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Volume

Houve um tempo em que o mundo e a s


pareciam ter um rumo e um destino pré,
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O TEMPO DAS CERTEZAS


"O colonialismo como a glória
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Adriana Facina e Ricardo Figueiredo C


"As resistências dos povos à partilha i
ORGANIZAÇÃO DE

Márcia Maria Menend Danief Aarão Reis Filho,


"A Primeira Grande Jorge Ferreira
e Celeste Zenha

ISBN 978-85r_200-0527-9

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Daniel Aarão Reis Filho
Jorge Ferreira
Celeste Zenha
(organizadores)

O século XX
Volume 1
O tempo das certezas
Da formação do capitalismo à Primeira Grande Guerra

a edição

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Rio de Janeiro
2014
Copyright © Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira e Celeste Zenha, 2000 Sumário
CAPA
Evelyn Grumach

PROJETO GRÁFICO
Evelyn Grumach e João de Souza Leite

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS
Nerval Mendes Gonçalves

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE APRESENTAÇÃO 7


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S452 O século XX / organização, Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira, O capitalismo unifica o mundo 11
v. l Celeste Zenha. - T ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
7' ed. 3v.
Francisco José Calazans Falcon

Conteúdo: v. 1. O tempo das certezas: da formação do capitalismo à Primeira As revoluções burguesas 77


Grande Guerra - v. 2. O tempo das crises: revoluções, fascismos e guerras -
v. 3. O tempo das dúvidas: do declínio das utopias às globalizações. António Edmilson Martins Rodrigues
Inclui bibliografia e filmografia
ISBN 978-85-200-0527-9
O colonialismo como a glória do império 153
1. História moderna- Século XX. 2. Civilização moderna- 1950-.
I. Reis Filho, Daniel Aarão, 1946-. II. Ferreira, Jorge. III. Zenha, Celeste. Edgar de Decca

CDD-909.82 Resistências ao capitalismo: plebeus, operários e mulheres 385


00-1148 CDU-93
Francisco Carlos Palomanes Martinho
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou
transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia
autorização por escrito. As resistências dos povos à partilha do mundo 213
EDITORA AFILIADA Adriana Facina e Ricardo Figueiredo de Castro
Este livro foi revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa.
A Primeira Grande Guerra 233
Direitos desta edição adquiridos pela
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Márcia Maria Menendes Motta
Um selo da
EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA. BIBLIOGRAFIA, FILMOGRAFIA E CRONOLOGIA 255
Rua Argentina 171 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 2585-2000

Seja um leitor preferencial Record. ÍNDICE 273


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Impresso no Brasil
2014
Apresentação

É nossa esperança que este livro interesse, de modo geral, aos cidadãos
e, em especial, aos estudantes de segundo grau e graduandos de ciências
humanas, ajudando-os a pensar nos problemas do século que expira e a
refletir sobre os desafios do século que se abre. Mas o destinatário principal
dos textos é o professor de segundo grau, que, em seu trabalho cotidiano,
dispõe de tão poucos instrumentos para apoiar suas aulas de história con-
temporânea, uma carência que se acentua ainda mais quando se trata da
história do século XX e da história chamada do tempo presente (posterior
à Segunda Guerra Mundial).
Esclarecemos que não apresentamos aqui um manual de história contem-
porânea preocupado em mostrar um panorama o mais minucioso possível
do encadeamento dos processos sociais, económicos, políticos e culturais
que marcaram os últimos cem anos. Os textos preparados para esta cole-
ção, embora se refiram a esses processos e, frequentemente, na melhor
tradição, adotem o estilo da narrativa, estão mais interessados em levantar
e apresentar questões, debater problemas, propor hipóteses interpretativas,
em suma, estimular e enriquecer a reflexão e a perspectiva dos leitores.
Adotarnos, na escolha dos professores que redigiram os textos, um crité-
rio básico: o do pluralismo. Estão aqui reunidos, para além da experiência
académica que a todos caracteriza, professores de diversas instituições (UFF,
UFRJ, PUC/RJ, UERJ, USP, Unicamp, UFRGS), de vários estados, de níveis
diferenciados de titulação (professores titulares, adjuntos, doutorandos) e,
acima de tudo, de diversas concepções e orientações metodológicas. Estamos
certos de que a abertura à diversidade e ao contraditório confere vitalida-
de ao pensamento crítico de que tanto precisamos para estar à altura das
complexidades dos tempos atuais.
O primeiro volume, O tempo das certezas, abre-se com dois estudos
introdutórios, redigidos pelos professores Francisco Falcon e Edmilson
O S É C U L O XX APRESENTAÇÃO

Rodrigues, a respeito da unificação do mundo pelo capitalismo e de alguns A respeito dos temas trabalhados, há ainda anexos, em cada volume,
casos, paradigmáticos, de revoluções burguesas. Seguem-se três textos sobre relacionando sugestões bibliográficas, filmográficas e uma cronologia curta,
a expansão europeia e a segunda revolução industrial, de fins do século XIX, trabalho realizado com a participação dos graduandos do Departamento
e sobre as resistências que esses processos suscitaram nas metrópoles e no de História da UFF Rachel Barreto e Roberto Amaral.
mundo partilhado pelas potências, sob responsabilidade, respectivamente, Esta apresentação não poderia terminar sem agradecimentos especiais a
dos professores Edgar de Decca, Francisco Palomanes Martinho, Adriana todos os professores e estudantes que se conjugaram neste trabalho e con-
Facina e Ricardo Figueiredo Castro. O volume se encerra com uma reflexão fiaram no projeto, redigindo os textos e formulando sugestões e críticas, e à
sobre a Primeira Grande Guerra, apresentada pela professora Márcia Motta. editora, que apostou na sua viabilidade. Registre-se igualmente o apoio da
O segundo volume, O tempo das crises, começa com cinco estudos sobre Capes, que, no âmbito do Proin, proporcionou recursos que contribuíram,
o período que se estende do fim da Primeira Guerra Mundial ao início da parcialmente, para a consecução de nossos planos.
Segunda Guerra Mundial. Dois textos sobre as décadas críticas, dos anos
1920 e 1930, a cargo dos professores José Jobson Arruda e Leandro Kon-
der; dois outros sobre as revoluções russas e a construção do socialismo
soviético nos anos 1930, de autoria, respectivamente, dos professores
Daniel Aarão Reis e Jorge Ferreira; e uma reflexão sobre os fascismos, do
professor Francisco Carlos Teixeira da Silva. Segue-se um texto sobre a
Segunda Guerra Mundial, do professor Williams Gonçalves. O volume
termina com mais dois trabalhos a respeito de processos históricos que
se desenrolaram após 1945: do professor Paulo Vizentini, sobre a Guerra
Fria, e do professor Enrique Padrós, sobre as décadas de prosperidade que
marcaram os chamados trinta anos gloriosos do capitalismo internacional.
O terceiro volume, O tempo das dúvidas, dá continuidade à reflexão
sobre os processos da história do tempo presente. São considerados os se-
guintes temas: o apogeu e a desagregação do socialismo realmente existente
(professor Daniel Aarão Reis), a decomposição dos impérios coloniais e as
lutas de libertação nacional (professora Maria Yedda Linhares), a América
Latina sob o signo da dependência, das ditaduras e das guerrilhas (profes-
sora Ana Maria dos Santos), o mundo árabe e as guerras árabe-israelenses
(professora Keila Grinberg) e o convulsivo e utópico ano de 1968 (professor
Marcelo Ridenti). Quatro estudos fecham o volume e a coleção, todos so-
bre questões que já estão na transição do século XX para o século XXI: a
questão nacional no mundo atual (professor Marco António Pamplona); a
nova ordem internacional e o processo de globalização (professor Octavio
lanni); o impacto da revolução científico-tecnológica (professora Celeste
Zenha); t os desafios que se apresentam no limiar de um novo século (pro-
fessor Ciro Flamarion Cardoso).
O capitalismo unifica o mundo
Francisco José Calazans Falcon
Professor titular de História Moderna e Contemporânea
da Universidade Federal Fluminense.
PRÓLOGO — NÓS E O CAPITALISMO

Não foram poucas as dúvidas e os receios, diante do compromisso assumi-


do para a elaboração deste texto. Dúvidas tanto teóricas como didáticas,
receios quanto aos leitores e suas leituras. As dúvidas, tentei resolvê-las
da maneira que considerei a mais exequível; já os receios, para que possa
exorcizá-los, exigem, logo de início, recordar a resposta de J. Schumpeter,
em 1942, à pergunta: "Poderá sobreviver o capitalismo?"

Do ponto de vista da prática imediata e do objetivo de previsões a curto pra-


zo — e, nesses casos, séculos são realmente curtos prazos —, tudo que ocorre
na superfície pode até ser mais importante do que a tendência para uma nova
civilização, que lentamente evolui nas profundezas (1961, p. 204).

Dadas as conhecidas simpatias de Schumpeter pelo sistema capitalista,


não fosse ele o autor que mais exaltou o papel do empresário na história do
capitalismo, não poucos hesitam, ainda hoje, quanto ao sentido das palavras
acima, esquecendo-se, talvez, que elas complementam uma longa análise
da "tendência à autodestruição inerente ao capitalismo" no curso da qual
Schumpeter reconheceu que "a visão de Marx [neste particular] foi correta".
Hoje, parece que a História desmentiu tais reflexões. À época em que
Schumpeter as formulou, a "Nova Ordem" nazifascista parecia vitoriosa
e irresistível; na época atual, uma "Nova Ordem Mundial", ancorada na
"Globalização", parece também vitoriosa. Mais uma vez proclama-se o
"Fim da História" e o "Triunfo do capitalismo".
Que não se tome, porém, a história que se segue como a consagração ou
mesmo o reconhecimento de tal "triunfo". Quer assim o desejem ou não
seus coveiros, a História continua, e este trabalho constitui uma aposta,
nossa aposta, na natureza histórica do capitalismo — da maneira entrevista
por Schumpeter há mais de meio século.
O S É C U L O XX O C A P I T A L I S M O U N I F I C A O MUNDO

INTRODUÇÃO: CONCEITOS, ESPAÇOS E TEMPOS


Embora a "teoria dos mercados", enquanto componente fundamental das
chamadas abordagens substantivas, ou antropológicas, da economia, nos
a) Os conceitos
revele as variedades e complexidades dos mercados, basta-nos aqui consi-
derar o mercado em sua acepção moderna, associada à história europeia a
Nosso trabalho seria muito mais simples caso as palavras possuíssem sem- partir do fim da Idade Média. Nesta acepção específica, o mercado, como
pre um significado claro e distinto, ou seja, se suas relações com as coisas instituição, é o centro das trocas, e aí "comércio" significa a "troca real",
fossem unívocas e imutáveis. Neste caso, convenhamos, não haveria maiores ao passo que "moeda" (dinheiro) é o "meio" que permite ou facilita essa
dúvidas com palavras como "capitalismo", "mercado", "mundo" etc. Bas- troca. Reunindo-se agora, comércio e moeda, constata-se que o comércio
taria ao leitor ler qualquer uma delas para, imediatamente, apreender-lhes é determinado pelos "preços" (expressos em valores monetários), enquanto
a significação. estes, concebidos como "função do mercado", são resultantes das relações
Todavia, como sabemos, são muitos os problemas existentes nessa esfera. que se estabelecem, a cada passo, entre as ofertas e as demandas de quan-
A relação entre as palavras e as coisas é aleatória e, na verdade, as palavras tidades variáveis de bens e serviços (Polanyi e Arensberg, 1975).
remetem a outras palavras, e não propriamente às coisas em si. Além disso, O mercado genérico é então algo como um "sistema" de dimensões va-
quando precisamos lidar com os conceitos, os termos que os designam cor- riáveis que articula todo um conjunto de mercados concretos, de produtos
respondem a ideias gerais e abstraías que condensam e organizam aspectos destinados ao consumo ou a novos negócios, ou de fatores de produção
múltiplos de objetos de reflexão segundo os pressupostos teóricos de quem (terra, capitais, trabalho). Será, no entanto, que tal mercado se apresenta
elabora esses conceitos. Explicitar o sentido de termos de caráter conceituai como autorregulado?
já implica, portanto, algum tipo de comprometimento teórico. Na concepção económica "clássica", o conceito de mercado pressupõe o
Tais problemas até que poderiam ser deixados de lado neste texto mecanismo autorregulador. Seria assim que se poderia explicar por que as
não fora a circunstância de precisamente os conceitos de "capitalismo" e ações individuais, egoístas e contraditórias, de múltiplos indivíduos, como
"mercado" constituírem, hoje em dia, os divisores de águas entre as "novas compradores ou vendedores, em busca da obtenção do maior lucro ao me-
nor custo possível, não degeneram num verdadeiro caos mas, ao contrário,
abordagens" e as mais "antigas", ou clássicas, como logo iremos ver.
produzem o progresso e o "maior benefício possível para o maior número".
Comecemos, então, pela ideia de "mercado".
A. Smith atribuiu esse funcionamento perfeito e imprevisível, que lembra o
É claro que todos nós conhecemos um mercado: trata-se de um lugar
mecanismo de um relógio, à "mão invisível da Providência".
onde se realizam compras e vendas. Nosso dia a dia está repleto de alusões
Não viria ao caso discutirmos, aqui e agora, a natureza de tal mecanismo
a variados tipos de mercados, quer do ponto de vista de suas especialidades
ou a qualidade real do seu automatismo. É uma crítica que já foi feita há
— de peixe, de hortigranjeiros, de automóveis etc., quer das suas dimensões: muito tempo e continua de pé. Interessa-nos, sim, delimitar historicamente
minimercados, supermercados, hipermercados etc. Entretanto, também esta- — no espaço e no tempo — a existência de um "mercado internacional".
mos acostumados à ideia de mercados cujo "lugar", se é que existe como tal, Conforme a maioria dos historiadores, é no mínimo problemática a
é indefinido: mercado financeiro, mercado imobiliário, mercado de ações, hipótese da existência, do século XV ao XIX, de um verdadeiro e amplo
mercado cambial, e tantos outros. Temos neste caso algo assim como um sistema de mercado autorregulado, ainda que somente no âmbito europeu.
campo de atividades, mais ou menos institucionalizadas, distribuídas por Haveria nessa época um conjunto de mercados distintos, ora mais próxi-
variados tempos e/ou lugares, segundo objetivos e regras aceitos por todos mos, ora mais distanciados do "mecanismo autorregulador", a exemplo do
aqueles que delas participam. A novidade, no caso, é introduzida quando mercado de capitais, para os mais próximos.
se admite, como premissa, que o funcionamento do mercado constitui uma Ora, é precisamente nesse passo que se torna necessária uma alusão às
espécie de mecanismo automático e independente das ações e intenções dos "novas abordagens" no âmbito do nosso tema, quer em relação ao conceito
indivíduos que dele participam. histórico de "mercado", quer a respeito do conceito de "capitalismo".

M
1s
O S É C U L O XX O C A P I T A L I S M O U N I F I C A O MUNDO

Essas novas abordagens, produzidas na década de 1970, trabalham com europeus, enquanto formações sociais diferentes umas das outras e que
a hipótese de que se estruturou, já no século XVI, uma "economia-mundo disputam entre si os lucros mercantis e financeiros resultantes da exploração
europeia" (Braudel, 1976), o "sistema mundial moderno" (Wallerstein, 1974) do comércio colonial conforme as ideias e práticas mercantilistas comuns
em bases nitidamente "capitalistas". A admitir-se tal hipótese, não se trataria aos "antigos sistemas coloniais". Resultam dessa concepção dois corolários
de fazer aqui uma síntese da história da "constituição do mercado interna- essenciais: primeiro, os séculos que antecederam a Revolução Industrial são,
cional" mas, quando muito, de seu desenvolvimento, do século XVI ao XIX. por definição, pré-capitalistas, logo, o mercado internacional é dominado,
No entanto, é em relação ao conceito de "capitalismo" que os problemas ao longo desses séculos, pelo capital comercial; segundo, cada formação
se acentuam. social então existente, inclusive aquelas das áreas coloniais, constitui uma
Para que se possam compreender as bases e implicações teóricas dessas espécie da totalidade histórica específica, ou seja, com características estru-
novas abordagens, deve-se ter em vista que os seus autores, como Wallerstein, turais próprias, até mesmo em relação à acumulação primitiva do capital.
as apresentam como baseadas em Marx. De fato, há alguns textos de Marx
que, à primeira vista, parecem compatíveis com tais abordagens, como, 2a — A história do mercado internacional abordada em termos da
por exemplo: análise do "sistema mundial moderno", capitalista e europeu parte da
constituição de tal mercado já em princípios da Era Moderna e seu ob-
Não há dúvida de que as grandes revoluções dos séculos XVI, XVII, que as jetivo é a "articulação, pelo mercado, de vários modos de produção", ou
descobertas geográficas provocavam no comércio e que impulsionavam o seja, formas diferenciadas de "recrutar e remunerar a mão de obra", tais
desenvolvimento rápido do capital mercantil, constituem um fator essencial,
como o escravismo, a servidão, a encomienda, a parceria, o arrendamento
tendo acelerado a passagem do modo de produção feudal ao modo capitalista
(Lê Capital, III, l, 341).
e o assalariamento. Nesta perspectiva, portanto, há somente uma totali-
dade — o mercado mundial —, sistema que integra e hierarquiza regiões e
Se bem que os primeiros esboços da produção capitalista tenham se realizado modos de produção distribuídos por três zonas ou blocos: centro, periferia
desde cedo em algumas cidades do Mediterrâneo, a era capitalista data somente e semiperiferia. Temos, então, três corolários: há apenas uma transição,
do século XVI(Le Capital, l, 3, 155-156). precisamente aquela que deu origem ao "sistema" (século XVI); a acumu-
lação é um processo único, em escala mundial (Frank, 1977); e Revolução
Assim, descontextualizadas e tomadas ao pé da letra, estas e outras pas- Industrial e capitalismo são coisas distintas.
sagens parecem insinuar efetivamente a existência do "capitalismo" e do
"mercado mundial" (capitalista) já no século XVI — o "sistema mundial b) Os espaços e tempos
capitalista europeu" de Wallerstein. Neste caso, não é apenas a noção
de "Capitalismo comercial" que se legitima teoricamente, mas é o con- As histórias que costumamos ler em muitos compêndios, centradas, na
ceito mesmo de capitalismo como "modo de produção" que está em jogo. Europa, quase nada nos dizem da existência de outros "mundos", ou civili-
Substituindo este último, temos então o capitalismo como "produção para zações contemporâneas, por exemplo, do mundo europeu medieval. O peso
lucro num mercado" ou, ainda, a "busca e a realização do lucro através da do eurocentrismo é de tal monta que tendemos a absorver acriticamente
comercialização de mercadorias". noções como "descobrimentos", "descobertas" etc. Aliás, embalados pelo
Chegando agora ao que realmente nos interessa aqui, vejamos, rapida- discurso dominante, nem sequer nos lembramos de que a própria ideia de
mente, as principais implicações possíveis dessas divergências conceituais "Europa" é algo recente e historicamente construído.
para a nossa exposição: Os territórios que chamamos de "Europa" constituíam, para os seus
1a — A história da constituição do mercado internacional tem sido tradi- habitantes medievais, uma comunidade espiritual — a cristandade — teci-
cionalmente entendida como um processo que envolve os Estados modernos da pelas instituições e agentes da Igreja Católica Romana e chefiada pelo
O S É C U L O XX O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

papa. Se a Igreja constituía a face visível da Cidade de Deus, outra, bem economia-mundo rica e articulada envolvendo árabes, persas, indianos e
diversa, era a Cidade dos Homens, governada por poderes seculares múl- malaios —, hindus e muçulmanos. Em 1526, o Sultanato de Délhi foi substi-
tiplos e rivais. Dividida em duas pelo Grande Cisma do Ocidente (1066), tuído pelo Império Grão-Mogol, um poder islâmico em geral tolerante para
que separara do Império Bizantino, sediado em Constantinopla, as regiões com o hinduísmo e cuja presença, até à primeira metade do século XVIII,
do Antigo Império Romano do Ocidente, a cristandade defendia-se, nas assinala uma época de grande prosperidade e paz relativa. Mais adiante, os
suas fronteiras orientais, das incursões dos cavaleiros mongóis e. magiares, reinos do Sudeste Asiático, como o Sião, mas principalmente a hegemonia
ao passo que, nas fronteiras ocidentais, os reinos cristãos ibéricos davam de uma cidade mercantil — Malaca — estrategicamente situada e favore-
prosseguimento à cruzada da Reconquista, só concluída em 1492 com a cendo a rápida islamização da Insulíndia — Sumatra, Java, Celebes, Banda,
conquista do reino mourisco de Granada. Molucas — e se estendendo a Mindanao (ao sul das futuras Filipinas). A
Para além de seus limites, a cristandade convivera, desde o século VII, dissolução do Império do Majopahit, hinduísta, no arquipélago que viria a
com os muçulmanos. Convivência difícil, marcada por ódios ou descon- ser a Indonésia atual, criou vários outros centros de poder, rivais em termos
fianças de ambos os lados, mas também por intensas relações comerciais e políticos e religiosos. Ainda mais adiante, a China, o Celeste Império, onde,
culturais de um extremo a outro do Mediterrâneo. Pirataria, guerras, co- desde 1368, a dinastia Ming havia liquidado o jugo mongol. Uma China
mércio, este, sobretudo, em proveito de venezianos, genoveses e comerciantes que incorporou territórios desde a Coreia ao atual Vietnã, corno tributários
de outras cidades italianas ou não. A expansão dos turcos otomanos, ao do poder imperial, uma outra economia-mundo, na verdade.
longo do século XIV, acelerou-se nos dois séculos seguintes e ergueu em face Logo, mesmo deixando de lado a maior parte da África e a totalidade
da cristandade a grande muralha do Império Otomano, conquistador de da América, existiam, no começo do século XVI, três grandes impérios
Constantinopla (1453), dos portos do Levante (Síria e Egito), e em avanço — turco, indiano e chinês — e uma economia-mundo — no Índico •—,
constante pela península balcânica, rumo a Viena. aos quais se poderia acrescentar a Moscóvia (Rússia), império em rápido
Através de relatos de viajantes árabes, ou das narrativas de alguns eu- processo de expansão para o oriente (Sibéria) e para o sul — a expensas
ropeus que haviam atingido o Oriente cruzando as estepes e passos monta- dos domínios turcos e mongóis.
nhosos da Ásia Central, como fora o caso de Marco Polo (século XIII), os Em face do tamanho e da riqueza desses impérios, ou economias-mundos,
cristãos possuíam vagas noções a respeito da existência de outros povos, não a "economia-mundo europeia" compreendia apenas as regiões que se es-
propriamente infiéis, como os seguidores de Maomé, mas certamente pagãos tendiam das costas do Mar Oceano (Atlântico) ao Elba ou, no máximo, ao
ou gentios. Mas o desconhecimento quase total propiciava rédeas soltas à Vístula; em sentido sul-norte elas se estendiam do litoral do Mediterrâneo
imaginação, fonte inesgotável de visões maravilhosas e perigos assombrosos. ao Mar do Norte e partes do Báltico. Rotas terrestres e marítimas ligavam
Levaríamos muito tempo caso quiséssemos acompanhar os passos desses entre si os dois poios económicos de então: o centro-norte da Itália e os
cristãos mundo afora, "descobrindo" e conquistando, conquistando e explo- Países Baixos, isto é, Veneza, Génova, Bruges e Antuérpia.
rando, do século VI ao XIX. Imaginemos portanto qual teria sido a visão A constituição do mercado internacional pelos europeus teve como ponto
de um extraterreno que houvesse chegado ao nosso planeta no fim do século de partida uma expansão espacial mas não se esgotou aí. Para realmente
XV ou começo do XVI. Havia, claro, a "Europa cristã" e o Império Turco, compreendê-la precisamos dimensioná-la temporalmente. Este dimensiona-
mas, e além deles? Caso o tal marciano observasse o continente africano, mento temporal compreende a delimitação de períodos e a caracterização
por exemplo, perceberia, na sua parte setentrional, domínios islâmicos, do das principais conjunturas.
Egito ao Marrocos, e uma lenta penetração do islã em direção às regiões Atendendo a motivos didáticos, mas também em função de razões teóri-
sul-saarianas do centro e sudoeste. Quanto ao restante do "continente ne- cas, este trabalho está dividido em duas grandes épocas — a pré-capitalista
gro", um fervilhar de tribos, reinos e impérios, fazendo-se e desfazendo-se e a capitalista. Tais épocas não têm uma delimitação cronológica precisa e,
em lutas endémicas. Para leste, o Índico e o subcontinente indiano — uma sobretudo, homogénea em termos de formações sociais concretas. Opta-

