refeições, regras de conduta
etc.), eles queriam me alertar sobre o estado de saúde dela. Respirei fundo. Uma
equipe inteira para me dar um boletim não me parecia algo bom. Relataram muito
do que eu já sabia sobre a gravidade do quadro. Ao final, já angustiada pela espera
torturante de uma posição mais concreta, perguntei qual era a estimativa de nossa
permanência lá e se haveria alguma possibilidade de alta. A médica me assegurou
que faria todo o possível para fortalecê-la ao máximo, assim como haviam feito no
INCA 2, de forma a poder lhe dar mais uma alta, para que desfrutasse um pouco
mais de sua casa e da convivência com os familiares e amigos. Mas me disse,
timidamente, que não teríamos uma perspectiva maior do que, no máximo, uns dois
meses. E lá se foi o chão de baixo dos meus pés, novamente. Se a perspectiva de “no
máximo um ano”, dada no ambulatório, já me parecia assustadora, aquelas poucas
semanas restantes me pareceram um filme de horror, onde tudo o que pode dar
errado, piora rapidamente. Respirei fundo e, mentalmente, preguei o rótulo de mais
um “pior dos dias” naquela data do calendário. Mas compreendi que era a hora de
tomar as providências para que os desejos dela fossem atendidos. Expliquei sobre seu
Testamento Vital, suas vontades e determinações e fui instruída a fixar uma cópia do
Eterna Túlasi

documento em seu prontuário, de forma que todas as equipes que revezavam-se nos
plantões, ficassem cientes dele.
Voltar para o quarto com uma cara boa me parecia uma tarefa mais árdua do
que escalar o Himalaia e sem ter como esconder minha dor, inventei que acabara de
ter uma breve discussão, por telefone, com um parente nosso que insistia em nos
infernizar. Ela pareceu acreditar e não fez perguntas.
Nos dias que se seguiram ela parecia mais bem disposta e alegre, mas a
debilidade física era, cada vez mais, perceptível e agravava-se rapidamente. Olhando
no prontuário, vi que ela emagrecera cerca de dezesseis quilos desde que iniciou o
primeiro tratamento no INCA 2, e ela só pesava 70. Seis, só nos últimos dois meses.
Sua face rosada agora exibia um tom pálido e as olheiras profundas marcavam seu
olhar. Mas o mais interessante era que seu sorriso jamais deixou de existir. Mesmo
em momentos de dor e desconforto, ela dava um risinho sem graça, de canto de boca
e bastava melhorar um pouco para fazer uma piadinha irônica ou sarcástica.
Animada com a possibilidade de mais uma alta, ela ficava monitorando seu
próprio progresso, comemorando cada vez que comia sem vomitar e a cessação dos
sangramentos. Apesar de saber que não ficaria curada, era a esperança das pequenas
melhoras que a moviam. Assim, mesmo confirmando seu quadro grave, quando ela
me perguntava algo, eu evitava tecer comentários sobre eventuais sinais de piora que
eu notava. Ao trocar suas fraldas, omitia a presença de coágulos e quando ela
perguntava, eu respondia que havia apenas um pouco de sangue. Achava
desnecessário expô-la à desesperança já que a melhora de seu humor era visível, eu
não conseguiria lhe tirar o pouco de alegria que ainda lhe restava. Ambas sabíamos
que o desfecho não seria favorável, mas restava-nos aproveitar as pequenas
felicidades do dia-a-dia.
E assim, fui administrando os horrores que ainda estavam por vir. Ela sabia
que ocorriam óbitos no andar, mas eu nunca comentei sobre as diversas macas
cobertas que vi passar para o elevador privativo. Justo eu, que preciso desabafar
minhas angústias para que elas melhorem, era obrigada a calar e fazer cara de que
estava tudo bem, de forma a não preocupá-la ainda mais. Minhas únicas fontes de
apoio eram a psicóloga que me acompanhou (Mabel), o grupo de amigos virtuais que
criei e as conversas com os demais acompanhantes, nos horários de refeição ou nos
breves encontros no corredor.
Eterna Túlasi

Por isso, senti muita, muita falta de que o esquema de visitas tivesse sido
ampliado desde o início. É enlouquecedor para um familiar viver tudo aquilo
solitariamente. Compreendo que as normas de higiene e segurança são fundamentais
para uma instituição hospitalar, mas face à natureza daquela unidade creio que a
qualidade da pouca vida que resta para seus pacientes deveria ser priorizada.
E neste quesito tivemos, também, algumas gratas e boas surpresas. Havia uma
assistente social em nosso andar que parecia incansável em atender cada solicitação
nossa. Proibição de visitas, liberação de entradas, alterações de determinações e por
aí vai. Além de sempre muito solícita, causava-nos a impressão que fazia isso com
extrema satisfação, jamais questionando ou julgando os desejos de Túlasi. Seu olhar
solidário, por trás de belos óculos, sempre munida de sua prancheta de anotações,
ainda habita a minha memória repleta de gratidão. Seu nome é Renata.

Tirei esta foto no ano seguinte após a morte dela,


quando retornei ao INCA IV para agradecer à equipe.

Mas a humanidade e a solidariedade da equipe não se resumiam aos


profissionais mais graduados. Algumas técnicas de enfermagem me davam abraços
no corredor, palavras de apoio e incentivo e até santinhos com orações ou balinhas.
Ainda que isso não fizesse parte de seus protocolos profissionais, esse carinho era
alentador! E, também neste quesito, acho indispensável a revisão do que a medicina
considera um comportamento “ético e profissional”, pois antes de técnicos e
cientistas ou doente e parente, somos todos humanos, lutando contra os sofrimentos
diários, sejam na vida pessoal, sejam na batalha profissional.
Eterna Túlasi

Lembro do motorista da ambulância que nos levou, num momento muito


aflitivo desta última internação, de um hospital para o outro, com a finalidade de
realizar exames. Como ela necessitava de assistência integral da equipe, fui na frente
com ele. Todo o percurso de ida e volta transformou-se numa inimaginável sessão de
acolhimento e estímulo por parte dele. Conselhos sobre me manter positiva e
otimista, dicas de como me focar no lado bom de tudo o que estava acontecendo e
por aí vai. Creio que ele é um talento desperdiçado na psicologia!
E para além dos muros do hospital, certa vez, ainda na casa de minha irmã na
Tijuca, nos encaminhando pro INCA 4, o taxista que nos atendeu observou Túlasi
pelo retrovisor. Deitada no banco de trás, segurando as muletas e com uma expressão
visível de dor, ele parou na recepção e não aceitou cobrar a corrida. Disse-nos que já
tínhamos problemas suficientes, pediu nosso nome completo para colocar nas
orações e com um abraço fraterno se despediu. Foi mais um momento inesquecível,
não pelo pequeno valor economizado, mas pela solidariedade e gentileza que
demonstrou para conosco, tão rara nos dias de hoje.
No dia em que Túlasi faleceu, flagrei a copeira do andar, aos prantos, na salinha
de repouso, abraçada a uma funcionária da limpeza que, mesmo chorando, tentava
consolá-la. Como não se emocionar e sentir gratidão por minha filha não ser mais
uma “paciente do leito 54-1” e sim “aquela menina tão jovem, doce e bonita com
nome de flor”? Muitas, muitas vezes, o carinho faz efeitos melhores do que muito
remédio ansiolítico. Repartir o sofrimento é repartir o peso da dor.
Eterna Túlasi

PELO DIREITO DE MORRER

No primeiro quarto em que ficamos internadas no INCA 4, tínhamos bastante


privacidade e sossego. Mas numa certa noite, chegou uma paciente nova para ocupar
o segundo leito. Era idosa e parecia encontrar-se em estado bem grave, já não falava
e respirava com auxílio de oxigênio. A visão de uma pessoa tão fragilizada assustou
Túlasi. Procurei lhe tranquilizar dizendo que se tratava de alguém já bem idosa e que
isso fazia com que fosse ainda mais frágil e reagisse pouco diante da fraqueza que a
doença produz. Mas, infelizmente, no dia seguinte, ela faleceu.
Por sorte eu havia saído com a Túlasi, de cadeira de rodas, para darmos uma
volta no hospital. Fomos às oficinas de artesanato e à sala do silêncio. Esta sala é
decorada com um painel de floresta, possui uma fonte de água e teto de vidro, por
onde entra a luz do sol. Há incenso, música suave e um livro onde podemos escrever
nossas impressões e emoções. Um lugar lindo, sem dúvida. Ela ficou muito
introspectiva olhando a paisagem simulada e eu tirei uma foto dela neste estado
contemplativo. Me lembrei de nosso picnic na floresta. Ela segurou na minha mão e
meus olhos se encheram de água. Naquele momento eu só pensava que ela tinha
direito a tudo aquilo, mas na versão real: uma bela cachoeira, um lindo dia de sol,
paz e liberdade e era muito triste vê-la ali, presa aos fios do soro, usando sonda,
fraldas, magra, enfraquecida e com olheiras. Ela então me perguntou se o céu seria
daquela forma. Lhe respondi que achava que o céu tem a forma que quisermos, que
ele talvez seja o reflexo de nossos pensamentos e sentimentos. Ela, então, achou
aquilo interessante e me perguntou onde eu havia aprendido aquilo. Perguntou se
meu céu não era cheio de anjinhos e santos. Respondi que não. Túlasi havia optado
pelo ateísmo há alguns anos. Na verdade, a minha fé, apesar de ser muito grande,
não se prende a dogmas ou religiões.
Disse-lhe que existiam várias teorias sobre céu e vida após a morte que não
envolviam religião e nem Deus. Ela se interessou. Ali tivemos nossa primeira
conversa sobre a morte e o que ocorreria após ela. Lhe disse que mostraria uns vídeos
sobre física quântica e metafísica e ela ficou muito animada. Perguntou se deveria
pensar sempre em coisas boas de forma a quando morresse, ir para um lugar igual
aquele. Respondi que eu não tinha certeza, mas que, no mínimo, ela teria belas
Eterna Túlasi

imagens na mente e que o que nós pensamos influencia, e muito, como nos sentimos.
Talvez mantendo esses pensamentos belos ela se sentisse melhor.
Mas ao regressarmos para nosso andar, uma enfermeira nos aguardava e pediu
que esperássemos no corredor pois estavam fazendo “um procedimento” na paciente
que estava em nossa enfermaria. Concordamos e fomos para perto da janela,
admirar a paisagem de uma pracinha (o antigo jardim zoológico do Rio). Minutos
depois vi a temida maca branca deixar nosso quarto com um corpo coberto por um
lençol. Túlasi estava de costas e tive que me controlar para não demonstrar meus
sentimentos. A técnica de enfermagem me chamou e confirmou o ocorrido. Pedi que
chamassem a psicóloga pois sabia que ela não reagiria bem à notícia. Não tive
coragem de eu mesma lhe contar a verdade, achei que uma profissional é quem
saberia como abordar o tema.
Voltamos pro quarto e ela viu a cama vazia. Me perguntou o que houve e eu
disse, evasivamente, que não sabia, mas que talvez a tivessem levado para realizar
algum exame. Mas logo em seguida sua acompanhante entrou chorando para buscar
os pertences pessoais da paciente e Túlasi percebeu o que havia ocorrido.
Perguntou-me: “Mãe, ela morreu? ” Fiz que sim com a cabeça, envergonhada
por ter omitido a verdade. Eu só queria que ela recebesse a notícia de uma forma
melhor, que a impactasse menos e estava certa de que não saberia como fazer isso.
Apesar de ser psicóloga, nunca atuei nesta área e não imaginava como abordar um
paciente nestas condições. A reação dela foi imediata e teve uma crise convulsiva de
choro. Ficamos abraçadas e eu chorei também. Primeiro ela disse que estava com
muita pena da velhinha ter-se ido e da dor de sua acompanhante. Concordei. Depois
ela disse: “Mãe, será que eu sou a próxima”? Como se responde uma pergunta
dessas? Recorri à filosofia e lhe disse, novamente, que nenhum de nós sabe, ao certo,
quando vamos morrer. Repeti o tradicional: “Posso infartar e ir antes de você”. A
intenção era que ela não se colocasse num lugar da imaginária fila dos que vão partir
e ficasse angustiada contando o tempo que faltava.
Mas a reação dela foi tanto inesperada quanto inacreditável. Ela respondeu:
“Mãe, precisamos conversar sério sobre isso. Será que você pode deixar para infartar
depois? Estou com medo e quando você está comigo me sinto segura e forte. Quero
que me prometa que quando chegar a minha hora você estará comigo, segurando
minha mão. Sei que estou te pedindo muito e que você não merece passar por isso,
Eterna Túlasi

mas estou sentindo medo, mãe...”. Abracei-a fortemente e choramos juntas, mas ela
logo secou as lágrimas, partiu para a brincadeira e disse: “Você é uma Krüger, sei
que depois vai chorar e ficar mal, mas agora você será a minha guerreira favorita e
vai cuidar de mim, ok”? Ri e respondi que sim, claro que eu ficaria ao seu lado até o
fim.
Ela me perguntou como eu estava com aquilo tudo e respondi um “tentando
ser forte” ela caiu na risada e disse que apostava que eu me trancava no banheiro
para chorar quando ela dormia. Respondi que sim, às vezes. E ela enfatizou que
lamentava muito me ver passar por tudo aquilo mas que não daria conta sozinha e
que esperava que “depois que tudo passasse”, eu ficasse bem. Lhe disse que não tinha
a menor ideia de como eu ficaria, mas que me esforçaria ao máximo para ser o mais
forte possível.
Sempre nos referíamos ao fim desta forma cifrada, “quando tudo passasse”. Só
duas semanas depois ela se corrigiu, ao conversar com a nutricionista, dizendo: “Se
eu morrer jovem, quero que lembrem que... Ops, se eu morrer, não, tá na hora de
encarar isso, quero dizer QUANDO eu morrer...”. Ficamos sem saber o que
responder, eu e a nutricionista... A partir daí, outras vezes ela se referiu à própria
morte de forma clara e objetiva, mas sempre tentando usar um tom mais leve e
brincalhão.
A psicóloga não apareceu e só nos visitou vários dias depois. Tivemos que
elaborar o ocorrido entre nós. Aliás, essa foi uma das poucas reclamações de minha
filha: o serviço de psicologia do INCA 2 deixou a desejar diversas vezes, fazendo que
ela tivesse se sentido abandonada em alguns momentos.
Sobre a dificuldade de atendimento no INCA 4, ouvi duas versões, a primeira
era de que havia algum problema com a escala e as visitas externas domiciliares, por
isso estavam sem pessoal no andar; a outra, soube depois, se referia a um receio de
me atenderem, pois sabiam que eu era professora de psicologia e temiam como seria
essa interação. Certamente este não foi o temor de duas das psicólogas que nos
acompanharam dali em diante, Silvana, profissional experiente e que exalava
competência e segurança e Mabel, que eu conhecera no ambulatório. Creio que
ambas compreenderam que ali não se encontrava uma professora e sim, uma mãe
em profundo desespero e foi à essa mãe que acolheram e acompanharam com
extrema habilidade.
Eterna Túlasi

Mas elas só entraram em cena uns dias depois e quem nos atendeu, só causou
mais confusão... Era a mesma profissional que fizera a palestra de boas-vindas.
Falando num tom excessivamente meloso para quem trabalhava com situações
extremas, chegava a passar a impressão de estar fingindo ou sob efeito de algo que a
deixava alheia à realidade do local onde trabalhava. Nos tratava como a crianças,
sempre com um olhar de pena. Invadiu nosso espaço pessoal diversas vezes, forçando
acariciar nossos cabelos e afagar nossos braços sem que tivéssemos dado mostras de
desejarmos aquilo. Pelo contrário, sempre nos afastávamos fisicamente, mas ela
ignorava e insistia. Ela conseguiu irritar a ambas, na mesma proporção e diversos
outros acompanhantes também se queixavam dela. Sem falar que era invasiva
quando havia visitas e impunha sua presença no quarto, até que um dia pedimos que
se retirasse. O mesmo ocorria quando Túlasi estava sendo trocada ou recebendo
banho e aquilo deixava-a furiosa.
Mas nem tudo foi ruim e pessoas muito especiais cruzaram nosso caminho. A
despeito de todos os percalços, deixo aqui um vídeo de um dos momentos de ternura
que vivemos no hospital:

https://www.youtube.com/watch?v=mgqjkckxgfA&list=PL0b0z5BpzP4RSL
OsYgGZSCMELbGclsMti&index=21
Eterna Túlasi

SINCRONICIDADE

Já notaram a desproporção entre o tamanho de um rubi e o seu valor? Eu


poderia utilizar esta analogia para tentar definir o que foi a passagem da Mabel pela
minha vida. A analogia com o Rubi vem de seus cabelos, à época, vermelhos, iguais
aos de minha filha, e da mesma cor da pedra do anel de formatura de Túlasi, que ela
tanto apreciava.
Pedras são preciosas por seus valores e propriedades e creio que, que seu
principal mérito foi ter me trazido de volta à vida, no dia em que parte de mim morreu
também.
Vi Mabel, pela primeira vez, naquela nossa primeira consulta no ambulatório
do INCA 4. Ela me pareceu muito séria. A consulta de minha filha com ela foi a
primeira, de uma série de outros procedimentos, daquele dia e aguardei no corredor
por um longo tempo. Tinha ouvido dizer que eu também poderia ter acesso aos
serviços de psicologia do hospital e confesso, já não estava mais suportando guardar
tudo para mim, escolher as palavras para falar com Túlasi ou simplesmente me
lamuriar de cansaço com os amigos e familiares. Eu precisava conversar com alguém
que compreendesse, tecnicamente, o que eu tinha a dizer e que me auxiliasse a
encontrar um caminho a seguir. Em dado momento, já não suportamos mais ouvir
os tradicionais conselhos de “seja forte”, “tenha calma” e “fé em Deus”. E já não
suportamos calar outras tantas coisas impublicáveis que nos acompanham nesses
momentos. Há coisa que só um psicólogo sabe ouvir. Sem julgamentos, cobranças
ou expectativas. E eu precisava, mais do que nunca, falar.
Quando a porta se abriu e vi que Tutty sorria (a despeito de estar com bastante
dor naquele dia), fiz uma avaliação positiva da Mabel: minha filha era muito exigente
sobre com quem conversar e devido ao seu longo vínculo com a primeira psicóloga
do INCA 2, talvez fosse difícil essa troca. Aproximei-me e perguntei a ela como
conseguir uma consulta com algum dos outros profissionais (imaginei que ela não
pudesse atender a mim e à minha filha, simultaneamente, mas esta abordagem é
típica dos Cuidados Paliativos, o atendimento estendido aos familiares) e ela se
ofereceu para conversar comigo.
Seu olhar sério e postura firme, longe de me inibirem, inspiraram confiança.
Senti-me segura e protegida desde este primeiro encontro. Nunca gostei de
Eterna Túlasi

abordagens melosas. Para chorar, o faço sozinha. Um terapeuta, para mim, precisa
ser a força que está me faltando e ela soube, como ninguém, ser isso. Além disso, ela
parece ter a capacidade de captar o que sinto, transformando tudo em palavras
organizadas e coerentes, coisa que, em meio ao meu turbilhão de emoções, me é
impossível.
No primeiro minuto de nosso primeiro encontro, despejei todos os sentimentos
inconfessáveis: da vontade de sair correndo dali, até de me matar. Disse que
suportaria qualquer coisa nessa vida, menos perder um filho. E também chorei muito
com saudade de minha casa, minha profissão e minha vida: eu estava exausta! Para
além de perder minha rotina, eu sentia que perdera todos os meus referenciais: estava
longe de minha casa, meus amigos, meu trabalho, meus projetos. Havia trocado essa
rotina que, a despeito de não ser fácil, me era familiar, por uma rotina cruel e
devastadora de encontros diários com a possibilidade da morte. Estava pesado
demais para mim.
Mas nossa socialização não permite que mães digam isso em público e se o digo
aqui, é para que as outras mães saibam que não estão sozinhas nesse turbilhão de
sentimentos. A sociedade nos cobra a sempre sermos submissas, pacientes,
boazinhas, abnegadas e desprendidas. Nunca humanas, apenas mães perfeitas, mas
isso não corresponde à realidade. E é muito triste notar que são as próprias mulheres
que perpetuam essa patrulha ideológica do feminino.
Mas Mabel me permitiu desabafar sem censuras e eu saí de sua sala uns 300
quilos mais leve. Graças a ela, passei a me permitir tomar banhos mais longos, café
com calma, almoçar direito e algumas vezes até sair para caminhar no jardim do
hospital. Entendi que se eu não me cuidasse, ia acabar morrendo antes que ela e que
meu desejo de cuidá-la, iria por água abaixo.
Foi ela que, algum tempo depois, transformou a tarefa de elaborar a lista final
de desejos da Túlasi numa tarefa um pouco mais agradável e leve. A consequência
foram dias lindos e inesquecíveis, a despeito de entremeados por dores e tristeza.
Essa fase foi muito conturbada e as lembranças ainda se embaralham em minha
memória. Acho que a vimos mais algumas vezes, já internadas. Mas lembro de uma
manhã, bem cedinho, em que desci para tomar café. Estava frio e a encontrei na porta
do prédio. Lhe contei da evolução do quadro e ela ouviu atentamente, até que,
segurando meu braço, meu olhou firme com seus dois grandes e expressivos olhos e
Eterna Túlasi

me perguntou: “Você está ciente de que o quadro dela é muito grave e que ela tem
pouco tempo? ” Sim, eu sabia, no fundo eu sabia, mas aquela frase, longe de soar
como uma ameaça, foi que me preparou para o que vinha. O medo se foi. Pois não
é a morte em si que nos desgasta. O que mais nos debilita, é o medo que sentimos
dela, a dúvida, o não saber quando vem. E agora eu sabia, era concreto e real. E
podia descansar da tensão e me preparar. Nada mais havia a temer. O destino se
cumpriria e eu podia parar de lutar contra o que a vida me trazia. Apenas precisava
descobrir como viveria aquilo. Talvez esse seja um dos grandes mistérios da morte:
ela assusta quando é possibilidade, mas é mais fácil de ser encarada quando se torna
certeza. No momento seguinte, quando retornei ao quarto, minhas energias estavam
renovadas. Eu só precisava amá-la, cuidar e lhe dar segurança. A morte não era uma
possibilidade, ela chegaria, assim como chegará para todos nós. E foi isso que eu fiz.
Aliviada do medo, me tornei apenas cuidado e amor...
Só voltamos a nos reencontrar no dia em Túlasi faleceu. E dias depois, foi a ela
que também recorri numa crise de ansiedade enquanto arrumava nossa casa e que
relato em outra passagem do livro. A penúltima vez que a vi foi no saguão do INCA
4, no dia em que fui buscar o corpo de minha filha. A ela entreguei remédios que
sobraram e outros objetos que poderiam ser úteis a outros pacientes. Neste dia, ela
tinha um olhar suave, acalentador. Lhe dei um grande abraço. Ela nunca precisou
me dizer muito: cada simples palavra sempre encontrou o destino e o lugar corretos
dentro de mim. Foram peças fundamentais para eu estar de pé hoje.
Hoje, vejo fotos daquela fase, mexo nos objetos que estavam no hospital e
sempre me vem aquela frase à mente: “A morte é um dia que vale a pena viver...”.
Num gesto de grande generosidade, ela me visitou dias depois. Falamos de
meus planos, do INCA, que como tudo estava se encaminhando. Até hoje, nas
poucas vezes em que precisei manter contato, ela sempre foi prestativa e certeira.
Deixo aqui, publicamente, um recado para ela:
“Querida Mabel, sei que você é junguiana. Mas me permita usar um conceito
winnicottiano para te me referir a você: fostes e és, uma cuidadora “suficientemente
boa”. Soubestes conter minha dor, não com limites, mas com um holding que poucas
vezes vi alguém ser capaz de oferecer. Fostes minha segurança, meu porto seguro.
Só por estares ali, caso eu precisasse. Me bastava isso. Nunca quis um colo, queria
um braço forte e tatuado de uma guerreira como eu. Pura identificação.
Eterna Túlasi

Transferência imediata de minha figura materna que como você, também tinha os
cabelos vermelhos e o sobrenome Krieger. Nem por encomenda eu teria conseguido
terapeuta melhor. Poucas e pequenas palavras podem destruir alguém e o mesmo se
refere à sua recuperação. Tive a honra de conhecer grandes nomes da psicologia no
decorrer de minha profissão. Mas dia desses me peguei dizendo para alguém que se
um dia eu surtar, não será nenhum deles a quem chamarei e sim, você. Tenho fama
de ser uma professora exigente e crítica. Tiro o chapéu para raríssimos colegas. Mas
você, dentre todos os outros terapeutas que tive, de longe, foi a melhor de todas. É
como se eu tivesse mostrado minha alma a você e ouvido, ainda que não tenha dito,
“está tudo bem ser assim”. Para além de elaborar a morte de minha filha, aprendi a
elaborar melhor meus medos, repensar meus limites, me aceitar mais, ser mais
generosa com a vida. Deixo aqui, minha profunda gratidão”.

Da esquerda para a direita: Ignez, nutricionista do INCA IV; Mabel (de gravata
lilás), nossa psicóloga; Sheila, a enfermeira que impediu que eu implodisse e eu, no
lançamento do livro da Túlasi, um ano depois de sua morte.
Eterna Túlasi

SAÚDE LAICA

Túlasi, havia adotado a filosofia de vida ateísta há alguns anos. E isso, agora,
viria a tornar-se um grande problema para ela. Desde que fora diagnosticada com
câncer, tudo o que ela ouvia era que devia rezar. Chegou a escutar que estava com
câncer por não acreditar em Deus! Perguntava, irônica, por que motivos outras
pessoas que creem em Deus e têm câncer, morrem. Até mesmo enfermeiras se
despediam dizendo o tradicional “fica com Deus”. Ela começou a se estressar. Presa
a uma cama e confinada em quartos ou enfermarias coletivas, não havia muito como
escapar de pessoas que entravam e, sem permissão, começavam a rezar aos pés de
sua cama.
Não sou ateia, pelo contrário, possuo uma fé imensa em Deus. Sou admiradora
de São Miguel Arcanjo e leio muito sobre espiritismo, também. Mas nunca aceitei
que as pessoas fossem coagidas a aceitar Deus ou obrigadas a terem religião. Me
incomodava ver minha filha aborrecida e irritada e passei a filtrar todo mundo que
se aproximava dela com essa intenção.
Certa vez, ainda no INCA 2, um parente se aproximou em minha ausência e,
vestida de preto, com óleos bentos na mão, passou a orar e chorar em voz alta. Túlasi,
que estava dormindo, acordou assustada, ficou nervosa com aquela visão e começou
a chorar. Perguntou-me o que pensam as pessoas que agem assim. Que Deus
concebem que não respeitam os outros, invadem a vida alheia, julgam, cobram e
fazem tudo ao contrário do que seu mestre pregou.
Depois, foram os capelães do INCA 4. Entravam em grupos e antes mesmo de
dizermos algo, disparavam a falar de Jesus e salvação. Um dia, lhe perguntaram se
ela queria uma bênção, a resposta foi que preferia um copo d’ água...
Nunca aceitou crucifixos no quarto, terços de presente ou santinhos. Recusava
qualquer símbolo religioso.
Até que conhecemos o Almori. A despeito de ser pastor evangélico, jamais
pronunciou as palavras “Deus – Bênção – Jesus – Rezar”. Ríamos com ele, que
acabou por se interessar por suas pinturas. Falava de sua filha, da vida em geral e
dizia que fé nada tinha a ver com religião e sim com uma postura positiva diante da
vida e que a morte nada mais era do que mais uma das etapas da vida.
Eterna Túlasi

Um dia, conversando a sós com ele, me disse que achava ela uma pessoa muito
evoluída e espiritualizada e que pessoas assim, não precisam de uma instituição ou
de um credo. Foi muito bom ter ele conosco. Ele nos ajudou a proibir visitas
religiosas em seu quarto e nos apoiava em nosso posicionamento. E abriu as portas
para que ela se interessasse por saber mais sobre espiritualidade – compreendendo-a
como uma outra dimensão da vida - sem estar vinculada à Deus ou religiões.
Transcrevo abaixo, a carta que ele nos enviou após sua morte:

NÃO EM NOME DE DEUS...

“Ao final de junho de 2015, percorrendo o corredor do hospital, deparei-me


com uma linda jovem, pintando um desenho num livro. Sua atitude e a lembrança
daquele momento, trago comigo até hoje os dias de hoje, pois me inspiram a auxiliar
outras pessoas. Como foi produtivo aquele momento com a Túlasi.
Quem sou eu? Sou uma palavra forte, sou Capelão! Atribuição que se usada de
forma correta, pode ajudar pessoas a encontrarem seus rumos, seus destinos. Ser
capelão é ser sacerdote, um ministro religioso que não faz distinção de credo, cor ou
poder aquisitivo. Levando sempre amor, carinho e um conforto que às vezes não é
encontrado, nos familiares ou amigos que acompanham os pacientes no hospital. Me
chamo Almori e faço parte da equipe multidisciplinar do INCA no Rio de Janeiro.
E tive uma missão nada fácil: ser o Capelão que prestaria conforto espiritual a
uma paciente ateia, com aversão à religião, que se recusava a falar a palavra Deus e
que proibiu qualquer pessoa da equipe de falar sobre Jesus perto dela. Um desafio e
tanto!
Mas voltando ao assunto: na impossibilidade de usar uma Bíblia ou qualquer
outro livro sagrado, meu instrumento de contato e apoio foi um lápis de cor. Com
ele nas mãos acompanhei Túlasi, tentei lhe suavizar as dores, tristezas e suas
emoções. Ela dizia que pintar era uma atitude capaz de lhe trazer uma paz interior,
silêncio, o esquecimento da doença e o transporte para um mundo belo e cheio de
paz. E era capaz de contagiar a quem lhe acompanhava...
Um dia disse à mãe que o que ela sentia ao pintar devia ser a mesma coisa que
as pessoas buscavam orando ou meditando. Conheci Túlasi, aquela fortaleza, que
Eterna Túlasi

procurava uma paz interior que nenhuma religião poderia lhe proporcionar naquele
momento, apenas o carinho da mãe a transportava a um estado de paz.
Aquilo me surpreendia...
Aprendi com essas duas personalidades, a descontruir e a estar sempre pronto
a reconstruir novas formas de ser em nossas vidas. Acompanhei uma muralha de
graciosidade que precisava encontrar seu verdadeiro eu, suas verdadeiras respostas.
Entrei em seu barco e juntos, passamos por tormentas gigantes naquele período, mas
a Túlasi era a comandante daquele barco, tinha o leme em suas mãos, sendo
acompanhada por sua mãe. Fui apenas um marinheiro sempre pronto a ajudar sua
comandante rumo ao seu destino. Túlasi partiu para seu horizonte, seguindo seu
rumo, sua lua, sua estrela... Que brilha até hoje nos olhos de crianças carentes, no
amor da mãe, no amor ao próximo. Aprendi que com um simples lápis de cor e papel,
podemos desenhar nosso destino e nosso futuro... Obrigado, Túlasi!”
Almori

Mas Túlasi sabia que eu rezava em silêncio e costumava chamar Deus de “meu
amigo imaginário”. E um dia, quando as coisas ficaram mais graves, ela me pediu
que falasse “com Ele”. Perguntou-me como era isso de Deus existir e permitir tanta
coisa ruim no mundo. Expliquei que temos livre arbítrio e que não O via como um
“solucionador de problemas”, apenas o Criador, onde podemos buscar forças e
inspiração para que nós mesmos resolvamos as coisas e trilhemos o caminho do bem.
Mas isso tudo só mudou poucos dias antes dela morrer...
Curiosa sobre as possibilidades de vida após a morte, passamos a assistir vídeos
científicos sobre o tema. Experiências de quase morte, relatadas por médicos e
pacientes. Vídeos de cientistas que falavam sobre metafísica e física quântica, que
descreviam outras dimensões e tipos de energia mental. Falavam sobre espíritos, mas
como sendo uma energia, sem o viés religioso. Ela ficou muito interessada.
Até que encontrei um livro: Uma prova do Céu. Estava na fila do caixa de uma
loja e o vi em uma prateleira. Resolvi olhar a contra capa e achei que Túlasi iria se
interessar. A sinopse dizia: “Cético, defensor da lógica científica e neurocirurgião há
mais de 25 anos, o Dr. Eben Alexander viu sua vida virar do avesso quando passou
por uma experiência que ele mesmo considerava impossível. Vítima de uma
meningite bacteriana grave, ficou em coma por sete dias. Enquanto os médicos
Eterna Túlasi

tentavam controlar a doença, algo extraordinário aconteceu. Eben embarcou numa


jornada por um mundo completamente estranho. Sem consciência da própria
identidade, foi mergulhando cada vez mais fundo nessa realidade difusa, onde
conheceu seres celestiais e fez descobertas transformadoras sobre a existência da vida
após a morte e a profunda relação que todos nós temos com Deus. Quando os
médicos já pensavam em suspender seu tratamento, o inesperado aconteceu: seus
olhos se abriram. Ele estava de volta. Mas nunca mais seria o mesmo. Aquela
experiência levou-o a questionar tudo em que acreditava até então. Afinal, como
neurocirurgião, ele sabia que o que vivenciou não poderia ter sido uma mera fantasia
produzida por seu cérebro, que estava praticamente destruído. Analisando as
evidências à luz dos conhecimentos científicos, o Dr. Eben decidiu compartilhar essa
incrível história para mostrar que ciência e espiritualidade podem – e devem – andar
juntas. Narrado com o fascínio de um paciente que visitou o outro lado e com a
objetividade de um médico que tenta comprovar a veracidade de sua experiência,
este é um livro emocionante sobre a cura física e espiritual e a vida que se esconde
nas diversas dimensões do Universo”.
E o mais interessante: após passar por esta experiência, este médico abandonou
sua religião pois afirmou que Deus é uma energia criadora, nada tendo a ver com a
representação religiosa que se faz dele. Levei o livro e o li primeiro, para ver se não
haveria algo sensacionalista ou com tom milagreiro que fosse desagradá-la. Marquei
algumas passagens interessantes e lhe mostrei. Ela animou-se com a ideia e passei a
ler trechos para ela todos os dias.
Ela me explicou que seria ilógico não crer numa força criadora, mas que isso
nada teria a ver com condutas morais, pecado, comércio de indulgências, adoração
a mestres etc. E continuamos nossa pesquisa.
Até que um dia ela me chamou e disse: “Mãe, acho que está mesmo chegando
a hora de eu ir...”. Perguntei o motivo de pensar assim. Então ela me disse que, já há
alguns dias, começara a sonhar com anjos. Pedi que me descrevesse os sonhos e ela
explicou que eram seres muito bondosos, cercados de luz, usando vestes claras e
dotados de asas. Diziam-lhe que tinham vindo cuidar dela naquela fase e que em
breve iriam levá-la a um local muito especial, mas que ela não precisava sentir medo,
pois ela iria aprender a voar. Lhe perguntei o que sentia quando tinha sonhos assim
e ela disse, com lágrimas nos olhos: “Me sinto muito bem com eles, segura, tranquila,
Eterna Túlasi

tem horas que gostaria que me levassem mesmo para este tal lugar, mãe... creio que
lá eu não sentirei mais dor...”.
Daquela noite em diante passamos a fazer mentalizações e visualizações.
Sugeri a ela que pensasse em sua noção pessoal de paraíso. Ela descrevia uma linda
floresta, com lindas árvores, cachoeira, flores e borboletas. E sempre se imaginava
voando numa espécie de clareira, assim como se sentiu livre no picnic da Floresta da
Tijuca. De fato, naquele dia, ela havia dito para nossa prima, Patrícia, que guardaria
aquela imagem na mente para quando tivesse que retornar ao hospital, fechada num
quarto. E foi exatamente assim que, um dia, ela encontrou sua plena liberdade...
Eterna Túlasi

O PADRINHO

Ileno já estava, há muitos anos, em minha vida. Ex orientador de mestrado e


doutorado, tornou-se meu sócio no consultório, grande amigo e companheiro de
lutas pelos Direitos Humanos. Fundou comigo, o Personna, onde Túlasi atuou. E
após ouvir muitos relatos sobre a minha relação com ele, ela deixou de vê-lo apenas
como meu parceiro e sócio, dando-lhe um lugar especial na vida dela.
Certo dia, eu e ela conversávamos sobre o trabalho, a vida, os desafios, as
pessoas com as quais podemos contar. E ela me perguntou o que eu sentia e pensava
sobre ele, para além dos meros relatos de fatos e acontecimentos que eu sempre fazia.
Comecei a relatar meus sentimentos e minhas impressões e finalizei com: “A
despeito de algumas dificuldades de relacionamento que temos (pois todos as têm),
ele é uma das melhores pessoas que eu conheço e é com você e com ele que pretendo
partilhar minha luta pelos direitos das pessoas menos favorecidas, filha”. Ela estava
com lágrimas nos olhos e sorrindo, disse: “Sinto que ele é muito parecido conosco,
mãe. Tenho carinho e admiração por ele, por tudo o que você me conta. Gostaria de
estar mais perto, o conhecer melhor, aprender com ele. Queria fazer um pedido: será
que ele pode ser meu padrinho de coração”? Havia uma grande surpresa. Não
imaginava que ela fosse sentir tamanha identificação com ele. Ela riu e me explicou
que seu padrinho de batismo sempre fora ausente e que não era uma pessoa com a
qual tivesse coisas em comum. Mas explicou que devido ao pouco contato, não tinha
coragem de lhe pedir pessoalmente, temia a negativa e por isso pediu que eu
intercedesse. Respondi que iria lhe fazer o convite e ver o que respondia, mas avisei
que ele era uma pessoa muito seletiva e que não sabia qual seria sua reação a tal
convite.
Dias depois, falando com ele sobre ela, contei de seu pedido. Também não
pude imaginar a sua reação. Um silêncio de surpresa, olhos emocionados, instantes
de reflexão e um “sim, é uma honra para mim...”. Liguei para ela logo depois e ela
rindo com a novidade, respondeu: “Ele, o grande Ileno Costa me aceitou? Ha, ha,
ha, ele até que não é tão durão assim...”.
E foi dessa forma que um relacionamento diferente, curto, intenso e que
também creio eterno, frutificou. Mas nenhum de nós imaginou os desafios que esta
nova relação traria a todos os envolvidos.
Eterna Túlasi

Quando recebi o diagnóstico dela, senti que eu iria implodir. Mas há uma
coisa ainda pior: dar a notícia aos demais... Pensei nele, em como diria, como iria
reagir, qual a melhor forma. Demorei uns dias para criar coragem, mas ele já notara,
por me conhecer bem, que algo errado estava acontecendo. Mas quando finalmente
decidi, ele havia viajado. Mas continuava insistindo em saber o que estava se
passando com ela. Por também conhecê-lo bem, imaginei que talvez uma notícia à
distância, por escrito, daria a ele a oportunidade de processar melhor a informação.
Sentei diante do computador e redigi o seguinte e-mail:
“Meu caro, seguindo o pedido de lhe contar tudo, aviso que vou precisar muito
de você. Recebi hoje uma péssima notícia e ainda estou em profunda negação. Não
chorei, não desfaleci e continuo a rotina. Mas não sei como ficarei após essa fase e
caso eu desmorone, surte ou algo assim, é melhor que você saiba do que se trata. Não
vou te ligar para falar disso, mas tenho que falar... Túlasi acaba de receber um
diagnóstico, confirmado, de câncer. Ela não quer que eu conte para ninguém, mas
essa eu não consigo encarar sozinha e em silêncio. Esperava tudo da vida, menos
isso. Ela está do mesmo jeito: como se nada tivesse acontecido e se dizendo
confiante. Não sabemos se terá que operar, tirar o útero e fazer quimioterapia ou
rádio. Parece um pesadelo. Não consigo acreditar. Acabei de sentir alívio por meus
exames estarem ok, lembra? Porque tinha que ser ela, meu Deus???? Portanto, peço
que entenda eventuais ausências, rompantes, choros ou sei lá mais o que vou ter. Ou
não... Uau, dessa vez “o outro lado” botou para quebrar! Sorry pelas bad news, mas
você sempre fica bravo quando não compartilho as coisas. E confesso que preciso de
ajuda, pois essa, vai ser foda...”
Momentos depois, recebi sua resposta: “Meu Deus! Que Ele nos ouça... Te ligo
amanhã, me pegou em cheio... perdão, mas não consigo mais que dizer, neste
momento, que continuamos juntos... sempre... e que Ele não nos teste tanto mais
que isso... de coração doído... tô junto, não me deixe fora... É o que consigo dizer
agora...”
Mas de todas as coisas que eu sabia sobre aquele homem forte e destemido,
uma eu desconhecia: sua dificuldade para lidar com doenças e hospitais. Só soube
disso há pouco tempo, quando a filha dele me contou algumas situações passadas.
Não imaginava, então, que o que passaríamos com a Túlasi seria duplamente difícil
para ele. Mas passei a admirar, ainda mais, a coragem que teve para estar ao meu
Eterna Túlasi

lado nos momentos tão duros que compartilhamos, mesmo quando não estava perto
fisicamente.
Foi com ele que passamos a última Páscoa dela, tomando um longo café da
manhã, comendo chocolates e filosofando sobre nosso trabalho. E foi neste dia que
tiramos a única foto que temos dos três juntos e sorridentes após ele ter aceitado,
pessoalmente, o convite para apadrinhá-la.

As semanas foram passando e ele me apoiou e liberou para que eu largasse tudo
e cuidasse dela. Poucas pessoas sabem o que significou para ele administrar uma
agenda completamente abarrotada de atividades e incorporar, também, a minha. Até
hoje não imagino a mágica que fez para dar conta de tudo sozinho. E a despeito de
ser sempre um sócio, orientador e chefe extremamente exigente, que sempre colocou
o trabalho acima de tudo, ele nem uma vez sequer, me pediu que voltasse.
Em abril de 2015, quando eu tinha que defender a tese de doutorado, ele me
ligou no Rio e disse: “Podemos cancelar tudo, remarcar, arrumar outra data. Você
tem bastante prazo ainda. ”
Mas a questão era exatamente o contrário: Túlasi queria muito ver a tese
aprovada, havia ajudado em vários trechos e no, fundo, temia que se eu postergasse,
ela não pudesse ver o trabalho sendo aprovado. Além disso, me confessou que se
sentiria extremamente culpada por atrapalhar o trabalho do grupo do qual fazia
parte. Disse que faria uma torcida organizada virtual e que acompanharia tudo pela
internet, já que sua hospitalização não permitia que ela se deslocasse. Soube que ela
enviou uma mensagem para o padrinho dizendo que, caso eu me recusasse a ir, ela
queria que alguém fosse me buscar...
Eterna Túlasi

Registro de minha defesa de tese. Hoje, passados mais de quatro anos, mal acredito que
sobrevivi a isso tudo. Apenas Deus, em sua infinita bondade, poderia ter feito este milagre de me
manter de pé até hoje...

Ileno jamais reclamou, condenou, deu indiretas ou demonstrou sobrecarga ou


aborrecimento. Lembro de uma única vez, quando ela já havia falecido, antes de eu
voltar, que lhe perguntei, ao telefone, o motivo de sua voz tão diferente. Ele
respondeu já se desculpando: “Estou exausto, mas só quero que você volte quando e
caso sinta-se pronta para isso”.
Soube depois, que ele havia preparado uma surpresa para ir nos ver no Rio,
quando ela piorou. Mas ele sequer teve a chance de nos contar, seu pai teve uma
grave crise de saúde e ele teve que o acompanhar durante a internação. Todo o
processo não foi fácil para ninguém. A máxima “se algo puder dar errado, vai dar
errado” parece ter regido todo aquele nosso período.
Numa das vezes que vim a Brasília, ele me pediu que levasse um presente para
ela: uma coruja esculpida em madeira que ele tinha em casa. Anexou um bilhete e
pediu que eu não o lesse até entregar para ela. Assim o fiz e o resultado foi um sorriso
iluminado no rosto de minha filha. Ela disse, às gargalhadas: “Mãe, eu não poderia
ter escolhido padrinho melhor, ele é completamente doido...”. E me mostrou o
bilhete. Após ler, ela segurou minha mão e disse, “ele sabe das coisas, né? Tem
padrinho que nos acompanha no nascimento. Este é tão diferente que talvez
acompanhe a minha partida”. De fato, o bilhete dizia:
Eterna Túlasi

“Para minha afilhada Túlasi, guerreira, bela, humana, “ingênua-danada”, que


veio “viver-ao-meu-lado”: Eis... a minha “contribuição para sua varanda: minha ex
“Zoiúda”! Zoiúda para te ver, para te lembrar que estou atento, para lhe acalmar...
rs... Só tenho um pedido: se você “ficar conosco”, guarde-a sempre com você, mas
se nos deixar, leve-a contigo, porque a Zoiúda te ama!!! Do seu padrinho “maluco”.

E assim desenvolveu-se a relação deles durante aquele período: trocas de


mensagens, vídeos, áudios, risos e lágrimas, mas algo que eu nunca havia visto minha
filha fazer: confiar inteiramente em alguém que não fosse eu.
Os meses se passaram e foi a ele que recorri quando situações mais complexas
se apresentavam: problemas com a família, decisões a serem tomadas, dificuldades
mais extremas. E ele manteve a calma e a serenidade (ao menos enquanto conversava
comigo!), me aconselhando e orientando. Houve dias em que eu já não conseguia
mais pensar, qualquer sobrecarga emocional, para além do quadro da doença dela,
me paralisava. E ele fez o papel de minha “mente auxiliar”, ajudando-me a decidir,
com base no que já conhecia de nós.
Um dia, um de nossos alunos brincou com a formação de nosso trio,
apelidando-nos de “A Perigosíssima Trindade”, já que trabalhávamos com
prisioneiros e crimes. E como toda trindade, ela solidificou-se numa ocasião para lá
de especial. Ileno havia viajado para o México e Túlasi quis falar com ele. Foi
durante esta internação no INCA 4, algumas semanas antes dela morrer. Ele lhe
contou que visitaria o Museu da Frida Khalo, em sua homenagem e que mandaria
fotos para ela ver. Ela riu e pediu que ele trouxesse Tequila para ela. Não entendemos
Eterna Túlasi

bem, afinal, nesta ocasião ela estava sob forte medicação. Mas tudo se esclareceria
depois, numa conversa que tivemos no dia seguinte. De forma leve e casual, ela
puxou o assunto da festa que queria, no lugar de um funeral. Àquela altura já
havíamos aprendido a falar do assunto sem tanto peso. Explicou-me que a tequila
seria para festa e que, em homenagem à ele, à sua admiração pela Frida Khalo e pela
cultura mexicana que festejava seus mortos, desejava este tema.
Quando expliquei a ele qual era a finalidade de seu pedido, ele engasgou, mas
manteve a promessa e hoje, a garrafa fazia adornada por um mini sombrero, repousa
ao lado da foto dela, na minha estante da sala.
Decididos todos os detalhes, dias depois, ela me confessou que já não
aguentava mais. Sentia-se cansada e inútil. Já não conseguia andar mais do que
poucos passos, suas mãos estavam sempre muito trêmulas, devido a seu quadro geral,
a dor só era aliviada por Metadona, pois a Morfina já não fazia efeito. Seus dias se
transformaram numa rotina onde febre, sangramento e dor se intercalavam. Ela
estava muito, muito fraca. Me chamou e disse que estava desistindo. Não fazia mais
sentido lutar. Explicou que a motivação das pessoas doentes, com perspectiva de
melhora, era a cura, mas a dela era apenas a morte, pois o desfecho de uma doença
terminal, é conhecido de todos. Disse que era impossível lutar quando se tem a
certeza da derrota. E disse que ia pensar sobre o que fazer. Dias depois, redigiu a
segunda versão de seu testamento, antes de solicitar a sedação. Pediu então, que eu
ligasse para seu padrinho, pois queria se despedir. Pediu que a deixasse a sós, queria
ter uma conversa em particular.
Assim o fiz. Foi uma longa conversa e quando retornei ao quarto ela parecia
aliviada. Não lhe perguntei sobre o que falaram, achei que aquele momento pertencia
apenas aos dois. Mas pude imaginar seu teor, confirmado por ele, meses depois: ela
pedira que ele cuidasse de mim, me mantendo ocupada com o trabalho e me dando
apoio e força para prosseguir, quando ela já não estivesse mais aqui. E assim foi sua
despedida. Ainda chegaram a trocar algumas mensagens, vídeos e áudios depois,
mas a sua partida já havia sido anunciada...

