Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PUC-SP
SÃO PAULO
2011
SÃO PAULO
2011
BANCA EXAMINADORA
Às minhas avós,
AGRADECIMENTOS
Ao prof. Dr. Arlindo Machado pela orientação e pelas ótimas sugestões feitas ao longo da
pesquisa.
Aos professores Rubens Fernandes Junior e Christine Greiner pelas preciosas recomendações
durante a banca de qualificação.
À toda minha família, meu pai, minha mãe, meu irmão, minhas tias, tios, primas e primos,
que sempre me apoiaram e sempre acreditaram na importância e no valor que os estudos e a
educação têm na vida.
Ao meu pai, pelo apoio incondicional, mesmo nas horas mais difíceis.
À minha mãe, pelos sempre sábios conselhos e por ter ajudado nas revisões do texto.
Ao Ramúsyo pelas revisões e pelo apoio nos momentos finais de elaboração da dissertação.
À Jane, por partilhar comigo o interesse e ser sempre uma ótima interlocutora às questões que
se apresentaram ao longo da pesquisa.
Aos amigos que fiz em São Paulo, em especial à Marcy, por sua ajuda sempre tão preciosa e
pela companhia sempre presente.
Aos meus amigos de São Luís, por acreditarem no meu caminho e me receberem sempre nas
minhas idas e vindas com tanto carinho.
Aos meus colegas de mestrado, por partilharem comigo o caminho da formação acadêmica.
“A poesia vê melhor”
Roberto Piva
RESUMO
ABSTRACT
The present study discusses, from the perspective of the photographic dispositif, the changes
in the photographic act since the development and popularization of digital photography. The
research rescues the historical development of photography during the 20th century as a way
to understand the changes in the photographic praxis until nowadays. The conventions and
prefigurations of the photographic act were discussed, as also were the relations between
those conventions and the actual practice of digital photography. The method utilized in this
study was based in the concept of geneology as used by Michel Foucault (2002), in which it is
affirmed the need to historically research the fields of force that compose the dispositif. The
concept of dispositif is utilized to discuss the characteristics of the photographic equipment,
based not only on the works of Foucault, but also on Agamben’s (2008). As a technological
basis for many processes of image production, photography has a fundamental role in midst
the means of social communication. The changes from the analogical to the digital process in
photography bring implications that affect not only amateur day-to-day uses, but also the role
of photography in the means of mass communication. A example of this is the loss of trust in
the longly self alleged objectivity claim of the photographic image, specially present in the
context of photojournalism, that has changed the way society perceives the photographic
image: more and more, photography is treated as a discourse, and less as a testemony. The
hypothesis of this study is that the digital technology in connection to the photographic
dispositif alters the role of the photographic image in society and that this change is inserted
in a wider social-cultral context of modifications in the ways messages are produced and
distributed in the digital age.
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS 8
INTRODUÇÃO 10
2. MOMENTO DO VISOR 34
2.1 O visor 35
3. MOMENTO DO OBTURADOR
63
4. MOMENTO DA PÓS-PRODUÇÃO 81
CONSIDERAÇÕES FINAIS 98
LISTA DE FIGURAS
Figura 14 - As duas imagens enviadas pelo fotógrafo Marc Feldman à agência Getty 82
Images.
Figura 15 - Fotografia tirada por John Filo (1970). À esquerda, imagem tal como 83
publicada na revista LIFE, edição de maio de 1995
Figura 16 - Aviso da agência de imagens Gettyimages para eliminação da fotografia de 85
Marc Feldman do banco de imagens
Figura 17 - Untitled film still #21 de Cindy Sherman (1978) 88
Figura 22 - Leite Zulú para Harmonia Química Nacional, de Arthur Omar, parte da 100
série Série Antropologia da Face Gloriosa, (1973-1997)
Figura 23 - Albuquerque, de Lee Friedlander (1972).. 100
Figura 24 - RC-701 Still video camera acompanhada por seus acessórios que incluiam, 105
máquina para envio, receptor decodificador e máquina de impressão
10
INTRODUÇÃO
A ideia para elaboração do presente estudo foi gestada com o tempo. Como uma
pessoa interessada de forma geral nas artes visuais, foi apenas a partir da aquisição de uma
câmera fotográfica digital que tornou-se possível iniciar explorações no campo da fotografia.
Na época, toda experiência anterior se resumia a tentar tirar fotografias em câmeras
automáticas, pequenas caixas-pretas em que nada era controlável, apenas o botão disparador.
Com a aquisição da primeira câmera digital, parecia haver nascido todo um outro
campo de possibilidades. Mas logo aquela pequena caixa iluminada provaria ser também um
mistério, a partir de seus modos específicos de funcionamento, de suas programações pré-
configuradas de fábrica, de suas teimosias distintas. Perante estas duas realidades, nos
voltamos ao questionamento do universo fotográfico. A leitura de livros como Sobre a
fotografia (Sontag, 2004) e Filosofia da caixa-preta (Flusser, 2002) foram essenciais neste
caminho de descoberta.
Desde esta época, há oito anos, buscamos pouco a pouco tentar desvendar os modos de
funcionamento do aparelho fotográfico. As explorações se iniciaram com o aparelho que
considerávamos ter menos intimidade: a câmera fotográfica analógica. Pouco sabíamos,
então, que mais difícil seria tentar compreender os modos de configuração do aparelho
fotográfico digital, aparentemente tão mais simples de dominar, mas ao mesmo tempo, tão
mais complexo de compreender.
tantos e tantos comentários e contribuições, recebidas por vezes nos lugares mais estranhos e
nas situações mais inusitadas.
Mais do que um atestado final do resultado das mudanças, o presente estudo é apenas
um mapa inicial das transições da fotografia analógica para a digital, em que se tenta apontar
os caminhos a que estas nos levam, sem contudo esquecer a direção de onde viemos.
Neste ponto, buscamos evitar aquilo que Philippe Dubois (2004, p.35) identifica como
uma tendência geral à “teleologia do novo”. Segundo Dubois, há, em torno dos novos meios
de representação, uma forte tendência à amnésia, em que as novas tecnologias de
representação são encaradas como meios completamente novos de lidar com a imagem.
Adicionamos a esta preocupação, a necessidade de compreender o contexto sócio-cultural em
que se coloca a transição da fotografia do analógico para o digital.
Diante dos desafios de analisar um processo de mudança que ainda desenha suas
últimas conseqüências, e diante da compreensão que esta mudança se desenha em meio a um
contexto específico, buscamos realizar um resgate histórico das configurações do ato
fotográfico.
imagem fotográfica enquanto documento, a partir do momento que as técnicas digitais de pós-
produção passam a tornar mais simples os processos de tratamento da imagem fotográfica.
A entrevista a que Agamben se refere foi concedida por Foucault tendo como tema o
primeiro volume de A História da Sexualidade. Na entrevista, Foucault (2002, p. 244) define
os dispositivos como um conjunto de elementos heterogêneos, discursivos e não-discursivos,
15
O fotográfico aparece então como campo formado por elementos diversos. Estes
elementos fogem por vezes do próprio domínio da fotografia e revelam a relação do
dispositivo fotográfico com outros dispositivos, com sistemas específicos de saber e no
interior de relações de poder.
O dispositivo fotográfico pode ser compreendido a partir de uma análise dos vários
dispositivos com os quais se relaciona, a partir dos sistemas de saber e das relações de força
16
que tanto o influenciam e condicionam, quanto podem por ele ser modificadas. Agamben
(2009), ao promover uma ampliação do conceito de Foucault, centra a definição de
dispositivo como algo capaz de conduzir, interceptar e orientar gestos, condutas, discursos e
comportamentos:
O que seria o fotográfico enquanto ato? Não se delimitando a uma ação, ou a uma
coleção de objetos materiais definidos, o fotográfico abrange todos estes aspectos, sendo meio
de produção e de consumo midiático. O termo midiático tem aqui o seu mais amplo sentido,
já que toda foto é, em si, mensagem e meio. Partimos, portanto, da definição de ato
fotográfico segundo estabelecida por Philippe Dubois:
17
A foto não é apenas uma imagem (o produto de uma técnica e de uma ação,
o resultado de um fazer e de um saber-fazer, uma representação de papel que
se olha simplesmente em sua clausura de objeto finito), é também, em
primeiro lugar, um verdadeiro ato icônico, uma imagem, se quisermos, mas
em trabalho, algo que não se pode conceber fora de suas circunstâncias, fora
do jogo que a anima sem comprová-la, literalmente: algo que é, portanto, ao
mesmo tempo e consubstancialmente, uma imagem-ato, estando
compreendido que esse 'ato' não se limita trivialmente apenas ao gesto da
produção propriamente dita da imagem (o gesto da 'tomada'), mas inclui
também o ato de sua recepção e de sua contemplação. A fotografia, em
suma, como inseparável de toda a sua enunciação, como experiência de
imagem, como objeto totalmente pragmático. (DUBOIS, 1994, p.15)
Como discurso, o ato fotográfico é, antes de tudo, uma “violência que fazemos às
coisas” (FOUCAULT, 2006, p. 33). Ao tomar de pretexto um objeto para dele criar um
significado que de outra forma não existiria, toda fotografia deve ser interpretada antes como
uma violação do objeto, do que como seu simples registro. A situação se estende da fotografia
mais utilitária às experiências artísticas mais engajadas.