: i
O S É C U L O XX O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

mós, então, por considerar pré-capitalistas os séculos XV/XVI ao XVIII e e as oficinas paralisam suas atividades, ao mesmo tempo que as autoridades
capitalistas os séculos XIX e XX. se preocupam com as desordens e a queda das rendas fiscais. Uma outra
Ao tratar de periodizações no interior dessas épocas dispomos, é claro, característica dessas crises é seu caráter regional mais ou menos extenso e
das tradicionais divisões referidas às hegemonias sucessivas das grandes cheio de contrastes entre regiões relativamente próximas. As condições das
potências marítimas. Entretanto, hoje em dia, as preferências recaem sobre estradas e meios de transporte limitam bastante a movimentação de grandes
as conjunturas com suas alternâncias de períodos de prosperidade e de crise, quantidades de cereais de um lugar para outro. A duração de tais crises
mais adequadas, inclusive, aos nossos objetivos. é variável e, em geral, elas terminam aos poucos, com o retorno das boas
A fim de compreendermos melhor essa perspectiva conjuntural é neces- colheitas e a queda mais ou menos acentuada do contingente demográfico.
sário lembrar que as variações conjunturais dependem das relações entre Já o novo regime económico, contemporâneo, típico do capitalismo
os movimentos demográficos e os da produção, consumo, moeda e crédito. industrial e bancário, possui, como características: 1. Predomínio da
Convém ainda ter presentes as diferenças entre os dois "regimes económi- produção industrial em termos de valor e importância; a indústria pesada
cos" chamados, por E. Labrousse, de "antigo" e "novo", ou contemporâneo, prepondera, economicamente, sobre as indústrias leves, ou seja, mineração,
na realidade pré-capitalista e capitalista, respectivamente. siderurgia, metalurgia, química, eletricidade e máquinas são as indústrias
O "antigo regime económico" possui três características estruturais dominantes; 2. Os transportes oferecem, cada vez mais, rapidez e capacidade
básicas e um mecanismo específico de desencadeamento e propagação de carga, a custos decrescentes, do que resultam, primeiro, a unificação
das suas crises. Como características, observa-se: 1. Predominância da do mercado nacional e, logo a seguir, a integração, em nível mundial, de
agricultura; 2. Precariedade dos transportes; e 3. Indústria de bens de mercados regionais, com a consequente especialização da produção — "di-
consumo. A importância decisiva da agricultura se verifica de diversas visão internacional do trabalho"; e 3. O mecanismo das crises periódicas
maneiras: mais de 80% da população vive nas áreas rurais, a produção se modifica, pois, em lugar das crises de subsistência tem-se agora as crises
agrícola supera em valor a produção industrial, a produtividade agrícola de superprodução e de baixa dos preços.
é baixa e se cultivam basicamente cereais e forragens. Os transportes são As crises económicas estão na origem de diversos tipos de flutuação ou
caros e insuficientes, pois as estradas são poucas e malconservadas, ficando "ciclos" cujas durações variáveis geraram várias classificações e denomina-
impraticáveis no inverno, sobretudo ao trânsito de carroças. Rios, lagos e ções. Grosso modo, distinguem-se os ciclos longos e os curtos, dos quais os
mares oferecem menos problemas mas não resolvem as limitações devidas mais interessantes para a história económica são os movimentos de longa
à lentidão, baixa capacidade de carga e dependência de fatores climáticos. duração, interdecenais, ditos movimentos Kondratieff, que François Simiand
A indústria, dividida entre cidade e campo, produz sobretudo artigos des- dividiu em duas "fases": A (prosperidade) e B (depressão). Teríamos, assim:
tinados ao vestuário, construção e atividades agrícolas. As manufaturas,
concentradas ou dispersas, apesar de importantes, não fogem à regra do a) 350-1450 — fase B; crise do final da Idade Média.
predomínio absoluto dos bens de consumo. b) 1450-1620/1650 — fase A; "revolução comercial" e dos preços.
O mecanismo responsável pelo desencadeamento e propagação das crises c) 1620/1650-1720/1730 — fase B; "crise do século XVII".
nesse "antigo regime económico" obedece, em geral, a um mesmo esquema: d) 1720/1730-1810/1817 — fase A; "prosperidade do Setecentos".
uma sucessão de más colheitas reduz drasticamente a produção de grãos e e) 1810/1817-1850/1851 — fase B; crise de passagem do "antigo" ao
eleva rapidamente o preço do pão — é a "crise das subsistências", tornando "novo regime económico".
a fome, agora, epidêmica. A mortalidade aumenta, as cidades incham com a f) 1850/1851-1873 —fase A; prosperidade da primeira industrialização.
chegada dos refugiados das áreas rurais, a ordem pública é ameaçada por g) 1873-1896 — fase B; "grande depressão do século XIX".
arruaças, revoltas, protestos contra os açambarcadores etc... A crise se h) 1896-1929/1930 — fase A; prosperidade "fim de século", até à crise
propaga, assim, do campo à cidade na medida em que o comércio declina de 1929 (Bouvier, 1961).

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O S É C U L O XX O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

Desenhados, portanto, os grandes contornos dos espaços mundiais e mercantis (feitorias, entrepostos, possessões territoriais restritas); a seguir,
descritos os mecanismos conjunturais, a começar pela cronologia da pros- a diferenciação, hoje "clássica", entre as colónias de povoamento e as de
peridade e depressão, podemos agora passar à história da unificação do exploração — de plantação ou de mineração. No segundo caso, a análise da
mundo pelo capitalismo. estrutura e de funcionamento do "antigo sistema colonial" enfatiza o caráter
dependente, "voltado para fora", da economia colonial, isto é, o papel deci-
c) A historiografia da expansão sivo das relações metrópole-colônia no âmbito do "capitalismo comercial".
Nas últimas décadas, no entanto, não somente vêm sendo relativizadas
À primeira vista, talvez o tema do presente texto possa ser classificado as diferenças entre "povoamento" e "exploração" como, principalmente,
como de história económica. Na realidade, ele é muito mais abrangente. têm-se multiplicado pesquisas, estudos e debates que questionam ou rela-
Abordá-lo apenas do ponto de vista económico seria algo bastante redu- tivizam algumas das implicações da teoria tradicional do sistema colonial,
cionista e empobrecedor. De fato, a história da constituição do mercado quer acerca dos "modos de produção coloniais", quer, sobretudo, a respeito
internacional envolve e articula economia, política e cultura em torno de do "mercado interno" colonial, o papel nos núcleos urbanos, a importância
um eixo comum ao qual se poderia chamar, de maneira simplificada, a comercial dos contrabandos e o peso socioeconômico dos grandes comer-
"expansão europeia" — comercial e colonial. ciantes e traficantes de escravos coloniais. Na Ásia, por outro lado, vem
A noção de "expansão europeia" soa hoje em dia como um objeto histo- sendo evidenciada a importância dos circuitos mercantis regionais para os
riográfico algo "datado". Com efeito, sua historiografia caracteriza-se (sécu- negócios dos comerciantes europeus, a exemplo do country trade indiano.
lo XIX e primeira metade do XX) pelas narrativas de viagens e conquistas A história política da expansão, superando as crónicas das ações mili-
e vicissitudes dos estabelecimentos europeus "fora da Europa". Aventura, tares e negociações diplomáticas, volta-se para dois tópicos: as formas de
coragem, decisão caracterizam as personalidades e ações dos heróis "ci- resistência e as práticas de cooptação ou interpenetração social. Resistência
vilizados" em face do desconhecido representado por paisagens e seres dos colonizados indígenas e negros sobretudo mas também de colonos;
"exóticos", bárbaros ou não, mas, sobretudo, diferentes. Embora variem, cooptação ou interpenetração entre muitos colonizadores (autoridades ci-
conforme a época que se considere, os argumentos e pretextos europeus, o vis e militares) e elites coloniais em função de interesses comuns. O quase
"direito" ou "dever" da conquista e colonização são vistos em geral como silêncio sobre as formas variadas de resistência, assim como a tradicional
"naturais" e necessários e capazes de beneficiar colonizadores e colonizados. dicotomia Estado (Coroa) versus sociedade (elites coloniais), ficaram para
O processo de descolonização afro-asiática, após a Segunda Guerra trás. Também quanto à África e Ásia, novas abordagens e questionamentos
Mundial, fez cair no esquecimento as antigas "histórias da colonização", modificaram substancialmente a visão e o conhecimento da natureza de suas
substituídas por histórias de regiões e países hors Europe. Historiadores estruturas políticas e sociais e das suas atitudes diante dos comerciantes
ocidentais e afro-asiáticos ampliaram as pesquisas sobre a história "antes europeus e suas companhias de comércio.
dos europeus"; o período colonial, encarado como uma espécie de inter- Enfim, a antiga perspectiva de uma expansão passivamente "sofrida"
regno, foi investigado em busca das perspectivas e comportamentos dos pelos não europeus é coisa do passado. Tal mutação historiográfica é
colonizados — ou "vencidos". ainda mais perceptível na esfera da história cultural. Aqui, com efeito, a
Tais mudanças de perspectivas foram, ou têm sido, mais evidentes em expansão passou a ser encarada, no âmbito da história das mentalidades e
três setores: o econômico-social, o político e o cultural. da história intelectual ou das ideias, tanto do ponto de vista dos europeus
A história económica e social da expansão fincou pé, por muito tempo, em como das culturas ultramarinas. As "visões do outro", em diferentes épo-
dois temas: a tipologia dos empreendimentos coloniais e a ênfase no caráter cas e circunstâncias, especialmente na cultura europeia, ocupam lugar de
dependente das áreas coloniais. No primeiro caso, preponderam os inven- destaque na historiografia recente, marcando os "encontros, e desencontros,
tários das diferenças entre as "colónias propriamente ditas" e os "enclaves" de culturas e civilizações".

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O S É C U L O XX O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

Apenas para exemplificar, vejamos a mutação que se opera nas atitudes Centralização e concentração se fizeram à custa dos poderes e jurisdições
mentais europeias em relação à índia e China por volta de 1800, ou seja, senhoriais da nobreza e do clero, isto é, da "domesticação" da aristocracia
na época em que chegam ao término o "antigo sistema colonial" e a era civil e eclesiástica, e das limitações impostas às autonomias municipais dos
do capitalismo comercial. "burgueses". Seus instrumentos decisivos foram tanto de natureza ideológica
No caso da índia, observa-se claramente como a visão idealizada das e jurídica como de caráter prático: a imposição, pelo príncipe, em nome da
suas instituições, popularizada por Raynal, começa a ser substituída por sua autoridade suprema e absoluta, do seu monopólio fiscal, judiciário e do
apreciações negativas dos hindus e do hinduísmo: o sistema de castas, os uso da força. Poder tributar e taxar livremente os súditos, impor a soberania
costumes "bárbaros". A pobreza e a ignorância são atribuídas à religião da justiça régia, controlar o uso das armas — "vigiar e punir", como analisa
hindu, no momento mesmo em que a Revolução Industrial inglesa desarti- Foucault (1975) —, são as peças essenciais do poder absolutista.
culava e destruía a produção indiana de tecidos de algodão para exportação. O Estado absolutista representa, em termos históricos, a manutenção
Quanto à China, modelo de monarquia esclarecida para os filósofos da da hegemonia aristocrática embora, simultaneamente, em função da sua
Ilustração, sua resistência aos ocidentais leva estes últimos a substituírem dinâmica política económica e financeira, ele tenha favorecido, em escala
a antiga admiração pela civilização dos mandarins por uma crescente im- variável, o desenvolvimento mercantil e manufatureiro e, portanto, a ex-
paciência ou irritação diante do "imobilismo" e "atraso" da China. Sedas, pansão dos setores burgueses. Ao fim e ao cabo, as dificuldades cada vez
porcelanas, chá, chinoiseries, encantavam os europeus mas os chineses maiores para harmonizar as perspectivas e interesses contraditórios da
desprezavam os produtos ocidentais — apenas a prata lhes interessava. A aristocracia e da burguesia levaram o Estado absolutista à crise, isto é, a
China era um gigantesco mercado potencial para as indústrias em expansão Revolução Liberal (Koselleck, 1972).
na Europa — por que não "abri-la" ao comércio e à civilização? Tanto os Estados absolutistas como as "Repúblicas" — antigas, ou urba-
nas, como Veneza e Génova, ou "modernas", como as Províncias Unidas (Fal-
cón, 1994) — empenharam-se, em maior ou menor grau, no estabelecimento
PARTE l —A ERA DO CAPITAL(ISMO) COMERCIAL de entrepostos mercantis e/ou conquistas territoriais em regiões extraeuro-
peias, do século XVI ao XVIII. Tais empreendimentos foram realizados,
Conhecida também como a época do surgimento do "capitalismo moderno", na maior parte dos casos, por companhias de comércio organizadas, quase
esta é a era marcada pelo domínio do capital mercantil. sempre, pelo Estado e com a sua participação financeira em muitas delas, além
dos "privilégios" (monopólios e isenções fiscais) concedidos a essas empresas
mercantis. Decorrem de tais características algumas das ideias e práticas
A) PRESSUPOSTOS POLÍTICOS, SOCIAIS E CULTURAIS mais típicas do chamado "Antigo Sistema Colonial", a começar por sua
DA EXPANSÃO PRÉ-CAPITALISTA estreita vinculação aos interesses e decisões dos governos absolutistas — ou
republicanos, no caso holandês. Compreender-se-á assim por que a expansão
1. O quadro político marítima, comercial e colonial, além de económica, é também política, daí
estarem nela envolvidos comerciantes, militares, burocratas e missionários.
O mapa político europeu, até o final do século XVIII, caracteriza-se pelo
predomínio do Estado monárquico absolutista. Enquanto forma política, esse 2. As estruturas sociais
Estado corresponde ao resultado de um processo plurissecular que marcou a
passagem do Estado feudal ao moderno, através da centralização do poder Designa-se, em geral, como Antigo Regime a sociedade da maioria dos
(tanto territorial como administrativa) e de sua concentração em mãos de um países europeus anterior à Revolução. Tal designação, produzida durante a
príncipe, ungido pelo direito divino e perpetuado pela sucessão hereditária. Revolução Francesa por aqueles que queriam justamente liquidá-lo, indica

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O S É C U L O XX O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

um tipo de sociedade onde imperavam a desigualdade e o privilégio. Uma alguns aspectos dessas manifestações, precisamente aqueles mais diretamente
sociedade cujas representações se baseavam em noções como as de "estado" ligados à expansão ultramarina — viagens, descobrimentos, conquistas.
e "ordem", ou seja, uma sociedade dividida em estamentos e ordens tendo As viagens transoceânicas, tanto nas suas origens como nos seus resul-
em vista deveres e direitos distintos de acordo com o nascimento, função e tados (e continuidade), constituem uma prática, ou conjunto de práticas,
posição hierárquica de cada um no seu grupo social. Nessa sociedade, há onde se associaram estreitamente teorias e experiências ora conflitantes, ora
uma linha que separa o nobre do plebeu e outra que marca as diferenças ou complementares. Barreto (1987), ao estudar a marinharia lusa, refere-se a
distâncias entre os grupos detentores de algum tipo de privilégio e aqueles uma "sabedoria do mar" produzida a partir das observações e experiências
totalmente destituídos. Pode-se, é claro, sublinhar as diferenças entre "so- das próprias viagens. Tratava-se então, e seria assim até o século XVIII,
ciedade rural" e "urbana", ou discutir, como já foi moda, a "realidade" de resolver problemas concernentes à construção naval, à orientação em
ou não dos estamentos t classes sociais. Atualmente, tende-se a utilizar o alto-mar e ao mapeamento preciso de rotas e lugares visitados. Inicialmen-
conceito de "Sociedade de Corte" (Elias, 1987) na medida em que alguns te, a bússola, ou "agulha de marear", o astrolábio e o quadrante náutico
historiadores o consideram bem mais preciso para descrever e explicar as ca- possibilitaram, respectivamente, conhecer o "rumo" e estabelecer a latitude,
racterísticas fundamentais das sociedades europeias anteriores à Revolução. pois a determinação da longitude foi problema só resolvido no século XVIII.
Interessam-nos mais aqui, no entanto, dois aspectos: o crescimento da(s) Quanto às embarcações, os portugueses utilizaram as velas em suas caravelas
burguesia(s), isto é, de seus negócios, no interior dessa sociedade e a oposi- e naus, que permitiam navegar inclusive contra o vento; holandeses e ingleses,
ção ao absolutismo. Quer ocupando, cada vez mais, posições no aparelho nos séculos XVI e XVII, introduziram novos tipos de embarcações, mais
do Estado, quer buscando o seu próprio enobrecimento, pela compra de ligeiras, além de sucessivos aperfeiçoamentos nas técnicas de construção e
terras e títulos ou uniões matrimoniais, a burguesia afirma sua presença e de utilização de madeiras, cordoalha, alcatrão etc. Por mais de um século,
introduz sua visão de mundo nessa sociedade, ao mesmo tempo que seus os estaleiros holandeses abasteceram praticamente quase toda a Europa.
setores mercantis e financeiros atuam à sombra da proteção do Estado ou "Roteiros" e portulanos portugueses, ciosamente mantidos em sigilo,
lucram com os apertos financeiros deste. E, não menos importante, em al- foram acompanhados de mapas-múndi os mais variados, de italianos e ale-
guns países ou regiões são elementos ou setores aristocráticos que adotam mães, desde o século XVI. Também os espanhóis e, a seguir, os holandeses
concepções e práticas de "empresas" (capitalistas) em relação à exploração fizeram dos mapas e "roteiros" segredos de Estado. Afinal, numa época
dos seus bens fundiários. em que o monopólio mercantil era, ao mesmo tempo, política estatal e exi-
A desestruturação do Antigo Regime, no final do século XVIII, pode gência económica, não se poderia admitir o acesso às informações sobre o
ser entendida, portanto, como a consequência tanto do esvaziamento ou além-mar a quaisquer concorrentes. O desconhecimento, mais até do que
esgotamento das bases de sustentação dessa sociedade quanto da crítica o temor às represálias luso-espanholas, manteve os competidores afastados
sistemática efetuada, desde fins do século XVI, aos princípios que a legiti- da "rota do Cabo" até as duas últimas décadas do século XVI.
mavam — e ao Estado absolutista (Koselleck, 1972) —, crítica esta centrada Por último, mas não menos decisivo, o poder de fogo dos europeus,
nas várias acepções da ideia de "liberdade", como referida ao indivíduo — especialmente nos mares. A supremacia europeia impôs-se em função da
cidadão — e à "nação". superioridade da sua artilharia naval (Cipolla, 1967). Se, na América,
canhões, mosquetes e cavalos dizimaram os exércitos indígenas, na Ásia
3. Os dados culturais o poderio europeu foi essencialmente marítimo. Incapazes de desafiar, em
terra, os exércitos locais, os europeus limitaram suas posições, por muito
Não se trata, claro está, de retomar, neste passo, aqueles aspectos mais co- tempo, ao perímetro protegido por sua artilharia naval.
nhecidos da história geral da cultura ocidental na época moderna (Renasci- Primeiros dos ocidentais a chegarem ao Índico, os portugueses foram
mento, Reforma, Revolução Científica, Ilustração). Interessam-nos somente também pioneiros na moderna tática de guerra naval; em face dos ataques de

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O S É C U L O XX O C A P I T A L I S M O U N I F I C A O MUNDO

centenas de embarcações árabes, indianas, malaias e chinesas, substituíram astronómicas e relógios. Estes, aliás, constituem uma história à parte nos
a abordagem pela destruição dos barcos inimigos a tiros de canhão. Suas séculos XVII e XVIII, associados que estão ao deslumbramento de então
frotas, pequenas quando comparadas às dos adversários, eram mais ágeis e pelos variados mecanismos conhecidos por "autómatos".
possuíam poder de fogo avalassador. Entende-se assim por que a chegada dos
portugueses haveria de ficar associada na memória coletiva à violência física e d) Nessa mesma linhagem, de um universo concebido como um imenso
à intolerância religiosa, mas também à fumaça e à pólvora (Panikkar, 1956). mecanismo "escrito em linguagem matemática" (Galileu), pode-se situar
Canhões e velas estiveram também presentes nas inúmeras explorações o interesse cada vez maior pela estatística, do qual William Petty (século
empreendidas nos séculos XVII e XVIII pelo Pacífico e Insulíndia, em bus- XVII) é um pioneiro em termos da sua aplicação aos fatos sociais.
ca de um novo continente "austral". Aos poucos, as motivações mercantis
foram cedendo espaço às viagens e expedições científicas ou "filosóficas", e) Enfim, mas não menos decisivo, o papel da imprensa. O crescimento
típicas do Setecentos, quer no Pacífico, quer no continente americano. vertiginoso da produção de livros impressos e, a seguir, de jornais e revistas
A história cultural da Europa moderna está intimamente ligada às ex- abriu perspectivas totalmente novas para a difusão de informações, fantasias
periências empíricas e à revolução intelectual, cujas origens se acham na e reflexões acerca das viagens e dos costumes de outros povos. Investigar essa
própria expansão europeia. Difícil, portanto, estabelecer-se com precisão indústria editorial, conhecer leitores, tentar perceber leituras constituem,
os percursos e mecanismos de relações múltiplas e mutantes entre as no- hoje, setores de ponta da história cultural (Darnton, 1996).
tícias e imagens de seres e coisas diferentes e novos e os desenvolvimentos
intelectuais e mentais europeus. Quando muito, em função de nosso tema,
poder-se-á lembrar aqui um pequeno elenco de aspectos dessas relações. B) A EXPANSÃO MERCANTIL

a) A crise do prestígio e autoridade dos "antigos". Viagens e descobri- O processo de unificação do mundo: do capital(ismo) comercial ao capi-
mentos jogaram por terra verdades teológicas e filosóficas assentadas na talismo industrial.
autoridade dos textos bíblicos e greco-romanos. A história da unificação do mundo, tendo como um dos seus pilares a
construção do mercado mundial em bases capitalistas, abrange o período
b) A supremacia da experiência sensível sobre o saber livresco abriu ca- situado entre os séculos XV-XVI e XIX. Há, evidentemente, muitas manei-
minho a novas perpectivas acerca do homem e do mundo e à possibilidade ras de se abordar este processo histórico, isto é, de delimitar suas etapas e
de pensar em bases inteiramente novas o conhecimento. Do "experiencia- colocar em destaque tais ou quais características. Trata-se aí, na verdade,
lismo" dos primeiros navegadores emergiu aos poucos o experimentalismo de sublinhar o desenvolvimento dos mercados europeus e extraeuropeus
científico como base da ciência moderna. Copérnico, Tycho-Brahe, Bacon, de acordo com as características do capital e tendo em vista os circuitos
Galileu, Descartes, Newton, cada um deles de acordo com suas circunstân- mercantis, a expansão'colonial, as práticas mercantilistas e livre-cambistas,
cias, consubstanciam as tendências no interior de uma Revolução Científica e os progressos tecnológicos.
impensável sem a expansão ultramarina. Utilizaremos aqui dois enquadramentos gerais para o efeito de periodi-
zação: capital e conjuntura. Do ponto de vista do capital consideraremos as
c) As necessidades práticas dos viajantes em termos de observar, des- fases tradicionalmente denominadas de: capital(ismo) comercial, capitalismo
crever e medir com exatidão os fenómenos observados contribuíram po- industrial e capitalismo financeiro. Em termos de conjunturas, localizare-
derosamente para o desenvolvimento da mentalidade científica moderna mos: a "revolução comercial" do século XVI, a "crise" do século XVII, a
centrada no tratamento matemático dos dados. Medir o tempo, por exemplo, prosperidade do século XVIII, e as oscilações de crise e prosperidade do
tornou-se essencial, o que levou ao aperfeiçoamento incessante das tábuas século XIX.

