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Aufklarung, razão e sensibilidade: o sujeito no

cenáculo moderno.
Introdução
A modernidade deu ao homem uma iniciativa inesperada: de agir sobre o mundo
à sua maneira; concedeu-lhe a razão, da qual ele pode regozijar-se e lhe deu os meios
práticos para ser esclarecido (aufgekälrten). Dominando a natureza, o homem
estabeleceu seu domínio sobre o globo

Pareceu, ao longo do tempo, que o mundo atuava à revelia do sujeito, nas leis que lhe
são próprias

Com sérias referências a literatura, pretende-se mostrar como esta última está
inseparável de tudo aquilo que admite uma conotação “psicológica”.

Algo falta para ele ser esclarecido (Aufklärung)

A modernidade, que Freud trabalhou em o mal-estar transformou o prazer complexo


simples miséria do prazer impessoal,
I
Discussões sobre modernidade trazem à baila quase sempre a atividade do
sujeito moderno. Em história da filosofia, Descartes aparece como expoente primeiro
dessa reviravolta, seguido de pensadores empiristas como Locke, Hume e Bacon,
encontrando sua síntese em Kant (Cf. Mello e Donato, 2011). Este último, como
representante da Aufklärung1 alemã do século XVIII, embora participe do projeto
iluminista de progresso, dá ao conceito de esclarecimento (Aufklärung) uma
significação à parte, fora do signo fechado ao qual se lhe atribui a nominação de século
das luzes ou iluminismo e parece, com isso, constitui-lo de uma ligação polissêmica.
Esclarecimento ou Aufklärung, entretanto, resguardam seu vínculo semântico por
pertencerem ao projeto da modernidade e se interligarem de alguma forma. Quanto a
esse projeto, é válido explorá-lo, visto que para muitos autores (Cf. Habermas, Lyotard)
já se constitui um anacronismo tomá-lo como signo da atualidade, mas parece não ser
bem assim.
O ponto nevrálgico da modernidade foram os acontecimentos da revolução
francesa e a ruptura da tradição conservadora, do direito divino ao surgimento da
moderna burguesia. Passados mais de duzentos anos, o conceito de pós-modernidade
parece esterilizado pelas fortes reminiscências históricas que permanecem da
modernidade, em especial referentes a seu sujeito. Não é possível superar um passado
pelo simples vetor da consciência, o retorno do recalcado está aí para prová-lo. Numa
sociedade que projeta seus resultados pelo cálculo dos seus danos, corpo e mente atuam
em conjunto, subconvencionados dinamicamente pelo símbolo-mãe do progresso. Para
imiscuir-se no evento egrégio, o ser-no-mundo é forçado a atuar na totalidade dos seus
esforços, abstraindo todas as suas dimensões, perdendo o fôlego galvanizado,
alimentando o mundo e sendo por ele alimentado. Quer dizer, os caminhos da
angustiante e indeterminada pós-modernidade não podem se abrir porquanto o homem
continue a receber, pelo resultado de seus esforços, exíguas migalhas de satisfação
primitiva.
A modernidade perdura, portanto, como passado, memória e símbolo a partir dos
quais fora construída e diante dos quais nos resguardamos. É a mundividência
infatigável começada na Europa e continuada por seus herdeiros. Como processo

1
Ao longo deste trabalho, Aufklärung denotará tanto o movimento iluminista como ficou conhecido na
Alemanha, qual Lumière na França ou Enlightenment nos países de língua inglesa, quanto o conceito
trabalhado especificamente por Kant no texto “Was ist Aufklärung? “ de 1784. Cabe, portanto, atentar-se
ao contexto no qual ela estará sendo apresentada.
dialético transformativo, opera por um ruído silencioso, mas nem por isso inexistente;
Marx assim o propusera: “o mundo sob o qual estamos pesa uma tonelada — mas vocês
o sentem?”. 2 A modernidade foi e é resultado de inúmeras operações levadas a cabo por
seus sujeitos numa fome de indeterminada precisão, em relação à qual superam e
suportam seus componentes a existência de si e do outro na esfera conjugada da vida
pública e privada3. Nas relações afetivas, da amizade ao amor romântico às político-
econômicas e comerciais, o adjetivo “moderno” constitui uma plêiade de significantes.
Um deles suplica pela ampliação do debate sobre subjetivação e emancipação do sujeito
moderno, uma vez que este sujeito encontra-se diante de sérias ameaças, misturado a
consciências que não são as dele.
Uma primeira fonte a partir da qual se torna possível ampliá-lo é a respeito do
conceito de Aufklärung, assim nominado no texto-resposta de Kant (1985) à pergunta
“O que é Esclarecimento?”. A partir de Kant, esclarecimento (Aufklärung) se tornaria
uma categoria superior da razão, abaixo da qual existiria um status de dependência
nuclear, marcada pela culpa e inação do próprio sujeito, síntese do assujeitamento da
razão a outrem, embora também símbolo de um tempo superado. A Aufklärung alemã,
como emancipação da razão, compartilha sua semântica com a cronologia do tempo das
luzes, movimento surgido no século XVII que propugnava o racionalismo como
contraforte às ideias obscurantistas, das quais faziam parte o absolutismo e o poder
clerical e nobiliárquico dos tempos pré-capitalistas. O iluminismo francês foi o primeiro
movimento a alumiar a consciência dos cidadãos do mundo europeu partindo de um
modelo racionalista, técnico e programático pautado no conhecimento científico e
exploratório do homem frente à natureza, construindo uma primeira divisão de saberes
que marcava, entre outras coisas, a primazia da racionalidade, da liberdade e da
individualidade.
Os ideais iluministas no final do século XVIII encontraram, na mesma
proporção de seu disparo, seu fim na revolução francesa e no crescimento do
capitalismo em fins de fase de transição. Apesar do desenvolvimento do capitalismo
estar atrelado à transição lenta da sociedade feudal até sua alçada e consolidação como
sistema, o ponto de inserção e crítica é a revolução burguesa, assinalando, pois, um
segundo eixo da modernidade, desdobrado a partir de 1789. No freio da revolução, as

2
Retirado de: “Speech at the Anniversary of The People's Paper (1856). Disponível em:
http://marxengels.public-archive.net/en/ME0972en.html.