Para Pierce “Um símbolo é um signo que remete ao objeto que ele denota em virtude
de uma lei, normalmente, uma associação de ideias gerais, que determina a interpretação do
símbolo por referência a esse objeto. É, portanto, ele próprio um tipo geral ou uma lei.”
(PIERCE apud DUBOIS, 1994, p. 64).
Vale lembrar que Flusser define o aparelho fotográfico, assim como todos os
aparelhos, como “produtos da técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado.”
(FLUSSER, 2002, p.13). No caso da fotografia, as leis científicas que orientaram o
aparecimento do aparelho servem de ideia geral, princípio de associação que estabelece a
referência entre um objeto da realidade sensível e sua representação fotográfica.
19
De certo modo, toda história da fotografia pode ser considerada uma história do
estabelecimento e da reformulação de convenções do ato fotográfico. Estas convenções não
dizem respeito apenas à fotografia, mas fazem parte também de uma história dos modos de
representação da sociedade, de seus pactos e regimes de visibilidade (SODRÉ, 2008, p.16).
A noção de dispositivo que aqui utilizamos certamente não é a mesma das discussões a
respeito do dispositivo de base do cinema, tão debatida nos anos 1970, com forte referencial
em Jean-Louis Baudry. A noção aqui utilizada se distingue da noção de dispositivo da teoria
20
Segundo Ismail Xavier, a queda por terra das formulações de Baudry a respeito do
aparelho ou dispositivo de base do cinema se deve ao fato de Baudry ter visto “na ilusão e no
fetiche a vocação do dispositivo, sem nuances, nada mais restando de consolo para a
cinefilia.” (XAVIER, 2008, p.202). Para não incorrermos no mesmo erro é que nos afastamos
da noção de ideologia e nos centramos nas convenções e preformações do ato fotográfico,
levando sempre em consideração que, se as regras existem, elas estão sempre em mediação e
não são nem imutáveis, nem intransponíveis.
Não se trata, portanto, de afirmar que a fotografia é boa ou má, ilusória ou objetiva,
mentirosa ou verdadeira, nem que a fotografia digital seja melhor ou pior que a fotografia
analógica, discussão infundada. Trata-se antes de analisar as formas de existência da imagem
fotográfica em meio à sociedade, ou seja, de enxergá-la pragmaticamente. Se a fotografia é
discurso, não há verdadeiro ou falso, há apenas circunstâncias que levam à maior ou menor
credibilidade, como em qualquer outra forma de expressão.
A segunda noção que torna nossa acepção de dispositivo diferenciada das discussões
de Baudry é a de que o conceito de espectador, com todas suas implicações, não pode ser
aplicado à fotografia. Afinal, o que é um fotógrafo? Antes de tudo, é alguém que observa,
mais do que alguém que simplesmente assiste a alguma coisa. A partir da palavra observar
encontramos como referência o trabalho de Jonathan Crary, em seu livro Techniques of the
Observer: On vision and modernity in the nineteenth century (1992).
Para Crary (1992, p.6), a escolha do termo observador faz-se fundamental a partir da
diferenciação na etimologia latina entre spectare e observare. Enquanto spectare significa de
21
A partir da noção elaborada por Crary, defendemos que é como observador que se
institui o papel do fotógrafo. Um observador que, dentro do ato fotográfico, conforma-se a
regras, códigos, regulações e práticas delimitadas. Defendemos que, ao longo da história da
fotografia, as práticas e regulações não foram sempre as mesmas, com especial destaque para
as mudanças ocorridas a partir dos anos 1960, com a inserção de componentes eletrônicos nos
aparelhos fotográficos.
Interessante notar que não é apenas na utilização do termo observador que nossa
pesquisa tem como apoio o trabalho de Crary, mas também toma como exemplo a abordagem
histórica desenvolvida pelo autor. Em seu livro, Crary afirma que suas metas são
genealógicas, no sentido foucaultiano do termo. Foucault insiste no caráter transitório e
relacional dos dispositivos, por isto mesmo, defende uma abordagem histórica.
1
Todos os textos originalmente em inglês estão aqui apresentados com tradução da autora.
22
Susan Sontag faz referência, ao falar sobre fotografia, à constituição do que seria uma
ética do ver, considerando que “ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e
ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de
observar.” (2004, p.13). Para nós, uma ética do ver está relacionada a convenções de
visualidade, convenções que não se relacionam de forma unidirecional ao equipamento
fotográfico, mas que se configuram em meio a uma rede de elementos heterogêneos capaz de
reconfigurar os hábitos de visualização de uma sociedade.
A fotografia não vive, portanto, uma situação especial nem particular: ela
apenas corrobora um movimento maior, que se dá em todas as esferas da
cultura, e que poderíamos caracterizar resumidamente como sendo um
processo implacável de “pixelização” (conversão em informação eletrônica)
e de informatização de todos os sistemas de expressão, de todos os meios de
comunicação do homem contemporâneo. A tela mosaicada do monitor
representa hoje o local de convergência de todos os novos saberes e das
sensibilidades emergentes que perfazem o panorama da visualidade (e
também da musicalidade, da verbalidade)... (MACHADO, 2005, p. 311)
24
serão visualizadas após serem transformadas em código binário, que ações e que outros
códigos de funcionamento elas passarão a engendrar.
Vale lembrar que antes dos sistemas operacionais baseados em metáforas visuais tais
como o Windows, ou ‘janelas’, as mediações entre usuário e computador eram feitas
27
As interfaces cumprem o papel de fazer parecer simples processos que são, em sua
base numérica e de codificação, extremamente complicados. Flusser em seu livro, O universo
das imagens técnicas (2008) afirma: “As imagens técnicas escondem e ocultam o cálculo (e,
em consequência, a codificação) que se processou no interior dos aparelhos que as
produziram.” (2008, p.29). As reflexões de Flusser dizem respeito a todas as imagens
técnicas, incluindo aí as imagens numéricas, categoria em que podemos encaixar as interfaces
visuais.
Porém, há ainda um terceiro nível de codificação das mensagens digitais que devemos
considerar. Este é o nível histórico-cultural em que estas mensagens transitam.
Essencialmente, os meios digitais são meios de aquisição e tratamento de informações,
todavia, as formas de expressar, elaborar, visualizar e se relacionar com estas informações
têm uma dimensão histórica, diretamente ligada à influência de códigos de representação e de
comunicação prévios.
28
Mesmo sendo essencialmente algo novo quanto aos seus modos de funcionamento, a
fotografia digital faz parte da trajetória cultural da fotografia, que construiu ao longo de sua
história, certamente não de forma independente e nem de forma isolada, uma série de
referenciais estéticos e visuais que influenciam até hoje a produção cotidiana de fotos.
linguagens inteiras criadas a partir desse código serão limitadas pelo modelo,
sistema ou ideologia que o acompanham. (MANOVICH, 2000, p. 64)
O terceiro paradigma indicado por Santaella e Nöth (2008, p.162) é o paradigma pós-
fotográfico, que sucede as técnicas mecânicas e caracteriza-se pela proeminência dos
processos matemáticos de geração da imagem. Para Santaella e Nöth, o paradigma pós-
fotográfico inicia-se com a possibilidade de construção das imagens em computador, as
30
Deste modo, a fotografia digital aparece como um objeto híbrido, a meio caminho
entre dois paradigmas. Isto não é estranho, uma vez que, como afirmam Santaella e Nöth,
“(...) o que caracteriza o paradigma pós-fotográfico é sua capacidade para absorver e
transformar os paradigmas anteriores.” (2008, p.186)
31
Em sua divisão dos paradigmas da imagem, Santaella e Nöth analisaram quatro níveis
básicos de produção e circulação das representações imagéticas. Estes níveis remetem
primeiramente aos meios de produção; em segundo aos meios de armazenamento; em
terceiro, aos meios de difusão, e em quarto lugar, fazem referência aos modos de recepção e
consumo das imagens (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.187).
Desta forma, consideramos que a fotografia digital junta a “visão via próteses ópticas”
à “derivação numérica da imagem” (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.168). Na fotografia
digital, a visão via próteses óticas deixa de ser central e passa a ser regida pela numerização
do processo de digitalização, que acabará por indicar a forma de apresentação desta imagem.
Este é certamente o caso dos visores de visualização imediata (live-preview) característicos da
fotografia digital.
O que de fato muda é a inexistência, na imagem digital, de uma “imagem corte, fixada
para sempre” (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.168). Esta imagem passa a ser substituída
pela virtualidade característica do paradigma pós-fotográfico, que torna a imagem um objeto
em constante fluxo, sempre passível de reformulações a partir da manipulação de seu código
numérico.
Uma fotografia vista em tela digital não é mais o resultado da transformação de uma
superfície sensível à luz, mas é sim uma superfície capaz de uma emissão controlada de luz,
planejada e direcionada segundo modelos matemáticos e científicos de projeção visual.