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O S É C U L O XX O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

1. Antecedentes medievais seguros marítimos e ao mesmo tempo faz emergir uma verdadeira "mania
de apostas". Mais importantes, no entanto, são as conexões cada vez mais
Nos séculos XI e XII, uma "revolução económica" impulsionou a produção amplas entre comerciantes-banqueiros e príncipes, a exemplo dos Fuggers
agrícola e artesanal e as trocas mercantis na Europa Centro-Ocidental, de Augsburgo e o imperador Carlos V, na primeira metade do século XVI.
levando ao chamado "renascimento urbano". Prosperaram sobretudo as Em certos países, como a Inglaterra, o capital comercial aproveitou as
cidades do centro-norte da Itália, sul dos Países Baixos e cercanias do oportunidades de lucro e investimento resultantes das secularizações dos
Báltico, favorecidas pelo crescimento do comércio "a longa distância". bens eclesiásticos — terras, prédios, objetos preciosos — promovidas pela
Acumulação de capital, maior circulação monetária, novos instrumentos Reforma protestante.
de crédito, empréstimos aos príncipes e instituições eclesiásticas, circulação Dos séculos XV-XVI ao XVIII, em linhas gerais, a história do capital(ismo)
intensa de mercadorias tanto no Mediterrâneo como entre a Itália setentrio- comercial compreende dois grandes circuitos ou complexos de rotas e trocas
nal e o Mar do Norte, pelo vale do Reno, caracterizam então esse primeiro mercantis: o intraeuropeu e o extraeuropeu.
O circuito intraeuropeu predominou até os arredores de 1750 e com-
surto expansionista do capital mercantil. Os abalos e prejuízos causados
preende quatro complexos regionais: Mediterrâneo, Atlântico, Báltico e
pela "crise dos séculos XIV e XV", apesar de graves, não impediram uma
Europa Centro-Oriental, sendo basicamente marítimos os três primeiros e
recuperação relativamente rápida no século XV e, principalmente, contri-
misto o último. Influenciados pelas diferenças regionais (geografia, clima)
buíram para o deslocamento parcial de rotas comerciais e capitais para os
e de natureza econômico-social entre as várias regiões europeias, os circui-
portos atlânticos ibéricos.
tos europeus transportavam principalmente cereais, vinhos, sal, lã, peixe
A partir dos séculos XV e XVI, expansão marítima, comercial e colo- salgado, madeira, estanho, cobre, ferro, sabão e produtos "novos" como
nial, e construção do mercado mundial caminham de mãos dadas, como relógios, papel, livros e artigos de luxo — em couro, metal, vidro, louça —
observou Marx: "O comércio mundial e o mercado mundial inauguram, produzidos em algumas poucas regiões já famosas. O gado deslocava-se
no século XVI, a biografia moderna do capitalismo." "em pé" para os grandes centros urbanos e certos artigos, como a madeira
Vejamos então, separadamente, as características principais dos merca- para os navios, a cordoalha, os panos das velas e os canhões, eram extraí-
dos, na era do capital comercial, e as etapas da expansão colonial europeia. dos ou fabricados em locais específicos — como os países escandinavos
(Suécia). Ocorreu assim uma relativa especialização no âmbito de cada um
2. Circuitos comerciais: mercados intraeuropeus e extraeuropeus dos circuitos regionais. Os portos do Atlântico, por exemplo, tornaram-se
grandes importadores e reexportadores de mercadorias vindas das regiões
A partir da gigantesca expansão realizada nos séculos XV e XVI, expansão ultramarinas. Até 1750, Bristol (Inglaterra) e Nantes (França) foram os
do espaço e das operações mercantis, o capital comercial deu um verdadeiro principais portos de comércio com as Américas e dos barcos empregados no
salto. O afluxo da prata e do ouro americanos, os grandes carregamentos tráfico negreiro; a partir daí, Liverpool e Bordéus assumiram a liderança.
de "especiarias" e demais mercadorias vindas do "Oriente" foram acom- O comércio dessas- regiões com as transoceânicas compreendia um pe-
panhados por uma "revolução dos preços" que repercutiu sobre os níveis queno leque de exportações e uma apreciável e cada vez maior quantidade
de produção e consumo europeus. de importações, em geral reexportadas para outras regiões por alguns
O capital comercial expandiu-se com rapidez em função das novas e grandes portos conectados ao ultramar. As exportações consistiam em
crescentes oportunidades geradas pela rotas mercantis transoceânicas e pela manufaturas — panos de lã, artigos de metal, ferro, couro, madeira (mobi-
conquista e exploração das terras do Novo Mundo, a começar pelo de- liário), vidro, papel e seda; vinho, trigo, cerveja. Armas de fogo, panos de
senvolvimento do comércio de escravos africanos. Na Europa, um capital algodão e bugigangas eram enviados para o comércio de escravos na costa
financeiro incipiente movimenta as primeiras "bolsas" (Antuérpia, Londres, africana. Todavia, desde sempre, o comércio com as regiões asiáticas con-
Lyon), favorece práticas especulativas, propicia o desenvolvimento dos sumia quantidades sempre crescentes de prata (Minchiton, 1981).

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As grandes feiras mercantis, permanentes, eram Antuérpia, depois substi- O desenvolvimento de cada um desses circuitos obedeceu a fatores
tuída por Amsterdã, Londres, Paris, Lyon, Nantes, Frankfurt (substituída por e circunstâncias mais ou menos específicos, ligados às características
Leipzig, a partir de 1648), Copenhague, Hamburgo. Diferenciaram-se aos próprias de suas formas de inserção no mercado internacional e também
poucos os comerciantes atacadistas desses grandes empórios e os retalhistas às variações conjunturais deste último, como veremos ao tratarmos da
espalhados por toda parte. Nos começos do século XVIII, aparecem as pri- expansão colonial europeia. Por ora, no entanto, é oportuno assinalar o
meiras "lojas" (Londres, Paris), decoradas e com vitrines, mas os mascates papel dominante desempenhado nesse comércio por alguns grandes centros
ou bufarinheiros continuaram a ser numerosos e essenciais. O movimento mercantis e financeiros europeus, como Antuérpia (até 1580), Amsterdã
comercial em alta favoreceu o aprimoramento dos serviços postais ainda (século XVII e metade do XVIII), Londres (a partir de fins do XVII), Géno-
no século XVII, quando apareceram também os primeiros jornais, 1 com va (na passagem do século XVI para o XVII), bem como alguns centros
informações, anúncios de compra e venda, calendários de eventos mercantis mais regionais ou especializados, como Marselha e Hamburgo, Genebra,
e listas de "preços correntes". Em contraste com esses progressos, porém, os Frankfurt, Nantes e Bordéus, Bristol e Liverpool, além, é claro, de Lisboa
melhoramentos introduzidos nos transportes, terrestres sobretudo, foram e Sevilha (depois Cádiz).
poucos e lentos em termos de velocidade e de capacidade de carga.
Por volta de 1750 o(s) mercado(s) europeu(s) ainda deixava(m) bastante 3. Expansão geográfica e hegemonia mercantis na Europa mercantilista
a desejar em termos de articulação. A economia monetária convivia com
vastos bolsões de "economia natural"; havia enorme variedade de pesos 3.1 Preponderância marítima ibérica e hegemonia flamenga — Antuér-
e medidas, milhares de postos de cobrança de direitos sobre a passagem pia (séculos XV e XVI)
de mercadorias e, sobretudo, uma enorme disparidade de rendas. O povo
comprava alimentos, bebidas, roupas e materiais de construção mas, exceto Navegações oceânicas, descobrimentos, conquistas e colonização cons-
quanto ao consumo de bebidas, esse mercado acompanhava os ritmos de- tituem etapas sucessivas da "empresa mercantil" ibérica, uma empresa
mográficos e conjunturais da economia. Em compensação, entre as classes marcada pela forte participação das coroas de Portugal e de Castela em
abastadas, as mudanças se aceleraram, do século XVI ao XVIII: novos pa- todos esses estágios.
drões arquitetônicos enfatizaram o luxo, o conforto e a privacidade; houve Os empreendimentos portugueses começaram com a conquista de Ceuta
a transferência no vestuário, sobretudo feminino, da supremacia da moda (Marrocos), em 1415, e culminaram, em 1487-1488 na viagem de Vasco da
espanhola para a francesa (meados do século XVII), acompanhada das Gama à índia (Calicute), após décadas e décadas de viagens e explorações
primeiras revistas especializadas (Paris). da costa ocidental da África, de onde se haviam levado ouro, escravos e
Os circuitos extraeuropeus atingiram o auge no século XVIII e abran- marfim para Lisboa.
giam três áreas principais e algumas subdivisões regionais: Américas, Os castelhanos, afora a conquista das Canárias, somente em 1492 pu-
"índias" e China. A área americana compreendia as colónias inglesas da deram, graças a Colombo, desafiar os sucessos lusitanos, embora dominados
América do Norte, as colónias ibéricas e as "índias Ocidentais", ou seja, as pela ilusão de que haviam alcançado as "índias"— as imediações de Cipango
ilhas antilhanas e do Caribe. As "índias" incluíam o subcontinente indiano, (Japão), no caso.
Insulíndia (Indonésia), as regiões da península malaia e as Filipinas. Quanto Desconfianças lusas, pois, em 1493, ainda faltavam cinco anos para
ao comércio chinês, podemos incluir na mesma área o Japão e o Sudeste a viagem de Vasco da Gama; euforia castelhana, pois acreditavam ter
Asiático. Resta ainda o continente africano. Este, no litoral ocidental, conseguido chegar "antes" dos portugueses, criaram um clima de guerra
articulava-se com as Américas (as suas três áreas) em função do tráfico de iminente. Mais uma vez, a mediação do papado não se fez esperar: o
escravos através do Atlântico; já a costa oriental, no Índico, estava inserida Tratado de Tordesilhas (1494) dividiu as terras recém-descobertas, ou por
nas trocas comerciais realizadas com a índia, Mar Vermelho e Golfo Pérsico. descobrir, entre os soberanos ibéricos: um meridiano, a 370 léguas da ilha

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de Cabo Verde, separaria os domínios lusos (leste) dos espanhóis (oeste). Pizarro (Peru-Incas); a partir de 1550, a Coroa retoma em suas mãos todos
Curiosamente, porém, somente anos mais tarde, após a viagem de circuna- os poderes e inunda as novas conquistas com os seus soldados, missioná-
vegação de Fernão Magalhães (1518-1522), português a serviço de Castela, rios e funcionários — começa a organização da colonização: exploração
descobriu-se, por causa das Molucas, que era preciso dividir também o das minas, como Zacatecas e Guanajuato, no México, e Potosí, no Peru;
Pacífico: pelo Tratado de Saragoça (1529), um meridiano, 17 graus a leste plantações tropicais nas terras baixas, ou criação extensiva de rebanhos.
daquelas ilhas, concedeu a Portugal as regiões a leste (incluindo as Molucas) "Frotas da índia", "Frotas da Prata", Lisboa, Sevilha, tais eram, em sín-
e à Espanha as regiões a oeste do meridiano (Filipinas). tese, as engrenagens e os centros dos monopólios mercantis ultramarinos.
Nesse ínterim, a frota de Cabral, a caminho da índia, já havia, desde Mas essas eram também suas fraquezas — estratégicas e financeiras.
1500, "descoberto" a "Ilha de Vera Cruz", ou Terra de Santa Cruz (Brasil). Para a Coroa lusa, a defesa do monopólio das rotas e tráficos mercantis
A expansão ibérica pode ser inserida, segundo Godinho (1968), no âm- — para e no Oriente — tornou-se cada vez mais dispendiosa: renovação das
bito de um "complexo histórico-geográfico", estruturado no fim do século frotas, conservação de fortalezas, gastos com pessoal militar, burocrático
XV, e que apresenta seus primeiros sinais de crise, em Portugal, em 1549, e eclesiástico, corrupção, naufrágios. Além do mais, agravaram-se, com o
e, na Espanha, um pouco mais tarde. Seu encerramento, para Portugal, passar do tempo, os conflitos armados com os potentados muçulmanos na
coincide com as vicissitudes metropolitanas e coloniais ligadas à união das índia e nas Molucas. Em consequência, foi necessário contrair empréstimos
coroas ibéricas, enquanto, para a Espanha, tem a ver com a crise financeira com os banqueiros flamengos, italianos e alemães. Ao endividamento do
do Estado, no fim do reinado de Filipe II, e com a queda vertiginosa do Estado somou-se, aos poucos, o déficit crescente das importações sobre as
afluxo dos metais preciosos, entre 1620 e 1630. exportações. Importavam-se quase todos os itens necessários às "carrega-
A empresa mercantil ibérica desenvolveu-se com características distintas ções" das frotas, além dos artigos de luxo consumidos pela aristocracia. A
ditadas, em boa parte, pelas próprias "circunstâncias", muito diferentes ruína da feitoria oficial da Casa da índia, em Antuérpia (1545), sintetiza
das índias (Orientais) e da América. Todavia, alguns traços são comuns: o bem a lógica do sistema: em troca do monopólio, a Coroa arcava com as
uso da violência mais brutal, apoiada na superioridade de navios, canhões, despesas colossais do transporte das especiarias das índias para Lisboa; já a
mosquetes e cavalos, para submeter pela força os adversários; a preocupação transferência das mercadorias de Lisboa para Antuérpia, bem mais simples
quase fanática com a conversão dos gentios e a humilhação dos infiéis; e (e os seus lucros), ficava com os flamengos, seus redistribuidores na Europa
a presença dominante da Coroa, organizando, fiscalizando, gerindo e or- setentrional e centro-ocidental.
denando a todos e a tudo. No caso da Espanha os problemas eram outros, mas os mecanismos
A política portuguesa em relação às "conquistas" consistiu em apro- não eram muito diferentes. A Coroa espanhola era rica, imensamente
priar-se, a ferro e fogo, do comércio do Índico e suas extensões orientais rica, não se podendo supor que os custos da exploração da América e das
(Insulíndia e China), transformando aquele oceano em uma espécie de "lago frotas constituíssem algo tão significativo para o tesouro real como o eram
lusitano" a partir do controle de suas "portas": Ormuz (Golfo Pérsico), no caso lusitano. Todavia, as guerras e o luxo consumiam quase tudo, pro-
Socotra (Mar Vermelho), e Malaca (na passagem para o Mar da China). duzindo sucessivos e crescentes déficits — do tesouro e do consumo —, que
Expulsar ou esmagar os comerciantes rivais — árabes, muçulmanos india- conduziram à tomada de empréstimos com banqueiros alemães — como os
nos, e malaios — a fim de estabelecer o "monopólio" comercial — regional e Fuggers, de Augsburgo —, genoveses e flamengos. Assim, alta dos preços,
transoceânico — era o objetivo das frotas e das feitorias — fortalezas lusas. entrada de mercadorias importadas e bancarrotas do Estado, arruinaram
A política espanhola dividiu-se em três fases: até 1520 são as viagens a burguesia mercantil e os empresários das manufaturas configurando o
de reconhecimento — de Colombo e de outros navegadores-exploradores, processo ao qual Vicens Vives (1964) denominou de "meteoro burguês".
como Balboa, que em 1513 descobriu o Mar do Sul (o Oceano Pacífico); de Antes de concluirmos esta síntese relativa ao século XVI, é necessário
1520 a 1550 é a era dos "conquistadores, como Cortez (México-Astecas) e relativizar, um pouco pelo menos, a ideia de que os demais países europeus,

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excluídos da partilha do mundo, apenas presenciaram, conformados, à "he- A união ibérica (1580) expulsou holandeses e flamengos dos portos
gemonia ibérica". Na realidade, o oposto é bem mais verdadeiro. Durante a portugueses. Com o quase bloqueio do estreito de Gibraltar pelos espa-
primeira metade do século, ingleses e franceses financiaram expedições des- nhóis, tornou-se problemático o acesso às mercadorias do Oriente. Restava
tinadas, em princípio, a encontrar as chamadas passagens do Noroeste e do apenas a "rota do Cabo". Daí, em 1602, a fundação da Companhia Unida
Nordeste para o Oriente, tentativas estas das quais resultaram, por exemplo, das índias Orientais, em Amsterdã, empresa particular mas ligada aos
a exploração do bacalhau da Terra Nova e do comércio de peles no Labrador, Estados Gerais, que lhe concederam poderes extensos, inclusive políticos
bem como os primeiros contatos com a Moscóvia. Na segunda metade do e militares. Iniciou-se assim o ataque às posições portuguesas na índia e
século, desfeitas as expectativas quanto às "passagens", novas circunstâncias Insulíndia. Tiveram os holandeses, no entanto, que competir com os ingle-
políticas impulsionaram franceses, ingleses e holandeses a desafiar direta-
ses da Companhia das índias Orientais, fundada em Londres, em 1600.
mente o monopólio ibérico. Novas circunstâncias políticas: lutas religiosas
Ao findar as quatro primeiras décadas do século, os holandeses haviam
na França; rivalidade e conflito anglo-espanhol; revolta das províncias se-
assumido o controle da Insulíndia e do comércio com Nagasaki (Japão),
tentrionais dos Países Baixos contra a soberania espanhola. Novos desafios:
transformando Batávia no centro de seu poder no Oriente. Enquanto isso,
Villegaignon e sua França Antártica (Rio de Janeiro); Hawkins introduzindo
expulsos das Molucas (Amboine, 1623), os ingleses estabeleceram-se na
mercadorias e escravos africanos nas Antilhas; Drake e outros corsários
atacando navios espanhóis; primeiras companhias de comércio com a índia índia, a expensas dos portugueses, os quais conseguiram manter apenas
organizadas pelos holandeses (1595), logo seguidos pelos ingleses (1600). Goa, Damão, Diu e Bassain, mesmo assim a duras penas, tal como Timor,
Assim, se a viagem de circunavegação realizada por Drake (1577-1579) Solar e Flores, na Insulíndia.
revelara a fraqueza das posições portuguesas no Oriente e suas dificuldades Na América, no entanto, a Companhia Holandesa das índias Ocidentais,
políticas, as informações de ingleses e holandeses, que haviam servido em fundada, em 1621, em Amsterdã, conseguiu somente êxitos temporários
naus portuguesas, sobre os roteiros marítimos, portos, condições políticas — Salvador, 1624-1625; Pernambuco e Nordeste —1630-1654, Nova Ams-
locais, descerraram os véus do mistério sobre a "rota das especarias". terdã, 1628-1654. Apenas Curaçao e a Guiana ficaram em seu poder, assim
como, na África, o Cabo (1652) e alguns estabelecimentos no Senegal, pois
3.2 Hegemonia holandesa — e desafios anglo-franceses. Angola, tomada em 1641, foi reconquistada pelos luso-brasileiros em 1648.
Amsterdã (1550-1715) Seja como for, a Holanda consolidou-se como a grande potência hegemó-
nica do comércio e das finanças internacionais. Através do chamado "comér-
O século XVII associa-se, historicamente, ao poderio e riqueza da "Holanda" cio de comissão", os "carreteiros do mar" dominaram por várias décadas o
(República das Províncias Unidas dos Países Baixos). Tal associação, embora comércio dos países ocidentais, assim como o do Báltico, Alemanha, Rússia
válida, não deve ser encarada de maneira exagerada. Afinal, esse século foi e parte do Mediterrâneo. Açúcar, especiarias, chá, artigos de luxo e panos
também o de Cromwell na Inglaterra, com seus "Atos (Leis) de Navegação", do Oriente, cereais dos países bálticos, bem como a madeira e os metais,
e o de Luís XIV, na França. "O Grande Século", segundo Voltaire; século eram o forte desse comércio, que também incluía os navios construídos
do Barroco mas também do Classicismo; do auge das ideias e práticas mer- nos seus estaleiros, canhões e mosquetes. Fundado em 1608, o Banco de
cantilistas mas também da "Revolução Filosófica e Científica", de Galileu, Amsterdã era então o centro financeiro europeu.
Descartes, Spinoza, Leibniz e Newton. Os primeiros abalos infligidos a essa supremacia neerlandesa resultaram
É também habitual aludir-se à "crise do século XVII", mas, ainda desta das derrotas impostas em duas guerras, 1652-1654 e 1663-1664, pelos in-
vez, relativizar é preciso, pois, dependendo do país cuja economia se consi- gleses, mas que se originaram na reação holandesa às Leis de Navegação
dere, a "crise" muda de feição, ou de sinal. Afinal de contas, se tem sentido decretadas por Cromwell (1654) e confirmadas pela Restauração (1660
a noção de "crise" a propósito de Espanha, Portugal e cidades italianas, e 1663) para a proteção do comércio inglês. Não tardaram, também, as
como aplicá-la às Províncias Unidas, Inglaterra, Suécia, ou mesmo à França? guerras empreendidas por Luís XIV contra a República das Províncias

