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A VIOLÊNCIA E OS MISTÉRIOS DO SACRIFÍCIO SOB O PRISMA GIRARDIANO

Maíla Rocha Feitosa1


Antonio Coêlho Soares Júnior2

RESUMO: A violência parece ser onipresente em toda a história


da humanidade. Diante disso, o presente artigo busca – por meio
da profunda investigação de René Girard – apontar a
importância da teoria mimética na compreensão dos conflitos
que ameaçam as comunidades, além de demonstrar que o
sacrifício não se restringe a um ritual religioso, mas está
intrinsecamente ligado ao controle da violência nas sociedades
inaugurais e à origem da cultura. Assim, os apontamentos deste
estudo derivam de dados coletados por pesquisa bibliográfica,
que possibilitaram a abordagem do pensamento de autores
como Walter Benjamin, Hannah Arendt, Freud e Agamben sob a
ótica girardiana.
Palavras-chave: Cultura. Sacrifício. Violência. René Girard.

ABSTRACT: Violence seems to be ubiquitous throughout the


history of mankind. Given this, the present article seeks - through
the deep investigation of René Girard - to point out the
importance of the Mimetic Theory for understanding the conflicts
that threaten communities, besides demonstrating that sacrifice
is not restricted to a religious ritual, but is intrinsically connected
to the control of violence in the inaugural societies and to the
origin of culture. Thus, the notes of this study derive from data
collected by bibliographic research, which enabled the approach
of the thought of authors such as Walter Benjamin, Hannah
Arendt, Freud and Agamben under the Girardian view.
Keywords: Culture. Sacrifice. Violence. René Girard.

1 INTRODUÇÃO

O mal é íntimo da violência, por isso refletir sobre ela é um exercício perturbador,
contudo, apesar de a humanidade alegar sentir repulsa aos efeitos da crueldade, é
silenciosamente atraída por ela. Nessa perspectiva, René Girard consegue identificar uma
ligação íntima entre o comportamento humano e a violência, essa é a temática desenvolvida

1 Estudante, Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Maranhão, campus Imperatriz. E-mail:
mayla_feitosa@hotmail.com
2 Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Maranhão e Professor Adjunto do Curso de Direito da

Universidade Federal do Maranhão. Doutor em Direito pela Università degli Studi Roma Tre. E-mail:
antoniocoelhojr@hotmail.com
por ele em seu primeiro livro Mentira Romântica e Verdade Romanesca, espaço em que
desenvolve sua teoria sobre desejo mimético, que constitui também a primeira parte deste
artigo.
As descobertas de Girard sobre as relações humanas ocorreram por meio da
profunda análise que ele empreendeu das sociedades inaugurais, chegando a essas
conclusões por meio do exame de mitos fundantes de diversas comunidades, da mitologia
grega, além de uma leitura antropológica dos textos bíblicos, em especial dos Evangelhos. O
olhar diferenciado que Girard direciona às sociedades primitivas e ao religioso, permite que
ele descubra a origem da rivalidade humana, da cultura e do sagrado. Num segundo
momento, a investigação sobre a violência mimética é aprofundada e a postura de guerra dos
indivíduos revela a crise mimética enfrentada por sociedades desprovidas de mecanismos de
controle da violência.
A terceira parte do artigo possui uma subdivisão. A parte geral aborda a operação
sacrificial, temática central no pensamento de Girard que é trabalhada de maneira mais
profunda no seu terceiro livro A Violência e o Sagrado. Partindo da percepção de sacrifício
como mecanismo de controle da violência, é estabelecido um ponto de ligação com a teoria
benjaminiana e um diálogo com Freud sobre o assassinato coletivo, que ele descreve em
Totem e Tabu. Ainda nessa parte, a importância dos mistérios do sacrifício é comentada, o
que permite trazer a compreensão de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal.
A subdivisão, por sua vez, aborda que a escolha das vítimas expiatórias possui um
padrão, cujo perfil não permite que o homo sacer seja sacrificado. Nesse ponto, as
observações de Agamben também corroboram para entender o motivo dessa impossibilidade.
Por fim, demonstra-se que o padrão do mecanismo vitimário não foi abandonado na
Modernidade.

2 UMA PROGRESSÃO DESTRUTIVA: IMITAÇÃO, DESEJO E RIVALIDADE

A dependência do Outro para a construção do EU sempre perturbou a Humanidade.