O fato da imagem digital em tela eletrônica ser ela mesma uma emissão de luz
também pode ser comprovado ao vermos um visor fotográfico digital. O visor deixa de ser um
meio de passagem da luz, para tornar-se um meio de emissão de uma imagem luminosa,
simulação da luz recebida pelo sensor da fotografia digital. É a partir desta transformação do
papel da luz, principal objeto da fotografia, que podemos falar de simulação em fotografia
digital
34
2. MOMENTO DO VISOR
2.1 O visor
Com a modernidade, a relação entre olho e aparato será outra e o aparato figurará
como contiguidade do olho. O olho humano, não mais modelo ideal de visão, passa a ser visto
como falível e a óptica geométrica que caracterizou os séculos XVII e XVIII é substituída por
uma óptica fisiológica, como as pesquisas sobre persistência retiniana, entre outras,
exemplificam (CRARY, 1992, p.16)
36
A ligação entre aparelho fotográfico e camera obscura, portanto, não pode ser feita de
forma automática. É necessário observar as diferenciações entre os dois sistemas de
visualização. De forma geral assumimos aqui que as influências do dispositivo da camera
obscura sobre o dispositivo fotográfico podem ser resumidas e observadas a partir de um
componente específico da câmera fotográfica: o visor.
A maior parte dos visores sobrepõe ao que é visto indicações operativas, que variaram
ao longo da trajetória técnica da câmera fotográfica, mas que estiveram presentes desde o
início. Estas indicações fazem parte do jogo de desvendamento e operacionalização do
aparelho, fornecendo pistas de como o dispositivo interpreta o que está a sua frente e de como
o seu operador deve igualmente interpretar para que possa obter pleno 'sucesso' ao manipular
o equipamento.
desta transfiguração é que, nas primeiras câmeras fotográficas, a imagem aparecia no visor de
forma invertida, da direita para esquerda e de cima para baixo. Para o fotógrafos da época,
esta era apenas uma característica técnica com a qual eles tinham que trabalhar. Mesmo na
câmera Rolleiflex, lançada em 1928, a imagem ainda aparecia invertida, não mais de ponta-
cabeça, mas ainda da direita para esquerda.
A afamada câmera Rolleiflex, assim como uma série de outras câmeras fotográficas
sofisticadas da época, trazia como recurso uma grade quadriculada sobreposta ao visor.
Herança dos aparelhos perspectivistas de Albrecht Dürer e do intersector de Alberti, a grade
quadriculada do visor aparecia como auxílio à composição da imagem no quadro.
A câmera Rolleiflex era uma câmera sofisticada, cara, e o visor com gradeamento não
era uma regra entre os visores fotográficos das câmeras amadoras da época. Câmeras como as
primeiras câmeras de mão, fabricadas a partir de 1880, aproximadamente, não chegavam nem
a possuir um visor – este é certamente o caso dos primeiros modelos da câmera Kodak de
1888, que possuía um V inscrito na parte superior como forma de auxiliar a delimitação do
espaço da foto (SZARKOWSKY, 1989, p.151). As câmeras amadoras que surgiriam a partir
de 1900 apresentariam visores, mas em um tamanho equivalente ao de um selo postal, sem
muitos recursos de visualização.
Figura 2 - Câmera Olympus Stylus 700 (2006) Figura 3 - Câmera fotográfica embutida em
imagem da autora. aparelho celular Samsung (2010) - imagem da
autora.
2
Termo que designa câmeras fotográficas totalmente automatizadas e que significa, literalmente, aponte e
atire.
40
Figura 4 - Câmera Ermanox (1924) e o primeiro protótipo da câmera Leica (1923). Disponível em:
<http://www.geh.org/fm/timeline-cameras/htmlsrc/timeline_sld00001.html>. Acesso em 12 de
dezembro de 2010.
Figura 5 - Página inicial do manual de instruções do kit Photosniper oferecido pela empresa russa Zenith.
Disponível em: <http://www.xs4all.nl/~tomtiger/zenit/cover_b.jpg>. Acesso em 12 de dezembro de 2010.
Apesar das ligações entre câmeras fotográficas e armas bélicas não se limitarem aos
aspectos materiais expressos a partir de similaridades visíveis entre câmeras e armas, nos
parece válido ressaltar que a maior parte das câmeras que possuem semelhanças palpáveis
com revólveres, espingardas, etc. foram fabricadas na primeira metade do séc. XX, época de
grandes conturbações, conflitos e guerras. Talvez da mesma forma, não seja surpreendente
perceber que, nas câmeras fotográficas do início do séc. XXI, os visores passaram a se
assemelhar muito mais a telas de televisão e de computador do que a armamentos bélicos.
das câmeras fotográficas digitais, podemos perceber que de forma geral o desenvolvimento
técnico do aparelho fotográfico continuou bem próximo ao desenvolvimento de equipamentos
bélicos. É que de certa forma, os equipamentos bélicos atuais também não são os mesmos que
do século XX.
de fato através da matemática, única ciência capaz de estabelecer “razões certas e evidentes”
(DESCARTES, s.d).
Mas não foi minha intenção, para tanto, tentar aprender todas essas ciências
particulares que habitualmente se chamam matemáticas; e, vendo que, apesar
de seus objetos serem distintos, não deixam de concordar todas, pelo fato de
não conferirem nesses objetos senão as diversas ações ou proporções que
neles se encontram, julguei que convinha mais analisar apenas estas
proporções em geral, (…) . Depois, havendo percebido que, a fim de
conhecê-las, ser-me-ia algumas vezes necessário considerá-las cada qual em
particular, e outras vezes apenas de reter, ou de compreender, várias em
conjunto, julguei que, para melhor considerá-las em particular, deveria
presumi-las em linhas, visto que não encontraria nada mais simples, nem que
pudesse representar mais diferentemente à minha imaginação e aos meus
sentidos; mas que, para reter, ou compreender, várias em conjunto, era
necessário que eu as designasse por alguns signos, os mais breves possíveis
(...) (DESCARTES, s.d, p.74) (grifos nossos)
Edmond Couchot fala a respeito do que seria, na história das técnicas de figuração, a
busca por um “elemento mínimo constituinte da imagem” (1999, p.37). Couchot afirma que o
primeiro passo dado em direção a esta busca teria sido a fotografia, por pressupor uma
unidade do plano a partir de um centro de organização visual. Desta maneira, o próprio furo
para a entrada de luz presente na câmera seria então capaz de formar um plano imagético
uniforme. No entanto, não era possível na fotografia controlar a imagem abaixo do nível de
organização fundamental do plano: a natureza da técnica fotográfica analógica não permitia o
controle preciso sobre cada grão fotossensível separadamente.
45
Descartes afirma que, para considerar cada proporção de forma particular, deve-se
presumi-la como uma linha, mas que para avaliá-las em conjunto é necessário designá-las por
signos 'breves', ou seja, por signos mínimos (s/d, p.74). Para Descartes, um plano se divide em
linhas que se dividem em pontos - qualquer semelhança com a computação não é mera
coincidência.
Para Couchot, a busca por um elemento mínimo de controle sobre a imagem está
diretamente ligada a uma trajetória continua de automação dos modos de produção e
reprodução das representações imagéticas. Neste caminho, exemplos como o do pantelégrafo
e do halftone demonstram a importância do fator de circulação da imagem. No entanto, por
46
não permitirem o controle exato sobre o modo de reprodução, estas técnicas figurativas foram
substituídas por outras, progressivamente mais analíticas.
A diferença entre o analógico e o digital está na forma com que cada modo de medição
encara as variações dentro de um sistema. Nos modos de representação analógicos não há
como medir precisamente cada mudança dentro da escala da variação, pois o instrumento de
medição varia tal qual aquilo que está sendo medido. Por isto mesmo, varia por analogia –
este é o caso, por exemplo, da medição de temperatura em um termômetro de mercúrio. Já na
representação digital, a variação é avaliada pela transição entre níveis específicos pré-
determinados.
A variação digital baseia-se sempre em uma medição analógica que, para ser
convertida, passa a ser interpretada em patamares específicos, pré-determinados à própria
variação. A pré-determinação da escala de valores de uma medição estabelece sempre um
valor mínimo, um valor máximo e o número de parâmetros que podem ser encontrados entre
estes dois patamares. Desta forma, é importante compreendermos que o funcionamento de
uma câmera digital é, em realidade, um modo de funcionamento analógico-digital, em que o
digital tem proeminência sobre a forma analógica de recepção dos dados, uma vez que orienta
como estes serão interpretados.
digitalmente como uma figura numérica para depois ser transcrita de acordo com
programações que determinarão o modo de apresentação deste dado. A cada ponto do sensor,
a transição analógico-digital fará corresponder um pixel – elemento fundamental da imagem
digital.
Figura 6 - Primeira imagem digitalizada - Fotografia do filho de Russell Kirsch, escaneada em 1957.
Disponível em: <http://www. wired.com/wiredscience/2010/06/smoothing-square-pixels/>. Acesso em 5 de
julho de 2010.