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Unidas — em defesa do protecionismo colbertista mas, também, contra um 3.3 Duelo anglo-francês: apogeu e crise do "antigo sistema colonial
"foco de libertinos" antiabsolutistas. Restou então aos holandeses, a partir mercantilista" (1715-1815)
de 1688-89, estabelecer sólida aliança com a Inglaterra contra as ameaças
francesas, uma aliança, aliás, que está nas origens financeiras da fundação Mais conhecido como o Século da Ilustração e da Revolução, o século
do Banco da Inglaterra, em 1694. XVIII possui também uma especial importância na história do mercado
Nas índias Ocidentais (Antilhas), iniciou-se a colonização, através de internacional. Com efeito, ao auge do "antigo sistema colonial" segue-se,
companhias de comércio — francesa e inglesa —, das ilhas não ocupadas no último quartel desse século, a crise desse mesmo sistema em conexão
pela Espanha: St. Kitt's, Martinica, Guadalupe, Barbados, onde se cul- com a do Antigo Regime e o início da Revolução Francesa. Ao mesmo
tivou o tabaco e, a seguir, a cana-de-açúcar, primeiro com mão de obra tempo, as ideias e práticas mercantilistas são postas em questão, primeiro
de brancos e endividados e, depois, de escravos africanos. Os holandeses pelos fisiocratas franceses, como Quesnay e Turgot, e, logo a seguir, por
foram os maiores beneficiários do comércio de exportação e importação Adam Smith, cujo "Ensaio sobre a Riqueza das Nações" (1776) assinala
das ilhas, especialmente após sua expulsão do Brasil, pois foi então que se o nascimento do liberalismo económico. Enfim, sobredeterminando em
deu a introdução da lavoura açucareira no Caribe. Simultaneamente, os profundidade as transformações das sociedades ocidentais, a Revolução
holandeses intensificaram cada vez mais o contrabando nos portos sob con- Industrial na Inglaterra representa a progressiva supremacia do capitalismo
trole espanhol na Terra Firme. Em 1634, eles ocuparam Curaçao, a partir industrial, ou seja, da produção capitalista e da industrialização.
daí uma base naval e entreposto comercial holandês. Até 1670, bucaneiros, Contrapondo-se à lógica ou ao sentido desse panorama geral das grandes
flibusteiros e piratas infestavam a região antilhana, sob olhares tolerantes transformações do Setecentos, algumas tendências demonstram a persis-
da Inglaterra e França; reconhecida pela Espanha a ocupação das ilhas, tência das antigas ideias e práticas. Tal é o caso, por exemplo, das políticas
inclusive a da Jamaica (Inglaterra), ingleses e franceses empenharam-se em mercantilistas "tardias" dos Estados absolutistas periféricos, como Portugal,
acabar com os bucaneiros e piratas, de modo que, por volta de 1700, eram Espanha, Áustria, Prússia, Rússia, à época do "despotismo esclarecido"
poucos os que sobreviviam. ou reformismo ilustrado. Em termos mais pontuais, pode-se observar a
Por último, uma breve referência às novas navegações. Espanhóis e sobrevida das companhias de comércio privilegiadas inglesas e francesas e
portugueses, nos séculos XVI e XVII, tocaram no litoral setentrional da a sua "recriação", como no caso português, entre outros.
Nova Guiné e descobriram alguns arquipélagos, como os das Salomão e O mercado internacional do século XVIII desenvolveu-se em função
das Marquesas, além de estabelecerem uma ligação regular entre Acapulco principalmente das disputas anglo-francesas, cujos cenários decisivos foram
e Manila. Todavia, a "Austrália" permaneceu desconhecida, embora, em as Américas e a índia, envolvendo colónias, entrepostos comerciais, rotas
1606, Torres tenha cruzado o estreito entre ela e a Nova Guiné, o qual só e tráficos.
viria a ser redescoberto em 1770, por Cook (o relatório de Torres ficou Até 1748, os ingleses lograram poucos avanços na América do Norte (no
trancado a sete chaves em Manila, até 1762, quando os ingleses o encon- Canadá) enquanto, na índia, as duas companhias, a inglesa e a francesa,
traram) (Parry, 1959). alternaram vitórias e derrotas. As disputas concentravam-se, então, nas
O século XVII foi o dos navegadores holandeses. Vários destes percor- "índias Ocidentais" (Antilhas) e no comércio ibero-americano. Apesar da
reram as costas ocidentais e setentrionais da "Austrália" (Nova Holanda), posição francesa na Espanha ser preponderante, os comerciantes ingleses
redescobriram as Salomão e descobriram Taiti, Novas Hébridas, Tonga etc. haviam conseguido o contrato do asiento (fornecimento de escravos afri-
O maior desses navegadores, Abel Tasman, descobriu, em 1642, a Tasmânia canos às colónias espanholas) e o navio de permiso (um navio inglês podia
e a Nova Zelândia, mas não se deu conta das dimensões da "Austrália", aportar a cada ano em Cartagena). Ao mesmo tempo, em posição vantajosa
cujo litoral oriental permaneceu desconhecido — entre a Tasmânia e a Nova em Portugal, graças ao Tratado de Methuen (1703), os comerciantes ingleses
Guiné (região na qual Swift, em 1726, situaria Lilliput) (Leithàuser, 1956). aproveitaram-se da Colónia do Sacramento, devolvida aos portugueses,

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para a partir dali contrabandearem suas mercadorias para Buenos Aires De 1748 a 1763, a Grã-Bretanha não somente conseguiu expulsar a França
e o Alto Peru, obtendo assim a prata necessária às transações no Oriente. da América do Norte (Canadá, Louisiana, Flórida) e expandir-se nas Anti-
Nessa mesma época, aliás, boa parte do ouro e diamantes das minas bra- lhas — Dominica, São Vicente, Granada e Tobago — como, principalmente,
sileiras fluiu para Londres, diretamente ou não, reforçando a posição dos barrar as manobras de Dupleix (da companhia francesa) e, eventualmente,
bancos ingleses. derrotar os partidários do Mogol em Plassey (1757), e os franceses e aliados
A expansão do comércio com as Antilhas levou a uma autêntica "ameri- em Madras (1760) e Pondichéry (1761). Sob o comando de Clive, a East índia
canização do comércio francês", a partir de Marselha, Saint-Malo, Nantes Co. assumiu o controle sobre Bengala e o Decã, dando início à expansão
e Bordéus. Açúcar, café, escravos, mas também índigo e algodão, são reex- territorial na índia. Desde 1740, por sinal, era a índia, e não mais a América,
portados para todo o Mediterrâneo, Holanda, cidades hanseáticas e Báltico. o símbolo da riqueza para os europeus (Bergeron, 1983).
A prosperidade das colónias francesas — São Domingos (Haiti), Martinica Para as companhias de comércio europeias, desde o século XVII, os ne-
e Guadalupe — fez a fortuna de empresários e plantadores. gócios da índia envolviam três setores básicos: tecidos de algodão (tecelões
Várias rotas correspondem então à intensificação do chamado "comércio indianos das áreas rurais), chá (da China) e especiarias (da Insulíndia). A
triangular": Europa-África (escravos)-Antilhas (escravos por açúcar)-Europa tendência, que logo se tornou uma prática dominante, foi a de "asiatizar" o
(ou, África-Brasil-Europa); havia também o comércio direto: Antilhas/ country trade (comércio regional), isto é, deixar cada vez mais aos elementos
Brasil-Africa-Antilhas/Brasil; as colónias inglesas da América do Norte locais as variadas rotas mercantis, centralizando em Calcutá, Madras, Surat,
também comerciavam com as Antilhas e, aos poucos, participavam do Bombaim e Cochin as operações de compra e venda. Tecidos de algodão,
tráfico de escravos (Bergeron, 1983). café, açúcar e pimenta circulavam de um lugar para outro, assegurando a
Do lado inglês, Bristol, Whitehaven e sobretudo Liverpool são os gran- parte do leão nos lucros para os ingleses mas deixando suas migalhas a mer-
des portos de importação e reexportação de açúcar, tabaco, café, além cadores árabes, indianos, arménios e malaios, competindo entre si. A prata
de sua participação no tráfico de escravos. Barbados, Jamaica, Tobago era enviada em grandes quantidades à índia, especialmente para comprar o
e Granada são as grandes produtoras de açúcar e café, enquanto tabaco e chá em Cantão, o qual, em parte, era usado na compra de especiarias, ao
arroz provinham das colónias do sul da América do Norte (Virgínia, Ma- lado dos tecidos indianos, da Insulíndia. As conexões entre os comerciantes
ryland). Da Jamaica e outras ilhas um ativo comércio de contrabando com judeus de Londres, Amsterdã e Hamburgo facilitavam o fornecimento da
a Terra Firme (colónias espanholas) carreava para o Banco da Inglaterra prata de que a companhia da índia Oriental necessitava. A maior parte,
as preciosas piastras mexicanas, tão úteis no comércio com a China. Antes porém, tanto do chá como dos tecidos indianos era consumida na Inglaterra,
mesmo da Revolução Industrial, as mercadorias britânicas já penetravam França e Alemanha setentrional, se bem que, ao que tudo indica, as peças
nos mercados coloniais ibéricos via metrópoles ou através de contrabando mais finas indianas ficassem no Oriente Médio e na Insulíndia. A partir de
e assim se pagavam as necessidades inglesas de materiais de construção 1730, começa o comércio do ópio na Insulíndia e, após 1750, os ingleses
naval importados da região do Báltico. iniciam sua venda em Cantão, em substituição à prata, conforme a East
Finalmente, é bom termos presente o grande crescimento do comércio índia Co. estabelece seu monopólio sobre a principal região produtora de
das colónias inglesas da América da Norte. As do sul, exportadoras de ópio — Bihar (índia). Cobre, estanho e salitre são também importantes itens
produtos agrícolas, consumidoras de manufaturas e escravos, estavam desse comércio "intraindiano", que envolvia o Japão, Malásia e a índia.
ligadas diretamente à Grã-Bretanha. As da Nova Inglaterra e do centro Até 1780, pelo menos, as exportações britânicas em prata e ouro para a
comerciavam com as Antilhas e África — açúcar, melaço, rum, escravos — e índia foram consideráveis; as importações de mercadorias indianas e orien-
importavam manufaturas britânicas em troca de açúcar, navios e madeiras. tais superavam as exportações. Os lucros, enormes, provinham do comércio
Navios coloniais dominavam esse comércio das Antilhas, ao contrário do intraindiano e de Cantão, onde o número de embarcações anglo-indianas
que ocorria nas rotas europeias. superava o das britânicas (Butel, 1983).

.! O
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Esta descrição do mercado internacional no século XVIII, apesar de bas- Antes de concluirmos esta primeira parte, vale lembrar aqui uma outra
tante simplificada, evidencia a existência de conexões mercantis e financeiras face da expansão europeia no século XVIII — a das grandes viagens e dos
que ultrapassavam em muito os espaços regionais. Trata-se efetivamente de descobrimentos marítimos realizados por navegadores ingleses e franceses.
uma economia-mundo cujos centros se encontram na Europa. Ao mesmo Do lado francês, o mais famoso foi Bougainville, que fez a volta ao
tempo, esse quadro permite-nos perceber nas suas entrelinhas certas práticas mundo de leste para oeste (1766-1768), reconhecendo Taiti — "Nova
mercantis capazes de relativizarem em parte nossas noções habituais acerca Citera" —, as Samoa, Novas Hébridas e Salomão, já descobertas pelos
do mercantilismo, tais como, por exemplo, as de "exclusivo", "metalismo", holandeses, no século XVII, e pelos ingleses Wallis e Carteret, no XVIII. A
"companhias de comércio", quando analisamos, também, o comércio do diferença, porém, foi o sucesso do relato de Bougainville — "Voyage autour
"Oriente". du monde" (1771) —, que levou um entusiasmado Diderot a escrever um
Veja-se, para começar, o "exclusivo", peça fundamental do "antigo "Suplemento à viagem de Bougainville", numa leitura "filosófica" de outras
sistema". Bem, os portugueses até que tentaram impô-lo ao comércio das culturas, diferentes da europeia. Outro viajante, La Perouse, desapareceu
índias a ferro e fogo, mas sua viabilidade logo se revelou impossível. Não misteriosamente em Vanikovo (1788).
basta, porém, acusar os competidores europeus por esse fracasso. Na Dos muitos viajantes ingleses, o mais importante foi James Cook, patro-
verdade, esses concorrentes, holandeses e ingleses, perceberam a imensa cinado pela Royal Society, o qual, em suas três viagens, entre 1768 e 1779,
complexidade das relações comerciais já existentes no Índico, na Malásia, reconheceu o litoral oriental da Austrália e cruzou o estreito de Torres,
Insulíndia e nos mares da China. Assim, em vez de coibi-las, preferiram pela primeira vez depois de 164 anos da sua descoberta (1606), conservada
tirar delas o maior proveito possível, ora participando diretamente, ora em segredo pela Espanha; descobriu a Nova Caledónia, o estreito entre as
organizando os fluxos de mercadorias para seus entrepostos comerciais. duas ilhas da Nova Zelândia — estreito de Cook —, as ilhas Havaí, onde
Em segundo lugar, o "metalismo", que alguns manuais associam, ainda morreu num ataque de nativos (Parry, 1959).
hoje, à "natureza" ou "essência" do mercantilismo. Ora, se assim fosse, Se acrescentarmos a essas viagens as dezenas de expedições ou "via-
como então explicar, por exemplo, o Galeão de Acapulco, a transportar, gens filosóficas" empreendidas no continente americano, como as de La
ano após ano, seus carregamentos de prata mexicana para Manila (Fili- Condamine e de Von Humboldt, mas também aquelas patrocinadas pelas
pinas)? ou, ainda, a prata e o ouro carreados para a índia e a China pelas Academias das Ciências de Lisboa e de Madri, teremos uma visão do quanto
companhias holandesa, francesa e, sobretudo, pela East índia Co.? a Europa ilustrada procurou ampliar o conhecimento e a classificação da
Por último, as companhias de comércio. Na Ásia, ao contrário das suas natureza dos países exóticos, de acordo com perspectivas científicas.
irmãs americanas, tais companhias deviam, em princípio, abster-se de Difundidas amplamente através de livros com grande sucesso de público
conquistas territoriais, sempre onerosas e politicamente complicadas. Na leitor, algumas dessas narrativas influíram muito, ao que tudo indica, sobre
prática, foi tudo diferente. Na Insulíndia, a companhia holandesa entrou as mentalidades letradas de então. Obras filosóficas e de ficção apropria-
em sucessivos conflitos com sultanatos "rebeldes" ou hostis, apoiando os ram-se dessas informações e sobre elas criaram mundos maravilhosos ou
"amigos" e estendendo cada vez mais seus domínios territoriais em Java e estranhos e tipos humanos moral ou intelectualmente superiores. Swift e
Sumatra, mas despendendo enormes recursos financeiros. Stevenson, Rousseau e Voltaire, Diderot e Raynal, em claves muito diversas,
Na índia, as lutas anglo-francesas pelos entrepostos comerciais cederam são somente alguns exemplos dessas tomadas de consciência das diversi-
lugar, após a batalha de Plassey (1757), à territorialização da companhia dades culturais, através de uma geografia que, aos poucos, traz consigo os
inglesa: primeiro em Bengala, a seguir no Decã, e assim, pouco a pouco, problemas de uma nova antropologia.
todo o subcontinente. Do comércio passou-se à administração fiscal e desta
à administração total, direta e indireta.

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PARTE II — A ERA DO CAPITALISMO INDUSTRIAL


A Revolução Industrial, fenómeno inglês, iniciado nas últimas décadas
do Setecentos, significou a arrancada do "capitalismo industrial", isto é,
da produção capitalista. A partir daí, a industrialização passa ao primeiro
INTRODUÇÃO
plano das preocupações das burguesias nacionais continentais, uma vez
que é a máquina, como expressão emblemática da nova ordem económica
Na história geral do desenvolvimento do capitalismo, é habitual considerar- nascente, que concentra em si todas as atenções empresariais e políticas.
se o século XIX como o período em que a produção capitalista emergiu, Maravilha suprema, ou danação infernal, é a máquina que produz o
afirmou-se e expandiu-se mundo afora, a partir basicamente de alguns "vapor do diabo", que sobe aos céus das chaminés das fábricas e provoca
países europeus, pois a entrada no cenário mundial de novas potências, entusiasmos e condenações.
como os Estados Unidos e o Japão, só se verifica realmente na última dé- "Prometeu desacorrentado" (Landes, 1994) desencadeia transformações
cada do Oitocentos. que ao mesmo tempo deslumbram e assustam. Capital — máquinas — fábri-
Por vários motivos, é costume também dividir-se essa história do ca- cas — especialização e controle do trabalho. Desintegram-se as corporações,
pitalismo oitocentista em duas fases ou períodos: l — do final dó século já não há mais lugar para o artesão independente. O trabalhador é agora
XVIII até mais ou menos 1870; 2 — de 1870 a 1914. Enquanto à primeira um assalariado, metido na fábrica durante 12, 14, 16 horas, submetido a
corresponderia propriamente a denominação de "Era do capitalismo in- rígida disciplina, vigiado, cronometrado — time is money. A máquina
dustrial", à segunda se aplica em geral a designação de "Era do capitalismo a vapor libera o empresário da "servidão hidráulica": agora, as fábricas
monopolista e imperialista". Tais denominações não são, como é sabido, se multiplicam nas periferias urbanas e atraem levas e levas de operários,
"teoricamente neutras", muito pelo contrário. Todavia, discutir-lhes os cujas moradias miseráveis se amontoam nas proximidades. Logo, serão as
pressupostos teóricos é algo fora de cogitação neste passo do nosso texto. "Duas Cidades" (Disraeli, 1861) que se desconhecem e se desprezam, ou
Velas e canhões, expressões maiores da sua supremacia tecnológica, per- odeiam, reciprocamente.
mitiram aos europeus conquistar o domínio dos oceanos e mares, construir Esses começos da era capitalista — e da sociedade liberal, burguesa —
fortalezas e entrepostos comerciais nas costas africanas e asiáticas e apro- foram vividos como um tempo novo e confuso, um tempo que teve seus
priar-se dos territórios americanos, dizimando e escravizando as populações entusiastas mas também seus adversários. Como em todo tempo novo, nele
indígenas e transportando, da África para as Américas, milhões de escravos. se pode observar a lenta e difícil construção de uma sociedade diferente em
Toda uma tradição historiográfica houve por bem designar o conjunto meio ao muito que ainda sobrevive da anterior — a sociedade do "antigo
dessas ações como "Antigo Sistema Colonial", embora as análises de tal regime". Na esfera intelectual e artística, o Romantismo ou, melhor, os
sistema se apliquem com mais pertinência às Américas do que às ativida- romantismos expressam o desgosto, a insatisfação, diante das mudanças
des europeias na Ásia. Seja como for, parece indiscutível que esse "Antigo em curso e dão rédeas à nostalgia que sentem por "Um mundo que perde-
Sistema" não resistiu à crise e derrocada do "Ancien Regime" europeu no mos" (Laslett, 1969). No plano político e social, velhas forças e interesses
fim do século XVIII, tanto assim que, nas antigas histórias da colonização lutam para conservar o possível da antiga ordem em nome da "tradição"
europeia, os empreendimentos europeus, britânicos sobretudo, já surgiam (Mayer, 1987).
no século XIX como o "Novo Sistema Colonial". "Ordem" e "movimento", "tradição" e "revolução", autoridade versus
A desestruturação do Antigo Regime político, social e económico reali- anarquia, eis aí algumas das oposições dicotômicas comuns nessa época.
zou-se no bojo de uma "dupla revolução" (Hobsbawm, 1977): económica Posteriormente, historiadores e sociólogos tenderam a associar ao "cam-
— a Revolução Industrial — e política, social e ideológica — a Revolução po", às populações rurais, as forças e atitudes resistentes às mudanças, em
Liberal, ou revoluções democrático — burguesas —, cujo carro-chefe é a oposição à "cidade", epicentro da "modernidade". Daí a oposição, tornada
Revolução Francesa (1789-1815). clássica, entre "cidade" e "campo" como expressões antinômicas de "moder-