FLORENCE + THE MACHINE - DOG DAYS ARE OVER


https://www.youtube.com/watch?v=iWOyfLBYtuU&list=PL0b0z5BpzP4RSLOs
YgGZSCMELbGclsMti&index=10
Eterna Túlasi

A ROTINA DOS ACOMPANHANTES

Sem dúvida, o sofrimento de um paciente com câncer é algo avassalador. E


quem os acompanha, apesar de sofrer de forma diferente, experimenta sentimentos
aterradores de impotência, angústia, cansaço físico, desespero e muita ansiedade.
Não é à toa que a maioria de nós cai doente, logo após a partida de seus entes
queridos. A sobrecarga emocional, mental e física é extenuante.
Acompanhar em casa é um desafio à parte. Se por um lado, estamos num
ambiente familiar com uma rotina mais maleável e podendo receber visitas a toda
hora, por outro, não temos profissionais para cuidar do enfermo, nem a segurança
de sermos socorridas imediatamente, caso algo aconteça. Fora isso, no meu caso,
em particular, acumulei as tarefas de lavar, cozinhar, limpar a casa, ir ao
supermercado e à farmácia, tudo acrescido dos cuidados com ela (dar banho, trocar
fralda, alimentar, dar medicação e ajudar nos exercícios). Como se a doença e a
rotina não fossem suficientemente pesadas, acrescenta-se a necessidade de nos
mantermos calmos, equilibrados e fortes. E estar desperta e atenta, mesmo
acordando sobressaltada a cada meia hora, no meio da noite. Ou seja, uma tarefa
que para mim, confesso, tomou proporções hercúleas. Após seu falecimento,
cheguei a dormir cerca de 14 a 15 horas diárias, por um período de quase cinco
semanas. A sensação era de uma exaustão completa.
Mas de onde veio essa força toda? Confesso que desconhecia minha
capacidade. Logo que vi o que me aguardava, pensei que não daria conta. Não sei
explicar bem, mas é como se cada dor que eles sentissem, nos provesse de um pouco
de força. Ver um filho sofrer é algo que mobiliza sentimentos viscerais e ancestrais.
Nosso cuidado objetiva a sobrevivência de nossa prole e esse ímpeto me
acompanhou até o fim, ainda que eu soubesse da perspectiva desanimadora. O
importante era cuidar, sempre da melhor forma possível e com todo amor. Frente à
certeza da morte, também queremos fazer o melhor: evitar sofrimentos
desnecessários, minimizar desconfortos, afagar, nos colocar em segundo plano,
antecipar desejos e necessidades.
Após sua morte, procurei esclarecer com um espírita o que eu deveria ou não
deveria fazer para evitar atrapalhar de alguma forma a sua evolução espiritual
(mesmo eu não sendo espírita, afinal, se há uma possibilidade de vida após a morte,
Eterna Túlasi

quis me assegurar de que lá ela também estaria bem!). Pensei na importância de eu


não me entregar a dor, de cuidar de mim, de emitir boas energias e vibrações
positivas, de não eternizar um luto de dor e lágrimas. Túlasi se preocupou muito
com isso e ficaria muito mal se visse minha vida se destruir.
Procuro, até hoje, falar dela com alegria, ter seus pertences em casa, cercados
por quadros alegres, plantas e coisas que elevem o astral. Não me perdoaria por ser
a responsável pela alma de minha filha se encontrar aflita e preocupada, ainda que
essa seja uma mera hipótese.
Não foi fácil me recuperar, ainda que minimamente, do desgaste que sofremos.
Ao longo de todo o tratamento, vivi a rotina de acompanhante nos dois hospitais: o
INCA 2 e o INCA 4 (com incursões pelo INCA 1, para acompanhar exames). A
despeito das realidades distintas, nenhuma delas é fácil, mas a união entre aqueles
que estão ao lado de seus familiares e amigos, ajuda bastante na superação das
dificuldades. Neste contexto, não se trata de dividir alegrias e tristezas e sim de
dividir apenas tristezas, mais ou menos ruins.
Há uma coisa em comum dentre a maioria dos acompanhantes que conheci lá:
nenhum de nós poderia, a rigor, estar ali. Éramos profissionais autônomos, pessoas
com problemas de coluna, gente idosa, mães de bebês pequenos etc. De alguma
forma, ainda assim, dentre os demais amigos e familiares, fomos os que acabaram
encontrando uma forma de driblar tais problemas e cuidarmos de nossos entes
queridos.
No primeiro dia em que sentei-me à mesa do INCA 2, fiquei muda de susto:
minha pouca familiaridade com a evolução desta doença tão cruel fez com que eu
me sentisse soterrada pela conversa dos demais, que mais assemelhava-se a uma
competição de tragédias – relatos de paradas cardíacas no meio da noite, outro que
havia sido entubado, um óbito no andar debaixo ou a hemorragia incontrolável do
parente de um deles. Aquilo foi uma amostra do que me esperava e pensei que eu
precisaria ser forte, muito forte!
Desde o início, percebi que o sofrimento do acompanhante pode ser maior nos
casos de falta de informação e/ou da impossibilidade de cuidar de seus familiares em
casa. O INCA é democrático, por ser a maior referência em oncologia do país, acolhe
ricos e pobres, pessoas bem informadas e outras nem tanto. Assim, desconhecer a
natureza da doença e seu desenrolar, tentar entender o que os médicos se esforçavam
Eterna Túlasi

para explicar, ainda que da forma mais simples possível, era um desafio a mais para
os menos instruídos. Tive a oportunidade de conhecer uma senhora de 71 anos que
trabalhava como faxineira e cuidava da irmã de 81 anos, com câncer, num barraco
situado no alto de um morro. Ou ela trabalhava ou cuidava da irmã e ela só sabia
chorar de desespero... Encaminhei-a para uma conversa com a assistente social, que
auxiliou no planejamento do tratamento domiciliar. Enfim, ela teve uma pouco mais
de calma para se organizar. Tive a alegria de vê-las terem alta (sim, nós, os
acompanhantes, conjugamos tudo no plural, pois nos internamos junto com eles,
vivemos a rotina deles e temos alta junto com eles...) e só voltamos a nos encontrar,
depois que ambas perdemos nossos entes queridos, na recepção do hospital. Nos
consolamos mutuamente. Ali se criam vínculos improváveis.
Em ambos os hospitais há rotinas comuns: horários fixos de alimentação nos
refeitórios, reunião com as equipes de profissionais, rotina de entrada/saída/troca
de acompanhantes etc.
As acomodações diferem: no INCA 2 só pacientes com quadros especiais podem
ter companhia durante a noite, para dormir. Outros podem ser acompanhados
durante o dia e alguns, apenas recebem visitas, depende do caso. No INCA 4 o
acompanhamento é uma exigência da instituição, devido à gravidade dos quadros
ali presentes. Os quartos contam com uma espécie de sofá cama, para cada pessoa
que cuida do paciente. Se no INCA 2 algumas enfermarias chegam a acomodar até
seis pacientes, no INCA 4 o padrão é de dois por quarto, havendo, ainda, instalações
individuais de um quarto com banheiro, dotados de uma pequena varanda.
Já no primeiro, os acompanhantes precisam dormir em cadeiras e em algumas
enfermarias, há poltronas num corredor externo. Dormir sentado é um adicional de
sofrimento para quem passará o dia de pé, tenso com cada sintoma de piora. Sem
falar da falta de noção de alguns pacientes e familiares, que mantêm os celulares
ligados durante a madrugada e a cada ligação recebida, acordam todos os demais
colegas de enfermaria. No INCA 4 não tivemos este problema pois ficamos, quase
todo o tempo, num quarto individual. Mas alguns profissionais eram um caso à
parte: até que solicitássemos por escrito, várias vezes fomos acordadas às três horas
da manhã por um técnico de enfermagem ou faxineira que abria a porta com
violência, acendia todas as luzes e falava bem alto BOM DIIIIIAAAAAA! Na
segunda vez em que isso aconteceu, Túlasi respondeu que jamais poderia ter um
Eterna Túlasi

bom dia sendo acordada daquela forma, numa das poucas noites em que estava
conseguindo dormir sem dor. O fato não se repetiu mais.
Além disso, poucos parentes e amigos possuem disponibilidade para
acompanhar várias internações que podem, cada uma, chegarem a mais de um mês
de duração. Assim, reclusos naquele ambiente hospitalar, nos sentimos também
internados (e claro, extremamente adoecidos, física e mentalmente...). Este é um dos
motivos pelos quais no INCA 4 oferece atendimento estendido aos familiares. É
importante para o paciente e para equipe, que estejamos em bom estado, de forma a
propiciarmos um auxílio de qualidade a eles. Desta forma, além das visitas externas,
que duram cerca de duas horas por dia, nosso contato social se resume à convivência
com os demais acompanhantes, nos horários das refeições ou em rápidos encontros
no corredor.
Vale ressaltar que não se consegue comer em paz: se por um lado é muito bom
poder sair um pouco de dentro do quarto e desfrutar da convivência com outras
pessoas, por outro, o receio de que em nossa ausência algo grave aconteça, nos deixa
ansiosos por logo retornar.
Entretanto, a motivação em comum para estarmos ali, acaba por propiciar uma
intimidade rápida, profunda e curta, cuja consequência pode transformar-se num
longo vínculo. Como acabou se transformando em amizade duradoura, o contato
que tive com outros três acompanhantes de lá. Afinal, nas relações sociais comuns,
os assuntos mais densos e problemáticos costumam ser evitados até que, passado
bastante tempo, consideremos esta pessoa um melhor amigo ou “quase da família”.
Num hospital, esta lógica não existe: os assuntos compartilhados são a prisão de
ventre do pai ou a sonda urinária da mãe. Isso, desde os primeiros dias. Também é
bastante comum não encontrarmos mais nosso novo “amigo” na refeição seguinte:
ou seu familiar teve alta, num momento em que você não se encontrava no hospital,
ou o pior aconteceu... Cansada de ficar conjecturando sobre o que havia acontecido
com meus novos companheiros, passei a anotar o telefone daqueles com quem havia
conversado mais de uma vez, de forma que pudéssemos nos manter mutuamente
informados. Isso nos poupava uma preocupação a menos.
O INCA 4 tornou estes vínculos ainda mais significativos. Por tratar-se de uma
unidade de cuidados paliativos, o índice de óbitos é bem maior do que nas outras
unidades. E isso não é algo fácil de lidar. Justiça seja feita: as equipes fazem o
Eterna Túlasi

impossível para que esses óbitos passem despercebidos dos demais acompanhantes
e pacientes, realizando os procedimentos da forma mais discreta possível, mas
quando o óbito ocorre na cama ao lado da sua, não há como ser ignorado.
Outra coisa que nos causava arrepios era a maca branca, sem colchão, que
subia do necrotério para recolher os corpos do andar. Todos sabiam o que ela
significava quando a víamos de relance no corredor. A despeito dos maqueiros
utilizarem um elevador privativo e específico para este fim, várias vezes a notamos
no curto trajeto entre a enfermaria e ele.
Além disso, alguns acompanhantes têm reações extremadas à perda de seus
familiares e acabam por protagonizar cenas de choro convulsivo, desmaios e gritos
no corredor do andar. Para nós, aquele é o sinal de que “mais um se foi” e de que
seu acompanhante necessita de apoio. É impossível não pensar “serei o próximo”?
Depois que minha filha presenciou o óbito em sua enfermaria e ficou bastante
angustiada, decidi omitir os que ela não presenciava. Sempre que eu retornava do
refeitório, ela perguntava em tom de brincadeira (mas claramente disfarçando o
temor): “E aí, mãe, alguma BAIXA hoje? ” Sempre respondi que não e deixei que
ela lidasse apenas com os choros que ouvia do corredor. Ela já sabia o que
significavam.
Em alguns, confesso que menti, disse que o paciente apenas havia passado mal
e que seu familiar se descontrolara. Não é fácil ter que lidar com a perspectiva da
própria morte e ainda administrar uma média de quatro óbitos por dia em seu andar.
A despeito de seu ateísmo, ela sempre fez questão de enviar os pêsames quando
era algum paciente conhecido que falecia e por duas vezes acabou dizendo: “Rezarei
pela alma dela...”
Hellen foi uma das amigas que fiz no INCA 4: logo que iniciamos o tratamento
ambulatorial lá, a encontrei na fila da farmácia interna. Surpresa pela quantidade
imensa de sacolas que ela estava carregando, ofereci ajuda. Ela, então, me contou
que o marido acabara de ter alta, após uma internação de emergência, pós-cirurgia.
Estava feliz por retornar para sua casa e seus filhos (três crianças pequenas), mas
estava preocupada se conseguiria cuidar adequadamente do marido.
Ela é uma moça muito bonita, com cerca de trinta anos e seu esposo, apenas
um pouco mais velho. Fiquei intrigada por conhecer alguém, com quase a mesma
idade de minha filha, naquelas mesmas condições pois a maioria dos pacientes de lá
Eterna Túlasi

é bem mais velha. Ela contou-me que ele era atleta, forte e saudável, mas que o
câncer instalou-se rapidamente, evoluindo na mesma velocidade. Já lutavam há
mais de um ano contra a doença e agora ela estava muito esperançosa sobre sua
recuperação. Infelizmente, semanas depois, quando minha filha se internou,
encontrei-a no elevador, subindo para internar o esposo mais uma vez. Ele veio a
falecer dois dias depois da minha filha e durante os dias em que estivemos em
quartos contíguos, nos pegamos, várias vezes, contemplando o familiar uma da
outra e achando uma crueldade pessoas tão jovens e fortes se acabassem assim... Até
hoje mantemos contato e como eu, ela luta para recomeçar a vida e cuidar da família
que ficou.
Já o Edson e sua irmã, revezavam-se nos cuidados com a mãe deles, uma
senhora idosa. Fomos companheiros de internação por cerca de três emanas, tempo
suficiente para chorarmos juntos, nos consolarmos mutuamente, compartilharmos
segredos de família e rendermos uns aos outros na vigilância do sono de nossos
familiares, enquanto um de nós ia até o café ou falava com o médico.
Certo dia, eles se ausentaram por cerca de meia hora e a mãe ficou sozinha.
Como regra do hospital, não podemos entrar nos quartos uns dos outros, nem tocar
em nenhum outro paciente que não seja nosso familiar (para evitar infecção
hospitalar e outros problemas). Mas da porta da enfermaria notei que a máscara de
oxigênio da mãe deles se desprendera e ela, inconsciente, não tinha como apertar a
campainha para chamar a enfermeira. Voei pelo corredor e pedi que alguém a
socorresse. Durante o tempo em que esteve lá, lamentei, também, a situação dela.
Lá não se sofre sozinho e sofremos também pelos demais. Edson se tornou um bom
amigo e sua mãe faleceu cerca de uma semana antes da minha filha. No dia, me
senti arrasada por ele. Não tive como disfarçar os olhos vermelhos de lágrimas e
Túlasi acabou por me abraçar, lamentando também. Para quem acha que talvez seja
uma solução melhor não se envolver com os demais familiares, lhes digo que a tarefa
é quase impossível, devido à proximidade constante e à situação ambígua. Se por
um lado sofremos com as perdas deles, por outro, são eles que também nos consolam
em nossos momentos mais difíceis...
Outros acompanhantes que me marcaram, foram dois homens: um
acompanhava a filha (da mesma idade que a minha, em outro andar) e outro, sua
mãe. O primeiro, sentava-se animadamente conosco, no refeitório do INCA 4 e
Eterna Túlasi

relatava os planos que tinha para quando sua filha saísse de lá curada. Era
constrangedor. Os demais acompanhantes entreolhavam-se sem saber o que dizer.
Muitos pacientes chegavam a ter alta, mas apenas para voltarem a se internar logo
depois ou nos piores casos, morrerem em casa. Cura é uma palavra quase
incompatível com o estado terminal dos pacientes que são encaminhados para
aquela unidade. Há apenas um relato, quase uma lenda urbana, de que uma senhora
teria tido alta e vivido bem por mais 14 anos em casa. Mas ninguém sabe dar detalhes
deste caso ou se realmente existiu. Um dia, pedi que a psicóloga conversasse com
ele. Não seria fácil se despedir de uma filha tendo, ainda, tantos planos. Dias depois
ela teve alta e foi para casa, mas retornou dias depois, falecendo um dia antes que
Túlasi. Por estarem em outro andar, só soube no dia seguinte, quando já haviam
deixado o hospital. Posso imaginar sua dor...
O outro, mais jovem, que acompanhava a mãe, tinha uma crença religiosa
muito forte. A cada frase, ele falava do milagre que esperava que Jesus fizesse na
vida deles. Sempre sorrindo e otimista, atribuía qualquer piora no quadro dela à
negligência da equipe. Nos encontrava no corredor, logo cedo, e dizia: “Hoje é o dia
em que o Senhor irá curar a minha mãe! ” Eu não sabia o que responder a não ser
um tímido “amém”. Neste caso, eu também imaginava o desfecho trágico, pois
segundo me informaram os enfermeiros, ela tinha poucos dias de vida. E não foi
diferente do esperado: na noite em que sua mãe faleceu, o andar inteiro foi tomado
pelos gritos de desespero do rapaz. Poucas vezes na vida eu presenciara uma cena
tão desoladora. Por “sorte”, nesta época minha filha já se encontrava sedada e não
testemunhou a tragédia. Nos dirigimos todos para a sala de atendimento familiar,
onde ele chorava convulsivamente, questionando a Deus, inconformado por não ter
recebido seu tão esperado milagre. Me abraçou fortemente e chorou em meu ombro,
gritando: “Tia, Deus levou minha mãe...”. Profundamente tocada com sua dor,
busquei na religião dele uma explicação plausível que o acalmasse. Lhe falei que na
oração mais importante, o Pai-Nosso, dizemos “seja feita a Vossa vontade” e que
estar ao lado de Deus é a maior das honras que um ser humano poderia receber. E
que como a amava, deveria querer o melhor para ela. Deu certo, e ele foi se
acalmando lentamente. Pouco depois, o ajudamos a tomar as primeiras
providências, como ligar para os familiares e providenciar uma funerária. Mas se
para você que está lendo, isso parece ser um sofrimento adicional, que deveria ser
Eterna Túlasi

evitado, digo-lhe que foi ele quem dias depois, já mais calmo, passou semanas me
consolando, por mensagens telefônicas, quando minha filha se foi. Se há um lugar
onde aprendemos o que é a verdadeira empatia, esse lugar é ali.
Lá eu presenciei parte do que escrevi em minha própria tese de doutorado (que
a despeito de falar da Ética do Cuidado, refere-se a presos e não a doentes): A
MELHOR FORMA DE NOS CURARMOS É CUIDAR DO OUTRO.
Também refleti muito sobre religião. Considero que a fé numa determinada
crença seja muito importante no processo de tratamento físico das pessoas crentes.
Porém, ela também possui uma face perigosa: ao atribuir à Deus toda a
responsabilidade por nos capacitar de força e coragem para encaramos as
adversidades, deixamos de lado a busca pelo aperfeiçoamento de nossos recursos
pessoais de enfrentamento. Isso nos torna reféns de uma divindade que, nem sempre,
atende aos nossos anseios, tornando-nos submissos à dor da frustração e desprovidos
de formas para encarar as inevitáveis perdas da vida.
Desde que chegamos ao INCA 4, observamos algumas outras diferenças das
demais unidades. Devido a rotina estressante, em nosso andar (não sei se é um
procedimento comum aos demais) uma enfermeira “elegia” um acompanhante
veterano para mostrar o caminho até o refeitório e explicar os procedimentos de
rotina, aos que acabavam de chegar. Fiz parte deste “comitê de boas-vindas” por
duas semanas e cabia-me passar em cada enfermaria, chamando-os para as refeições.
Quando chegavam para se internar, eu também procurava dar informações para
deixá-los mais à vontade. A solidariedade despertada naquele lugar dificilmente
morre. Creio que poucos de nós, hoje em dia, consegue omitir-se diante do
sofrimento de alguém, depois do que passamos ali.
Estar em uma unidade de cuidados paliativos é ter constante e absoluta
consciência de que aquele pode ser o último dia de vida dos nossos familiares. Mas
se isso parece cruelmente ruim, por outro lado, é uma grande oportunidade de dizer
e fazer tudo o que desejamos, por saber que talvez não haja amanhã. Depois de tudo
o que passei, por pior que possa parecer, não consigo imaginar a dor (que considero
mais difícil de assimilar) de alguém que perde um filho de repente, de bala perdida,
por exemplo. Ouvi, em certa ocasião, de um dos acompanhantes, que ele
“enterrava” mentalmente sua mãe, todos dias, desesperado pela consciência da
Eterna Túlasi

morte, impossível de ser ignorada ali. Era uma tentativa angustiada de antever o
fato, tentando preparar-se para ele.
Mas nem tudo é assim tão “fácil”, e como diz a “Lei de Murphy”, tudo sempre
pode piorar.
O INCA 4 localiza-se ao lado do INCA 3 (unidade de tratamento de câncer de
mama) e ambas as unidades dividem o mesmo terreno, a mesma farmácia, serviço
de emergência e refeitório. E estar na fila das refeições, portando um crachá de
acompanhante do INCA 4, não é para qualquer um. Minha primeira experiência
com o que passei a chamar de “bullying hospitalar” ocorreu por acaso: com o crachá
coberto por uma echarpe que eu usava naquele dia, iniciei uma conversa trivial com
a acompanhante à minha frente. Minutos depois passamos a falar do estado de saúde
de nossos familiares. Quando eu mencionei o termo “estado terminal” foi como se
ela tivesse descoberto que eu tinha lepra! Sem sequer disfarçar, fez o sinal da cruz
com uma expressão horrorizada no rosto e logo se virou pra frente, passando a me
ignorar. Senti-me péssima e não sabia como agir, preferi manter o silêncio.
Dias depois, ainda sob efeito daquela atitude ríspida, vi-me na mesma situação:
uma mulher, com o crachá da unidade 3, perguntou em que andar eu estava
(confesso que passei a ocultar meu crachá, temendo nunca mais conseguir trocar
duas palavras com ninguém, naqueles poucos minutos de fila). Respondi que eu era
“do outro prédio”, já antevendo a reação. Não deu outra, ela arregalou os olhos e
pronunciou um “sei...” baixinho, virando-se para conversar com a acompanhante
detrás dela.
Vi que o ostracismo seria minha sina, caso eu continuasse tentando entabular
conversas com as acompanhantes do 3. Mas não sou de me dar por vencida e certa
vez encontrei uma mocinha que falava com a outra sobre o medo de sua tia ser
transferida para “aquele outro prédio”, pois encontrava-se em estado grave. A outra
respondeu que ia rezar para que isso não ocorresse, pois “para aquele lugar só se ia
para morrer”. Disse ainda que ouvira falar que era o local mais horroroso que existia
na face da terra, com moribundos pelos corredores. Não me contive: pedi licença e
perguntei à jovem se ela gostaria que eu a levasse para conhecer a unidade 4, de
forma que visse que se tratavam de instalações extremamente bonitas, confortáveis
e modernas, onde a limpeza e a beleza eram uma constante. Ela ficou chocada e
Eterna Túlasi

disse: “Sério que lá não é o inferno na terra”? Acabou aceitando meu convite e
mesmo trêmula, me acompanhou.
Pedi autorização da enfermeira chefe, explicando do que se tratava. Ela riu e
disse que eu ia acabar me tornando relações públicas da unidade de cuidados
paliativos. Jamais esquecerei do olhar de admiração da moça ao conhecer as belas
instalações. Foi ótimo isso ter acontecido, pois dias depois éramos colegas de
andar...
Túlasi passou a brincar comigo sempre que eu retornava do refeitório e dizia:
“E aí, mãe, sofreu bullying hoje? ”
Além disso, problemas de comunicação entre os familiares rendem inúmeros
dissabores para as equipes de cuidado, para o paciente e a própria família. Quando
alguém é encaminhado por outra unidade do INCA, para o INCA 4, um profissional
fornece informações detalhadas sobre a instituição, os procedimentos e condições.
Entretanto, dois fatores podem causar transtornos ainda maiores: ou o familiar que
recebe as informações não as repassa corretamente para todos os demais familiares,
ou não consegue absorver direito o que lhe foi dito (muitas vezes, por dificuldades
culturais ou emocionais que impedem uma compreensão correta de tudo o que se
passará dali por diante). Isso costuma exacerbar a sensação de vulnerabilidade e
angústia que já estão experimentando por conta da doença.
Assim, não poucas vezes, a situação que já é ruim pode adquirir contornos
ainda mais cruéis. E se há algo que ajuda a contorná-la, sem dúvida, é o afeto e o
tratamento humano fornecido, não só pela equipe, mas pelos próprios
acompanhantes.
Estes, a despeito de não possuírem preparo técnico, sabem, melhor que
ninguém, o significado de cada lágrima derramada...
Eterna Túlasi

O GRUPO VIRTUAL DE AMIGOS

Quando eu estava no Rio, muitos amigos de Brasília pediam notícias da Túlasi.


E quando eu estava aqui, eram os amigos cariocas que demandavam atualização.
Com a puxada rotina de exames, emergências e internações, era impossível
responder a cada um deles. Decidi reuni-los num grupo de mensagens eletrônicas,
pois desta forma poderia manter todos atualizados ao mesmo tempo. O grupo passou
por subdivisões, entradas e saídas de membros, de acordo com as mudanças da
situação. Chegamos a ter trinta e nove pessoas, entre familiares, amigos e
conhecidos. Alguns sequer me conheciam, eram amigos dela que desejavam notícias,
outros, nunca a tinham visto, pois eram meus colegas de trabalho em Brasília. O
critério de inclusão era estar torcendo pela Túlasi. Alguns eram católicos e rezavam;
outros eram evangélicos e oravam. Tínhamos budistas, umbandistas, mestres de
Reiki, espíritas e ateus. Estes últimos faziam pensamento positivo.
Não sei o que seria de mim sem este pequeno batalhão. Eram eles que me
enviavam mensagens de incentivo cada vez que eu confessava cansaço. Foram eles
que torceram comigo por melhoras. Choraram a cada piora, comemoraram as
pequenas vitórias. Hoje, relendo nossas mensagens, tive a dimensão do tamanho do
desafio que enfrentei. Sem eles, estou certa, eu não jamais teria suportado.
Uma das pessoas do grupo era uma amiga especial, terapeuta de Reiki.
Diariamente, às 23h, ela conclamava a todos do grupo para mentalizações de luz
sobre mim e minha filha. Virou rotina. Até Túlasi, que era ateia, entrava na sintonia,
pois sabia que Reiki tinha a ver com energias positivas e não com Deus ou religião.
Certo dia, esta amiga me ligou e disse que conseguira uma vaga num centro
espírita para ela fosse operada por um grande nome do espiritismo. Foi a época mais
crítica de sua internação no INCA 2, logo após receber o diagnóstico da fase
terminal. Perguntou se eu concordava. Respondi que teria de pedir a permissão dela.
Expliquei à Túlasi do que se tratava e, embora cética, ela disse que mal não faria e
topou. Perguntamos o que deveríamos fazer e todas as instruções nos foram
passadas. No dia e hora combinados, relaxamos e nos colocamos em uma sintonia
de cura e cuidado. Ela logo adormeceu.
Alguns dias depois, esta amiga me ligou para contar do resultado. Estava com a
voz desanimada e disse que não tinha boas notícias. Disse que a operação havia feito
Eterna Túlasi

uma cura espiritual em suas feridas emocionais e que isso traria mais paz e harmonia
para ela, mas que a cura física era impossível. Tratava-se de um carma que ela deveria
cumprir, como parte de sua jornada aqui na terra e que logo ela nos deixaria. Mas
que havia sido possível conseguir um adiamento desta data em algumas semanas.
Desta forma, ela estaria mais alegre e tranquila para desfrutar um pouco mais da
nossa companhia. Avisaram que ela teria alguns sintomas nos dias seguintes: seriam
o resultado da cirurgia espiritual e envolviam um pouco mais de sangramento,
vômitos e febre, que ocorreriam em função da limpeza das energias ruins. Logo
depois, deveríamos nos preparar para três recaídas que ela teria e que seriam o
prenúncio de sua partida. Fiquei muito triste, mas prometi a mim mesma que faria
de tudo para que suas próximas semanas fossem as melhores possíveis. Como ela
não perguntou sobre os resultados, não lhe contei o que haviam me dito. De fato,
durante os dias seguintes, ela apresentou todo o quadro descrito: vômitos leves, febre
sob controle e um ligeiro aumento do sangramento, rapidamente controlado. Mas o
Reiki continuava...
Dias depois, eu estava na farmácia, quando recebi uma ligação do Ileno,
padrinho da Túlasi, contando-me que esta amiga havia acabado de falecer. Mal pude
acreditar. Não sabia como contar para minha filha. Mas achei que ela deveria saber,
afinal, sempre achamos que são os pacientes com câncer que nos deixarão primeiro,
esquecendo que a morte é algo que ocorre com cada um de nós, sem que saibamos
quando ela virá. De fato, ao contar à ela o ocorrido, ela entristeceu-se e para meu
espanto, disse que ia rezar pela alma de minha amiga. No dia seguinte, ela comentou:
“É, mãe, a gente aqui com medo de eu morrer e tanta gente pode ir antes de mim,
vamos parar de pensar nisso e curtir a vida, enquanto há...”. Parecia um prenúncio
do que ocorreria duas semanas depois: Túlasi viu nas redes sociais que um colega
que se formara com ela, havia tido um acidente de carro na ponte Rio-Niterói e
morrido na hora. Ela me olhou e disse: “Mãe, vamos tratar de atualizar essa minha
lista de desejos, logo, pois a fila tá andando cada vez mais rápido! ” Por estranho que
possa parecer, passar a falar da morte, como algo cotidiano, tornou o assunto menos
pesado. Era apenas algo sobre o qual era necessário pensar. E como pensar sobre a
morte nos faz ter mais gosto pela vida!
Dias depois, ela me pediu para ler as mensagens do grupo. Avisei que iria se
deparar com várias orações, simpatias e mensagens religiosas, mas ela não ligou,
Eterna Túlasi

disse que o que importava era o carinho das pessoas por ela. Ficou emocionada de
ver tanta gente, que ela nem conhecia, torcendo por ela. Vencendo a timidez, enviou
um áudio de agradecimento ao grupo, que adorou ouvir a sua voz...
Na verdade, o arquivo de mensagens do grupo (que ao final gerou incríveis 223
páginas de texto) foi o primeiro material que consultei para iniciar a escrita deste
livro. Ali estão, em perfeita cronologia, todos os acontecimentos desta nossa luta que
se tornou conjunta. Muitas vezes, na falta de uma psicóloga com quem falar, era com
o grupo que eu desabafava. Foi ali que despejei dores, compartilhei medos, expressei
dúvidas, gritei indignações, chorei e ri. Foram eles, também, que ajudaram a
organizar meus pensamentos e emoções, apoiaram, contiveram, partilharam. Foi
muito, muito importante para mim.
Foi por intermédio deles que mobilizamos uma grande campanha de doação de
sangue para ela e os demais pacientes do INCA. Chegamos ao recorde de, numa
única semana, conseguirmos 81 doações.
Após o término desta enorme batalha, alguns me disseram que o grupo também
havia sido de muita ajuda para alguns deles pois, através dos acontecimentos
compartilhados, puderam resignificar conceitos de vida, morte, amor, família etc.
O grupo também protagonizou várias ajudas reais, para além da esfera
meramente virtual. A primeira foi a campanha de doação de plantas e objetos para
decorar a varanda da casa dela. Havia apenas uma rede velha e um de seus sonhos
era ter uma linda varanda onde pudesse tomar café da manhã. Em poucos dias, as
pessoas trouxeram plantas, enviaram enfeites pelo Correio, depositaram dinheiro e
se ofereceram para ajudar na organização do lugar. Temperos, estatuetas, quadros,
tapetes, cadeiras e flores enfeitaram o espaço. Ficou lindo! Hoje, todos estes objetos
e plantas encontram-se no apartamento onde moro, com a plaquinha que minha irmã
pintou à mão, “Hortinha da Tutty”. É lá que tomo café, diariamente, pensando na
bênção que é ter amigos e poder guardar o sorriso dela, para sempre, em meu
coração.
Eterna Túlasi

No grupo também organizamos as visitas que ela receberia, em casa e no hospital.


Algumas pessoas viajaram de Brasília para vê-la, como foi o caso de minha amiga
Giselle (psicóloga oncológica) e do casal de amigas Flávia e Nara, que passaram o
dia pintando conosco, ouvindo música e gravando um vídeo, que hoje assistimos
como recordação deste dia memorável.
Os que não puderam comparecer enviaram cartinhas, presentes e lembranças.
Dentre eles, Mônica, que apesar de sempre presente, trouxe para ela de Paris (numa
viagem que já estava agendada há muito), maravilhosos lápis de cor, canetinhas e
uma caixa especial para guardar seus livros. Beatriz nos deu uma boneca de pano
para montar, representando a Frida Kahlo, vasinho de plantas e mimos diversos.
Conseguimos montar juntas uma parte da bonequinha, depois, já mais enfraquecida,
Túlasi delegou a tarefa de finalização para mim, que a terminei e achei que seria um
presente significativo para sua irmã Bia guardar. Ela gostou muito.
Também ganhamos chocolates, flores, incensos, livros e toda sorte de comidinhas
deliciosas. Dentre estas, Shirley nos trouxe algumas guloseimas que aumentavam a
alegria de suas visitas. Aliás, Shirley soube, muito bem, ser uma amiga maravilhosa
neste período. Sempre presente, alegre, ativa e disposta a ajudar. Nunca demonstrou
pena ou lamentação. Ela mal sabe o quanto os sorrisos dela me sustentaram...
E no quesito presentes especiais, Jéssica, que trabalha comigo em Brasília, se
superou: sabendo que um dos maiores sonhos de Túlasi era conhecer Londres e que
agora estava definitivamente impedida pela doença, enviou um globo de vidro da
Inglaterra, com a paisagem britânica e purpurina representando floquinhos de neve.
Eterna Túlasi

Tornou-se um dos objetos especiais dela, que me pediu que o guardasse com muito
carinho. Hoje, repousa sobre a mesa de meu escritório, em casa, onde estou
escrevendo o livro.

Morgana, minha outra filha, pensando no conforto e lazer da irmã, mandou que
instalassem internet de alta velocidade em nosso quarto, na casa de minha irmã
Diana. Assim, Túlasi podia jogar vídeo game on-line, navegar na internet, assistir
seus seriados favoritos e os filmes que escolhia. Isso foi fundamental quando ficamos
quase impossibilitadas de sairmos de casa, devido seu estado de fragilidade.
Pouco antes, quando ela ainda caminhava sem ajuda de muletas ou cadeira de
rodas, pensamos em levá-la numa curta viagem, algo como Angra dos Reis ou
Petrópolis. Um local perto que, caso ocorresse alguma emergência, nos permitisse
retornar com rapidez e agilidade. Mas havia um problema: para isso, deveríamos
montar uma mega estrutura, com carro confortável onde ela pudesse ir deitada e em
segurança no banco de trás, mais alguém que nos acompanhasse, um local com todas
as comodidades necessárias (acesso às pessoas com necessidades especiais, que
aceitasse a Cacau, piscina privativa - pois ela usava fraldas etc.). Encontramos um
lugar, mas após fazer as contas, nos custaria uma pequena fortuna. O grupo, então,
se mobilizou. Cada um enviou a quantia que podia. Juntamos o valor total que
precisávamos. E ela teria massagem relaxante e vista para o mar!
Eterna Túlasi

No dia seguinte, quando íamos arrumar tudo para partir, ela teve uma
sangramento maior e nova crise de dor. Corremos para a emergência do INCA e lá
ela foi internada mais uma vez. No dia seguinte ela me pediu a lista de desejos e
rindo, disse: “É mãe, como a Lei de Murphy nos persegue, teremos que riscar esta
lista de outra forma”. Perguntei o que ela queria dizer com aquilo e ela, rindo,
explicou-me, “vamos riscar tudo que já não é mais possível fazer...”.
Esse senso de humor ácido e irônico que ela possuía, fez com que momentos bem
difíceis se transformassem em motivo de risada, fazendo com que a tristeza se
dissipasse, ao menos, em parte.
Assim, acabamos utilizado as doações para fazer pequenos passeios mais perto
de casa, picnics, comprar material de pintura, presentes para a Cacau, comidinhas
gostosas e livros, sua grande paixão. Suas roupas também se perderam, em grande
parte, pois a perda de peso fazia com que tudo caísse cintura abaixo. Por fim, estes
dias acabaram nos trazendo mais felicidade (ainda que entremeados por alguma dor,
tristezas e preocupações) do que se tivéssemos passado um final de semana num hotel
cinco estrelas. Foram breves, mas inesquecíveis momentos. Hoje, eu não os trocaria
por nada.

Visita à Confeitaria Colombo, no Rio.

No dia em que ela faleceu, foi com dor no coração que postei a notícia no
grupo. Sabia que todos ficariam muito tristes. Não foi fácil compartilhar aquela
notícia. Dias depois, eu já havia recebido centenas de mensagens de pêsames e
condolências, pessoalmente, nas redes sociais e por telefone. Só então percebi que
Eterna Túlasi

havia cometido uma falha imensa: eu não havia dado os pêsames para ninguém! Na
posição de mãe e principal cuidadora, era natural que as pessoas expressassem pesar
pela minha imensa dor. Mas era inegável o sofrimento de muitos daqueles que nos
acompanharam. Me desculpando pela insensibilidade e egoísmo, prestei minhas
condolências ao grupo, aos demais familiares e a cada funcionário do hospital, pois
muitos verteram lágrimas por nós e não seria justo não ser solidária à dor deles. Não
foi uma situação fácil para nenhum dos envolvidos e como aprendi bem cedo em
minha profissão, dor não se mede, apenas se sente. Quem sofre, sofre. Nem mais,
nem menos que o outro, a dor apenas nos atravessa o peito, roubando as palavras e
traduzindo-se em lágrimas que escapam pelos nossos olhos.
Fiz uma pequena seleção de mensagens muito significativas que recebi e
transcrevo-as abaixo:

Ana Lúcia: Elisa, como você é uma pessoa de essência extremamente verdadeira e realista é
mais do que compreensível que o termo "bom dia" não seja verbalizado! Que bom dia seria esse
quando está tudo ruim. Chute o "pau da barraca"! Se permita, grite, chore, reclame, questione
ao superior, ao mundo, por quê? Clame pelo seu direito de resposta, pois até agora você na
realidade não obteve! Perca o controle, se permita, provavelmente encontrará um acalanto!
Estou em Salvador, mas continuo rezando por vocês e por todos que estejam nessa situação.
Volto quarta e te ligo! O dia está assim, mas vamos acreditar que vai melhorar.

Giselle: Minha estimada amiga. Ninguém tem a dimensão dos seus sentimentos neste
momento, somente você e Deus. A melhor estratégia de agora é o amor e consciência do que está
acontecendo, apesar do sofrimento inerente a todo esse processo. É legítimo, sim, chorar, pedir
ajuda, querer descansar. Sua tarefa tem sido muito árdua. Como já conversamos anteriormente,
o importante é que ela saiba das possibilidades dos tratamentos disponíveis e tenha autonomia
e apoio em suas decisões - inclusive para não fazer mais nada, não como uma mera desistência,
mas como uma maneira de utilizar as próprias energias para uma vida com mais qualidade,
privacidade e contato com a família, amigos, ir na praia e visitar jardins. Estamos unidos com
você pelo coração na certeza de que o Pai não nos abandona, mesmo quando a situação nos
impulsione a esquecê-lo ou mesmo duvidar da misericórdia Dele. Deus abençoe a todos
Eterna Túlasi

Ileno: Que menina é esta, meu Deus, minha afilhada!!! Permitam-me também desabar um
pouco, porque o amor que ela transmitiu/transmite é "coisa do outro mundo", ou melhor, é
coisa de "pessoas muito diferenciadas"... Permitam meu choro... obrigado a você, minha
afilhada, e a você, Elisa Walleska, mãe ímpar deste anjo (mesmo que ela não aceite isto, rs)...
As lições desta experiência para todos nós, ligados pela tecnologia (e eu tão longe neste
momento), devem ser lidas e refletidas não só como um presente que Elisa e Túlasi nos dão, mas
principalmente por Túlasi ser o veículo mais aprimorado que estamos tendo para repensar a
vida e suas complexas contradições!

Wladimir: É impressionante como se pode sentir tanto carinho por alguém que não se conhece
pessoalmente. Luz, muita luz!

Renata: Bom dia! Querida, ainda que tudo aos nossos olhos e ao nosso entendimento esteja
desmoronando continue Confiando, Entregando e Acreditando na Providência Divina. Ele
sabe de tudo, nada passa sem que Ele esteja ciente. Há um Propósito, uma Ordem Maior. É
duro, é sofrido, é dilacerante, mas... continue seguindo. Vocês não estão sozinhas! Há seres
visíveis e invisíveis zelando e cuidando. Talvez não os veja, não perceba, mas posso te garantir
que Eles estão presentes. Que Deus e todos os Mentores abençoem vocês com tudo que for
necessário para passar por esse momento tão especial. Sim, é só um momento nesta nossa
Existência. Tenho CERTEZA que há Ordem e Propósito Superiores. Confie, minha querida e
guerreira amiga! Todos estão contigo!

Soemes: Elisa, não se deixe abater pelas circunstâncias da vida. Não importa o que você está
passando, Deus está sustentando você. Talvez nos momentos difíceis o desespero não permita
que seus olhos carnais enxerguem a realidade dos fatos. Mas após as lágrimas, após o susto,
pare por um minuto, respire e olhe ao redor. Deus está aí com você, providenciando o escape
dessa provação. Portanto, não se intimide. Levante a cabeça e encare de frente a tua dificuldade,
pois Deus é contigo. Ele já mandou anjos diante de você para lutar em teu favor.

Shirley: Poxa só agora vi as últimas 37 msgs q estavam acumuladas aqui. Estou energizada
por um mês de tanto afeto. E Túlasi então, nem se fala. Deve estar sonhando com anjos tocando
harpas e cantando sonatas de Bach. Que belas notícias e q astral bom tem essa menina. Amanhã
será melhor ainda. Energia total pra ela.
Eterna Túlasi

Jéssica: Elisa muito difícil ser forte o tempo todo mesmo! O pensamento positivo as vezes foge!
Por isso Deus nos coloca ao redor pequenas fontes de recarga: amigos, família! Já já nos vemos!
E que hoje o dia que começou difícil termine pelo menos mais leve! Eu te desejo Bom Dia!