48
No caso das câmeras amadoras o visor poderia ser até mesmo um simples pedaço de
plástico, indiferente ao funcionamento da câmera. No caso de uma câmera como a alemã
Contessa Nettel, de 1919, o plástico e o vidro poderiam nem mesmo estar presentes no
momento de visualização da foto, sendo o visor representado por uma moldura de ferro que se
erguia do corpo da câmera para delimitar, de forma pouco precisa, a área de corte da
fotografia. Este era o mesmo caso do visor esportivo de uma das câmeras mais usadas pela
imprensa entre os anos de 1920 e de 1950, a Speed Graphic , primeiramente lançada em 1912
(BOCK, 2007). Em outros casos, como no das câmeras de visor reflex, os visores coincidiam
com a visão da lente da câmera, o que introduzia, a depender da configuração da própria lente,
distorções visuais correspondentes.
Para as câmeras amadoras, prever como a foto sairia era de fato uma questão de
imaginação, em especial no caso das câmeras automáticas: o visor não correspondia de forma
exata à área fotografada e jamais se sabia se o cálculo da câmera seria exato – o flash era um
recurso de segurança, mas por vezes estourava ou era insuficiente.
Toda fotografia trazia em si uma espera, mas era, afora algumas experimentações mais
especializadas, exatamente como era: lamentavam-se olhos fechados ou vermelhos, as
possíveis cabeças cortadas e as imprevisíveis caretas, ou mesmo o fato de justamente a foto
do parabéns ter queimado.
51
Como a imagem fotográfica analógica era um objeto que envolvia uma espera e um
tempo, toda vez que uma fotografia era vista, ela era vista necessariamente fora do seu
contexto de formulação. Com exceção das famosas Polaroid, que nunca foram totalmente
popularizadas no Brasil, a imagem fotográfica apresentava-se como um objeto separado,
descolado de seu criador e do momento inicial de sua criação. Era também, quando finalizado
e impresso em papel, um objeto único, pois ainda que reprodutível, cada fotografia revelada e
materializada seguia um rumo próprio dentro do universo das substâncias.
Com o visor projetivo digital vemos uma alteração profunda nas mediações entre
dispositivo fotográfico, experiência e representação. Se antes a fotografia era um produto
visto apenas de forma separada de seu contexto inicial, com a fotografia digital ela passa a ser
um objeto inscrito no fluxo temporal contínuo de sua própria criação. Permanece como
representação separada, posto que ainda é recorte de espaço e tempo, mas passa a apresentar-
se de forma sobreposta ao tempo vivido.
A foto, mais que objeto único e independente, como um pedaço de filme que foi gasto
e não poderá ser apagado, torna-se objeto flutuante, facilmente dispensável e imediatamente
substituível se julgado impróprio para os padrões de consumo de uma fotografia.
O visor projetivo de uma câmera digital apresenta a fotografia quase exatamente como
esta será produzida. Não totalmente, mas apenas quase, uma vez que há um atraso entre o que
é visto e o que é processado pela câmera. O acoplamento temporal entre o que vemos e o que
o visor digital torna visível nos dá a impressão de simultaneidade, mas a simultaneidade é
apenas a ilusão dada pela rapidez dos processos de cálculo invisíveis àqueles que operam o
dispositivo.
A maioria dos visores das câmeras fotográficas analógicas, ao menos os daquelas mais
populares a partir da metade final do séc. XX, obrigava o operador a colar-se ao dispositivo.
Vestíamos a câmera fotográfica como uma máscara e víamos o mundo a partir do visor, feito
para ser visto apenas com um dos olhos, para que nos tornássemos, assim como a câmera,
ciclopes, observadores monoculares. Fotografar era assim uma experiência de imersão em um
modo de visão. Era preciso coincidir o olhar ao da câmera, o que incluía tornar a visão
limitada pelo espaço de um quadro.
Uma das experiências em que a imersão do fotógrafo era mais exigida no campo da
fotografia analógica era, certamente, no ato da focagem manual. Ao vermos uma imagem
desfocada em um visor fotográfico estamos muitas vezes limitando nossa visão por meio dos
limites da câmera – isto significa dizer que, poderíamos estar olhando o mundo em foco, mas
ao termos o olhar mediado pela câmera, o vemos desfocado, tal qual o aparelho.
3
Informação obtida no site oficial da Leica. Disponível em: <http://en.leica-camera.com/
photography/m_system/>. Acesso em 15 de dezembro de 2010.
53
Talvez o traço mais característico desta quebra seja justamente o distanciamento físico
do olho humano do visor projetivo. No visor de projeção a imagem é apresentada já
mediada, de acordo com os cálculos do dispositivo digital – é de fato uma tela, e vista como
tal, é sempre observada a certa distância.
Para ter maior controle sobre o que seria o resultado final da imagem, era necessário
ao fotógrafo pré-visualizar a foto. A pré-visualização era, portanto, uma atividade de
55
Enquanto na câmera fotográfica analógica o olhar era um olhar mediado pelo visor,
na câmera digital este olhar passa a ser informado pela tela. A visualização deixa de ser uma
conformação do olhar à câmera e passa a ser a recepção de uma imagem final, elaborada de
acordo com os parâmetros da mediação informática presente na programação do dispositivo
fotográfico digital. A mediação não se dá mais na contigüidade do olhar, mas é apresentada
como um objeto visual já pronto.
Isto não significa que não há mais mediação, mas esta passa a operar de forma
diferente: o fotógrafo recebe uma imagem pronta, uma reinterpretação da realidade sensível
transformada em objeto visual e pode escolher, dentre modos pré-configurados, diferentes
opções de visualização. Ou seja, o fotógrafo escolhe que forma de reinterpretação do visível
ao visual ele deseja ver. Não há mais imersão do olhar no dispositivo, mas antes uma imagem
que emerge pronta aos olhos do observador.
A partir de 1820 e 1830 surgem diversos aparatos e estudos científicos que vão
reconfigurar a ideia do olhar e da visão humana (CRARY, 1992). Esta reconfiguração se dá
através de dois movimentos. Primeiramente, a partir de uma exposição sistemática das
idiossincrasias do olho humano, ou seja, de suas limitações, através de estudos da percepção.
Segundo Crary, a partir destes estudos a visão deixa de ser considerada uma atividade de pura
intelecção e passa a ser compreendida como atividade corpórea, cujas bases de funcionamento
são determinadas fisiologicamente (1992, p.16).
partir de então, surge a noção de experiência visual como algo “(...) instrumental, modificável
e essencialmente abstrato (...).” (1992, p.24)
A pesquisa de Crary se refere à primeira metade do século XIX, então como relacioná-
la aos visores que hoje fazem parte da fotografia digital? Para fazemos esta conexão, basta
levarmos em conta que os visores digitais, bem como todos os outros tipos de telas
eletrônicas, são construídos tendo por base estudos fisiológicos sobre a visão humana. Um
exemplo simples disto está na forma como é atribuída cor às fotografias digitais.
Já que Seurat sabia qual seria o resultado final de sua imagem, ele podia
mover a localização e mudar a cor de seus pontos de acordo com o que
estava pintando. Mas para os sensores de imagem, a questão chave é saber a
melhor maneira de dispor os pontos para que cada parte do sensor possa criar
uma imagem vibrante – uma imagem que possibilite excelente reprodução
de cor e a utilização de poucos artefatos de renderização. Em 1970, o
cientista da Kodak, Bryce Bayer, respondeu a esta questão com o
desenvolvimento do que é hoje conhecido como o “Padrão Bayer de filtro de
cor” – um conjunto de pixels vermelhos, verdes e azuis que possibilitam a
um único sensor criar de forma eficiente e efetiva uma imagem em cores.
(DELUCA, 2010, s.p.)
4
Informação do site Wikipedia. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Rgb>. Acesso em 15 de
dezembro de 2010.
60
(CRARY, 1992, p.126). No entanto, o ponto principal desta citação é a referência a criação de
um filtro específico à interpretação de cores no campo da fotografia digital.
Figura 9 - Simulação do padrão de filtro Bayer sobre sensor fotográfico. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Bayer_pattern_on_sensor.svg>. Acesso em: 15 de dezembro de
2010
A partir da análise aqui desenvolvida podemos inferir que há, com a transição do
campo da fotografia do analógico para o digital, um deslocamento no campo dos saberes que
passam a compor a técnica fotográfica, o que vem a exigir outros tipos de especialização e de
compreensão dos padrões de formação da imagem. O campo da fotografia digital remete a um
conjunto diferenciado de teorias científicas e a níveis de abstração diferentes dos que estavam
em operação na fotografia analógica. O visor projetivo resulta em uma outra lógica de
produção da fotografia, onde o imediatismo da produção de visões se torna uma constante.
3. MOMENTO DO OBTURADOR
Na mesma época, fazer um retrato poderia ser encarado como uma verdadeira tortura
ou prova de resistência. Em geral, a pessoa fotografada precisava ficar imóvel por um longo
64
período, muitas vezes sob um sol escaldante, já que a sensibilidade das placas de metal então
utilizadas no processo era mínima, o que obrigava a fotografia a ser realizada à plena luz.