Diante da vulnerabilidade do ser, o ser humano se apega a um individualismo exacerbado,
um autoengano, adotando a crença errônea de que o indivíduo preenche e satisfaz a si
mesmo, processo denominado por Girard (1985, p. 22) como “Mentira Romântica”. Nesse
contexto, o verídico é considerado um delírio humilhante, uma vez que a “Verdade
Romanesca” assegura que os indivíduos são interdependentes, sobretudo, em suas em suas
relações comportamentais, o que motiva inquietação e vergonha. Para Girard (1985, p. 32),
não há desejo espontâneo, tampouco subjetividade autônoma.
Em princípio, Girard (2011, p. 52) esclarece que o homem é cativo da mimese, sendo
ela a essência das relações humanas, ou seja, os elos ou os duelos entre os indivíduos são
formados sobretudo pela imitação e quem imita sempre precisa de outrem que servirá de
inspiração, modelo a ser copiado. Contudo, a teoria mimética não surgiu em René Girard, o
estudo sobre o comportamento mimético já podia ser encontrado no pensamento dos grandes
filósofos gregos, sobretudo em Platão e Aristóteles, porém Girard tornou-se seu principal
expoente por captar um elemento que os estudiosos da mimese negligenciaram: o desejo
mimético como fonte da violência (GIRARD, 2011, p. 36).
O teórico francês compreende que o comportamento humano é regido pelo
mimetismo, de modo que o fator mais subjetivo do indivíduo – o desejo – não é autêntico. Daí
porque, afirma Girard (1990, p. 184), o ser humano não consegue desejar sozinho, somente
mediante imitação, haja vista que o desejo humano é em sua essência completamente
imitativo, pois é contemplando um sujeito, desejando determinado objeto, que o desejo nasce
no íntimo do indivíduo, a atração para um objeto somente pode ocorrer com a mediação do
seu modelo, aquele sujeito que o inspirou e indicou o que deveria ser desejado. É o que ele
esboça ao comentar que:
[...] o desejo é um fenômeno social que começa num desejo já existente, o desejo
majoritário, por exemplo, ou o de um indivíduo que tomamos como modelo, sem ao
menos nos darmos conta disso, porque nós admiramos exatamente porque todo
mundo o admira (GIRARD, 2011, p. 52).

O desejo não pode ser gerado na solitude do ser, antes sua estrutura é triangular.
Assim, um sujeito só deseja porque o outro deseja, só enxerga os objetos que motivarão a
sua apropriação a partir de outrem, o indivíduo que o inspira é intitulado de modelo, dessa
forma, entre o sujeito e o objeto desejado sempre haverá um modelo, formando, portanto,
uma triangulação (sujeito – modelo – objeto), de forma que o papel que o “Outro” exerce na
teoria girardiana é central (GIRARD, 1985, p. 25).
É relevante alertar que o desejo mimético possui desdobramentos perigosos, pois a
mimese origina o desejo e o desejo conduz à rivalidade que é a principal fonte da violência
humana. No processo mimético, o modelo acaba por tornar-se rival, a admiração se
transforma em ódio, tudo isso pois o mediador que antes inspirava o sujeito se tornou
obstáculo para a apropriação do objeto de desejo, sendo que o rival torna o objeto cada vez
mais valioso para o sujeito, reafirmando o desejo do outro (GIRARD, 2001, 41).
Ora, agora modelo e imitador possuem desejos convergentes para o mesmo
elemento, constituem óbice um para o outro, momento em que se tornam rivais, quanto mais
intensa fica a competição, mais forte o desejo mimético se torna, pois é a rivalidade mimética
que controla assiduidade e a potência dos conflitos entre os homens (GIRARD, 2001,p. 34).
Thomas Hobbes chega a mesma conclusão sobre a rivalidade mimética, ele alega que “[...]
os homens quando desejam a mesma coisa e não podem desfrutá-la por igual, tornam-se
inimigos e, no caminho que conduz ao fim [...], tratam de eliminar ou subjugar uns aos outros”
(HOBBES, 2014, p. 107).
Girard (2001, p. 41), diante disto, conclui que a intensidade rivalizante anula as
diferenças, haja vista que os papéis vão sendo trocados. Inicialmente, apenas o sujeito imita
o modelo, mas com o estabelecimento da relação triangular, um ciclo mimético se inicia e o
modelo imita o seu próprio imitador. Assim, há uma reciprocidade violenta e uma
uniformização crescente dos participantes do processo mimético, os rivais se tornam cada
vez mais semelhantes, demonstrando que o jogo da violência é um processo de
despertencimento, onde as diferenças vão sendo eliminadas (GIRARD, 1990, p. 68).
Isso porque, na visão de Girard, as relações humanas são estruturadas por uma
dupla imitação permanente, em regra, sempre recíprocas, ele observa que “a relação pode
ser benevolente e pacífica, e pode ser malevolente e belicosa, tudo isso sem deixar, coisa
estranha, de ser recíproca” (GIRARD, 2011, p. 43). Portanto, em face de um contexto de
rivalidade, a mimese é fortalecida. O mimetismo violento é muito mais contagiante, afirma
Girard (2011, p. 44), há uma tendência do indivíduo supercompensar a hostilidade do outro.
Assim, parece notório que os homens são silenciosamente atraídos em direção à violência.
Girard (1990, p. 27) esclarece que o desejo mimético possui a tendência de criar
rivalidades e as rivalidade conduzem à violência, mais preocupante ainda, é que essa
violência é contagiosa e toda a comunidade pode ser atingida por um espiral de conflitos. Isso
porque o ciclo mimético pode se expandir e, uma vez que o próprio desejo mimético é dotado
de mimetismo, alcançar outros indivíduos dispostos a competirem pelo mesmo objeto, pois a
rivalidade entre os sujeitos da relação mimética atrai a atenção de terceiros, ensejando-os a
desejarem o mesmo objeto e entrarem na disputa, intensificando a violência entre os
indivíduos, uma sequência de reações nesses parâmetros acumulariam conflitos, invejas,
ciúmes e violências numa escala tão generalizada que poderia provocar a extinção do
agrupamento social.

