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1 INTRODUÇÃO
O mal é íntimo da violência, por isso refletir sobre ela é um exercício perturbador,
contudo, apesar de a humanidade alegar sentir repulsa aos efeitos da crueldade, é
silenciosamente atraída por ela. Nessa perspectiva, René Girard consegue identificar uma
ligação íntima entre o comportamento humano e a violência, essa é a temática desenvolvida
1 Estudante, Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Maranhão, campus Imperatriz. E-mail:
mayla_feitosa@hotmail.com
2 Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Maranhão e Professor Adjunto do Curso de Direito da
Universidade Federal do Maranhão. Doutor em Direito pela Università degli Studi Roma Tre. E-mail:
antoniocoelhojr@hotmail.com
por ele em seu primeiro livro Mentira Romântica e Verdade Romanesca, espaço em que
desenvolve sua teoria sobre desejo mimético, que constitui também a primeira parte deste
artigo.
As descobertas de Girard sobre as relações humanas ocorreram por meio da
profunda análise que ele empreendeu das sociedades inaugurais, chegando a essas
conclusões por meio do exame de mitos fundantes de diversas comunidades, da mitologia
grega, além de uma leitura antropológica dos textos bíblicos, em especial dos Evangelhos. O
olhar diferenciado que Girard direciona às sociedades primitivas e ao religioso, permite que
ele descubra a origem da rivalidade humana, da cultura e do sagrado. Num segundo
momento, a investigação sobre a violência mimética é aprofundada e a postura de guerra dos
indivíduos revela a crise mimética enfrentada por sociedades desprovidas de mecanismos de
controle da violência.
A terceira parte do artigo possui uma subdivisão. A parte geral aborda a operação
sacrificial, temática central no pensamento de Girard que é trabalhada de maneira mais
profunda no seu terceiro livro A Violência e o Sagrado. Partindo da percepção de sacrifício
como mecanismo de controle da violência, é estabelecido um ponto de ligação com a teoria
benjaminiana e um diálogo com Freud sobre o assassinato coletivo, que ele descreve em
Totem e Tabu. Ainda nessa parte, a importância dos mistérios do sacrifício é comentada, o
que permite trazer a compreensão de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal.
A subdivisão, por sua vez, aborda que a escolha das vítimas expiatórias possui um
padrão, cujo perfil não permite que o homo sacer seja sacrificado. Nesse ponto, as
observações de Agamben também corroboram para entender o motivo dessa impossibilidade.
Por fim, demonstra-se que o padrão do mecanismo vitimário não foi abandonado na
Modernidade.
O desejo não pode ser gerado na solitude do ser, antes sua estrutura é triangular.
Assim, um sujeito só deseja porque o outro deseja, só enxerga os objetos que motivarão a
sua apropriação a partir de outrem, o indivíduo que o inspira é intitulado de modelo, dessa
forma, entre o sujeito e o objeto desejado sempre haverá um modelo, formando, portanto,
uma triangulação (sujeito – modelo – objeto), de forma que o papel que o “Outro” exerce na
teoria girardiana é central (GIRARD, 1985, p. 25).
É relevante alertar que o desejo mimético possui desdobramentos perigosos, pois a
mimese origina o desejo e o desejo conduz à rivalidade que é a principal fonte da violência
humana. No processo mimético, o modelo acaba por tornar-se rival, a admiração se
transforma em ódio, tudo isso pois o mediador que antes inspirava o sujeito se tornou
obstáculo para a apropriação do objeto de desejo, sendo que o rival torna o objeto cada vez
mais valioso para o sujeito, reafirmando o desejo do outro (GIRARD, 2001, 41).
Ora, agora modelo e imitador possuem desejos convergentes para o mesmo
elemento, constituem óbice um para o outro, momento em que se tornam rivais, quanto mais
intensa fica a competição, mais forte o desejo mimético se torna, pois é a rivalidade mimética
que controla assiduidade e a potência dos conflitos entre os homens (GIRARD, 2001,p. 34).