3
Marx (2010) reconheceu esse aspecto neutro da modernidade ao dizer que os homens são agora
cúmplices deles mesmos, sóbrios diante de outros homens e de suas posições sociais.
reinvindicações populares da burguesia consolidaram uma nova hegemonia política,
marcando o fim do iluminismo e o início do capitalismo ao qual se lhe seguiu o avanço
permanente da modernidade industrial, a ascensão do liberalismo econômico e do
mercado mundial, os projetos de dominação extraterritoriais e nacionalistas e o
surgimento de um novo sujeito que, cego do entusiasmo, viveria às expensas de um
horizonte amplo porém limitado em sua essência.
Nesse contexto de defluxo da razão ao aprimoramento do mundo, a Aufklärung
passaria a atuar como crítica e apelo à racionalidade, fomentando “ligações inegáveis
entre o espírito das luzes e a burguesia” (LÖWY e SAYRE, 2015, p.81). Tais ligações
amalgamaram-se no conceito de romantismo anticapitalista de viés marxista e, mais
notavelmente, no “espírito capitalista” de Weber.
No cenáculo desencorajado, desencantado e, segundo Marx (2010), afogado pelo
cálculo egoísta, a racionalização e o vínculo sob os quais estiveram alicerçados as
próprias leis de instrução do mundo moderno ampliaram seu universo de forma
permanente, com sua dialética de construção própria. Na medida em que ampliavam o
campo de ação indireto do sujeito, limitavam sua ação direta, qual seja, eximiam do
homem a responsabilidade do diálogo transversal com o mundo; um paradoxo
descabido para as leis do homem, que antes via sua limitação nas leis da natureza.
Muito embora este sujeito fosse o ator principal do mundo moderno, a articulação dele
com a matéria natural e a substância sucediam-se sob leis, em respeito às quais deviam
seguir, em estado de semicegueira, os “imperativos da universalidade
homogeneizadora” (SHINN, 2008, p.47). As leis de produção, no mundo capitalista
organizado, passaram a regulamentar também as relações de produção, gerando
intercâmbios comerciais cada vez mais fortes e abastecendo o comércio em sua infinita
platitude mercantil. Nas cada vez mais estritas relações com a mercadoria, valor de uso
e valor de troca extrapolavam o campo subjetivo do sujeito ao torná-lo ele mesmo uma
mercadoria. Assim, todo conjunto moderno crescia e o homem se retirava.
O enamoramento deste com o produto e, ao passar do tempo, sua postura
claudicante frente à inovação do maquinário fizeram dele um ser formiguejante,
inválido, posto a viver o “turbilhão da modernidade” na obrigatoriedade de dá-la forma
e continuidade. Foi assim que a modernidade inaugurou a ideia de progresso científico e
tecnológico, com muitas fronteiras expansíveis e muitos recursos à mão. Ao fazer do
prisma de alcance limitado um campo plural e infinito de nem sempre seguras
possibilidades, o mundo moderno foi encilhando o papel do sujeito até colocá-lo como
um colaborador mais parasitário do que propriamente efetivo. Com o recenseamento das
ideias e a compartimentalização de “pontos de saber”, tornaram-se múltiplos os usos da
razão; para citar um exemplo, a ampliação do horizonte tecnológico aparece para Shinn
(2008) como forte fonte de insatisfação e angústia, pois para adeptos ou críticos da
modernidade, planificar as expectativas do futuro e antecipá-lo é tão impossível quanto
involuir e tornar patente um modelo já ultrapassado. A impressionante progressão à qual
se adiantou a modernidade, portanto, fomentou faltas de perspectiva, fracassos e
desesperanças cumulativas que se patentearam, mais à frente, no desencantamento do
indivíduo frente ao mundo.
A razão despreconcebida que sucedeu às luzes ficava cada vez mais refém de
imperativos universais e racionalistas, tornando-se vítima da própria experiência. É
assim que o uso discricionário da razão ampliou os horizontes científicos e
tecnológicos: estreitando a liberdade (SHINN, 2008). É aqui que temos um primeiro
sinal de como a modernidade transformou as relações humanas em relações de produção
e do por onde atua a crítica de Löwy e Sayre (2015) e da grande maioria dos
românticos. No Fausto, por exemplo, são apreciadas inúmeras possibilidades de
experienciação da vida moderna, do pacto à taberna de Auerbach, da cozinha da bruxa
até as furnas montanhosas no fim da segunda parte, todas rebatizando a barganha
fáustica em termos próprios: da venda do quinhão da subjetividade à exultação dos
panegíricos criativos modernos, da destruição à construção e, não menos importante, da
força de algo externo para desencadear a imanência da catástrofe.
Fausto se tornou um dos inúmeros exemplos acerca dos quais nos é possível
refletir sobre as consequências de uma época senão esclarecida (aufgekälrten), em
esclarecimento (Aufklärung). Na emblemática cena Hexenküche, que abre as
possibilidades do pequeno e grande mundo moderno, está inculcada a atmosfera de
promessas e incertezas oriundas da revolução francesa, bem como as diatribes de
Goethe ao movimento, ao qual lhe atribuía o signo da “desrazão”. A fragilidade do
mundo diante do zeitgeist sibilar e inconstante da França representada pela “roda da
fortuna” e a mágica aporética da qual surge a poção misteriosa e da qual Fausto teme
acreditar, esconjurada pela bruxa a roer-lhe “trinta anos da carcaça rota” (GOETHE,
2004) evidenciam um mundo frágil em erupção. A sobreposição do signo mágico
delirante sobre a razão e a promessa de rejuvenescimento como tratado normativo aos
novos tempos não contestam o caráter histórico que segundo Jaeger (2007) medra a
consciência fáustico-mefistofélica de negação da realidade e estímulo ao progresso
revolucionário, tampouco nega suas consequências na vida de Gretchen e na destruição
de Filemon e Baucis.
Os desdobramentos da escrita do Fausto assumiram, naquela primeira parte,
alusões inequívocas à revolução francesa, e naquela outra, referências patentes à
modernização do maquinário industrial e a expansão do projeto civilizatório, ambas
correlatas à crônica do tempo de escrita do Fausto, compreendida entre 1772 a 1832. A
crítica composional de Goethe sugere, portanto, que a modernidade surgiu da
“superação do passado” a custos humanos nada modestos, mas que tampouco seria
possível descaracterizá-la, visto que o mundo “velocífero” de transformações constantes
aninha-se no âmago da vida moderna. A tragédia de Fausto se figura, assim, como a
própria tragédia moderna: de um espírito indene e confrangido atingido por um outro
alguém e sua proposta orgulhosa. Mefistófeles é este outro que confabula com a figura
do monopolista moderno, marmorizando em seu comportamento a ânsia cínica e venal
de desbravamento e progresso absoluto. Na segunda parte da tragédia, Filemon e Baucis
esclarecem o caráter proteiforme da modernidade ao passo que evidenciam a dialética
destrutiva que lhe excita.