Um verdadeiro legado da própria existência, era raro que alguém possuísse mais que
uma daguerreotipia de si mesmo. Afinal, o registro em daguerreótipo não era reprodutível.
Tratado como um objeto único de apreço, o daguerreótipo era muitas vezes guardado em
sofisticados estojos de veludo, como uma verdadeira jóia. (BENJAMIN, 1994, p.93)
Figura 10 - GRICE, Francis. Daguerreótipo de homem e mulher não identificados, [1855] Biblioteca do
congresso americano. Disponível em: <http://www.loc.gov/pictures/item/2004664531/>. Acesso em 01 de
setembro de 2010.
Figura 11 - KENZER, Josh. 365 is Done (2010). Fotografia publicada no site de compartilhamento Flickr.
Disponível em: <http://www.flickr.com/photos/shoot-art/4949622365/>. Acesso em 01 de setembro de 2010.
66
habilidade técnica. A partir de 1879, no entanto, esta exigência passou a ser dispensada e
começam a surgir as primeiras indústrias a comercializar placas e papéis sensibilizados para
produção fotográfica. Dentre estas indústrias, há uma que contribui decisivamente para a
mudança do campo fotográfico ao longo do século XX: A Eastman Dry Plate and Film
Company, posteriormente conhecida mundialmente como Kodak.
Jonathan Crary em seu estudo Techniques of the observer (1992) faz questão de
destacar que, para ele, a fotografia não é o evento central na ruptura entre o observador
clássico e o que viria a ser um observador moderno. Para Crary, a reformulação do lugar do
observador frente ao mundo e às formas de representação antecede o aparecimento da
tecnologia fotográfica que é, em si, um sintoma desta mudança (1992, p.5).
Se até hoje, ao olharmos uma fotografia, não somos completamente capazes de avaliar
seu processo de produção, é certo também que, ao longo da trajetória do equipamento
fotográfico, este processo se tornou cada vez mais oculto não só para aqueles que observam
uma fotografia já pronta, como também para os próprios produtores de fotografia. As
automatizações do aparelho fotográfico que se tornaram contínuas a partir do século XX
permitiram o mascaramento progressivo de sua intermediação.
Quando a câmera Kodak aparece em 1888, ela não é a única. Havia na época uma
numerosa variedade de câmeras de mão: devido à rapidez de exposição que o suporte de
gelatina seca permitia, o tripé passa a ser um acessório dispensável à fotografia, e assim se
populariza toda uma categoria de pequenas câmeras, chamadas inicialmente de ‘câmeras
detetive’. No entanto, como afirma Beaumont Newhall, “A mais importante contribuição de
Eastman não foi certamente o desenho de sua câmera, mas o oferecimento aos seus clientes de
um serviço fotográfico completo.” (2002, p.129)
70
Nos anos de sua ascensão, Eastman possuía total conhecimento das bases
técnicas sobre as quais seus triunfos se erguiam; no entanto, sua genialidade
não estava no campo das invenções químicas, mas em seu entendimento
quase ecológico a cerca da interdependência entre tecnologia e comércio. Ele
compreendeu que se fosse para a fotografia se tornar uma atividade
universal, seria necessária uma tecnologia simples, barata e que demandasse
pouco esforço. Ele também compreendeu que tal tecnologia seria tão cara de
se por em prática e ser mantida que só poderia ser sustentada por um uso
virtualmente universal. A solução ao dilema era clara: todos no mundo
deveriam se tornar fotógrafos simultaneamente. (SZARKOWSKI, 1989,
p.125)
Desde seu início e durante todo o século XX, a Kodak buscou divulgar a fotografia
como uma atividade simples e fácil, passível de ser associada a momentos de lazer e diversão.
A simplificação do modo de funcionamento do equipamento fotográfico era uma estratégia
tecnológica fundamental ao sucesso comercial da iniciativa de George Eastman. Toda
indústria para ser lucrativa depende de uma demanda. A estratégia de George Eastman foi
certamente a de tirar a fotografia de um circulo restrito e torná-la uma atividade popular.
tempo necessário ao ato fotográfico, maior precisão de uma produção moldada segundo certos
parâmetros e o aumento da facilidade de circulação de fotografias.
A partir do final dos anos 1950 ocorrem na fotografia inovações ligadas à inserção de
componentes eletrônicos no corpo do aparelho fotográfico. A eletrônica passa a constituir um
outro sistema de conhecimento que irá se integrar ao dispositivo fotográfico a partir da
segunda metade do século XX. A linguagem eletrônica, com sua lógica de funcionamento
própria, será um grande vetor de mudanças tecnológicas, notadamente a partir do final da II
Guerra Mundial.
Para Roy Armes, os períodos posteriores aos finais das duas grandes guerras mundiais
foram, não por acaso, períodos de grandes desenvolvimentos tecnológicos. Armes considera,
ao falar do nascimento da tecnologia do vídeo, notadamente fruto do desenvolvimento da
eletrônica, que esta se deu principalmente devido ao “(...) final das duas guerras mundiais,
que deixou a capacidade produtiva industrial sem uma aplicação imediata e liberou técnicos
experientes para o trabalho no mercado.” (1998, p.126).
Em 1977 é lançada a Konica C35AF, a primeira câmera capaz de calcular o foco de forma
eletrônica, a partir de dois foto-sensores instalados 5 .
O livro nos fornece ainda uma citação retirada da revista “Industry and Power”, de
julho de 1952, que nos oferece uma valiosa perspectiva sobre automação, partindo do cenário
de desenvolvimento industrial da época:
5
Informação obtida em pesquisa da internet, com referência cruzada entre vários sites especializados em
equipamentos fotográficos históricos, dentre os quais destaca-se o site
http://www.ukcamera.com/classic_cameras/historyenglish.html
75
Mais a frente, em outro artigo publicado na mesma revista, desta vez com o título:
Camera eletronics launches photography into the 21st century, o repórter Robb Smith chama
a atenção para a segurança de funcionamento trazida pelos componentes eletrônicos na
prevenção de erros e na certeza de sucesso estético das fotografias realizadas:
A busca pela exclusão do erro é certamente uma das características dos processos de
automação, não apenas na fotografia, mas em atividades industrializadas em geral. A grande
questão que se esconde neste caso é que quase sempre o lugar que é visto como origem dos
erros pela automação é o lugar do operador humano.
Para o fotógrafo ainda resta a decisão de para onde apontar a câmera fotográfica e em
que momento ativar o modo de funcionamento automático. No entanto, o módulo smile-
shutter insere no campo da fotografia um outro tipo de aquisição de imagens – uma aquisição
automatizada, em que a decisão de gerar ou não uma imagem passa a depender não mais do
fotógrafo, mas do próprio aparelho. Neste sentido, a câmera retira das mãos do operador a
decisão daquele que foi considerado ao longo do século XX o momento privilegiado do ato
fotográfico: o momento do corte, da decisão entre realizar ou não uma fotografia.
Durante todo o século XX, o pensamento sobre a fotografia centrou sua análise sobre
o momento do clique fotográfico – a própria noção do instantâneo que levou a encarar a
fotografia como um ato que se resumisse apenas a um gesto, a decisão do fotógrafo entre
realizar ou não uma fotografia.
6
Informação obtida em site oficial da empresa Sony, a partir do release de lançamento das câmeras Sony
cybershot série T. Disponível em: <http://news.sel.sony.com/en/press_room/consumer/digital_imaging
/digital_cameras/cyber-shot/release/31103.html>. Acesso em 5 de janeiro de 2011. No Brasil, as câmeras com
esta função foram lançadas em setembro de 2008 (O GLOBO, 2008, s.p.)
79
Machado aponta para o fato da mística em torno do momento do clique fotográfico ser
ainda cultivada em diversos círculos da prática e da reflexão fotográfica (2001, p.133).
Conforme o autor elucida, esta questão está em muito ligada à ideia da fotografia como
registro, no campo da prática fotográfica, e como índice, na área das reflexões teóricas.
No campo das reflexões teóricas, há ainda boa parte da crítica que considera a falta de
indicialidade como sendo o principal traço de diferenciação entre a fotografia analógica e a
digital. Esta seria uma falsa diferença. Insistimos aqui no caráter simbólico da representação
fotográfica: a imagem fotográfica resulta sempre de uma interpretação da luz segundo leis
científicas. Isto tanto na fotografia analógica quando na digital.
4. MOMENTO DA PÓS-PRODUÇÃO
Figura 14 - As duas imagens enviadas pelo fotógrafo Marc Feldman à agência Getty Images. À direita, a
imagem editada. Disponível em: <http://www.petapixel.com/ 2010/07/19/getty-photographer-terminated-
over-altered-golf-photo/>. Acesso em 13 de fevereiro de 2011
83
Marc Feldman, ao ser confrontado com a notícia de sua demissão afirmou ter enviado
as duas imagens por erro. Segundo o fotógrafo, após o evento, o golfista e seu auxiliar foram
ver as fotos e sugeriram que esta seria muito melhor caso aparecesse apenas o golfista (LUM,
2010, s.p.). Feldman haveria então feito uma edição apenas para mostrar como era fácil tornar
isto possível. A imagem alterada teria assim sido enviada por acidente, junto às demais não
editadas. Feldman declarou que “Não havia nenhuma intenção de que esta imagem fosse
passada como uma imagem verdadeira. Apenas um idiota enviaria ambas as fotos, e eu a teria
editado muito melhor também.” (FELDMAN apud LUM, 2010, s.p.).