E foi assim, com muito apoio e carinho, que atravessamos esta fase e nos
preparamos para a que estava por vir: a fase em que ela, lentamente, foi nos dizendo
adeus...

https://www.youtube.com/watch?v=GRbe5hSTaWc&list=PL0b0z5BpzP4RSLOs
YgGZSCMELbGclsMti&index=22
Eterna Túlasi

A BELA ADORMECIDA

Os rins dela já não estavam mais funcionando bem. Ela eliminava pouca urina
e começou a apresentar edema nas pernas mais uma vez. Mesmo recebendo a dose
máxima de ácido épsilon (hemostático) o sangramento não cedia e ela estava cada
vez mais fraca. A morfina já não fazia efeito e ela passou a ser medicada com
Metadona. Voltou a ser difícil pintar devido aos tremores provocados pelos efeitos
colaterais da medicação. E ela, finalmente, admitiu que estava começando a sentir-
se deprimida.
Pouco tempo antes, ela havia começado a apresentar problemas para urinar.
Surgiram os primeiros edemas nas pernas e ela sentia dores, a despeito de continuar
utilizando a Gabapentina. Também começara a apresentar tremor nas mãos, o que
a impedia de pintar. Na tentativa de sanar este quadro, a médica receitou
Risperidona, mas o efeito não foi nada bom: ela passou a dormir continuamente, sem
sequer acordar para se alimentar. A medicação teve que ser suspensa e o mal
funcionamento renal aumentou os tremores.
Um dia depois, logo após a visita de rotina da médica, sem que nenhuma
novidade tivesse sido anunciada, uma enfermeira entra em nosso quarto e anuncia:
“Túlasi, a ambulância vem te buscar para você fazer a nefrostomia lá no INCA 1”.
Aquilo foi como uma bofetada para ela, que replicou na mesma hora, dizendo que
não faria nada, em lugar nenhum, a não ser que alguém lhe explicasse do que se
tratava. A enfermeira disse que havia sido uma decisão de emergência, pois acabara
de chegar o resultado de um exame e a médica não teria tido tempo de vir explicar a
ela. Esta justificativa só piorou tudo e ela afirmou que não estava em uma pet-shop,
para ser submetida a um procedimento sem ser esclarecida a respeito. Completou,
dizendo que: “De acordo com o manual de cuidados paliativos e procedimentos
éticos desta instituição, vocês só podem realizar qualquer procedimento em mim,
após autorização minha ou de um responsável”. A enfermeira, para piorar,
respondeu que “era uma questão de vida ou morte”. E Túlasi não deixou por menos:
disse que a vida e a morte eram dela e que iria exercer seu direito de escolha até o
fim. Para completar, esclareceu que se decidisse recusar procedimentos e
medicamentos com o intuito de morrer, era seu direito inalienável e que era melhor
a equipe ir se acostumando com a ideia de que, em breve, ela não estaria aqui. A cara
Eterna Túlasi

de choque da enfermeira dizia tudo. Túlasi ainda complementou: “O que acontece


com uma equipe de cuidados paliativos que tem dificuldade em falar da morte? Eu
própria já estou me acostumando com a ideia”. Pediu-me, então, que tentasse falar
com a médica, para esclarecer que procedimento era aquele. Após alguns minutos
fui chamada à sala de atendimento familiar e me reuni com toda a equipe.
Explicaram-me suas preocupações com o quadro dela. Fiquei tocada com tanta
consideração, mas tive que explicar, detalhadamente, as vontades de minha filha.
Elas me olhavam com atenção, mas claramente surpresas. Disse-lhes que sabíamos
que o fim estava próximo e que estávamos preparadas para aquilo. Pedi que me
ajudassem, pois não era fácil para uma mãe se despedir de um filho assim e que, no
momento, o melhor que eu podia fazer por ela, seria respeitar seus últimos desejos.
Me perguntaram se eu estava consciente do risco que ela corria e eu respondi que
sim, mas que a vontade dela seria respeitada até o fim. Uma das médicas começou a
chorar. Se por um lado eu percebia o quão distante aquela equipe ainda estava do
real conceito de cuidados paliativos que havíamos estudado, por outro me tocava a
alma, o amor e o carinho que demonstravam para com ela. Pedi desculpas por não
poder ajudá-las com aquela dificuldade e sugeri que buscassem orientação com a
psicologia oncológica, para compreenderem melhor a nossa história. Reforcei que
dali por diante, devíamos ser consultadas antes de cada procedimento e que caso ela
recusasse algum deles, seu desejo deveria ser respeitado.
A médica dirigiu-se ao quarto, logo depois, e conversou com Túlasi. Ela pediu
minha opinião e visto que o objetivo era, não apenas salvar sua vida, mas também
lhe proporcionar mais conforto, achei que poderia ser bom. Eles colocariam um
cateter, saindo diretamente de seus rins, para aliviar o trabalho da bexiga que, com
isso, ela deveria passar a sangrar menos, talvez colaborando para uma diminuição
de seu quadro de anemia. Ela concordou e por fim, seguimos para o INCA 1.
Chegando ao hospital, logo fomos atendidos pelo médico que faria o
procedimento e a enfermeira que a acompanharia. Muito gentis e atenciosos, lhes
pedi que fizessem todo o possível para que ela não sentisse nenhuma espécie de dor.
Eles me garantiram que tudo transcorreria tranquilamente. Enquanto aguardávamos,
pensamos em procurar o Marcos, mas o INCA 1 é um hospital imenso e eu não tinha
a menor ideia de por onde começar a procurar. Além disso, de certo ele estaria em
atendimentos e eu não queria me afastar dela. A nefrostomia foi rápida e em cerca
Eterna Túlasi

de uma hora ela estava de volta à sala de observação. Uma cena hilária foi quando
ela começou a acordar da sedação e viu o médico à sua frente. Ele era um rapaz
muito bonito, musculoso e de olhos azuis, com um sorriso perfeito. Túlasi passou a
ajeitar a camisola, arrumar os cabelos e sorrir para ele, reclamando que eu a estava
deixando desarrumada... Ri muito de seu jeito coquete. Ele se aproximou dela e,
sorrindo, disse-lhe que ela era uma jovem muito bonita, mesmo com os cabelos
desarrumados. Deu-lhe um aperto de mão e desejou pronta recuperação. Ao se
afastar, observei que ele comentava o caso com um colega, mãos no rosto,
claramente entristecido por ver uma moça tão jovem com um quadro tão grave.
Retornamos para o INCA 4. O procedimento foi um sucesso, mas infelizmente, só
funcionou por poucos dias...
Dias depois, desci para almoçar, após alimentá-la e deixei-a cochilando. Ao
chegar e observar seu rosto angelical, escrevi esta nota em meu celular:
Cheguei na hora do almoço e a encontrei dormindo. Não quis comer, nem pintar. Está
sonolenta e fraca, o tempo todo. Neste momento está tomando transfusão de sangue. Agora há
pouco abriu os olhos, segurou minha mão e chorou. Disse que está muito cansada, que se sente
pressionada pela doença que a obriga a um esforço imenso, simplesmente para existir e respirar.
Disse-me que deseja ficar livre, sair pelo mundo, andar e voar, pois seu corpo está preso aqui.
Disse que não quer mais conviver com o câncer e que deseja ir embora... Respondi que ela tem
lutado bravamente e que tem direito a descansar. Que desistir de lutar é também uma vitória,
pois está escolhendo a liberdade e não esta batalha diária que escravizou seu corpo. Que está ao
alcance dela tal liberdade e tal vitória. Que deixe seu corpo e o câncer para traz e que permita
que sua alma viaje por todos os lugares maravilhosos desfrutando de completa liberdade e paz.
Me perguntou se vou ficar bem aqui, sem ela. Lhe assegurei que vou me esforçar para que sim.
E lhe disse que sua alma livre sempre estará em contato com a minha e com as das demais
pessoas que conosco comungam. Não sei quando ela nos deixará, mas agora ela sabe que pode
escolher fazê-lo e que não "deve" mais nada... Tenho a mais profunda certeza do paraíso que
aguarda esta alma boa e maravilhosa e a completa segurança de que jamais nos separaremos
em espírito. Desejo-lhe toda liberdade e felicidade do mundo. Dizer adeus é uma das formas de
vencer o câncer, não permitindo que ele imponha sua rotina cruel a nossos corpos. Dizer adeus
é optar pela vida do espírito, posto que a da matéria nunca trouxe a verdadeira felicidade. Viva
a vida, em todas as suas formas e transformações. E que a paz alcance todos nós...
Eterna Túlasi

Ao mesmo tempo em que eu tinha esta consciência, meu coração de mãe se


desesperava com a ideia de não vê-la nunca mais. Se por um lado, eu desejava que
ela se livrasse de todo aquele sofrimento, por outro, não conseguia imaginar como
viveria sem ela. Fosse a dor que fosse, entretanto, eu estava disposta a senti-la, se isso
significasse que minha filha parasse de sofrer...
Refleti muito sobre cuidados paliativos, eutanásia e distanásia (esforço
desmedido para manter o paciente vivo, ligado a máquinas e muitas vezes em estado
vegetativo) nesta época. Me parecia (e ainda parece) um ato de extremo egoísmo e
crueldade (travestido de “amor”), não aceitar a partida de um ente querido por medo
do sofrimento que aguarda quem vai ficar. Acho que quem ama, liberta...
Uma noite, quando retornei do jantar no refeitório, encontrei-a conversando
com a Sheila, técnica de enfermagem que, mais tarde, também tornou-se uma grande
amiga. Ela havia vomitado e estava explicando que se forçara a comer para não me
deixar preocupada, dizendo que tudo o que mais queria na vida era me deixar feliz.
Sheila ficou emocionada com a demonstração de amor dela por mim e perguntou de
onde ela tirava tanta força para enfrentar a doença. Ela sorriu e apontou pra mim.
Ela então perguntou de onde eu tirava a MINHA força e respondi que era do sorriso
dela!
Túlasi ficou admirada com o bom gosto da Sheila para artes e perguntou o que
uma mulher tão culta fazia ali, limpando vômito. Ela nos respondeu que após o fim
do plantão viria nos contar. E cumpriu a promessa: apareceu em nosso quarto já sem
uniforme e disse que havia decidido trabalhar na área de saúde após perder seu filho,
de três anos de idade, atropelado na sua frente. Ficamos mudas e sem saber o que
dizer. Mas ela contava tudo com leveza e um sorriso tranquilo. Explicou que ao ver
os profissionais de saúde cuidarem tão bem do filho dela e frente ao vazio que se
seguiu ao luto, desejou fazer o mesmo, cuidando dos filhos dos outros. Ficamos
impressionadas e emocionadas. Túlasi, impactada, disse: “Mãe, acho bom você
pegar o telefone dela, algo me diz que em breve ela vai poder te ajudar muito...”
Foram profissionais assim, extremamente humanos, competentes e atenciosos
que transformaram nossa estada no INCA 4 a melhor coisa que poderia ter
acontecido naquelas circunstâncias terríveis. Eram eles que nos arrancavam sorrisos,
nos consolavam e davam força. Depois de tanto tempo internadas, é impossível não
criar vínculos e foram esses vínculos que ajudaram a nos sustentar.
Eterna Túlasi

No dia seguinte, a médica autorizou visitas estendidas, dado o delicado estado


de saúde dela. Também autorizou a vinda de nossa cadelinha, a Cacau, e que eu
trouxesse torta de chocolate para Túlasi. Ela ficou muito feliz e eu tentei demonstrar
alegria, mas aquela atitude significava que ela tinha pouco tempo de vida e que
estavam fazendo o possível para lhe proporcionar os melhores momentos. Um
pensamento obsessivo começou a passar pela minha mente, cerca de 20 vezes ao dia:
“Não posso fraquejar agora, ela precisa de mim, tenho que ser forte, respire fundo”.
Ela tomou um longo banho de chuveiro, lavou os cabelos, passou hidrante e se
perfumou. Passei meia hora secando seus cabelos, com ela recostada na cama,
dizendo o quanto ela era linda. Ela sempre repetia que estas minhas declarações eram
extremamente suspeitas, afinal, eu era a “fabricante”! Ríamos muito com nossas
declarações de amor mútuas.
Nesta noite, sonhei que eu havia acordado e descido para tomar o café no
refeitório. Ao atravessar o jardim, via minha filha em pé e sorrindo. Estava muito
bem arrumada: de salto alto, uma linda blusa colorida, maquiada, de unhas feitas e
com suas bijuterias favoritas. Parecia radiante e feliz. Eu lhe perguntava o que fazia
ali e ela me disse que tinha cansado de ficar na cama, trancada no quarto. Respondi
que os médicos ficariam preocupados e que a segurança poderia vir atrás dela. Ela
ria e dizia: “Relaxa, mãe, tá tudo bem, eu tô livre agora. Não tô mais doente, eu me
curei. Vim te chamar para passearmos no Jardim Botânico”. Então, eu lhe dava a
mão e saímos sorrindo dali.
Acordei. Ela dormia serenamente ao meu lado. Desci para o café a sensação
de que o sonho era verdade me acompanhava. Quando retornei ao quarto, ela estava
acordando e decidi lhe contar o sonho. Ela ficou espantada e sorriu. Disse que achava
que a cura estava mesmo chegando. Mas eu só entendi o que ela queria dizer, alguns
dias depois...
Passados dois dias, já mais enfraquecida, ao ir tomar banho, dessa vez na
cadeira de rodas para não correr o risco de ficar tonta e cair, passamos por um grande
apuro. Não imaginamos o quanto ela estava debilitada e mesmo na cadeira, só com
o esforço de tirar a camisola, ela desmaiou sentada. Gritei por socorro pois a
campainha do banheiro não funcionava e logo um técnico de enfermagem, que
passava no corredor, nos socorreu. Levou-a até a cama, acomodou-a e chamou a
Eterna Túlasi

enfermeira chefe. Dali em diante, todos os dias ele passava para ver como ela estava,
mesmo que aquela não fosse sua função.
No dia seguinte, ao retornar do refeitório, encontrei-a recostada na cama,
tentando pintar. Estendeu a mão e me puxou para sentar ao lado dela. Deu um
sorriso cansado e me abraçou dizendo meigamente: “Mãe, preciso te perguntar uma
coisa”. Respondi que ela poderia perguntar o que quisesse. E ela disse: “Estamos
chegando ao fim da linha, né? ” Como aquelas perguntas eram difíceis! Eu precisava
pensar na melhor resposta, controlar meu desespero e ainda acalmá-la. Respirei
fundo, segurei sua mão e fiz que “sim” com a cabeça. Não consegui falar... Ela me
abraçou forte, suspirou e disse um palavrão baixinho. Seguiram-se momentos
intermináveis de silêncio... Até que ela se ajeitou na cama e disse: “Bom, então está
na hora de termos outra conversa séria, Dona Walleska. E você vai ser uma menina
forte e bonita e não vai chorar, pois do contrário eu não vou aguentar. Preciso que
você seja forte por nós duas, agora”. O que eu poderia responder? Apenas murmurei:
sim, filha, é claro, pode pedir tudo o que você quiser...
Ela, então, me disse que havia tido uma ideia de como vencer o câncer. Fiquei
muda, sem saber o que dizer. Seria algum efeito colateral da medicação? Mas ela
estava mais lúcida do que nunca.
Contou-me que havia se informado sobre sedação paliativa e que sabia que
poderia decidir quando iria “desligar”.
Na verdade, este tipo de sedação apenas mantem o paciente desacordado e sem
dores. Como no Brasil, a Eutanásia é proibida, esta é a única forma menos cruel de
fazer com que alguém, já sem nenhuma esperança de cura, aguarde o desfecho da
morte em paz e com conforto.
Passamos a vida tendo a ilusão de que temos liberdade e que somos
responsáveis por nós mesmos. Pagamos contas, cuidamos da alimentação, fazemos
tatuagens, cirurgias estéticas, mudamos a cor do cabelo. Mas sobre nosso destino
final não podemos legislar. O poder médico sobrepõe-se à vontade dos pacientes, que
mesmo em profundo sofrimento e cheios de dores, servem como fonte de renda para
a indústria hospitalar e farmacêutica. E tudo isso, muitas vezes, “em nome de Deus”.
Considero extrema crueldade e egoísmo, alguém que prende o ser amado à uma
cama, sem qualidade de vida, com dores lancinantes, apenas por que não consegue
lidar com a perda. E ainda chamam a isso, de amor...
Eterna Túlasi

Para minha filha, solicitar a sedação era uma forma de impedir que o câncer a
levasse na hora em que ele decidisse, de maneira cruel e dolorosa. Disse que estava
cansada de sentir seu corpo tentando matá-la e que a única coisa que ainda lhe restava
era a possibilidade de decidir sobre a que lhe restava da própria vida. Que sabia que
tinha o direito de decidir como e quando partir.
Não pude dizer nada além de: “Como você achar melhor, filha, eu te apoio”.
Ainda não encontro palavras para descrever o que senti naquela hora. Um misto de
orgulho pela sua coragem, tristeza profunda, pois aquilo significava que em breve ela
estaria inconsciente, medo do que viria depois e vontade de gritar e chorar até morrer.
Mas a frase dela, “preciso que você seja forte”, despertava forças inimagináveis
dentro de mim e respirando fundo, concordei. Ela então me pediu que eu conversasse
com a médica sobre como se daria tal procedimento, de forma que estivéssemos bem
informadas. Prometi que o faria.
Em seguida, pediu, também, que atualizássemos seu testamento vital, pois
desejava realizar algumas modificações. Peguei papel e caneta, com a clara sensação
de estar completamente anestesiada. Sentia que apenas meu corpo se movia e que
minha alma devia ter fugido para algum lugar muito longe dali... Sentei a seu lado e
passei a anotar, mecanicamente, tudo o que ela falava.
Eterna Túlasi

Só consegui voltar a mim quando ela pronunciou a palavra “festa”. Isso


mesmo, F-E-S-T-A. Como assim, que festa? Perguntei. “Minha festa, mãe, aquela
que eu disse que queria para meu funeral, quando assistimos o filme ‘Pronta para
Amar’ e eu até pedi pro “Dindo” trazer tequila pro dia”. Lembrei. Mas achava que
aquilo havia sido um mero devaneio, fazer uma festa por ocasião do funeral. Não
era. E ela descreveu, em detalhes, tudo o que desejava: flores coloridas, comida
mexicana, decoração com “Catrinas” típicas do dia dos mortos no México, sua
playlist de músicas favoritas, nada de rezas ou preces, nenhum símbolo religioso, suas
melhores fotos, lembrancinhas para os presentes, a urna com suas cinzas a serem
depositadas ao pé de uma árvore de minha escolha e um brinde final com Tequila
mexicana. E claro, em seu local favorito: a Floresta da Tijuca!
O clima que estava ficando mais ameno por causa de seus sorrisos, enquanto
descrevia o cenário, não foi suficiente para aplacar meu temor quanto à reação dos
amigos e familiares quando soubessem daquilo. Agradeci, internamente, ela deixar
tudo por escrito ou as pessoas achariam que tudo aquilo era produto da cabeça de
uma mãe surtada pela perda da filha. Por mais que nossa família fugisse aos padrões,
uma festa mexicana, em substituição a um velório, parecia arrojado por demais.
Nisso, entra a copeira para servir o lanche e nos vendo sorrindo, pergunta o que
estávamos desenhando. Ela respondeu rindo: “Não estou desenhando, não, estamos
organizando a festa do meu funeral”. A pobre mulher não sabia o que fazer, se ria,
ia embora ou respondia algo. Na dúvida, se retirou com cara de susto. Quando
percebemos que nossa conversa não era algo trivial para a maioria das pessoas, rimos
ainda mais da situação.
A vida nos apresentava a realidade em sua face mais cruel: tínhamos pouco
tempo e sabíamos disso. Viveríamos aqueles poucos dias nos lamentando pelo
inevitável ou aproveitaríamos cada segundo, aproveitando cada chance de
demonstrar amor, carinho e alegria? Lembrei-me do filme “A Vida é Bela” e entendi
o que fez com que aquele pai, mesmo em meio aos horrores de um campo de
concentração, brincasse, sorrisse e tentasse animar o filho. Nenhuma mãe pode se
sentir feliz com a tristeza de um filho. E se para que ela sorrisse, fosse necessário eu
rasgar meu peito em silêncio, fingindo que estava tudo bem, eu o faria. O sorriso dela
virou minha obsessão e cá entre nós, acho que o mesmo aconteceu com ela, que não
perdia uma chance de me fazer sorrir. Fomos assim, creio eu, enganando a morte.
Eterna Túlasi

Rindo do inaceitável, fazendo piada do imponderável, buscando alegria na


possibilidade da inexistência. E foi assim, que posso dizer a vocês que a morte jamais
nos venceu...
Mas ainda precisávamos terminar a redação do documento que seria anexado
ao prontuário. Chamou-me atenção que ela proibiu, terminantemente, a presença do
ex-marido e de determinados parentes a partir daquela data. E retirou do pai qualquer
poder de tomar decisões enquanto estivesse inconsciente. Temia que, devido a fatores
religiosos, ele mantivesse-a ligada a aparelhos, indefinidamente. Achei melhor nem
questionar.
E como quem falasse de uma mera arrumação do guarda-roupas, ela emendou:
“Ah, sabe meus livros de Direito Penal? Leva pra Brasília com você, serão úteis pro
Personna”. E continuou, com toda naturalidade, enumerando o que deveria ser dado
para quem. Seu anel de formatura, presente da avó paterna, que havia sido motivo
de tanta discórdia e mágoa recentemente, ela sugeriu que eu guardasse, para o caso
de Sophia, um dia, vir a tornar-se advogada. Mas confessou que sentia ímpetos de
doar para uma instituição de proteção dos direitos civis dos LGBT, como forma de
protesto pelo conservadorismo e visão estreita de parte da família.
Terminada a redação, ela assinou as folhas e pediu que eu incluísse,
imediatamente, em seu prontuário, temerosa de que alguém pudesse arruinar seu
plano de dar um ponto final ao câncer, da forma que achava melhor.
Quando retornei ao quarto, ainda tonta com a quantidade de informações, ela
me chamou para perto novamente, me abraçou e disse: “Menina bonita, você foi
muito valente e como prêmio, acho que vou deixar você chorar um pouquinho...”
Foi o necessário para que nos abraçássemos fortemente e chorarmos por muito
tempo seguido...
Ficamos ali, abraçadas na cama, eu no colo dela. Lhe pedi perdão. Por não ter
podido lhe salvar, não ter cuidado tanto quanto gostaria, não ter podido achar uma
cura... Ela afagava meus cabelos e dizia: “Mãe, você é a melhor. Nenhuma mulher
no mundo aguentaria o que você está aguentando, com essa força e essa coragem.
Sei que não tá fácil, mas você me enche de orgulho e se cheguei até aqui, foi com a
sua força”. Disse-me que era ela quem tinha que pedir desculpas, que não aguentava
mais, que suas forças a abandonavam. Me perguntou, olhando fixo em meus olhos:
“Você me desculpa, mãe? Eu não consigo mais...”. Nos desculpamos mutuamente e
Eterna Túlasi

eu lhe disse que de fraca ela não tinha nada. Que nunca vira alguém lutar contra um
câncer com a força, a determinação, a alegria e a aceitação que ela estava tendo. Mais
uma vez ela se referiu às Krüger e às nossas almas de titânio. Perguntou se eu ficaria
bem. Disse-lhe que não, mas que ia fazer o possível para me recuperar ao longo do
tempo. Ela me pediu que eu cuidasse dos seus irmãos e que continuasse a trabalhar.
Disse que sabia que os pais tinham filhos para que continuassem sua missão na terra,
mas que ela, infelizmente, teria que deixar a missão dela para mim. E que as pessoas
que atendemos precisavam muito de nosso cuidado. Pediu ainda que eu mantivesse
a família unida, principalmente, a parte da família da Mônica. A tudo eu só
respondia com um meneio de cabeça, sem saber de onde eu tiraria forças para
cumprir tantas promessas.
Disse ainda que, caso nossas teorias de vida após a morte estivessem corretas,
ela arranjaria uma forma de me avisar. Ri e pedi que, por favor, o método escolhido
não fosse puxar meu pé enquanto eu dormisse. Ela prometeu que não, disse que
arrumaria uma forma de me mandar um recado do Além. Falou: “Deixa comigo,
vou dar meu jeito, mas te prometo que se tiver algo, você saberá, ou não me chamo
Túlasi Krüger”! Disse ainda para eu me cuidar, mas que quando eu fosse pro céu, a
gente iria se reencontrar. E me perguntou se, caso houvesse outra vida, eu gostaria
de ser mãe dela de novo. Caí no choro novamente e lhe respondi que sim, seríamos
mãe e filha outra vez, quantas vezes ela quisesse. Então, ela me olhou no fundo dos
olhos, muito séria, e segurando minhas mãos disse: “Mãe, eu sinto que nós nunca
vamos nos separar. Eu só estarei em outro lugar, onde você não vai poder falar
comigo. Mas eu te amo tanto, tanto, que esse amor você sempre sentirá com você e
saberá que sou eu que estou do seu lado, mesmo que não possa me ver”. Soluçando,
só pude menear a cabeça, em concordância.
Ficamos assim, abraçadas e quando as enfermeiras entravam e nos viam assim,
se retiravam em silêncio. Até que ela me perguntou: “Mãe, se existir mesmo outra
vida, será que podemos mesmo nascer juntas novamente”? Respondi que gostaria
muito, mas que talvez trocássemos de papel em outra vida: poderíamos ser irmãs ou
até mesmo eu nascer como filha dela. Ela respondeu que não, que eu tinha sido a
melhor mãe do mundo e que ela sempre ia querer ser minha filha.
Hoje em dia, quando me sinto triste, lembro dessa frase. Ao menos pude lhe
dar amor e carinho suficientes para que se sentisse amada. E por incrível que pareça,
Eterna Túlasi

é exatamente a sensação de presença do amor dela, que ela descrevera, que sinto hoje
em dia em sua ausência. O único consolo que me restou: nosso amor nos uniu
eternamente.
Por fim, o sono dela falou mais forte e ela pediu-me para dormir. Disse para eu
puxar a cama para pertinho dela, pois queria dormir de mãos dadas comigo.
Concordei. Antes de apagar a luz, ela apertou minha mão forte, deu um sorriso e
disse: “não esquece, ficaremos para sempre juntas”. Concordei, lhe dei um beijo na
testa e repeti: “sim, filha, para sempre juntas”...
Adormecemos, mas no meio da noite ela acordou com dores fortes. Foi
necessário chamar a médica da emergência para examiná-la. Ela já estava há dias
sem evacuar, não esboçando reação aos medicamentos laxantes. Seu abdome
encontrava-se distendido e ela sentia dores até para se virar na cama. Já haviam
tentado uma lavagem intestinal, mas não houve o alívio desejado. Uma cirurgia era
completamente impossível com aquele quadro clínico. A médica lhe prescreveu um
analgésico forte de emergência, concomitante à Metadona e logo ela dormiu
novamente.
Aproveitei para falar com a médica sobre a sedação. Ela me explicou
detalhadamente o procedimento e me disse que repassaria para a médica que nos
acompanhava regularmente. Perguntou como eu me sentia. Desabei e lhe disse que
já não suportava ver minha filha com dor, que preferia que fosse eu a sentir a dor da
perda, desde que ela encontrasse o alívio. A médica me abraçou e notei que estava
visivelmente emocionada. Disse-me que aquela era a maior prova de amor que eu
poderia dar à minha filha: abrir mão do que eu mais queria, em prol da felicidade
dela. Nos despedimos e ela me assegurou que tomaria todas as providências
necessárias.
No dia seguinte, ao sentar na cama para tomar café, Túlasi sentiu uma súbita
fraqueza e quase desmaiou novamente. Suava frio e sua pressão arterial foi a níveis
baixíssimos. No almoço, já não conseguiu se sentar e o jantar, foi recusado... A
médica deu ordens de que não saísse mais da cama, pelo risco de cair sem sentidos,
pois estava enfraquecida demais. Deveria repousar e só se virar na cama com a ajuda
de alguém.
Mas isso não impediu que uma técnica de enfermagem adentrasse ao quarto e
dissesse em voz alta: “Hora de ir pro banheiro tomar banho, pode levantar e ir
Eterna Túlasi

caminhando! Ficamos impressionadas. Será que nem todos os profissionais leem os


prontuários antes de assumirem o plantão? Explicamos o ocorrido e ela passou a
tomar banho no leito, o que muito a aborrecia. Registrei minha reclamação junto à
enfermeira chefe. Fosse alguém menos esclarecido, poderia ter tentado andar e caído
no meio do quarto. Esses episódios sempre soavam estranhos a uma unidade de
cuidados paliativos. Por sorte, forma poucas as ocorrências.
A médica que nos acompanhava nesta fase final veio, então, conversar
conosco. De aparência e jeito angelicais, explicou todo o procedimento da sedação
paliativa e esclareceu que necessitaria de autorização por escrito para efetivá-lo.
Túlasi concordou e pediu que trouxessem os documentos para assinarmos. Ao sair,
a médica me chamou. Perguntou como eu me sentia. Lhe respondi o mesmo que
para a outra médica da noite anterior. Ela se emocionou e disse que lamentava muito.
Lamentava não poder fazer mais e lamentava nos ver passando por aquilo tudo. Me
abraçou e disse que estávamos tomando a melhor decisão. Que minha filha estava
sofrendo muito e que os próximos dias poderiam ser ainda mais terríveis para ela. Eu
jamais permitiria que ela sofresse além disso, pensei comigo. Eu não imaginava
encontrar médicos assim, tão gentis, humanos e empáticos. Aquilo, de fato, trazia
um conforto imenso num momento tão doloroso. Não imagino como deva ser passar
por tudo isso ao lado de uma equipe fria e que não demonstra se importar.
Ao retornar para o quarto, pensei que eu também estava ajudando a curar um
pouquinho minha filha daquele mal tão grande. Dizer adeus também é uma das
formas de vencer o câncer...

LOVE ME LIKE YOU DO – ELLIE GOULDING


Parece apenas uma música romântica, mas ela fala de um amor maior...
https://www.youtube.com/watch?v=GD2_bkNgX5I
Eterna Túlasi

TÚLASI DIZ ADEUS

Como ela queria saber como se sentiria, a médica propôs uma sedação em duas
fases: a primeira, por 12 horas, de forma que ao ser suspensa, Túlasi pudesse avaliar
seus efeitos e decidir se desejava ser sedada em definitivo. Nesta noite, após ela
experimentar a primeira fase da sedação e enquanto eu a observava dormir, pensei:
“Pode ir, filha, quero te ver livre, te amo e mesmo que eu sofra, prefiro ficar com a
dor para mim do que lhe ver sofrer...”.
Mas no dia seguinte, uma situação bastante constrangedora ocorreu. Uma das
profissionais da equipe me chamou no corredor e me “pediu” que eu não autorizasse
a sedação profunda da Túlasi. Fiquei surpresa e lhe perguntei por quais motivos eu
deveria fazer aquilo. Para meu completo espanto, ela, funcionária (pretende-se
treinada) de uma unidade de cuidados paliativos, me disse que uma mãe que ama,
não desiste do filho. Fiquei estupefata com seu comportamento. Lhe respondi que
era necessário muito amor para se abrir mão de um filho, pegando para si todo o
sofrimento, de forma que ele pudesse se libertar da dor. Não era eu, ela, nem ninguém
da equipe que optara pelo fim. O Câncer impôs o término, restando-nos apenas
decidir como chegar até ele.
Fiquei imaginando como reagiria, numa situação dessas, uma mãe que não
tivesse o mesmo nível de informação que eu. Este foi um dos poucos episódios que
considerei, profundamente, lamentável na instituição. Por sorte, eu contava com o
restante da equipe, que me acalmou e apoiou naquele que seria o momento mais
difícil de minha vida.
A sedação, feita em duas fases tem na primeira etapa, mais superficial e
temporária, uma forma de avaliar a reação do organismo. Com duração de 12 horas,
seria suspensa para checagem de seu estado geral e obtenção de sua autorização para
a continuidade. Em seguida, uma sedação intermitente e mais profunda, que a
manteria numa espécie de coma profundo. Com o objetivo de evitar dores e
minimizar desconfortos, doses mais altas de morfina são administradas.
Alimentação e hidratação são mantidas, de forma a proporcionar o suporte vital. As
demais medicações são suspensas, a não ser que alguma intercorrência surja.
E assim aconteceu. Nesta noite, ela foi sedada superficialmente, só acordando
no início da tarde do dia seguinte. A médica passou para lhe examinar e conversar
Eterna Túlasi

conosco. Seu estado geral estava adequado, dentro das circunstâncias. Mas quando
a médica perguntou como ela se sentia, ela sorrindo, ainda meio grogue dos
remédios, respondeu que estaria melhor se continuasse dormindo. Relatou que
durante todo o período da sedação sentiu-se incrivelmente bem, sem dores, leve e
como que flutuando. Segurou na minha mão e com um sorriso terno que me impedia
de dar qualquer outra resposta, disse: “Mãe, posso voltar pro lugar onde eu estava?
Não quero mais ficar aqui neste corpo doente, é muito ruim...”. O que dizer? O que
sentir? Sorri, lhe abracei e disse que sim, que a queria ver bem. A médica, então,
autorizou a sedação profunda, da qual ela jamais retornaria. Antes, porém, avisamos
aos parentes e amigos mais próximos, para que pudessem visitá-la e se despedir.
A frase: “Cadê meu pai? ”, foi a primeira que ela disse, pouco depois de termos
conversado com a médica. A ausência dele, durante o tratamento, afetou-a
profundamente. À ocasião onde passeamos na pracinha e tiramos uma foto juntos,
ela chamava de “seu pequeno milagre”, pedindo que eu a imprimisse para guardar
de recordação de um momento que, ela antecipou, jamais aconteceria novamente.
Flagrei-a chorando, diversas vezes, por ter descoberto que ele havia viajado de
moto com os amigos, ao invés de visitá-la. Num dia em que ele ligou para ela, seu
sorriso iluminou-se por alguns segundos, para logo transformar-se em lágrimas, pois
ele sequer perguntara sobre seu estado de saúde, tendo lhe dado um sermão sobre
sua separação. Segundo os familiares informaram, ele se dizia bastante religioso, mas
pelo visto, o divórcio dela e as diversões pessoais dele eram mais importantes do que
a doença da própria filha.
Em outras ocasiões, lhe telefonava para falar de assuntos burocráticos, como o
futuro inventário dos bens.
Assim, acabaram por romper o contato, mesmo o telefônico. Ela chegou a
proibir a entrada dele no hospital, temerosa de ver seu estado emocional agravar-se
devido aos desentendimentos. Foram seus irmãos que exigiram a presença dele, dias
antes dela morrer, ao menos para que ele se despedisse dela. Tive que fazer um
enorme esforço para convencê-la a aceitar a visita e superar momentaneamente a
mágoa. A despeito da indiferença dele, ela sempre o amou muito e, no fundo, eu
sabia que seria a última vez que eles se veriam.
E assim foi, numa tarde, ele apareceu no hospital. Falaram amenidades e o
único pedido dela foi: “Mãe, tira mais uma foto”? Ao final da visita, se despedindo,
Eterna Túlasi

ela disse: “Eu te amo muito, pai, sempre te amei, apesar de você não merecer”. Mas
ele pareceu ter entendido isso como uma mera brincadeira e riu. E foi assim, o dia
em que ela veria seu pai pela última vez...
Desta forma, nossa maior rede de suporte foi, de fato, a parte da família com
a qual sequer possuíamos vínculos sanguíneos ou dos quais éramos mais distantes
fisicamente. Além de nossos inestimáveis amigos.
Meu primo-irmão veio do sertão da Bahia para visitar-nos. Também
advogado, sempre o considerei o irmão que não tive. Foi incansável nas práticas de
Reiki e no envio de mensagens de apoio em nosso grupo de amigos. Ele ter estado lá
fez toda a diferença para mim. Como ela estava muito debilitada, sorriu ao vê-lo
chegar e me disse baixinho: “Que bom, mãe, você também precisa de carinho. Vai
lá fora com ele, toma um ar, um café e conversa um pouco, sei que você está
precisando desabafar”. Sempre, sempre, mesmo os momentos finais, ela também se
preocupava muito comigo.
Nossa amiga Fernanda também esteve conosco. Nunca esquecerei seu olhar
solidário, misto de impotência e empatia, ao segurar em minha mão e dizer que
queria poder fazer mais, muito mais. Foi Fernanda, amiga em comum minha e da
Maíra e também advogada, que por coincidência trabalha no Inca, quem nos ajudou
em diversas pequenas dificuldades que tivemos nos trâmites da instituição. Ela
continua em minhas preces!
Depois foi a vez de Ana Lúcia e Shirley, companheiras inestimáveis nesta dura
batalha. Túlasi oscilava entre o sono e o cansaço e pouco conversou, mas seu sorriso
discreto demonstrava a felicidade de ver tanta gente apoiando-nos. Ela sabia que
tratava-se de um momento muito difícil, também para os amigos, que precisavam
lidar com a angústia e a possibilidade da perda, mas nem por isso se ausentaram.
Pelo contrário. Foram e ainda são, para mim, meu maior esteio e suporte.
Nossa querida Micqueline também nos visitou. E sabíamos o quanto isso deve
ter sido difícil para ela, pois há pouco tempo perdera uma prima-irmã com câncer.
Mas ela esteve sempre ali, ao nosso lado, sorrindo conosco e nos dando amparo,
ainda que eu a tenha visto, algumas vezes, chorando longe de nós...
E numa operação logística bem complicada, minha irmã e meu cunhado
organizaram tudo para levarem Cacau até o hospital. Autorizados pela médica
responsável e com todos os cuidados tomados, proporcionaram à ela uma grande
Eterna Túlasi

alegria! Foi lindo vê-la desfilar pelos corredores rumo à sua “mamãe” feliz. Túlasi se
emocionou, chorou, sorriu e brincou com ela. Não tanto quanto gostaria, pois as
dores impediam uma mobilidade maior. Mas rendeu muitos afagos, sorrisos e
fotografias. É impressionante como um animal de estimação pode fazer diferença no
tratamento de uma pessoa. Sem dúvida, sentir-se responsável pela Cacau ajudou-a
muito a distrair-se e manter foco em outra coisa, que não fosse a doença.
Perguntei-lhe sobre que outras visitas gostaria de receber. Ela disse que já havia
recebido todas, menos as impossíveis. Lhe perguntei de quem estava falando e ela
respondeu que se referia ao Marcos e ao Lucas, seus médicos no INCA 2. Lhe
perguntei por qual motivo os classificava como impossíveis e ela respondeu que eles
jamais deixariam seu trabalho ou iriam lá após um plantão exaustivo, só para vê-la.
Perguntei se queria que eu tentasse chamá-los e ela disse que não, pois caso fosse
ignorada ficaria muito triste, preferia nem pedir. Insisti que achava que eles viriam,
mas ela negou. Sem que ela soubesse, então, enviei mensagem a ambos, contando
que ela seria sedada e que tinha pouco tempo de vida. Assim, caso não viessem, ela
não se sentiria frustrada. Marcos respondeu imediatamente: “Chego em 30
minutos”. Lucas estaria aos pés da cama dela um pouco depois.
Quando Marcos me avisou que estava subindo, eu lhe disse que tinha um
presente para ela. Ela perguntou o que era e eu disse que iria mostrar: quando ele
surgiu na porta do quarto seus olhos brilharam e ela sorriu muito feliz. Há tempos
não a via tão animada. Ela chorou. Eles se abraçaram e ela só sabia agradecer. Ele
veio acompanhado pela enfermeira Naira, que havia feito nossa transferência para o
INCA 4. Ele disse que estava ali como amigo e não em uma visita médica, pois não
poderia interferir nas rotinas desta unidade. Logo compreendemos: ele trouxera
chocolate belga para ela. Rimos muito. Ela exclamou: "Ah, finalmente você vai ser
bonzinho comigo! Nada de peito de frango grelhado e alface, é”? Mas ela já não
conseguia mastigar, tinha a boca ressecada e dificuldade para engolir. Ele, então,
lavou as mãos, passou álcool, partiu o chocolate em pedaços, aquecendo-o na palma
da mão e com o dedo, colocava-o derretido em sua língua. Ela sorria muito feliz,
comeu quase tudo. Fiquei muito emocionada com aquela cena. Aquela seria a última
refeição de minha filha e quando dividimos entre todos, alguns pedaços para lhe
acompanhar, a lembrança da cena da Santa Ceia me veio à cabeça. Rezei
internamente e pedi que Deus a abençoasse. Aquela, sem dúvida, também se tornaria
Eterna Túlasi

uma lembrança inesquecível para todos nós. Senti profunda gratidão pelo gesto dele
e por ter proporcionado felicidade e sorrisos à minha filha.
Naira acariciava seus cabelos, também visivelmente emocionada. Mais uma
vez senti alívio por ver que os profissionais que cuidavam de minha filha eram
humanos e expressavam sentimentos. Jamais confiaria em alguém que
testemunhasse tudo aquilo e ficasse impassível como um robô. Eu notava o quanto
importavam-se com ela.

Marcos e Naira em sua última visita

Conversamos bastante e num dado momento, ele disse que quando estava a
caminho, desejou lhe dar um presente, algo que fosse significativo. Explicou que
entendia e respeitava seu ateísmo, mas que o que lhe daria possuía outro significado,
além de ser apenas uma imagem religiosa. Ao abrir o pacote, ela sorriu de novo e
olhou para mim: era uma imagem de São Miguel Arcanjo, de quem ela sabia que eu
era admiradora. Foi uma enorme coincidência, pois eu jamais havia conversado com
ele sobre isso. Ele disse que o anjo lutando contra o dragão lembrava sua luta contra
o câncer e refletia o desejo que sentia, de cuidar dela e protegê-la. Disse algo sobre
lamentar não ter podido fazer mais. Foi muito difícil que todos nós não nos
desfizéssemos em lágrimas naquele momento. Ela sorriu emocionada e disse que
aceitaria apenas por ser ele quem estava dando e com essa interpretação: ele
cuidando dela.
Eterna Túlasi

Agarrou forte e nunca mais soltou. Só no momento de sua morte ele foi retirado
de suas mãos... Hoje, essa imagem está em um mini altar que tenho em meu quarto,
ao lado da outra imagem de São Miguel que eu já possuía.
A hora avançava e ela começou a ficar muito sonolenta. Eles tinham que partir.
Notei com que dificuldade fizeram isso. Os acompanhei até a porta e Naira não se
conteve mais, seu rosto estava lavado de lágrimas, mas não era apenas tristeza, havia,
também, muita beleza e emoção naquele momento. Ela me abraçou fortemente e me
disse que contasse com ela para o que precisasse, a qualquer hora. Se despediu e se
foi. Marcos me falou mais uma vez que queria ter podido fazer mais. Pediu que eu
cuidasse dela. Que eu ficasse bem e que rezasse. Choramos muito.
Essa cena será sempre inesquecível para mim, pois foi a última vez que ela
conversou com alguém que não fosse eu, uma vez que caiu em sono profundo logo
depois, não despertando nunca mais...
Pouco mais tarde, a medicação sedativa foi reaplicada com a intenção de sedá-
la profundamente. Ao ver as enfermeiras entrarem com o equipamento, mesmo
sonolenta, sorriu e agradeceu. Era clara a tristeza no semblante das profissionais
responsáveis pelo procedimento. Cada uma apertou a mão dela e a beijou na testa,
emocionadas. Quando ficamos a sós, ela estendeu a mão para mim e perguntou:
“Vamos dormir juntinhas hoje, novamente”? Respondi que sim e ela beijou minha
mão, puxando-me para mais perto. Após um longo abraço e muitas lágrimas, ela me
diria sua última frase: “Eu te amo, mãe. Obrigada por tudo. Você é melhor. Não
esquece, estaremos juntas para sempre...”. Assegurei que sim, sequei nossos olhos,
lhe beijei a testa e ajeitei seus cabelos. E tudo que pude dizer foi retribuir sua frase,
dizendo: “Te amo, filha. Obrigada por tudo. Você é maravilhosa. Tenho certeza de
Eterna Túlasi

que estaremos juntas para sempre. Fica em paz...”. Ela concordou com a cabeça, já
cochilando. As enfermeiras retornaram e aproximaram nossas camas novamente, de
forma que eu pudesse dormir ao seu lado. Ao me ver deitada bem pertinho,
segurando sua mão, ela sorriu e adormeceu...
Eu não sabia distinguir as emoções que tomavam conta de mim num turbilhão.
Respirei fundo e rezei, silenciosamente. A única coisa que aplacaria aquela dor
imensa que começava a tomar conta de mim, era a certeza de que ela encontraria
alívio para o sofrimento profundo que a acometera. Tentei me acalmar e pensar o
que mais poderia fazer por ela nas próximas horas. Ajeitei suas cobertas, chequei o
fluxo do soro, arrumei seus travesseiros e entendi que, naquele momento, ela
começava a nos deixar...
Escrevi, então, esta pequena carta, sentada ao seu lado:

“Dos últimos dias...


Seu corpo ainda vive e está aqui, mas é como se você não estivesse mais. A
falta de comunicação verbal recíproca já me remete à saudade e aproveito este limbo
para ainda sentir o cheiro do seu cabelo, acariciar sua pele e te admirar. Ponho
músicas para você como quando era bebê, assim como te arrumo na cama e troco
sua fralda. Coloco incenso e passo perfume. Converso ao pé do seu ouvido. Te
asseguro sobre meu amor e meu bem estar. Digo que tudo estará bem. Não quero
que se preocupe comigo. Te conto que você é a menina mais corajosa do mundo,
pois no final da batalha, foi você quem deu a última palavra. Tomou as rédeas de seu
corpo de volta da doença e não permitiu que o câncer te torturasse até o fim. Te falo
de meu imenso orgulho e que agora você é que é a minha heroína. Te vejo dormir
calmamente, sem dores ou mal estar, com um semblante de paz e tranquilidade. Bem
diferente do desgaste das últimas semanas. Isso ameniza um pouco a minha dor,
saber que agora você está bem e livre. De mãos dadas com a sua, te digo baixinho:
nossa batalha terminou filha, nós vencemos. Prevaleceu o amor, a calma, o conforto
físico, a liberdade e a paz espiritual. Estaremos para sempre juntas, querida.
Descanse. Para sempre juntas... Mamãe. ”
Entretanto, a morte que se avizinhava, visitou outra pessoa antes de levar a
nossa flor. Antes de dormir, chequei as mensagens em meu celular. Havia uma de
uma amiga, me pedindo que eu lhe telefonasse com urgência. Imaginei que para ela
Eterna Túlasi

me pedir aquilo, sabendo de minha situação, deveria tratar-se de algo igualmente


grave. Fui para o corredor e liguei. Minha amiga desculpou-se por me incomodar
naquele momento e mais ainda pela notícia que teria que me dar. Gelei. Imaginei
que fosse algo ligado à Maíra, chefe da Tutty, já que éramos amigas em comum. Fiz
as contas mentalmente e conclui que ela deveria estar para dar à luz a qualquer
momento. Quiçá, fosse essa a notícia, Antônio nascera?
Há duas semanas atrás, numa das vezes em que saí do hospital por alguns
minutos, Túlasi me pedira que comprasse uma lembrancinha para ela, pois Antônio,
o bebê que ela esperava, chegaria dentro de alguns dias. Feminista que era, Túlasi
frisou que o presente deveria ser para Maíra, que merecia carinho e atenção, já que
o neném receberia todos os mimos do mundo. Obedeci e comprei um kit de
hidratantes, desses de carregar na bolsa, já que ela vivia no ar-condicionado,
trabalhava muito e era uma mulher muito bem cuidada. Guardamos para quando o
bebê nascesse.
Eu estava certa, a notícia que minha amiga tinha para dar era sobre a Maíra:
ela havia entrado em trabalho de parto e Antônio acabara de nascer. Mas,
tragicamente, estava morto. Eu não sabia o que dizer. Fiquei muda ao telefone.
Maíra havia manifestado desejo de visitar Túlasi, mas temíamos que o ambiente
hospitalar pudesse lhe causar alguma infecção durante a gravidez e elas acabaram se
falando apenas por telefone. Também queríamos poupá-la de ir a um local cheio de
tristeza e dor, quando vivenciava um momento tão feliz com a chegada de seu bebê.
Ela já sabia que Túlasi encontrava-se em estado terminal e achamos que isso não
faria bem a ela emocionalmente.
E agora era ela quem acabara de perder o filho! Meu peito estava dilacerado.
Ela, que fora tão generosa com minha filha, a quem queríamos poupar a dor, a quem
tanto estimávamos, acabara de vivenciar na pele aquilo que eu mesma me preparava
para viver. E me parecia aterrador. Jamais imaginei que ela passaria isso, muito
menos, antes de mim.
Tudo tão de repente. Sem aviso prévio ou possibilidade de despedida. Não
consegui dimensionar sua dor. Agradeci em silêncio por poder estar ali com minha
filha, tendo este tempo tão precioso. Agradeci por Túlasi já estar inconsciente e eu
não ter que lhe dar esta notícia tão triste. Ela acompanhou a gravidez da Maíra pelas
Eterna Túlasi

redes sociais e sempre curtia as fotos da barriga e da alegria dela. Ela teria ficado
arrasada se soubesse.
Nossa amiga em comum sugeriu que eu não me manifestasse até que Maíra
divulgasse publicamente. Concordei, claro.
Tampouco tive coragem de lhe enviar a notícia quando Túlasi faleceu. Seria
muita coisa junta. Mas poucos dias após sua morte, foi Maíra quem primeiro me
escreveu. Fomos breves uma com a outra, cientes da dor imensa que invadia ambas.
Nos colocamos à disposição – quando estivéssemos melhor. Só nos encontramos
cerca de dois meses depois deste dia, já um pouco mais organizadas. Estávamos
sorridentes pelo encontro e acabáramos de reassumir nossos trabalhos. Mas minutos
depois, quando nos vimos sozinhas num canto do aeroporto, nos abraçamos e
choramos muito, soluçando. Quem diria que uma amizade que se iniciara com tantos
planos de trabalho e que envolviam nossos filhos, se transformaria num luto imenso
e concomitante que nos uniria pelo resto da vida...
No dia seguinte ao recebimento da notícia, a antiga psicóloga da Túlasi e o Dr.
Lucas, do INCA 2 vieram visitá-la, mas já encontraram-na inconsciente. Contei da
visita do dia anterior, do Marcos e da Naira, e lhes entreguei os desenhos que ela
havia feito para eles. O do Dr. Lucas ficara por terminar, eram balões coloridos
voando para o céu... Conversamos bastante sobre o caso dela, com cuidado para não
falar nada que, caso ela pudesse nos ouvir, lhe causasse alguma preocupação. Sua ex
psicóloga disse que desejava ter estado mais presente nesta fase, mas que suas
obrigações no INCA 2 a impediram. De fato, Túlasi sentiu-se um pouco
negligenciada enquanto estava no Inca 2, mas superou isso com os demais apoios
recebidos dos demais profissionais que a sucederam. O Dr. Lucas a olhava com
muita ternura, era perceptível a sensação que ele transparecia de ser uma pena uma
moça tão jovem ir-se assim. Logo, despediram-se e eu agradeci por toda a gentileza
que ele teve para com ela durante todo o tratamento. Sua calma e serenidade eram
um norte para Túlasi, que viu nele alguém em quem confiar.
No dia seguinte, Mônica e Bia juntaram-se a nós. Morgana e Rafael também
chegaram e ficamos ao redor da cama dela, lhe falando sobre nossos planos de nos
mantermos unidos, como era seu desejo. Num dado momento, nos demos a mãos,
circulando-a e fizemos um voto solene de que cuidaríamos uns dos outros. Aquela
Eterna Túlasi

era uma grande preocupação para ela. Jamais se conformou que Beatriz e Beto não
convivessem com os irmãos e queria muito que nos mantivéssemos juntos.
No final do dia, eles tiveram que sair e me ajeitei para dormir ao lado dela mais
uma vez. Ela tinha o semblante tranquilo e sereno. Respirava calmamente. Lhe beijei
a testa e a chamei de “minha bela adormecida”. Não consegui dormir sem acordar,
a cada hora, para checar como ela estava. Mas todas as vezes a vi tranquilamente
adormecida. Mas foi a sensação mais paradoxal que já tive em toda minha vida: um
coração dividido entre o alívio pelo cessar de seu sofrimento e a dor lancinante da
perda, já manifesta pela sua inconsciência, mas aproximando-se de forma mais real
e concreta a cada hora que passava.
Manhã de sábado, dia 25 de julho. Desci cedo para tomar o café. Quando
retornei, após terem checado seus sinais vitais e seu estado geral, as enfermeiras
instalaram a bomba de morfina, com o intuito de garantir que ela não sentisse
nenhuma dor, já que estava inconsciente e não poderia reclamar. Sua bexiga estava
completamente comprometida, bem como os ureteres e os rins. Havia suspeita de
metástase nos pulmões e seu intestino já não funcionava há mais de uma semana.
Sem dúvida, caso estivesse consciente, seu sofrimento seria insuportável.
Por volta das oito horas, Morgana já estava lá. Rafael chegou logo depois.
Ficamos sentados ao redor dela, acariciando seus cabelos e lhe dizendo palavras de
carinho. Acendemos uma luz indireta e um incenso, fechamos a cortina e colocamos
uma música suave de relaxamento. Logo em seguida as enfermeiras vieram lhe dar
banho. Era notória a tristeza no semblante delas. Não me contive e lhes agradeci.
Uma dela estava com os olhos cheios de lágrimas e se controlava para não chorar.
Aquilo me sensibilizava. Ela chegou a se desculpar e a temer que eu encarasse aquilo
como falta de profissionalismo, mas lhe assegurei que não. Elas a trataram com todo
o carinho, lhe perfumaram e passaram hidratante. Pentearam seus cabelos e
passaram gloss em seus lábios, ressecados pela máscara de oxigênio.
Até que recebi uma mensagem. Uma amiga havia sonhado que Túlasi estava
num belo jardim, muito bem de saúde, feliz, passeando e carregando pela mão um
bebê do sexo masculino que estava aprendendo a andar. Túlasi lhe dizia que havia
recebido a missão de cuidar dele. Fiquei sem voz. Lembrei do Antônio. Aquela
amiga sequer sabia quem era Maíra ou o que havia ocorrido com seu filho. Mas foi
impossível não fazer essa associação...
Eterna Túlasi