No dialogal encontro dos anciões com o peregrino no quinto ato, contempla-se a
dialética do progresso em sua pujança histórica, da criação da máquina a vapor ao seu
uso aberto na expansão e criação do novo mundo, de diques e barreiras a canais e
palácios. Filemon e Baucis residem na partitura terrestre inexplorada por Fausto, que
decide em seu projeto de vida exprimir a longitude do “mar áqueo” e subjugá-lo aos
limites terrestres (Cf. Goethe, 2007). Para isso, precisa que o casal idoso se retire e lhes
oferece outra porção de terra pelo espaço privilegiado no qual se encontram. O casal
recusa a permuta e Mefistófeles e seus capangas “resolvem” o impasse, o qual termina
na morte e na queima da choupana de Filemon e Baucis, junto aos sinos e tílias que a
adornavam4. O casal de velhos constitui a parcela incapaz de abandonar a tradição da
qual pertencem, ameaçados por uma energia benquista e sem-termo capaz dos piores
excessos. Eles simbolizam a ruptura do passado na construção de um novo potencial
energético capaz de ligar todos seus esforços num símbolo dialético único, que vê em
qualquer forma de destruição um hiato possível de preenchimento, um novo espaço para
erigir novos símbolos, negá-los e vergá-los subalternos ao esforço dialético que lhes
preenche.

4
“O velho brado repercuta:/Rende obediência à força bruta!/E se lhe obstares a investida,/Arrisca o teto,
os bens e a vida” (GOETHE, 2007, p.941).
Nesse sentido, é com vistas ao novo que se nega qualquer estado circunstanciado
pelo real (JAEGER, 2007). Ao admitir-se expectativas planificadas que, uma vez
alcançadas, fomentam e descartam novas planificações numa dialética singular de
adição e exclusão, anabolismo e catabolismo, esta se torna, por excelência, a “dialética
da modernização” (BERMAN, 2019). Cada ideal atingido desaparece na sobreposição
de um substituto. Perifrasticamente, a busca pelo infinito na negação da realidade
aparece como matéria-prima da ideia de progresso; o sonho de dominação e consumo
persiste no plano imaginário aguardando qualquer egrégio movimento que lhe conceda
motilidade suficiente para pô-lo em prática e, quando muito, levá-lo a efeito na mais
catastrófica macromania produtivista. Diante desse prisma, o infinito é uma abstração
das limitações do homem, que o investe da roupagem fáustica arquetípica para dominar
o que quer que apresente-se-lhe à vista. Reafirma-se, assim, no domínio da razão e sua
inesgotabilidade, de sua perícia crítica ao seu ethos hiperestésico, a problemática da
modernidade.
A razão equivale ao encarecimento de seus sujeitos, o homem e a liberdade.
Escapa, no entanto, a certa intervenção maior que Freud (2011/1930) chamará de
destino. Sem esta última, incorremos no erro de acreditar que a razão pressupõe
liberdade esquecendo-se da tutela sob a qual estamos sujeitos ao mundo. Daí é um
pequeno esforço para pensar: como confiar o palco do mundo a atores universais,
sabendo que autonomia não é garantia de liberdade, tampouco o sujeito se reduz a algo
mais que a função de instrumento? (MAYOS, 2004). Um breve recuo à história pós-
revolução francesa é suficiente para rastrear essas nuanças, do século XIX ao XX com a
prosopopeia da mercadoria e a elisão do desejo no homem moderno, até a
antropomorfização da bestialidade e a súmula negativa da razão, a qual facilmente
perde-se em seus esforços. É nesse sentido que, quando associamos a razão à
experiência moderna derivada das luzes, angariamos para ela uma experiência de
fronteira, contígua à modernidade pelo laço da ilimitada intervenção do sujeito
moderno, livre e emancipado, o que torna a Aufklärung a máxima subjetiva dessa
emancipação.
Com efeito, pode-se pensar que obra fará o sujeito emancipado, livre e
esclarecido, no bom uso de sua razão. Para Kant, o sábio tem a “completa liberdade, e
até mesmo dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas ideias,
cuidadosamente examinadas e bem intencionadas” (KANT, 1985, p.106). Quando tal
intenção foge à regra da Aufklärung, mostra-se ao filósofo como um crime contra a
natureza. E parece que ao longo da história os tivemos vários. A visão panglossiana de
Kant caminha à afirmação de que vivemos na “época do esclarecimento”, isto é, do
iluminismo, com caminhos abertos às vias do trabalho humano e aprimoração da
Aufklärung, no entanto, é incapaz de sustentar, a despeito do vértice moral ao qual a
conduz, toda potencial consequência negativa e pecaminosa de sua elevação integral. É
exatamente isso que por vezes acompanhamos na literatura romântica, de Rousseau a
Schiller e Goethe (cf. Löwy e Sayre, 2015).
Mayos (2004) escreve que parte desse “potencial negativo” transformou-se em
crítica romântica, em tentativa de demonstrar, por um “eu lírico” proposto a ele mesmo,
a retomada da imaginação e das categorias inconscientes de insubordinação ao mundo,
do mito ao fantástico. Dessa forma, opondo-se aos matizes instrumentais, pragmáticos e
burocráticos da razão, ela se torna diametralmente oposta ao que vemos em Kant, onde
o sujeito valida sua razão e é por ela validado, sendo o uso que faz dela própria a forma
com a qual obedecerá a ela, tratando-se da passagem da heteronomia para a autonomia,
da crítica ao juízo. O fato de Kant postular um pressuposto segundo o qual o processo
de esclarecimento se dá pela superação da incumbência externa (tutela) e a emancipação
do próprio pensamento interno (razão pública) já antecipa o processo de subjetivação
nele envolvido. Subsiste, porém, na problemática do esclarecimento, o paradoxo
segundo o qual o sujeito esclarecido deve prestar obediência a certas normas ou
preceitos universais, aos quais deve apontar as falhas, no bom uso de sua razão, visando
o melhoramento do conjunto da humanidade (MAYOS, 2004).