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no" versus "tradicional" ou "arcaico" (Giddens, 1991). Apesar das muitas "fatos" e "ideias" produz novas subdivisões e o resultado são visões uni-
críticas já dirigidas a este modelo, observa-se ainda hoje sua sobrevida. laterais, incompletas.
Muito mais interessante do que essas dicotomias problemáticas vem a Veja-se, a título de exemplo, a maneira mais comum de historiar o Oito-
ser, nesse período, o processo de tomada de consciência da modernidade. centos: um período denominado "Restauração e Revolução" (1815-1850) e
A partir da assimilação da nova ideia de História — como "singular co- o outro Realismo e Nacionalismo" (1850-1914). Protestos dos historiadores
letivo" — e de sua temporalização, torna-se evidente para muitos que a da economia para os quais são decisivas as conjunturas: de crise (1815-53),
História é uma realidade existente por si mesma, em processo de constante prosperidade (1853-1873), depressão (1873-1896) e de expansão (1896-
aceleração. Não há mais o "tempo" como algo distinto da "História". A 1929). Política num caso, economia no outro; onde ficam aí as estruturas
sucessão dos acontecimentos, a ruptura com o passado, conduzem ao pro- e movimentos sociais, mentalidades, correntes artísticas, visões de mundo?
gressivo estreitamento do "espaço da experiência", ou seja, da função da Assim, é compreensível que a historiografia recente venha subvertendo
história como "mestra da vida". Em compensação, alarga-se o "horizonte quase tudo isso através de propostas centradas em novas abordagens e na
de expectativas" e o futuro se torna algo a ser vivido no próprio presente. promoção de termos ou objetos até aqui ignorados.
A "Revolução" é, cada vez mais, um horizonte inerente à própria História Felizmente, porém, não temos a tarefa de escrever essa história, mas
(Koselleck, 1985). unicamente apresentar em linhas gerais as características de uma sociedade
constituída de Estados-nação que são os agentes da expansão capitalista.
Acredito que seja possível partirmos da noção de que uma "nova so-
A) PRESSUPOSTOS POLÍTICOS, SOCIAIS E CULTURAIS DA EXPANSÃO ciedade" constituiu-se aos poucos em função da "dupla Revolução" já
mencionada. Vejamos, então, algumas características políticas dessa nova
A expansão capitalista no século XIX é inseparável das determinações sociedade, embora o político seja sempre também social, como se sabe.
resultantes do fato de se tratar de um processo vinculado estreitamente à Admiradores e adversários da "Revolução" debatem, a partir de 1815,
existência de uma constelação ou sistema de Estados-nação. Alguns desses seu sentido ou natureza: liberdade e igualdade, ou somente a primeira? É
Estados realizaram sua própria industrialização, outros não, mesmo na a época da "liberdade bem entendida" e das associações entre igualdade/
Europa. Cada industrialização teve suas especificidades e obedeceu a ritmos democracia e "anarquia". Ninguém melhor que Tocqueville (Jasmin, 1997)
próprios; algumas conduziram a um "desenvolvimento autossustentado", soube captar então os dilemas inerentes a liberalismo e democracia.
outras ficaram no meio do caminho. Do nosso ponto de vista, interessam Para simplificar, pode-se admitir que, na primeira parte do século XIX,
sobretudo as industrializações bem-sucedidas, uma vez que os respectivos é a questão da Uberdade que se destaca. Tratava-se aí de conquistá-la, ou
Estados são os que lideram a expansão colonial e financeira do capital. Mas defendê-la, contra seus adversários tradicionalistas e reacionários. Como
também nos interessam os casos de industrializações frustradas ou adiadas, objetivo primordial, lutam os liberais por uma constituição na qual sejam
pois a expansão capitalista é tanto extraeuropeia quanto intraeuropeia e inscritos, ou "positivados", direitos e liberdades individuais. Apesar de
o esquecimento desta última, frequente em manuais e compêndios, torna diferenças quanto às relações entre os "poderes", havia um relativo con-
incompreensíveis as histórias de muitos Estados europeus no século XIX senso quanto à necessidade de garantias contra o poder arbitrário através
(Dreyfus, 1983). de alguma forma de "representação" da Nação, eleita e permanente. No
Uma das dificuldades que apresenta a historiografia do século XIX é o entanto, ao definir quem seriam os "cidadãos" eleitores e elegíveis, os
costume de dividir o processo histórico em compartimentos especializados liberais fixavam exigências de tal ordem que somente uma minoria podia
e incomunicantes: aqui a economia, ali a política, acolá a sociedade e a participar do processo político.
cultura, sem esquecer, é claro, as relações internacionais — incluindo-se Aqueles que não preenchiam esses requisitos "censitários", e que cons-
nestas as "questões coloniais". Ao mesmo tempo, a velha distinção entre tituíam a maioria, ficavam marginalizados, como "cidadãos de segunda

te 47
O S É C U L O XX O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

categoria". Quase por toda parte, porém, "liberais radicais" lutam pela sós" eram, em princípio, viáveis, com aqueles a única política admitida era
igualdade de todos os cidadãos agitando a bandeira do "sufrágio universal" a da repressão policial.
(masculino). Tratava-se aí da exigência de democracia (política), à qual seus Após o insucesso das revoluções de 1848 — a frustrada "primavera dos
adversários contestavam com os perigos do "jacobinismo" dos desordeiros povos" —, o panorama político europeu encaminhou-se lentamente para a
e miseráveis que "nada possuíam de seu", ou seja, as "classes perigosas" e consolidação de instituições liberais, a partir de 1870, se entendermos o pe-
ignorantes que precisavam ser vigiadas e controladas pelas autoridades. ríodo de 1850-1870 como uma espécie de passagem da "febre revolucionária"
A industrialização avançava rapidamente, desestruturando corporações às "revoluções pelo alto", ou à cristalização de regimes liberais censitários
e oficinas artesanais, produzindo levas e levas de "proletários" a se acu- e oligárquicos. Os acontecimentos de 1848-1850 assinalam com bastante
mularem nos centros urbanos, em condições subumanas de existência. A clareza um momento histórico decisivo: aquele no qual as burguesias liberais,
literatura romântica, os primeiros inquéritos "sociológicos", o conhecido em sua maioria, abandonaram de vez o ideal da "revolução", na medida em
texto de Engels (1844) constituem testemunhas da progressiva tomada de que esta se tornava, cada vez mais, uma ameaça à ordem burguesa ao agitar
consciência burguesa da existência de uma grave "questão social". Nessa a bandeira da "democracia social, ou "socialismo". Alianças e compromis-
mesma época (anos 1920-1930) multiplicam-se as propostas dos chamados sos entre diferentes setores das classes dominantes asseguraram, a partir
"socialistas utópicos", objeto das críticas de Marx e Engels no Manifesto
de então, o jogo político liberal: alternância de partidos políticos (liberais x
Comunista, de 1848.
conservadores), liberalismo económico, direitos e liberdades dos "cidadãos".
Essa "Europa romântica" da primeira metade do Oitocentos foi também
Uma Europa de cabeças coroadas, é bom notar-se. Salvo nos casos
uma Europa agitada pelos movimentos nacionais. Trata-se de movimentos
francês (III República) e suíço, os Estados europeus são monarquias cons-
cujo denominador comum é a luta em prol da afirmação e libertação de todas
titucionais (alguns, como a Rússia, nem isto) com graus muito variados de
as "nações" europeias, daí existir sempre um componente político associado
poder efetivo dos príncipes em relação aos parlamentos. A ideia de "repú-
ao cultural. O político constitui de certo modo uma extensão natural do
blica" ainda atemorizava a muitos liberais, ao passo que a monarquia re-
credo liberal, se bem que a recíproca nem sempre fosse verdadeira, pois havia
presentava a estabilidade assentada na tradição hereditária. Monarquias
"nacionalistas" antiliberais. Com efeito, se muitos, como Mazzini, enten-
dem "nação como produto de uma vontade coletiva, consciente portanto, parlamentares, cujos partidos, "liberais" ou "conservadores", alternam-se
há aqueles que identificam a "nação" como ser orgânico, com existência no poder, embora, em alguns países, já se observe o rápido crescimento dos
própria e independente de vontades e consciências subjetivas — a nação, partidos social-democratas filiados à II Internacional Socialista. Os debates
neste caso, é maior que a soma dos indivíduos que a integram. O problema políticos giram em torno da ampliação do direito de voto, das liberdades
era ainda mais complicado, porém, tanto cultural como politicamente. sindicais, começando pelo direito de greve e, em alguns países, da conquista
Culturalmente complicado, pois, em vários casos, era preciso restaurar a de "direitos sociais" (ou de segunda geração).
língua nacional, resgatar uma literatura — ou produzi-la, recuperar a cultura As semelhanças existentes entre as instituições políticas dos Estados
popular e a história nacional. Mas também politicamente, pois, conforme o europeus ocultam diferenças sensíveis em termos de representação política
caso, tratar-se-ia de "unificar politicamente" a nação dividida entre vários e tolerância para com os dissidentes. A representação é ainda limitada por
Estados — Alemanha, Itália —, ou de emancipar nações dominadas por várias restrições legais e práticas eleitorais corruptas e/ou controladas pelos
um único Estado — nos impérios da Áustria, Rússia e Otomano —, ou por detentores do poder. A tolerância é ambígua: real quando se trata de setores
vários — caso da Polónia. e ideologias de "direita", contrários à democracia ou à "secularização" e ao
Os movimentos nacionais constituíam portanto uma ameaça direta à "materialismo" do liberalismo burguês; inexistente em relação à "esquerda",
sobrevivência de alguns dos mais poderosos Estados europeus, bem maior, sobretudo quanto ao anarquismo, anarcossindicalismo, feminismo, assim
na verdade, que os movimentos liberais, pois, se com estes os "compromis- como em relação aos nacionalistas contrários aos "nacionalismos oficiais".

i.--
O S É C U L O XX O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

Nessa Europa "fim de século", o nacionalismo expansionista ou impe- B) A EXPANSÃO CAPITALISTA OITOCENTISTA
rialista exacerba a xenofobia e justifica a "paz armada". O "caso Dreyfus",
exemplar em vários sentidos, traz à tona o antissemitismo presente em mui- 1. Características gerais
tos setores sociais, sobretudo na Europa Centro-Oriental. Em plena euforia
causada pelos rápidos progressos científicos e tecnológicos, o cientificismo Num livro, hoje clássico, sobre a expansão da burguesia capitalista eu-
dominante, eivado de darwinismo social, produz também teorias geopo- ropeia durante o século XIX, institulado Lês bourgeois conquérants (A
líticas e racistas que justificam o imperialismo e a superioridade europeia, burguesia à conquista do mundo), Charles Morazé (1965) traçou o perfil
mas, irónica e retrospectivamente, o pensamento conservador e saudosista da conquista do planeta por uma burguesia empreendedora e sumamente
houve por bem chamar de belle époque a essa época da cultura ocidental... eficiente, dada a competência que revelou para colocar a seu serviço os
Habituados como estamos a pensar essa Europa capitalista e liberal recursos económicos capitalistas e o instrumental científico e tecnológico
como "burguesa", raras vezes nos damos conta das suas enormes diferenças em rápida expansão. Aliás, já em 1848, no Manifesto Comunista, Marx
económicas e sociais. Poucas eram então, na realidade, as nações capita- e Engels haviam sublinhado, em termos precisos, a importância histórica
listas, industrializadas, e muitas, a maioria, nas quais enclaves capitalistas dessa burguesia "conquistadora".
conviviam com estruturas pré-capitalistas basicamente agrárias. Basta aqui Nada é mais impressionante, talvez, como expressão das transformações
mencionar dois exemplos ou casos típicos, Espanha e Rússia, tão distantes operadas por essa burguesia em expansão, do que uma comparação entre
a produção industrial, meios de transporte e de comunicação, urbanização
entre si geograficamente! Em ambos, é o problema fundiário — terra e
e tecnologia em 1815 e 1914. Anos-luz separam a "Europa romântica" da
campesinato — a grande questão não resolvida.
belle époquel
O termo "burguesia", noção eternamente vaga, nada nos diz, nem acerca
A expansão capitalista ao longo do século XIX pode ser interpretada, em
das burguesias dos países capitalistas nem tampouco do seu peso numérico,
termos quer de continuidade, quer de ruptura, em relação à expansão dos
económico e político em países ainda dominados pela velha aristocracia
três séculos anteriores. Continuação de um processo jamais interrompido,
civil e eclesiástica de grandes proprietários de terras. Aí, na Europa Central
inclusive na época das "guerras da Revolução e do Império", essa expansão
e Oriental, e em vastas zonas do Mediterrâneo, a "agitação" principal está
assume agora, aos poucos, novas características do ponto de vista dos obje-
localizada nos campos, nos movimentos do campesinato, em seus enfren- tivos, métodos e motivações que a comandam. Todavia, tais características
tamentos com as forças policiais e os grupos paramilitares armados pelos não se mostram uniformes nos espaços e tempos do Oitocentos, justificando
proprietários. É ainda nesses países (Europa Oriental) que as autoridades assim, em parte pelo menos, a tradicional partição dessa expansão em dois
cultivam o antissemitismo difuso das massas rurais e o avivam periodica- períodos, separados por uma espécie de corte, ou mutação, situado em
mente com os pogroms. torno dos anos 1870-1880.
Estas alusões bastante sumárias às características políticas, sociais e cul- Esta divisão da expansão em dois períodos, antes e após 1870-1880
turais da "Europa" oitocentista tiveram apenas a finalidade de introduzir , apresenta hoje em dia alguns problemas, em que pesem suas vantagens
o tema da "expansão capitalista", em conexão com o exame das novas didáticas. Um primeiro problema reside nos pressupostos teóricos que a em-
características do mercado internacional, relativizando a própria noção basam: a concepção de "capitalismo" e de sua história enquanto constituída
de "hegemonia europeia", capitalista e burguesa, pois, de fato, é sempre de duas fases — a do capitalismo liberal, ou da livre concorrência, e a do
necessário indagar-se acerca de qual é a "Europa" que se tem em mente. capitalismo monopolista, ou imperialista e protecionista. Tal interpretação,
na medida em que ficou associada ao marxismo, sofreu incessantes críticas
e contestações de fora do campo marxista, agravadas, na última década,
pela implosão do "socialismo real e o subsequente agravamento da "crise

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l
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do marxismo", a ponto de, na atualidade, o próprio termo "imperialismo" Dos militares iremos tratar mais adiante; afinal de contas, as histórias da
ser considerado por muitos historiadores como "pré-histórico". ' colonização dos países europeus nada mais são, num certo sentido, do que
Um segundo problema, bem mais relevante para nós, é a dificuldade galerias dos feitos bélicos e administrativos de grandes "heróis coloniais"
que enfrenta o historiador da expansão ao tentar estabelecer distinções que derrotaram as "resistências bárbaras" ou "selvagens", organizaram
radicais entre o "antes" e o "após" 1870-1880. Quer se trate de objetivos, uma administração e abriram caminho à "civilização" e ao "progresso".
métodos ou motivações, salvo, talvez, quanto a aspectos mais ou menos Enfim, os empresários. Grandes ou pequenos, eles estão sempre presentes
pontuais, não há como descrever diferenças qualitativas profundas entre e atuantes. Às vezes são os pioneiros, aqueles que chegaram primeiro e se
as duas "épocas". O que se pode observar, na realidade, é a aceleração do estabeleceram com seus negócios, comprando e vendendo aos "nativos".
processo expansionista em diversos sentidos, em conexão, provavelmente, Em outras ocasiões, chegam com os militares ou buscam tirar proveito do
com dois fatores: os efeitos da "grande depressão" (1873-96) do século trabalho missionário. Os mais ricos, porém, tentam negociar diretamente
XIX; a entrada em cena de novas potências — Alemanha, Bélgica, Itália, com os governantes locais, fornecendo-lhes armas, munições, navios e
Japão, Estados Unidos e mesmo a Rússia — subvertendo inteiramente os empréstimos, em troca, às vezes, de "concessões" ou contratos vantajosos.
dados de uma competição até então quase exclusivamente anglo-francesa. Suas conexões políticas e financeiras na "mãe pátria" asseguram-lhes a ação
Seja como for, essa expansão proporciona ao historiador a visão de um de lobbies poderosos nos parlamentos e na imprensa. Mobilizar a opinião
pública, a diplomacia, as forças armadas, se necessário, eis como se fecha
cenário de dimensão planetária em cujo palco contracenam alguns tipos de
então o circuito das disputas coloniais (Guillaume, 1974).
atores bem definidos: exploradores, missionários, militares e empresários.
A expansão colonial oitocentista, contemplada à distância de quase um
Os exploradores, mistura de aventureiros e cientistas, internam-se em
século, apresenta-se assim como uma curiosa mistura de aventura, espírito
regiões praticamente desconhecidas à cata de conhecimentos geográficos,
científico, fé missionária, conquista militar e ambição ou sede de lucro.
botânicos, zoológicos e etnográficos. Em lugar das viagens marítimas, tí-
Mistura esta que adquire unidade e consistência em função de uma ideia
picas dos séculos anteriores, preponderam agora as expedições terrestres, amplamente partilhada: a natureza intrinsecamente benéfica da expansão
sobretudo pelo continente africano, sudeste da Ásia e América do Sul. Além para os povos por ela atingidos. Em nome do "progresso", a propagação
do valor de seus achados científicos, essas expedições forneceram importan- da "civilização" constitui uma "missão" e um "direito"; suas dificuldades,
tes subsídios a alguns governos em termos do mapeamento de territórios. a começar pela "incompreensão" de muitos dos seus "beneficiários", são
Sociedades científicas inglesas, norte-americanas e alemãs financiaram não exatamente "o fardo do homem branco" a que se referiu Kipling.
poucas dessas expedições e, por outro lado, graças à importância da im-
prensa periódica, muitos exploradores-aventureiros tornaram-se "notícia", 1. Colonialismo e anticolonialismo
conquistando notoriedade e prestígio.
A ação dos missionários católicos e protestantes, bem menos sensacio- Em 1815, em Viena, a Grã-Bretanha é a grande vencedora, senhora dos
nal, foi no entanto muito mais ampla e persistente. Tanto Roma como as oceanos e mares, dona de todos os territórios coloniais afro-asiáticos, anti-
organizações protestantes sediadas na Grã-Bretanha, França e Estados Ihanos e sul-americanos (Guianas). Generosa, ela devolve uma parte desses
Unidos, além de outras, empenharam-se em arrecadar fundos destinados territórios a seus antigos donos em troca do reconhecimento de seus direitos
à evangelização das populações africanas, asiáticas e da Oceania. Às vol- soberanos sobre a outra parte. Maior potência colonial, a Grã-Bretanha não
tas com comerciantes inescrupulosos, militares pragmáticos e, sobretudo, tem competidores; nem a França, nem a Holanda, muito menos Portugal
com a hostilidade de chefes e elites das áreas escolhidas, esses missionários e Espanha, são concorrentes de peso em matéria de domínios coloniais. A
constituíram, não raro, motivo ou pretexto para intervenções diplomáticas hegemonia britânica caracterizará, na verdade, boa parte do século XIX.
e militares das potências que se sentiam responsáveis por sua segurança e A vitória marítima e colonial não produziu, no entanto, entre os liberais
liberdade, como na "Indochina", China, Japão e ilhas da Oceania. britânicos, manifestações de euforia, muito pelo contrário. O liberalismo

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inglês proclamou e preconizou, como doutrina e como política, o "anti- Não estava dito, porém, que a segurança e o empenho britânicos em
colonialismo". Surgiu assim a ideologia que constitui a expressão oficial favor do livre-câmbio assentavam-se na própria hegemonia económica da
da política britânica até além da década de 1880. Uma ideologia bastante Grã-Bretanha, ou seja, no fato de que, por muito tempo ainda, simplesmente
curiosa, pois, ao mesmo tempo que oculta um não dito, é negada na prática. não havia, nem haveria, concorrentes capazes de ameaçar a supremacia
O "anticolonialismo" britânico resultou da combinação de argumentos industrial, financeira e marítima britânica.
teórico-práticos com preocupações éticas. Teoricamente, desde Adam Smith Tampouco se proclamava abertamente que as resistências à "abertura"
os economistas da "escola clássica" do pensamento económico (Bentham, comercial e a garantia ou defesa de súditos da Coroa e de seus bens, assim
Ricardo, Mill) vinham criticando a posse de colónias como contrária à como dos investimentos dos capitalistas londrinos, legitimavam a utilização
racionalidade económica e manifestação típica dos pressupostos erróneos de pressões diretas sobre os recalcitrantes: o poder de fogo das canhoneiras
nos quais se baseava o "Sistema Mercantil" (mercantilismo). Na prática, os e o desembarque de tropas, em última instância, sempre em caráter "tem-
exemplos históricos do seu sentido da colonização não faltavam: a indepen- porário", convém frisar.
dência das Treze Colónias, a rebelião negra em São Domingos (Haiti), os A fim de melhor organizar nossa exposição da expansão colonial, vamos,
movimentos autonomistas das colónias ibero-americanas. Simultaneamente, a partir de agora, dividi-la em função de seus respectivos "cenários" geopo-
políticos radicais e associações religiosas lutavam contra a escravidão nas líticos — o Império Otomano, a África sul-saariana, as regiões asiáticas e
as Américas. Daremos especial atenção, em cada caso, às diferenças entre as
colónias (abolida, nas britânicas, em 1833-1834) e o tráfico transatlântico
"colónias de povoamento" e os outros tipos de colonização geralmente englo-
(proibido ao norte do Equador, em 1815), empenhando-se, ainda, em pro-
bados sob o rótulo de "colónias de exploração", aí incluídos os protetorados
jetos de retorno de escravos à África — origem de Serra Leoa e, mais tarde,
e zonas de influência. Entretanto, não deixaremos de sublinhar algumas das
da Libéria.
peculiaridades típicas desse "imperialismo do livre-câmbio" (Semmel, 1970),
Os partidários do anticolonialismo fizeram muito barulho através de
já que foram governos "liberais" que, no caso britânico, mais o praticaram.
associações, jornais e debates parlamentares, até meados do século, pro-
pugnando sempre a "devolução" de colónias ou a "abstenção" de novas
2. Império Otomano
conquistas. Antes de abordar suas contradições, vale a pena explorar um
pouco seus não ditos.
Em 1815 (Viena), o Império Otomano — a "Sublime Porta", como então
A liberdade de comércio entre povos e nações — o chamado "livre-câm-
se dizia — havia muito tinha perdido aquele poderio militar que o caracte-
bio" — constituía então a principal bandeira do anticolonialismo. Só a rizara, do século XV ao XVII, e que semeara na cristandade um constante
livre-circulação de mercadorias e capitais traria reais benefícios a todos receio diante do "perigo turco". O que agora existia era um Estado em
os envolvidos, vendedores e compradores, fazendo prevalecer, no mercado franca decadência, ao qual logo os diplomatas europeus passariam a se
internacional, a racionalidade da "divisão internacional do trabalho". Abrir referir como "o homem doente da Europa".
os portos (mercados) é um objetivo necessário e legítimo que interessa a toda Embora "doente", o Império Otomano compreendia ainda territórios
a "humanidade". Contra certas restrições políticas e tarifas alfandegárias imensos e de grande importância estratégica: dos Bálcãs à Península Arábica
excessivas fazia-se necessário negociar tratados de "livre-comércio" entre e Mesopotâmia (Iraque); da atual Turquia e Síria setentrional à fronteira do
as nações civilizadas". Fora da Europa, porém, além da liberdade comer- Marrocos, incluindo portanto Egito, Tripolitânia (Líbia), Tunísia e Argélia.
cial, havia que se garantir as vidas e os bens de comerciantes e investidores Entende-se então por que as chancelarias europeias ocuparam-se tanto
europeus — e, é claro, também dos missionários — através da obtenção com a "Questão do Oriente" (designação dada aos problemas do Império
de garantias e da eventual aplicação de sanções no caso de ameaças ou Otomano) durante todo o século XIX, pois ela envolvia considerações
violações cometidas contra pessoas ou interesses europeus. políticas e interesses coloniais.