3 VIOLÊNCIA MIMÉTICA
Zygmunt Bauman, ao comentar sobre o Holocausto, um dos momentos mais
perturbadores do século XX, esboça um pensamento que segue a lógica girardiana,
declarando que “a crueldade é social na origem, muito mais que fruto do caráter” (BAUMAN,
1998, p. 194). A violência, na perspectiva de Girard, é consequência da rivalidade mimética e
é uma ameaça para todo agrupamento social, por isso que, em Girard, a violência coletiva e
intestina ganha um enfoque especial, pois ele se dá conta da natureza social da violência,
uma vez que é consequência do desejo mimético, este por sua vez só pode germinar em um
contexto de interindividualidade, numa relação triangular.
Porém, o pensador francês alerta que “a violência parece estar presa num processo
de escalada que lembra a propagação do fogo, ou de uma epidemia” (GIRARD, 2011, p. 32).
De modo que, embora essa manifestação conflituosa seja aparentemente concentrada, a
violência é tão contagiosa que pode engendrar um processo de contaminação que coloque
em risco à sobrevivência do tecido social. Um ciclo mimético em larga escala resultaria num
contágio desenfreado de violência e vingança, essa fase caótica é – segundo denominação
girardiana – uma crise mimética. Essa crise, que compreende a violência intestina constitui
ameaça à existência da comunidade, são as rivalidades, a concorrência, as desavenças, os
ciúmes entre os indivíduos, consequências diretas das relações miméticas.
Esse caos decorrente da escalada da violência mimética, isto é, a crise mimética e o
próprio processo mimético em si, é também designado por Girard (2001, p. 13) como
skándalon. Esse termo, utilizado na narrativa bíblica quando se trata de uma pedra de tropeço,
um óbice, uma armadilha, é usado por Girard no mesmo sentido e como sinônimo de
rivalidade mimética, tornando-se expressão-síntese de todo o ciclo mimético, sobretudo da
transformação do modelo em rival, em obstáculo, em ocasião de queda (GIRARD,1990, p.
185) .
A crise mimética, ou se preferir, o escândalo, conduz inevitavelmente para a dinâmica
do “todos contra todos”, que nada mais é que uma postura de guerra. Esse estado é, segundo
Hobbes, resultante da ausência de um poder capaz de manter os homens numa atitude de
respeito, inexistem instituições e mecanismos de controle dessa violência endógena. Hobbes
recorda que:
[...] a guerra não é apenas a batalha ou o ato de lutar, mas o período de tempo em
que existe vontade de guerrear [...]. Nesse tempo, [...] há um temor contínuo e a
ameaça de morte violenta. A vida do homem é, então, solitária, pobre, embrutecida e
curta (HOBBES, 2014, p. 108)