Pouco depois, Tutty começou a apresentar uma certa agitação. Pensamos se


tratar de algum incômodo devido ao fato de ter sido manipulada durante o banho.
Checamos se algo lhe apertava e se as pernas e braços estavam em boa posição. Mas
não resolveu e ela começou a suar profusamente. Chamamos a enfermeira e ela
mediu sua temperatura: tinha febre alta. Aplicaram dipirona, mas não surtiu efeito.
Colocaram bolsas de gelo nas axilas e pernas, mas não havia meios da febre baixar.
Ela transpirava muito e sua respiração começou a ficar cada vez mais pesada e difícil.
Porém, seu semblante continuava tranquilo e em paz. Fiquei muito preocupada. Não
sabia o que fazer nem como agir. Fui falar com as enfermeiras, mas elas só diziam
para esperar a dipirona fazer efeito. Desci com o intuito de encontrar um dos médicos
que pudesse nos ajudar.
Lá estava a médica da emergência, que atendera sua crise de dor, um dia antes
de ser sedada. Conversou comigo e me explicou que aquele quadro era perfeitamente
normal e que era apenas o sinal de que o sistema nervoso estaria desligando. Garantiu
que ela se encontrava em coma profundo, sem sentir absolutamente nenhum tipo de
dor ou desconforto.
Senti-me profundamente dividida: parte de mim era alívio, por saber que ela
estava bem e que seu sofrimento estava acabando, mas a outra parte era uma tristeza
abissal, do mais profundo negro, uma dor amarga que me atravessava a alma: minha
filha estava mesmo indo embora. Senti algo se revolvendo dentro do meu peito: pela
primeira vez eu não podia fazer coisa alguma para ajudar. Via minha filha em
profundo sofrimento e meu instinto de cuidadora não podia fazer absolutamente
nada para evitar. Parece que tudo que meu sentimento estava programado para fazer,
encontrara uma barreira instransponível. Senti a mais profunda impotência.
Mas eu tinha que ser forte e cuidar dela até o fim. Eu encontraria algo que
pudesse fazer. Precisa exprimir meu amor. Fazê-la sentir que eu cuidaria dela até o
fim. Eu não podia me dar ao luxo de ficar ali, de braços cruzados, angustiada e
chorando no momento em que sei que ela mais precisava de mim. Assim como meus
outros filhos, pois eles também passavam pelo momento mais difícil de suas vidas e
necessitavam de meu apoio e que eu estivesse inteira.
Logo depois, a enfermeira Sheila e a psicóloga Mabel chegaram e isso me
acalmou. Pedi que Sheila me explicasse, em detalhes, o que estava acontecendo e ela
me disse que não haveria maiores alterações. Talvez apenas sua respiração ficasse
Eterna Túlasi

um pouco mais ofegante, até que parasse por completo e me assegurou que ela não
estava sentindo nenhum tipo de mal estar, dor ou desconforto pois encontrava-se em
coma profundo.
Não me lembro, exatamente, de todo o teor da conversa, sei que ela ficou lá
por horas, ou ao menos foi assim que senti. Recordo que falei algo sobre o estado
clínico dela, que já estava sedada e iniciava um processo de agitação. Ela me deu
algumas informações sobre o transcorrer do processo e a certa altura, passamos a
falar da morte. Eu estava começando a me sentir ansiosa, suando frio, com o coração
acelerado. Não sabia o que fazer, nem como agir com meus outros filhos. Lembro
que ela conversou com Rafael e Morgana e que eles também tiveram se
tranquilizaram um pouco ao conversar com ela.
Mas ao contrário do que se pode pensar, foi justamente falar sobre a morte
quando minha angústia estava sendo presenciá-la, que me acalmou. Ela foi falando
sobre como morrer é um processo absolutamente natural e certo para cada um de
nós. Suas palavras tiraram de mim a sensação de que algo anormal estava
acontecendo conosco, como uma punição ou castigo. Compreendi que chegara o
momento e que esse momento poderia ser cercado de beleza para ela, ainda que
devastador para mim. Entendi que minha angústia procedia da minha impotência,
de desejar controlar e impedir o que já não podia mais ser controlado ou impedido.
Meu maior pesadelo, perder um filho, se tornara real e se materializava ali, naquele
exato momento: o dia de sua morte. E eu precisava aceitar isso.
Mais calmos, passamos a pensar de que forma a partida de Túlasi poderia ser
o mais bela e tranquila possível, dentro das limitações da situação. Para que
pudéssemos nos despedir com calma, harmonia e paz. Se no parto dela eu tive uma
enfermeira me apoiando, Mabel seria a uma doula especial naquele dia. Aquela que
com toda sabedoria e serenidade, soube ajudar a transformar o pior dia de minha
vida, numa experiência que, a despeito de profundamente dolorosa (como um parto
às vezes é, fisicamente), numa experiência profunda, transformadora e necessária,
para que eu pudesse resignificar todos os meus conceitos sobre vida e morte, amor e
eternidade.
Além disso, aquela conversa acabou por, mais adiante, tornar a morte parte de
minha vida. Se hoje falo sobre morrer, cuidados paliativos e despedidas, devo à
lucidez de Mabel naquele momento. A morte já não me mete medo. E quem perde
Eterna Túlasi

um filho, pouco mais tem a temer pelo resto de sua vida. De certa forma, nada mais
pode nos destruir. Pois uma parte de nós, já se foi, junto com eles. E uma parte deles
fica, para sempre conosco. Mãe que perderam seus filhos são feitas de uma matéria
tão indestrutível quanto o ar, pois parte de nós já se desfez. Agora, já não há mais
nada a temer...
Quando Mabel se foi, eu e Morgana tivemos uma sensação diferente:
olhávamos para Túlasi e era como se ela não estivesse mais ali. Entretanto, seu corpo
funcionava normalmente, ela respirava e transpirava, podíamos ver a pulsação de
seu coração nas veias do pescoço. O tom de sua pele era normal, mas parecia que já
não havia mais vida ou energia presentes. Neste momento, uma enfermeira chegou
e ouviu nossa conversa. Me chamou lá fora e disse que era espírita. Explicou que
segundo sua doutrina, pessoas mais evoluídas ou com bastante mérito (em casos de
grande sofrimento), teriam permissão para que o espírito deixasse o corpo físico,
mesmo antes deste parar de funcionar completamente. Mas alertou que se fosse esse
o caso, seu espírito poderia ainda estar por perto, ouvir o que dizíamos e ver nossos
gestos.
Voltei para o quarto e cochichei isso para Morgana, que também é simpatizante
desta doutrina. Decidimos falar em voz alta, tudo de bom que Túlasi havia feito por
nós ao longo da vida, rememorando os bons momentos. Caso a hipótese fosse
verdadeira, nada perderíamos em declarar nosso amor mais uma vez e cobri-la de
todos os beijos, carinhos, afagos e mimos possíveis.
Por volta das 17h, decidi passar um lenço com água fria em sua testa, fornecido
pela enfermeira para lhe refrescar, pois ela suava bastante devido à febre. Lhe
acariciei os cabelos e lhe disse ao ouvido o quanto a amava es ao dar um demorado
beijo em sua testa, Morgana pulou da cadeira e disse aflita: “Mãe, ela tá indo
embora”! Ela havia parado de respirar.
Morgana se emocionou muito e chorava, dizia que não queria que a irmã se
fosse e pedia que fizéssemos alguma coisa. Chamamos a enfermeira pela campainha
e eu tentei acalmá-la. Mas a única coisa que a enfermeira pôde fazer, foi atestar o
óbito.
Minhas atenções se voltaram para meus outros filhos, envoltos em profundo
sofrimento. E deles eu também precisava cuidar. Senti muita angústia por ver
Morgana passar por tudo aquilo, mas entendi que era sua forma de expressar o amor
Eterna Túlasi

que sentia por sua irmã: estar com ela até o fim. Rafael também chorou muito, mas
preferiu cerrar totalmente os olhos da Túlasi, acariciar seu rosto e cabelos e dizer:
“descansa em paz, minha irmã, eu te amo...”.
A enfermeira disse que nos deixaria a sós para nos despedirmos dela e deixei
que cada um deles ficasse alguns minutos a sós, para se despedirem, em particular.
Aproveitei e fui respirar na janela do corredor. A certeza que eu tinha, de que
morreria junto com ela, tamanha dor eu sentia, foi substituída pela responsabilidade
de cuidar de meus outros filhos, tomar as providências, avisar a família e amigos. Me
lembrei da imensa lista de desejos que ela deixara para que eu cumprisse. Pensei que
teria que adiar minha morte por uns dias. Ainda não era hora de deixar a todos na
mão, muito menos ela. Eu precisava cuidar de todos os detalhes e pedi, intimamente,
que Deus me desse apenas um pouco mais de forças para que eu conseguisse.
Fui a última a retornar ao quarto e naquele momento senti uma paz súbita.
Conversei como se ela pudesse me ouvir. Mas já não me dirigi ao seu corpo. Cerrei
os olhos e a imaginei naquele jardim, com o qual sonhara há uns dias atrás. Disse-
lhe que parte de mim estava feliz por ela ter vencido o câncer e que estava aliviada
por seu sofrimento ter cessado. Falei que sentia muito orgulho da coragem que ela
teve e que faria de tudo para me cuidar e cuidar de seus irmãos, como era seu desejo.
Repeti que a amava muito e que sabia que continuaríamos juntas, só que de uma
forma diferente. Olhei pela última vez aquele corpo, que agora era apenas uma
morada abandonada por ela. Símbolo de quem ela foi. Assim como as fotografias o
são. A essência de minha filha já não estava ali. E de alguma forma, naquele
momento, senti, de fato, que jamais nos separaríamos. O amor nunca morre, ele é
eterno dentro de nós. Eu a carregaria, para sempre, dentro de meu coração. Era como
se eu sentisse sua energia ao meu lado, apenas não poderia mais vê-la. Aquele corpo
fora dominado por uma doença, mas não havia sido capaz de dominar o espírito
livre, luminoso e independente de Túlasi.
A existência não é restrita à biologia. Vínculos subsistem às distâncias,
regularmente. Sentimentos não são coisas materiais, nem necessitam de um corpo
para que existam. De alguma forma transcendente, continuamos ligadas e só quem
já perdeu filho sabe como é isso.
Olhei para o sol que se punha pela janela e a imaginei livre, de volta à natureza.
Dei-lhe um último beijo e disse adeus...
Eterna Túlasi

Se há uma música que pode expressar este momento tão difícil, é essa:

QUEEN - WHO WANTS TO LIVE FOREVER


https://www.youtube.com/watch?v=_Jtpf8N5IDE&list=PL0b0z5BpzP4RSLOsY
gGZSCMELbGclsMti&index=5
Eterna Túlasi

A FÊNIX RESSURGE DAS CINZAS

A partir daquele momento, tive que me concentrar em consolar Morgana e


Rafael. Mas logo eles pareciam mais calmos e aliviados. Era hora de tomar as
primeiras providências: avisar a família, cuidar da burocracia no hospital etc.
Após avisar a todos, fui chamada pela equipe para recolher nossos pertences do
quarto. Seu corpo já havia sido levado para o outro andar e ficaria lá guardado até
segunda-feira, quando a funerária pudesse providenciar a cremação e os papéis.
Entrei no quarto vazio tomada de uma raiva imensa e irracional. Odiei cada
esparadrapo, cada tubo de soro e tudo que remetia à doença que fez com que ela nos
deixasse. Joguei muita coisa fora: não queria nada que me lembrasse daquela
situação. Talvez eu pudesse lidar com a libertação dela, mas àquela doença eu odiaria
até o fim dos meus dias.
Minha irmã e meu cunhado foram nos buscar. Não consegui chorar: eu era um
misto de tantas emoções que me sentia entupida, como se o local por onde tudo isso
tivesse que extravasar fosse pequeno demais e impedisse o alívio. Alguns
funcionários vieram prestar condolências. Todos visivelmente emocionados.
Agradeci imensamente por tê-los ali.
Chegando em casa, deparei-me com o fato de que ela estava certa: jamais a
veríamos ali novamente. Mas nem isso me fez chorar. Só sentia uma exaustão física
imensa. Comemos um sanduíche, tomei um banho e quando estava prestes a ir
dormir, meu cunhado apareceu na porta da sala com uma garrafa de tequila e copos
na mão. Esse era um antigo costume no interior do Brasil: beber em homenagem ao
morto. Lembrou que havíamos prometido a ela brindar. E aquela foi a senha para
nos permitirmos relaxar e chorar. Mas choramos num misto de alívio e cansaço, não
uma crise de desespero. Demos os parabéns a ela pela coragem, dissemos que a
amávamos e que estaríamos sempre juntos, ainda que fisicamente separados...
Não tive dificuldade de dormir, nem tampouco de regressar ao apartamento.
Dormi abraçada ao seu roupão, sentindo seu perfume e barganhei com Deus,
dizendo que aceitaria toda aquela dor de bom grado se ele a tivesse em bom lugar.
Lembrei do que passei na morte de minha mãe: fui dormir e quando acordei só
lembrei de sua morte após uns 5 minutos. Senti toda a dor da lembrança da morte
novamente. Mas agora eu queria dormir, sonhar com aquilo, encarar de para que
Eterna Túlasi

doesse de uma vez só. E assim aconteceu. Acordei consciente do que havia
acontecido. Ainda fisicamente exausta, mas em paz.
E então iniciou-se uma das fases mais desagradáveis de se lidar com a morte de
um ente querido: a burocracia do funeral. Buscar uma empresa que atendesse os
desejos que ela deixou por escrito, saber como eram os procedimentos de praxe,
providenciar a documentação. Respirei fundo e disse a mim mesma que precisava
achar um resto de força e coragem para aquela batalha final: eu havia prometido
cumprir todos os seus desejos e essa não seria uma tarefa fácil!
O obstáculo inicial eram os valores. Astronômicos. Foi necessário nos
cotizarmos em família (eu, Diana e Mônica) para fazer frente à enorme despesa. Mas
o fizemos com o coração cheio de felicidade por lhe darmos esta última homenagem.
Em seguida, precisávamos providenciar a documentação e retirar o corpo do
hospital. Aguardamos o tempo que ela havia solicitado. Não queria correr o risco de
acordar e estar num caixão, dizia ela. Prometi que esperaria. Ela só foi removida de
lá na segunda-feira. Me pediram que levasse uma “roupa especial para o
sepultamento”. Comecei a antever a reação das pessoas, conforme eu fosse
explicando suas vontades. Respirei fundo e peguei seu vestido favorito (que ela veste
na foto de capa deste livro). Um vestido bem simples e suas sandálias favoritas,
igualmente singelas. Imaginei o que pensariam de uma mãe que veste o corpo de sua
filha desta forma humilde, quando teria condições de dar as melhores roupas da
cidade. Pensei que teria de dar longas explicações dali por diante. E assim foi...
Na segunda feira, cuidamos da papelada no hospital e no cartório. E nos
encontramos com os funcionários da funerária que providenciariam a cremação.
Conforme eles iam enumerando os itens possíveis para uma cerimônia solene, eu
respondia repetidamente “não, não, não...”. Para facilitar, lhes mostrei o testamento
dela de forma que entendessem que não se tratava de má vontade nossa e sim de
respeitarmos os desejos dela. Eles compreenderam e foram extremamente
respeitosos. A partir daí, tudo correu como desejávamos: seu corpo foi retirado do
hospital e levado para a funerária onde passaria pelos preparativos de praxe. Eles
agendariam a data da cremação no cemitério do Caju e nos avisariam, já que a
demanda é grande e eles são um dos poucos locais a fazerem tal procedimento. O
aviso chegou dois dias depois.
Eterna Túlasi

Eu deveria comparecer ao crematório acompanhada do pai dela, para


assinarmos a autorização antes do corpo ser cremado. Fui sozinha, pois naquele dia,
uma coincidência fez com que ninguém pudesse me acompanhar. Ao ver ao longe o
cemitério, meus olhos se encheram d’água. Temi não suportar. Respirei fundo,
peguei os fones de ouvido, liguei o celular dela e apertei aleatoriamente sua playlist.
A música que ela tanto gostava, “Roar” da Katy Perry, entrou pelos meus ouvidos.
A letra fala de uma moça, antes ingênua e frágil, que passa a enfrentar valentemente
perigos e tigres na selva. Sorri sozinha em meio às lágrimas. Foi a primeira vez que
achei que ela estava, de alguma forma, conectada a mim e tentando me consolar.
Lembrei de um dia em que ouvimos esta música de mãos dadas, a caminho do
INCA, uma dando força a outra. Pedi-lhe, mentalmente, que ficasse comigo só mais
um pouco, que eu não conseguiria fazer aquilo sozinha. Prometi que em breve eu
não incomodaria mais seu espírito. As agora seria ela quem precisaria cuidar um
pouco de mim. E foi impressionante a sensação que se apoderou de mim quando
desci do taxi: parecia que um manto de força havia me coberto. Toda a angústia
passou como que por encanto.
Encontrei o pai dela, lhe expliquei brevemente o procedimento e assinamos os
papeis. Ele perguntou sobre velório, missa etc. Era a temida hora de lhe contar sobre
o testamento dela. Ao que ele, incrédulo, questionou: “Festa mexicana”? Respondi
que sim e que custasse o que custasse, eu cumpriria todos os seus desejos. Disse-lhe
que caso quisesse rezar uma missa ou algo do gênero, era livre para fazê-lo, mas não
com a presença das cinzas dela, pois exigira total laicidade nos ritos de sua partida.
Faltava, ainda, uma etapa: como não haveria velório, era necessário que
alguém reconhecesse o corpo, de forma a garantir que não houvesse nenhum engano.
Como eu estava fazendo o pagamento e ainda precisava aguardar recibo e demais
documentos, que seriam necessários dali em diante, o funcionário perguntou se ele
poderia cumprir a tarefa. Avisei que o aguardaria na cafeteria da recepção, já que
Mônica, Ewerton e Beatriz iriam me buscar. Ele me perguntou: “Mônica, que
Mônica”? Respondi que era a mãe da filha dele, Beatriz. Fiz as contas mentalmente
e não consegui precisar a quantos anos ele não via a filha.
E assim foi, terminada a papelada na administração, encontrei com eles no
café, aguardando o retorno do pai dela. Logo ele caminhou em nossa direção, muito
abalado. Não sabíamos o que fazer, nem como agir. Ele tinha tido todo o tempo do
Eterna Túlasi

mundo para estar com ela, ainda em vida e agora, pela última vez, a via em um
caixão. Ao se refazer, ele cumprimentou a todos, dando um abraço formal em
Beatriz. Nem a morte da filha, que ele dizia ser a favorita, mudara sua posição em
relação à filha caçula. Naquele momento pensei no quanto ela teve sorte por ter
encontrado um verdadeiro pai no Ewerton.
Nos despedimos deles e fomos dar uma volta para arejar a cabeça. Sentamos
em um restaurante à beira da Lagoa e uma sensação de anestesia e flutuação tomava
conta de mim. Era, de fato, como se parte de mim também tivesse partido. Eu me
sentia ausente e distante, tendo que esforçar para prestar atenção às coisas e pessoas.
Seria necessário aguardar alguns dias antes de buscar as cinzas. E enquanto
isso, resolvi colocar ordem na casa. Tudo ia bem, até que comecei a separar os
remédios para devolver ao INCA. Eram caros e poderiam ser úteis para alguém.
Comecei a passar mal. Observei os sintomas e vi que se pareciam com uma crise de
ansiedade. Revi mentalmente minha rotina: se havia dormido, comido etc. Concluí
que não deveria ser um mal estar físico. Mas a sensação só piorava. Vi que era uma
angústia relacionada a todo o ocorrido. Mas antes de passar a mão no vidro de
ansiolítico, que uma amiga psiquiatra me receitara prevendo tais emergências, enviei
uma mensagem para a Mabel. Ela prontamente me atendeu. Tentou identificar que
fatores poderiam estar desencadeando aqueles sintomas. Perguntou o que eu estava
fazendo e expliquei. Sabendo que eu estava encarando bem a partida da Túlasi, mas
ainda com muito ressentimento em relação à doença, sugeriu que poderia ser o
contato com os objetos que lembravam o câncer. Aconselhou-me a tirar de vista tudo
quanto lembrasse isso: fraldas, muletas, aparelhos de controle de dor, morfina etc. E
observasse se a sensação permaneceria quando eu manuseasse os pertences pessoais
dela. Assim fiz. Em cinco minutos, sumi com tudo que me lembrasse a doença.
Tomei um banho e saí para dar uma volta. Retornei algum tempo depois, já mais
aliviada e observei minha reação. Nada. Estar diante das fotos, roupas e objetos
pessoais dela nunca me causou nenhum tipo de angústia. Pelo contrário, passou a
ser uma das formas que encontrei de sentir um pouquinho de sua presença, seu
perfume e reviver as lembranças. Guardei o Rivotril. Mabel, como sempre, havia
sido certeira e competente.
Por fim, chegou o dia de ir buscar as cinzas. Eu não sabia como reagiria. Mais
uma vez achei que iria surtar. Cadu me acompanhou. Perguntou como eu me sentia
Eterna Túlasi

e até chegarmos ao cemitério, estava tudo bem. Mas sabíamos que eu poderia ter
uma reação adversa. Não há como prever ou se preparar para este tipo de coisa. Eu
só pensava que precisava arranjar forças para cumprir tudo até o fim. E pedi que ela
me ajudasse.
Por precaução, o Rivotril me acompanhou. Cabe frisar que nunca fui contra o
uso de medicação calmante ou antidepressiva. Por isso, comprei e levei comigo. Mas
sempre achei que deveria tentar, com minhas próprias forças, até a hora em que eu
percebesse que estava chegando ao limite. Tanto que, em duas ocasiões depois, usei-
o para dormir. Acho que quem passa por isso deve, sim, procurar um psiquiatra de
confiança e se precaver. Depressão é um quadro grave e requer tratamento médico.
Só não devemos confundir a tristeza normal pelo luto, com uma psicopatologia.
Entrei, enfim, no prédio onde fica localizado o crematório. Ainda estava calma.
Fui convidada a uma sala privativa e entreguei meu documento e o dela. Uma
senhora muito educada nos recebeu e pediu que aguardássemos um instante. Em
seguida, nos conduziu até o prédio anexo, de arquitetura antiga, mas muito bem
conservado. Entramos num salão cujas paredes eram cobertas por estantes de
madeira, com portas de vidro, e dentro delas, inúmeras urnas, absolutamente iguais
umas às outras. Comentei o fato e ela respondeu que na morte, somos todos iguais.
Achei aquilo fenomenal: pobres e ricos, brancos e negros, famosos e desconhecidos,
todos de volta ao pó, tratados, finalmente, de maneira igualitária. Nada de jazigos
em mármore contrastando com sepulturas rasas. Ali, de fato, todos eram iguais.
Pensei que Túlasi ficaria feliz com aquilo.
Então, a funcionária descobriu uma redoma de vidro, coberta por um lindo
veludo azul e tirou de dentro a urna com as cinzas da Túlasi. Me entregou
solenemente, dizendo que sentia muito. Agradeci e no momento em que abracei
aquele vaso, senti um misto de alívio e felicidade, que jamais imaginei ser possível
numa situação daquelas.
Eterna Túlasi

Quando saímos do prédio, o dia me pareceu lindo, o céu azul e eu sorria.


Precisei de um tempo para entender o que se passava comigo. Estaria eu à beira de
uma crise histérica? Mas me lembrei da primeira vez em que a peguei no colo. E
agora ela estava ali, em meus braços novamente. Livre, sem câncer, com a
possibilidade de se tornar a matéria prima que daria origem à uma nova vida: a sua
árvore. Era isso! Compreendi a grandiosidade do plano dela: transformar um corpo
adoecido e desgastado em combustível para gerar vida novamente! Me perdoem a
corujice, mas ali, naquele momento, achei minha filha genial...
Eterna Túlasi

FESTA NA FLORESTA

Dias depois, como era desejo dela, organizamos a festa em homenagem à sua
vida. Ela dizia que não deveria ser um ritual para celebrar a morte.
Depositaríamos parte de suas cinzas aos pés de uma árvore na Floresta da
Tijuca, no Rio. Conforme havíamos combinado na segunda versão de seu
testamento, o restante seria levado para Brasília, onde eu e seu padrinho
escolheríamos uma muda de árvore e plantaríamos em local de nossa escolha. O
restante, eu espalharia no gramado do Hyde Park em Londres ou em Hay-on-Wye
(capital mundial dos sebos), cidade que ela sempre sonhou conhecer, mas não teve
oportunidade.
Convidamos os melhores amigos e a família. E montamos uma típica festa
mexicana do dia dos mortos: música, decoração colorida com bandeirolas, balões,
caveirinhas e flores. Selecionei a playlist de suas músicas favoritas e preparamos o
cardápio mexicano. No centro da clareira da floresta: a urna com suas cinzas, tequila,
pimenta, sal e limão, como ela queria. Recomendei a todos que não levassem
símbolos religiosos e nem fizessem preces em voz alta. O nome do local é Gruta
Paulo e Virgínia.
Devido ao meu cansaço físico, foi uma ótima oportunidade poder ficar em casa
e preparar tudo com antecedência. Fizemos lembrancinhas para serem entregues aos
convidados, em graciosas sacolinhas decoradas com caveirinhas. Mônica e Beatriz
elaboraram finas mandalas pintadas à mão, em lenços de seda pura e com elas
amarraram pacotinhos de castanhas, amêndoas e nozes, as preferidas de Túlasi.
Diana e eu fizemos um marcador de livro: uma foto dela, uma de suas mandalas, um
lacinho de fita lilás (sua cor favorita) com uma miçanga artesanal mexicana e a frase
que copiei de seu diário e está na folha de dedicatórias deste livro: “Vai ser feliz, a
vida é curta”. Colocamos pirulitos para as crianças, papel e lápis de cor, tiaras de
princesa e estrelinhas de pendurar no pescoço, que piscavam.
Mônica levou uma sangria de frutas maravilhosa e Cadu, meu cunhado,
champanhe. Enfeitamos a mesa do bolo (decorado por uma linda catrina mexicana)
com grandes fotos dela, toalhas e enfeites coloridos.
Foi uma maratona preparar tudo a tempo, já que eu me sentia cansada e
desanimada. Mas pensar que eu havia prometido fazer tudo bem bonito, me dava
Eterna Túlasi

coragem. Ela merecia a maior das homenagens. No dia 8 de agosto, lá estávamos,


no local chamado Gruta Paulo e Virgínia. Uma linda clareira na floresta. Chegamos
cedo, minha irmã e eu, pois o local é bem disputado aos sábados e precisávamos
fazer toda a decoração antes dos convidados chegarem.
Quando tudo estava pronto, comecei a ficar apreensiva: como as pessoas se
sentiriam numa festa mexicana ao invés de um velório? Conseguiríamos o clima
festivo que ela tanta queria ou a tristeza falaria mais alto? Mas Túlasi sabia bem o
que havia pedido e com toda aquela decoração, uma paisagem deslumbrante, um
belo dia de sol, boa comida, bebidas e músicas alegres era impossível nos rendermos
à tristeza. As pessoas começaram a chegar e admirar o ambiente e o clima foi ficando
cada vez mais alegre e festivo. Todos diziam que ela adoraria estar ali, tudo era a
cara dela, muito colorido e caprichado.
Lanchamos ouvindo suas músicas favoritas e concentramo-nos em falar sobre
as lembranças felizes que tínhamos dela. Quando a tarde se preparava para cair, eu
e meu neto Gustavo (então com 11 anos), que é afilhado dela, demos início ao plantio
de suas cinzas. Cavamos um pequeno buraco aos pés da árvore mais frondosa do
local, para que cada um dos convidados pudesse render sua homenagem.
Fiz uma breve fala, muito emocionada, dizendo o quanto admirava a coragem
que minha filha teve e que conforme havíamos combinado, estaríamos sempre
juntas. Prometi ainda, que me cuidaria e de seus irmãos. Demos uma salva de
palmas. Depois, um a um, depositamos um pouco das cinzas na base da árvore e ao
final, nos reunimos para brindar.
Túlasi não era muito adepta de bebidas alcóolicas, exceto por um chopp no
verão ou um cálice de vinho no inverno. Mas quando passou na OAB foi a Tequila
e disse que passaria a ser sua bebida favorita. E foi com Tequila e Champanhe que
brindamos a sua vida, sua garra, coragem e força descomunais, agradecendo pelos
anos maravilhosos que passamos juntos.
Com o cair da tarde, o sol foi se pondo e posicionou-se atrás de uma das árvores
que havíamos decorado com uma flor de papel crepom vermelho. Aquilo chamou a
atenção de todos, tal o brilho que passou a irradiar. As pessoas que comiam e bebiam,
conversando, voltaram seu olhar para cena e ficamos todos estupefatos! Um halo
dourado enorme se fez ao redor da flor, situada exatamente em cima do altar onde
repousavam suas cinzas, no meio da festa. O silêncio reinou e as caras eram do mais
Eterna Túlasi

profundo espanto. As pessoas passavam as mãos pelos braços, arrepiadas. Até que
alguém disse: “gente, ela está aqui, eu posso sentir, ela está conosco”! Foi uma
grande emoção. Alguém puxou uma salva de palmas e cada um foi dando seu recado:
“te amo, minha linda”, “Voa, Túlasi, voa”, “olhe a festa que fizemos para você,
querida” ou “sempre juntos, Tutty”! Foi lindo. Aquela foi uma cena e uma sensação
inesquecíveis.
Essa foi a música principal da festa, escolhida por ela e que fala sobre sua luta
contra a doença:

AMERICAN AUTHORS - BEST DAY OF MY LIFE


https://www.youtube.com/watch?v=Y66j_BUCBMY&list=PL0b0z5BpzP4RSLO
sYgGZSCMELbGclsMti&index=8
Eterna Túlasi
Eterna Túlasi

FESTEJANDO A VIDA DE TÚLASI

Ainda faltava fazermos a cerimônia com a outra parte de suas cinzas, que
seriam depositadas no solo de Brasília, onde plantaríamos uma muda de árvore,
conforme ela determinara em seu testamento. A escolha foi feita por ser a cidade
onde vivo, de forma que eu e o padrinho pudéssemos estar sempre presentes, regando
e cuidando. Ele escolheu o tipo de árvore: um Ipê, símbolo do Cerrado. Ela escolheu
a cor roxa, que mais gostava.
Não houve festa, preferimos a privacidade. Seu padrinho não se despedira dela,
então, era uma ocasião que requeria silêncio e reflexão.
Compramos a muda em um viveiro especializado, para garantir a qualidade da
pequena árvore, pois ela nos seria muito valiosa, precisando crescer forte. Buscamos
um local onde sempre pudéssemos ir, cuidar e refletir. Encontramos um bom lugar e
iniciamos o preparo: buraco, adubo, irrigação, cerca de proteção e tudo mais.
Gastamos quase um dia todo na tarefa.
Ao final, quando depositamos as cinzas, plantamos a muda e a regamos, o céu
começou a fechar e uma grande ventania veio nos refrescar. Sentamos ali mesmo, no
chão e falamos o quanto ela significou para nós. Ileno havia levado a Tequila que
trouxera do México com esta finalidade e como éramos só nós, um pequeno brinde
seria suficiente. Mas a despeito dos copos serem de vidro, o vento derrubou um deles,
derramando Tequila no chá à nossa volta. Acabamos rindo e imaginando que mais
alguém queria brindar conosco...
Eterna Túlasi

Um misto de nostalgia e alívio, por estar cumprindo seus desejos, sempre toma
conta de mim nestas ocasiões. No primeiro dia de finados que passei sem ela, fui até
o local onde seu Ipê está plantado. Como é diferente ver as cinzas de um corpo, que
já foi sinônimo de doença e morte, dar origem à vida, na forma de uma árvore tão
bela e forte. Ao invés de visitar um túmulo triste e de pedra, posso observar a
natureza, em todo o seu esplendor. Eis aí um grande símbolo de transmutação. Ela
sempre esteve certa: conseguiu vencer o câncer. Nem mesmo sua morte impediu que
ela voltasse a transformar-se em vida.
Meses depois deste episódio, recebi um convite para lá de inesperado: falar
sobre Direitos Humanos na ONU, em Nova Iorque. Jamais pensei que pisaria ali,
até que me lembrei do sonho dela de trabalhar lá. Fazer parte do Mecanismo
Estadual de Prevenção e Combate à Tortura era o primeiro passo nessa direção.
Tive, então, uma ideia para homenageá-la uma vez mais. Busquei um vidrinho
pequeno, “pedi licença a ela” e coloquei um pouco das cinzas remanescentes, que
restaram para serem depositadas na Inglaterra. Aquilo não havia sido combinado,
mas tinha certeza que a deixaria feliz.
Após o primeiro dia de trabalho, dirigi-me ao jardim da ONU. Uma linda
plantação de rosas, de todas as cores e tipos, enfeita a parte de trás do prédio, às
margens do Rio Hudson. Despejei a pequena porção de cinzas ao pé da árvore mais
bela e frondosa que encontrei por lá. Muito emocionada, pensei que de alguma forma
o sonho dela se realizava: parte dela estaria para sempre na ONU, o lugar onde
sempre sonhara em trabalhar. E agora, em 2019, novamente, estive lá a trabalho pela
questão do Marrocos. Não há como não me emocionar que, de fato, de certa forma,
tenho conseguido continuar nosso trabalho e realizar uma parte dos sonhos que ela
deixou pra mim.
Falta ainda, cumprir a promessa de Londres. Ou da cidadezinha que ela tanto
gostava na Inglaterra: Hay-on-Wye, próxima de Oxford. Com apenas poucos
habitantes, tem a maior concentração de livrarias de segunda mão, por metro
quadrado, de todo o mundo. Há livrarias em pontos de ônibus, praças etc. Estou
organizando minha viagem para lá. Com um exemplar deste livro debaixo do braço,
é para lá que levarei um exemplar, dissipando o restante de suas cinzas nas ruínas de
um lindo castelo. Longe de ser uma princesa de contos de fadas, minha filha sempre
foi uma grande guerreira e creio que este é o melhor lugar para ela repousar.
Eterna Túlasi

Mas ainda havia uma data a ser celebrada. Pouco tempo depois desta viagem,
o dia de seu aniversário foi se aproximando. Em 5 de novembro de 2015 ela faria 30
anos. Fui ficando melancólica, pensando que ela se foi tão jovem e que seria
inevitável não pensar nela o dia todo. Vi que a saudade bateria fundo e que eu iria
chorar demais. Mas ao invés de me trancar em casa sozinha e ficar com uma ou duas
amigas que me consolariam, decidi fazer sua festa de aniversário. Mas como fazer
isso?
Liguei para um restaurante mexicano novo, que abriu em Brasília, o Mucho
Gusto. Perguntei sobre reservas, serviços etc. Recebi um e-mail solicitando detalhes
e expliquei que seria uma festa de aniversário que pedia uma decoração caprichada.
Após mais algumas perguntas, tive que explicar: a aniversariante não estaria entre
nós. Ao contrário do que eu imaginei, isso não pareceu ter surpreendido
negativamente os proprietários, Igor e Gaby. Conhecedores da “Fiesta de los
Muertos” do México (por sinal comemorado nesta mesma semana, dia 2), toparam
imediatamente ajudar. Trocamos algumas mensagens com informações e contei, por
alto, a história da Túlasi.
Mas nada me preparou para o que eles haviam organizado: bandeirinhas
mexicanas coloridas, mesas ricamente decoradas, música ao vivo e um altar
mexicano com uma enorme foto dela, rodeada por flores coloridas e enfeites
mexicanos. Quanta delicadeza!
Meus amigos do grupo de apoio virtual chegaram. Éramos cerca de 30 pessoas.
Levaram presentes e deixaram recados num livro de visitas, providenciado para ficar
numa mesinha auxiliar. Depois de comer e conversar, cantamos parabéns para sua
coragem e sua garra, com uma vela de “catrina” mexicana. E fizemos seu tradicional
brinde com tequila. Sentimos que ela estará sempre viva em nossos corações e somos
gratos pelo período que convivemos com ela. Desejamos que ela esteja em lugar de
muita luz e muita paz.
Eterna Túlasi

Ao final, ainda fui presenteada com um lindo buquê de flores. Tudo que ganhei
foi utilizado na decoração da casa nova para onde me mudei em seguida, em especial
o quarto de hóspedes, decorado com alguns de seus objetos favoritos.
Desta forma, uma data que seria pesada e triste, transformou-se numa linda
oportunidade de lembrar-me de minha filha, falar sobre ela, sorrir, receber o carinho
dos amigos e vibrar positivamente para que seu espírito perceba o amor que sempre
teremos por ela.
Creio que sempre comemorarei seu aniversário de nascimento. E também farei
homenagens no dia de sua partida. A data de seu nascimento merece ser sempre
comemorada, pois foi a partir deste dia que ela passou a fazer parte de nossa história.
E continuará fazendo, ainda que sem um corpo físico. E a data de sua partida, é um
momento de agradecer os 29 anos que passamos juntas, a batalha que lutamos e, por
fim, a vitória de um amor que sabemos eterno, acima da morte de um mero corpo
físico. Como símbolo da superação de sua luta, escolhi o aniversário de um ano de
sua morte para lançar este livro. Assim, mais uma vez, continuaremos a transformar
experiências ruins, em momentos de luz. A vontade dela era que sua história de dor,
luta e superação pudesse ajudar outras pessoas que passam o mesmo que nós
passamos. Se este objetivo for alcançado, mais um desejo dela terá sido realizado.
Eterna Túlasi

De nossa parte, digo que o amor venceu. E sempre vencerá!


Eterna Túlasi

A VERDADE SEMPRE APARECE

Túlasi sofreu muita pressão quando comunicou que desejava se separar, em


meio ao tratamento, ainda no INCA 2. Parte da família disse que ela estava louca,
que ninguém naquele estado de saúde deveria tomar uma decisão tão drástica.
Outros, diziam que suas queixas eram pequenas e que todo casamento têm
problemas, desqualificando seu desejo. E alguns diziam que o fato dele ainda estar
casado com uma mulher com câncer, seria uma grande qualidade (como se isso não
fosse o mínimo esperado de alguém que ama seu cônjuge e possui valores éticos).
A falta de apoio chegou a tal ponto que alguns parentes pararam de falar com
ela, exigindo uma explicação para tal desejo. A quem me perguntava por qual motivo
ela queria tanto o divórcio, eu respondia: “ela quer e isso para mim é suficiente”.
De fato, após o desentendimento que ela teve com o marido, sobre o HPV,
Túlasi não havia mais tocado no assunto da separação. Mas algumas atitudes dele,
durante a internação, trouxeram o retorno do tema divórcio. E uma coisa chamou a
atenção de várias pessoas: foi ao receber o diagnóstico de terminalidade que ela
colocou a separação de volta e no topo da lista de desejos. Mas logo nós
entenderíamos o motivo.
Nem o agravamento de seu estado de saúde evitou que aqueles que eram
contra sua separação lhe enviassem mensagens desaforadas, humilhando-a,
chamando-a de inconsequente e cruel. Parecia que o casamento era mais importante
do que uma pessoa à beira da morte, em estado terminal. Era inacreditável.
Lembro-me de uma noite em que havíamos tido um péssimo dia no
ambulatório do Inca 4: cansaço, dor, sangramento, cadeira de rodas, muita espera e
procedimentos. Chegamos em casa exaustas e sem forças para mais nada, mas logo
depois ligaram para ela e sem nem perguntar como estava passando, queriam saber
quando ela iria reconsiderar a decisão de se separar. Ela teve uma crise de choro.
Chegaram ao ponto de dizer que o marido estava sofrendo muito devido à doença
dela e que ela deveria cuidar dele. Mal pude crer que ouvi um absurdo desses. Fiquei
furiosa.
Mas ela manteve-se firme quanto à decisão, entrou em acordo com ele, não
sem muita insistência e dificuldade, buscou seus pertences pessoais e mudou-se. A
oficialização viria depois.
Eterna Túlasi

Numa certa noite, ela teve um forte sangramento em casa. Apoiando-a no


banheiro, ela me abraçou, deitou a cabeça em meu ombro e chorando baixinho,
disse: “mãe, acho que eu estou morrendo”. O que responder numa hora dessas? Meu
coração estava dilacerado. Tentei lhe consolar e disse-lhe que estávamos todos a
caminho da morte, que ninguém sabia qual seria a nossa hora, para ela se acalmar
que eu estaria sempre com ela. Fomos para o quarto, chequei seus sinais e vi que
estava bem, apesar de fraca. Propus que fôssemos ao hospital, mas ela se negou.
Como eu havia prometido respeitar seus desejos, cedi, a despeito de muito
preocupada.
Pediu que eu dormisse na cama com ela aquela a noite. Prontamente concordei.
Dormia num colchonete ao seu lado, por medo de me mexer à noite e machucar ela.
Ela então me abraçou e disse: “Mãe, eu preciso muito, muito, fazer uma coisa e você
tem que ajudar”. Concordei sem nem saber do que se tratava. Ela disse que no dia
seguinte faria a minuta do divórcio e procuraria uma amiga advogada, para
formalizar tudo em cartório. Finalizou sua decisão com a frase: “Não fico mais nem
um dia casada... me prometa que em meu atestado de óbito constará meu nome de
solteira, mãe”. Prometi e fiquei muda, mais uma vez, sem saber quais partes eram
mais difíceis de digerir, naquilo tudo. Mas jamais me passou pela cabeça recriminar
seu comportamento ou não respeitar seus desejos.
Resolvido o formato e acertados os trâmites, dias depois fomos ao cartório. E
esse dia chamou muito a atenção. Quase sem conseguir andar, com olheiras e
trêmula, ajudei-a a se vestir. Perguntei se não seria melhor adiar um dia ou dois. Ela
respondeu que iria nem que fosse numa UTI móvel. Achei melhor nem discutir. Ao
chegarmos ao local, ela disse que mal via a hora de se livrar daquilo tudo. Eu nunca
havia visto minha filha agir daquela forma tão tenaz. Não combinava com sua
personalidade doce.
Ao sentar-se na mesa do tabelião e ser questionada sobre a possibilidade de
uma reconciliação, o resto de sua força foi utilizado para dizer em tom firme:
“NÃO”! Finalizado o procedimento, explicaram que haveria a demora de alguns
dias para a emissão da certidão, ao que ela perguntou: “Mas eu estou oficialmente
divorciada, não é? Não tenho mais nenhum vínculo com ele, certo? Ou tenho que
esperar este papel?” Um pouco surpreso, o funcionário lhe assegurou que a certidão
Eterna Túlasi

era apenas uma formalidade e que ela já estava oficialmente divorciada, podendo
voltar a usar seu nome de solteira.
Saímos de lá e ela pediu para almoçar num restaurante próximo, para refazer
as forças. Fez questão que eu anotasse na agenda eletrônica a data em que
poderíamos ter acesso à averbação do divórcio na certidão de casamento. Perguntei
o motivo de se sentir assim e ela respondeu: “Esta relação me prejudicou muito, mãe,
só recentemente percebi. Um dia você vai saber a verdade, mãe. Agora eu não tenho
como te provar, mas espere que o tempo vai mostrar a todos como eu estava certa.
Tenha certeza e confie em mim. Não quero que a gente se estresse, mais ainda, agora.
Precisamos guardar nossas energias para aproveitar os dias que temos pela frente e
nos prepararmos para a batalha que ainda está por vir”. Concordei e só alguns meses
após sua morte compreendi que, devido a ela ser advogada e estar acostumada a não
acusar sem provas, elegeu o tempo como seu defensor. E só então pude compreender,
perfeitamente, o que ela tentava me dizer naquele dia...
Lembro que neste dia voltamos para casa ouvindo essa música aqui:

KATY PERRY - ROAR


https://www.youtube.com/watch?v=CevxZvSJLk8&list=PL0b0z5BpzP4RSLOsY
gGZSCMELbGclsMti&index=13

Foi quando regressei ao Rio, poucos meses após sua morte e reencontrei
familiares e amigos. Um deles queria saber como eu estava me recuperando. Disse-
lhe que estava tentando superar, tocando a vida. E ele me perguntou como eu reagi
à notícia de que meu ex-genro estava em um novo relacionamento. O mundo parou.
Minha cabeça rodou e senti o chão se abrir sob meus pés. Fiz as contas mentalmente:
fazia pouco mais de quatro meses que ela havia falecido e ele já estava numa relação
séria com alguém? Onde havia ido parar todo amor e lealdade que ele sempre
afirmara? Mas a resposta que obtive foi ainda pior: “Ele não JÁ está com alguém, na
verdade eles estão juntos há algum tempo...”.
Eterna Túlasi

A conta ficou ainda mais difícil de fechar. Ele me contou que poucos dias
depois a cremação do corpo de minha filha, ele havia assumido, publicamente numa
rede social, seu novo status de relacionamento, incluindo várias fotos do novo casal,
se divertindo e sorrindo. E me mostrou tudo em seu próprio computador.
Continuei tentando fazer contas: eles haviam se divorciado um mês antes de
sua morte. Tentei imaginar como, num espaço de 50 dias, alguém se recupera de
uma separação, esquece o “grande amor de sua vida” (como ele dizia), supera a
morte do ex-cônjuge, conhece alguém, se apaixona e declara, publicamente, estar
numa relação séria. A conta não fechava. Até que percebi que era a minha lógica
temporal e moral que estavam gravemente errada...
De súbito, todas as conversas que tive com ela, começaram a borbulhar em
minha mente. E me lembrei de um fato muito importante: ele havia adoecido pouco
antes dela morrer. Liguei para o Inca e marquei uma reunião com os membros da
equipe médica. Pedi que me mostrassem seus exames e me explicassem melhor a
etiologia do tipo de câncer que a acometera. Era, de fato, um tipo de vírus HPV
altamente perigoso e raro. Perguntei se tal vírus poderia ser responsável pelo
problema de saúde que ele havia apresentado e me disseram que sim, havia estudos
relacionando ambos os tipos. E que essa poderia ser uma hipótese sobre a etiologia
da doença dela. Enfim, a equação macabra se solucionara...
Impossibilitada de apresentar provas contundentes contra ele, à época, ela
assumiu para si as acusações de ser a irresponsável, leviana e cruel. E pagou esse
preço para ter a única coisa que a situação terrível, na qual se encontrava, lhe
permitiu: ser livre. Chorei convulsivamente.
Frente a um diagnóstico de câncer, com possibilidade de tratamento, a despeito
de abalada, ela havia consentido em deixar aquela história para lá e concentrar-se na
possibilidade de cura. Mas quando essa cura deixou de ser possível, ela já não tinha
mais motivos para relevar. Não se tratava de mera dúvida sobre uma suposta
infidelidade, mas sim de uma sentença de morte que o câncer lhe trouxera.
Eterna Túlasi