É nesse ponto que se decide a magnitude da emancipação da razão kantiana. Até
que ponto a Aufklärung faz das luzes segurança do Eu e Tu e até que ponto a Aufklärung
incita o homem ao melhoramento potencial, ao autodesenvolvimento e o
desenvolvimento cultural do ambiente no qual está inserido. Podemos pensá-la a partir
das duas categorias de razão propostas por Kant. A priori, sujeito esclarecido é o sujeito
do saber, emancipado dos grilhões tutelares que remanescem da sua história de vida
(KANT, 1985). Aufklärung seria, então, um estatuto do saber adquirido pela superação
da menoridade racional e a assunção da maioridade racional. É proveitoso sublinhar que
em Kant tal condição de menoridade tutelar é culpa do sujeito e “não se encontra na
falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo na
direção de outrem” (KANT, 1985, p.100).
Isto implica assumir-se diante da própria razão, admitir sua gramática e recusar
explicações: Sapere aude! O sujeito torna-se autônomo, capaz de recusar tutelas e
promessas que se dirijam a ele pela razão de outrem. É assim que dogmas e superstições
ficam constantemente subordinados à análise crítica e racional, a partir da qual viram
resultado como síntese de valor e vigências universais. Esse esclarecimento reatualiza,
in nuce, o ideal iluminista de superação ao obscurantismo nos limites do sujeito. Cabe
lembrar, porém, que a Aufklärung alemã se difere do iluminismo francês, já citado, por
este ser anticlerical e valer-se de esforços contínuos para salvar a razão do afogamento
imposto pelo absolutismo, enquanto aquele busca figurar-se em Francisco, o Grande, o
“déspota esclarecido” que, mesmo cultivando os ideais iluministas na corte prussiana,
determinava obediência ao que subsistia acordado em termos políticos (FOUCAULT,
2005). A razão em Kant encerra, portanto, duas expressões, nas formas pública e
privada.
Diante da razão pública, é permitido ao sujeito esclarecido raciocinar tanto
quanto se queira. Segundo Kant, seu uso é público, emancipado, inclusive cânone, por
meio do qual se torna obrigação relatá-lo e aplicá-lo à esfera pública. Tal processo de
superação das estruturas menores da razão obedece à proposta de desenvolvimento da
Aufklärung, assim como da comunidade na qual está inserida, sendo seu efeito o
exórdio do discurso da modernidade e do avanço no caminho do esclarecimento. O uso
privado, em contrário, responde aos interesses da comunidade dentro da qual está
inserida. Neste último caso, é permitida apenas a obediência à lei e ordem vigente,
enquanto no primeiro é facultada, a fim de atingir a Aufklärung, a obediência à razão
universal, princípio que reconhece os limites do conhecimento e da própria vontade em
sua motivação. Chama atenção o fato das duas formas de razão assegurarem a liberdade,
mas apenas uma delas encetar um uso verdadeiramente autêntico.
Em 1984, Foucault retoma o texto de Kant e coloca a Aufklärung como o
conjunto de acontecimentos históricos que desaguaram no presente; uma crítica da
nossa própria ontologia e os limites até os quais é válido cogitar sua superação. Ela se
acha, o que é aparentemente óbvio, em contradição com as próprias relações de poder,
para citar apenas um exemplo. Ora, se a Aufklärung nos coloca a mando de nós
mesmos, reivindica a liberdade de pensamento e afiança a razão a leis universais, como
puderam existir, na história da humanidade, relações de homens que se subordinavam
mutuamente no apelo da violência e do crime? Ou então instituições, Estados e
políticas? É um erro flagrante julgar a razão como iluminura do animismo ou de eras
primitivas e fetichistas. A literatura romântica mostra isso e Foucault (2005) também o
parece fazer ao dizer que a Aufklärung, como acontecimento histórico, “não nos tornou
maiores”, tampouco nos deu qualquer resposta pronta, mas nos fez refletir sobre nossa
condição. E é essa “atitude” que Foucault retrata como crítica ontológica de nós
mesmos.
II
A modernidade, até agora, foi compreendida pela experienciação do novo e a
superação do antigo — mesmo que para isso tenha condenado algumas tradições e
ofuscado o papel do homem no processo —, além, é claro, de enunciar o valor soberano
da razão sobre a superstição e os dogmas. Mais contemporâneo, Berman (2019)
compreendia a modernidade como uma época ou período diante do qual “tudo que é
sólido desmancha no ar”. Seu exórdio parece difícil de delimitar; menos difícil talvez
seja ausentar a modernidade de uma localidade temporal específica e a partir de agora
colocá-la cada vez mais próxima das condições abstratas nas quais ela se faz sentir. Ora,
faz-se claro que o ponto fulminante dela foi a revolução francesa, mas o que se seguiu a
ela foi pura hiperestasia, vontade e realização. Foi o período de rasgar as burcas, colocar
o homem e a mulher, ambos sóbrios, na relação real que os apetece, rompendo
bruscamente com qualquer ilusão, fantasia ou mito. Este processo, que contemplou seu
paroxismo no capitalismo, não foi feliz para os mecenas, tampouco para os literatos ou
homens comuns, que, dia após dia, sentiam esmorecer sua subjetividade ao ver o
desfecho de seus esforços manufatureiros e intelectuais cada vez mais subordinados à
filtragem capitalista.
Disso surgiu, aliás, a nostalgia dos românticos, em busca da qual eles partiram a
fim de consolarem-se de certos ditames insuportáveis da modernidade. Esses mesmos
românticos, segundo Löwy e Sayre (2015), partiram na busca de um sujeito perdido,
despojado, do qual a modernidade se apropriou nas respectivas condições de exploração
potencial e divisão de novos mundos. O sujeito, que é objeto dele próprio, viu-se cada
vez mais cindido na expectativa de ser ele para ele e para o mundo, respondendo
àquelas expectativas com a submissão ao progresso e a busca pela felicidade. Nessa
ideia de plenitude e tangibilidade do infinito, o ideal de felicidade tornava-se cada vez
mais alcançável, embora fosse uma contracorrente estranha para a própria modernidade,
um empecilho, talvez, para sua realização plena: “parece que a criação de uma grande
comunidade humana teria êxito maior se não fosse preciso preocupar-se com a
felicidade do indivíduo” (FREUD, 2011/1930, p.88). Longe de ser impossível, a
felicidade se tornou uma dificuldade, relegada a segundo plano pelo clímax volátil da
modernidade.