Isto posto, é perceptível as consequências desastrosas dos conflitos coletivos. Ora, a


implicação da violência ameaça a existência humana não apenas num plano material, mas
principalmente, num plano ontológico e, sobretudo, num plano social.
Segundo o pensar girardiano, a raiz da violência humana é um emaranhado de desejos
miméticos e comportamentos rivalizantes. Girard extraiu suas teorias da análise das
sociedades inaugurais, empreendendo um exame antropológico dos textos bíblicos, mitos
fundantes de diversas sociedades, bem como da mitologia grega. Ele acompanhou o esforço
dessas comunidades primitivas para controlar os seus conflitos e criar um mecanismo que
pudesse conter a contaminação que a violência promove no interior da comunidade, nesse
sentido, ele aduz que:
A cultura humana consiste, essencialmente, num esforço por impedir que a violência
se desencadeie separando e “diferenciando” todos os aspectos da vida pública e
privada que, se abandonados à sua reciprocidade natural, correm o risco de naufragar
numa violência irremediável (GIRARD, 2011, p. 45).

Girard constantemente alerta que a origem da cultura humana é violenta, pois


buscando um meio de controle dos conflitos que afetavam as comunidades, é instituído o
sacrifício, que consiste no controle da violência com a violência. Porém, o mecanismo do bode
expiatório possui efeito conciliador e evita o ciclo interminável da vingança, destaca-se que
antes da cultura não havia nenhuma forma de controle da violência intestina. Diante da
ameaça de desintegração, a hipótese do mecanismo vitimário é proposta, operando-se pelas
vias religiosas, disfarçando seu verdadeiro propósito que era extremamente humano e
civilizatório: manter viva aquela sociedade (GIRARD, 2011, p. 33).