Dias depois, analisando melhor toda a história, me dei conta de que, como ela
havia prometido, a verdade havia surgido. Trazendo com ela a informação de que o
pai de Túlasi, ao tomar conhecimento destas informações, reagira dizendo que “ele
era jovem e merecia retomar a vida”...
Se havia algo de bom naquela situação absurda era o fato da história ter sido
esclarecida e ter limpado a memória e a honra de minha filha. Ao menos, agora
ninguém mais poderia classificar minha filha como leviana e inconsequente. A rede
social dele estava lá, para falar por si mesma, publicamente. A justiça, ainda que
tardia, havia sido feita.
À ela foi reservada a “cura”, a libertação e a vida eterna. Aos que ficaram, o
convívio com a própria “consciência”.
Eterna Túlasi

MAIS VÍTIMAS
(capítulo extra da segunda edição)

No dia de finados do ano seguinte à morte dela, e véspera de seu aniversário,


recebi uma mensagem na página do Facebook dedicada ao livro:
http://www.facebook.com/livrotulasi/.
Uma moça desejava comprá-lo. Respondi como de praxe e logo o enviei. Um
mês depois, recebi nova mensagem, e essa, enorme, me tirou o chão. Em linhas
gerais, ela contava como havia chegado até mim e a cada linha meu susto só ia
ficando maior. A amiga que comprara o livro e o dera de presente a ela dizendo que
ali residia o remédio para sua angústia. Então ela havia reunido coragem para me
escrever após terminar de lê-lo.
Se identificara com o meu trabalho e o da Tutty pois também atuava
diretamente com algumas minorias. Havia tido uma infância e uma adolescência
cheia de dificuldades, dentre elas, ter acompanhado a morte do avô doente em casa,
vivia com a avó que também teve câncer. Alguns relacionamentos afetivos ruins que
a levaram até um cara que conhecera neste mesmo ano. Segundo ela, ele era calado
e misterioso e ela tentava entender sua forma fechada de ser. Saíram algumas vezes
e ele até contou que era divorciado.
Ela quis saber mais, mas ele lhe escondia a verdade. Ela me contou que nessa
época passou a ter um sonho meio recorrente: que corria chorando desesperada e
chegava até uma árvore iluminada onde se sentava.
Um dia estava observando livros e revistas na casa dele e ele acabou contando
que a esposa falecera logo após o divórcio. Ela então conheceu a reportagem de uma
revista que falava sobre Túlasi e o livro. Contou que ele também tivera câncer, mas
havia se tratado. Obviamente, apresentara uma versão distorcida dos fatos, se
vitimizando. Ela foi para casa, chorou muito e se aconselhou com uma amiga que a
encorajou a ler o livro para conhecer maiores detalhes. Afinal, nessa época ela passou
a apresentar alguns sintomas estranhos, como dores infecções e sangramentos...
Para sua surpresa, pouco tempo depois ele terminou o relacionamento por
Whatsapp. Alegou que não conseguia se afeiçoar a ninguém por muito tempo. Seu
chão se abriu e ela se sentiu muito abalada.
Eterna Túlasi

E foi assim que ela chegou até mim. Disse que após terminar o livro sonhou
novamente com a árvore. Mas dessa vez já não chorava mais, apenas se deitara ao
lado dela. Procurou um médio para fazer seus exames e queria agradecer por eu ter
escrito a história que ela precisava conhecer melhor. Eu estava imóvel diante do
computador. Um misto de raiva profunda daquele homem, de choque pela história
dela, de falta de reação diante da notícia... Reli tudo com calma e escrevi para meu
grupo de amigas, pedindo uma opinião sobre como agir. Todas ficaram chocadas,
mas foram quase unânimes em dizer que eu não deveria me envolver. Levei um susto
com esse posicionamento. Por mais que fosse doloroso para mim, como eu poderia
deixar essa moça sem resposta e apoio?
Decidi pensar melhor por uns dias e fui dormir. Claro que sonhei com a Túlasi.
E ela sorria docemente para mim. Acordei e fiquei imaginando o que ela fara em
meu lugar. Conhecendo bem a minha filha, foi fácil adivinhar: àquela hora ela já
estaria na porta da casa da moça, pronta para acompanhar ao médico. Se tornariam
grandes amigas e xingariam juntas o dito cujo. Entendi o sorriso do sonho...
E foi o que fiz: lhe respondi e passamos a manter contato. Passei toda
informação que podia sobre vírus HPV, câncer de colo de útero, meus contatos no
INCA e indicação de médicos e exames. Até que um dia fui ao Rio e marcamos um
café. A semelhança física dela com a minha filha é impressionante e me deixou sem
voz. Achei aquilo pior ainda, pois ele poderia ter se aproximado dela por conta de
sua aparência. Mas respirei fundo e procurei me lembrar que ela era mais uma vítima
de seu comportamento irresponsável e que precisava de meu apoio.
Apesar do médico dizer que não tem como comprovar que ela possa ter
contraído HPV do ex-namorado, claro que ela o procurou para contar de sua doença
e alertar que ele poderia estar contaminando outras mulheres por aí. Segundo ela, ele
havia saído com várias pessoas após o divórcio e morte de minha filha e essas
mulheres corriam um grande risco. Entretanto ele foi cínico e negou que Túlasi
tivesse morrido em função do HPV! Disse que o câncer dele no testículo não tinha
nada a ver com isso. Ela ficou chocada. Mas nada mais podia ser feito. Chegamos a
cogitar falarmos com a família dele, mas certamente iriam apoiar os absurdos
cometidos por ele, assim como fizeram durante a doença de Tutty. Ele chegou a
propor que reatassem, mas dias depois ela me mandou uma mensagem contando que
Eterna Túlasi

o viu com mais outra mulher. Lamentavelmente, torcemos para que não chegue o
dia que ela procure por uma de nós...
Foram meses de consultas, exames e avaliações e uma dessas vezes, ela me
ligou e pediu cópia dos exames da Túlasi, caso pudessem ser úteis. Não foi nada fácil
mexer naqueles papeis, mas a causa era maior. E algum tempo depois veio a boa
notícia: sua lesão era pequena e não maligna, bastava acompanhamento clínico
regular. Chorei de alegria. Aquilo fez valer a pena ter voltado a ter contato com tanta
coisa sobre a doença da minha filha, que ainda me machucava.
Mas a história não acaba aqui. Algum tempo depois, a avó da Túlasi faleceu, e
para meu profundo espanto, o pai dela o convidou para o funeral sob a alegação dele
ter feito parte da família. Ele obviamente, apareceu acompanhado... Como se diz por
aí, nada como o tempo para demonstrar o verdadeiro caráter das pessoas.
Hoje vejo que a presença dessa moça em minha vida foi uma grande benção
para nós duas (ou três, se incluirmos a Túlasi). Evidentemente gostaria que
tivéssemos nos conhecido em outras circunstâncias e que nenhuma de nós tivéssemos
passado pelo que passamos. Mas creio que o nosso encontro favoreceu a
transmutação de tanta coisa dolorosa em coisas boas e saudáveis. Hoje, me alegro
com sua alegria e nossa coragem. Fica aqui todo meu (nosso) carinho por ela e o
profundo desejo de que o número de mulheres infectadas por HPV diminua.

Deixo abaixo o link de uma página que criei sobre o tema:

https://www.facebook.com/mulheresHPVcancer/
Eterna Túlasi

NASCE UMA ESTRELA

Durante seu tratamento passei a fazer anotações, pois pretendia encaminhar


algumas observações e elogios ao INCA, com o intuito de colaborar com o
aprimoramento dos serviços. Um tempo depois, ela passou a dormir muito devido
ao efeito da medicação. Sem ter o que fazer, criei o blog, com acesso restrito. O
intuito era relatar nossa rotina e desabafar um pouco com os amigos (o “Mil
Limões”). Mas quando o quadro dela se agravou e eu já não tinha tempo para mais
nada e parei de escrever.
Em dezembro de 2015 retornei ao Rio. Minha outra filha, Morgana, havia
ficado muito abalada com a perda da irmã e este Natal seria difícil para ela.
Também queria saber se me sentiria à vontade de retornar ao INCA. Reuni
coragem e fui. Mas foi mais fácil do que pensei: chegando ao centro da cidade, me
vi do outro lado da rua do INCA 2. Caminhei calmamente olhando para o prédio e
me lembrando de tudo que ocorrera ali recentemente. Observei minhas emoções e vi
que eram as boas recordações também me vinham à mente. Decidi tentar superar
aquele tabu. Carregar para sempre a imagem do INCA, como algo doloroso, não me
faria bem e nunca se sabe quando será necessário retornar, mesmo contra a vontade
e aí, sem possibilidade de elaborar aquelas emoções. Fui até a portaria. Respirei
fundo e no momento em que vi os bancos da sala de espera da emergência, lembrei
dela sentada lá, sorrindo para mim. Então, uma enxurrada de recordações bonitas
foram revezando-se em minha mente: eu comprando café com leite, escondido, para
ela; nós duas dividindo o fone de ouvido enquanto aguardávamos a consulta; ela
deitada e dormindo em meu colo num dia de mais cansaço. A despeito de toda a dor
e sofrimento vividos ali, as recordações me fizeram perceber que havia sido a
experiência mais intensa que nós duas havíamos vivido e que sim, estar ali com ela
valera cada lágrima. Eu jamais a deixaria passar por tudo aquilo sozinha. Se eu
pudesse voltar atrás, faria tudo de novo!
E esta é uma coisa que eu gostaria muito de compartilhar com as pessoas que
passam pela mesma coisa que passamos: apesar de desgastante, triste e cansativo,
acompanhar um ente querido durante uma doença terminal é algo que vale muito a
pena. Desenvolvemos, ainda mais, a nossa cumplicidade. Foram trocas tão intensas
e profundas... Compartilhamos o melhor e o pior e nos unimos como nunca
Eterna Túlasi

havíamos feito antes. Se antes eu achava que dar à luz era o momento mais marcante
da vida de uma mãe, hoje sei que o ápice de meu amor foi aceitar perdê-la para que
seu sofrimento cessasse. É necessário muito desprendimento para isso. Mas eu jamais
conceberia a ideia de minha filha passar por tudo aquilo sem o meu apoio. A
sensação de ter dado o melhor de mim acompanha as eternas lembranças que terei
do período em que vivemos juntas. E auxilia na superação dos momentos mais
dolorosos. Sem dúvida, perder um filho é algo que nos transforma tanto quanto nos
tornarmos mães.
O próximo passo era entrar em contato com o INCA 4, onde estavam as
lembranças mais temidas. Entrei em contato com Sheila, a enfermeira que perdera o
filho. Havíamos conversado por internet neste intervalo. Marcamos um café no
shopping que fica perto do hospital. Relembramos várias coisas, felizes e tristes. Mas
falar sobre aquilo tudo já foi um passo inicial para entrar com a parte mais difícil da
história. Faltava falar com o Marcos.
Após aquela última visita, só nos falamos por mensagens eletrônicas e mesmo
assim, rapidamente. Eu não imaginava como ele tinha ficado depois daquilo tudo.
Enviei uma mensagem perguntando se poderíamos conversar um pouco e ele logo
respondeu. Para minha surpresa, ele havia sido transferido para o INCA 3, o prédio
ao lado do 4. Me perguntei como teria sido voltar ali após a morte de “sua pirralha”.
Eu ainda não me sentia pronta para voltar lá. Ao final de seu plantão nos
encontramos perto da casa de minha irmã. Como sempre, ele parecia cansado, mas
isso não o impedia de atender as ligações da equipe. Perguntamos como estávamos
e rimos: estávamos sempre correndo e atolados de coisas para fazer. Ele falou um
pouco sobre seu trabalho, o novo hospital e alguns pacientes recentes, mas logo quis
saber como eu estava. Lhe contei algumas coisas que ocorreram após o falecimento
dela e sobre como me sentia. Ele me ouviu atentamente e disse que eu deveria
registrar tudo aquilo. Escrever para que outras pessoas soubessem, como ela queria.
Mas eu ainda não tinha me sentido pronta. Para ele, nossa história havia sido muito
marcante e o relato poderia, de fato, ajudar outras pessoas. Ao ouvir isso, minha
vontade de escrever reacendeu. Lhe falei das anotações e do blog e disse que
precisaria organizar as partes e acrescentar dados. Ele, então, propôs me ajudar com
a escrita. Adorei a ideia, pois assim a história dela também teria um pouco deste
protagonista tão relevante em nossa história. Ele sugeriu que eu falasse com outras
Eterna Túlasi

pessoas que pudessem contribuir com relatos e informações. Pensamos em algumas


pessoas que acompanharam todo o processo e selamos o plano: eu escreveria o livro!
Esse reencontro foi muito importante para mim. Ouvir seu ponto de vista, saber
que sua “pirralha” não se transformara numa página virada em sua história, como
mais uma paciente que morrera e caíra no esquecimento como é comum com outros
tipos de médico. Notar que também ele se esforçara para dar um significado positivo
a tudo que ocorrera. E lhe agradecer. Não sei como se sente um médico diante da
mãe de uma paciente falecida, mas imaginei que algum desejo de ter feito mais
pudesse existir. Lhe disse que nutria muita gratidão e admiração por seu trabalho e
dedicação. Que jamais depositei nele a responsabilidade de salvar a vida de minha
filha, pois sabia que isso não seria possível. Expliquei que, para mim, médico é quem
cuida da vida e que a morte faz parte dela. Que a cura nem sempre é possível, mas o
cuidar sim e que ele havia cuidado dela como ninguém: lhe conquistou a confiança,
foi competente, profissional, amigo e afetuoso. Tive que aprender a não cobrar
milagres e a compreender as limitações humanas e científicas. Agora, redigindo essas
linhas percebo que, na verdade, eu não poderia ter tido pessoa melhor para dividir os
cuidados com ela. Eternamente ele será a lembrança do último presente, da última
conversa e da última refeição. Foi ele que, como profissional e ser humano, esteve
ao nosso lado todo o tempo, tentando, sofrendo, superando e isso exige muita, muita
coragem. Se eu dei a luz a ela, ele tinha sido forte o suficiente para estar ao nosso
lado no momento em que esta se apagara. Mesmo que isso represente, de alguma
forma, uma espécie de fracasso profissional. E isso, o coração não esquece.
No passado, jamais sonharíamos que aquela amizade que ensaiava florescer
seria afetada, já em sua origem, por algo que a tornaria muito mais profunda que um
mero papo de corredor. Mais uma vez, da morte surgiu a vida.
Escrever este livro foi uma oportunidade de revisitar recordações, emoções e
fatos. Sinto que tudo isto estava represado e que sem os trazer à tona com uma
motivação positiva, talvez eu demorasse mais tempo para encará-los, correndo o
risco, ainda, de não entrar em contato com algumas coisas (como visitar o INCA) o
que poderia me ocasionar dificuldades emocionais mais adiante. Nem sempre chorar
cura, mas falar sobre, ajuda. Sinto que, agora, começo a verdadeiramente superar.
Túlasi será eterna em nossas vidas, mas a dor, não.
Eterna Túlasi

Abaixo, algumas fotos do lançamento do livro no Rio e em Brasília:


Eterna Túlasi

CARTA PARA TÚLASI

Filha querida, todos os dias penso em você, e meu diário tornou-se este livro.
Quero te agradecer pela ideia que me deu de escrevê-lo. Lembro que algumas pessoas
sugeriram que você fizesse um blog, para deixar registrada sua batalha e para distrair
sua cabeça. Mas um dia você me disse que eu é que tinha o hábito de escrever e que
tinha certeza de que eu faria um bom trabalho. Espero não te decepcionar. Não sei
se você imaginou o quão bem isso me faria.
Sabe, filha, desde que comecei a organizar as ideias do livro, me tranquei em
casa, me cerquei das nossas lembranças, separei uma caixa de lenços de papel, mas
a cada lágrima caída, mais aliviada eu ficava. Não foi fácil encarar todas as
lembranças ruins, mas para que as pessoas conhecessem sua verdadeira história, e eu
pudesse elaborar melhor tudo o que passamos, eu precisava fazer isso.
E os momentos bons foram incríveis. Ria sozinha lembrando de nosso teatro
de bonecos com luvas cirúrgicas, de você gritando de alegria que iria comer bobagens
novamente. Também me emocionei de uma forma linda, recordando nossos pactos,
nossa proximidade e nossas confidências.
Portanto, passou longe de serem semanas mórbidas de entrega à dor. Foi ter
encarado isso tudo que fez com que eu começasse a me sentir melhor. Como você
sabe, eu não tinha tido um tempo para refletir depois que você se foi, pois logo
retornei ao trabalho. Essas semanas me permitiram o contato comigo mesma, com
você, com nossa história e nossos sentimentos. Valeu a pena. Que momentos
fantásticos nós vivemos. Tinham mesmo que ser eternizados num livro.
Meu amor, a vida por aqui sem você não tem sido fácil. Você me deixou uma
lista de tarefas nada fáceis de cumprir. Mas tenho dado o meu melhor. Passei o Natal
com seus irmãos e a despeito de algumas lágrimas e da saudade de tua presença,
conseguimos sorrir. Passamos o Réveillon com Mônica e Cia. Pensei que devíamos
ter feito isso antes. Eu e ela estamos firmes no propósito de manter todos os irmãos
unidos! Gustavo está enorme e tenho tentado ser uma avó mais presente, já que a
madrinha dele se foi. Sophia continua sapeca e chego a temer que uma hora ela mate
a Cacau de cansaço, mas acho que ficarão bem. Seus outros irmãos vão bem, você
deve estar acompanhando de longe.
Eterna Túlasi

Eu me mudei, não sem certo pesar por me lembrar que você queria vir morar
aqui comigo. Assim, o jeito que dei de tornar isso melhor foi trazer suas coisas para
Brasília e arrumar tudo da forma que imaginei que você gostaria. A casa ficou linda,
suas plantas, nossos livros, fotos, tudo cheio de cor e vida. Como você.
Voltei a trabalhar e isso me fez muito bem. Quando dou aula ou atendo, me
concentro no trabalho e isso é um descanso para o turbilhão de emoções que agora
tenho que processar. O Personna continua. Agora em fase de espera de nosso
convênio, meu contrato na Universidade, novas reformulações e tudo aquilo que
você já sabe. Mas seja como for, não vamos parar. Promessa é dívida.
Tô me alimentando melhor e passei a fazer caminhadas, como prometi. Durmo
e descanso. E confesso que é como se você tivesse se transformado em meu superego
e me vigiasse. Isso faz com que eu cumpra o prometido, pois vontade mesmo, às
vezes não há.
Li que nessa fase de luto temos um monte de sintomas e que algumas pessoas
sentem até desejo de morrer. Confesso, filha que a saudade é grande, mas as crianças
precisam de mim, tentarei ficar por aqui mais um tempo. Vou me cuidar e fazer
exames, prometo.
Maíra e eu nos aproximamos um pouco mais. Mas nossa conversa já não é
mais apenas sobre o sistema prisional. Acho que você sabe que o Antônio morreu,
não é? Me disseram que vocês estão perto um do outro. Agora eu e ela falamos sobre
vocês. Que transformação! Nunca imaginei que um dia nossa amizade seria assim...
Perdi alguns amigos, filha. Uns se afastaram, outros me evitam. Mas outros
apareceram e mais um tanto se aproximou ainda mais. Não me sinto só, eles têm
sido maravilhosos comigo. Mesmo em luto, tenho tentado retribuir, sorrir, convidar,
ser gentil. Não sei o que teria sido de mim sem eles... No apêndice deste livro tem
várias cartas deles para você. Acho que você vai gostar.
O Marcos continua pensando em você, te quer muito bem e ainda te chama de
“pirralha”... Continua trabalhando demais, e tenho um segredo para te contar: ele
tem uma alma e um coração ainda melhor do que pensávamos.
Estou estudando Cuidados Paliativos e assim que eu tenha mais embasamento
teórico, pretendo abrir um grupo de apoio aos familiares de pacientes com câncer.
Sabemos como isso é importante.
Eterna Túlasi

Sabe, meu amor, tem dias que a saudade aperta e ainda choro. Como estou
chorando agora, pois queria muito que essa carta chegasse, de verdade, até você.
Quero muito que saiba que estou fazendo tudo o que te prometi. Mas também queria
poder tocar suas mãos ao te entregar ela. Às vezes, quando fico triste, me lembro de
você dizendo carinhosamente “oh mãínha...”. Quase sinto seu abraço e logo me
acalmo. Mas não quero me entregar à dor e te deixar aí, preocupada comigo, você
deve ter muito a fazer.
Não sei ao certo o que acontece quando alguém morre, mas comecei a
pesquisar sobre comunicação entre as dimensões. Tem horas que ouço sua voz em
meus pensamentos, mas ela diz coisas que você nunca me disse antes... Isso já me
ajudou a encontrar muitos objetos perdidos nas caixas da mudança, devo agradecer!
Na esperança de que você também me ouça, falo em voz alta contigo. Ainda bem
que moro sozinha ou o risco de ser internada aumentaria!
O momento em que mais percebo sua presença é quando caminho na natureza,
o vento nas árvores, os passarinhos, a água do mar, tudo parece trazer sua imagem
mesclada. Algumas vezes tenho a sensação de você ser uma presença diáfana, quase
como uma nuvem ou neblina que eu posso tocar quase sem te sentir. Winnicott, um
psicanalista inglês afirma que as mães, ao darem à luz, entram num estado semi-
psicótico, vivendo em função de seus filhos como uma forma natural de
superproteção no momento de maior vulnerabilidade deles. Pelo que já li dos relatos
de outras mães, nós que vimos nossos filhos morrerem entramos num estado similar.
Como se nosso psiquismo se recusasse à não existência daquela pessoa, fazendo
assim com que mantenhamos ligações etéreas com eles, como se nosso esquecimento
pudesse, isso sim, provocar o seu completo desaparecimento. Um outro fenômeno
que observei foi o surgimento de imagens desconhecidas (ao menos conscientemente)
em minha mente. Cenas de lugares que não conheço, repletos de formas geométricas
e texturas muito diferente de tudo o que já vivenciei.
A sensação é a de ela saiu de casa há poucos minutos: a certeza da ausência,
um princípio de saudade mas que não chega a ser uma falta dolorosa por ser muito
recente. Mas quanto mais os meses passam, menos a sua ausência eu sinto. É como
se eu estivesse acostumando a me lembrar de você várias vezes ao dia, mas sem poder
te ver.
Eterna Túlasi

Quando a saudade aperta, abro a caixa que chamo de SOS: tem seu perfume,
algumas fotos, aquela sua echarpe de caveirinha, o brinco favorito e tua escova de
cabelos. Um dia tive outra caixinha assim, mas eram as coisas de quando você
nasceu... A morte parece um nascer diferente: é como se você tivesse nascido para
dentro de mim, num parto ao contrário e isso traz a sensação paradoxal de que por
mais que tenhamos sido separadas, estaremos de fato, para sempre juntas. Achava
que estava ficando maluca quando pensava isso, mas encontrei uns grupos de mães
que perderam filhos e todas sentem o mesmo. Ao menos não ficarei maluca
sozinha...
Fui passar meu aniversário no Rio, com nossa família. Reencontrei nossos
amigos e também estive no INCA 4. Podia imaginar seu olhar de orgulho, dizendo
para eu ter coragem, afinal, somos as Krüger! Eu precisava voltar lá, filha. Me livrar
das lembranças ruins que ficaram. Estar lá mais leve, em outra situação. E foi muito
bom ter ido. Por “coincidência”, o plantão era de parte das pessoas da equipe que lá
estavam no dia em que você partiu.
Surpreendentemente, não me senti mal. Creio que meu atual estado de espírito
colaborou para isso. Mas notei certa apreensão no olhar dos profissionais, conforme
eu me aproximava. Não deve ser fácil para eles, lidarem com familiares magoados
ou ressentidos. Mas conforme começamos a conversar, o clima de tensão se desfez.
Ganhei abraços, tiraram fotos, conversamos bastante. Lhes agradeci muito.
Meio sem jeito, me avisaram que o quarto em que ficamos estava vago. Era o
desafio final. E lá fui eu, para o cenário de tantas emoções vividas. O sol iluminava
o local, as janelas estavam abertas e me lembrei de você, sentada na varandinha,
sorrindo. Respirei de alívio. Nós conseguimos, filha. A doença não nos venceu e nem
nos separou. O tempo todo, a sensação de que você está bem e livre se faz presente.
E isso é o que me consola em relação à ausência de seu corpo físico. Olhei a cama e
relembrei tanta coisa difícil que superamos, mas também tanta coisa linda que
vivemos juntas.
Também fui convidada para dar uma palestra sobre resiliência, numa
universidade daqui de Brasília. Claro que contei nossa história e fiquei muito
emocionada de ver o quanto o seu exemplo continua ajudando tanta gente que sequer
sonhou te conhecer. É lindo isso. Um dos ouvintes me disse que dessa forma,
propagando seu exemplo, você se faz eterna, continuando a existir e transformar.
Eterna Túlasi

Também fizeram uma reportagem sobre eutanásia numa revista feminina de


grande circulação nacional e teu caso foi utilizado para ilustrar a matéria. Ficou
lindo. Soube que tocou várias pessoas.
Por fim, neste meu aniversário, fui com seus irmãos até tua árvore, na Floresta
da Tijuca. Abraçamos, regamos, tiramos fotos e tomamos um delicioso banho de
cachoeira. Eu, Morgana e Diana sempre olhamos pro céu, naquela clareira e tiramos
uma foto, igual à que você fez um dia. É como se fosse um sinal de comunicação
entre nós, dizendo que estamos conectadas.
Te amamos muito, querida. Sentimos sua falta, mas também, a sua presença.
Fica em paz e até breve.
Com amor,
Mamãe
Eterna Túlasi
Eterna Túlasi

PARTE II

LUTO MATERNO
Eterna Túlasi

A CULPA NÃO FOI DAS ESTRELAS

Sou de origem cristã e judaica. Mas nunca fui muito praticante. Porém, possuo
uma fé enorme em Deus e procuro seguir os ensinamentos de Cristo, Buda e outros
profetas, aplicando-os no dia-a-dia. Admiro o Espiritismo, mas não conheço muito
a respeito. Portanto, não tenho uma crença definida sobre o que aconteceria após a
morte de alguém.
A morte de minha mãe foi uma experiência imensamente traumática para mim:
era ainda criança e perdi várias outras coisas ao mesmo tempo (mudei de país, meu
pai havia se separado dela, troquei de amigos, idioma etc.). Imaginei que uma dor
igualmente devastadora fosse me atingir.
Confesso que quando soube que minha filha estava em estado terminal, me
revoltei com Deus. Não compreendi como eu e ela, que vivíamos para ajudar as
pessoas, nunca havíamos feito nada grave contra ninguém, éramos pessoas pacíficas
e corretas, merecíamos passar por tudo aquilo. Minha indignação foi tão grande que
cheguei a declarar “estado de greve com Deus”: não ajudaria mais ninguém até que
Ele resolvesse minimizar meus sofrimentos. Foi um sacrifício, pois a cada demanda
que surgia, eu tinha que ir contra meu próprio desejo de ajudar. Até ela ria de mim e
de minha greve contra “meu amigo imaginário”, como ela se referia à Deus. Até que
certo dia, comecei a perceber uma série de coisas boas acontecendo em meio aquele
caos em que vivíamos. Conseguíamos vagas para exames em tempo recorde, as crises
de dores melhoravam muitas vezes, mesmo sem medicação, conhecemos tanta gente
bacana, fomos encontrando forças e voltamos a sorrir. Então, percebi que o tal
“milagre” que as pessoas diziam que Deus fazia, poderia ser, na verdade, uma chuva
de pequenos milagres diários. E que eu os estava ignorando.
Fui observando pessoas em situações bem piores que a nossa. Comecei a vibrar
gratidão e as coisas foram melhorando cada vez mais. Não o quadro clínico, pois já
era irreversível, mas nosso ânimo e disposição para enfrentar a doença. Até que num
certo dia, me disseram para ter fé que Ele curaria ela. Respondi que não. Que minha
fé passara a consistir em uma confiança absoluta nos desígnios de Deus e que, ao
exemplo da oração do Pai Nosso, hoje eu dizia: “seja feita a Vossa vontade”. Que se
ela tivesse que partir, só desejava que não sofresse e que eu tivesse forças. Nunca
mais reclamei. E claro, suspendi a greve...
Eterna Túlasi

No dia em que ela morreu, meia hora depois, eu me sentia fisicamente exausta:
só pensava em tomar um banho, comer e dormir – se possível, por umas 20 horas
seguidas. Deixei calmantes e antidepressivos na mesa de cabeceira para quando eu
acordasse e me deparasse com aquela realidade arrasadora. Acordei às 9 da manhã
do dia seguinte, igualmente cansada. Tinha a sensação de estar anestesiada, me
sentia aérea. Essa sensação se prolongou por duas semanas. Eu dormia às 19h e
acordava no dia seguinte às 10h da manhã. Fiquei atenta aos demais sinais, em busca
de identificar algum sintoma psicológico preocupante. Mas eles nunca vieram.
Exceto a leve crise de ansiedade que tive no dia em que resolvi mexer em seus exames
e medicações – aquilo trouxe de volta, com força total, as recordações dela doente,
triste e em sofrimento.
Todo o resto de seus pertences, entretanto, me faziam bem. Olhar suas roupas
pela casa, seus objetos pessoais, me trazia uma sensação de presença e me arrancava
um sorriso doce e cheio de amor e saudade da minha amada.
Com o passar dos dias, tive que decidir o que fazer com aquilo tudo, pois teria
que voltar à Brasília e organizar a mudança. Doei algumas roupas dela: as que não
usava ou que estavam gastas demais. Outras, dei para minha outra filha, Morgana.
As que me serviam, decidi usar. Era uma forma de senti-la perto de mim outra vez.
Devolvemos toda a medicação e equipamentos para o hospital. Boa parte de
seus livros foram doados para uma moça carente que desejava estudar para um
concurso público na área de Direito e que não tinha condições financeiras para
comprá-los: cerca de 80 volumes. Os de Direito Penal, havia dito para ficarem para
mim. Preservei todas as fotos. Hoje, as duas mais belas enfeitam meu apartamento,
junto com as de seus irmãos. Herdei, ainda, sapatos, bijuterias e objetos pessoais
como caixinhas e a coleção de canecas. Coloquei em uso. Os de decoração, enfeitam
o quarto de hóspedes da minha casa, onde nossos amigos sempre são recebidos. Não
quis criar uma espécie de altar em sua homenagem, um local de culto e adoração
como já vi muitas mães fazerem. Preferi a presença de suas coisas, mescladas às
minhas, às de meus outros filhos e às recordações de viagens. Para mim, ela continua
viva dentro de cada um de nós e a ausência de seu corpo físico não deve ser motivo
de lembrarmos dela com lamento e tristeza e sim com gratidão pelo tempo
maravilhoso que passamos juntas e que hoje são a base de tantas lindas recordações.
Eterna Túlasi

Nosso relacionamento continua, apenas de uma forma (bem) diferente: é como


se ela tivesse partido para um intercâmbio, num país onde a comunicação é escassa
e eu soubesse que demorará muito, muito tempo até que eu possa revê-la. Talvez o
inconformismo explique a certeza que passei a sentir de que um dia vamos nos
reencontrar. Não baseada em nenhuma teoria ou religião: é apenas um sentimento
de que algum dia, mais cedo ou mais tarde, estaremos juntas outra vez. Antes dela
falecer, fizemos este pacto: “juntas para sempre”. Tenho absoluta consciência de sua
morte, mas ao mesmo tempo, a sensação constante de sua “existência”.
Para explicar melhor, a sensação que me acompanha é aquela que temos
quando alguém com quem convivemos muito, de repente, se afasta por uns poucos
minutos, para o cômodo ao lado. Sabemos de sua ausência, mas sua proximidade
não permite que cheguemos a sentir uma imensa saudade.
Tenho deixado de lado toda e qualquer teoria psicológica sobre o luto. Não
quero racionalizar meus sentimentos. Se isso se tratar de um processo de negação,
que seja: prefiro estar assim, lembrando dela e feliz, do que chorando e tomando
antidepressivos. Afinal, o objetivo maior de qualquer processo terapêutico é uma boa
elaboração dos fatos e emoções. E creio que é assim que me sinto, consciente e em
paz. O surto nunca veio.
Toquei minha vida, tendo dias mais difíceis que outros. Mas ela está sempre
presente em meus pensamentos. Num café especial que tomo, numa música que me
lembra ela, numa flor bonita etc. Procuro honrar sua curta existência e me perguntar,
mentalmente, como ela gostaria que fosse feito o primeiro Natal, as festas em família
etc. Falo dela sempre com alegria e orgulho. Para que eu fale da doença, só mesmo
se for ajudar alguém com essa informação (como quando falo para meus alunos
acerca da importância dos cuidados paliativos, discuto eutanásia ou coisas do
gênero).
Acho que a forma com que vivenciamos a morte, principalmente as crianças
da família, fez com que o tema se tornasse menos pesado. Ver a tia “virar árvore”
deu sentido para meus netos e hoje todos querem dar um pulinho lá, jogar um pouco
de água, dizer oi e depois fazer um lanche e tomar sol ou banho de cachoeira na
floresta, lembrando dela. Não creio que as coisas seriam assim tão leves caso ela
estivesse enterrada num cemitério tradicional.
Eterna Túlasi

Durante esta fase de luto, vivi situações embaraçosas. Pessoas que, na tentativa
de me “consolar”, diziam que eu sofreria para sempre, mas ia me acostumar (?!?!).
Outras exibiam ares de reprovação ao me verem sorrindo. Creio que depois de Eva
e do pecado original, a sociedade cobra, eternamente, que ser mãe seja padecer no
paraíso. Eu, rebeldemente, decidi amar e ser feliz, mesmo em meio ao inferno que
vivi. Creio que não houve um único dia em que, mesmo em meio a lágrimas e
desespero, por um momento eu tenha deixado de dar, pelo menos, um breve sorriso.
Por outro lado, algumas pessoas passaram a me evitar. Não queriam saber da história
da morte de minha filha e alguns chegaram a me dizer que não tinham estrutura para
me ver chorar. Creio que sou a lembrança cruel e viva de que seus próprios filhos
podem, um dia, morrerem antes delas e isto não deve ser muito confortável. Mas o
fato de eu compreender não quer dizer que não me machuque.
Atualmente, já consigo manusear seus exames, voltar ao INCA, visitar outras
pessoas com câncer. Claro que lembro dela, mas já não dói mais, pelo contrário, me
despertou o desejo de ajudar pessoas na mesma situação que ela. Não como
psicóloga, pois não é a minha área, mas como alguém que aprendeu a extrair vida
da morte. Hoje minha filha é sinônimo de alegria e gratidão e como ela mesma disse,
“estaremos sempre juntas”. Não existe ex-mãe...
E foi assim, movida pelo desejo de eternizá-la em mim, mas de continuar a
vida, de cuidar de meus outros filhos a quem amo em igual proporção e de cumprir
a promessa de não desistir de viver, que decidi escrever este livro.
Reuni dados, resgatei escritos e mensagens, praticamente me tranquei em casa
e em pouco mais de um mês a versão inicial estava pronta. Para a revisão e
organização, foram necessárias mais algumas semanas.
De certa forma, este livro foi escrito a quatro mãos. Além do fato de que parte
do conteúdo veio de e-mail, diários, mensagens e conversas com ela, posso garantir
que meu amor, minha dedicação e a determinação em cumprir suas vontades foram
meu maior estímulo. Assim, escrever foi mais um ato de amor, de cuidar e de
eternizar Túlasi, numa das coisas que ela mais amava: livros. E sim, não poucas
vezes, foi com ela que sonhei, com suas lembranças me emocionei e foi energia que
senti, tão próxima a mim, no dia em que, finalmente, declarei em voz alta:
“Terminei”!
Eterna Túlasi

Com este processo, vivi me luto, em particular. Revi momentos, chorei, sorri.
Repensei e reelaborei tudo o que nos aconteceu neste período. Mas reabrir as feridas
não é tão doloroso quando se tem a intenção inicial da Túlasi: ajudar outras pessoas
nesta situação. E se você, que nos lê agora, de alguma forma, for beneficiado por algo
que encontrou aqui, então, todo nosso sofrimento já terá valido a pena. Encare este
livro como um presente pessoal: que ele possa lhe trazer descobertas, coragem, força
e, sobretudo, vontade de sonhar. Não esqueça: “Vai ser feliz, a vida é curta”!

Deixo aqui o link para a música que embalou meu luto...

Khadja Nin Mama

https://www.youtube.com/watch?v=56Aw23Xuvs8&list=PL0b0z5BpzP4RSLOs
YgGZSCMELbGclsMti&index=7
Eterna Túlasi

ETERNA TÚLASI

Após achar que eu iria enlouquecer, após achar que a dor não passaria nunca
mais, após me questionar sobre como eu continuaria minha vida sem ela, após me
sentir inquieta pela sensação de sua constante presença e, sobretudo, após muita
leitura e troca de ideias com outras mães que também perderam seus filhos...
finalmente compreendi que ela será eterna dentro de mim e em minha vida.
Por isso, o nome do livro. O grande desafio é “conviver”, diariamente, com
alguém que não existe fisicamente. Mas cuja existência em nossa subjetividade é
impossível ser questionada. Quem perdeu um filho conhece bem essa presença-
ausente, diária e cotidiana que nos desafia a uma nova forma de amar. Amar sem
um corpo, sem beijos e abraços e com sorrisos que só existem em fotografias. Porém,
eis aí o grande mistério que talvez nos permita superar a dor: tentar arrancar um filho
de nosso coração é tarefa impossível e quem tenta, tende a sentir mais dor ainda. É
então que descobrimos o significado de “amor eterno e incondicional”: aquele que
não cessa, que prescinde de materialização para seguir sentindo, aquele que não
necessita de retribuição, apoio ou existência concreta.
Tentar esquecer, apagar o luto, tirar a pessoa de sua vida, superar a morte:
tudo isso só agrava a dor. A aceitação é, ainda, o melhor remédio.
Até o momento, é impossível não falar dela, não cuidar de seus objetos que
hoje encontram-se misturados aos meus, não pensar nela, sonhar com ela... Até em
meu trabalho, é nela que busco inspiração quando um desafio apresenta-se ou uma
dúvida surge. Lembro-me de seus pontos de vista, sacadas e opiniões. Fico
imaginando o que ela me sugeriria ou o que faria em meu lugar. Alguns dias, quando
uso uma de nossas roupas (pois sempre trocamos e dividimos as peças do guarda-
roupa) e me olho no espelho, lembro dela sorrindo e se arrumando para trabalhar ou
sair. É sempre um misto de saudade e consolo: a lembrança dói pela ausência física,
mas aquece pela lembrança e por reacender a chama de nosso amor mútuo.
O local onde mais sinto sua energia é quando caminho entre as árvores. É como
se seu espírito fosse o vento que movimenta as folhas e acaricia meu rosto... É uma
sensação muito boa, de paz, de plenitude, sem dor e sem angústia. Sempre que sinto
muito a falta dela, saio para caminhar no pequeno bosque que fica próximo à minha
casa. Isso me conforta e recarrega minhas energias.
Eterna Túlasi

Mas ainda é muito difícil frequentar alguns lugares, fazer certas atividades ou
encarar certas coisas. Na primeira vez em que estive em uma livraria, sequer consegui
entrar. Um nó imenso apareceu em minha garganta, meu peito parecia que ia
explodir e as lágrimas vertiam dos meus olhos sem qualquer controle. Tive que me
esconder no banheiro do shopping para dar vazão ao choro convulsivo que se seguiu.
E até hoje é assim: mesmo que o choro esteja rareando, quando ele vem, é sempre
incontrolável.
Uma vez precisei realizar um raio-x da coluna, exame de rotina. A mera visão
da sala de exames me remeteu à fase de tratamento no INCA e não consegui ficar.
Precisei reagendar e voltar em outro momento, já mais preparada. As recordações
daquela fase ainda são dolorosas.
A Páscoa deste ano também foi difícil. Ano passado estávamos juntas, aqui em
Brasília. Passei o domingo me lembrando dela. Túlasi havia me enviado um e-mail
poucos dias antes de falecer, mas me pediu que eu só o abrisse no Natal. Ela
imaginava que talvez não estivesse mais conosco nesta data e acho que quis me
deixar um presente. Mas não o abri, estava muito sensível e receei me entristecer
ainda mais. Mas acordei pensando muito nela e em nossa última Páscoa: muito
chocolate e carinho. Deu muita, muita saudade... Então, me lembrei do e-mail. A
mensagem dizia: "mãe, não esquece: te amo e ficaremos, para sempre, juntas".
Anexo, um vídeo com um poema em que uma criança dizia que, se pudesse,
escolheria ter sempre a mesma mãe, pois ela era a melhor. Agradeci, em meio às
lágrimas, sua "presença" tão especial naquele. Minha eterna Túlasi. E repeti
baixinho: “Te amo, filha... para sempre juntas”. Páscoa: tempo de renascimento,
data de renovação de meu eterno amor por ela.
Quanto ao trauma da livraria, passou. Tão logo decidi começar a escrever este
livro, imaginei sua voz alegre que certamente exclamaria: “mãe, eu vou virar livro”!
Foi assim que criei coragem e voltei à nossa livraria favorita, para olhar capas,
pesquisar títulos similares, imaginar o lançamento... Ao chegar na sessão onde ficam
os romances ingleses (ela era fã de Jane Austen), vi uma moça parecida com ela. Ela
sorria, folheando um exemplar. Pensei em como seria o dia em que seu livro estiver
em uma daquelas estantes. Ela ficaria radiante, sem dúvida!
Ir à nossa loja favorita de roupas ainda não é tarefa fácil. Sua presença/ausência
se faz muito forte e quase sempre, é bastante doloroso ir até lá. Estes episódios são
Eterna Túlasi

sempre imprevisíveis: algumas vezes consigo desenvolver atividades que me


lembram dela e sinto apenas sua doce recordação. Outros dias, quando tudo parece
ir bem, no meio do supermercado, já tive que largar o carrinho e procurar um canto
para chorar. É incontrolável...
Mas há uma espécie de ritual que mantive: “o sábado das meninas”. Juntas ou
separadas, sempre compartilhávamos o que faríamos naquele dia. Quando
estávamos juntas, tomávamos café da manhã com calma, conversando longamente
e depois íamos bater pernas no shopping (sempre nas livrarias e papelaria) e
pegávamos um cinema. Encerrávamos o dia com um café e brownie de chocolate.
Quando estávamos cada uma em sua cidade, compartilhávamos tudo por mensagens
eletrônicas: a foto do que comemos, o filme que vimos, as pessoas que encontramos.
De certa forma era como se estivéssemos juntas. Hoje em dia, faço o mesmo. Já não
há como enviar as fotos e mensagens, mas, estranhamente, sinto como se ela estivesse
ali comigo. E nessas ocasiões, não sinto dor, é como, se de alguma forma, eu pudesse
sentir um pouco de sua energia e isso me aliviasse a saudade...
A “nossa casa” (o apartamento para onde me mudei logo depois que ela
faleceu) tem muito dessa energia. Seus objetos, fotos, livros, filmes, roupas. Procurei
colocar tudo em uso (exceto uns poucos “tesouros”, que preferi deixar guardados),
misturado às minhas coisas, de forma a não criar uma espécie de “santuário” onde
tudo fosse apenas dela. Me pareceu fantasmagórico e desconfortável para os
hóspedes e visitantes. Eu queria que a casa fosse para meus outros filhos também.
Um local que quando visitassem, se sentissem acolhidos e confortados.
E é por falar em “energia”, “presença” etc. que preciso explicar uma coisa: sou
muito cética em relação à religiões, seitas e credos. Como já mencionei em outras
partes do livro, tenho muita, muita fé. Mas não tenho religião. Minha fé é uma fonte
de energia que me renova, sustenta, abastece e guia. Numa força, uma fonte, eu diria.
Respeito muito todas as religiões e sei da seriedade e empenho de vários de seus
seguidores, em busca de um mundo melhor. Apenas não se configuram como um
caminho para mim.
Portanto, os relatos que farei a seguir, a despeito de características muito
próximas com o espiritismo, por exemplo, não são baseados em crenças pessoais
minhas. O fato é que não tenho, ainda, uma explicação científica para elas, mas
tenho continuado minhas pesquisas sobre metafísica, física quântica, vida após a
Eterna Túlasi

morte etc. Mas não numa perspectiva religiosa, pois de tudo que já conheci, até hoje,
nenhuma delas me atendeu plenamente.
Como já relatei, eu e Túlasi lemos muito sobre estes temas de cunho mais
cientifico antes de sua partida. E foi quando terminamos de ler o livro “Uma Prova
do Céu” que algo muito interessante aconteceu. Uma das médicas que a atendeu,
conversando comigo em particular, me disse que possuía motivos sérios e suficientes
para acreditar que existiria vida após a morte. Mas a situação na qual se deu esta
breve conversa, não permitia que a aprofundássemos. Não fosse o caráter trágico do
momento, ou as questões de ética profissional, talvez ela pudesse ter ido além deste
simples comentário. E as coisas inexplicáveis que já aconteciam antes (muitas delas
descrevi ao longo do livro) e que passamos a chamar de “coisas de Túlasi”,
continuaram a ocorrer e, de certa forma, intensificaram-se.
Dia desses, um fato muito curioso aconteceu: o taxista que já me buscou em
casa, várias vezes, perguntou por que eu não dava carona à moça que sempre estava
comigo. Perguntou se ela costumava ir em outra direção ou se pegava o ônibus.
Questionei de que moça ele estava falando, visto que sempre estou sozinha quando
chamo o táxi. Ele afirmou que diversas vezes via uma moça descer comigo e ficar
parada ao meu lado até eu me dirigir à calçada, momento em que tomava a direção
oposta. Não me lembrava de nenhuma moradora que estivesse perto de mim nestas
ocasiões e achei que ele estaria confundindo as pessoas.
Mas dias depois, minha vizinha perguntou se minha filha viajara. Estranhei a
pergunta pois Morgana nunca veio aqui. Lhe perguntei a quem estava se referindo e
ela me respondeu que era uma moça muito parecida comigo, sorridente, com um
lindo cabelo e que tinha um lindo vestido verde. Disse-me que a vira algumas vezes
comigo, mas que depois “sumira”.
Pensei que não tenho nenhuma amiga, que me visite com frequência, com essas
características. Tive que criar muita coragem e lhe mostrei uma foto da Túlasi em
meu celular, sem dizer de quem se tratava. Ela sorriu e disse que era ela mesma e que
éramos mesmo muito parecidas. Gelei. Não consegui lhe dizer que minha filha
morrera. Trata-se de uma senhora já de certa idade e não sei como esta informação
lhe impactaria...
Outra coisa engraçada acontece com meu sobrinho, de quatro anos, que por
diversas vezes me chamou pelo nome dela. Quando ela estava viva, ele nunca nos
Eterna Túlasi