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Politicamente, do ponto de vista britânico, apoiado geralmente pela A partir de 1876, a situação de bancarrota do tesouro egípcio levou
França, a "integridade" do Império Otomano constituía princípio funda- Grã-Bretanha e França a estabelecerem uma espécie de "condomínio" sobre
mental de política externa, a fim de preservar intacta a barreira turca às as finanças do Egito, com o objetivo de assegurar o pagamento da dívida
ambições expansionistas de uma Rússia em contínuo movimento para sul externa. O agravamento da crise económica e social deu sustentação à
e leste. Havia porém um complicador formidável: o domínio turco sobre as reação nacionalista de coronéis, como Arabi-Paxá, hostil aos estrangeiros.
populações cristãs dos Bálcãs. As afinidades e simpatias russas pelos "ir- Demonstrações navais anglo-francesas foram seguidas de desembarque de
mãos eslavos e ortodoxos" inquietavam ingleses e franceses, obrigando-os, tropas britânicas (1881-1882), já que a França preferiu se abster. Vencidos os
por diversas vezes, a intervir em favor dos cristãos por meio de pressões militares nacionalistas, seguiu-se a ocupação de todo o Egito, em três meses.
cautelosas sobre o sultão. Entretanto, a movimentação das nacionalidades A ocupação britânica foi anunciada como "temporária" e necessária
balcânicas, as simpatias russas e as complicadas manobras anglo-francesas para garantir a defesa das "pessoas e bens estrangeiros". O "temporário"
inquietavam sempre o Império Austríaco (depois Austro-Húngaro), onde tornou-se permanente, minando as relações anglo-francesas até 1904,
outras populações eslavas, inclusive dos Bálcãs setentrionais, viviam sob o quando a entente cordiale consignou, afinal, a "desistência" da França
jugo germânico ou magiar. Nessa complicada partida de xadrez, ocorreram, aos seus "direitos" no Egito em troca do apoio inglês à presença francesa
é claro, sucessivas conjunturas de conflitos mais aguçados, inclusive béli- no Magreb e sobretudo no Marrocos. Somente em 1914 a Grã-Bretanha
cos — as chamadas "crises orientais" (sic), que se multiplicaram até 1914, proclamaria, afinal, seu protetorado sobre o Egito.
quando o "incidente de Sarajevo" detonou o mecanismo que desencadearia Nossa narrativa do caso egípcio justifica-se por se tratar de um dos
a Primeira Guerra Mundial (Easton, 1964). exemplos mais expressivos de colonialismo em plena época de "anticolo-
Se bem que a história dessa Questão do Oriente tenha quase tudo a ver nialismo" liberal. Mas seu caráter exemplar não termina aí. Os métodos
com a expansão Colonialista do capitalismo europeu, limitaremos aqui utilizados pela Grã-Bretanha e França no Egito são típicos da expansão
nosso estudo a apenas dois casos: Egito e Argélia. colonialista: penetração económica, facilidades financeiras, demonstrações
navais, negociações diplomáticas entre as potências, à revelia dos maiores
2.1 Egito interessados •— os colonizados! As diferenças entre colónias propriamente
ditas, protetorados e zonas de influência tinham menos a ver com a realida-
Governando o Egito em nome do sultão, como paxá, Mohamet-Ali de colonial do que com as sutilezas do jogo diplomático entre as potências
(1805-1849) promoveu o início de uma "modernização" apoiada em técnicos europeias (Garden, 1983; Easton, 1964).
e empréstimos anglo-franceses. A tentativa de incorporar a Síria deflagrou
as "crises egípcias" (1832-1833 e 1839-1840), com intervenções russas e 2.2 Argélia
anglo-francesas culminando, em 1840, nas "demonstrações" das canho-
neiras do comodoro Napier, que forçaram o paxá a um recuo definitivo e A Regência de Alger, domínio do Império Otomano, constitui outro exemplo
puseram em perigo a entente franco-britânica. O endividamento cresceu interessante de colonialismo. Sob alguns aspectos sua história recorda a do
cada vez mais sob os sucessores de Mobamet-Ali •— gastos com investi- Egito e, sob outros, a da África do Sul, como iremos ver adiante.
mentos, obras e consumo suntuário, propiciando intensa competição entres A conquista francesa de Argel, em 1830, justificada como uma "operação
capitalistas ingleses e franceses. A construção do Canal de Suez (1854-1869) de polícia" contra a pirataria, também deveria ser "temporária". Alguns
pela companhia organizada por Lesseps, com capitais franceses, acabou anos depois já se falava em "ocupação restrita"; porém, com o rápido cres-
por favorecer a Grã-Bretanha quando, em 1875, o governo inglês (Disraeli), cimento da imigração europeia, começaram os conflitos com a população
antecipando-se ao francês, comprou as ações da Companhia do Canal em islâmica. Sob a liderança de Abd-el Kader, os argelinos foram à luta contra
poder do endividado "Khediva" Ismail. os invasores e, assim, "forçado pelas circunstâncias", o governo francês

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passou à "conquista total", realizada sob o comando de Bugeaud, de 1840 costeiros, mas na ocupação efetiva e exploração da totalidade dos espaços
a 1847. Paralelamente, avançava a imigração: 109.000 colonos em 1847 tidos como "disponíveis" para a colonização. Praticamente, como única
(47.000 franceses e 31.000 espanhóis); logo, na década de 1860, seriam exceção à regra, a África do Sul oferece-nos então o exemplo de uma colónia
mais de 200.000. Declarada "parte integrante do território francês", pela II de povoamento cuja história constitui um capítulo à parte nesse processo
República, a Argélia caracterizou-se, desde sempre, pela estreita separação de expansão colonial.
entre europeus (colonos) e muçulmanos (colonizados), uma das origens do
apartheid, do qual se origina a Revolução Argelina, nos anos 1950. 3.1 África Ocidental Atlântica
Contada assim, de forma sucinta, a história da colonização francesa da
Argélia omite uma infinidade de eventos que nada têm a ver com o nosso Nessa região, a expansão europeia seria por muito tempo um assunto
texto, mas tampouco permite ao leitor perceber a "exemplaridade" acima anglo-francês. Em meio a possessões territoriais remanescentes dos antigos
mencionada. Dado o significado histórico desta última, talvez seja oportuno impérios ibéricos, os franceses e ingleses foram ampliando suas posições,
indicar-lhe os principais aspectos. A Argélia constituiu para a França o grande algumas delas também antigas, podendo-se observar aí que, no conjunto,
laboratório de um novo tipo de guerra — a "guerra colonial"; suas expe- a estratégia francesa mostrou-se mais dinâmica e eficaz no sentido de
riências produziram um tipo específico de oficial — o "oficial colonial" —, estabelecer, progressivamente, a ligação, pelo interior, das suas colónias
misto de chefe militar e administrador. A guerra colonial obrigou os militares litorâneas, num movimento que acabaria por isolar as posições britânicas
franceses a adotarem táticas e estratégias pouco ortodoxas: unidades menores umas das outras.
com grande mobilidade no terreno; razias sistemáticas e impiedosas a fim de A colonização francesa teve como bases iniciais a Costa do Marfim e
cortar os abastecimentos do inimigo e aterrorizar seus simpatizantes; espio- o Gabão (1842), Daomé (1863) e o Senegal. Neste último realizaram-se
nagem; negociações com lideranças religiosas; recrutamento de tropas entre os avanços mais significativos (antes de 1878) sob a direção do coronel
os próprios colonos — como os zuavos — e, a seguir, entre as populações Faidherbe (1854-65), um "oficial colonial" típico. A pretexto de "pacifi-
argelinas — como os spahis. As lições argelinas, uma vez assimiladas foram car" o interior, expandiu-se o território da colónia, os soldados franceses
utilizadas em muitas outras operações coloniais na África e Ásia. enfrentando os militantes seguidores do "profeta" El Hadj-Omar. Vencidas
Mas a conquista e "pacificação" da Argélia possibilitou também a criação as "resistências", iniciou-se a efetiva exploração económica, acompanhada
de um cenário propício à carreira militar — promoções, medalhas, prestígio. da modernização do principal porto — St.-Louis.
A oficialidade superior, temperada no cadinho argelino, ocupou postos de Os avanços territoriais franceses compreendem uma série de expedições
destaque na metrópole, tanto militares como políticos. Nomes como Bugeaud, de reconhecimento, estabelecimentos religiosos e atividades mercantis de
Lamoricére, Changarnier, Cavaignac, Saint-Arnaud, ficaram para sempre comerciantes-aventureiros. Litígios com os ingleses, a propósito de limites
associados ao esmagamento das barricadas parisienses, em junho de 1848, e bacias fluviais, foram mais ou menos constantes. Tratava-se, a bem dizer,
ao golpe do "18 Brumário de Luís Bonaparte", às guerras do II Império e à de uma "corrida" na qual os mapas e os acordos com chefes tribais repre-
repressão da Comuna de Paris (1871). Aliás, Victor Hugo, em La légende dês sentavam sempre as vantagens decisivas.
siècles, imortalizou alguns desses generais (Tersen, 1950; Guillaume, 1974). Quanto aos britânicos, suas posições eram constituídas pela Gâmbia,
Serra Leoa, Costa do Ouro (Gana) e o delta do Níger (Nigéria), onde ane-
3. África sul-saariana xaram a cidade de Lagos, em 1861.
A denominada "partilha da África", em geral associada aos princípios
Conhecida tradicionalmente pela denominação de "África negra", esta parte estabelecidos pelas potências coloniais no Congresso de Berlim (1878),
do continente africano tornou-se, no século XIX, área de disputas entre consistiu, de fato, no equacionamento de algumas disputas anglo-francesas
as potências colonialistas interessadas não mais apenas nos entrepostos e, principalmente, no reconhecimento das reivindicações alemãs (Cama-

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rões, Togo, Sudoeste Africano) e dos empreendimentos do rei da Bélgica, submeter as tribos guerreiras e estabelecê-las em grandes reservas "prote-
Leopoldo II, na bacia do Congo (futuro Congo Belga, depois Zaire). As gidas" — Basutolândia (1871), Zululândia (1879) e Swazilândia (1885).
decisões tomadas em Berlim tiveram sua maior influência no caso da África Todavia, esta política, algumas vezes auxiliada mas em outras prejudicada
Oriental e dos planos portugueses de ligação entre Angola e Moçambique, pelos missionários protestantes, obrigou os ingleses a campanhas militares
confrontados e derrotados pelos projetos de Cecil Rhodes no sentido de contra tribos de bantos — basutos, zulus — e contra os bóeres, também às
estabelecer uma ligação britânica "do Cabo ao Cairo". Tais disputas, no
voltas com os gréquas, basutos e zulus.
entanto, já pertencem efetivamente à época do imperialismo, tema de outro O Natal teve uma evolução própria, em relação ao Cabo, inclusive em
texto desta coleção (Tersen, 1950; Hobsbawm, 1977).
suas lutas com os zulus e, como especificidade, a importação de milhares
i
de indianos para trabalharem na lavouras de cana-de-açúcar.
, 3.2 África do Sul
O Estado Livre de Orange (1836), reconhecido como independente em
1852 (Convenção de Bloemfontein), após quatro anos de lutas com os in-
Desde o século XVII, colonos holandeses estabeleceram-se na região do
gleses, em troca da abolição da escravidão em seu território, teve que lutar
Cabo (1652), sob o controle da Companhia das índias Orientais. Os colo-
anos a fio contra basutos (leste) e gréquas (oeste), de modo que, durante
nos, inclusive huguenotes franceses, avançaram aos poucos para o interior,
anexando terras, entrando em luta com os chamados hotentotes e com os anos, a única fronteira aberta era a do Transvaal (1844), cuja independência
bantos, escravizando aqueles e despossuindo estes de suas terras. De 1795 foi reconhecida por Londres, também em 1852 (Convenção de Sand River).
a 1814 os ingleses ocuparam o Cabo e, afinal, o obtiveram em caráter de- A partir de 1874, sob Disraeli, a política imperialista britânica conduziu a
finitivo em Viena (1814) por 6 milhões de libras. uma tentativa frustrada de anexação que terminou na derrota inglesa e con-
Sempre expandindo suas fazendas de plantio e criação, os bóeres (colo- firmação da autonomia do Transvaal (1881). Logo depois, contudo, com a
nos livres das zonas rurais, calvinistas) travaram várias guerras contra os descoberta das minas de ouro do Transvaal, (1885), reacendeu-se o conflito,
cafres e se irritaram quando as autoridades inglesas iniciaram uma política agora personificado no duelo entre Krúger, presidente do Transvaal, ideólogo
de imigração (1820), introduziram um regime de propriedade e um sistema de um país agrícola, autossuficiente, e Cecil Rhodes, primeiro-ministro do
fiscal, e implementaram a abolição da escravidão (1834). Como resposta, os Cabo (1890), envolvido com grandes empresas capitalistas de mineração
bóeres empreenderam o Groot Trek (Grande Migração). Em levas sucessivas, e ferrovias, cujos planos contemplavam o domínio de toda a África, pois,
eles avançaram para o interior, chegando às margens do Limpopo, Orange como ele mesmo afirmou, "conquistaria os planetas, se pudesse".
e Vaal (1834-1839), em constantes choques com os zulus, cujas terras iam Começava, também na África do Sul, a Era do Imperialismo, e permane-
sendo por eles apropriadas. A tentativa dos bóeres de ocupar a região do ciam, como heranças do período anterior, um apartheid de fato e o problema
Natal (1838) foi repelida pelos britânicos que ali estabeleceram uma nova da expropriação sistemática das tribos africanas da maior e melhor parte
colónia (1843), forçando-os a uma retirada (1846). de suas terras de agricultura e criação (Easton, 1964; Guillaume, 1974).
Na história da colonização europeia na África do Sul, o período de 1834
a 1881 caracteriza-se pelos frequentes conflitos entre tropas britânicas, 4. Regiões asiáticas
colonos bóeres e tribos bantos, paralelamente à evolução mais ou menos
autónoma do Cabo, Natal, Orange e Transvaal. O Cabo progrediu com certa Incluímos neste tópico a índia, os países do Sudeste da Ásia, a China e o
rapidez, em termos políticos e económicos, especialmente após a descoberta Japão; por extensão, poder-se-iam incluir neste grupo também a Austrália,
dos diamantes do distrito de Kimberly (1867), no território dos gréquas, a Nova Zelândia e a Oceania.
protetorado (1842) ao sul da Bechuanalândia (Botsuana), esta depois tam-
bém convertida em protetorado (1885). A política britânica consistiu em
O S É C U L O XX
O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

4.1 índia
das exigências fiscais e certas decisões administrativas e policiais contrárias
a costumes hindus considerados "bárbaros" ou "atrasados" aumentam as
Não nos seria possível, é óbvio, narrar a história da índia. A uma parte
tensões socioculturais que acabam por explodir no "motim" de 1857-1858,
dela já nos referimos, ao tratarmos do século XVIII. Entre o Tratado de
a partir do levante dos regimentos de sipaios — tropas de hindus e muçul-
Alahabad (1765) e a extinção total da autoridade da Companhia das índias
manos sob o comando de oficiais ingleses. Propagando-se com rapidez pela
(1858) após a revolta dos sipaios (1857-1858), quando o governador-geral
índia Central e vale do Ganges, a revolta, apesar das adesões que recebeu
foi promovido a vice-rei, a expansão britânica prosseguiu sempre, inexo-
e da surpresa e lentidão das reações inglesas, acabou dominada graças à
rável. Ao lado da índia Britânica, alguns Estados hindus e muçulmanos
fidelidade de uma parte das tropas indianas, à chegada de reforços britânicos
conservaram uma certa autonomia, controlada pelo vice-rei.
e ao apoio prestado pelos sikhs e afegãos à Coroa de S. M. Britânica, o que
Conquistas territoriais, sucessivas reformas fiscais e administrativas, co-
não deixa de ser bastante irónico.
meços da "modernização" económica, lutas com os sikhs (Lahore) e afegãos A exploração imperialista é a marca da dominação britânica a partir
caracterizam as administrações de uma vasta galeria de governadores-gerais, de 1858. Grandes obras de infraestrutura são então empreendidas a fim de
como W. Hastings, Wellesley, Lord Minto, Lord Dalhousie, entre outros.
baratear as exportações e facilitar as importações. Investe-se em grandes
Dominado o subcontinente, voltaram-se as atenções britânicas para as
plantações de algodão, chá, café e anil, e na exploração de minérios. Ao
fronteiras do noroeste e nordeste. Para garantir a primeira, tentaram, por
mesmo tempo, o sistema fiscal esmera-se em assegurar o pagamento dos
duas vezes, os britânicos colocar um aliado no trono do Afeganistão, em
custos dessa modernização pelos próprios indianos. Recursos financeiros
1839-1841 e 1878-1880; derrotados em ambas, de maneira humilhante, o
e tropas das índias garantiram uma grande parte das ações britânicas no
pesadelo de Cabul permaneceria por longos anos na memória militar inglesa.
Sudeste da Ásia e alhures. Embora ausente de muitos estudos acerca da
A nordeste, a expansão foi mais fácil; do Assam, os ingleses avançaram pela
"Época do Imperialismo", pois não se trata de uma "nova" conquista, a
costa da Birmânia (Myanmar) e ocuparam Rangum (1852) após o que se
índia representa talvez o exemplo mais impressionante de exploração im-
seguiu um período de guerras intermitentes com os soberanos birmaneses,
perialista em larga escala (Panikkar, 1956).
afinal encerrado com o estabelecimento do protetorado britânico (1867).
As práticas inglesas de dominação e controle coloniais, no caso da índia,
A importância da dominação britânica pode ser resumidamente anali-
constituem formas e dimensões pioneiras e exemplares. Em nenhum outro
sada de acordo com duas ordens de aspectos: o impacto sobre a sociedade
espaço colonial, com as dimensões do subcontinente indiano, uma potência
indiana e as práticas de dominação e controle adotadas pelos ingleses.
revelou tamanha habilidade e competência políticas para manobrar e se
O impacto colonialista compreende dois processos sucessivos: a desarti-
servir das rivalidades entre príncipes, das diferenças e conflitos étnicos e
culação da economia artesanal, rural sobretudo, e a exploração imperialista
religiosos, e da babel de línguas. No âmbito administrativo, o civil service
sistemática.
da índia criou suas próprias estruturas e vedou aos "nativos" o acesso aos
A desarticulação do artesanato indiano dá seus primeiros sinais na pas-
postos intermediários e superiores, tornando-se a grande escola-modelo de
sagem do século XVIII ao XIX. A chegada de carregamentos de tecidos
formação de funcionários coloniais. Na esfera militar, o princípio de asse-
mais baratos produzidos nas fábricas inglesas compromete as tradicionais
gurar o domínio e manter a ordem através do recrutamento dos próprios
exportações de tecidos indianos ao mesmo tempo que a matéria-prima, o
"nativos" sofisticou-se ao máximo na índia em função da utilização das
algodão, é cada vez mais açambarcada pelos compradores ingleses e envia-
inúmeras diferenças e rivalidades em que a índia é tão pródiga.
da para o Lancashíre. Em 1833, quando cessa o monopólio comercial da
Pairando acima de todos esses mecanismos e práticas, estava um senti-
Companhia das índias, inicia-se verdadeira invasão de mercadorias inglesas,
mento de superioridade cultural, às vezes também social, que se traduzia
que acelera a desintegração da indústria artesanal e provoca desemprego e
no distanciamento e na ênfase nas diferenças: a etiqueta oficial, a língua
miséria no Decã e outras regiões, sobretudo nas áreas rurais. O aumento
inglesa, os círculos e espaços de sociabilidade restritos, a religião cristã. Para

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os britânicos, a índia era seu orgulho e sua missão, difícil mas necessária, Assim, preocupados apenas com seus próprios objetivos militares e
embora nem sempre "bem compreendida" (Hobsbawm, 1977). ' comerciais (os franceses, no caso, buscavam uma rota de acesso ao sul da
China), França e Grã-Bretanha dividiram entre si, mais uma vez, outra
4.2 Sudeste da Ásia importante "fatia do bolo asiático" (Terseu, 1950; Easton, 1964).
As índias Orientais Holandesas (Indonésia) não constituem exatamente
Podemos resumir a expansão colonial nessa parte da Ásia em três atos: a um caso de "expansão colonial". Colonizadas desde o século XVII pela
conquista britânica, a ocidente; a francesa, a oriente; e a divisão da principal Companhia das índias Orientais (holandesa), estiveram sob domínio francês
área intermediária — o Sião (Tailândia). (1795-1811) e inglês (1811-1819), quando foram devolvidas à Holanda tendo,
A oeste, do norte para o sul, os ingleses, na Birmânia, passaram do já então, a sua economia (baseada no cultivo de especiarias) em franca de-
protetorado (1867) à anexação à índia (1885). Na outra extremidade (sul), cadência, em meio a revoltas de alguns sultões e conflitos dos comerciantes
os "Estabelecimentos dos Estreitos", Cingapura, Malaca, Penang, foram locais com os chineses, que, em grande número, os estavam deslocando.
separados da índia e elevados à condição de "colónias da Coroa" (1867). A Na verdade, há dois períodos a se considerar, quanto aos métodos de
seguir, manobrando em seu favor as rivalidades entre os sultanatos malaios, exploração dos recursos locais: antes e após 1870. O primeiro período está
a Grã-Bretanha criou, sob sua proteção, a Federação de Estados Malaios associado ao governo de J. Van den Bosch (1830-1839), que introduziu o
(1895). Capitais europeus, imigrantes chineses e indianos implementaram o chamado "sistema de culturas", isto é, o trabalho compulsório dos "nativos"
plantio da hévea (borracha) e a extração de estanho. Ao lado de Hong Kong nos cultivos de exportação: índigo, cana-de-açúcar, café e tabaco. O "siste-
(China), Cingapura tornou-se peça-chave do imperialismo britânico na Ásia. ma" foi considerado um sucesso pelos colonizadores mas levou à drástica
A leste, do sul para o norte, a expansão colonial francesa avançou pelas redução das culturas de subsistência, a começar pela do arroz. Em conse-
"estradas" abertas, desde o século XVIII, por suas missões católicas. A quência, ocorreram sucessivos períodos de fome, sobretudo em 1848-1850,
hostilidade do novo reino do Vietnã (Cochinchina, Anã e Tonquim) aos seguidos de revoltas populares contra corveias e impostos excessivos.
cristãos, nas primeiras décadas do Oitocentos, justificou o envio de um Em Haia, o novo governo constitucional, diante das denúncias veicu-
esquadrão naval por Luís Filipe. Sob Napoleão III, pressões católicas e inte- ladas pela imprensa, promoveu uma investigação parlamentar que teve
resses económicos favoreceram os primeiros passos da conquista territorial: como resultado a abolição do "sistema" de cultivo obrigatório e reformas
demonstração de um esquadrão naval franco-espanhol (1858), ocupação de
fiscais e comerciais.
Saigon (1859) e conquista da Cochinchina (1863-1867). Assim, se a Argélia
A partir de 1870, a nova "Lei Agrária" abriria as ilhas a empresas pri-
era uma "coutada" do exército, a Indochina logo se transformou em área
vadas capitalistas, as quais introduziram o sistema das grandes plantações
exclusiva da marinha. Em lugar de coronéis ou generais, são os almirantes
(plantage) para exportação. Um forte afluxo de capitais, sobretudo ingleses,
que governam e expandem as conquistas. O Camboja foi feito protetorado,
permitiu grandes obras de infraestrutura e a intensificação da exploração
em 1863, mas a conquista do Anã e Tonquim ficou para a política impe-
das minas de estanho e de carvão (e, mais tarde, de jazidas de petróleo).
rialista de Jules Ferry (1882-1885), já nos primórdios do imperialismo da
A "modernização" económica não trouxe, no entanto, melhoria sensível
III República.
no padrão de vida da população em geral. Tampouco foi ela suficiente
As rivalidades anglo-francesas nessa região retardaram o estabelecimento
para encerrar de vez as revoltas regionais em alguns sultanatos, como o de
do protetorado francês no Laos (1887-1893) e determinaram para o Sião a
Atchim, que exigiram custosas operações militares até começos do século
condição de "Estado-tampão" (1893-1896), no qual se assegurou a sobre-
XX (Guillaume, 1974).
vivência da monarquia tailandesa, dividindo-se o país em duas "áreas de
influência"— francesa e inglesa.