A declaração de Feldman de que ele teria mandado as duas fotos por engano parece
verossímil. No entanto, segundo a opinião do fotógrafo, se ele quisesse, poderia ter editado
melhor a imagem e tê-la transmitido como uma fotografia não editada. Não há nada que possa
contradizer a opinião de Feldman, no entanto há uma desconfiança implícita a toda fotografia
digital de ser ou não uma imagem diferente da que teria sido primeiramente realizada.
O tipo edição hoje julgado com tanto intento e severidade, já fez parte da prática
fotojornalística em casos que precedem à fotografia digital. Como no caso da imagem do
fotógrafo John Filo tirada em meio a protestos anti-guerra, nos anos 1970, nos Estados
Unidos. Em maio de 1995, a revista LIFE publicou uma versão alterada da imagem original
que mostrava uma jovem ajoelhada ao lado do corpo de um estudante morto durante um
protesto. Na imagem original, há um poste que se encontra diretamente atrás da jovem. Na
fotografia reproduzida na revista LIFE, o poste foi removido.
Figura 15 - Fotografia tirada por John Filo (1970). À esquerda está a imagem tal como publicada na
revista LIFE, edição de maio de 1995. Disponível em: <http://www.cs.dartmouth.edu/farid/research
/digitaltampering/ kentstate1 +2.jpg>. Acesso em 13 de fevereiro de 2011.
84
Quando a fotografia editada de Filo foi divulgada pela revista LIFE, acusou-se a
revistar de manipular digitalmente a imagem. Na verdade, a imagem havia sido editada anos
antes, ainda em um laboratório fotográfico. Mesmo tendo sido divulgada diversas vezes,
nunca se havia notado a ausência do poste.
Apenas na publicação de 1995 a edição chegou a ser notada e a promover algum tipo
de comoção. Isto indica que em 1995 havia um cenário mais propício à detecção da edição do
que 5 anos antes, quando a imagem editada havia sido publicada pela última vez (PEOPLE,
1990, p.117). Vale citar que o Photoshop, ferramenta mais usada para a edição digital de
imagens, foi primeiramente lançado em 1991. 8
7
Referências à mensagem enviada por David Friend à NPPA (National Press Photographers Association)
disponíveis em: < http://www.zonezero.com/magazine/articles/meyer/06.html>. Acesso em 13 de fevereiro
de 2011. A questão foi novamente abordada por Friend em um blog pessoal no ano de 2007, em um texto
intitulado “Nefarious darkroom deeds?”. Disponível em: < http://davidfriend.net/2007/04/>. Acesso em 13
de fevereiro de 2011.
8
Informação retirada do site especial da empresa Adobe em comemoração aos 20 anos de existência do
Photoshop. Disponível em : <http://www.photoshop20anniversary.com/>. Acesso em 20 de fevereiro de
2011.
85
à empresa. Como a empresa Time-Life já tinha a versão original, parece óbvio que soubessem
que se tratava de uma edição.
Em nenhum dos dois casos apresentados, seja no atual caso de Feldman, ou no de Filo,
os elementos retirados da imagem eram indispensáveis à compreensão do que elas
veiculavam. Os fins da edição eram, portanto, estéticos. No entanto, enquanto a apresentação
da imagem editada em nada tirou os méritos de Filo, nos dias de hoje este mesmo tipo de
edição acabou por levar à demissão um fotógrafo experiente, e uma agência fotográfica a
emitir um mandado de exclusão da fotografia dos bancos de dados.
Figura 16 - Aviso da agência de imagens Gettyimages para eliminação da fotografia de Marc Feldman do
banco de imagens. Disponível em: <http://www.petapixel.com/2010/07/19/getty-photographer-terminated-
over-altered-golf-photo/>. Acesso em 13 de fevereiro de 2011.
86
No livro Mediated memories in the digital age (2007) a teórica holandesa José van
Dijck discute as transformações que a fotografia digital traz para o âmbito da reconstrução da
memória pessoal a partir de imagens. Segundo a autora a transferência da fotografia para o
campo da linguagem digital modifica o lugar central reservado à prática fotográfica. A autora
considera que, se antes era prioridade tratar a foto como um objeto a ser guardado para
posterior memória, com a fotografia digital vemos uma maior valorização dos usos
comunicativos e performativos da imagem
A própria autora faz questão de esclarecer que os usos da fotografia como meio de
comunicação não são novos, mas que este não era o princípio central dos modos de
enunciação fotográfica na esfera do cotidiano. Para a autora, esta transformação dos usos está
conectada com a possibilidade de maior domínio sobre os resultados finais de uma imagem
(DIJCK, 2001, p.100), ou seja, relacionam-se com o que aqui denominamos de momento da
pós-produção.
Este processo fez parte da inserção da fotografia na arte, não mais como forma de
expressão separada, mas como mais um meio para a realização artística. Concretizou-se no
campo fotográfico um processo artístico de ruptura com a denotação referencialista que havia
88
sido construída pelo campo da fotografia documental. “(...) de forma freqüente a fotografia
passou a ser não uma ideia alternativa, mas meramente um meio alternativo – uma outra
técnica, tal como o silkscreen ou a tinta em spray, que estava disponível aos artistas abertos a
outras possibilidades.” (SZARKOWSKI, 1989, p.275)
Nas décadas de 1950, 1960 e principalmente, 1970, a expressão fotográfica fez parte
de um amplo movimento de hibridização das artes (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.179). A
partir deste momento, a fotografia artística volta-se a explorações diferenciadas das
possibilidades de fotográfico – remetendo em especial às técnicas do tableaux e à encenação,
como nas obras de Cindy Sherman e Bernard Faucon; mas também a trucagens e grafismos
da imagem, como na retomada da fotografia pinhole por Eric Renner, ou nas falsas anatomias
vegetais e espécies animais de Joan Fontcuberta.
Figura 19 - Barrufeta godafreda (da série Herbarium) de Joan Fontcuberta (1983). Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2841&cd_materia=1125>. Acesso em 3 de
fevereiro de 2011.
90
Figura 20 - Ticul ice house de Eric Renner (1968). Disponível em: <http://ericrennerphoto.com/
artwork/1584510_Ticul_Ice_House_Ticul_Mexico_1968.html>. Acesso em 3 de fevereiro de 2011.
Se antes este tipo de expressão fotográfica estava muito distante da prática cotidiana
da fotografia, o que vemos a partir da transição do digital é a incorporação mais intensa destes
procedimentos (encenação, alterações no registro, colagens variadas) à prática amadora não-
especializada. A imagem pessoal da produção amadora passando a ser veiculada não como
imagem registro, mas como uma imagem escolhida para simbolizar determinado momento,
conceito, ou situação.
Se antes a fotografia era guardada e exibida para poucos escolhidos, hoje em dia ela é
publicizada em meio a uma rede de transmissão e recepção de mensagens, o que a torna um
tipo diferente de enunciação: “Quando as fotos se tornam uma linguagem visual veiculada por
um meio de comunicação, o valor das imagens individuais diminui, enquanto o significado
geral de comunicação visual aumenta.” (DJICK, 2007, p.115). Isto leva a um outro tipo de
relação do produtor fotográfico amador com a imagem produzida.
Toda e qualquer visualização de imagem digital é apenas uma aparição desta imagem.
Saindo do léxico do mágico e reentrando na terminologia computacional, toda aparição de
uma imagem digital é uma atualização da imagem que, enquanto permanece não vista, é
apenas virtual. Portanto, não são só os novos espaços de exibição da imagem digital que estão
em fluxo, mas a própria imagem passa a ser também um código flutuante sempre pronto a ser
reatualizado.
constantemente repetível. Daí para frente é possível que haja perda de qualidade e de
informações, mas trata-se das escolhas na forma de atualização desta imagem.
A conformação de uma matriz numérica não significa que não haverá degradação da
informação contida em uma imagem digital. De forma destacada, manter e administrar
informações tem se tornado um dos grandes problemas da atualidade.
40% dos lares com câmeras digitais não imprimem mais fotografias; 65%
das pessoas compartilhando fotografias on-line o fazem pelo site Facebook;
Menos de 33% destas pessoas se dão conta de que o site Facebook armazena
fotografias em uma resolução menor. (MCDEVITT, 2010, s.p.)
9
<http://www.petapixel.com>
93
Também é perturbador que a maioria dos usuários não tenha ideia de que,
ao armazenar uma fotografia no Facebook – e então deletá-la de sua câmera
– significa que você tenha perdido a imagem original para sempre. Isto é
provavelmente porque as fotos do Facebook pareçam simplesmente boas o
bastante em uma tela de computador. (ZHANG, 2010, s/p)
Talvez a análise mais efetiva sobre a atual conjuntura, em que cada vez imprimimos
menos e compartilhamos mais, seja justamente a de um engenheiro do site Facebook. Scott
Marlette considera que o importante nos dias de hoje não é o tamanho da imagem
armazenada, mas que “(...) o valor de uma foto é quem está nela, quando foi tirada e qual
memória ou experiência associamos a ela.” (MARLETTE apud SUMMERS, 2009, s.p.).
recorremos sempre a uma série de cópias de segurança, seja em outros dispositivos, ou agora,
de modo mais proeminente, através do recurso do cloud computing (computação em nuvem)
que armazena os arquivos não em um dispositivo material, mas em uma rede de dispositivos.