confundiu. Depois que ela se foi, mesmo tendo contado para ele que ela partira e que
ele não a veria mais, diversas vezes ele me chamou de Tutty. Uma vez conversei com
ele e expliquei que eu era a mãe dela e que meu nome era Wal (apelido pelo qual ele
sempre me tratou). Ele me respondeu que sabia quem eu era e meu nome, mas
afirmou que não estava falando comigo e sim com ela. Bem, é impossível entender...
Coisas de criança (ou de Túlasi...rs...).
Mas uma coisa inexplicável ocorreu logo que retornei à Brasília, poucas
semanas depois, quando retomei as atividades de meu consultório. Sabia que
trabalhar me faria bem. E assim foi, pois ocupar a cabeça sempre me ajuda a dar
tempo para elaborar e digerir fatos e emoções. Mas nada me preparou para uma
consulta que tive. Era uma paciente antiga, sem nenhum tipo de distúrbio grave,
apenas tratava de algumas questões existenciais. É ateia e namora um rapaz de sua
idade, com cerca de 24 anos. Muito sem graça, chegou à minha clínica dizendo-me
que tinha algo extremamente constrangedor para me falar. Disse-lhe que ficasse à
vontade, estava ali para ouvi-la. Foi quando ela me disse que o assunto era pessoal e
envolvia minha filha. Fiquei surpresa, mas consenti que prosseguisse.
Meus pacientes sabiam que eu havia me afastado por um problema de saúde
em família e como Brasília é uma cidade pequena, onde muitas pessoas se conhecem,
imaginei que ela talvez tivesse tido conhecimento de sua morte.
Pedi que prosseguisse, assegurando que poderia tratar do assunto que desejasse.
Ela, muito sem graça, perguntou: “Doutora, a senhora sabe que eu sou ateia, não é?
E isso fará parecer ainda mais absurdo o que eu tenho para lhe contar”. Reforcei
novamente que ficasse à vontade.
Ela então me contou que, durante minha ausência, havia viajado para Londres
e que estava fazendo um picnic com a família no Hyde Park quando seu namorado
lhe enviou uma mensagem perguntando se alguém havia morrido. Ela respondeu
que não. Ele insistiu que ela perguntasse às amigas e ao resto da família. Mas
ninguém sabia de morte nenhuma. Ele havia visitado o pai na noite anterior. Ele era
umbandista e comandava um centro religioso. Seu pai “incorporou” o espírito de um
Preto Velho e chamou o rapaz para lhe transmitir um recado.
Disse que “do outro lado” existia uma moça bonita e jovem, de cabelos
vermelhos e que estava muito aflita para enviar um recado. Era desbocada, agitada
e gostava de uma bebida forte de vez em quando. Que havia morrido recentemente
Eterna Túlasi

e que tria prometido para a mãe que avisaria caso existisse, mesmo, vida após a
morte. Estava indignada por lá não existirem os meios de comunicação tradicional e
ser obrigada a utilizar-se de um meio religioso como instrumento do tal recado. E
que tal mensagem deveria ser entregue a uma amiga da namorada dele.
A esta altura eu já nem piscava mais. Definitivamente, eu não sabia o que dizer.
Minha paciente disse que a única pessoa que conhecia e que tinha perdido uma
filha era eu. E buscando nas redes sociais, encontrou uma foto de minha filha com
os cabelos vermelhos, o que fez com que ela se convencesse de que a destinatária da
mensagem era eu. Quis saber se o recado fazia algum sentido para mim. Respondi
que sim, a despeito do absurdo da situação e de imaginar minha filha, indignada,
enviando recado por meio de uma entidade espírita. Agradeci. Foi tudo o que pude
dizer...
Nenhum de nós possui uma prova concreta da existência ou da não existência
de vida após a morte, reencarnação, Deus ou mundos espirituais. Por mais que várias
religiões façam afirmações e mostrem supostas “provas”, a verdade é que não
sabemos. Portanto, acho que devemos acreditar no que nos fizer bem ou fizer sentido
para nós. Se podemos crer que “a luz apaga e tudo termina”, também podemos crer
que nossos entes queridos estão em paz. Ninguém, que não tenha passado por uma
situação assim, está apto a dizer em que devemos ou não, acreditar.
Mas outras surpresas ainda estavam por vir. Em janeiro deste ano, enquanto
escrevia o livro, fui tomada por uma saudade devastadora. Chorei quase o dia todo.
Foi o dia em que precisei remexer suas coisas, documentos, fotos e e-mails com o
objetivo de resgatar fatos e memórias que organizassem o texto. Senti muita falta de
ver, ouvir, tocar. Fui dormir abraçada com sua echarpe favorita, de caveirinhas, que
ela usou muito nos últimos dias e ainda tem o seu perfume.
E então, sonhei com ela. A sensação era aquela, de ser tudo real, que muitos
de nós já experimentamos em algumas ocasiões onde a fantasia onírica se faz quase
uma vivência concreta. Eu caminhava por uma calçada de uma rua comercial,
olhando as lojas e, de repente, ao olhar para a frente, via Túlasi vindo em minha
direção, em meio aos outros passantes. Levei um susto e perdi o fôlego quando vi
que de fato era ela e não apenas alguém parecido. Quando notou que a vi, abriu seu
típico sorriso e apressou o passo. Pulou em meu pescoço, me abraçando forte e disse
seu tradicional “oi, mãínha...”. Eu não conseguia falar e só olhava para ela,
Eterna Túlasi

espantada e com o coração acelerado. Ela ria muito e me explicou: “Calma, mãínha,
sou eu, tô aqui, consegui uma licencinha só para te dar um beijo... vi que você estava
muito triste ontem... pedi para que eu pudesse vir aqui só um pouquinho, para te
acalmar e dar notícias minhas, te dizer que estou bem e que não tem motivo para
você ficar triste, mãe... viu, a gente continua juntas... você só precisa se acostumar a
não me ver, mas estou sempre perto de você, basta treinar e vai me sentir...”.
Eu a abraçava forte e sentia o cheirinho de seus cabelos, passava a mão em seu
rosto, tão reconfortada por aquele “contato”! Então, ela me tomou pela mão e disse
“vamos passear, está um dia tão bonito! ”. Caminhamos pela rua, ela parou para me
mostrar uma bata colorida que achava que ficaria linda em mim. Respondi que já
tinha roupas demais e ela riu, dizendo que tinha me visto chorar ao entrar em nossa
loja favorita. E que eu não deveria ficar triste, pois ela conseguia me ver, diversas
vezes, lá de onde estava.
Então, paramos ao lado de uns carros e ela me mostrou o que trazia na bolsa:
uma lembrancinha que havia feito com fotos de toda sua vida, com legendas que
descreviam cada um daqueles momentos. Me deu e disse que era para ajudar na
ordem cronológica do livro. Falou que estava muito feliz por eu estar escrevendo e
que mal via a hora de vê-lo pronto e nas prateleiras. Prometi me dedicar ao máximo.
Perguntou se eu estava bem. Queria saber se eu também conseguia senti-la, de
vez em quando. Respondi que sim, estava tentando. Contei da sensação de ter
perdido uma parte de mim, era como se eu já não tivesse uma perna ou um braço. A
despeito da completa sensação de ausência, a dor começara a diminuir.
Questionei onde ela estava, o que fazia, como estava “vivendo”. Ela riu e disse
que estava “vivendo para sempre”, mas agora sem dor e sem doença, mas que estava
“trabalhando muito”. Que estava numa dimensão diferente, onde não tinha mais
corpo físico, e sim, uma imagem fluída. E que, às vezes, conseguia me perceber e me
sentir, assim como eu fazia com ela.
Ela riu, me abraçou de novo e disse que precisava ir embora. Protestei, mas ela
explicou que não podia ficar muito e nem podia fazer aquilo sempre, havia sido uma
exceção. Disse que tinha vindo apenas para me assegurar que estava tudo bem e que
continuávamos juntas, para eu não chorar e não ficar triste.
Pediu que eu cuidasse de seus irmãos e continuasse trabalhando muito, pois o
mundo precisava mundo que a gente continuasse. Perguntou se eu ia “me comportar
Eterna Túlasi

como uma menina boazinha”. Respondi que sim e àquela altura, a alegria e a
sensação de conforto que eu sentia eram tão grandes, que a despedida não me
entristeceu. De alguma forma, era como se não fôssemos mais nos separar e aquilo
houvesse sido um reencontro. Nos abraçamos mais uma vez e ela caminhou na
direção do final da rua até que a perdi de vista. Eu já não sentia o vazio de sua perda,
agora sabia que, de fato, ao menos em pensamento, estaríamos para sempre juntas...
No dia seguinte, após acordar, fui caminhando para o trabalho. Era um lindo
dia ensolarado e parecia que todos os passarinhos haviam resolvido cantar em meu
caminho – como eu me sentia feliz! Quase chegando à universidade, recebi uma
ligação da Maíra, sua ex chefe. Ela estava muito emocionada e me contou que uma
parente sua, espírita, havia recebido notícias mediúnicas de nossos filhos. Antônio
estaria muito bem, sendo cuidado, em lugar especial. E que Túlasi, já teria passado
pela frase de tratamento espiritual necessário a seu caso, tendo evoluído para uma
outra fase, onde já poderia “trabalhar” e ter permissão para ter algum contato com
os que aqui ficaram, por intermédio de percepções, observações e alguns sentidos.
Desta forma, poderia começar a se comunicar conosco. Fiquei muda. Não sabia o
que pensar.
Respirei fundo e lhe contei meu sonho. Foi a vez dela de ficar sem saber o que
dizer... Seja como for, fantasia, negação, mediunidade, coincidências ou
sincronicidade, o fato é que estamos, eu e Maíra, aprendendo a elaborar nossos lutos,
lidar com nossas perdas, conviver com a saudade, digerir nossas dores. Aprendemos
a como nos relacionar com um amor que continua mas cujos destinatários já não
podem ser vistos. E tudo isso, sem grandes crises, medicações pesadas, afastamento
do trabalho, da vida ou de famílias. Estamos tocando adiante, da forma que se tornou
possível para nós.
Desde este sonho, meus sentimentos se modificaram. A dor aguda, as dores
profundas, quase que cessaram. Foram substituídas por uma saudade amena,
daquelas que a gente sente de alguém que viu ontem. Uma nostalgia vaga e, ao
mesmo tempo, lembranças mais constantes. O tempo todo fica uma sensação de que
ela acabou de sair de casa e que logo voltará. Uma falta que já não dói. Ao menos,
não tão frequentemente.
Acho que uma mãe nunca “perde” um filho. Como eles foram criados a partir
de nossos corpos, uma parte de nós se vai com eles. Talvez, por isso, essa sensação
Eterna Túlasi

de amputação, de mudança profunda e de estarmos conectadas com eles, “do lado


de lá”. Por outro lado, eles, que se formaram dentro de nosso ventre, deixam conosco
uma parte de sua energia, o que faz com que sintamos esta presença-ausência
constante dentro de nós.
Assim me parece o verdadeiro amor. Digo “verdadeiro”, pois não falo de
paixões, apego ou carência. Falo de um sentimento desprendido que, antes de exigir
para si, deseja o bem do outro. Um amor incondicional que ama sem nada esperar
em troca. Ama por amar. Não depende de um corpo para existir, pois amamos filhos
em sua ausência, quando estão em outros países ou cidades. Continuamos a amar
nossos companheiros que se ausentam, mesmo não os vendo ou não mantendo
comunicação. O que alimenta o amor, na ausência, são as recordações, o
comprometimento, a fidelidade, a disposição. E nada disso carece de um corpo para
existir.
Assim, sempre amarei a minha filha. E essa relação continuará: pelas
lembranças, pela saudade, pela reelaboração das coisas que vivemos, pela influência
de sua vida na minha, pelas experiências vividas, pelos sonhos em comum que ainda
se mantém e que procuro cumprir (o livro, o blog, a viagem para Londres, as festas...).
Há algumas semanas atrás, recebi uma nova ligação da Maíra e, pela primeira
vez, após vários meses, nosso assunto foi exclusivamente o trabalho. Trabalho que
prometemos continuar, mesmo sem o Antônio ou a Túlasi por aqui. E assim o
faremos, movidas por um amor maior, que nos confraternizou de forma ímpar.
E as “coisas de Túlasi”, seguem acontecendo...
Eterna Túlasi

PEHAPS LOVE
Sobre meu amor por minha estrelinha linda
https://www.youtube.com/watch?v=Fpt95PYe9xk
Eterna Túlasi

UM LUTO DE MUITAS CORES

O luto costuma ser representado pela cor preta. Mas isso não se aplica ao meu.
Meu luto tem todas as cores e inúmeros tons. Vermelho de raiva, rosa de afeto, azul
de paz, amarelo de desespero, verde de esperança, cinza de cansaço. Por vezes,
intenso e forte, noutras, sutil e translúcido. Definitivamente, meu luto não é preto...
Li a clássica versão das cinco fases do luto. Só não havia ficado claro para mim
que elas não seguiam uma ordem e que poderiam se repetir, diversas vezes, numa
mesma semana. Achei que havia algo errado comigo. Até que comecei a ler o relato
de outras mães. Elas sentiam igual.
Para mim, (pois cada uma carrega consigo a forma de elaborar suas perdas) o
luto é o processo inicial de choque, tristeza e consciência. E que finda, aos poucos,
quando iniciamos o gradual processo de adaptação ao novo. Não tem, nem deve ter,
duração ou intensidade medidas por qualquer tipo de manual ou profissional. Luto,
para mim, é um processo. De transformação.
Tive a grande sorte de ter encontrado uma amiga (que também havia perdido
um filho) que me mostrou a vida após os estágios iniciais do luto. Ela me disse (e
creio que com isso me “autorizou”) que iria doer, mas me assegurou que um dia eu
voltaria a sorrir. Acreditei e me permiti. Chorar e voltar a sorrir.
E graças à outra amiga e colega de profissão, que escreveu sobre a abordagem
fenomenológica do luto materno, me propus a viver esta experiência de outra forma.
Não há dúvidas, em meu coração, do profundo amor que tenho pela minha filha que
morreu. E não há, também, como negar que continuo sendo mãe dela. Senti isso três
dias após sua morte, quando um taxista me perguntou quantos filhos eu tinha.
Ensaiei diminuir o número para três e não consegui proferir tal frase. Ali eu senti que
continuaria sendo mãe. Da Eterna Túlasi.
Passada a fase inicial (onde a dor e as lágrimas são mais presentes) vi que a vida
continuava e percebi que deveria me adaptar à ela. De novo a pergunta: “como ser
mãe de alguém que já não existe”? Bem, se levarmos em conta o ensinamento que o
vento pode nos trazer, fica mais fácil imaginar como este processo pode acontecer.
Ninguém nega a existência do ar e do vento. Sem eles não sobrevivemos. Entretanto,
não conseguimos enxergá-los. Apenas as alterações causadas por eles nos são
perceptíveis. O vento nas árvores, movendo a areia, secando roupas no varal,
Eterna Túlasi

apagando velas, nos causando alívio quando bate em nosso rosto. Assim passa a ser
nossa relação com nossos filhos mortos: não os vemos, mas seus efeitos são
perceptíveis aos mais atentos. As lembranças que deixaram, seus hábitos, exemplos,
objetos que ficaram, fotos, vídeos, sonhos, energia e histórias continuam nos
afetando e vão sofrendo, com o passar do tempo, transformações e ressignificações
que podem nos levar a mudanças e novos tipos de interação. A relação continua pois
o amor permanece. E o amor, pouco tem a ver com materialidade.
Amamos nossos parentes mesmo quando moram em outra cidade. Amamos
nossos amores, ainda que à distância. Amamos lembranças de tempos que não
voltam mais. De certo que experimentamos felicidade no reencontro, mas felicidade
é diferente de amor. Para amar não se precisa “ter”. Talvez para experimentar a
reciprocidade, sim. Mas o amor mais genuíno e incondicional, não carece ser
recíproco.
Ainda assim, é possível sentirmos uma certa reciprocidade, mesmo quando
nossos filhos já se foram. Duvido muito que exista um único filho que desejasse ver
sua mãe, pelo resto da vida, chorando amargurada. Nem a pior delas. Nem a que
espancou, surrou, negligenciou. Amor de filho também tem um quê de
incondicional. Ao menos, para filhos que têm um coração. Não à toa, achamos
nossas mães as mulheres mais belas do mundo durante nossa infância. Assim,
quando nos dispomos à felicidade, é possível, ao menos, imaginar o alívio e a alegria
deles por nos verem bem.
Meu luto esquenta, esfria, piora, melhora, volta... me traz a sensação de que
nunca mais andarei em linha reta. Mas agora sei que é assim e me deixo levar. Talvez
o segredo esteja em aprender a dançar. Quanto mais tentamos voltar a ser o que
éramos antes, maior o sofrimento. É preciso permitir que esta experiência nos
transforme, dando significado a ela. Resistir à mudança é resistir à vida. E eles ainda
vivem dentro de nós.
Nossa rotina vira de cabeça para baixo. Eu nunca cheguei a ficar de cama, sem
conseguir sair de casa (ao menos não mais do que um dia chuvoso de final de
semana), mas minha vontade de fazer ou não fazer coisas, ganhou nova dimensão.
Dormir tarde, dormir cedo. Acordar de madrugada e vir escrever ou dormir até onze
da manhã. Me tornei incapaz de relatar como eram meus hábitos, eles mudavam a
cada semana. Isso no princípio do luto. Agora, já tenho uma rotina mais estabelecida.
Eterna Túlasi

Até os desejos de comer e beber coisas, típicas da fase da gravidez, reapareceram.


Tive fases de só comer salada, outros dias queria espetinho de camarão. Noutros,
nem comida eu podia ver. Sugiro que tente realizá-los, dentro do possível. Uma dor
tão grande merece, ao menos, alguma compensação. Mas consulte sempre um
médico ou nutricionista, caso tenha algum problema de saúde.
Listo aqui, alguns de meus pontos de vista relacionados ao luto. Quem sabe
ajuda outras pessoas na mesma situação?
Aconselho, solenemente, a ignorar qualquer lista do tipo PODE/NÃO PODE
ou DEVE/NÃO DEVE. Esteja no comando, afinal, é a única coisa que ainda
podemos controlar.
Algumas mães trancam o quarto do filho como eles o deixaram. Umas não têm
coragem de entrar, outras dormem lá. Faça como se sentir bem. Eu desmanchei o
dela, pois tive que trazer a mudança do Rio para Brasília, mas meu quarto de
hóspedes está repleto de coisas dela. Me faz bem estar cercada com coisas que trazem
sua lembrança reconfortante. Mas não é uma espécie de santuário, sei que ela
morreu. É onde recebo os amigos para pernoitar e lá também estão recordações dos
outros filhos e de minhas viagens. Algumas de suas roupas eu doei, outras, passei a
usar, algumas, não podia nem ver. Decida você o que fazer com ela e em que
momento fazer.
Sair, viajar e ir a festas? Sim. E não. Depende. Viajei a trabalho, viajei para ver
meus outros filhos, fui a aniversários. Mas algumas vezes recusei. Certo dia, na
universidade em que trabalho, houve uma reunião. Bem no dia do aniversário de
minha filha e eu havia decidido trabalhar para não pensar. Faria a festinha em
homenagem a ela no final de semana. No intervalo resolveram cantar parabéns para
uma das funcionárias que fizera aniversário dias antes. Não aguentei, tive que ir para
o banheiro chorar... Mas isso, é claro, teve um peso maior pois as pessoas haviam
reagido à minha perda, ignorando-a e eu recebi os pêsames de apenas uma ou duas
pessoas. E isso me machucou. Mas fui a outros aniversários onde me senti bem. Faça
como se sentir melhor.
Stress – intolerância quase completa. Tudo que é cansativo, difícil, desgastante
ou extenuante eu evito. Já chega o que não podemos evitar, não é mesmo? Sempre
que possível, pulo fora e pago para não me aborrecer. Canso fácil, tenho vontade de
Eterna Túlasi

dar meia volta e já larguei um carrinho cheio de compras no mercado pois a fila
estava grande. Não merecemos mais dor do que já suportamos. Respeite seu limite.
Solidão e amigos – tem horas que não desejo ver ninguém. E não é por tristeza,
apenas desejo estar só, cozinhar, ver um filme, dar risada sozinha. Outras, não
consigo passar uma tarde sem companhia. Chamo os amigos. Durante o processo de
escrita final deste livro, fiquei uma semana em casa, trabalhando nele. Saí algumas
vezes, mas queria voltar e terminar. Foi bom fazer isso. Como havia retomado a
rotina muito rápido, vi que faltou este tempo, de me isolar, pensar, rir e chorar.
Então, nada de receitas do tipo “você precisa sair e ver gente” ou, ao contrário, “fique
em casa e vivencie sua dor”. Só você sabe do que precisa. Se escute.
Estranhamento. Passamos a falar muito de nossos filhos. E uma hora as pessoas
passam a não interagir tanto com este assunto. É um fenômeno parecido com quando
ganhamos nossos bebês e postamos fotos a cada papinha que ele come. Estamos
encantadas e queremos compartilhar. Somos reforçadas nestas atitudes pois muitas
pessoas projetam seu desejo por filhos ou o amor que sentem pelos que já possuem,
em nossas manifestações. Acontece que isso não se aplica à morte. Ninguém sente
inveja por você ter um blog que fala de seu filho morto... Pelo contrário, isso causa
aversão e até mesmo repulsa, dependendo da relação que a outra pessoa tenha com
a morte. Mas acreditem, não há nada de mórbido em falarmos de nossos filhos que
se foram. Fazemos isso pois queremos compartilhar esse sentimento de amor eterno
que passa a ficar ainda mais evidente.
Lembre-se: a morte é um processo natural. E se entristecer por ela, mais normal
ainda. Mas a negação da sociedade em tratar deste tema faz com que as pessoas
sejam despreparadas para lidar com isso. Alie isso ao fato de vivermos um momento
extremamente individualista, com as pessoas demonstrando pouca empatia, cada vez
mais centradas em seus próprios problemas. Portanto, abandonar uma pessoa em
luto tem o aval social, pois só há espaço para pessoas sorridentes e felizes, como
aparecem em suas redes sociais. E pela falta de companhia e apoio, nosso luto pode
se prolongar e até cronificar. Mas o problema está longe de ser a pessoa enlutada...
Em meu caso, que acompanhei uma filha com câncer, descobri que pessoas que
têm ou tiveram (em si mesmas ou na família) a mesma doença, podem me evitar. É
compreensível, sou a prova cabal de que nem sempre os tratamentos dão certo. E
isso não é mesmo muito animador.
Eterna Túlasi

Também têm aqueles que evitam contar seus problemas para você, afinal,
somos a detentoras do título de “Portadoras da Maior Dor do Mundo” e os
problemas deles podem parecer pequenos diante dos nossos. Mas não é bem assim,
a empatia pelo sofrimento alheio pode aumentar e fazer com que nos preocupemos
até com quem perdeu um passarinho. Dores são dores e são incomparáveis. Por
vezes, tirar o foco de nosso sofrimento pode ajudar-nos a pensar em outras coisas.
Por outro lado, é bom evitar sobrecarregar-nos com demandas outras, na
tentativa infrutífera de nos fazer “tocar a vida”. É bom respeitar as possibilidades do
outro. Em qualquer situação.
Datas significativas – Para mim, a pior data foi quando completou trinta dias
de sua morte. Chorei o dia todo, me senti um farrapo humano, queria morrer... No
dia seguinte estava melhor. Em seu aniversário, como previ que seria horrível,
organizei uma festa e pude mesclar a saudade com a alegria. O primeiro Natal foi
bem ruim. Apesar de termos ficado alegres por reunir a família, na hora da foto de
Natal, ao lado da árvore, faltava ela. Chorei muito, aquilo foi difícil, mas no dia
seguinte nos recompusemos. Passei meu primeiro aniversário sem ela, com meus
outros filhos. A dor já diminuíra, consegui me sentir feliz, a despeito das recordações
constantes. O dia das mães foi bonito como sempre foi. Ela será sempre minha filha
e o último que passamos juntas foi muito feliz, com todos os filhos juntos no Rio,
entre uma alta e outra. É difícil saber como reagiremos e quais datas serão as mais
difíceis. Sempre bom prestar atenção a si mesma e providenciar o apoio necessário.
Ter à mão amigos que topem lhe fazer companhia mesmo que tudo o que você queira
fazer seja chorar.
Trabalho? Me faz bem. Eu desligo, mudo a sintonia, me animo. Mas eu amo o
que faço. Não sei se ele teria o mesmo efeito positivo caso eu só trabalhasse por
obrigação. Se puder escolha, faça como for melhor... O importante é buscar coisas
que te façam bem e aceitar que tudo tem um tempo.
Encarando o pesadelo novamente? Eu sabia que cedo ou tarde eu me depararia
com o câncer outra vez. E foi cedo, bem cedo. Uma aluna minha havia recebido o
diagnóstico e necessitava de atenção acadêmica especial. Gelei. E se eu não
conseguisse? Mas fui observando minhas reações e meu limite. Até que conversamos,
falamos da doença e nada de ruim senti. Minha terapeuta me explicou que eu havia
Eterna Túlasi

criado resistência à doença da minha filha e não ao câncer de forma generalizada.


Tanto é que hoje em dia tem estudado sobre Cuidados Paliativos.
Enfim, se meu luto não é preto, como descrever minha experiência?
Sempre fui uma pessoa de expressão alegre e muito dinâmica. E isso faz com
que as pessoas achem que eu estou ótima. Engano. Meu comportamento pode ter
não ter mudado para pior, no sentido de eu me deixar abater ou me jogar na cama.
Mas não é o fato de eu estar trabalhando e sorrindo que significam que nada mudou.
Tudo mudou. E lentamente sinto que a larva dentro do casulo começa sua
metamorfose. Não é por não existirem lágrimas que não existem dores. Chorar é
apenas uma das formas de lidar com elas. Eu escolhi deixar a dor me atravessar e
transformar, por inteiro. Me rendi. E sei que ela está agindo em minha alma,
provocando grandes alterações que ainda percebo de forma inconstante. Um dia mais
calma, outro menos, mas sem saber se haverá um padrão ao final. Muito menos, qual
será ele.
O luto, enfim, é uma experiência transformadora. Das mudanças que observo
em mim, posso dizer que ainda me sinto num tipo de “resguardo emocional”.
Situações sobrecarregadas emocionalmente, complexas e desgastantes me causam
certa paralisia inicial. Demoro dias para processar e chegar a alguma conclusão.
Creio que deve-se à sobrecarga que experimentei. As dores têm me desorganizado
mais que antes e choro com mais facilidade. Em compensação, este estado de
resguardo me levou a um hábito bastante saudável: passei a evitar situações
complexas, coisa que, antigamente, eu não fazia. Tenho escolhido que briga brigar
e, sempre que possível, evito me desgastar.
O medo também diminuiu muito. Quando encaramos a morte de frente, temos
a certeza dela e a imensa energia que a maioria das pessoas gasta para não pensar
neste assunto, eu gasto com outras coisas. Meu dia chegará. E o seu também.
Acostumei-me a isso.
A vida passou a ter outra perspectiva: até arrumar meus armários se tornou
uma tarefa diferente. Sempre me pergunto se preciso mesmo ter e guardar tantas
coisas materiais, afinal, nada levamos daqui. Isso tem feito com que eu doe mais,
consuma menos e dê valor sentimental ao que ficou.
Eterna Túlasi

Aprendi a ser generosa com meus agradecimentos. As pessoas não fazem ideia
do quanto uma simples palavra pode ajudar. E me ajudaram muito. É importante
reconhecer.
Também passei a me dar mais para as pessoas que se doam a mim. E a bater
em retirada para quem nega a mesma doação. Para caridade e fraternidade, existe o
meu trabalho (atendo pessoas em conflito com a lei no sistema prisional) que não
requer nenhum tipo de retribuição. As amizades, por sua vez, são uma via de mão
dupla e necessitam reciprocidade.
Meus filhos ocupam um lugar diferente hoje. Uma amiga me perguntou se eu
estava mais atenciosa com uma das filhas pois “era a que havia restado” – uma
espécie de prêmio de consolação. Não, não é nada disso. É que a morte nos faz dar
mais valor ao tempo e às pessoas que temos. Hoje em dia, paro tudo para mandar
áudios de bom dia para eles. Isso é o mais importante na vida: o amor.
Quem me vê trabalhando, sorrindo, tocando a vida, pensa que sou muito forte
e que estou super bem. Sim, sou forte, mas meu interior ainda está se recuperando
pois ficou em frangalhos. Mas deixar de sorrir não ajudará em nada. Portanto, não
acho que eu esteja melhor do que uma mãe que fica em casa chorando, apenas
expressamos nossa dor de forma diferente. Talvez minha dor seja tão grande que
lágrimas não sejam suficientes para extravasá-la. Tem dias que sinto que não sou
mais a mesma, como se minha alma tivesse derretido, eu tivesse implodido. Mas
estou deixando acontecer, sem medo do que vou me tornar. Nas vezes em que choro,
lembro dela preocupada comigo, querendo que eu ficasse bem. É suficiente para as
lágrimas secarem. Ela não ficaria feliz de saber que é o motivo da minha tristeza. E
assim, vamos tentando...
Hoje em dia agradeço por eu ter podido estar ali. Pude dar o melhor que estava
ao meu alcance para que seus últimos dias fossem bons. Mesmo que isso me custe a
saúde, a sanidade ou a vida, faria tudo de novo. Acho que a gente fica mesmo
diferente, mas uma coisa eu garanto: a morte nos traz a consciência do que, de fato,
é valioso e importante para nós.
Como diria Túlasi: “Vai ser feliz, a vida é curta”!
Eterna Túlasi
Eterna Túlasi

“OH, PEDAÇO DE MIM”

O luto materno é algo COMPLETAMENTE DIFERENTE de todos os outros


lutos. Sensações, sentimentos, pensamentos e atitudes que só as mães sentem. Digo
isso pois já perdi mãe, cunhada, avó e nada foi igual a isso. Ouso dizer que também
é diferente de um pai que perde o filho.
Tenho, hoje em dia, profunda admiração pelas mães que perderam seus filhos
de forma súbita e pelas que os perderam prematuramente.
As primeiras, por não terem tido o tempo que tive para elaborar, se despedir,
acostumar-se (ainda que minimamente) com a ideia. Se parece cruel lidar com a
perspectiva da morte, diariamente, também não me parece nada fácil ter que
assimilá-la de uma só vez. Imagino toda a dor que senti em dose única. Por doença
aguda ou acidente, já é algo dilacerante, mas já ainda as mortes por assassinatos,
suicídios ou desaparecimentos. E aqui temos, agregado ao luto, uma revolta legítima
por nossas vidas terem mudado de curso tão repentinamente e de forma imensamente
dolorosa.
As segundas (que perdem seus bebês) me causam igual admiração. Por não
terem uma história mais longa que lhe sirva de consolo ou lembrança. Por não terem
fotos, recordações de viagens, muitos momentos alegres para lhe fazerem rir quando
a dor aperta.
Mas talvez, elas pensem o mesmo de nós, as mães que perderam filhos adultos:
como é difícil se livrar de uma rotina de extensa convivência. Como é difícil largar o
hábito automático de levar a mão ao telefone cada vez que desejamos partilhar mais
um acontecimento, como sempre fazíamos, sendo que, subitamente, uma pontada
no peito nos relembra que já não há mais para quem ligar...
Dia desses ouvi que se uma mãe declara que já não sofre com a morte de seu
filho, é que na verdade nunca o amou. Amar “de verdade” significa sofrer pelo resto
da vida. A moralidade judaico-cristã situa a mulher no lugar de pecadora, não-
merecedora, impura e sofredora. São tantas assertivas punitivistas ao longo de nossas
vidas... Temos de guardar nossa sexualidade, nos comportar, sermos abnegadas,
abrir mão de tudo em função dos filhos etc. No luto não parece ser diferente: devemos
sofrer até o fim de nossos dias, quando (se tivermos sido “boas” o suficiente - leia-se
chorado e se desesperado até quase a própria morte) reencontraremos nossos filhos
Eterna Túlasi

no céu. Sem falar na culpa que quase toda mãe enlutada carrega, pois de alguma
forma, responsabiliza-se pela morte de seu filho – ainda que esta tenha se dado por
um desastre natural.
É complicado viver em sociedade após perder um filho. Muita gente nos evita,
pois creem que somos tristes. Talvez por nossa dor colocá-los em contato com seu
maior medo, ou ainda por acharem que a morte pode ter uma espécie de caráter
contagioso, atraindo maus augúrios...
Ao mesmo tempo, quando não mencionamos nosso luto, as pessoas estranham
e logo vem o julgamento: “perdeu o filho há tão pouco tempo e nem fala nele”. Desta
forma, parece que só nos resta fazer parte de uma legião de mulheres tristes,
sofredoras, que não se permitem viver, excluídas do convívio social e portadoras do
eterno rótulo de “enlutadas”. Tal ideia me traz à mente a cena do filme “A Letra
Escarlate”, onde uma mulher, após ter cometido adultério, é condenada a usar por
toda vida a letra A, presa às suas vestes, sendo banida do convívio social. Assim
somos, nós, as mães enlutadas, marcadas para sempre, emocional e socialmente.
Creio que todos estes fatores (culpa, revolta, saudade, exclusão) podem tornar
a vida de uma mãe que perdeu seu filho, quase inviável. E a isto, erroneamente,
acabamos chamando apenas de luto. Um luto, muitas vezes, torna-se intransponível,
de tão grande e complexo que é. Mas como tudo na vida, pode tornar-se mais
facilmente manejável se dividido em diversas partes...
Tornar-se mãe (gestar, parir, educar...) é uma experiência extremamente
transformadora. Nunca mais somos as mesmas. O mesmo se aplica a perder um
filho: mudamos, completamente. Nunca mais seremos as mesmas. E uma das
dificuldades desta segunda mudança é que não há farta informação disponível, como
é o caso de quando fazemos um pré-natal. Nada nos prepara para isso. Por isso,
chamo de sorte ter tido a possibilidade de receber cuidados paliativos, durante o
tratamento de minha filha. Ao menos eu sabia um pouco da teoria de como seria e
tive bastante apoio para enfrentar, quando a hora chegou. Mas e quem perde filhos
subitamente? Creio que um dos motivos de nos vermos assim tão desamparadas, em
termos de informação, é que este é um assunto do qual quase ninguém gosta de falar
– A MORTE.
Revirei a internet em busca de algo que me ajudasse, mas inicialmente só
encontrei comunidades de mães se lamentando. Não era isso que eu buscava. Só
Eterna Túlasi

depois encontrei alguns grupos de apoio (virtuais e reais) que falavam a mesma língua
que eu.
Fui descobrindo algumas coisas surpreendentes. Mães que perderam seus filhos
falam com eles. Não é loucura, quase todas que conheço fazem isso. Sabem o
motivo? Para nós, eles nunca deixam de existir. Estamos cientes de sua ausência
física, sem dúvida, mas eles vivem em nossa memória, em nossas inspirações, em
nossos pensamentos e sentimentos. A convivência, simplesmente, continua... Lendo
o maravilhoso livro de uma amiga minha “Mães em Luto” (Joannelise Freitas –
Juruá Editora), pude compreender o motivo de termos diversos comportamentos que
podem ser tidos como “anormais”. Mas a partir do momento em que todo um grupo
sente e faz a mesma coisa, já não se pode falar em disfunção e sim de uma
peculiaridade. Uma dica: nunca, jamais, deixe ninguém te dizer como você deveria
se sentir. O luto é uma pedra de trinta toneladas que apenas você pode carregar. Faça
isso da melhor forma para você. Não há certo nem errado. Cedo ou tarde para este
ou aquele comportamento. Faça o que te fizer bem e esqueça a opinião de quem não
sabe o que você está passando. Na dúvida, consulte outra mãe em luto ou uma
psicoterapeuta especializada em luto materno.
Mães que perderam os filhos passam a viver 24 horas por dia com eles. Se antes
eu mal via minha filha, pois morávamos em cidades diferentes, hoje a nossa
“convivência” é intensa. Lembranças, sons, cores, cheiros, tudo remete a ela. E não,
nem sempre dói, nem sempre é saudade, às vezes é apenas a presença dela em meu
interior. Tenho a impressão de que quando um filho se vai, por ser parte de nós, leva
um pedaço da gente junto e por isso nos sentimos tão ligadas a eles. Por outro lado,
por também sermos parte deles, eles podem até ir, mas uma parte deles ficou... Ao
morrerem, é como se rebrotassem dentro de nós.
Portanto, precisamos que nos deixem falar de nossos filhos, pois estamos
aprendendo algo bem difícil: sermos mães de gente que “não existe”. Precisamos
manter vivas as lembranças boas, do contrário, apenas nosso pranto virá. E este
comportamento parece ser o único que a sociedade aceita: uma mãe em profunda
dor, banhada em lágrimas pelo resto de seus dias.
E isso leva à questão da imensa dificuldade social de se falar sobre a morte.
Nem sobre a nossa e nem dos demais. Com isto, isolamos aqueles que sofrem para
que sofram sozinhos, pois egoisticamente, não toleramos pensar nisso. Assim, além
Eterna Túlasi

da dor da perda, temos de lidar com a dor da impossibilidade de ressignificação


conjunta com nossos pares.
Dia desses soube de uma mãe que havia sido abandonada pelo marido pois ela
chorava a morte do filho e teimava em falar sobre ele. Ele a taxou de louca e foi-se
embora de casa. Me pergunto quem é o louco dessa história...
Também tive notícia de algumas mães que tentam o suicídio após a morte de
seus filhos. Eis aí a consequência da limitação das mulheres ao papel de mãe: sem
seus filhos, nada mais são. Nem desejam ser... Mulheres que não construíram
carreira ou outros interesses são mais propensas a resvalarem neste tipo de problema.
O ninho vazio que agora está, para sempre, vazio.
Outra ferida comum em mães enlutadas: observar famílias felizes, com filhos
curados ou saudáveis. Não é difícil que surja um certo sentimento de inveja e rancor,
fazendo explodir em nosso peito a pergunta: “Por que motivo aconteceu comigo? ”
Também há quem ache que nossa vida passará a ser em função do filho morto.
Não deveria. A vida continua, as outras pessoas estão aí e a dor de perdê-las seria
igualmente impactante. Valorize as pessoas ao seu redor. Não viva em função de
uma única pessoa. Nunca. Eis uma lição aprendida. É muito fácil cair na tentação
de “endeusar” o filho que morreu. Atribuir a ele qualidades extraordinárias,
minimizar suas falhas e defeitos e construir uma relação afetiva baseada em apenas
um lado da personalidade deles. Com isso, os que aqui ficaram encontram-se em
desvantagem, pois seus defeitos e falibilidades são explicitados diariamente. Todos
possuem qualidades e defeitos. E merecem nosso amor.
Vejo casais se separarem, filhos irem embora de casa, relações se deteriorarem.
Talvez, algumas já não estivessem bem. Não devemos ter medo de romper ou mudar,
mas talvez não estejamos sendo capazes de lidar com os que ficam. Por isso, é sempre
importante se rever, de forma franca e sincera. Coloque-se em primeiro lugar, mas
não se esqueça dos demais. Um dia eles também irão partir.
Alie-se a isso a tal culpa judaico-cristã que diz que mulheres devem sofrer e
pronto: está aí a receita perfeita para o que os psiquiatras insistem em classificar como
LUTO PATOLÓGICO. Um luto que não se resolve, não permite a transformação
profunda que pode advir do processo da perda de um filho. Com isto, enriquece-se,
ainda mais, a indústria farmacêutica sempre pronta a nos receitar pílulas para
problemas sociais.
Eterna Túlasi

Algumas dores não encontram nem alívio farmacológico (ainda que ele seja
apenas um paliativo para questões maiores) pois diversas mães passam a se
autoflagelar, sem se questionar se os padrões que lhe são impostos podem levá-las a
algum outro lugar que não o de profunda dor. Passam a repetir que Deus ou o destino
quiseram assim e contentam-se com uma vida miserável em termos afetivos,
convencidas de que, fora do papel de mães de filhos vivos, não poderão (nem
merecem) experimentar mais qualquer tipo de felicidade.
O desejo de morrer, comum em casos mais graves, merece um olhar mais
atento, pois talvez não se trate de um desejo da morte em si, mas de um traço
depressivo e melancólico severo, movido por um desejo de reencontro. Pois se eles
morreram, só na morte poderíamos reencontrá-los. E algumas pessoas podem levar
isso às últimas consequências, embaladas pela dor. Busque ajuda, o desequilíbrio
físico-químico é grande nesta fase e atenção especializada pode ajudar, em
determinados casos. Não cheguei a sentir isso. Só na fase em que ela estava doente e
tudo o que eu mais queria era trocar de lugar com ela para permitir que ela vivesse a
vida que tanto sonhou.
E por falar da minha área, algumas pensam que todo mundo que passa por um
luto necessita de terapia. Discordo. Luto é dor e tristeza diante de um fato natural da
vida: a morte (ainda que, algumas vezes, ela não se dê de forma natural). Não se deve
patologizar e nem medicalizar a tristeza. Trata-se de um sentimento humano e só
mergulhando fundo neles poderemos, de fato, superar. Mas caso a dor seja
incapacitante por longo tempo, consulte um especialista de confiança. Mas tente,
antes, andar com suas próprias pernas.
Reaprendemos, lentamente, a viver sem eles. Sendo que jamais voltaremos a
ser quem éramos antes de sermos mães. Passamos a uma nova “categoria”: mães
sem filhos. E sermos isso, requer uma grande reinvenção. Como ser mãe de alguém
que já não existe mais? Algumas criam verdadeiros santuários para os filhos mortos,
na tentativa de manterem o mesmo padrão de maternagem anterior. Outras,
dedicam-se a trabalhos voluntários ou sociais e passam a ser mães de diversas outras
crianças que necessitam de atenção.
Outras, nunca mais conseguem ser mães, nem dos outros filhos que ficaram
vivos e que carecem deste amor. Criam uma idolatria pelo filho morto, colocando-o
no altar de perfeição que mais nenhum filho vivo consegue ocupar. Outras, matam
Eterna Túlasi

suas almas e passam a vagar pela existência, já destituídas de energia vital, apenas
aguardando o dia em que se reencontrarão com seus filhos adorados. E há, ainda, as
poucas que negam a experiência e seguem a vida, com a dor e a saudade escondidas,
levando a vida como se nada houvesse mudado. Forçam-se a um “não-sentir”.
Minha filha faleceu após meses doente, consciente de que morreria. Uma de
suas maiores preocupações era como eu ficaria. Se colocou em meu lugar e me
confessou um dia: “eu não sei se eu aguentaria viver sem você, estou muito
preocupada de como você vai ficar quando eu me for”. Ainda no papel de minha
mãe, fez uma lista de pedidos para quando se fosse, pois não suportava a ideia de
que, logo ela, que sempre se esforçou tanto para me fazer feliz, fosse tornar-se a causa
de minha maior infelicidade. Pediu que tão logo fosse possível eu voltasse a trabalhar:
deveria dar continuidade ao trabalho dela.
Me fez prometer que continuaria a cuidar de seus irmãos, pois eles também
precisavam de mim. Procurou comigo, na internet, um apartamento novo para eu
morar. Ajudou a terminar de escrever um projeto que eu devia dar andamento. Disse
que me amava, que estaríamos sempre juntas, que se houvesse outra vida, deseja ser
minha filha novamente e que, caso houvesse algo “do lado de lá”, daria um jeito de
me avisar.
Bem, de fato ela estava certa. Continuamos juntas, pois não há como apagar (e
talvez o esforço de se fazer isso, no afã de retomar uma vida produtiva e alegre) as
lembranças de tudo o que vivemos. Sorrio quando estas lembranças veem, falo dela
e para ela e me permito chorar, quando o sentimento assim o pede. Mas para isso,
preciso me permitir. Lembrar sem culpa, ter quem ouça o meu falar e poder chorar
na hora em que preciso.

POESIA “MÃE” – BRÁULIO BESSA


Túlasi programou para eu só abrir o e-mail com este clipe depois dela falecer. Uma
homenagem muito doce...
https://www.facebook.com/livrotulasi/videos/503340823199614/

O luto é um estado com início meio e fim. A saudade, entretanto, pode ser
eterna (menos para quem acredita em outras dimensões). Sentir falta do filho que
morreu não significa luto. Significa apenas isso: saudade. Por isso, não concordo
quando dizem que o luto será eterno. O luto passa, a saudade fica.
Eterna Túlasi

As mães mais espiritualizadas alegam sentir a presença da energia de seus


filhos. Isso ameniza a falta, mas não impede que, eventualmente, sintam saudade de
seu riso, seu abraço... As que não possuem essa sensação, sentem falta de tudo e,
muitas vezes, vivem apenas das poucas lembranças guardadas.
Elaborei algumas sugestões para as pessoas que convivem com mães que
acompanham pacientes em estado grave ou que já vivenciam o luto. Sobre O QUE
NÃO DIZER OU FAZER. Não são apenas dicas pessoais, elas são quase uma
unanimidade entre mães que perderam filhos. Montada a partir do depoimento de
diversas pessoas. Vejamos:
Não, não diga que vai doer para sempre. Isso é sádico e demonstra total frieza
e falta de empatia. Se não tem nada a dizer sobre isso, cale-se e apenas dê um abraço.
Silêncios são mais bem-vindos que tolices. Tampouco diga que o tempo vai curar.
Não vai. Vamos nos acostumar, não à dor, mas a uma vida diferente.
Não insista que a pessoa deve sair de casa, se divertir ou chorar e aceitar a dor.
Cada um tem seu tempo e faz o que dá conta. Não legisle sobre a dor alheia!
Jamais, por favor, jamais use o argumento de que temos outros filhos ou que
poderemos ter outros. Um filho não substitui o outro. Nunca. Os outros filhos são
motivos de alegria e motivação, mas não ocupam a lacuna deixada pelo filho que
morreu.
Não compare as dores. Perder um filho é diferente de qualquer outra perda,
não tente demonstrar empatia dizendo que perdeu uma vizinha ou colega de trabalho
no ano passado. Nem perder a mãe é igual. Nem pior, nem melhor, apenas diferente.
Não sumam. Mas também não se intrometam. Apenas estejam lá caso a gente
chame. Respeitem nosso tempo. Não estamos muito sociáveis.
Não façam cara de surpresa quando tivermos comportamentos que fujam ao
padrão de luto que você estabeleceu em suas vivências. Não julgue, cada um faz o
que pode. Nem cobre dores e lágrimas eternas. Lembro do semblante horrorizado de
uma colega de trabalho ao me encontrar dando uma gargalhada no corredor.
Aliás, este assunto merece uma reflexão especial. A sociedade criou este
estereótipo de mãe que se anula, sofre, se entrega, vive para o filho e é perfeita (isso
só acontece em sonhos, acredite). Em algum momento voltaremos a cantar, rir,
amar, sentir desejo, comemorar. E ISSO NÃO TEM NADA A VER COM NÃO
AMAR O FILHO QUE MORREU. Afinal, como já disse, eles agora se eternizaram
Eterna Túlasi

dentro de nós. E isso nem sempre precisa ser demonstrado com soluços e lágrimas.
Mães merecem viver. Quer você goste, quer não. E eles viverão conosco.
O paradoxal é que se você se entrega à dor, a sociedade cobra e se você reage
bem e toca a vida, será julgada da mesma forma. Faça como for melhor para você,
portanto.
Frases vazias do tipo “ao menos ele está num lugar melhor” não fazem o menor
sentido para nós. Nosso único desejo é que eles estivessem aqui. Aceite isso.
Tentamos, intimamente, pensar no bem estar de suas almas, mas isso não alivia a
saudade.
A clássica, “Deus sabe o que faz” ou “chegou a hora dele”, também não fazem
muito efeito. Corre o risco de se tornar motivo até para questionar a própria fé. Tem
também aquela “ao menos ele parou de sofrer” que desaconselho igualmente. Ele
pode até ter parado de sofrer, mas e o rombo em nosso peito, você não está
enxergando?
E não, nunca, jamais diga: “Vamos pensar em coisas boas”. Não invalide o
luto e a dor de alguém. Creia, ninguém prefere sofrer, mas por vezes a dor se
apresenta como inevitável. Não nos faça pensar que só somos queridas se estivermos
sorridentes. Que para termos companhia precisamos esquecer nossos filhos.
Enfim, de tudo o que já li e ouvi sobre luto materno, a música do Chico Buarque
é a que melhor expressa meus sentimentos: “...a saudade é o revés de um parto, a
saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu... oh pedaço de mim, oh metade
afastada de mim...”. Para mim, esse trecho adquire o significado de que ao morrer,
eles se eternizam em nós, mesmo com corpos mortos e que sempre, sempre
cuidaremos deles, de suas lembranças, de suas coisas. Eles são e sempre serão
pedaços de nós.