Thomas Hobbes chega a mesma conclusão sobre a rivalidade mimética, ele alega que “[...]
os homens quando desejam a mesma coisa e não podem desfrutá-la por igual, tornam-se
inimigos e, no caminho que conduz ao fim [...], tratam de eliminar ou subjugar uns aos outros”
(HOBBES, 2014, p. 107).
Girard (2001, p. 41), diante disto, conclui que a intensidade rivalizante anula as
diferenças, haja vista que os papéis vão sendo trocados. Inicialmente, apenas o sujeito imita
o modelo, mas com o estabelecimento da relação triangular, um ciclo mimético se inicia e o
modelo imita o seu próprio imitador. Assim, há uma reciprocidade violenta e uma
uniformização crescente dos participantes do processo mimético, os rivais se tornam cada
vez mais semelhantes, demonstrando que o jogo da violência é um processo de
despertencimento, onde as diferenças vão sendo eliminadas (GIRARD, 1990, p. 68).
Isso porque, na visão de Girard, as relações humanas são estruturadas por uma
dupla imitação permanente, em regra, sempre recíprocas, ele observa que “a relação pode
ser benevolente e pacífica, e pode ser malevolente e belicosa, tudo isso sem deixar, coisa
estranha, de ser recíproca” (GIRARD, 2011, p. 43). Portanto, em face de um contexto de
rivalidade, a mimese é fortalecida. O mimetismo violento é muito mais contagiante, afirma
Girard (2011, p. 44), há uma tendência do indivíduo supercompensar a hostilidade do outro.
Assim, parece notório que os homens são silenciosamente atraídos em direção à violência.
Girard (1990, p. 27) esclarece que o desejo mimético possui a tendência de criar
rivalidades e as rivalidade conduzem à violência, mais preocupante ainda, é que essa
violência é contagiosa e toda a comunidade pode ser atingida por um espiral de conflitos. Isso
porque o ciclo mimético pode se expandir e, uma vez que o próprio desejo mimético é dotado
de mimetismo, alcançar outros indivíduos dispostos a competirem pelo mesmo objeto, pois a
rivalidade entre os sujeitos da relação mimética atrai a atenção de terceiros, ensejando-os a
desejarem o mesmo objeto e entrarem na disputa, intensificando a violência entre os
indivíduos, uma sequência de reações nesses parâmetros acumulariam conflitos, invejas,
ciúmes e violências numa escala tão generalizada que poderia provocar a extinção do
agrupamento social.
3 VIOLÊNCIA MIMÉTICA
Zygmunt Bauman, ao comentar sobre o Holocausto, um dos momentos mais
perturbadores do século XX, esboça um pensamento que segue a lógica girardiana,
declarando que “a crueldade é social na origem, muito mais que fruto do caráter” (BAUMAN,
1998, p. 194). A violência, na perspectiva de Girard, é consequência da rivalidade mimética e
é uma ameaça para todo agrupamento social, por isso que, em Girard, a violência coletiva e
intestina ganha um enfoque especial, pois ele se dá conta da natureza social da violência,
uma vez que é consequência do desejo mimético, este por sua vez só pode germinar em um
contexto de interindividualidade, numa relação triangular.
Porém, o pensador francês alerta que “a violência parece estar presa num processo
de escalada que lembra a propagação do fogo, ou de uma epidemia” (GIRARD, 2011, p. 32).
De modo que, embora essa manifestação conflituosa seja aparentemente concentrada, a
violência é tão contagiosa que pode engendrar um processo de contaminação que coloque
em risco à sobrevivência do tecido social. Um ciclo mimético em larga escala resultaria num
contágio desenfreado de violência e vingança, essa fase caótica é – segundo denominação
girardiana – uma crise mimética. Essa crise, que compreende a violência intestina constitui
ameaça à existência da comunidade, são as rivalidades, a concorrência, as desavenças, os
ciúmes entre os indivíduos, consequências diretas das relações miméticas.