Sabendo que a tendência natural do ser humano sempre foi a satisfação e a busca
pelo prazer nos contornos ao desprazer, pode-se imaginar o quão infeliz possa ser a
experiência alocada à frustração no imaginário do homem moderno. Talvez resida nisso
a perplexa afirmativa de Camus sobre a qual apresenta o dever do filósofo e da filosofia,
ou de Goethe no signo fáustico de bargain, muito maior que uma mera formalidade
entre o homem e o diabo. A modernidade, na medida em que deu ao homem o pleno
direito de exercer seu poder sobre o mundo a fim de transformá-lo, tornou-o insensível,
doloso, venal e incompassível A mesma modernidade que “criou maravilhas maiores
que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas” (MARX, 2010,
p.43) agora se semelha ao cadafalso em cima do qual se encontram ameaçadas milhares
de Filemons e Baucis que experimentaram com pia expectativa o encilhamento da
própria autonomia.
Freud (2011/1930) apresentou em seu ensaio sobre o mal-estar uma dialética
intersubjetiva da modernidade. Dissecando as raízes da insatisfação, Freud desenvolve o
papel do homem de modo a torná-lo ausente de suas vontades; convence-se de que algo
falta ao homem moderno, algo do qual ele próprio desconhece, mas sente como mal-
estar e angústia, algo patente a ele mesmo, que exerce pressão no mundo externo.
Aquilo de que fala Freud (2011/1930, p.81) é sobre a “perda de felicidade pelo
acréscimo do sentimento de culpa”, e aquilo de que sente o homem é a perda do amor.
Torna-se inconcebível para o plenipotenciário moderno viver o mundo desemparado,
ausente da figura paterna que o protegia ou da mãe que o apaziguava; é daí que as
prestidigitações da vida quotidiana liquidam com o desamparo a partir de delusões, que
não convencidas de sua verdadeira natureza, tornam-se veiculares na superposição do
juízo por qualquer tipo de crença falível, abstrata ou absoluta; é daí, também, que
surgem os deuses, de cujo extrato, pouco a pouco, o homem moderno se apodera.
Este neófito viu-se às voltas com uma instância superior, seu correligionário,
líder e instrutor, o Super-eu. Tendo que admitir o turbilhão anímico do progresso
civilizacional, que o sentia não apenas fora, mas dentro de si, o homem teve que lidar
com exigências internas e externas simultaneamente, vendo-se anulado, no píncaro do
conflito, impossibilitado de satisfazer seus desejos frente à dinâmica cultural que não
lhe admitia.
A grande soma dos adventos modernos de que hoje goza o homem tiveram em
comum o enxugamento do tempo e a facilitação do contato humano. Para Freud parece,
no entanto, que o progresso cultural não fez dos homens muita coisa senão um dos
inúmeros módulos visuais e auriculares que serviram para religar toda energia morta do
passado às novas políticas revolucionárias do futuro. Não o fez feliz, tampouco
realizado. Pode tê-lo colocado à frente de infinitas possibilidades, mas o afastou de cada
íntima realização do espírito anímico.
O Super-eu instituiu-lhe leis e a civilização moderna o desacelerou na pujança
mesma com que as leis de tráfego o impediram de aceder ao limite irrefreável de sua
vontade. Cada impasse ao qual o sujeito era colocado diante das exigências éticas que o
refreavam acabavam por torná-lo hiperestésico, sensível e apoquentado, a maior ameaça
à civilização que, impassível, mobilizava esforços cada vez mais tênues para torná-lo
ainda mais descontente. E é dessa forma que o sujeito moderno vive sua angústia no
mundo. Enlaçado pelo recorte horizontal que lhe coloca a par do projeto civilizatório, o
segue a passos rápidos pelo rigor metódico, ambicionando seus desejos no maior
espírito de incontaminação possível. Vê-se forçado a suspender suas forças originárias e
adentrar o fluxo moderno, mesmo que não o queira. Eros, nos caminhos da
necessidade (Ananke) orienta esse projeto no fim único de tornar o homem uno com o
mundo, suprimindo qualquer força destrutiva que se lhe apresente como contrafactual.
Foge, porém, à belíssima proposta de congraçar seus componentes uma natureza antiga,
primitiva, cuja mola encontra-se nas relações primordiais da horda e no assassínio do
pai primevo.
Freud retomará as ideias apresentas em além do princípio do prazer (2014/1920)
para esclarecer o desenvolvimento cultural como uma abstração da ordem do sujeito.
Enquanto Eros e pulsão de morte fenecem eternamente na disputa entre dar
continuidade à vida ou reduzi-la à inércia, a civilização toma o mesmo caminho, desta
vez defendendo-se das pulsões de destruição que constituem o âmago primordial do
homem desde a pré-história. A dialética da modernidade em Freud (2011/1930) sugere
que do tabu do incesto e a institucionalização da lei, oferecida como punição pelo
assassínio do pai nos primórdios, os laços modernos foram atualizando-se de modo a
reproduzirem eles mesmos aquelas relações antigas que hoje regem os vínculos
intersubjetivos entre os homens. A cena primordial do parricídio nos parece
fundamentar a dívida interna e externa que o eu guarda com seus superiores, seja o
mundo ou a lei. Como a relação primordial e a instauração do tabu do incesto foram o
molde para todas as outras, é nela que percebemos o sentimento de culpa como pulsão
destrutiva levada a efeito pelo assassínio do pai e instituição do Super-eu paterno.
Da mesma forma que o homem colheu os frutos da realização das suas vontades
no período primevo, hoje obedece ao jugo das exigências éticas que a cultura lhe impõe.
Como a moderna civilização obedece a Eros e Ananke, tendo sua meta no princípio
unificador, de acordo com Freud (2011/1930, p.79) “ela só pode alcançar esse fim
mediante um fortalecimento cada vez maior do sentimento de culpa” na reatualização
dos laços humanos entre os homens. É assim que ao procurar ampliar a comunidade na
qual está inserido, “o mesmo conflito prossegue em formas dependentes do passado”.
Portanto, é na modernidade mesma que o homem parece crescer em grau; para este ser
bem dotado de razão, “o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto
sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão” (FREUD,
2011, p.57). E a fórmula é autoevidente: tanto mais culpa, mais sofrimento.