CHICO BUARQUE E ZIZI POSSI: PEDAÇO DE MIM


https://www.youtube.com/watch?v=nRNmIumFui8

Então, vive-se com uma profunda e concreta ausência física, ao mesmo tempo
em que experimentamos uma completa e total presença deles em nosso interior.
Definitivamente, luto materno não é algo fácil!
Eterna Túlasi
Eterna Túlasi

PARTE III

CUIDADOS PALIATIVOS
Eterna Túlasi

COMO CUIDAR?

Acompanhar um paciente com câncer é um desafio e tanto. Mesmo para mães,


que estão acostumadas com tarefas de cuidado.
No início, ela tinha uma rotina normal, como vemos em muitos blogs e sites:
estudava, trabalhava e fazia o tratamento. Mas conforme a doença foi progredindo
e seu corpo foi ficando cada vez mais fraco e instável essa rotina deixou de existir.
Sua disposição variava, com altos e baixos, várias vezes por dia. Havia dias em que
ela acordava animada e bem disposta e fazíamos planos de sair para dar uma volta.
Minutos depois do café da manhã, ela ficava pálida, com dor e pedia para deitar.
Era impossível fazer planos para mais do que quinze minutos. Noutros, ela dormia
mal, acordava enjoada, suando frio. Ao sair do banho, porém, apresentava ânimo
renovado e desejo de ir passear. Isso dificultava, particularmente, quando era
necessário sairmos para consultas e exames ou eu precisava ir à farmácias e bancos.
Carregávamos remédios, fraldas, água, comida, almofadas e aparelhos, caso ela
necessitasse. E cada dez minutos que eu passava longe dela me pareciam horas, pois
sentia uma enorme preocupação pelo que pudesse ocorrer em minha ausência. Foi
uma fase de profunda tensão e preocupação.
Decidi, então, falar aqui sobre algumas outras coisas que são dignas de nota e
que, espero, possam ser de alguma utilidade para quem estiver passando pelo mesmo
processo. Em primeiríssimo lugar: o câncer é uma doença extenuante, física e
mentalmente. Frases do tipo “seja forte”, “coragem! ” ou “você vai conseguir”
podem fazer efeito no início do tratamento, mas nem sempre ao final. É possível,
inclusive, que frente ao inegável quadro de incapacidade, o paciente sinta-se ainda
pior, por achar que a culpa de seu estado deve-se à sua falta de coragem ou
capacidade de lutar por mais tempo. Há que se considerar, também, a utilidade de
afirmações do tipo: “Deus vai te curar” (para os que Nele crêem), pois face a um
desfecho negativo, existe a possibilidade de uma onda de revolta pela ausência do
milagre. Para outros, porém, é essa fé que servirá de apoio até o final. Deve-se avaliar
bem o que dizer e, sobretudo, quando dizer.
E as nossas dores? Bem, este é um capítulo à parte. Eu reuni toda a força e
coragem que tinha (e até a que eu nem suspeitava existir) para cuidar de minha filha.
Mas por me conhecer bem e já ser adulta, ela percebia meu cansaço e nervosismo.
Eterna Túlasi

Então, quando ela me perguntava, eu admitia, mas sem entrar em detalhes e logo
tratava de mudar de assunto para não afligi-la ainda mais. O máximo que consegui
fazer foi não despejar nela os meus problemas e lamentações, procurando sempre
dar a força e a serenidade que ela precisava para superar as dificuldades. Lidar com
um câncer é uma tarefa cruel e sobrecarregar o doente com nossos próprios
problemas, me parece de um egoísmo imenso.
Lembro-me, porém, de duas vezes em que foi impossível me controlar diante
dela. Numa delas, logo após sua separação, seu celular não parava de tocar com
mensagens de familiares e amigos, de ambas as partes, indignados com a sua
decisão, lhe cobrando explicações e ofendendo-a. Parecia que o divórcio era mais
importante que sua própria vida, que estava em jogo. Já exaurida e sem dormir, tive
uma crise de choro. Era impossível cuidar de todos os detalhes (casa, medicação,
finanças, tratamento etc.), lidar diariamente com a óbvia piora de seu quadro, a
perspectiva de sua morte e, ainda por cima, administrar pessoas que não tiveram um
pingo de consideração pelo momento terrível pelo qual ela passava. Foi então que
ela, também sobrecarregada, decidiu bloquear uma série de contatos em seu telefone,
de forma a ter um pouco mais de tranquilidade para cuidar de sua saúde. É
impressionante como algumas pessoas são insensíveis a ponto de desejar que um
paciente terminal se ocupe das dores do outro!
A outra vez em que perdi a linha, foi quando ela decidiu que desejava ser
sedada. Eu sabia que sua morte estava próxima, mas tentei manter a calma para que
ela também tivesse serenidade. Após a conversa mais difícil que já tivemos, quando
ela me comunicou a sua decisão, eu descontei toda minha raiva e revolta numa
enfermeira que chamara a atenção dela por causa de uma falha de sua própria
equipe. Gritei de tal forma que todo o andar escutou meu desabafo. Apesar de eu
estar coberta de razão em defender os direitos da minha filha, não foi correto eu ter
me expressado daquela forma. Por sorte uma técnica de enfermagem compreendeu
o que se passava comigo, me levou para a salinha dos familiares, me consolou e
acalmou. Chorei por quase quinze minutos sem parar, consciente do que havia feito,
mas inteiramente incapaz de me controlar. Quando retornei ao quarto, Túlasi me
abraçou, com lágrimas nos olhos e me disse, carinhosamente, “oh, mãe, sei como
está sendo difícil para você”... Dias depois, me desculpei com a enfermeira que
Eterna Túlasi

também reconheceu seu erro. Não é nada fácil a convivência entre familiares,
pacientes e profissionais num cenário de morte iminente.
Com relação às visitas: eis outro assunto delicado. A instabilidade do quadro
pode fazer com que os pacientes recusem ou desejem visitas. Num dia ele pode
desejá-las e em outro, menos bem disposto, recusá-las. Aceite. O bem-estar deles
deve ser nossa prioridade. E mais: é possível que eles escolham com quais se sentem
mais confortáveis. De início, alguns familiares questionaram-na quanto às suas
recusas, até que um dia ela explodiu: “Olha para mim: sou uma mulher jovem e
vaidosa, mas estou de fraldas, usando sonda, pálida, com camisola de hospital, cheia
de tubos de soro, sangue e medicação... não me sentirei bem de receber pessoas com
as quais não tenho a menor intimidade e que sequer frequentavam minha casa,
nessas condições”. Mas acreditem: ainda houve quem a criticasse e a tratasse mal
por isso!
Além disso, seu estado grave fazia com que muita gente achasse que isso lhes
dava o direito de desrespeitar seu ateísmo e compareciam ao hospital para levar uma
bênção ou rezar. Aquilo só a irritava ainda mais. E é comum que alguns meros
conhecidos, de repente, apareçam do nada no hospital. Alguns movidos por culpa,
outros por uma curiosidade mórbida de saber todos os detalhes sórdidos da doença.
Fica a dica: deixe seu paciente receber as visitas que escolher, no dia em que preferir.
Se há alguém que merece ser agradado e respeitado, nesta hora, é ele e não seus
amigos. E houve algo que aprendi com a equipe do INCA: quanto maiores os
protestos e choros de um visitante, mais culpados eles costumam se sentir em relação
ao doente. Ou seja, o objetivo real da visita é, muitas vezes, aplacar suas próprias
angústias e não prestar alguma forma de auxílio.
Sugiro ainda que, tanto visitantes, quanto os que convivem diariamente com
pacientes graves, evitem alguns temas de conversa, mas isso, é claro, variará de
pessoa para pessoa. Listo aqui algumas unanimidades a serem evitadas:
- Se você não era íntimo do paciente antes da doença, não faça perguntas
indiscretas sobre sangramentos, vômitos, vida sexual etc. Não é por uma pessoa estar
presa a uma cama e parecer vulnerável que você tem o direito de invadir sua
privacidade.
- Se vai visitar, pergunte SEMPRE ANTES e de preferência, para o próprio
doente. Alguns familiares aceitam visitas indesejadas apenas para serem corteses.
Eterna Túlasi

Neste caso, questione se pode levar algo: por vezes o perfume de flores pode
provocar enjoos e nada pior do que ganhar uma bela caixa de chocolates quando se
está proibido de comê-los.
- Leia sobre a doença antes. É muito constrangedor fazer perguntas absurdas,
do tipo se o câncer é contagioso, por exemplo.
- Nunca, jamais, nem pense em contar casos de pessoas que morreram desta
mesma doença. Parece um conselho óbvio, mas acredite, muita gente faz isso.
- Não use frases vazias do tipo “se cuida”, “você vai ficar bem”, ou “tudo vai
dar certo”. Se voluntarie para ajudar a cuidar ou então, não fale nada. E quanto ao
prognóstico da doença, nem você tem esta certeza e em nos casos mais graves,
muitas vezes o paciente sabe que isso não é verdade.
- Tive a nítida sensação de que algumas pessoas, desejando não auxiliar de fato,
escondiam-se por traz da frase “estarei orando” ou “na torcida”. Talvez alguns não
tenham ideia do desgaste e do trabalho que uma doença grave dá e algumas ajudas,
ainda que simples, podem ser de grande valia. Ofereça-se para comprar pão, buscar
o resultado de um exame, ir à farmácia etc. São coisas que, de fato, podem auxiliar
mais do que um pensamento positivo. Lembre-se: um dia pode ser você a necessitar
de ajuda concreta.
- No início do tratamento até procuramos dietas e produtos alternativos que
pudessem auxiliar em seu tratamento, depois, conforme o quadro se agravou,
percebemos sua ineficácia. Então, nada pior do que aquele parente ou amigo que
insiste em enviar 45 e-mails por dia com receitas de chás milagrosos que curam tudo.
No máximo, pergunte se há interesse em conhecer essas coisas, caso contrário, não
insista.
- Bem, pode parecer igualmente óbvio, mas... não coloque a culpa da doença
no doente! Sim, minha filha ouviu que estava com câncer por ser ateia (isso é que é
amor cristão!). Tampouco jogue indiretas sobre hábitos de vida que possam ter
favorecido o aparecimento da doença. A esta altura, a culpa só servirá para agravar
o quadro psicológico deles e não auxiliará em nada.
- Alimentação: hábitos estranhos se desenvolverão: fome, inapetência, desejos
estranhos etc. Aceite. No máximo, consulte o nutricionista. Nada de afirmar (como
pessoas com pouca informação fizeram com minha filha) que comer beterraba e
Eterna Túlasi

feijão pode reverter um quadro de anemia grave causada por hemorragias


constantes. Não é bem assim.
- Sugiro, muito fortemente, que você (se é um cuidador) procure atendimento
psicológico especializado. Atravessar uma luta dessas não é para qualquer
psiquismo. Eu mesma, que sou professora de psicologia (e talvez, exatamente por
isso), busquei auxílio desde o início. Nossas emoções também entram num tobogã
de humores e em algum momento, será preciso desabafar e reorganizar as ideias. A
psicoterapia também é indispensável para tentar separar o que é seu do que é do
paciente (você quer que ele seja entubado pois acha que assim ele ficará mais
confortável ou isso é reflexo de seu medo de perda mal elaborado?).
- OUÇA. Antes de qualquer coisa. E respeite. Minha filha pediu coisas com as
quais eu não concordava, mas diante de um fim inevitável, é bastante razoável que
alguém realize seus últimos desejos. Não julgue, não é a sua vida que está por um
fio. Eu evitei ao máximo dar opiniões pessoais e só o fiz quando ela solicitou,
deixando claro que minhas posições se referiam a mim e que ela possuía plena
capacidade de decidir o que melhor lhe conviesse.
- Não cobre racionalidade ou equilíbrio de quem convive com a perspectiva de
morrer diariamente. Seja suportivo e acolhedor. Deixe que chorem, riam, se isolem.
Caso suas atitudes despertem-lhe preocupações, converse com um especialista. Nada
de abrir a janela do quarto na marra e dizer que ele TEM que ver o sol e reagir.
Tampouco critique se estiver comendo besteiras ou saindo para se divertir. Acredite,
eles estão com as forças no último, é crueldade cobrar que façam mais do que se
sentem preparados.
Eterna Túlasi

CUIDADOS PALIATIVOS

Poucas pessoas já ouviram falar sobre Cuidados Paliativos. Menos ainda os que
sabem, exatamente, do que se trata. Além disso, o próprio termo não auxilia numa
compreensão correta de sua verdadeira proposta. O termo “paliativo” consta no
dicionário da língua portuguesa como: “O que tem a qualidade de acalmar, de
abrandar temporariamente um mal”, mas nem sempre é esta ideia que nos vem à
cabeça quando ouvimos o termo. “Paliativa” é uma expressão, muitas vezes,
utilizada como sinônimo de nada fazer, de enrolar, de empurrar com a barriga, de
fazer de conta que se está fazendo algo, de se fazer o mínimo. E este hábito linguístico
talvez colabore para nossa rejeição a uma proposta de tratamento para a fase final de
vida.
Na verdade, o conceito de cuidados paliativos pode ser ampliado para outras
fases, bem antes da morte, incluindo pessoas com doenças graves, mas sem risco de
morte, mas que provocam incapacitação. Porém, tradicionalmente, refere-se à fase
de cuidados prestados a pessoas que já não possuem perspectiva de tratamento
curativo de suas patologias. Os cuidados paliativos passam, então, a cuidar das
demais esferas da vida, não se concentrando em tratar da doença e sim, do doente.
Assim, os cuidados paliativos irão focar nas questões de alívio de sintomas
físicos, bem estar psíquico, apoio espiritual, questões sociais e familiares e outras
demandas que possam tornarem-se alvo de intervenção das equipes.
Em nosso caso, ouvi essa expressão pela primeira vez, de uma amiga, a Dra.
Giselle Silva, psicóloga oncológica que conheci quando ministrávamos aulas numa
faculdade de Brasília. Confesso que torci o nariz quando soube com o que ela
trabalhava. A ideia de passar os dias cercada de pessoas com câncer, à beira da morte,
me parecia uma opção nada estimulante. Mas foi justamente à Gi a quem recorri
quando minha filha piorou. Nesta época ela chefiava o Programa de Cuidados
Paliativos do Distrito Federal. Ela me explicou do que se tratava. E já testemunhando
o grande sofrimento da Túlasi, aquilo começou a fazer sentido para mim.
Durante várias semanas ela foi monitorando o quadro, à distância, por
intermédio de meus relatos e me orientando a como agir em cada uma das fases. Mas
foi quando me angustiei, por nenhum tratamento mais fazer efeito, que ela entrou
verdadeiramente em cena. Conversou longamente comigo sobre todas as opções
Eterna Túlasi

possíveis, contatou o INCA, pegou um avião e foi nos dar apoio. Reuniu-se com a
equipe, inteirou-se do caso e passou a nos acompanhar mais de perto. Me
recomendou várias leituras, me ouviu diversas vezes e passou um dia inteiro conosco,
ainda em casa, pintando mandalas.
Foi com ela que conversei como seria, para mim, o fim. O que eu temia, o que
desejava, o que esperava. Ela também conversou muito com a Mabel, psicóloga do
INCA 4 que nos atendia e esse vínculo entre nós foi indispensável para que eu
suportasse, da melhor forma possível, as dores que viriam pela frente.
A primeira obra que li, dá nome a um dos capítulos deste livro: “Sobre a Morte
e o Morrer”, da médica Elisabeth Kübler-Ross. O primeiro conceito que assimilei,
sobre Cuidados Paliativos, foi o do não prolongamento da vida, quando esta se torna
inviável pelos meios naturais. Sei que esta é uma posição que varia muito, de pessoa
para pessoa, mas nunca pude admitir a ideia de ver minha filha ligada a máquinas,
respirando por aparelhos, inconsciente e ligada a tubos, incapaz de se livrar daquela
agonia, simplesmente por não conseguirmos nos desapegar daquele corpo físico
adoecido.
A esta prática insistente se chama DISTANASIA (o prolongamento da vida,
artificialmente, quando não há mais qualquer perspectiva de cura, muitas vezes, às
custas de muito sofrimento para o paciente). Isso me parecia o cúmulo do egoísmo e
da falta de amor.
Mas esta já era uma posição que eu tinha (e ela também), anteriormente à sua
doença. Algumas pessoas chegaram a me dizer que eu mudaria de posição caso um
parente meu passasse aquilo. Não mudei. E nem agora, depois que tudo acabou.
Continuo achando que esta é, atualmente, a melhor das alternativas. Até que se possa
discutir e legalizar a eutanásia. Pecado ou não, errado ou não, para mim, o pior de
tudo é não se respeitar o direito de alguém que passou anos lutando pela própria vida,
cumprindo todas as obrigações e de quem roubamos o direito de decidir o que deseja
para si ao final da jornada.
É indispensável frisar que Cuidados Paliativos não significam uma desistência
do tratamento. O tratamento, por si só, tornou-se ineficaz devido a gravidade da
doença. E ao invés de se permitir que o doente morra em condições desumanas (com
dor, ligado a aparelhos, longe da família, sem uma rotina que englobe a alegria, sem
Eterna Túlasi

ter seus desejos respeitados etc.), fornece-se o máximo de qualidade possível para
uma fase pré-morte (quando essa já é impossível de ser evitada).
Não querendo entediar a todos com um capítulo técnico sobre o tema, sugiro
que recorram a leituras auxiliares, facilmente encontradas na internet. Meu objetivo
neste capítulo é muito mais relatar a minha experiência como uma familiar usuária
deste tipo de serviço.
Ao longo das semanas, fui incorporando as outras esferas do cuidar, como o
suporte para a família, o foco na qualidade de vida por meio de atividades lúdicas e
prazerosas e o testamento vital.
Para mim, particularmente, a etapa de conversar sobre o fim foi
particularmente difícil. Não é fácil aceitar a perda, muito menos trazê-la para o
âmbito concreto, e menos ainda, ouvir seu filho falar de quando vai morrer. Falar de
vida após a morte foi algo agradável e alentador, mas as conversas sobre o funeral só
se tornaram palatáveis devido ao grande senso de humor de Túlasi e de seus planos
de transformar tudo numa grande festa. Não sei se após tantos meses de luta e
esgotamento eu conseguiria ficar de pé durante um velório triste, seguido de um
sepultamento.
Tivemos a oportunidade de passar semanas pintando, assistindo filmes,
ouvindo música, comendo o que ela gostava, passeando, trocando confidências, nos
apoiando mutuamente, convivendo e vivendo. Lemos poesia, tiramos fotos, fizemos
planos (ainda que de curta duração). Enfrentamos juntas o que vinha pela frente,
com coragem e realismo, mas também com sensibilidade e apoio mútuos. Pudemos
colocar em dia as relações, os desafetos, as coisas mal resolvidas.
Estudos antropológicos devem explicar esse pavor que a humanidade sente do
morrer. Eu nunca tive muito. Sempre tive a sensação de ser apenas uma passagem
para outra dimensão e que deveríamos nos preparar para este dia. Isso facilitou
bastante, pois eu e Túlasi já havíamos conversado várias vezes sobre o assunto. Foi
mais fácil retomar algo que já havia sido abordado, do que tirar um grande mito de
dentro do armário, sem ter tempo de refletir sobre ele e, ainda por cima, no calor de
um momento onde nossa capacidade de raciocínio fica bastante reduzida. Aceitam
uma sugestão? Pensem sobre o que querem para o momento da morte de vocês.
Registre em cartório. Fale com familiares e amigos. Este dia chegará, isso é
impossível negar.
Eterna Túlasi

INSTALAÇÕES DO INCA IV – UNIDADE DE CUIDADOS PALIATIVOS


Eterna Túlasi

INSTITUTO NACIONAL DO CÂNCER - INCA

Como boa parte dos brasileiros, eu e minha filha engrossávamos o coro dos que
acham que nosso Sistema Único de Saúde é um exemplo de sucateamento. Ao
receber a notícia, dada por um dos melhores oncologistas particulares do Rio de
Janeiro, de que deveríamos buscar tratamento no INCA, me desesperei. Imaginei o
pior cenário possível.
Mas essa visão sofreu uma profunda transformação, para melhor. Creio ser
importante deixar aqui este relato, não como uma mera defesa da instituição, mas
para acalmar e esclarecer aqueles que porventura necessitem dele.
Além do mais, é sabido que o ser humano possui uma certa tendência a queixar-
se e criticar, muito mais do que elogiar e ser grato. E eu não poderia deixar de
demonstrar minha gratidão às dezenas de abnegados profissionais que, junto
conosco, lutarem bravamente por ela e por todos os outros pacientes que circulam
por ali diariamente. Eu mentiria se dissesse que apenas minha fé, meus amigos e
familiares me sustentaram de pé, neste que foi o momento mais difícil da minha vida.
Sem os profissionais do INCA, com toda certeza, eu não teria suportado. Alguns a
quem já pude agradecer pessoalmente me responderam dizendo que fizeram pouco.
Mas só alguém em meio ao deserto sabe o valor de um mero copo d’água... Sim,
foram sorrisos, preces e gentilezas que, aliadas à competência técnica, tornaram esse
deserto possível de atravessar.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que existem maus profissionais em
qualquer área, não apenas na medicina ou enfermagem. A minha própria profissão
conta com exemplos nada abonadores. Também é necessário frisar que atrasos, falta
de educação, demoras e desmarcações não são, nem nunca foram, encontrados
apenas em cenários públicos. Já cheguei a esperar mais de uma hora por uma
consulta em atendimento particular e tive desentendimentos, queixas e reclamações,
das mais diversas, no âmbito dos planos de saúde (nacionais e internacionais).
Dito isto, não poderia me furtar de mencionar um outro livro que li e que cita
o INCA, classificando-o quase como a filial do inferno. Só posso atribuir este tipo de
relato ao momento de profunda dor e desorientação dos familiares. Como devem ter
notado, ao longo de todo meu texto, registrei algumas queixas e reclamações. Mas
não atribuo tais acontecimentos ao fato de ser um tratamento público. Como já disse,
Eterna Túlasi

há profissionais ruins em qualquer lugar e mesmo nas mais afamadas instituições


particulares, estamos sujeitos a erros e falhas. Mas o tal “inferno na terra” jamais se
avizinhou de nós. Pelo contrário, num cômputo geral, posso afirmar que estas falhas
significaram uma minoria perto dos atendimentos de qualidade que tivemos. Este
outro livro parece até ter sido escrito sobre outro lugar, pois não reconheci, em
nenhum momento, o local onde eu e minha filha vivemos por longos meses.
Outro detalhe é que certos acontecimentos que eu omiti, não considero, sequer,
dignos de nota. Creio que devemos ter muito cuidado ao projetar nossas frustrações
pessoais (e lidar com a doença e morte de um filho desperta, em muito, estes
sentimentos) numa realidade que, não fora nosso momento de extrema dor, passaria
despercebida. Refiro-me a eventuais faltas de água, torneira pingando e outros
detalhes que, verdade seja dita, apesar de causarem algum desconforto momentâneo,
pouco ou nada afetam o tratamento de quem ali está.
Cabe salientar que ao longo do tratamento, busquei diversas outras opiniões,
como qualquer mãe desesperada faria. Mas todos confirmaram os diagnósticos e
prognósticos recebidos. De professores de medicina da universidade onde leciono,
até especialistas do Japão. Certo dia, conversando com um dos médicos dela, ele me
disse o seguinte: “Olhe, você pode até tirar sua filha do INCA e leva-la para a
Alemanha ou Estados Unidos. A questão é que o tratamento do câncer segue um
protocolo internacional, seguido por todos os hospitais que se dedicam à oncologia.
O INCA é afiliado às maiores instituições de pesquisa do mundo e coloca em prática
tudo o quanto surge de novidade neste meio. Não se deixe enganar por hospitais mais
bonitos e luxuosos, aqui podemos ter instalações simples e algumas dificuldades, mas
nosso tratamento é referência no Brasil, posso te garantir”. Ele me passou muita
credibilidade. Muitos destes profissionais poderiam estar enriquecendo em
organizações privadas, mas abriram mão de uma carreira de benefícios financeiros
para se engajarem nesta verdadeira guerra que é a luta contra o câncer. Não havia
motivos para ele me convencer a ficar. E por ocasião do encaminhamento ao INCA,
o oncologista particular que nos atendia fez questão de frisar que era lá que estavam
seus professores. Nos disse que nas clínicas particulares sempre encontraríamos os
discípulos dos grandes mestres, mas que os grandes nomes da oncologia estavam na
esfera pública. Assim, decidimos apostar no SUS.
Eterna Túlasi

A despeito do falecimento de minha filha, seria leviano de minha parte atribuir


tal desfecho ao INCA, aos profissionais ou até mesmo ao SUS. O caso dela era grave
e foi descoberto tardiamente, de forma que, fosse onde fosse seu tratamento, as
chances seriam as mesmas. Assim como, diariamente, a mídia divulga o fracasso do
tratamento de celebridades, tratadas nos mais diversos locais. O que houve foi uma
fatalidade e creio que eu deva lidar com esta frustração de uma forma madura, sem
procurar projetar a culpa em profissionais que nada mais fizeram do que tentar
ajudar, até o último instante.
Pois bem, nossa jornada de surpresas agradáveis iniciou quando comparecemos
ao guichê de marcações para quimioterapia do INCA 2. Uma equipe de três pessoas
sorridentes e gentis nos atendeu. Deram-nos boas-vindas ao local, explicações gerais,
telefones de informação e disseram que fariam de tudo para que o tratamento
transcorresse da melhor forma possível. Confesso que nem na maior rede de hospitais
particulares do Rio fomos tratadas com tanta educação e gentileza. Mas aquele não
seria um evento isolado. Ao fim de uma das sessões de quimio que ela fez, saiu da
sala de aplicação um pouco tonta e fraca. A moça que estava no guichê da recepção
a chamou pelo nome e disse: “ei, moça bonita, dá um sorriso, levanta essa cabeça,
esse mal estar aí significa que os remédios estão combatendo sua doença, estou
torcendo para você melhorar”. Ficamos pasmas. Quantas vezes, em lojas caras, onde
os atendentes têm interesse pessoal nas vendas, somos tratados com frieza? Quem
diria que seríamos tratadas tão bem, por gente que não lucra nada com nossa
satisfação! Numa outra ocasião, estávamos no box da quimioterapia e ao nosso lado,
outra moça jovem recebia medicação. Uma das enfermeiras da sala disse: “ih, só tem
adolescente aqui hoje, vamos animar este lugar”! E prontamente colocou uma
seleção de músicas alegres, que faziam sucesso no momento. De fato, isso elevou o
astral e logo vários pacientes estavam cantando o refrão. Túlasi criou muito carinho
por esta equipe, tanto que no dia em que fez sua última sessão, fez questão de abraçar
e agradecer cada um. Também pediu autorização para tirar uma foto com a equipe,
que em seguida foi postada em suas redes sociais com um enorme elogio ao setor.
Eles haviam preparado um cartazinho colorido para ela, em comemoração ao fim
daquela parte do tratamento.
Outra equipe que ficou positivamente marcada foi o pessoal da radioterapia do
INCA 1. Sempre fornecendo informações e se desculpando por eventuais falhas, me
Eterna Túlasi

receberam na sala de controle para que eu pudesse conhecer de perto os


procedimentos. Para minha surpresa a maioria dos profissionais tinha estudado física
e diversos tinham doutorado e até mestrado no exterior. Mas eram de uma
humildade e uma simplicidade encantadoras. Eles também foram parar em nossas
redes sociais com direito a foto e elogios públicos.
Mas nada nos surpreendeu mais do que a braquiterapia, realizada no Hospital
Universitário do Fundão. Ao nos aproximarmos, vimos um edifício com partes sem
janelas e os restos de outro setor que havia sido implodido. Tememos pelo pior. Qual
não foi nossa surpresa quando um funcionário muito sorridente apareceu para
recepcionar “as lindas senhoras desta manhã”, como ele se referiu à fila de pacientes
que aguardavam atendimento. Túlasi estava muito nervosa naquele dia. Era um
procedimento novo e ela temia sentir dor ou passar mal. Ao ser chamada, avisei de
seu estado emocional para a enfermeira. Ela sorriu e nos tranquilizou, dizendo que
ela seria anestesiada e bem tratada e que não se sentiria mal. Me acalmou dizendo
que ela estaria em ótimas mãos.
Segundos depois fui chamada: a médica responsável, vendo sua insegurança,
permitiu que eu ficasse com ela durante os preparativos e me assegurou que logo em
seguida, me deixaria entrar novamente. Aquilo fez toda a diferença. Minha filha
sabia que eu estando ali tão perto, a socorreria imediatamente, caso ela se sentisse
mal e sabia que caso fizessem algo de errado, a leoa que mora em mim entraria em
ação. E assim foi: poucos minutos após eu sair (devido ao risco de radiação no local),
fui chamada de volta para lhe abraçar e dar lanche. Ela me garantiu não ter sentido
nada e nas sessões seguintes, estava cheia de coragem e confiança. O medo é sempre
o nosso maior inimigo... Antes de sairmos, a médica responsável veio nos ver e
esclarecer sobre o curso do tratamento. Conversava com Túlasi lhe acariciando os
cabelos e segurando em minha mão. Quando saímos ela me deu um grande abraço
e disse que faria o melhor possível, que eu ficasse tranquila. Aquele gesto foi mais
potente que qualquer dose de calmante que já tomei.
Além destas equipes, com as quais mantivemos contatos esporádicos e dos
demais profissionais, diretamente envolvidos no tratamento, aos quais me referi ao
longo do livro, não poderia deixar de mencionar os cuidadores quase desconhecidos
que existem ali. Recentemente, quando retornei ao INCA para buscar cópia de
Eterna Túlasi

alguns documentos, fui recebida pelo segurança com um sorriso: “Oi, doutora, fiquei
sabendo de sua menina, puxa, lamento muito, até rezei pela senhora...”.
Outra profissional que nos marcou foi uma das faxineiras do INCA2: não havia
um dia que ela fosse embora sem passar em nossa enfermaria para se despedir e
desejar boa noite, sempre perguntando como havíamos passado o dia. Quando soube
que havíamos sido transferidas para o INCA 4, me contaram que ela ficou
inconsolável...
Ainda no INCA 2, uma das recepcionistas gravou o nome de minha filha e toda
vez que eu passava por sua portaria ela me perguntava sobre o estado de saúde de
Túlasi.
Também a copeira de nosso andar, no INCA 4, parecia ter sido enviada por
encomenda: sempre atenciosa, disposta a ajudar no que lhe competia, sorridente e
prestativa. Me surpreendeu numa noite, quando fui chamada por uma das técnicas
de enfermagem, dizendo que uma pessoa queria falar comigo no corredor. Era ela,
já sem uniforme, pronta para ir para casa: estaria de férias a partir do seguinte e temia
não nos ver mais, pois sabia do estado de saúde delicado de minha filha. Me pediu
autorização para orar por nós e perguntou se poderia me dar um abraço, segundo
ela, “de mãe para mãe”. Aquilo me emocionou profundamente: era a mais pura
solidariedade humana...
Nosso caso parece ter corrido o hospital e numa das vezes que passei pela
recepção do INCA 4, a secretária me chamou. Disse que soubera de nossa história e
que queria me dizer para eu ter confiança pois os médicos ali eram muitos bons e
fariam o melhor por nós. Agradeci comovida. Semanas depois, quis o destino que
fosse ela a estar no plantão no dia em que fomos buscar o corpo de minha filha recém
falecida. Ela tentou ao máximo, mas as lágrimas lhe escaparam molhando o
documento de registro de óbito da Túlasi. Este dia foi particularmente marcante:
todos os profissionais que passavam pela recepção e me viam, paravam para me
abraçar, muitos deles chorando, quase mudos, assim como eu. Espero um dia
reencontrá-los e, menos impactada, podermos trocar as palavras que, naquele dia,
ficaram presas na garganta.
E para além do quesito humanidade, não poderia deixar de falar de algumas
questões técnicas. Minha filha teve acesso a exames e procedimentos caros, tantas
vezes quanto necessitou, aguardando o menor tempo possível. Tomografias,
Eterna Túlasi

ressonâncias magnéticas, transfusões de sangue em grande quantidade e ecografias


nunca nos foram negadas. Não tenho como computar os valores gastos com seu
tratamento. Só uma única injeção, que ela precisava tomar durante vinte dias,
custava mais de R$ 300,00 cada uma. Após sua morte, devolvi toda medicação que
sobrou à farmácia do hospital e pelas minhas contas, numa única caixa deveria ter
mais de R$ 3.000,00. Da dipirona em gotas até a morfina, passando por calmantes,
antibióticos e vitaminas, tudo era fornecido pelo hospital, incluindo colchonete
especial “casca de ovo”, fraldas, muletas e cadeira de rodas. Até o suplemento
alimentar, utilizado quando ela recusava a alimentação, era fornecido por eles,
sempre em quantidades suficientes.
Além disso, o INCA possui um atendimento telefônico de emergência que, de
fato, funciona. Tivemos apenas uma única experiência que nos desagradou, mas logo
foi solucionada. Bastava ligar, de qualquer parte do Brasil, e um médico nos atendia,
olhava o prontuário no sistema e nos orientava a como proceder. O mesmo se refere
à emergência do INCA 2 e do INCA 4: uma única vez nosso atendimento demorou
mais que 15 minutos para ser efetuado e quase sempre por questões de falta de
pessoal.
A unidade de cuidados paliativos (INCA 4) merece destaque especial, pois
conta com uma sala de meditação, ginásio de fisioterapia, um pequeno salão de
beleza para os pacientes, sala de música e diversas oficinas de atividades e artesanato.
A decoração é agradável e a comida, de boa qualidade.
Aliás, no quesito nutrição, eu jamais esperava ver minha filha comer pêssegos
em calda com creme de leite como sobremesa, no SUS. Haviam diversos sabores de
sorvete de uma marca conhecida, pois os pacientes de câncer sentem alívio dos
enjoos quando ingerem alimentos gelados. Frutas variadas, sucos naturais, pães,
doces, confeitaria, saladas e carnes de todos os tipos. Seis refeições diárias e três para
os acompanhantes. Não há, mesmo, do que reclamar. As vezes em que Túlasi se
queixou, eram devidas às limitações que a própria doença lhe impunha ou algum
desejo particular que sentia (tâmaras ou figos, que sejamos razoáveis, também não
estariam disponíveis na rede particular). A proibição de entrada de alimentos deve-
se à preocupação com bactérias ou com alimentos proibidos para certos tipos de
pacientes (diabéticos que não podem ingerir açúcar etc.). Toda alimentação que é
levada ao quarto, se não consumida, é imediatamente descartada, por causa do risco
Eterna Túlasi

de contaminação. E a equipe de nutricionistas passa duas vezes ao dia para checar


os ajustes necessários. Há cardápios especiais laxantes, para hipertensos, para
prender o intestino, cuidar da anemia, favorecer a digestão e por aí vai.
Tudo isso fez com que ao conhecer o INCA 4, após muito receio de lá
comparecer, Túlasi me dissesse ao final do dia: “Ainda bem que este lugar existe,
mãe, me sinto segura e bem cuidada aqui”. E mesmo diante de sua inevitável morte,
seu discurso não se modificou, tanto que as últimas visitas que solicitou receber,
foram seus ex médicos, a quem muito agradeceu.
Para quem ainda nutre a ideia de que a rede particular é a melhor opção, sugiro
que acessem informações na internet sobre os últimos escândalos envolvendo
falsificação de fármacos utilizados na quimioterapia. Evidentemente, não são todas
as instituições privadas que assim procedem, mas há que se considerar que se a rede
pública possui problemas, a particular não fica de fora. Falsos diagnósticos de câncer,
visando ganhos financeiros, foram fartamente noticiados pelas redes de televisão
internacionais. Tráfico de órgãos envolvendo médicos do sistema privado e
verdadeiras máfias dos planos de saúde, infelizmente não são novidades para a
população. Mortes de pacientes que aguardam liberação de procedimentos de seus
convênios médicos são uma constante no Brasil e estão longe de ser um privilégio do
Sistema Único de Saúde. Portanto, mais do que simplesmente criticar, é preciso
fortalecer a nossa saúde pública. Ao sair do INCA, encaminhei uma lista de
sugestões elaboradas em conjunto com a minha filha, ao longo dos meses de
tratamento. Longe de termos a intenção de apenas reclamar, nosso intuito foi ajudar,
levando o ponto de vista dos usuários até a administração. Neste quesito, a
instituição também não deixou a desejar, sempre nos dando feedback de cada
demanda que apresentamos.
De fato, muito pode ser melhorado. É necessária mais capacitação, mais
contratações, mais recursos físicos etc. Mas nossa participação, fiscalização e
controle social podem fazer muita coisa mudar. Precisamos nos engajar
politicamente, nos tornarmos pacientes, cidadãos e eleitores conscientes e
participativos. E saber de quem, quando e como cobrar.
Eterna Túlasi

Além disto, a tomada de consciência social, de que a Ética Humana deve ser
cada vez mais incentivada, faz-se indispensável neste momento da história. Ética essa
que deve ser seguida não apenas por políticos, gestores e médicos, mas por cada um
de nós, cidadãos, que necessitamos nos engajar nesta luta, que é a luta de toda a
sociedade: a luta contra o câncer.
Eterna Túlasi

LIÇÕES

Ao longo de todo o processo, fui registrando reflexões e elaborações. Deixo-as


aqui registradas, pois podem ser úteis a outras pessoas que passam pelo mesmo.
Quem sabe, levem-nos a pensar acerca dos processos de vida, adoecimento e finitude.
Não são verdades e nem enunciados. São, apenas, pontos de vista pessoais.

 A vida pode terminar de repente, faça o que você deseja.


 As pequenas alegrias são, de fato, as mais verdadeiras (como tomar um banho
demorado ou comer pão na chapa, dependendo do gosto pessoal de cada um).
 Felicidade é uma escolha. Escolhe-se ser feliz e isso não tem nada a ver com
as circunstâncias nas quais nos encontramos.
 Somos capazes de muito mais do que imaginamos, quando amamos (causas
ou pessoas).
 Amigos podem ser mais suportivos que nossa própria família.
 Em caso de caos, as pessoas revelam-se e causam boas surpresas ou enormes
decepções.
 Cuidar do outro pode ser curativo para nossas próprias feridas emocionais.
 Há tempo de gritar e tempo de calar...
 Se privar é tolice. A morte virá quando for seu tempo.
 Algumas pessoas não se privam de lhe maltratar, mesmo quando você
encontra-se em frangalhos.
 As pessoas acham que luto significa tristeza e choro, mas ele é muito mais
que isso.
 Que acompanhar a morte de um ente querido pode te levar a um verdadeiro
renascimento.
 Somos livres e assim devemos nos comportar, mas é preciso arcar com as
consequências de nossas escolhas. Faça sempre o que deseja e não deixe
ninguém lhe dizer como deve agir.
Eterna Túlasi

 Existem pessoas capazes de quererem lucrar em cima de sua dor, sem o menor
peso na consciência.
 Que amar é, de fato, deixar ir...
 Famílias de verdade são compostas por laços de amor e não de sangue.
 Sou mais forte do que pensava e mais frágil também...
 A minha fragilidade deve ser respeitada, para que eu possa continuar a ser
forte.
 É necessária muita coragem para se mostrar fraco.
 Existem coisas imprevisíveis e incontroláveis e elas costumam ocorrer quando
você não tem condições de lidar com elas.
 Posso fraquejar e pedir ajuda.
 Alguns dos que dizem te amar são capazes de te prejudicar em seu pior
momento.
 Não se perde um filho nunca...
 Cuidados Paliativos são a melhor coisa para pessoas à beira da morte.
 A eutanásia pode ser um ato de amor.
 É melhor estar junto, em meio às dificuldades, do que longe de quem
amamos.
 Existe vida após a morte.
 É possível e necessário respeitar o outro, mesmo quando ele difere de mim.
 Doar sangue não custa quase nada, mas poucos se sensibilizam, até que
precisem. Seja generoso. A vida retribui.
Eterna Túlasi

APÊNDICE
Eterna Túlasi

DEPOIMENTOS DOS AMIGOS

Nesta parte encontram-se cartas, e-mails, bilhetes e declarações que recebi sobre
minha filha. Elas falam sobre como foi conhecê-la e conviver com ela. Foram escritas
por familiares, amigos, conhecidos e profissionais que acompanharam nossa
trajetória. Uma forma de ampliar a participação na escrita do livro e de mostrar
outros pontos de vista sobre nossa história. É, também, o registro dos tributos
rendidos à nossa luta. São mensagens de incentivo que retratam o apoio que
recebemos e ainda recebo, para superar a dor...

De: Ana Lúcia Checcucci

“Estava no Rio em visita a minha filha quando, na tentativa de aliviar o coração


de uma mãe aflita por não estar ao lado da sua naquele momento, resolvi ir visitar
essa filha que não conhecia. Era o primeiro dia de junho, mês do meu aniversário,
quando adentrei a enfermaria três do INCA 2 e localizei no último leito, Túlasi. Na
ocasião, ela conversava com a psicóloga do centro, com os olhos cheios de brilho e
de vida, ao contrário de seu corpo tão consumido pela mazela que ali se encontrava.
Um brilho tão contagiante que após me identificar, pois ela já me aguardava, não me
contive de curiosidade para indagar tamanha felicidade! A resposta foi a mais
inusitada possível: “ pedi minha separação”! Aquele pedido causaria estranheza em
qualquer ser vivente naquela situação, mas não em Túlasi!
Esse foi meu primeiro aprendizado com ela, nunca é tarde para absolutamente
nada enquanto há vida! Naquele mesmo dia, enquanto estava com ela, recebeu a
notícia que tomaria alta. A felicidade se apoderou mais ainda, mas um problema
surgiu: “ para onde vou agora? Se estou sem marido, estou sem casa! ”. Daí surgiu a
solução: “Vamos para casa de minha filha! ”. Desse momento em diante, os
praticamente dois dias de nossa intensa convivência foram extraordinários,
simplesmente uma oportunidade única de crescimento, não só meu, mas para minha
filha, meu marido e para ela que não acreditava mais no sentido de solidariedade e
que de fato somos todos irmãos nessa passagem.
Eterna Túlasi

Rimos muito com a sua espirituosidade, o seu bom humor, a sua simplicidade,
a sua humildade e sua força, muita força, além de fé imensa no amanhã. Fomos
passear na rua sem pressa, leves e descontraídas, as quatros garotas na praça, eu, ela,
Renatha e a mascote, Cacau. Aproveitamos toda reserva de energia da melhor forma
possível. Ganhou flores de meu marido, cozinhamos, sentamos no chão e brincamos
com Cacau como crianças. No dia seguinte, a pedido dela, a levamos para a casa da
tia Diana, pois Elisa já estaria chegando à tarde. A subida até o apartamento era de
escada, mas a menina guerreira não se abalou, subiu majestosamente aqueles
degraus, mostrando que a sua fraqueza física não sobrepôs à sua dignidade.
Tive que retornar para Brasília e no mês seguinte fui visitá-la no INCA 4, já nos
cuidados paliativos, bem mais enfraquecida no corpo, mas não na alma. Continuava
com suas pinturas disputadíssimas, devido as cores sempre vivas a alegres, com seu
alto astral, nomeando seus coletores como seus namorados, pois estavam sempre na
cama com ela.
Obrigada, garota, por ter me permitido viver tão pouco, mas intensamente com
você e por ter me ensinado tanto. Como você mesmo disse, não há despedida entre
nós, pois a sensação é de que nos conhecemos há muito tempo, tempos de outras
vidas! ”

“O mais importante da vida não é a situação em que estamos,


mas a direção para a qual nos movemos”.
Oliver Wendell Holmes
Eterna Túlasi

De Maíra Fernandes
Para Túlasi

“Somente ao redigir essas linhas em homenagem à Túlasi, pude perceber que


só convivi com ela durante um ano e meio. A afinidade enorme, o carinho e a
admiração recíproca não condizem com esse tempo. Ela entrou na minha vida como
se nos conhecêssemos há muitos anos e essa era a sensação que eu tinha, até
encontrar, agora, os e-mails que ela me escreveu e refazer a história de nossa
amizade.
Em janeiro de 2014, ela me enviou seu curriculum, destacando que possuía
interesse na área de direitos humanos. Eu não a conhecia pessoalmente. Só
havíamos trocado algumas poucas palavras pelo Facebook. Ela havia assistido a uma
palestra minha na Universidade Veiga de Almeida e, desde então, “curtia” meus
posts sobre execução penal, direitos humanos. Eu a “conhecia” virtualmente e
prometi tentar encaminhar o curriculum. Lembro-me de ter ficado muito bem
impressionada com a mensagem.
Meses depois, em 16 de maio, recebi dela um e-mail emocionante e inesperado:
“Cara Drª Maíra, apesar de não nos conhecermos pessoalmente, sou
extremamente inspirada pelo seu trabalho e exemplo, razão pela qual, tomei a
liberdade de a mencionar nos agradecimentos de meu primeiro trabalho acadêmico,
a monografia. Humildemente, lhe envio o mesmo. Novamente, agradeço por toda
inspiração. Abraços, Túlasi.
Fiquei verdadeiramente tocada com aquele contato e, mais ainda, com os
dizeres da monografia:
“Agradeço ainda à Dra. Maíra Fernandes, atual presidente do Conselho de
Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro, que é modelo de
profissional e me inspira, diariamente, a estudar cada vez mais para levar justiça a
todos os cantos do mundo”.
Evidente que agradeci a gentileza e li sua monografia, que ora releio sob forte
emoção. Como era promissora a carreira da Túlasi...Como precisamos dela para
nossas lutas, que falta enorme ela nos faz!
O tempo passou e, em setembro, fui convidada a proferir palestra na
Universidade Cândido Mendes. Ao fim do evento, conversamos longamente.
Eterna Túlasi

Falávamos a mesma língua e eu vi nela a empolgação que eu tinha ao terminar a


Faculdade, o idêntico brilho nos olhos e a igual vontade de mudar o mundo.
Ela reiterou o quanto gostaria de trabalhar na área de direitos humanos.
Convidei-a, então, para estagiar no Conselho Penitenciário do Estado do Rio de
Janeiro, do qual eu era, à época, presidente (mandato de agosto de 2011 a agosto de
2015). Sua presença enriqueceu o trabalho do Conselho e ela conquistou a todos nas
primeiras reuniões. Acompanhou as inspeções às unidades prisionais, auxiliou na
elaboração dos relatórios, ajudou um sem número de familiares de presos que batiam
à porta do Conselho em busca de esperança e de atenção.
Ela absorvia tudo com interesse e um certo sentimento de urgência. Uma vez
me explicou que queria correr atrás do tempo que havia dedicado ao tratamento de
seus problemas de saúde. Hoje sinto que ela, no fundo e de modo inconsciente, sabia
o porquê daquela pressa.
Eu não sabia o motivo, mas conhecia sua fome de conhecimento e a
incentivava. Por isso, quando uma amiga me ligou dizendo que não poderia ir à
Conferência Nacional dos Advogados, no Riocentro, e não tinha o que fazer com o
ingresso, não pensei duas vezes. Em uma hora lá estava a Túlasi ao meu lado,
assistindo a todas as palestras, comprando os livros, feliz da vida com o convite
inesperado.
Em dezembro, engravidei do meu primeiro filho, Antônio Henrique, e minha
médica proibiu as inspeções em presídios. À época, eu também integrava a
Coordenação Nacional de Acompanhamento Penitenciário do Conselho Federal da
OAB, como representante da OAB-RJ e realizava fiscalizações em unidades
prisionais de todo o país. Solicitei, então, ao Presidente da OAB-RJ, que indicasse a
Túlasi para me representar nas inspeções realizadas no Piauí e, como era de se
esperar, recebi dos colegas, em referência a ela, os maiores elogios.
Seu profissionalismo, interesse pelos temas de trabalho, sua inteligência e
doçura encantavam a qualquer um. Hoje sei, pela querida Elisa, que aquela viagem
foi muito importante para a Túlasi, o que me conforta e alegra imensamente.
Durante toda a gravidez, fui indicando a Túlasi para diversas atividades, dentre
as quais também destaco uma grande inspeção realizada no Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico Henrique Roxo, em conjunto com diversas entidades,
dentre as quais o Conselho Regional de Psicologia, o Mecanismo de Prevenção e
Eterna Túlasi

Combate à Tortura do RJ, o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial - Núcleo


RJ e o Fórum Permanente de Saúde no Sistema Prisional - RJ. As inspeções
nacionais em manicômios judiciários eram uma iniciativa do Conselho Federal da
OAB, do Conselho Federal de Psicologia e da Associação Nacional do Ministério
Público de Defesa da Saúde.
Providenciei todas as credenciais de praxe e ela foi representando, a um só
tempo, o Conselho Federal da OAB e a OABRJ. Lembro-me bem que ela estava
radiante, pois com essa inspeção ela se aproximava da área de sua mãe, Elisa –
psicóloga e especialista em Psicologia Jurídica – que ela tanto admirava.
Certa vez convidei a Elisa a participar de uma sessão plenária do Conselho
Penitenciário, para compartilhar sua experiência profissional e falar do Mecanismo
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Testemunhei, bem de perto, a emoção
que mãe e filha sentiam por estar ali, no mesmo espaço de trabalho. Fomos almoçar
com os colegas depois e foi um encontro muito agradável, no qual pude conhecê-las
mais profundamente.
Eu sentia uma necessidade enorme de abrir os caminhos para a Túlasi, pois
sabia que ela era dotada de toda a competência do mundo para desbravá-los. Achei
maravilhosa sua intenção de integrar o Mecanismo Estadual de Combate e
Prevenção à Tortura e pretendia auxiliá-la na conquista por uma vaga, mas não
tivemos tempo para tanto.
Fiz muitos planos de trabalho com ela e para ela. Acreditava ter encontrado
uma parceira para meu idealismo, para os mais espinhosos temas. Muitas vezes é
difícil acreditar que ela não esteja mais entre nós.
Escrevendo estas linhas, vejo que desenvolvi, em relação a ela, um sentimento
de cuidado quase maternal. Como não havia tanta diferença de idade entre nós
(ambas escorpianas, ela era de 1985, eu sou de 1981), decerto o mais correto seria
dizer fraternal. O fato é que era algo estranhamente forte para alguém que eu
conhecia há tão pouco tempo.
Infelizmente, não pude me despedir dela e isso me dói profundamente. Por uma
dessas coincidências da vida, perdi meu filho Antônio Henrique no parto, dia 23 de
julho de 2015. Dois dias depois, ela também se foi. Quem sabe eles estejam juntos,
em um lugar de muita luz e paz. Gosto de acreditar nisso e pensar que meu bebê
estará em ótimas mãos do lado de lá.
Eterna Túlasi

Por aqui, eu e Elisa continuaremos nossas lutas, fortalecendo nossa afinidade


e encontrando meios de prosseguir, buscando significados para as nossas saudades
dilacerantes e eternas. Por mais difícil que seja, nós estamos seguindo em frente e
seguiremos sempre, com todo o amor que há em nossos corações...”