4 O SACRIFÍCIO COMO MECANISMO DE CONTROLE DA VIOLÊNCIA

As sociedades inaugurais beiravam o abismo da destruição, estavam sendo


consumidas pelos conflitos, a violência do “todos contra todos” acabaria por aniquilar a
totalidade de seus membros. Esse é o estado anterior ao surgimento da cultura, aponta Girard.
A proliferação das rivalidades, a multiplicidade dos escândalos encaminha toda essa violência
para um escândalo singular, é o momento em que a dinâmica do jogo da violência muda do
“todos contra todos” para o “todos contra um”, os ódios da comunidade convergem
espontaneamente em um único ponto, denominado por Girard de “bode expiatório”. Uma
única vítima recebe toda a violência daquele grupo, essa transferência é catártica, as
sociedades se protegem da sua violência descarregando-a na vítima. É através da imolação
do bode expiatório que a paz e a ordem são restabelecidas, nisto consiste o sacrifício
(GIRARD, 2001, p. 88).
Assim, o sacrifício, é “origem e motor da cultura humana” (GIRARD, 2011, p. 14),
também denominado de assassinato coletivo, é a materialização da violência de todos em
um, canalizando as rivalidades e conflitos que encharcam o tecido social em apenas uma
vítima, o “bode expiatório”. A imolação dele é que traz uma paz, ainda que temporária, para a
comunidade. De modo que os mecanismos de controle da violência parecem estar fadados a
serem, eles mesmos, violentos. Essa é a percepção de Girard quanto ao mecanismo de
controle da violência nas sociedades arcaicas, o sacrifício, e, é também a descoberta de
Walter Benjamin (2011, p. 127) quanto ao direito, instrumento que é o mecanismo de controle
da violência nas sociedades modernas.
Resta demonstrado que o único obstáculo capaz de conter a violência é ela mesma,
pois “os procedimentos que permitem aos homens moderar sua violência são todos análogos:
nenhum deles é estranho à violência” (GIRARD, 1990, p. 36), sendo que esses meios de
controle se denominam como os únicos meios legítimos, a violência exterior a eles é, portanto,
impura, ilegítima (GIRARD, 1990, p. 37).O pensador francês demonstra a gravidade de não
haver válvula de escape para liberar a ira do violento, pois a violência devora tudo que
encontra e é preciso dispor de um meio para ludibriá-la (GIRARD, 1990, p.15).
Na obra Totem e Tabu, Freud (2012) dirigia-se para elaboração de uma teoria geral
do sacrifício, porém seu apego à psicanálise e seu desconhecimento do mecanismo da vítima
expiatória impediram esse acontecimento, afirma Girard (1990, p. 245). Porém a intuição de
Freud não falha ao insistir no assassinato coletivo, pois ele é a chave para entender a vida
em comunidade.
Em busca de compreender as interdições do incesto e o totemismo, Freud (2011)
estuda organizações primitivas e descreve um assassinato coletivo. Ele narra que, em um
estado primitivo de organização, existia um pai ciumento e extremamente violento, que
guardava todas as mulheres para ele mesmo e expulsava seus filhos à medida que cresciam.
Contudo, certo dia os irmãos que haviam sido expulsos se uniram e retornaram, mataram e
devoraram o pai, findando a horda patriarcal.
A narrativa freudiana demonstra que a vítima expiatória no sacrifício não é inocente e
esta só adquire santidade gradativamente, à medida que a imolação sacrificial vai
acontecendo, por isso Girard (1990, p. 09) afirma que “[...] a vítima não seria sagrada se não
fosse morta”. Girard (1990, p. 249) destaca ainda que, é necessário que o rito seja realizado
em comunidade, esse ataque em massa, isto é, esse assassinato coletivo revela o vínculo
indissociável entre a violência e o sagrado.
Após o sacrifício do pai, Girard (2011, p. 98) comenta sobre o surgimento uma nova
ordem cultural que possui como fundamento o mecanismo da vítima expiatória, um
assassinato coletivo como violência fundadora, esta parece ser uma regra geral das origens
culturais. Entretanto os irmãos se encontram em igual posição, sem diferenciações, o que
poderia gerar o ciclo da reciprocidade violenta, assim são estabelecidas interdições (FREUD,
2011, p. 22).
O contexto sacrificial é envolvido por mistérios, evidencia Girard, pois a substituição
da vítima inicial por uma substituta exige um nível de desconhecimento, principalmente dos
membros da comunidade por quem se faz expiação, haja vista que eles não devem
compreender a importância da violência nesse contexto sagrado, tampouco devem se ater à
substituição que fora executada, não devem perceber os absurdos que envolvem o
mecanismo vitimário, pois desvendar os enigmas da operação sacrificial é o caminho para
superar a rivalidade mimética, eis o motivo do sacrifício ser envolvido por tanto mistério
(GIRARD, 1990, p. 12).
A simbologia do sacrifício deve ocorrer, mas sempre sob o nevoeiro do mistério que
impedirá que os indivíduos notem a violência terrificante que está sendo aplicada à vítima,
isto é, que não se atenham à polarização das tensões internas da comunidade sendo
desferidas contra um indivíduo na tentativa de estagnar, ao menos temporariamente, o ciclo
de violências, protegendo os membros da sociedade a todo custo (GIRARD, 1990, p. 18 e
19). O rito sacrificial esconde a violência que pratica, assim as vítimas são imoladas para a
preservação de uma estrutura social, sem, contudo, escandalizar os integrantes da
comunidade. A violência de uma sociedade inteira despejada contra vítimas geralmente
pertencentes aos grupos marginais da sociedade deve permanecer camuflada.
O mal e a violência não são extraordinários, mas extremamente cotidianos. Eis o
perigo: a violência vaga clandestina e disfarçada, em pleno meio-dia, nas ruas, vielas e
estradas da comunidade (GIRARD, 2011, p. 98). É fácil tornar-se cúmplice dela, pois se
escondeu nos atos diários, nos conflitos aparentemente fúteis, nas invejas e rivalidades
internas, de modo que até mesmo a prática de um dever, quando não acompanhado de uma
reflexão socrática, pode se tornar um crime contra a Humanidade. Como assevera Hannah
Arendt (1999, p. 268), todos são potenciais Adolf K. Eichmann, um sujeito absolutamente
comum que desencadeou uma onda de violência avassaladora.
A prática da violência de maneira impensada, sem reflexão filosófica, praticada por
causa de uma conjuntura social e não por questões de caráter, essa violência que se perde
na vida diária e torna-se comum, toda essa totalidade é denominada por Hannah Arendt
(1999, p. 274) como a “banalidade do mal”.
O termo foi cunhado por Hannah na obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a
banalidade do mal, em que a escritora acompanha o julgamento de Eichmann, que foi
acusado de ser um dos arquitetos da “solução final” que resultou na morte de milhares de
judeus e, portanto, ter cometido crimes contra a Humanidade. Contudo, Eichmann declarava-
se uma vítima, alegando não ser o monstro que diziam ele ser (ARENDT, 1999, p. 269).
De fato, foi esta a constatação de Hannah Arendt (1999, p. 170). Ora, é indubitável
que ele não era inocente, mesmo não havendo cometido um assassinato sequer, a obediência
cega e irrefletida de Eichmann liberou uma violência tão destruidora que ele, segundo suas
próprias declarações, que nunca havia nutrido ódio pelos judeus e nunca desejou a morte de
seres humanos, era responsável por uma das maiores carnificinas da Humanidade.
Entretanto, a violência não precisa de razão, afirma Girard (1990, p. 264), pois ela não
age baseada em justificativas, ela é furtiva, enganadora, manipuladora e para dominá-la é
preciso entender as regras do seu jogo, investigando, sobretudo, a natureza humana que é
sua maior deflagradora. É preciso romper com a reciprocidade violenta resultante do desejo
mimético e inibir a erupção de conflitos, mas, sobretudo, é preciso agir reflexivamente.