Da horda à massa, da família à estrutura da modernidade-social, o Super-eu
mantém-se vigilante para que as leis não se descumpram novamente, sendo ele o mito
apologético que circunda as periferias do homem, possivelmente lembrando-o do
discurso imperativo da felicidade e suas consequências. A partir do Super-eu, toda
expectativa de consumação do ato equivale ao ato consumado, pois o desejo é a ação no
plano imaginário, e, como sua não efetivação no plano do real não pode ser garantida,
aparece como culpa. É assim que o imperativo moral da consciência confisca a
liberdade de seu sujeito: pela incomplacência, conclamando obediência e renúncia
pulsional; o colateral apresenta-se na fórmula mesma: “exigindo mais [renúncia]
produzimos no indivíduo rebelião ou neurose, ou o tornamos infeliz” (FREUD,
2011/1930, p.91). Percebemos com pouca dificuldade, portanto, a ironia que marca o
paradoxo da modernidade: “Que poderoso obstáculo à cultura deve ser a agressividade,
se a defesa contra ela pode tornar tão infeliz quanto ela mesma!” (FREUD, 2011/1930,
p.91).
Como o homem, segundo Freud, não pode “amar por amar” seu semelhante, o
mandamento “amarás o próximo como a ti mesmo”, que é o apanágio da civilização
moderna, equivale a “amai o seu inimigo”. Nenhuma delas é sincera com o que almeja o
homem moderno, ambas atuam na contramão dos seus desejos; daí as leis que orientam
a modernidade para a destruição: à destruição da destruição, que se encarna como um
corpo indigesto à organicidade ética e moral da civilização. Em última instância, o
sujeito “amarás o próximo como a ti mesmo. Pois cada um é o próximo de si mesmo”
(KRAUS, 2010). Freud parece apresentar a felicidade como um projeto angustiante e
de difícil acesso, o qual decuplicou em força no tratamento ao homem moderno, afinal,
“o homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança”, e nessa
permuta reside a contradição que o malfaz. Entre desejar e sobreviver ao seio moderno,
o homem sentiu o impasse entre desejo e cultura e assim parece ter-se recolhido
(FREUD, 2011/1930).
A impossibilidade da operação do desejo marcado pelo mito pré-histórico e a
instauração do tabu retoma a ideia da Aufklärung para Foucault (2005). Como uma
atitude filosófica a partir da qual se reconhece os limites do próprio saber e faz-se a
crítica à própria ontologia, o mal-estar residiria no conhecimento-limite, um passo a
frente do qual, uma maioria ausente de autonomia obedeceria cegamente preceitos
universais sem sequer questioná-los ou validá-los, onde estariam, essa turba titânica em
represamento pulsional grave, ameaçados pela perda do próprio ser, aos pés de
panegíricos estupefacientes de amor, domínio e felicidade oriundos de uma minoria
capaz de “permitir ao instinto um escape, através da hostilização dos que não pertencem
a ele” (FREUD, 2011/1930, p.60). Aí, o homem experimentaria o desalento ao ver o
espírito criativo moderno ser usado para fins devastadores e sentiria mal-estar por saber
que a destruição de si e do outro só depende dele mesmo. Parece possível, portanto, o
vínculo premonitório que o mal-estar estabelece com a angústia.
III
As infinitas excisões que o homem moderno tem sofrido da cultura parecem
reduzir a Aufklärung a um mundo sofrível por excelência e seus autores esclarecidos a
déspotas fatais e tirânicos. Apesar de lhe ser atribuída, por pensadores marxistas em sua
maioria, fortes indícios de desencantamento do mundo, exploração desigual, estesia,
prosopopeia da mercadoria e expansionismo permanente, o século das luzes foi um
período de respostas e esclarecimentos, onde se formularam as bases do pensamento
prático, científico e tecnológico que constitui o cerne da recém-apostrofada
modernidade. Um marco histórico, sem dúvidas, que Freud viria a expandir ao enunciar
o contrajogo da vida moderna no virtualizado sujeito do inconsciente.
Na ribalta moderna sob a qual encaramos o cênico embate entre homem e
desejo, a psicanálise encarna um papel reconciliatório por reaver as fronteiras daquele
primeiro e esclarecê-lo pelo que Freud (2014/1927) chamou de “educação para a
realidade”; um método educacional a partir do qual o sujeito poderia encontrar o
defluxo racional represado, enfrentando os mitos e os deuses na intrepidez que lhe
compete. Está claro que a tarefa é desaliená-lo, restituí-lo à razão que em dado momento
encontrava-se fora do corpo, prefigurado em consciências internas e externas que lhe
exercem régia dominação. A partir daqui a psicanálise exerceria seu papel antialienante
e, daqui, o desamparo psíquico assumiria um ônus especial no edifício psicanalítico,
pois é ele a fonte da qual ressurgem os mitos individuais e as ilusões frente as quais a
psicanálise adianta-se em desfazer.
Uma instituição social, um aparato midiático ou um Estado totalitário, até
mesmo democrático, pode exercer o papel do outro a quem se deva amor e a quem se
recorra no desamparo (CARVALHO, 1999). Não parece novo, então, o fato de o sujeito
estar dentro de um mundo infinito pautado tanto na isonomia como na anomia, sendo
sua relação com a lei e a ordem o que definirá seu partido e elegerá suas relações
sociais. Isso pode se estender da arregimentação tecnológica e burocrática até o poder
de massas organizadas, que fazem da enunciação da linguagem em grupo a vantagem
ética para reivindicar seus direitos. A modernidade, desse modo, encontra seu termo na
luta entre antinomias, entre Eros e pulsão de morte, entre o princípio que coliga e o que
corrói, entre aqueles que se estabilizam em sua temperatura ou rebelam-se contra o
termostato. Isso parece explicar por que grupos menores, geralmente ausentes do
conhecimento comum, acham tão fáceis fins para o discurso de ódio. São nessas
pequenas impressões que a subjetividade parece se esconder; menos pelas ilusões que as
distraem, do que pela própria função moderna.
Algo parece ter recrutado as forças humanas sob uma única direção e assim
excluído o vínculo alteritário que reconhece as diferenças. O homem moderno tem
continuado a reafirmar-se nos lugares-comuns da sociedade, no antro do qual pertence
infalivelmente, político, religioso, universitário, midiático e mais recentemente virtual.