Esse caos decorrente da escalada da violência mimética, isto é, a crise mimética e o
próprio processo mimético em si, é também designado por Girard (2001, p. 13) como
skándalon. Esse termo, utilizado na narrativa bíblica quando se trata de uma pedra de tropeço,
um óbice, uma armadilha, é usado por Girard no mesmo sentido e como sinônimo de
rivalidade mimética, tornando-se expressão-síntese de todo o ciclo mimético, sobretudo da
transformação do modelo em rival, em obstáculo, em ocasião de queda (GIRARD,1990, p.
185) .
A crise mimética, ou se preferir, o escândalo, conduz inevitavelmente para a dinâmica
do “todos contra todos”, que nada mais é que uma postura de guerra. Esse estado é, segundo
Hobbes, resultante da ausência de um poder capaz de manter os homens numa atitude de
respeito, inexistem instituições e mecanismos de controle dessa violência endógena. Hobbes
recorda que:
[...] a guerra não é apenas a batalha ou o ato de lutar, mas o período de tempo em
que existe vontade de guerrear [...]. Nesse tempo, [...] há um temor contínuo e a
ameaça de morte violenta. A vida do homem é, então, solitária, pobre, embrutecida e
curta (HOBBES, 2014, p. 108)
Durante a crise mimética a comunidade está debilitada pela violência que ameaça sua
existência, os seus membros caminham para a destruição mútua. Aqui, surge então, segundo
René Girard (1990, p.14), a hipótese de substituição. Nesse caso, a violência que inicialmente
direcionada para a vítima genuína – o rival - é redirecionada para uma vítima substituta, tendo
em vista que “a violência não saciada procura e sempre acaba por encontrar uma vítima
alternativa” (GIRARD, 1990, p. 13). O intelectual francês afirma, ainda, que não
necessariamente essa substituição é realizada com base numa semelhança entre as vítimas
ou numa análise de culpa ou inocência, mas na procura insaciável da ira por um vulnerável
que esteja ao alcance para ser tragado.
A crise mimética, que consiste na proliferação da rivalidade e intensificação da
violência, facilita a substituição sacrificial, pois causa uma espécie de embriaguez, de
desequilíbrio e confusão mental (GIRARD, 2011, p. 86), momento em que ocorre a troca do
rival mimético pelo bode expiatório unânime, que sofrerá por toda a comunidade. Daí a
importância da escolha acertada das vítimas, haja vista que constituem elemento essencial
para a realização do rito sacrificial, pois durante o sacrifício deverá ocorrer “[...] um
deslizamento ‘metonímico’ dos membros da comunidade às vítimas rituais” (GIRARD, 1990,
p. 339).
Girard (1990, p. 338) segue afirmando que a escolha das vítimas é uma tentativa de
encontrar uma “categoria intermediária” entre a comunidade e o sagrado, o interno e o
externo. A escolha se dá, portanto, como assevera o autor, entre grupos que não são
exatamente exteriores, mas que se encontram marginalizados na sociedade, como escravos,
crianças, adolescentes, gados, pois nestes casos não há risco de iniciar uma escalada de
vingança. Logo, para ser escolhida, a vítima deve pertencer à comunidade, mas este vínculo
não deve ser tão forte, é preciso prudência e dar preferência para aquelas que não suscitarão
“ondas” de vingança.
É ao observar os critérios para escolha da vítima expiatória que é possível perceber
que o homo sacer não poderia figurar como um bode expiatório, pois ele pertencia ao âmbito
divino e, na sociedade, sua posição não era marginal, e, caso cometesse algo ilícito, era
excluído da esfera humana e entregue aos deuses. O homo sacer pertence a uma esfera
soberana (AGAMBEN, 2002, p. 90)3.
A eleição dos “bodes expiatórios” parece seguir um padrão que não foi abandonado
na Modernidade, como é possível analisar nos relatos de carnificinas, tal qual as que
ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial, especificamente os horrores realizados
durante o Terceiro Reich, em que todos os conflitos da sociedade alemã foram dispensados
em bodes expiatórios – indivíduos marginalizados, com laços sociais frágeis (BAUMAN, 1998,
p. 116).