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O S É C U L O XX O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

4.3 Extremo Oriente dinheiro perdeu em poder de compra, isto é, os preços dispararam. Logo,
descontentamentos populares explodiram por toda parte, favorecendo
Tanto na China como no Japão, a expansão do mercado capitalista de- grupos e sociedades secretas tradicionalmente hostis à dinastia Manchu
frontou-se com sociedades fechadas, por princípio, aos intercâmbios com (Chesneaux e Bastid, 1972).
os estrangeiros, o que incluía não apenas os comerciantes mas também os De acordo com a interpretação dada pelas autoridades, era imprescin-
missionários ocidentais. Esse fechamento traduziu-se na limitação, ao mí- dível impedir-se o contrabando de ópio, mas, segundo elas, o problema
nimo possível, dos contatos com os "bárbaros", do que resultou, na prática, maior era o da corrupção dos próprios funcionários chineses. Em 1839,
que apenas Cantão, na China, e Nagasaki, no Japão, permaneceram relati- um decreto imperial reiterou e ampliou severas punições a serem aplicadas
vamente abertos a partir dos séculos XVII-XVIII. Em Cantão, o comércio tanto a comerciantes como a consumidores chineses de ópio. Logo a seguir,
europeu estava sob o controle do Cohong, corporação de comerciantes pondo em prática essas determinações, o novo superintendente do porto
autorizados pelo governo. Em Nagasaki, somente os holandeses podiam de Cantão determinou a prisão de centenas de infratores e o confisco e a
aportar uma ou duas vezes ao ano. queima dos estoques de ópio existentes nos armazéns. Foi o suficiente para
Em Cantão, os funcionários chineses exigiam elevadas comissões aos dar início à chamada "guerra do ópio" (1839-1842).
comerciantes em troca de autorizações e favores; o superintendente, co- Conflitos com os comerciantes ingleses provocaram, como de hábito, a
nhecido por hoppo, era em geral o mais corrupto — e o mais poderoso. intervenção das canhoneiras britânicas. Bombardeios, pequenos desembar-
Havia ali cerca de 13 feitorias de comerciantes ingleses e norte-americanos, ques, estendendo-se a outros portos, acabaram por convencer as autoridades
os quais compravam sobretudo chá, além de sedas, brocados, porcelanas, chinesas de que a única saída eram as negociações. A Grã-Bretanha, pelo
bronzes e pedras preciosas. tratado de Nanquim (1843), obteve várias concessões, a começar pela ilha de
Até 1820, pagava-se tudo com a prata (do México, via Filipinas, do Hong Kong. As demais vantagens logo foram estendidas a França, Estados
Japão, obtida pelos holandeses, e da índia, levada pela Companhia das Unidos e Rússia (1844-1845) graças à cláusula da "nação mais favorecida".
índias). Como os chineses não compravam quase nada, o saldo comercial Basicamente, a China viu-se obrigada a consentir na abolição do Cohong;
era favorável à China, que podia continuar a entesourar prata em grandes abertura de mais cinco portos; rebaixamento dos direitos aduaneiros ao
quantidades. Por volta daquele ano, no entanto, o ópio, que já vinha sen- limite de 5%; extraterritorialidade jurídica dos estrangeiros residentes em
do introduzido de contrabando, em pequenas quantidades, passou a ser a portos chineses; e permissão de navios de guerra estrangeiros atracarem
mercadoria principal dos ingleses, que o obtinham na índia (Bengala), e dos em qualquer porto da China.
americanos, que o compravam aos turcos. Apesar das severas proibições Os tratados de 1842-1845 foram os primeiros de uma longa série de
já existentes na China contra o comércio e consumo de ópio, seu contra- "tratados desiguais" impostos à China no século XIX, em detrimento da
bando quadruplicou-se em menos de vinte anos, pois, com a conivência sua soberania. Logo após esses primeiros tratados, os europeus iniciaram o
de funcionários chineses, ele entrava clandestinamente através de mais de processo de ampliá-los em seu favor. Um dos seus primeiros passos consistiu
dez portos litorâneos. em fazer de suas "concessões" (áreas urbanas destinadas à residência de
O contrabando de ópio e a difusão de seu consumo, sobretudo entre estrangeiros) autênticos "enclaves" conforme ali estabeleceram instituições
burocratas e militares, inquietou o governo chinês, além de se constituir municipais próprias, inclusive milícias à europeia. Logo viria também o
também em ameaça à própria autoridade imperial. O estancamento do controle por inspetores europeus das receitas das aduanas, começando
afluxo da prata e a completa inversão que o contrabando do ópio determi- pelo porto de Xangai.
nou — a prata começou a sair do país em quantidades cada vez maiores Pressionado pelos estrangeiros e tendo que enfrentar sucessivas revoltas
— provocaram grave crise monetária e social. A prata valorizou-se e a tra- internas, como a dos Taipings e dos Nian-Nian, o governo chinês viu-se
dicional relação entre ela e as moedas de cobre alterou-se com rapidez — o obrigado a recorrer à ajuda militar britânica e francesa em alguns momentos

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críticos, ao mesmo tempo que crescia o número de missionários protestantes Ocidente e assimilação dos seus recursos técnicos e científicos, e a defesa
e católicos, sobretudo estes, em diversas províncias, gerando frequentes intransigente das formas tradicionais, o mandarinato foi presa fácil das
conflitos, já que estavam proibidos de viajar ao interior do país. novas e sempre maiores exigências ocidentais (Chesneaux e Bastid, 1972).
Até 1860, o comércio ocidental não se expandiu como se imaginara Assim, muito antes da época identificada como "imperialista" pela
antes da "abertura". O mercado era limitado às imediações dos portos, historiografia, a China já era alvo do imperialismo ocidental.
pois, no interior, a produção artesanal local resistia com sucesso aos tecidos No caso do Japão, o impacto ocidental repercutiu sobre uma sociedade
importados. Os ingleses apropriaram-se da navegação de cabotagem e, por bem diferente da chinesa. Desde 1603, os Tokugawas detêm o xogunato
outro lado, obtiveram grandes lucros com a exportação dos coolies para o e controlam política e militarmente o país. Seu governo — Bakufu —, em
trabalho nas plantações de Cuba, Peru e Austrália, quase como escravos. Edo, exercido em nome do imperador, Mikado (Kyoto), baseia-se numa
O que prosperou de fato foi o tráfico de ópio, agravando-se seus efeitos hierarquia rígida de fidelidades feudais do xogum aos daimios (grandes
negativos sobre a balança comercial, circulação monetária e preços. vassalos) e seus feudos — han, e destes aos guerreiros — samumis.
Conflitos intermitentes entre ingleses e milícias locais, especialmente em Desde 1639, o Bakufu havia isolado o país do exterior. Apenas em
Cantão, e a má vontade de alguns mandarins mais hostis aos estrangeiros Nagasaki eram permitidas a chineses e holandeses atividades mercantis
levaram os ocidentais a apresentar novas exigências, em 1854, mas o novo estritamente regulamentadas. Todavia, lentamente, processou-se uma certa
imperador Xianfeng (1850) apoiou firmemente os "intransigentes", embora o mobilidade social, expandiu-se a economia monetária, enriquecendo os
próprio centro do poder estivesse cada vez mais dividido pelos antagonismos comerciantes e empobrecendo os samurais, e daimios e o próprio Bakufu.
entre chineses e manchus. França e Grã-Bretanha, aproveitando-se de tais Por outro lado, as influências ocidentais penetraram através dos livros,
divisões, empreenderam, em 1856-1860, uma série de operações militares mapas, instrumentos científicos e armas de fogo, "fuzis e canhões", bem
— a "segunda guerra do ópio". Cantão foi bombardeada e tomada (1858); como a literatura sobre estratégia e tática militares ocidentais. O impacto
as tropas tomaram e saquearam Pequim (1860), inclusive o Palácio de Ve- da "abertura" repercutiu intensamente sobre a sociedade. Havia uma coesão
rão, e a Corte teve que negociar. Os tratados de Tientsin (1858) e Pequim muito forte em torno de valores comuns, e as divergências diziam respeito
(1860) ampliaram consideravelmente as concessões aos ocidentais: abertura aos meios e não aos fins, isto é, a questão jamais se colocou para os grupos
de mais 11 portos; acesso dos navios ocidentais aos principais rios chineses; dirigentes como a de aceitar ou rejeitar a modernização, mas sim como
direito de circulação pelo interior do país para comerciantes e missionários; escolher a estratégia menos prejudicial ao país.
legalização da importação do ópio; livre-circulação das mercadorias oci- Em julho de 1853, o comodoro Perry chegou a Edo com uma frota de
dentais pelo interior do país, isentas de taxas, salvo um acréscimo de 2,5%; guerra a fim de entregar ao xogum uma carta do presidente dos Estados Uni-
indenizações de guerra em favor da França e Grã-Bretanha; reconhecimento, dos (Fillmore), pedindo a abertura dos portos e anunciando que retornaria
pelo governo de Pequim, das missões diplomáticas estrangeiras. Enquanto no ano seguinte para receber a resposta. Em agosto, porém, navios russos
isso, a Rússia, que se aproveitou da crise para chegar ao Pacífico, obteve chegaram a Nagasaki com idêntica petição. Apesar de algumas resistências,
o reconhecimento da conquista da margem setentrional do rio Amur e da a maioria dos daimios consultados pelo xogum pronunciou-se contra uma
oriental do Ussuri (onde fundaram Vladivostok), em 1860. guerra imediata. Em fevereiro, Perry retornou, com um quarto da frota
A partir de 1860, a penetração ocidental avançou com rapidez, compreen- norte-americana, e em março foi assinado o tratado de Kanagawa que abria
dendo praticamente todos os setores da vida chinesa. O processo de "mo- dois portos — Hakodate e Ximoda — e aceitava a presença de um cônsul.
dernização" acelerou-se, gerando mudanças profundas no plano económico Logo se seguiram tratados análogos com a Grã-Bretanha (1854) e Rússia
e social. A intensificação das atividades missionárias e a crise das estruturas (1855). Outras negociações, a seguir, culminaram, em 1858, num tratado
tradicionais provocaram frequentes manifestações xenófobas e movimentos de comércio entre Estados Unidos e Japão. Novos portos foram abertos até
de rebeldia em algumas províncias. Dividido entre a conciliação com o 1863, e, tal como na China, ficaram asseguradas a extraterritoriallidade

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O S É C U L O XX
O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

jurídica e a redução das tarifas aduaneiras. Em troca, os japoneses rece-


5. Américas
beriam barcos, armas e técnicos. Na esteira do tratado, logo a Holanda,
Rússia, Grã-Bretanha e França obtiveram tratados equivalentes. Muito embora não seja habitual a inclusão do continente americano em
A partir dessas concessões aos estrangeiros, desencadeou-se uma com- histórias da expansão capitalista no século XIX, acreditamos que seriam
plicada luta interna envolvendo o Bakufu, os feudos a ele fiéis e os que se oportunas algumas referências a fim de completarmos o desenho deste
lhe opunham, sob a liderança dos daimios de Satsuma e Xoxu. Entre o ir texto, deixando de lado tradicionais divisões disciplinares.
e vir de alianças e choques armados, agita-se a bandeira do sentimento O continente americano durante o século XIX não constitui exceção à
nacional, contrário aos estrangeiros e por extensão ao Bakufu. Aos poucos, regra vigente em outras partes do globo: a hegemonia do capitalismo britâ-
o imperador se torna o centro dos projetos dos setores que aspiram à con- nico. No Brasil, a "preeminência britânica" (Manchester, 1973) é bastante
quista do poder. A Corte Imperial estimula a resistência e os ataques aos conhecida dos historiadores; nos países hispano-americanos tampouco há
estrangeiros e seus aliados, respondendo os ocidentais — norte-americanos, maiores diferenças (Donghi, 1972).
Não se trata, é claro, de recontar a história dessa "preeminência". Trata-
franceses, ingleses — com bombardeios navais e desembarques de tropas
se de um mero lembrete. O importante mesmo do lembrete é a sua função
contra Satsuma e Xoxu. Ao final, em 1867, já enfraquecido, o Bakufu,
no contexto deste trabalho: a de assinalar que as teias do colonialismo não
quase completamente isolado, entrega o poder político ao novo imperador foram tecidas apenas com "partilhas" tendentes à instalação de "colónias"
— Mutsuhito. A batalha final foi travada em janeiro de 1868: tomada do em sentido estrito. Mas há também outra razão: refutar a tendência que, em
palácio imperial pelos inimigos do xogum e proclamação da Restauração nome de supostas diferenças "essenciais", imagina os países latino-americanos
do Império. Embora os partidários do xogum tenham resistido ainda por como um caso à parte, à margem do colonialismo ou, quem sabe, alvos de
um ano, o Bakufu fora liquidado. Em abril de 1868, o imperador leu o um "neocolonialismo" (sic) avant Ia lettre ou retrospectivo.
"Juramento dos Cinco Artigos", embrião de código constitucional do novo Se a presença britânica é então o fato dominante, suas formas de atua-
regime, sendo a capital transferida para Edo e rebatizada como Tóquio. lização foram naturalmente diferentes conforme se tenham em vista o
O movimento que devolveu o poder ao imperador e as transformações Canadá, os Estados Unidos ou, finalmente, a América Latina.
políticas, sociais e económicas subsequentes são chamados Meijii-ishin O Canadá, no início do século XIX, era constituído por uma justaposição
(renovação de Meiji). Mutsuhito reinou sob o nome de Meiji (governo ilu- de colónias diferentes entre si, especialmente as de colonização francesa
minado). A chamada Revolução Meiji, compreendendo a restauração im- e as de colonização inglesa. A unificação do território atual processou-se
por etapas e sua integração deveu-se sobretudo à construção de ferrovias,
perial e a época que se lhe seguiu, marca o início do processo acelerado de
culminando na Canadian Pacific Railway (1886). Mais difícil, porém, foi
"modernização" do Japão. De 1868 a 1881, aceleram-se as transformações
a tarefa de reunir em uma federação as diferentes províncias e territórios,
das instituições e da economia, apesar de dificuldades e crises, inclusive
objetivo alcançado, em 1867, pelo British North America Act. Área de
sublevações de camponeses e samurais, agravadas também pela inflação. imigração britânica e de afluxo de capitais, o Canadá, tal como a Austrália
A partir de 1880, desenhou-se o perfil do novo Japão, um país que, apesar e a Nova Zelândia, ocupou um lugar privilegiado no âmbito do Império
de tudo, não caiu nas malhas do "imperialismo" — empréstimos, investi- Britânico, tendo sido fundamentais suas conexões com o grande vizinho
mentos, dependência — e converteu-se, já em 1894/1895, na única potência do sul — os Estados Unidos (Guillaume, 1974).
imperialista não ocidental. Seria bom se pudéssemos analisar esse "milagre Os Estados Unidos aumentaram continuamente seu comércio com a antiga
oriental" que tantas dores de cabeça viria a dar aos ocidentais, mas, in- metrópole, de onde afluíram imigrantes e capitais em quantidades crescentes
felizmente, temos que deixar o assunto para outro texto (Coquin, 1972). já na primeira metade do século XIX. Capitais britânicos foram não raro
decisivos na construção de ferrovias e canais, modernização de portos, cria-
ção de bancos, financiamento de exportações — a começar pelo algodão e

70
T
O S É C U L O XX O CAPITALISMO U N I F I C A O MUNDO

tabaco. Qualquer cabeia estatística do movimento dos capitais britânicos nesse contra as manobras europeias tendentes a fragmentar o mercado chinês
século evidencia seu direcionamento predominante para os Estados Unidos. em concessões fechadas à concorrência; nas Filipinas, obtidas após uma
Do ponto de vista da expansão territorial, os Estados Unidos interes- guerra com a Espanha (1898-1899), como ponta de lança em relação aos
saram-se, primeiro, pelos imensos territórios situados a oeste e a sul. Tal portos chineses e japoneses e à expansão russa a partir da Sibéria oriental.
expansão compreendeu a "conquista do Oeste", aquisições mediante com- A guerra hispano-americana propiciou aos Estados Unidos a posse vir-
pras e anexações decorrentes de guerra. tual da ilha de Cuba e a incorporação da ilha de Porto Rico. Tratava-se de
O Oeste foi conquistado pelos pioneiros à custa de quase extermínios fazer frente à posição dominante da Grã-Bretanha nas Antilhas, senhora
dos peles-vermelhas e de uma política de concessão de terras que favoreceu da Jamaica, Bahamas, Trinidad, Tobago, Santa Lúcia, Domenica, e outras
a iniciativa e as ambições dos recém-chegados. Decorreu desse processo menores. Havia ainda Belize, na Guatemala, e a Guiana (a parte tomada aos
toda uma tradição histórica e sociológica que tem na "fronteira" e no tipo holandeses em 1815). A questão da construção de um canal interoceânico
humano a ela associado o tema central de suas análises sobre a formação já se constituía então, nessa última década do Oitocentos, como centro de
da sociedade norte-americana. interesses e manobras de americanos, ingleses e franceses (Garden, 1983).
Compras e acordos resultaram na aquisição da Louisiana (à França, em
1803), da Flórida (à Espanha, em 1819), do Alasca (à Rússia, em 1867) do
Oregon, em 1848 (objeto de tratado com a Grã-Bretanha).
CONCLUSÃO
A Guerra com o México iniciou-se depois que o Texas, em 1845, deci-
diu incorporar-se à União americana, prolongando-se o conflito até 1848. Ao término desta longa exposição, queremos sublinhar alguns dos pontos
Além do Texas, foram então incorporados os territórios do Novo México, essenciais a respeito de, pelo menos, dois aspectos: o que se excluiu e a
Arizona e Alta Califórnia. Bem a tempo, aliás, pois se iniciava então a forma que se imprimiu ao texto como um todo.
"corrida" rumo ao ouro californiano. Excluir é uma tarefa sempre difícil, especialmente quando ditada por
Durante a Guerra de Secessão (1861-1865), as relações americanas fica- motivos de economia de páginas.
ram um tanto estremecidas com a Grã-Bretanha e a França. Com os britâ- Na realidade, realizamos dois tipos de exclusão: dos assuntos a serem
nicos, por causa da recusa do governo inglês em reconhecer o bloqueio dos desenvolvidos em outros textos desta coleção e, em segundo lugar, de temas
portos sulistas, grandes fornecedores do algodão consumido pelas fábricas que, embora pertinentes, não consideramos fundamentais. Pertencem ao
britânicas. Com a França, porque esta, apesar de favorável a Washington, primeiro tipo "os vários caminhos nacionais de emergência do capitalismo",
aproveitou-se do velho pretexto colonialista de cobrar dívidas não pagas a "Segunda Revolução Industrial" e a "expansão imperialista", embora,
para invadir o México (1861) e ali instalar, como imperador, o príncipe quanto a esta última, nem sempre tenha sido possível respeitar-se 1870-1880
Maximiliano. Uma aventura trágica: após a saída do exército francês (1866), como data limite. No segundo grupo, lamentamos não ter sido possível in-
as tropas de Juarez prenderam e executaram o "Imperador do México". cluir as colonizações da Austrália e Nova Zelândia e a complicada partilha
Os Estados Unidos, no entanto, não estavam ausentes do cenário das dos arquipélagos da Oceania.
disputas coloniais. Vimos como o comodoro Perry apareceu no Japão em Quanto à forma que imprimimos à narrativa, optamos por informar
1853; os interesses americanos em Cuba obrigavam a uma constante vigi- o leitor, e não apenas apresentar-lhe análises gerais e abstratas. Tal opção
lância, assim como as disputas pelas ilhas e arquipélagos da Oceania. Desde talvez tenha acarretado uma sobrecarga, quem sabe excessiva, de "dados
meados do século, desenvolveu-se em certos círculos intelectuais e políticos empíricos" ou "factuais". Pensamos, porém, que seria útil ao leitor não es-
a ideologia do "Destino Manifesto", cujas metas eram as Antilhas e os ter- pecializado situar com precisão uma série de acontecimentos decisivos, hoje
ritórios ao "sul do Rio Grande", visando afirmar nessas áreas a presença praticamente esquecidos, como forma de distinguir o texto histórico dos
americana. Na última década do século, a política americana se afirmaria seus congéneres sociológicos ou económicos, mais ou menos imprecisos e
no Extremo Oriente: na China, defendendo o princípio da "porta aberta" genéricos. A preocupação com o espaço-tempo esteve assim sempre presente.