A partir deles opera a excisão do outro e a exclusão dos vínculos alteritários;
parafraseando Birman (1997, p.230), o sujeito faz uso da “glorificação do eu e a
estetização da existência” para admitir formas de vida que lhe são conhecidas e
anatemizar o desencaixado, fora dos laços que lhes unem. Mais do que nunca, o sujeito
encontra-se estésico, galvanizado por qualquer ação que mova um interesse particular,
sendo assim artífice ou vítima da exclusão em qualquer campo possível de atuação; a
estética parece arregimentar o vínculo formativo pelo amor ao belo e ódio ao estranho.
O mal-estar para o qual Freud aponta, enfim, é a “desalocação” ou desamparo
desse sujeito frente ao imperativo estatizante da felicidade e ao excesso pulsional que
glorifica sua individualidade, mas lhe impõe restrições difíceis de serem suportadas. O
apelo às massas tornou-se a mais comum e séria das ameaças, mas talvez não a mais
potente. Os horizontes altissonantes que ascenderam como factíveis da proposta
iluminista de desenvolvimento intelectual e científico viram-se encorajados pelas
respostas do homem a elas, afinal, a modernidade é uma conquista e não deve ser
rebaixada por aqueles que a compõe, no entanto, com fronteiras cada vez mais amplas e
nítidas, o homem deu-se conta da impossibilidade de satisfazer-se de suas pulsões que,
diante do ethos restritivo moderno, só alimentava seu conflito. É nesse sentido que a
ideia de progresso jamais esteve tão próxima da destruição quanto hoje: o heroico
tornou-se a própria defesa da subjetividade diante dos pesadelares e inimagináveis
pontos de inflexão que qualquer civilização à luz dos predecessores iluministas não
hesitaria em tomar. A análise de Berman é extraordinariamente verdadeira nesse
sentido; enquanto o sólido se desmancha no ar, a substância vive ameaçada.
Razão e individualidade tornaram-se uma e confluíram para o interesse de filhos
diletos da modernidade; o valor da moeda passou a abastecer-se da intelecção e cada
vez mais “políticas do mal” (CARVALHO, 1999) se viram reinscritas no seio hodierno,
causando a excisão dos “menores” e a “arqueologização” do ânimo humano. A fim de
colaborar com o abastecimento do mundo moderno, o homem esgota-se dia a dia para
alcançar uma felicidade que obedece às exigências ético-políticas de outro alguém ou
outra coisa, obedecendo a males que bem mais gostaria de enfrentar. Nesse espectro,
mistura-se a um mar infinito e coercitivo de consciências que lhe impõem os ditames
aos quais deve obedecer, assim eximindo-se da própria vontade. No entanto, a
verdadeira tragédia se lhe impõe quando, enunciadas as regras e princípios normativos,
o sujeito presta contas com a submissão inerte, abandonando a responsividade e
instrumentalizando os movimentos em uma fúria cega e distraída. Este parece ser o pior
uso possível para a razão, pois deixa de obedecer a seu portador.
A mesma Aufklärung que sedimentou as bases da modernidade, fez do homem
uma “constante inconstante”, entre aqueles letárgicos e estésicos aos diletos e
incompassíveis que os assenhoram. Ela, no entanto, também criou aqueles que não se
renderam facilmente a seus enigmas. Marx, Freud e a farândola da teoria crítica da
escola de Frankfurt questionaram a sensibilidade do mundo moderno e do papel do
homem. Os dois primeiros, principalmente, pois questionaram suas raízes e também a
posição de seu sujeito, exortando uma postura a partir da qual estes pudessem fazer-se
verdadeiramente autores da realidade, diante da qual pudessem revesti-la das próprias
vontades sem reduzirem-se a equívocos pretensiosos demais. Ambos tiveram sua
prospectiva de trabalho e puseram, nos próprios meios do trabalho intelectual, signos
aos quais se dedicaram a enfrentar: como a propriedade privada e o irracionalismo, nos
respectivos pensamentos de Marx e Freud.5
A propriedade privada defendida pelo liberalismo econômico ou o
irracionalismo singelo defendido pelos proselitistas religiosos tornaram-se símbolos
pelos quais era possível lutar em defesa apaixonada ou enfrentamento virtuoso. No
entanto, não pode nem deve haver qualquer forma de unilateralidade nestes símbolos,
cada ideia compete a seu núcleo. Nos movimentos de luta modernos, uma figura, uma
ideia ou um discurso puderam facilmente tornar-se modelos ideativos sob os quais o
sujeito endireitava-se na busca daquilo que não pôde concretizar, no espaço no qual não
o pôde desenvolver. Em tais ambientes fica bastante claro como o Super-eu reconhece
seus fiéis e estes àquele, como um protetor, alguém junto ao qual se pode confiar o
amor e os desejos na expectativa de por ele ser recompensado em igual medida. São
nessas relações que o laço alteritário se atualiza, desde a perda do amor do Super-eu à
reprodução do desamparo primordial. Nesses espaços, o sujeito pode facilmente perder
sua subjetividade, bem como encontrá-la no outro. Trata-se, a bem da verdade, de
mensurar as próprias expectativas.
Ali, os sábios de hoje podem tornar-se esclarecidos (aufgekälrten). Por um lado,
podemos compreender este trabalho das massas como uma mimese à fundamentação da
clínica, porque, como resposta aos problemas humanos ocasionados pela falta de
perspectiva, pela diminuição da capacidade de simbolização, pela letargia e pelo ritmo
cantochão do homem em meio ao mundo, as massas podem oferecer igual apoio ao
sujeito desamparado. A possibilidade de quatro paredes, dentro das quais o solilóquio
do homem, que lhe respondia tão somente em signos formulaicos, pudesse ecoar-lhe nas
proporções subjetivas que lhe são devidas foi uma conquista do cálculo humano para
além da racionalidade egoísta. Essa tarefa encontrou forma também na psicanálise por
meio da educação, colocando o sujeito na linha de frente ao enfrentamento da falta e do
desamparo, buscando conduzi-lo à figura autossuficiente que enfrenta o mundo e
dispensa os escorchantes custos que se lhe impõem perder um amor. O surgimento de
um “outro cultural”, em cujo seio se pode ficar descansado, fora da guarda vigilante que

5
Acreditamos estar bem esclarecida a problemática dos pensadores supracitados; não se trata de
questionar os efeitos do marxismo ao redor do globo ou da validade do pensamento freudiano enquanto
ciência, mas sim de reconhecer sua importância enquanto corpo teórico segmentado por inúmeras
correntes de pensamento. A própria retórica da valorização que se seguiu às suas origens já esclarece sua
importância.
a cultura onerosa lhe impõe, não parece de todo negativo, no entanto, ainda carece de
segurança.