A rivalidade advinda do desejo mimético é facilmente identificada nesse contexto, uma
vez que a prosperidade dos judeus incomodava os alemães, mas o incômodo e a rivalidade
só exteriorizavam o desejo interno que eles nutriam pelos mesmos objetos que seus
modelos/rivais desejavam ou tinham. Cobiçavam as casas, o ouro, os empreendimentos, as
jóias, as artes e os cargos que pertenciam aos judeus. Por fim, a sociedade alemã canalizou
as frustrações, conflitos, crises e caos existentes desde a derrota na Primeira Guerra Mundial
para seus bodes expiatórios, sacrificando estrangeiros, homossexuais, negros e comunistas.
5 CONCLUSÃO
3Giorgio Agamben explica o homo sacer é a primeira figura que se tem registro que vincula sacralidade e vida,
contudo apesar de ser sagrado, seu assassinato não teria punição. Recapitulando, ele era sagrado, mas se alguém
o matasse não seria punido, entretanto o homo sacer não podia ser sacrificado: “A vida insacrificável e, todavia,
matável, é a vida sacra” (AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG,
2002, p. 90)
O ponto de partida adotado por Girard foi o mesmo marco inicial da argumentação
proposta neste artigo, isso porque o desejo mimético explica a origem de muitas coisas e
propõe novas perspectivas, assim, a partir da compreensão de que o indivíduo depende de
outro para constituir suas vontades, anseios, metas, para, na verdade, construir-se, o
paradigma da subjetividade humana é estilhaçado.
As revelações que se seguem são ainda mais surpreendentes, pois da triangulação
do desejo nascem as rivalidades, estas por seu turno, tendem a se fortalecerem, uma vez que
os sujeitos sempre optam pela troca de provocações e violências. Desse modo, quando os
indivíduos se tornam “pedra de tropeço” uns para os outros, diz-se que a sociedade está
escandalizada, há a prática do “todos contra todos”. Aqui surge, através do mesmo fenômeno,
isto é, por meio do mecanismo do bode expiatório, a cultura e o sagrado.
O sacrifício canaliza todos os conflitos da sociedade em direção de uma única vítima,
o bode expiatório. Aqui, é importante fazer uma ressalva. Por mais que o controle da violência,
isto é, o sacrifício pertença à esfera do sagrado, a operação sacrificial não é uma exigência
divina, mas uma necessidade humana. É pela comunidade que a vítima morre. Não são os
deuses que anseiam pelo sangue dos bodes expiatórios, são os membros da sociedade que
anseiam por esse momento catártico.
Por isso o sacrifício se envolve de mistérios, para que o grupo social não se atente
para os sentidos que podem envolver a imolação das vítimas. A teoria girardiana denuncia a
desmedida violência que os “bodes expiatórios” sofrem, assegurando que deve haver um
esforço para proteger as vítimas que geralmente são sujeitos com fracos elos sociais,
indivíduos marginalizados, denominados na contemporaneidade como “minorias”.
Assim, o “Outro” é o grande protagonista da obra de Girard e o grande beneficiário
das descobertas no campo da violência, no fundo todas as investigações sobre a dinâmica do
comportamento humano, das sociedades, da cultura e do sagrado contribuem unicamente
para a criação de uma lógica de alteridade que supera o mecanismo do bode expiatório e
promove auto sacrifícios que se expressam em ações de perdão e amor, pois a maior ameaça
à humanidade é o próprio homem, é o “potencial bélico” que ele possui em seu interior.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique
Burigo. Belo Horizonte; Editora UFMG, 2002.
BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora 34, 2011.
GIRARD, René. Aquele por quem o escândalo vem. Tradução de Carlos Nougué. São
Paulo: É Relizações, 2011.
GIRARD, René. O sacrifício. Tradução de Margarita Maria Garcia Lamelo. São Paulo: É
Realizações, 2011.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2014.