4.1 A escolha dos “bodes expiatórios”

Durante a crise mimética a comunidade está debilitada pela violência que ameaça sua
existência, os seus membros caminham para a destruição mútua. Aqui, surge então, segundo
René Girard (1990, p.14), a hipótese de substituição. Nesse caso, a violência que inicialmente
direcionada para a vítima genuína – o rival - é redirecionada para uma vítima substituta, tendo
em vista que “a violência não saciada procura e sempre acaba por encontrar uma vítima
alternativa” (GIRARD, 1990, p. 13). O intelectual francês afirma, ainda, que não
necessariamente essa substituição é realizada com base numa semelhança entre as vítimas
ou numa análise de culpa ou inocência, mas na procura insaciável da ira por um vulnerável
que esteja ao alcance para ser tragado.
A crise mimética, que consiste na proliferação da rivalidade e intensificação da
violência, facilita a substituição sacrificial, pois causa uma espécie de embriaguez, de
desequilíbrio e confusão mental (GIRARD, 2011, p. 86), momento em que ocorre a troca do
rival mimético pelo bode expiatório unânime, que sofrerá por toda a comunidade. Daí a
importância da escolha acertada das vítimas, haja vista que constituem elemento essencial
para a realização do rito sacrificial, pois durante o sacrifício deverá ocorrer “[...] um
deslizamento ‘metonímico’ dos membros da comunidade às vítimas rituais” (GIRARD, 1990,
p. 339).
Girard (1990, p. 338) segue afirmando que a escolha das vítimas é uma tentativa de
encontrar uma “categoria intermediária” entre a comunidade e o sagrado, o interno e o
externo. A escolha se dá, portanto, como assevera o autor, entre grupos que não são
exatamente exteriores, mas que se encontram marginalizados na sociedade, como escravos,
crianças, adolescentes, gados, pois nestes casos não há risco de iniciar uma escalada de
vingança. Logo, para ser escolhida, a vítima deve pertencer à comunidade, mas este vínculo
não deve ser tão forte, é preciso prudência e dar preferência para aquelas que não suscitarão
“ondas” de vingança.
É ao observar os critérios para escolha da vítima expiatória que é possível perceber
que o homo sacer não poderia figurar como um bode expiatório, pois ele pertencia ao âmbito
divino e, na sociedade, sua posição não era marginal, e, caso cometesse algo ilícito, era
excluído da esfera humana e entregue aos deuses. O homo sacer pertence a uma esfera
soberana (AGAMBEN, 2002, p. 90)3.
A eleição dos “bodes expiatórios” parece seguir um padrão que não foi abandonado
na Modernidade, como é possível analisar nos relatos de carnificinas, tal qual as que
ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial, especificamente os horrores realizados
durante o Terceiro Reich, em que todos os conflitos da sociedade alemã foram dispensados
em bodes expiatórios – indivíduos marginalizados, com laços sociais frágeis (BAUMAN, 1998,
p. 116).
A rivalidade advinda do desejo mimético é facilmente identificada nesse contexto, uma
vez que a prosperidade dos judeus incomodava os alemães, mas o incômodo e a rivalidade
só exteriorizavam o desejo interno que eles nutriam pelos mesmos objetos que seus
modelos/rivais desejavam ou tinham. Cobiçavam as casas, o ouro, os empreendimentos, as
jóias, as artes e os cargos que pertenciam aos judeus. Por fim, a sociedade alemã canalizou
as frustrações, conflitos, crises e caos existentes desde a derrota na Primeira Guerra Mundial
para seus bodes expiatórios, sacrificando estrangeiros, homossexuais, negros e comunistas.