Inúmeras causas políticas, midiáticas ou populistas propuseram encontros que
extrapolaram qualquer ilação de Eros, subjugando não o ódio, mas o homem. O amor
nacionalista hitleriano parece responder por si só todas as outras série de ocasos
históricos. E isso nos leva a questionar a fidelidade da Aufklärung enquanto
acontecimentos que deram forma ao presente; um balanço geral provará que a
civilização detém um saldo negativo na proporção de realizações humanas indenes e
aquelas outras que tiveram custos não muito bem avaliados para sua realização. Certas
figuras-líderes, do termo que Freud utiliza, não fizeram muito da cultura senão o espaço
confinado sobre o qual atuavam suas próprias vontades; não sem motivo o psicanalista
cita o ódio comunista à burguesia e o amor nacionalista de Hitler para ilustrar algumas
delas. Do século XIX ao XX, a razão parece ter obedecido a interesses e privilégios
muito mais do que a qualquer bem comum; daí o sujeito ter se perdido e saudar com
nostalgia algo que lhe escapa diariamente.
As massas, nesse sentido, provaram ser um rendez-vous no qual cada indivíduo
pôde alinhar-se com aquilo que julgava ser a cosmovisão mais coerente aos seus
interesses, seja o nazismo ou o zen budismo. Também provocaram, num passado
recente, certa perplexidade nos círculos literários e intelectuais devido ao temor que
circundava o uso público da razão ao fazê-lo facilmente confundido com ideias
comunistas e perturbadoras da ordem civilizacional6; isso nos parece mais claro à
medida que voltamos o olhar para os romances de Erico Verissimo e Jorge Amado. Deu
também, é claro, a oportunidade de sujeitos afirmarem-se no uso da própria razão ao
compartilharem seus interesses e divergências em espaços menores, onde podiam fazer-
se livres e tecer comentários sobre qualquer assunto. A expressão mais icástica destes
encontros formadores se encontra no conto O espelho, de Machado de Assis, no qual
um cômodo fechado e alumiado de forma baça pôde transparecer um debate intelectual
potente e uma reflexão ainda mais séria sobre alteridade e papel social.
Não nos parece claro como as massas possam produzir um símile puramente
negativo; os eventos plangentes que perfizeram os últimos dois séculos colocaram em
xeque os ideais iluministas de felicidade e estabeleceram de forma espiral uma
parecença que cada século posterior ao último admitia como inegável: o mundo de

6
No Brasil, a “lei de segurança nacional” de 1935 parece ser o melhor exemplo.
Goethe certamente não foi o mesmo de Freud, mas, embora diferentes, o mundo deste
último só deu continuidade, de forma mais rígida, àquele. E no que nos alcança até os
dias de hoje, o homem manteve-se preso entre Estados e políticas; entre querer ser algo
para ele mesmo e para o outro, vendo-se, neste processo, cada vez mais ameaçado e
menos livre em seu potencial. Talvez seja no oposto da singularidade, na união
descompromissada e exonerada de obrigações, que se amplie os espaços para
construção da subjetividade e dê-se ao homem a possibilidade de um encontro consigo
mesmo; de sensibilizar-se com a sensibilidade do outro, encontrar-se si no outro, ligar-
se, como Freud deixa escapar, ao outro pela agressividade, pelo reconhecimento do
ódio, pela assunção da culpa e pelo entrelaçamento do vínculo. Freud, no entanto, não é
tão otimista e certamente nós também não devemos ser, visto que a história ainda nos
prova “menores”, como diz Foucault (2005).
Por fim, havíamos colocado a questão do por que a modernidade não ser capaz
de anulação. As respostas foram enunciadas: fragilidade dos vínculos, dificuldade de
elaboração simbólica do afeto, ideais irrealizáveis, cláusulas estatais incisivamente
perigosas, hiperestesia, relações de produção encilhando-se e vínculos mercantis cada
vez mais fortes, indústrias derretendo luas para manter-se na esteira do progresso,
homens caminhando sem perspectiva no ritmo da tragédia e a subjetividade diariamente
ameaçada. A formação de grupos não foi e nunca será a resposta do firmamento para a
superação das atas anticonstitucionais, mas pode ser uma forma de torná-lo mais
brando, menos niilista, menos destruidor. Assim nos fala Berman (2019, p. 410) sobre o
mundo moderno:
“Em tal ambiente, a cultura do
modernismo continuará a
desenvolver novas visões e
expressões devida, pois as
mesmas tendências econômicas e
sociais que incessantemente
transformam o mundo que nos
rodeia, tanto para o bem como
para o mal, também transformam
as vidas interiores dos homens e
das mulheres que ocupam esse
mundo e o fazem caminhar. O
processo de modernização, ao
mesmo tempo que nos explora e
nos atormenta, nos impele a
apreender e a enfrentar o mundo
que a modernização constrói e a
lutar por torná-lo o nosso
mundo”.
Conclusão
É interessante notar que Freud não soluciona o enigma da cultura, tampouco
Berman, mas ambos parecem deixar que o sujeito moderno responda por ela. Mas
como admiti-la sob uma miríade de leis, todas as quais sustentando a mesma cultura que
malfaz seu sujeito? A questão que se coloca é se o homem moderno, nos limites do
agora, será capaz de simbolizar seu sofrimento e insatisfação de forma a aliviá-lo sem
que se precise recorrer a formações reativas. Dessa forma, poderíamos viver a
modernidade tal qual ela se nos apresenta, em sua dialética destrutiva e desagregadora.
Berman nos diz que estar à luz da modernidade é enfrentá-la nas sombras do submundo
sinuoso que a rodeia e ter coragem para investir-se de fôlego e vivê-la ao máximo. É
talvez essa coragem que falte ao homem, de valer-se de toda sua pujança para assumir
seu lugar no mundo e criticá-lo devidamente. Mais uma vez, não se trata de
desprestigiar a modernidade, mas reconhecer suas falhas e limitações, aprendendo a
contorná-las no melhor estilo kantiano, prestando obediência sem encarceramento.
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