Neste sentido, há tanto modos profissionais de armazenamento por envio via internet, quanto
alternativas tão mais baratas, quanto mais inseguras, de dar guarda aos arquivos digitais.
A produção de arquivos não para de crescer a uma taxa ainda maior do que cresce a
capacidade de armazenagem dos dispositivos computacionais. O problema continua sendo
não apenas de armazenamento, mas também de como lidar com o imenso número de
informações que armazenamos. No caso de uma pessoa com compulsão fotográfica, o suporte
digital torna possível tirar mais de 100 fotos em um dia, ou mesmo em uma hora. Porém, o
que acontece com estas imagens? Elas chegam ao menos a serem vistas? Como lidar com
tanta informação?
Todavia, como nos afirma Dijck (2007, p.114), os novos meios virtuais de publicação
de imagens não equivalem aos álbuns fotográficos de outrora. Não há, nos meios de
armazenamento digital, nenhuma garantia de guarda a longo prazo, nenhuma certeza de
memória. O que há é um fluxo contínuo de informações atualizáveis por tempo
indeterminado.
grande número de imagens, de onde apenas poucas seriam escolhidas para representar o
tempo total de duração do ato fotográfico.
Por maior que seja a quantidade de fotografias que um sujeito seja capaz de produzir,
as imagens-tesouro, como seria a imagem da foto de formatura de um filho na parede,
parecem se tornar materialmente escassas, ou ao menos, sua economia simbólica passa a ser
outra. O lugar de guarda, de cuidado e atenção para estas imagens não é mais necessariamente
o porta-retrato na cabeceira, ou o retrato no quadro da parede, mas a tela de fundo de um
computador, um avatar em uma rede social, ou a imagem de uma ligação em um celular.
Às vezes estas representações permaneciam por tanto tempo no mesmo lugar que
chegavam a se tornar invisíveis. No entanto, quando lembradas, poderiam ser revistas, pois
permaneciam lá, apesar dos possíveis desgastes químicos. Por vezes se perdiam, mas sempre
era possível reencontrá-las. Eram propriamente coisas, objetos materiais e, inadvertidamente,
poderíamos esbarrar com uma quando menos esperássemos.
Mesmo que Santaella e Nöth afirmem que o caminho da humanidade tenha sido na
busca de meios cada vez mais resistentes e imperecíveis de armazenamento (SANTAELLA &
NÖTH, 2008, p.138), a atual conjuntura do digital nos faz duvidar e questionar até que ponto
está assegurado o acesso futuro ao imenso contingente de imagens e conteúdos culturais que
circulam nos dias de hoje. Pois, se o digital favorece o compartilhamento das mensagens, é
também verdade que ele favorece o fluxo interminável de substituição de uma mensagem por
outra, sem garantias de conservação das que passaram.
98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lissovsky considera haver uma diferença essencial entre o que era a postura do
fotógrafo do século XIX e o que foi a prática fotográfica no século XX. Segundo Lissovsky, o
fotógrafo do século XIX apostava todas as suas fichas no enquadramento da foto (2008,
p.162). O central à fotografia de então era a escolha e a composição de uma vista a partir de
um ponto.
Antes de decidir realizar uma foto, era necessário ao fotógrafo oitocentista posicionar
cuidadosamente a câmera, e esperar em repouso a realização da foto. É apenas a partir do
século XX que vemos a fotografia se tornar um sinônimo do olhar em movimento e em
constante agitação.
A modificação na técnica fotográfica faz surgir, a partir da gelatina seca, outras formas
de composição e elaboração da imagem fotográfica. Para Lissovsky, o tempo na fotografia
era, antes do suporte de gelatina seca, o tempo necessário da exposição do suporte fotográfico
à luz. A partir da nova tecnologia, o tempo de exposição deixa de ser um tempo longo, e passa
a ser de fração de segundos, o tempo do corte.
Para outro autor, John Szarkowsky, esta mudança também resultou na construção de
parâmetros visuais e estéticos diferenciados dos praticados anteriormente (SZARKOWSKY,
1989). Segundo Szarkowsky, as placas de gelatina seca possibilitaram um outro tipo de
exploração fotográfica do mundo que permitia “(...) maiores improvisações e um sentido
generalizadamente mais aceito da natureza discursiva da imagem do que o método do colódio
úmido (1989, p.134)
A partir do século XX, a experiência de fotografar passa a ser moldada por uma outra
concepção do tempo do ato. Passa-se à compreensão da fotografia como um corte em meio ao
tempo de uma duração. No entanto, este corte, segundo Lissovsky vêm também carregado de
espera. Esta espera já é de outro tipo, pois não se encontra mais como uma espera em repouso,
como a do tempo antes necessário à exposição do suporte, mas como uma espera ativa, pela
decisão de realizar ou não uma fotografia. “A espera é um lugar difícil de descrever (…). E,
no entanto, não é de outra coisa que vão falar os fotógrafos modernos: de sua espera e do
modo como ela se torna – ela, e não a imagem – a principal matéria sobre a qual trabalham.”
(LISSOVSKY, 2008, p.59)
Lissovsky faz questão de ressaltar que o tipo de experiência centrada no corte como
lapidação do tempo da imagem é, todavia, uma experiência pertencente a um momento
específico da história fotográfica, que começa mesmo a ser suplantado já a partir das décadas
de 1960 e 1970. Fotografias como as de William Klein, Lee Friedlander e Arthur Omar são
exemplos de uma outra concepção da imagem, de uma relação temporal diferente com o
processo de criação fotográfica (2008, p.143).
A partir da metade final do século XX, a espera deixa ocupar o lugar central no
discurso dos fotógrafos quanto à sua prática. Segundo Lissovsky, criações como as de Omar e
Klein refletem um modo de produção que “no limiar histórico da experiência moderna, evoca
a espera pelo fim da espera.” (2008, p.143).
Figura 21 - Candy Shop de William Klein, Nova york, (1954-55). Disponível em: <http://www.masters-of-
photography.com/K/klein/klein_candy_store_full.html>. Acesso em 10 de fevereiro de 2011.
Figura 22 - Leite Zulú para Harmonia Figura 23 - Albuquerque, de Lee Friedlander
Química Nacional, de Arthur Omar, (1972). Disponível em: <http://www.arts
parte
da série Série Antropologia da cenecal.com/ArtistsFiles/FriedlanderL/LFriedl
Face Gloriosa, (1973-1997). Disponível ander.html>. Acesso em 10 de fevereiro de
em: <http://www.colecaopirellimasp.art 2011.
.br/autores/145/obra/509>. Acesso em 10
de fevereiro de 2011.
101
Se antes toda foto era uma imagem resultante de uma espera, a partir do digital, ela
passa a ser uma representação colocada em fluxo. Isto desde o momento inicial, quando, ao
olhar para o visor projetivo, o operador já se defronta com a possibilidade de escolher entre
um modo ou outro de mediação visual para criação da imagem.
10
O 2º Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo foi realizado no Instituto Itau Cultural, na cidade
de São Paulo - SP entre os dias 20 e 24 de outubro de 2010. A fala de Lissovsky ocorreu no dia 24 de
outubro, em uma mesa intitulada “Divagações Sobre o Futuro”. Os vídeos da palestra podem ser acessados
em: <http://www.tvaovivo.tv.br/itaucultural/forumfoto/#>
102
Segundo Santaella e Nöth, é só a partir da computação que “(...) o tempo passou a ser
introjetado dentro da imagem em si mesma, imagem que, finalmente, adquire o poder de se
comportar exatamente como o som na sua natureza de puro tempo” (2008, p.93). Mais à
frente, seguindo com as analogias entre imagem digital e música, Santaella e Nöth assinalam
o que seria uma das diferenças centrais entre as formas de registro dos paradigmas pré-
fotográfico e fotográfico com relação às representações digitais da imagem:
A vida em aceleração
A câmera RC-701 não era propriamente uma câmera digital, mas uma câmera de vídeo
capaz de gerar stills fotográficos. No entanto, podemos considerá-la um antepassado direto
das câmeras digitais, uma vez que o que estava em jogo em seu desenvolvimento era a
possibilidade de uma fotografia realizada sem película fotográfica ou processos químicos.
11
Informação obtida em site oficial da empresa Canon. Disponível em: < http://www.canon.com/camera-
museum/history/canon_story/1976_1986/1976_1986.html>. Acesso em 10 de fevereiro de 2011.