Um beijo, Maíra

___________________________________________________________

“Falar sobre um paciente é sempre uma forma de suavizar meu trabalho pois,
para muitos, nosso trabalho é um pouco assustador, um assunto que muitos temem.
Trabalho com uma das situações mais difíceis para o ser humano, que é a fragilidade
em relação à sua finitude e morte. Entendo que não se sai por aí pensado só nisso,
mas faz parte da vida.

Há alguns meses atrás, a mãe de uma paciente, que conheci em minha unidade
hospitalar, veio falar-me de uma linda ideia, que era escrever um livro sobre a sua
visão da vida, da morte e da trajetória da doença de sua filha. Doença essa que
tornou-se fatal e sem qualquer possibilidade de cura. Achei a ideia maravilhosa, pois
seria uma forma de, não apenas deixar em palavras o seu desabafo e registrar as
lembranças, como também, desmistificar o tema da morte.
Eterna Túlasi

Trabalho na unidade 4 do INCA, especializado em cuidados paliativos, onde


tive a oportunidade de conhecê-las. Atuo na área de enfermagem clínica, há 25 anos
e neste local, há cinco.
Lembro quando cheguei ao meu setor e olhei para o quadro de pacientes e vi
que a paciente era muito jovem, com um nome diferente. Quando a vi, achei-a linda,
com um sorriso largo e sereno, não muito abatida pela doença.
Perguntei se precisava de alguma coisa, e ela respondeu com brilho nos olhos
que eu não me preocupasse pois ela já tinha tomado banho, pois sua mãe fazia tudo.
Logo sua mãe entrou no quarto e me apresentei e ela parecia sentir orgulho de cuidar
da filha. Logo percebi uma grande cumplicidade entre ambas. Percebi que haviam
muitos lápis de colorir e desenhos de lindas mandalas. Comentei que também
gostava de pintar.
Também que seus cabelos eram vermelhos e bonitos, e comentei que há algum
tempo atrás eu também tinha os cabelos vermelhos, no mesmo tom que ela estava
usando.
Saí do quarto muito pensativa e reflexiva, mas feliz de ver como mãe e filha
tinha uma troca de energia muito bonita, de sentir e de ver. Mesmo com toda aquela
situação, que nenhuma mãe e filha gostariam de passar, via-se o amor emanar entre
elas. Presenciei fatos ímpares que me deixaram muito pensativa, não só pela sua
juventude, mas também pela serenidade de ambas.
Nas vezes seguintes, elas chamaram algumas vezes, solicitando medicação
para dor, e percebi o quanto Túlasi sofria com a doença. Sempre que eu aplicava
alguma medicação, tentava explicar o máximo que eu podia, para tentar fazê-la
compreender que a medicação demorava um pouco a fazer efeito, mas que a dor logo
iria passar.
Mas não havia como não sentira empatia e me colocar no lugar daquela mãe
com uma filha quase da idade da minha. Era interessante quanta serenidade elas me
passavam.
Num outro plantão, me informaram que Túlasi estava mais debilitada e que
havia sido prescrita medicação extra pois a avaliação era de dor intensa. Ao entrar
no quarto, vi que estava mais abatida. Ela desculpou-se e dizendo estar muito
cansada e debilitada, solicitou tomar banho no leito. Rapidamente falei que não tinha
que não havia por que desculpar-se, o que eu mais queria era seu conforto.
Eterna Túlasi

Comecei a contar que iria viajar para visitar meu namorado que vive na Itália
e fomos conversando enquanto lhe dava banho. Na verdade, eu falava mais para
descontraí-la. Contei-lhe que tinha meus amores estavam longe de mim, mas dentro
do meu coração. Uma se casou e foi morar fora do Brasil e um filho que estava no
céu. Elas quiseram saber mais. Expliquei que estava ali, naquele momento, em sua
homenagem, pois havia escolhido esta profissão, após sua morte. No dia de seu
falecimento prometi que se já não podia cuidar dele, cuidaria de outras pessoas, com
o mesmo amor, pois essa seria a maneira de transformar dor em amor.
Percebi que haviam se emocionado. Ela, então, contou que era advogada e que
também adorava a profissão, por poder ajudar os demais. Falou com carinho de seus
irmãos e da dedicação de sua mãe. Ao final do banho a percebi mais feliz com aquela
troca de afetos e experiências.
Nos dias subsequentes, quando a via colorindo suas mandalas, observei como
o câncer não tinha vencido a Túlasi, pois ela lutava bravamente pela vida, não por
uma mera sobrevivência, mas pela qualidade do pouco tempo de vida que lhe restara.
A cada plantão eu via sua doença avançar, mas não a via, em nenhum
momento, se lamentar. Quanto mais a conhecia, mais admirava sua bravura perante
o câncer. Certo dia ela tocou a campainha e chegando no quarto, vi que o chão estava
sujo de vômito. Ela rapidamente se desculpou, mas falei que não se preocupasse.
Perguntei se estava ainda muito enjoada e ela me falou algo que nunca vou esquecer:
sua mãe havia saído e ela queria fazer uma surpresa, que era comer tudo para fazer
a mãe dela feliz. Isso me marcou muito profundamente: vê-la se esforçando mesmo
tão debilitada, para fazer sua mãe feliz. Percebi o quanto eu estava no caminho certo,
pois tinha certeza que nossos filhos querem nossa felicidade, independente da forma
que for.
Sua gratidão, educação e gentiliza me surpreendiam a cada plantão, pois via
sua doença avançar a cada dia, porem via a sua dignidade e bravura perante sua
doença e a gratidão pela vida.
Em nosso trabalho lidamos com uma grande variedade de pacientes e
cuidadores diferenciados, com visões e conhecimento diferentes em relação à
doença. Passamos por situações estressantes, seja pela má informação, seja pela
dificuldade de aceitação. Procuramos sempre dar o melhor de nós, mas muitas vezes
somos mal interpretadas. O acolhimento na finitude é algo muito novo na sociedade
Eterna Túlasi

brasileira, mas procuramos informar da melhor forma possível. Sabemos que


nascemos, crescemos e morremos e que devemos ser acolhidos em todos esses
momentos. Fornecer qualidade de vida na sobrevida é algo muito muito importante
quando temos um ente querido sem possibilidade de cura.
No dia de sua partida, eu estava de plantão em outro andar, mas tive a
oportunidade de me despedir de Túlasi. Quando entrei no quarto ela estava ao lado
de seus irmãos que tanto amava, e de sua amada mãe, segurando sua mão e
acariciando seus cabelos. Cheguei bem pertinho dela e agradeci por todo
aprendizado que ela me deixou pois foi um momento muito belo em minha
profissão. Eu estava presenciando a realização de seus desejos, no que pediu para ser
providenciado para sua partida, ao das pessoas que amava. Sei que pode parecer
triste, mas é intenso amor e eterno na alma.
Algum tempo depois sua mãe veio me procurar, dizendo que Túlasi tinha
falado para ela que quando ela não estivesse mais entre nós, deveria me procurar,
pois eu poderia ajudá-la a enfrentar a perda. Respondi que não havia problema e que
seria um prazer, pois em nenhum momento faço de minha experiência uma história
triste, mas sim uma história de vida, amor e felicidade, que me tornou um ser
humano melhor. Agradeço a DEUS ter-me dado meu filho, mesmo por pouco tempo
(apenas três anos), mas foi tempo suficiente para eternizar meu amor.
E foi assim que a linda Túlasi, com sua percepção, transformou um simples
contato profissional numa bela amizade.

Sheila Rosa Ribeiro de Almeida.

“Aprender a olhar para a vida em sua plenitude, sabendo que a morte é parte dela.
Este é o legado que a história de vida da Túlasi deixou comigo. Não olhar para a
morte apenas com sofrimento e desespero, mas encará-la como parte de uma história
que é muito maior. A história dela tocou a vida de todos ao seu redor para lembrar
o que realmente é importante: Tirar o olhar desse dia a dia que nos consome, mas é
passageiro, e olhar para o que é eterno...”

Wladimir Rodrigues
Eterna Túlasi

Querida Túlasi,

A vida terrena é um meio de evolução, uma passagem, um trecho de nossa vida


espiritual e eterna. Por você, refletimos sobre o viver e o morrer, a saúde física,
os amigos que muitas vezes estão mais próximos que familiares, sobre a finitude
material... Você nos deu a oportunidade de refletir sobre o que realmente importa,
sobre o que verdadeiramente nos une: o amor. Por tudo isso, só devemos ter gratidão!
Com o coração agradecido, lhe desejo uma passagem plena e que você encontre paz
e serenidade entre os seus. Por aqui, nos mantemos forte em nossa caminhada com
a lembrança de tudo de melhor que essa experiência nos proporcionou.
Lara Oliveira Mariani

Túlasi,

Escrever sobre você não é algo fácil de fazer.


Na verdade não a conheci pessoalmente. No carnaval de 2012, me inseri na sua
vida, em uma situação atípica: durante um processo de mal-estar de sua amada mãe,
foi quando ouvi sua voz do outro lado da linha. “Oi sou a filha da Wal, nossa família
está no Rio, se você precisar de qualquer coisa, me ligue: obrigada por cuidar de
minha mãe. ”
Depois, acompanhei um pouco sobre você, desde sua formatura.
Durante seu processo de internação, sua mãe criou um grupo que compartilhou
informações sobre seu estado. Foram momentos de orações, alegria, alívio, dor,
sofrimento, ansiedade, luto e hoje saudades!
Você uniu um grupo de pessoas, de diferentes religiões. Ensinou-nos a amar,
sem nos lamentar ou reclamar. Fez da adversidade um estímulo e transformou dor
em sorriso.
Saudades sim, tristeza não! Eternamente você estará em nossos corações...
Carmem Paes
Eterna Túlasi

Minha irmã sempre foi um anjo, passamos uma infância curta juntos, mas
vivemos muitas coisas importantes, memórias boas, felizes e alegres. Quando éramos
pequenos, eu e meus irmãos fazíamos muitas coisas juntos e como todo irmão,
também brigávamos um pouco. Mesmo tendo sido o início da minha vida, trago
muitas lembranças dessa época, como o dia que ela nos contou, chorando, sobre o
acidente de avião da banda Mamonas Assassinas, que era a nossa banda líder das
brincadeiras e danças nos fins de semana.
Às vezes em que acabava a luz e ficávamos todos juntos para se proteger dos
monstros e fantasmas... A vez em que nossa querida mãe se machucou e cuidamos
dela juntos. As brincadeiras com “tazos”, e até algumas lembranças ruins também,
como no dia que fomos escondidos brincar no parquinho do bairro e um cachorro
me mordeu, e a Túlasi como sempre me protegeu, com instinto de irmã mais velha.
Mas a vida é cheia de surpresas, e um dia passamos a morar em cidades
diferentes. A partir disso fiquei mais sozinho, sem muitos amigos. Mas sempre, eu e
meus irmãos, dávamos um jeito de conversar. Eu tinha uma conexão bem forte com
a Túlasi, sempre senti muita falta dela, então arrumei uma forma de diminuir a
distância que havia ente nós, sempre que via uma flor de seda voando pelo ar, pegava
ela na mão e junto a minha boca falava uma mensagem que eu gostaria que minha
irmã ouvisse, e soprava ela no ar, para que o vento levasse a flor até onde minha irmã
estivesse e ela pudesse ouvir, coisa de criança, mas que diminua um pouco a distância
e confortava meu coração. Por incrível que pareça, nunca falei sobre isso a ela, talvez
por falta de oportunidade.
Ficamos bastante tempo sem nos encontrarmos pessoalmente, e quando nos
vimos novamente, confesso que foi um pouco estranho, mas foi bom ver os meus
melhores amigos novamente.
Depois dessa fase, nós nos vimos com mais de frequência e todas as vezes foram
muito especiais, pois sempre vinha aquele gostinho da infância. Nessa nova etapa da
nossa vida, eu e a Tutty fizemos bastante coisas junto, passamos tardes em sítios,
conversando na piscina, fazendo móveis, almoçando no shopping, tomando cerveja
juntos e estivemos na formatura da nossa mãe.
Eterna Túlasi

Também passamos um final de ano maravilhoso com ela em Unamar, uma


cidade litorânea do Rio de Janeiro. E assim a vida seguiu, dia após dia, a distância
ainda nos separava, mas com a tecnologia, conversávamos com mais frequência.
Até que um dia, recebi uma chamada da minha mãe, com uma notícia muito
difícil, a notícia que minha irmã tinha adoecido. Foi um choque pra mim, fiquei dias
com aquilo na cabeça e sem coragem de falar com a Tutty. Não vinham palavras que
eu pudesse usar para confortar o coração dela.
Até que um dia criei coragem e falei com ela. Confesso que dentro de mim eu
tinha a certeza que aquela doença era temporária, e que ainda viveríamos muito
tempo juntos, pois tinha certeza que ela ia vencer essa batalha, pois ela sempre foi
uma mulher muito forte, guerreira e determinada, mesmo sabendo que se tratava de
uma doença perigosa e muito complicada. As notícias que chegavam com o passar
dos dias não eram das melhores.
Até que um dia eu não aguentei e tive que ir até ela, dar um abraço, um cheiro,
e um beijo bem forte na minha irmã. Foi uma viagem maravilhosa, não contei a ela
que ia visitá-la.
Quando cheguei ela estava no hospital, dormindo. Foi muito bom vê-la, poder
sentir sua energia e ver seu sorriso. Nos dias que estive lá, fizemos bastante coisa,
jogamos videogame, conversamos muito, pintamos, mas a melhor parte da viagem,
foi
o dia que ela teve alta do hospital, ver a alegria dela em sair de lá e respirar o ar puro,
poder assinar a alta da minha irmã, foi um dia muito feliz, regado a muita música e
choros de alegria.
Voltei pra minha cidade com ainda mais certeza que ela ia vencer essa doença,
E eu não estava errado. Durante esse período da doença, ela foi muito forte, resistiu
com muita garra e força. Infelizmente ela veio a falecer, mas como já disse
anteriormente, ela derrotou a doença, e pode descansar em paz.
Em homenagem a ela, fizemos uma festa ao estilo mexicano, com caveiras
coloridas, guacamole, tacos, tequila e muitas outras coisas. Foi muito divertido,
estávamos em família, com pessoas que amamos muito, ouvimos as músicas que ela
mais gostava, decoramos a Floresta da Tijuca com fotos dela, lembranças.
Conseguimos juntar todos os irmãos novamente, e tivemos uma tarde muito
boa. A escolha dela era ser cremada, e assim foi. Neste dia, fizemos um buraco junto
Eterna Túlasi

a uma arvore, e todos que estavam presentes depositaram um pouco das cinzas dela
ali, assim transformando nossa irmã em parte da natureza.
Hoje, ficam muitas lembranças, muita saudade, uma vontade de ter feito um
pouco mais, mas a certeza de que onde ela estiver, ela está cuidando de nós e
iluminando nosso caminho.
Como disse no início, a Tutty sempre foi um anjo em forma de pessoa, e nos
ensinou que devemos amar o próximo sem julgar, sem descriminar e sorrir sempre,
mesmo em situações difíceis. Tutty, te amarei para toda eternidade.

De seu irmão caçula, Carlinhos


.
Eterna Túlasi

Última mandala pintada por Túlasi, oito dias antes de partir. No verso, a
dedicatória que fez para mim:

“Mãe, dedico esta pintura a você que é minha enfermeira, psicóloga, cozinheira e
secretária, mas acima de tudo minha melhor amiga. Aproveito ao máximo o tempo que tenho
a seu lado, pois é assim que aprendo a ser humilde sem deixar que meus direitos sejam
tomados. Valente, sem deixar de, vez por outra, chorar um pouco. Com você aprendo muito,
inclusive a aproveitar a vida. Te amo muito, de todas as formas e em qualquer situação,
mesmo internada no INCA 4, sinto muita alegria por estar com você. Beijos, Túlasi”.
Eterna Túlasi

“Devemos criar os filhos para o mundo.


Torná-los autônomos, libertos, até de nossas ordens.
Então, filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém
além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos
e de aprendermos a ter coragem”.

J. Saramago

Nossa família, onde Túlasi vive dentro de cada um de nós!


Eterna Túlasi

MAIS “COISAS DE TÚLASI...”

A morte física de nossos filhos tem o mágico poder de continuar gerando vida,
energia e amor, basta que estejamos abertas para isso. Aqui, compartilho com vocês
um pouco das coisas boas e belas que surgiram após essas perdas. Pois é importante
para que possamos perceber que a morte física não é o fim de tudo...
Algum tempo depois que Tutty faleceu, decidi fazer uma tatuagem. Optei por
uma Flor de Lótus, que se nutre do lodo para poder florescer. Achei uma boa
analogia com o processo que vivenciamos. Inclui a letra K, de nosso sobrenome e as
letras dos nomes de meus filhos e netos. Incluí o símbolo do infinito e pouco tempo
depois, o V desenhado aleatoriamente, se transformou numa singela homenagem à
minha neta Valentina, nascida meses depois. O resultado foi esse aí:

Fora isso, quando retornei para Brasília, conheci uma psicóloga que trabalhava
com luto e estava realizando uma pesquisa sobre cuidados paliativos, autonomia do
paciente e diretivas antecipadas de vontade. Acabei indo dar o meu depoimento
sobre minha experiência como familiar. Ela acabou utilizando o caso da minha filha
para ilustrar sua dissertação de mestrado. Compareci à defesa, muito feliz por nossa
história servir para o desenvolvimento de um trabalho acadêmico.
Acabamos nos tronando amigas, pois tínhamos bastante em comum. Os meses
se passaram e, certo dia, ela comentou comigo sobre sua infância em Cabo Frio.
Fiquei surpresa e perguntei onde estudara por lá. Pasmem! No mesmo colégio que
Eterna Túlasi

Túlasi, com um ano de diferença. Conversando com meus outros filhos que ainda
vivem lá, um deles me disse se recordar dela, pelo nome diferente e aparência.
Tempo depois, Keyla foi aprovada num programa de doutorado na Escócia e
eu lhe pedi um favor. Tutty sempre adorou o Reino Unido e sonhava estar por lá.
Certa vez ganhara uma garrafa de whisky escocês que guardava para tomar gole por
gole apenas em ocasiões raras e especiais. Então, aproveitei a oportunidade e
entreguei um pouco das cinzas dela para que Keyla levasse até o Castelo de
Edimburgo e desse um lar póstumo para minha princesa. E assim foi, mas ela me
surpreendeu: além de deixar um pouco das cinzas no castelo, levou-as também para
uma destilaria de whisky famosa e para o alto do monumento a Scott que é um
tributo ao mais famoso autor escocês, Sir Walter Scott (1771-1832). A torre, em estilo
gótico vitoriano, tem 60,9 metros de altura e se diz o maior monumento do mundo
a um escritor. Como uma boa devoradora de livros clássicos ingleses (ela adorava
Jane Austen, por exemplo) que era, tenho certeza de que teria ficado muito feliz com
a homenagem.
Eterna Túlasi

Além disso, de forma bastante curiosa, três pessoas bem próximas a mim e a
ela, engravidaram perto do mês do primeiro aniversário de morte dela. Uma delas,
já perto do nascimento, me confidenciou que teria feito um pedido pra ela, em
pensamento, no dia em que cantamos parabéns pelos seus 31 anos de existência –
que se agora já não era mais terrena, se eternizava em nossos corações. Isso nos
deixou intrigadas, afinal, de acordo com a tia de Maíra que havia recebido notícias
de nossos filhos num Centro Espírita, Túlasi havia ficado responsável por cuidar de
almas de crianças, já que eram uma outra grande paixão dela – a despeito de jamais
Eterna Túlasi

ter cogitado em ser mãe. Ela dizia que crianças são maravilhosas, mas exigem muita
dedicação e ela queria se voltar para sua carreira profissional.
Mas surpreendente mesmo foi um outro episódio envolvendo uma conhecida
de longa data. Para preservar a família, vou chamá-la de “Olga”. Ela entrou em
contato comigo, mais de um ano depois da morte de Túlasi, bastante angustiada,
após seu filho (na época com cerca de 30 anos) ter recebido o diagnóstico de câncer
de pâncreas. A despeito dela possuir uma família extensa, muitos amigos e estar bem
amparada pela equipe do hospital onde ele se tratava, ela me disse que sentia que
apenas outras mãe, que tivesse passado o mesmo que ela poderia compreender
exatamente o que ela estava vivendo. Pediu que conversássemos pois ela queria
poder entender um pouco melhor tudo o que viria pela frente. Hesitei, confesso e,
mais uma vez, consultei o grupo de amigas. Novamente a resposta geral foi a mesma:
achavam que eu me exporia novamente ao mesmo tipo de sofrimento e que isso
poderia me fazer ainda mais mal. Porém, eu me lembrei muito da Sheila, aquela
enfermeira que foi para mim um verdadeiro farol em meio à minha dor. Pensei que
ela, diariamente, consolava outras mães e que eu teria sofrido bem mais se não fosse
o olhar, o sorriso e o abraço dela me garantindo que eu ficaria bem depois um tempo.
Como eu poderia me negar a passar isso adiante? Mas sentia medo... Decidi ligar
para Mabel, minha psicóloga do luto e pedi sua opinião. Mais uma vez ela foi
certeira: conhecendo como me conhecia, achou que seria uma excelente ideia para
que eu superasse um pouco da aversão à doença. Me disse que por não se tratar de
um parente direto à exposição à dor não seria tão intensa e que meu desejo de ajudar
poderia auxiliar a transformar a situação para mim e para eles.
Decidi tentar e marquei um café com Olga na lanchonete do hospital onde
seu filho “Kike” estava internado. Ela, naturalmente, estava devastada, cheia de
dúvidas, tristezas e muito, muito medo, como era de se esperar. Me vi há pouco mais
de um ano atrás, cheia de olheiras, nervosa, ansiosa e querendo fazer qualquer coisa
para salvar minha filha. No meio de nossa conversa o telefone tocou e ele pediu que
subíssemos ao seu quarto para conversar com o médico. Tremi nas bases, não estava
ainda preparada para aquilo, naquele dia. Sentia que precisava de um pouco mais de
tempo para ir me reaproximando do ambiente hospitalar novamente. Mas ela
segurou firme na minha mão e com os olhos marejados, perguntou: “você vai subir
comigo, não é”? Como eu poderia negar? Respirei fundo, disse que sim e pedi para
Eterna Túlasi

todos os anjos da guarda, para a alma de Túlasi e Deus me darem forças. Acho que,
mais uma vez, foi a força do amor que me capacitou a fazer tudo que fiz, pois
coragem mesmo eu já não tinha...
Subimos. E a vida, cruel como várias vezes foi comigo, preparou um cenário
quase idêntico ao que eu vivera em meu passado recente: o quatro muito parecido, a
mesma disposição dos móveis, da TV e do sofá. Parecia que apenas haviam trocado
o personagem daquela história de terror e agora eu via aquele lindo rapaz, de olhos
azuis e sorriso largo me cumprimentar, ligado a fios e aparelhos. Mas de algum lugar,
dentro de mim, um desejo imenso de levar um pouco de segurança, alegria e conforto
me tirou da paralisia e evitou que eu caísse no choro. Sorri e consegui dizer oi.
Perguntei se ele se lembrava de mim, pois havíamos nos visto apenas duas vezes no
passado, mas ele respondeu que sim. Perguntou: “Walleska, não é”? O meu segundo
nome, usado mais pelos amigos chegados. Respondi que sim. E foi sorrindo e
beijando minha mão, que ele inaugurou a forma carinhosas com a qual me trataria
pelos meses seguintes: “Walleskinha, que bom que você está aqui”. Percebi que a
mãe dele já deveria ter falado algo a respeito da morte de minha filha e ele sabia que
eu entendi o que eles estavam passando.
E foi assim que se iniciou uma linda história de amor fraterno que eu jamais
esquecerei, afinal, se eu não pude levar a cura até o Kike, ele conseguiu trazê-la até
mim...
Nos meses seguintes eu os acompanhei em diversos momentos, de visitas em
casa a consultas no hospital até passeios após a quimioterapia. Notava que ele se
mantinha alegre, esperançoso e otimista. Brincava, fazia graça e a despeito de saber
da gravidade do quadro, não se deixava abater. Já sua mãe estava muito mais abalada
e nervosa. Notava sua revolta, a ansiedade o inconformismo e a angústia diária
diante de cada exame realizado. Não era fácil, eu sabia muito bem disso. Mas com a
diferença que eu, de alguma maneira misteriosas – que confesso não entender bem
até hoje – dei conta de me manter relativamente calma durante boa parte da doença
da Túlasi.
E foi justamente essa diferença que fez com que o Kike tivesse me procurado
algumas vezes para ter – segundo ele – conversas que não conseguiria ter com a mãe,
pois a machucaria demais. Assim, foi para minha casa e para alguns cafés que fomos
para poder conversar sobre o que ele achava que não seria bom conversar com ela.
Eterna Túlasi

Ele pediu que eu contasse toda a história da minha filha e me pediu o livro. Não dei.
Respondi, brincando, que era um livro triste e que ele já sabia que a heroína morria
no final. Mas respondi tudo o que ele me perguntou sobre exames, progressão da
doença, possibilidades terapêuticas etc. Um dia, ele viu a foto dela em minha estante
e me prometeu que quando chegasse “lá em cima” daria um beijo nela por mim e
diria que eu estava seguindo firme e forme como havia prometido. Mal sabia ele que
nem tão firme e nem tão forte assim como ele pensava...
Até que um dia, veio a conversa mais difícil de todas: ele queria me contar
seus desejos para antes e após partir e queria que eu ajudasse a mãe dele a realizá-los
e a continuar de pé após a sua partida. Não era tarefa fácil! A essa altura ela já havia
brigado com uma das profissionais da equipe do hospital que havia dado o
diagnóstico de terminalidade ao Kike. Acreditava que aquilo iria deixá-los sem forças
para continuar lutando com otimismo. E eu não tive coragem de lhe relembrar que
já não havia mais batalha alguma a ser travada pela frente. O que lhes restava eram
preciosos momentos para serem compartilhados e vividos, isso se ela tivesse a
serenidade necessária. Não foi nada fácil. Cada família e cada pessoa é um universos
de histórias, contextos e subjetividades diferentes e é lógico que a história deles
transcorreu diferente da minha.
Mas um episódio que me marcou muito foi quando os acompanhei a uma
consulta com o oncologista. Ele era um dos diretores do hospital particular onde ele
se tratava e parecia mais uma mistura de pop star com um pavão narcisista: jaleco
engomado, uma sala chic, peito estufado e cara de quem sabe mais do que todo
mundo, sobre tudo, na vida! Sem rodeios, começou a descrever como seria a
quimioterapia paliativa do Kike, qual dia, quantas sessões etc. Como eu havia sido
apresentada como “tia” (do contrário nem poderia estar ali), interrompi o médico e
disse: “SE ele quiser, não é mesmo”? O Dr. Engomadinho me olhou como se eu
tivesse dito o maior dos absurdos. Kike riu da minha audácia. Tive que lembrar que
boa parte dos médicos se apossa do corpo de seus pacientes no momento em que os
admitem para tratamento, deixando de perguntar suas opiniões e de pedir suas
autorizações, como se fossem donos de suas vidas. O médico ficou boquiaberto e
apenas sussurrou: “sim, claro...”. Expliquei ao Kike que, dali pra frente, sua
autonomia com relação ao tempo de vida que lhe restava era a única coisa que ele
podia, ainda, controlar. Ele concordou e, partir dali, notei que ele se manifestava
Eterna Túlasi

contrariamente sempre que algo não lhe agradava. Inclusive para desobedecer as
ordens de dieta (?!?!?!) e encher a cara de hambúrguer quando lhe dava vontade...
Porém, algum tempo depois chegou a hora de eu me mudar de cidade devido
a um convite profissional que eu recebera. Que dilema eu vivi... Sentia meu peito
apertado cada vez que imaginava me afastar deles, antevendo que os piores
momentos ainda estavam por vir e eu, provavelmente, não estaria presente. Mas não
havia alternativa, infelizmente e tive que partir. Fizemos uma pequena festinha de
despedida no mesmo restaurante mexicano que eu lançara o livro e fizera a
comemoração do aniversário da Túlasi. E qual não foi minha imensa surpresa
quando vejo, entrar pela porta, o Kike e sua mãe. Magro, abatido e fraco mas com o
sorriso de sempre no rosto. Fez até a barba e cortou o cabelo! Sem dúvida, naquela
noite, ele foi meu convidado mais especial. Na hora de ir embora, me deram carona
para casa e nossa se despedida foi um abraço enorme, que não se desfazia mais,
regado a muitas e muitas lágrimas, mas com a mútua promessa de nos mantermos
em contato e com um sorriso no rosto. Naquela noite um pedacinho do meu coração
ficou naquela calçada onde dissemos adeus...
Mas como minha vida nunca foi padrão e as surpresas do destino, quase
sempre, são mirabolantes, não foi ali a nossa verdadeira despedida. Poucas semanas
após me mudar para Curitiba, recebia intimação para comparecer à audiência de um
paciente meu do DF. Reservei passagens e dei a notícia ao Kike e à mãe dele. Mas a
audiência foi cancelada de última hora, quando eu já estava de malas prontas. Decidi
viajar assim mesmo, afinal, poderia aproveitar aqueles poucos dias para fazer
companhia para eles. Encontrei Kike alegre no hospital e quando me viu, sorriu,
apertou minha mão e disse: “Eh, Walleskinha, sabia que você estaria aqui comigo
nesse momento...”. Apesar do sorriso dele, senti um frio na espinha, mas pensei que
seria muito improvável que algo acontecesse naqueles dias, pois ele estava bem
disposto e corado. Passamos o dia conversando, rindo e caminhando juntos pelos
corredores do hospital para que ele pudesse exercitar um pouco as pernas.
Confesso que não sabia se eu suportaria passar por tudo aquilo novamente,
ainda que ele não fosse meu filho. O mesmo cenário, a disposição dos móveis do
quarto, os tubos de soro, o oxigênio, tudo isso me dava calafrios e me remetia à cena
funesta da morte da Tutty. Tive medo de passar mal, tremes, cair no choro e, ao invés
de ser a força que eles precisavam de mim, me tornar um problema a mais. Mas
Eterna Túlasi

quando ele sorria docemente e apertava a minha mão, o medo sumia e eu não achava
coragem para ir embora.
No dia seguinte ele já estava mais abatido e um tremor nos olhos foi surgindo.
Ainda assim, nossa esperança se mantinha e buscamos informações com a equipe
médica. Mais um dia chegou e Kike começou a enfraquecer a olhos vistos. Me
preocupei e fui conversar com o médico. Muito resistente, ele deixou nas entrelinhas
que o desfecho estava chegando e avisou que não seria possível controlar alguns
sintomas que começavam a surgir, como o tremor dos olhos, a febre e outras coisas
piores que estavam por vir. Como eu já havia conversado com ele e a mãe sobre o
conforto paliativo que poderia ser administrado nos momentos finais, tentei, da
forma mais sutil possível, dizer que uma sedação poderia deixá-lo mais tranquilo e
confortável. Concordaram e o médico veio falar com a família. Antes disso, porém,
perguntei ao médico como deveríamos organizar as visitas, querendo saber quanto
tempo tínhamos. Esperando que ele respondesse “alguns dias”, perdi o ar quando ele
disse “até 18h no máximo”... Procurei avisar a mãe dele da maneira mais sutil
possível, dizendo que seria bom ele estar cercado por todos, que isso poderia lhe
transmitir amor e segurança. E assim foi, em poucos minutos muitos parentes e
amigos chegaram, trazendo carinho e suporte emocional.
Quando um pouco de silêncio se instalou no local, ele olhou pra mim com
aqueles enormes olhos azuis e agradeceu. Ainda pediu desculpas por me fazer passar
por tudo aquilo novamente. Mas foi ali que eu percebi que quem tinha que agradecer
era eu. Movida pelo amor fraterno que eles me despertaram, coloquei minha dor de
lado para viver, da melhor forma possível, aqueles instantes. De alguma maneira
mágica e incrível, já não doía tanto quanto antes e o que mais me importava era que
eles ficassem bem. Entendi que quando cuidamos da dor do outro a nossa própria
diminui e que, graças ao Kike, eu já conseguia lidar com tubos e hospitais novamente
Pouco tempo após ele ser sedado, a mesma febre que Túlasi teve se instalou.
E me vi ao seu lado, na cama, molhando seus lábios por causa do ressecamento do
oxigênio da mesma forma que havia feito com ela. Tive medo, mais uma vez, de não
aguentar. Mas ele não soltava a minha mão e quando eu olhava para sua mãe,
imaginava que para ela poderia ser bem pior se eu não estivesse ali. E foi assim, de
mãos dadas comigo e com ela que ele deu seu último suspiro...
Eterna Túlasi

Pedi que os presentes deixassem a mãe a sós para se despedir do corpo do


filho. Mais uma vez deixei a emoção de lado, pensando em como poderia ser útil
naqueles momentos tão difíceis. Perguntei quem providenciaria o funeral, se
avisaram os familiares e amigos distantes etc. Ao retornar para o quarto junto com
algumas outras pessoas, notei que ela começara a embalar os pertences que haviam
levado para o hospital. Os familiares tentaram dissuadi-la, pedindo que ela deixasse
aquilo pra depois. Mas eu entendi e pedi que a deixassem fazer da maneira que ela
queria, afinal, fizera o mesmo há pouco tempo atrás. Estas atividades nos ajudam a
organizar as emoções, nos concentrarmos em outra coisa que não seja a dor, ainda
que por pouco tempo e podem representar um respiro numa situação tão complexa.
E foi assim que dei o último beijo e meu adeus ao Kike...

O BOSQUE DOS ANJOS


Como eu e a mãe do Kike, muitas outras mães perdem seus filhos e não sabem
onde obter apoio. Algumas semanas após a morte da Túlasi busquei por grupos de
mães em luto, na internet. Foi pavoroso. Só encontrei postagens de dor, lamentação,
declarações de sofrimento eterno, lágrimas etc. Sem dúvida que as dores nos assolam,
mas eu não encontrei nada sobre tentativa de seguir adiante, depoimentos de
superação desta fase mais aguda de sofrimento, testemunhos de como manejar o luto
de uma forma mais saudável e adaptativa.
Até que, durante uma palestra sobre o tema, conheci a Virgínia. Ela acabara
de perder o filho num acidente em uma cachoeira e criara uma campanha pelo
ecoturismo seguro, #CachoeirasSeguras. Queria seguir adiante, mas também sentia
a pressão de uma sociedade que, de fato, cobra o sofrimento eterno (mas que, ao
mesmo tempo e contraditoriamente, condena quem o supera). Muitas coincidências
nos unem. O nome da clareira onde estão as cinzas da Tutty é Gruta Paulo e Virgínia
(nome do pai do Cacá) e nossos filhos tinham várias coisas em comum apesar de não
terem se conhecido neste plano. Gostamos de pensar que onde se encontram agora
podem observar nosso esforço de seguir adiante, além das constantes homenagens
que sempre prestamos a eles.
Eterna Túlasi

Deixo aqui a música de Cacá e Virgínia, que também tem muito significado
para mim:

PINK FLOYD - WISH YOU WERE HERE


https://www.youtube.com/watch?v=vLdPL3xvq3M

Foi com ela que entrei para um grupo de WhatsApp e depois outro, conheci
uma mãe aqui e outra ali e fomos tomando forma enquanto um grupo de mães que
tem em comum um Amor incondicional (que prescinde da presença física), imenso
e eterno pelos nossos filhos. Mas que desejamos fazer coisas construtivas com este
amor, para além de apenas chorar. Dizemos que a dor é inevitável, mas a
manutenção de um estado contínuo e perpétuo de sofrimento, não. Portanto, a
despeito de sofrermos nas datas especiais (aniversários, Natais, Dia das Mães etc.)
também celebramos seus nascimentos, suas vidas, seus exemplos. Fazemos pic-nics,
brunches, idas ao cinema, frequentamos cursos, palestras etc. Tempos depois uma
destas mães conseguiu, junto ao governo do Distrito Federal, a autorização para a
criação de um bosque, dentro do Parque Olhos D´Água – na Asa Norte – onde
plantamos dezenas de Ipês, de várias cores, em homenagem aos nossos filhos que se
foram deste plano. Esta árvore floresce em plena seca do Cerrado brasileiro,
provando que mesmo onde a vida é improvável, ela pode florescer.
Eterna Túlasi

Deixo algumas fotos deste incrível grupo de mães e de nossas celebrações:


Eterna Túlasi

Acima e à esquerda, nossos filhos. À direita, Virgínia, mãe de Cacá e sua linda e importante
campanha pelas #CachoeirasSeguras. Abaixo, à esquerda, Cacá e Túlasi fazendo turismo em Itaipú, em
momentos diferentes, mas no mesmo ano (eles fazem aniversário na mesma semana também). E à direita,
eu ao lado da bicicleta do filho da Renata Aragão, #VivaRaul.

Gostaria de dizer que enquanto preparava esta segunda edição do livro Túlasi
se transformou em vida novamente, através de meu entusiasmo em divulgar sua
história, no imenso carinho que tive ao selecionar as fotos, na emoção imensa ao
ouvir suas músicas e assistir, uma vez mais os seus vídeos. Ainda aprendendo a ser
uma mãe de estrela – de anjo ou Luz, como preferirem, vou desenvolvendo esta
Eterna Túlasi

maternidade eterna que não tem um corpo para cuidar, mas tenho o amor eterno por
seu espírito livre, seu legado, seus exemplos, lições aprendidas e milhares de doces
lembranças que sempre acabam por produzir mais histórias, mais vida e mais ações.
A morte física é uma mera ilusão...

Por fim, deixo aqui abaixo duas entrevistas / reportagens sobre a Túlasi:

Entrevista do Jornal Metrópoles sobre luto:


https://www.metropoles.com/materias-especiais/precisamos-falar-sobre-a-
morte-isso-vai-te-ajudar-a-viver

Reportagem da Revista Cláudia sobre Eutanásia:


https://claudia.abril.com.br/noticias/amar-e-deixar-partir-eutanasia-em-grego-
significa-boa-morte-mas-o-tema-ainda-e-polemico-no-brasil/
Eterna Túlasi
Eterna Túlasi
Eterna Túlasi

Quadro de Frida Khalo – “Roots” (raízes) - 1943


Eterna Túlasi

E não esquece:

“Vai ser feliz, a vida é curta!”


Eterna Túlasi

TRILHA SONORA & CLIPS DA TUTTY:

MÚSICAS

LOVE ME LIKE YOU DO – ELLIE GOULDING


Parece apenas uma música romântica, mas ela fala de um amor maior...
https://www.youtube.com/watch?v=GD2_bkNgX5I

KEANE - SOMEWHERE ONLY WE KNOW


A música de nosso lugar, onde um dia estaremos juntas...
https://www.youtube.com/watch?v=I-eF8e4BJ8E

PHARRELL WILLIAMS – HAPPY


Precisa dizer mais?
https://www.youtube.com/watch?v=y6Sxv-
sUYtM&list=PL0b0z5BpzP4RSLOsYgGZSCMELbGclsMti&index=11

AMERICAN AUTHORS - BEST DAY OF MY LIFE


A luta contra o câncer e a libertação final...
https://www.youtube.com/watch?v=Y66j_BUCBMY&list=PL0b0z5BpzP4RSLO
sYgGZSCMELbGclsMti&index=8

KATY PERRY - ROAR


A música do divórcio:
https://www.youtube.com/watch?v=CevxZvSJLk8&list=PL0b0z5BpzP4RSLOsY
gGZSCMELbGclsMti&index=13

FLORENCE + THE MACHINE - DOG DAYS ARE OVER


Libertação:
https://www.youtube.com/watch?v=iWOyfLBYtuU&list=PL0b0z5BpzP4RSLOs
YgGZSCMELbGclsMti&index=10

DAVID GUETTA - TITANIUM


A Alma das Krüger...
https://www.youtube.com/watch?v=JRfuAukYTKg

ONE REPUBLIC - COUNTING STARS


Uma alma rebelde...rs...
https://www.youtube.com/watch?v=hT_nvWreIhg&list=PL0b0z5BpzP4RSLOsY
gGZSCMELbGclsMti&index=5&t=0s

COLDPLAY - PARADISE
Nossos sonhos profissionais...
https://www.youtube.com/watch?v=1G4isv_Fylg
Eterna Túlasi

QUEEN - WHO WANTS TO LIVE FOREVER


A despedida da vida neste plano...
https://www.youtube.com/watch?v=_Jtpf8N5IDE&list=PL0b0z5BpzP4RSLOsY
gGZSCMELbGclsMti&index=5

PINK FLOYD - WISH YOU WERE HERE


A música da Virgínia e do Cacá
https://www.youtube.com/watch?v=vLdPL3xvq3M

KHADJA NIN MAMA


Minha música do luto
https://www.youtube.com/watch?v=56Aw23Xuvs8&list=PL0b0z5BpzP4RSLOs
YgGZSCMELbGclsMti&index=7

CHICO BUARQUE E ZIZI POSSI: PEDAÇO DE MIM


Sobre perder um filho...
https://www.youtube.com/watch?v=nRNmIumFui8

AUTO-REVERSE – O RAPPA
https://www.youtube.com/watch?v=vgZwa7GKRCA
Eterna Túlasi

CLIPS

AQUARELA – Toquinho
Sobre nossas pinturas de Mandalas...
https://www.youtube.com/watch?v=IG1ZU56tsdo

POESIA “MÃE” – BRÁULIO BESSA


Túlasi programou para eu só abrir o e-mail com este clipe depois dela falecer. Uma
homenagem muito doce...
https://www.facebook.com/livrotulasi/videos/503340823199614/

DIA DE LOS MUERTOS – MÉXICO


Como os mexicanos possuem uma visão bela sobre a morte
https://www.youtube.com/watch?v=jCQnUuq-TEE

PEHAPS LOVE
Sobre meu amor por minha estrelinha linda
https://www.youtube.com/watch?v=Fpt95PYe9xk
Eterna Túlasi

FILMES QUE ASSISTIMOS E NOS INSPIRARAM

PRONTA PARA AMAR


O filme de onde Túlasi buscou a ideia de fazer uma festa ao invés de um funeral:
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-172914/

A CULPA É DAS ESTRELAS


Nos identificamos com várias situações!
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-218926/

50 / 50
Uma visão mais realista sobre como é viver com câncer na juventude
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-139824/

ANTES DE PARTIR
Nos ajudou a elaborar alista de desejos
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-114522/

JÁ ESTOU COM SAUDADES


Inspiradora história sobre como apoiar pessoas em final de vida
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-203476/

PADDLELTON
Uma visão mais realista e menos fantasiosa sobre diagnóstico terminal e o valor das
amizades.
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-262852/

EXTREMIS
Documentário sobre pacientes terminais
https://pebmed.com.br/extremis-os-desafios-das-decisoes-de-fim-de-vida/

COMO EU ERA ANTES DE VOCÊ


Esse eu assisti depois que ela faleceu e é uma grande lição sobre direito à morte digna.
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-230327/
Eterna Túlasi

SUGESTÕES DE LIVROS

A MORTE É UM DIA QUE VALE A PENA VIVER


https://www.amazon.com.br/morte-dia-vale-pena-
viver/dp/8543107202/ref=asc_df_8543107202/?tag=googleshopp00-
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ENQUANTO EU RESPIRAR
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A RODA DA VIDA
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Eterna Túlasi

AGRADECIMENTO FINAL

Eu agradeço a você que leu até o fim. Pela coragem


de enfrentar um relato denso. Pelo desejo de
testemunhar o Amor. Agradeço pela disposição em
encarar uma nova forma de lidar com tudo isso e
sobretudo por você, com sua leitura, estar eternizando a
história de minha filha. Dizem que uma pessoa só morre
de fato quando o nome dela deixa de ser pronunciado.
No que depender de mim, isso jamais ocorrerá, por isso
escrevi. Que a história dela ajude outros pacientes com
câncer ou outras doenças terminais e suas famílias. E
que ajude a todos a entender que, na verdade, todos
somos pacientes terminais e devemos viver da melhor
maneira possível. Que este PDF corra o mundo e possa
provar que o mundo material é apenas uma ilusão. Que
o Amor é mais forte que a morte e que Túlasi será sempre
a minha Eterna Túlasi...
Eterna Túlasi

Túlasi Krüger – 05/11/1984 a 25/07/2015

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