5 CONCLUSÃO

3Giorgio Agamben explica o homo sacer é a primeira figura que se tem registro que vincula sacralidade e vida,
contudo apesar de ser sagrado, seu assassinato não teria punição. Recapitulando, ele era sagrado, mas se alguém
o matasse não seria punido, entretanto o homo sacer não podia ser sacrificado: “A vida insacrificável e, todavia,
matável, é a vida sacra” (AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG,
2002, p. 90)
O ponto de partida adotado por Girard foi o mesmo marco inicial da argumentação
proposta neste artigo, isso porque o desejo mimético explica a origem de muitas coisas e
propõe novas perspectivas, assim, a partir da compreensão de que o indivíduo depende de
outro para constituir suas vontades, anseios, metas, para, na verdade, construir-se, o
paradigma da subjetividade humana é estilhaçado.
As revelações que se seguem são ainda mais surpreendentes, pois da triangulação
do desejo nascem as rivalidades, estas por seu turno, tendem a se fortalecerem, uma vez que
os sujeitos sempre optam pela troca de provocações e violências. Desse modo, quando os
indivíduos se tornam “pedra de tropeço” uns para os outros, diz-se que a sociedade está
escandalizada, há a prática do “todos contra todos”. Aqui surge, através do mesmo fenômeno,
isto é, por meio do mecanismo do bode expiatório, a cultura e o sagrado.
O sacrifício canaliza todos os conflitos da sociedade em direção de uma única vítima,
o bode expiatório. Aqui, é importante fazer uma ressalva. Por mais que o controle da violência,
isto é, o sacrifício pertença à esfera do sagrado, a operação sacrificial não é uma exigência
divina, mas uma necessidade humana. É pela comunidade que a vítima morre. Não são os
deuses que anseiam pelo sangue dos bodes expiatórios, são os membros da sociedade que
anseiam por esse momento catártico.
Por isso o sacrifício se envolve de mistérios, para que o grupo social não se atente
para os sentidos que podem envolver a imolação das vítimas. A teoria girardiana denuncia a
desmedida violência que os “bodes expiatórios” sofrem, assegurando que deve haver um
esforço para proteger as vítimas que geralmente são sujeitos com fracos elos sociais,
indivíduos marginalizados, denominados na contemporaneidade como “minorias”.
Assim, o “Outro” é o grande protagonista da obra de Girard e o grande beneficiário
das descobertas no campo da violência, no fundo todas as investigações sobre a dinâmica do
comportamento humano, das sociedades, da cultura e do sagrado contribuem unicamente
para a criação de uma lógica de alteridade que supera o mecanismo do bode expiatório e
promove auto sacrifícios que se expressam em ações de perdão e amor, pois a maior ameaça
à humanidade é o próprio homem, é o “potencial bélico” que ele possui em seu interior.
REFERÊNCIAS

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Burigo. Belo Horizonte; Editora UFMG, 2002.

ARENDT, Hannah. Eichmmam em Jerusalém. Tradução de José Rubens Siqueira. São


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BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora 34, 2011.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e


outros textos (1912-1914). Tradução Paulo Cézar de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.

GIRARD, René. Aquele por quem o escândalo vem. Tradução de Carlos Nougué. São
Paulo: É Relizações, 2011.

GIRARD, René. A violência e o sagrado. Tradução de Martha Conceição Gambini. São


Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1990.

GIRARD, René. Mentira romántica y verdad novelesca. Barcelona: Anagrama, 1985.

GIRARD, René. O sacrifício. Tradução de Margarita Maria Garcia Lamelo. São Paulo: É
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HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2014.

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