105
Mitos do digital
Um dos aspectos que acompanhou as discussões sobre o digital em seu início foi a
discussão sobre um suposto potencial democratizante das linguagens digitais. Este aspecto da
discussão também foi remetido ao campo da fotografia, onde o acesso a equipamentos mais
baratos, capazes de gerar um número maior de imagens sem custo adicional foi remetido a
uma ideia pouco precisa de democracia.
Para nós, não é possível afirmar uma linearidade causal que determinaria que quanto
mais pessoas estejam fotografando, mais democrático será o convívio social. Toda a
construção da ideia de que a fotografia digital promove uma democratização do ato
fotográfico passa por uma associação errônea entre democracia e possibilidade de consumo.
Evidente já se fez que a democratização (...) não é nada que se obtenha pela
multiplicidade técnica de canais, nem por uma legislação liberal aplicada às
telecomunicações, nem mesmo pela concentração de espaços promovida
pelas redes cibernéticas, que faz os ‘grandes’ equivalerem virtualmente aos
‘pequenos’. (SODRÉ, 2008, p.27)
Não há nada no digital que garanta que quanto mais pessoas estiverem tirando fotos
será maior a democratização. Seguindo a abordagem discursiva, a análise das condições de
um discurso não pode se centrar em uma etapa, mas deve investigar os caminhos que um
106
Um dos aspectos mais positivos do advento da fotografia digital foi o fato desta
mudança ter trazido o meio fotográfico à berlinda, colocando novamente em discussão as
práticas e percepções sociais sobre fotografia. O digital reacendeu velhas polêmicas,
resultando na necessidade de se repensar os processos de criação fotográfica, além de levar à
reformulação do senso comum quanto ao que é fotografia.
mente que os códigos digitais são reprogramáveis. Todo programa é uma forma de
reinterpretação do código, e estas formas de reinterpretação podem ser refeitas, desde que haja
acesso e entendimento aos modos de funcionamento das programações digitais.
A nova forma de produção e consumo de imagens estabelece uma outra relação com
as imagens produzidas, uma relação mais apta ao diálogo, em que toda imagem passa a ser
vista como imagem aberta, sujeita à apropriação, a modificações e reformulações de acordo
com a intenção comunicacional desejada.
Ao mesmo tempo, a característica de fluxo da imagem digital não pode ser tomada
como garantia de diferenciação e heterogeneidade da imagem. Afinal, temos de considerar
que a rápida substituição de imagens umas pelas outras é capaz, ás vezes, de gerar de forma
mais imediata um sentimento de homogeneidade que de diferenciação quanto à prática do
fotográfico.
As mudanças que o digital traz ao campo da fotografia são muitas, mas são tantas não
porque são apenas mudanças na fotografia, mas porque dizem respeito a mudanças nos
sistemas sociais de produção, circulação e consumo de produtos culturais. Em um primeiro
momento, estas alterações geram choques, conflitos e reações anacrônicas. Porém, geram
também outras possibilidades. Citando novamente John Szarkowsky ao falar das
instabilidades dos modos de operação no campo da fotografia: “Talvez nada de conseqüência
tenha sido de fato perdido – apenas uma ilusão” (1989, p.291).
109
REFERÊNCIAS
ARMES, Roy. On video: o significado do vídeo nos meios de comunicação. São Paulo:
Summus, 1999.
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
BOCK, Mário. Câmeras clássicas: as máquinas fotográficas que marcaram época. São Paulo:
Editora Europa, 2007.
CANON INC. Canon camera story: 1976 -1986. Disponível em: <http://www.canon.com/
camera-museum/history/canon_story/1976_1986/1976_1986.html>. Acesso em 20 de
fevereiro de 2011.
DELUCA, Michael. Color and Light. In: Kodak Plugged-in. Nova York, 29 de março de
2010. Disponível em: <http://pluggedin.kodak.com/pluggedin/post/?id=2995926>. Acesso em
10 de agosto de 2010.
DIJCK, José van. Mediated memories in the digital age. Stanford, CA: Stanford University
Press, 2007.
EHRENBERG, Rachel. Square Pixel Inventor Tries to Smooth Things Out. In: Revista
Wired on-line, 28 de junho de 2010, Seção de Ciências. Disponível em: <http://www.
wired.com/wiredscience/2010/06/smoothing-square-pixels/>. Acesso em 5 de julho de 2010.
FAUCON, Bernard. La neige qui brule (1981). Imagem fotográfica digitalizada. Disponível
em: <http://www.itaucultural.org.br/bcodeimagens/imagens_publico/013302115378.jpg>.
Acesso em 03 de fevereiro de 2011
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa-preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
FRIEND, David. Nefarious darkroom deeds?. 09 de abril de 2007. Disponível em: <
http://davidfriend.net/2007/04/nefarious_darkroom_deeds.php>. Acesso em 13 de fevereiro
de 2011.
GEORGE EASTMAN HOUSE. Technology Time Line. Rochester, NY: George Eastman
House, 2001. Disponível em: <http://www.geh.org/fm/timeline-cameras/
htmlsrc/timeline_sld00001.html>. Acesso em 12 de dezembro de 2010
GRICE, Francis. [Unidentified man and woman, seated, facing front]. Daguerreotipia,
[1855]. Washington: Library of Congress Prints and Photographs Division. Disponível em: <
http://www.loc.gov/pictures/item/2004664531/>. Acesso em 01 de setembro de 2010.
JACOBS, Ed. Auto-focus cameras: now eletronics provides point-and-shoot photography. In:
Popular Science. Nova York, v. 217, nº6, p.96-99, Dezembro de 1980.
KENZER, John. 365 is done. Fotografia digital, 2010. Disponível em: <http://
www.flickr.com/photos/shoot-art/4949622365/>. Acesso em 01 de setembro de 2010.
112
LUM, Jessica. Getty Photographer Terminated Over Altered Golf Photo. In: Petapixel. 19 de
julho de 2010. Disponível em: <http://www.petapixel.com/2010/07/19/getty-photographer-
terminated-over-altered-golf-photo/>. Acesso em 13 de fevereiro de 2011.
__________. Dropped Getty Photographer Says He Made ‘Fatal Mistake’ in Sending Golf
Photo. In: Petapixel. 21 de julho de 2010. Disponível em: <http://www.petapixel
.com/2010/07/21/dropped-getty-photographer-says-he-made-fatal-mistake-in-sending-golf-
photo/>. Acesso em 13 de fevereiro de 2011.
MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos e Contracapa: 2001.
MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: MIT Press, 2000.
MCDEVITT, Caitlin. Pros and cons to Facebook's fast-growing role in digital photography.
In: The Washington Post. Washington, 14 de março de 2010, Seção Business. Disponível
em: < http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2010/03/13/AR20100313000
90.html>. Acesso em 18 de dezembro de 2010.
OLIVER, John William. History of american technology. New York: The Ronald Press
Company, 1956.
OMAR, Arthur. Leite Zulú para Harmonia Química Nacional. Parte da Série:
Antropologia da face gloriosa, (1973-1997). Fotografia digitalizada. Disponível em:
<http://www.colecao pirellimasp.art.br/autores/145/obra/509>. Acesso em 10 de fevereiro de
2011.
RENNER, Eric. Ticul ice house (1968). Imagem fotográfica digitalizada. Disponível em:
<http://ericrennerphoto.com/artwork/1584510_Ticul_Ice_House_Ticul_Mexico _1968.html>.
Acesso em 3 de fevereiro de 2011.
SAMAIN, Etiene. (org.). O fotográfico. São Paulo: Editora Hucitec/Editora Senac São Paulo,
2005.
SANTAELLA, Lucia ; NÖTH, Winfred. Imagem: Cognição, semiótica, mídia. São Paulo:
Iluminuras, 2008.
SHERMAN, Cindy. Untitled film still #21 (1978). Imagem fotográfica digitalizada.
Disponível em: <http://www.moma.org/interactives/exhibitions/1997/sherman/untitled
21.html>. Acesso em 03 de fevereiro de 2011
SMITH, Robb. Camera eletronics launches photography into the 21st century. In: Popular
Science. Nova York, v. 217, nº6, p.100-103, Dezembro de 1980.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
<http://oglobo.globo.com/tecnologia/mat/2008/09/22/sony_amplia_linha_cyber-
shot_com_recursos_smile_ shutter-548322745.asp>. Acesso em 5 de janeiro de 2011
SUMMERS, Nick. Don't Expect High-Resolution Photos on Facebook Any Time Soon. In:
Revista Newsweek on-line, 27 de outubro de 2009.
ZEISS ICON AG. STUTTGART. Contax IIIa Instruction Book. Alemanha, [1950], 37 p.
Disponível em: <http://www.butkus.org/chinon/contax/contax_iiia.htm>. Acesso em 20 de
novembro de 2010.
ZENIT. Capa do manual de instruções do kit Photosniper. Imagem digital. Disponível em:
< http://www.xs4all.nl/~tomtiger/zenit/cover_b.jpg>. Acesso em 12 de dezembro de 2010
ZHANG, Michael. Don’t Use Facebook for Photo Storage. In: Petapixel. 13 de março de
2010. Disponível em: < http://www.petapixel.com/2010/03/13/dont-use-facebook-for-photo-
storage/>. Acesso em 15 de dezembro de 2010.