72 73
O S É C U L O XX O CAPITALISMO UNIFICA O MUNDO

Enfim, as questões teóricas. Adotamos uma perspectiva que irá cer- Diderot, D. 1972. Supplémentau voyage de Bougainville. Paris, Garnier-Flammarion.
tamente parecer a alguns um tanto antiquada. Mencionamos,'mas não Donghi, T. H. \972.Hispanoamerica despúes de Ia independência. Buenos Aires, Paidós.
trabalhamos com elas, as interpretações baseadas no conceito de "sistema Dreyfus,F. etalii. 1983. "Os países industrializados tardios". In Léon, P. (dir.) História
Económica e Social do Mundo, v. 3. Inércias e revoluções. T. II. Lisboa, Sá da Costa.
mundial capitalista europeu", ou na "acumulação mundial". Assim o fi-
Easton, S. C. 1964. The rise and fali of Western colonialism. Nova York, F. A. Praeger.
zemos a fim de evitar longas discussões teóricas que contrariam o espírito
Elias, N. A. 1987. Sociedade de Corte. Lisboa, Estampa, 1987. Trad. de Ana Maria Alves.
desta coleção. Não deixamos, porém, passar a oportunidade de relativizar Engels, F. 196 1. La situation de Ia classe labourieuse en Angleterre. Paris, Ed. Sociales.
a visão tradicional acerca de supostas rupturas, no seio da expansão capi- Trad. de J. Badia e J. Fréderic. Avant-propos de E. J. Hobsbawm.
talista, quer entre um "antigo" e um "novo" sistema colonial, quer entre a Falcón, F. J. Calazans. 1994. O imaginário republicano no século XVIII e Tiradentes.
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76
APRESENTAÇÃO

Com toda certeza vocês já assistiram a alguma aula de história que lhes
explicou as formas de desenvolvimento do capitalismo no fim do século
XVIII. Por isso, todos vocês sabem que o capitalismo adquiriu sentido e
estabeleceu as suas formas de domínio a partir do fim do século XVIII com
o processo de desenvolvimento das revoluções burguesas.
Entretanto, muito antes da vitória dos burgueses e da inauguração de
uma nova etapa na história da humanidade, o homem, a vida e as relações
sociais e políticas já haviam se transformado com relação ao que foram as
antigas formas de exploração da Idade Média (Hobsbawm, 1975).
Em especial, o século XVIII, não por acaso identificado com as Luzes, foi
o momento onde ganharam consistência novos modos de pensar o homem
e o mundo, funcionando como momento de síntese de mudanças já anun-
ciadas pela secularização da Igreja, em especial pelas reformas religiosas,
pelo rompimento com a tutela ideológica naquilo que dizia respeito à natu-
reza e ao natural, através da revolução cartesiana, e pelas transformações
científicas dela oriundas.
Ao lado dessas rupturas com a tutela religiosa, desenvolveu-se uma forte
tendência de explicação daquilo que era o desenrolar da vida social e do seu
entendimento como resultado da ação das virtudes humanas decorrentes
do exercício da razão.
O século XVIII representou para a história da humanidade um momento
novo, no qual a primazia da razão elegeu o homem e as suas virtudes como
responsáveis pelo progresso material e técnico e pela descoberta de que essa
nova experiência só podia alcançar seus objetivos se a liberdade de viver e
pensar fosse o leito do novo caminho (Vachet, 1972).
Representado pela associação entre razão e liberdade, o Século das
Luzes inaugurou uma nova forma de ver a humanidade, onde a igualdade

79
O S É C U L O XX
AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

foi a nova mestra das trocas e das virtudes humanas e a referência para de luta dos burgueses contra os antigos regimes e que, historicamente,
todas as críticas ao domínio aristocrático das sociedades do Antigo Regime envolveram um movimento social, político e ideológico, que se introduziu
(Goubert, 1971).
na sociedade do Antigo Regime, pulverizando-a de cima a baixo e esta-
Esse movimento do esclarecimento, através da razão, fortaleceu as rup- belecendo relações que sugeriam alianças entre nobres e burgueses para
turas com as formas estatais do século XVII — os Estados absolutistas —, garantir o novo tempo, que propunham sistemas políticos onde interesses
reivindicando uma participação no Estado que se originou das ações de diferentes estabeleceram uma pauta comum de mudanças.
transformação, principalmente da economia, valorizando o homem produtor A segunda metade do século XVIII foi, por excelência, o período de
em detrimento do nobre, que vivia à custa do rei nas sociedades de Corte apogeu dessas contradições e críticas, fazendo com que os novos ideais de
(Hobsbawm, 1977).
liberdade e igualdade ultrapassassem o mundo europeu e fossem, em outras
Essas transformações também elegeram um novo lugar de onde as áreas, as bases de processos revolucionários distintos, tanto no século XVIII,
Luzes podiam se expandir e, ao mesmo tempo, se consagrar na forma de com o exemplo americano das Treze Colónias, como no século XIX, com
movimentos intelectuais. A cidade, em oposição ao campo, passou a ser a experiência de modernização do Japão. É bom lembrar que também no
o espaço original das novidades, onde os novos valores anunciavam-se e próprio continente europeu ocorreram transformações ligadas ao progresso
divulgavam-se, transformando-se em ideais burgueses, em novas visões de e às revoluções diametralmente diferentes dos exemplos de França e Ingla-
mundo e em novas formas do viver social.
terra, tomados pelos historiadores como os tipos clássicos de revoluções
O desenrolar desse movimento de privilégio das cidades foi a tomada de burguesas, como o caso da Alemanha (Hampson, s.d.).
consciência política por parte dos burgueses. A nova sociedade modificou Antes de examinarmos cada um dos casos de desenvolvimento dife-
as suas relações, introduzindo a virtude e o conhecimento e produzindo renciado e desigual de consolidação do capitalismo, resta-nos apresentar
novas formas de sociabilidade, não mais representadas pela hierarquia do um quadro amplo e geral das condições que motivaram essas revoluções e
nascimento, mas marcadas pela eficácia das ações dos homens, pela capa- que, ao fim e ao cabo, permitiram-lhes uma identidade comum ocidental.
cidade de transformação da natureza (Weber, 1985).
As teorias sobre o progresso material, técnico e intelectual assumiram 1. O mundo europeu da modernidade: o longo movimento de
importância decisiva para que esses novos homens entendessem que a sua transformações do Renascimento ao Iluminismo
história seria o resultado de sua construção do futuro no presente e que o
progresso era aquilo que movia o aperfeiçoamento da razão humana. O século XVI foi o momento de constituição dos ideais modernos no Ociden-
A natureza, alterada pela ação do trabalho humano, ganhou uma nova te. O Renascimento e o Humanismo libertaram o homem da contemplação
qualificação. Ela foi, ao mesmo tempo, o campo de ações do homem e o medieval e o elevaram à categoria de centro do mundo; o homem passou a
trofeu final dessa aplicação, por sua eleição de portadora da abundância.
ser a medida de todas as coisas.
Entretanto, para que esses valores adquirissem a condição de nortea- Essa nova ação humana que experimentou o mundo, descobrindo modos
dores de novos sistemas sociais e políticos, foi preciso derrotar aqueles que de transformar a natureza, não só anunciou uma nova composição política
controlavam a antiga ordem. Tornou-se urgente eliminar as honras e os — os Estados modernos — mas agiu como fomentadora de novas atitudes
privilégios decorrentes de relações pessoais com o Estado. Esse movimento mentais diante, principalmente, da Igreja, determinando o desencadeamento
de crítica ao Antigo Regime antecipou a consolidação da ordem burguesa, dos movimentos das reformas religiosas e, com elas, o estabelecimento de
no modo dos Estados nacionais, e assegurou as transformações através das uma nova concepção de indivíduo e de ação individual.
revoluções burguesas (Hobsbawm, 1980).
Ao mesmo tempo, a invenção da perspectiva e o uso da matemática
A construção da nova ordem resultou, assim, das revoluções burguesas, construíram a noção de infinito, gerando novas descobertas marítimas e
denominação genérica e abrangente, que quer unificar os variados modos alargando o horizonte humano, tanto no conhecimento de novos costumes

so 81
O S É C U L O XX AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

como na capacidade de dar utilidade, especialmente económica, aos novos em decorrência do movimento económico dos campos, agora a direção se
mundos descobertos (Rodrigues, 1995). modificava. As transformações consolidaram a hegemonia da cidade sobre
O mercantilismo como um conjunto de práticas e projetos económicos o campo. A paisagem rural se urbanizou pela ação direta dos homens ricos
desenvolvidos na Europa moderna só foi possível pela associação dos e urbanos (Hill, 1977).
mercadores aventureiros com os Estados modernos. A associação entre No ímpeto de aumentarem as suas rendas, os novos burgueses avan-
mercantilismo, reformas religiosas e Estados modernos originou os novos çaram pelo campo, não apenas estabelecendo relações comerciais, mas
registros do espaço geográfico. O campo, até então a base do processo tornando-se proprietários rurais de novo tipo, para os quais as terras, além
de riqueza, transformou-se, adquirindo um novo lugar na expansão da de representarem maior património, aumentavam incessantemente suas
economia moderna. Não valia mais a pena ser proprietário de vastas áreas riquezas. Essa atitude, mais clara na Inglaterra, mostrou como, ao lado das
de terras improdutivas, era preciso transformá-las em terras de trabalho e formas de riqueza oriundas do mercantilismo ibérico, formaram-se outros
produção com capacidade de produzir riqueza mais sólida (Falcón, 1986). mecanismos de aumento das rendas, mais estáveis que os do comércio de
Entretanto, as consequências dessas mudanças já apresentaram de saída longo curso, menos custosos no controle e mais garantidos em termos de
situações contraditórias. Se, de um lado, essas mudanças realçaram um património (Rodrigues, 1975).
novo tipo de produção, por outro trouxeram problemas, pois na maioria A associação campo-cidade foi positiva para ambos, no nível dos inte-
das regiões rurais europeias esse processo provocou não só riqueza mas resses dos proprietários urbanos. Nos campos, de forma diferenciada na
também pobreza. Europa Ocidental, as relações sociais se modificaram. Os antigos proprie-
Em Estados como a Espanha, o processo de acesso aos metais preciosos tários nobres, pressionados pelos novos tempos, adaptaram-se aos poucos e
coloniais induziu uma política de desvalorização da produção interna com o passaram a investir na produção, participando ativamente da vida urbana
consequente movimento de incentivo às atividades comerciais, e não agrícolas, e da organização dos mercados, provocando um processo de incorporação
fazendo com que a riqueza mercantil possuísse um elemento de instabilida- dos novos valores e sugerindo um movimento político de alianças com os
de, fosse nos mecanismos de troca, nas garantias de reservas estatais ou na homens ricos urbanos. Este procedimento observou-se tanto na Inglaterra
manutenção de um custo alto de controle dos mares para evitar a pirataria. como nas áreas rurais da Alemanha.
O exemplo espanhol favoreceu o crescimento da miséria e da pobreza nos Na França, entretanto, verificou-se um movimento mais complexo e,
campos, que teve repercussões importantes nas cidades (Koenigsberger, 1974). por isso, menos modernizador do ponto de vista dos interesses privados.
Um exemplo de outro tipo foi o da Inglaterra, onde a valorização da A necessidade de manutenção da máquina administrativa e militar do
produção aumentou os preços das terras e dos produtos agrícolas, afastando Estado francês fez com que as iniciativas reais para ampliação das rendas
um elevado número de camponeses e pequenos proprietários dos campos, estatais promovessem um movimento de reciprocidade entre rei e nobreza
favorecendo a transformação das áreas agrícolas em terras de trabalho e rural, favorecendo o processo de incorporação da nobreza à vida urbana na
produção, mas, paradoxalmente, fazendo surgir movimentos sociais de forma improdutiva da sociedade de corte e produzindo um movimento de
rebeldia (Thompson, 1979). fragmentação das propriedades rurais como única alternativa de produção
As mudanças atingiram também as formas de organização social. Com de rendas da nobreza (Elias, 1987).
o crescimento do comércio, as cidades expandiram-se, promovendo altera- A consequência mais penosa foi que o retalhamento das terras inviabi-
ções nos modos de realização das trocas, incentivando a invenção de novos lizou o desenvolvimento da circulação interna de mercadorias, criando um
instrumentos financeiros e consolidando a ideia de associar o mercado e a obstáculo à introdução de novos investimentos e provocando tensões entre a
circulação de bens à produção. nobreza urbana e a nobreza provinciana; esta última, pelo fato de combater
Novos homens, ricos e urbanos, dominaram o cenário das cidades, afas- a centralização real, foi frequentemente identificada pelos historiadores com
tando delas os velhos hábitos rurais. Se até o século XVI a cidade moveu-se os interesses feudais (Dobb, 1978).

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O S É C U L O XX
AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

As elites novas e antigas não foram as únicas a beneficiarem-se desses Na apreciação até aqui realizada, notou-se um crescimento das atividades
novos modos da economia e da política. Os comerciantes adquiriram uma burguesas, principalmente nas cidades. No entanto, a partir do século XVII,
nova expressão no meio urbano. De simples intermediários entre as áreas elas foram ocupadas pelo poder real, no sentido de atribuírem a algumas a
de produção e os mercados, transformaram-se em investidores, renovando função do Estado, como capitais, criando um modo de vida que incorporou à
os mercados com a incorporação das novidades do Novo Mundo, ou in- vida urbana as experiências do luxo das sociedades de corte (Ribeiro, 1982).
vestindo na ampliação do uso utilitário dos campos através da atribuição Se o primeiro resultado foi positivo para os homens ricos e urbanos, o
de novas funções a determinadas matérias-primas. Um dos exemplos mais desenvolvimento da política nacional nas cidades atraiu, para elas, uma
importantes foi o uso da lã e as suas consequências em termos de desenvol- população que não as viam como portadoras do sentido do novo, não as
vimento das manufaturas urbanas e rurais (Koenigsberger, 1974). identificavam com uma razão individual, mas sim com a razão do Estado,
Os comerciantes foram, sem dúvida, a expressão mais pontual da ine- e utilizavam-nas para a construção da identidade aristocrática.
xistência de fronteiras entre o campo e a cidade. Mas não houve benefícios O resultado mais importante foi a descoberta, por parte do homem
apenas para os proprietários. Setores de trabalhadores rurais especializados burguês, de que o Estado do Antigo Regime era um freio aos anseios de
e de pequenos proprietários também se beneficiaram do processo de circu- liberdade de interesses. Nesse momento, os homens ricos e urbanos des-
lação de mercadorias e matérias-primas, explorando os rebanhos de ovelhas cobriram os limites do Estado e passaram a buscar instrumentos que lhes
em regiões improdutivas ou através das formas coletivas de desenvolvimento permitissem manter seus interesses. O movimento das Luzes nasceu como
do artesanato, incorporando-se à economia monetária e associando-se resultado dessas modificações e trouxe consigo a recuperação dos valores
aos comerciantes; a consequência foi o aumento da rapidez do fluxo entre construídos pelo Renascimento, acentuando mais radicalmente a indepen-
campo e cidade (Falcón, 1986). dência do homem diante de Deus e do Estado (Hazard, 1974).
Os trabalhadores urbanos também, em certo sentido, se beneficiaram A crítica iluminista identificou a falta de liberdade e de tolerância reli-
com as novas condições urbanas, pois elas abriram oportunidades nas ma- giosa, a exploração dos homens comuns pelos setores privilegiados e a
nufaturas t no comércio, além do surgimento de novas profissões no embalo centralização real como os males que eram obstáculos à construção de uma
das transformações (Thompson, 1979). sociedade baseada na produtividade da razão humana.
Os muitos pobres e os antigos nobres, que não modificaram seus velhos As críticas concentraram-se na forma de organização do poder absoluto,
hábitos e valores, formaram o contingente daqueles que não obtiveram denunciando o luxo como resultado da imoralidade dos altos setores do
benefícios diretos e que lutaram constantemente para manter suas posições. clero e da nobreza. Os privilégios de sangue, tomados como exemplo da
desigualdade, também foram duramente atacados e foi apontada a neces-
As rebeliões sociais e a continuidade das guerras, acompanhadas das
sidade de sua eliminação.
tensões urbanas resultantes do aumento da riqueza e das disputas políticas,
Essas críticas se constituíram na base ideológica de um novo projeto de
favoreceram a centralização política, entendida como mecanismo de ordem
sociedade, definido pelo direito natural e pela liberdade, contrário a qual-
para garantia do progresso. Foi, nesse sentido, comum identificar o abso-
quer forma de privilégio que não decorresse da avaliação da ação produtiva
lutismo de Luís XIV com um tipo específico de progressismo capaz de
dos homens. Essa nova sociedade deveria ser livre e harmoniosa, liberta da
efetuar reformas que asseguraram o fortalecimento da economia francesa,
religião e do Estado, baseada na virtude, no conhecimento e na utilidade
principalmente através de Colbert (Deyon, 1975).
prática da razão (Vachet, 1972).
A radicalização da economia monetária alterou a paisagem europeia.
Essa visão crítica das Luzes fortaleceu-se pela incorporação que fez de
Cresceram as cidades, aumentaram as populações, ampliaram-se as ativi- todos os setores que, de variadas maneiras, sofriam com os procedimentos
dades comerciais, industriais e financeiras. Os bancos passaram a garantir absolutistas e anunciou-se como projeto político de oposição. Os cam-
a circulação e a movimentar a intensificação das trocas. poneses estavam cada vez mais excluídos da vida económica e política;

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os burgueses, embora dominassem a vida urbana, encontravam-se sob o A consolidação desses ideais, na forma de projetos nacionais, atingiu,
controle do Estado. O campo e a cidade eram afetados, indistintamente, inclusive, áreas que, fora da Europa, envolveram-se com as críticas ilumi-
pelas necessidades do luxo da Corte e da manutenção da máquina real, na nistas e as assumiram como horizontes de um novo tempo. O exemplo dos
forma de elevação de contribuições riscais ou criação de novos impostos. Estados Unidos da América foi o caso típico da abrangência desses valores
Os atos de demonstração de insatisfação eram reprimidos em nome da ainda no século XVIII e indicou não a sua dependência, enquanto revo-
ordem e da manutenção da unidade do Estado, aumentavam as contribuições lução das matrizes europeias, mas a efervescência dos ideais de liberdade
para o exército permanente e as despesas com as guerras. Esse contexto consubstanciados na oposição à política colonial britânica.
provocou, como resultado, a criação de uma situação-limite: burgueses, No século XIX, os exemplos italiano e alemão na Europa e o caso
trabalhadores rurais e urbanos se uniram em torno da eliminação da fonte do Japão, na Ásia, representaram formas tardias de desdobramento das
de sua exploração. revoluções burguesas, norteadas por composições sociais e articulações
O surgimento de sociedades científicas e clubes literários como locais ideológicas distintas, mais associadas à modernização do que às revoluções.
importantes de discussão das novas ideias ocupou um papel importante na Os casos inglês e francês são clássicos na visão da historiografia; nesse
divulgação do novo projeto. Os panfletos e os livros produzidos pelo mo- aspecto, é impossível apresentar outros exemplos sem que as referências
vimento dos intelectuais das Luzes emergiram do interior da sociedade do sejam a Revolução Industrial e a Revolução Francesa.
Antigo Regime, demonstrando como a insatisfação poderia estar presente Em todos esses casos observamos que a denominação "revoluções bur-
tanto junto à nobreza quanto junto ao clero e aos burgueses. guesas" indica o desenvolvimento económico e político dos ideais liberais,
Essas ações mais organizadas tiveram como resultado o aumento da na forma da urbanização e da industrialização, e a consolidação da ordem
consciência histórica e do momento vivido pelos homens, elevando os gritos burguesa capitalista.
de liberdade, anunciando a revolução e a nova sociedade.
As revoluções burguesas, resultantes dessa atmosfera crítica, apresenta- 2. As manifestações nacionais e sua dinâmica
ram-se trazendo em si um duplo conteúdo. Organizaram, por um lado, os
novos ideais de liberdade, de igualdade e posteriormente de fraternidade Para facilitar o entendimento do que estamos dizendo, utilizaremos os dois
que modificaram as relações sociais, privilegiando os interesses privados e a exemplos clássicos da Europa Ocidental — a França e a Inglaterra — com
noção de homem produtor e acumulador, ao mesmo tempo que construíram o objetivo de construir as bases dos processos de afirmação dos Estados
um sistema de governo baseado nos interesses públicos da nação, identi- nacionais em sua dimensão local e universal. Dois exemplos de moderni-
ficada com a totalidade dos homens livres que viviam num território. Por zação, calcados na afirmação dos ideais burgueses, mas patrocinados pelo
outro lado, as revoluções burguesas introduziram a identidade do mundo estado: um na Europa — a Alemanha — e outro na Ásia — o Japão. Por
ocidental e do modo pelo qual a sua história dignificou a ação do trabalho último, nossa atenção se concentrará no caso norte-americano.
e da produção (Hobsbawm, 1977).
Além disso, as revoluções burguesas identificaram os burgueses como 3. O caso inglês
portadores do sentido do progresso, universalizando os ideais de uma so-
ciedade urbano-industrial. Os historiadores têm utilizado constantemente o exemplo inglês como aquele
A esses processos de mudança e às suas formas de organização política, que melhor corresponde ao processo de constituição da sociedade burguesa
económica e social é que identificamos como revoluções burguesas. Cada um capitalista. Não apenas porque a Inglaterra exibiu, em sua plenitude, os
dos Estados europeus que trafegaram pelo século XVIII definiram um perfil avanços técnicos e as teorias económicas mais consistentes, identificadas a
de desenvolvimento particular, singular, acrescentando ao conteúdo universal uma gama de intelectuais iluminados como David Ricardo, Adam Smith,
dos ideais liberais características próprias, que os diferenciaram entre si. Stuart Mill, Jeremy Bentham e outros, mas por apresentar uma forma de

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consolidação dos valores burgueses que associou radicalismo com religio- O século XVII foi para a história inglesa, segundo Christopher Hill, o
sidade, lucro com atuação política.
i século da revolução. Durante praticamente 100 anos, a sociedade se en-
A Inglaterra foi reconhecida como um exemplo completo de transfor- volveu num conflito entre rei e Parlamento — representação da sociedade
mações radicais realizadas de tal forma no tempo que seu caráter violento civil. Em 1688, terminou a Revolução Gloriosa e, com ela, as tensões entre
foi atenuado até chegar aos mecanismos de conciliação. A manutenção de rei e Parlamento, instaurando-se, através de um instrumento legal, uma
um regime monárquico até os dias de hoje é a evidência da sedimentação monarquia constitucional, exemplo mais característico da cultura política
de uma cultura política eficaz para o processo de ampliação da economia contratualista (Hill, 1977).
industrial capitalista (Hobsbawm, 1977).
A estabilidade política criou condições para o crescimento económico.
Por isso mesmo é que essas mudanças estão, na historiografia, identi- Em primeiro lugar, porque reconheceu o homem inglês como acumulador e
ficadas com a Revolução Industrial, e não simplesmente com o advento produtor, assegurando sua inserção social pela via de suas ações no mundo
das máquinas. Ligam-se, sim, com a administração dos capitais e com a privado e público, consolidando com isso a noção de trabalho como deter-
organização industrial, transformando a realidade inglesa em modelo para minadora da virtude social e política. Além disso, houve no fim do século
o que se denominou processo de industrialização. As formas de acumula- XVII e início do século XVIII um significativo aumento da população, que
ção de capital, os mecanismos de produtividade associados à liberação de permitiu um alargamento da produção industrial e agrícola, diferenciando a
mão de obra e as inovações técnicas passaram a ser identificados como as Inglaterra de outros Estados europeus, pois, no caso aqui tratado, a harmo-
condições do crescimento industrial (Rodrigues, 1974). nia entre cidade e campo foi o principal agente do crescimento económico.
Karl Marx tomou o exemplo da Inglaterra para discutir o desenvolvi- A institucionalização do mundo do trabalho, associado ao crescimento
mento histórico do capitalismo por achar que este, no caso inglês, já havia das cidades e das indústrias, e as repercussões das novas técnicas no campo
amadurecido. Engels descreveu os processos de miséria e fome nas cidades asseguraram à Inglaterra a posição de pioneira no desenvolvimento dos
industriais usando as cidades inglesas. Charles Dickens transformou os valores liberais.
paradoxos ingleses em temas de seus romances, explorando desde a miséria As condições particulares do desenvolvimento inglês fizeram com que o
da infância em Londres até os sentimentos de medo da multidão nas ruas da crescimento de sua riqueza tanto se realizasse nos campos como nas cidades.
capital inglesa (Marx, 1976; Engels, 1973; Dickens, 1979). A eliminação das barreiras geográficas unificou os mercados e as áreas de
Entretanto, a história da Inglaterra não pode ficar associada meramente produção, beneficiando a expansão do capital na forma do aumento da
a um modelo de referência. Torna-se necessário investigar os processos circulação de mercadorias e pelos investimentos industriais, alicerçados
que atuaram na afirmação de uma realidade tão nova que acabou por se num bem organizado sistema bancário.
tornar modelo.
Concretizaram-se, dessa forma, na Inglaterra, as condições para o de-
A história do caso inglês começa no ponto onde a maioria das histórias senvolvimento das transformações de qualidade através de mudanças eco-
dos países europeus se inicia: nos tempos modernos. A atuação inglesa no nómicas e políticas. Entretanto, para além das transformações económicas,
humanismo renascentista foi fundamental, basta lembrar a produção de que já começaram no fim do século XV, as garantias de continuidade das
Thomas Morus — chanceler e xerife de Londres —, profundamente envol- chamadas leis do reino, inscritas na conhecida Magna Carta, realizadas
vido com a fé católica, que morreu pela sua fé no episódio do juramento pelo movimento da Revolução Inglesa prepararam o terreno para que a In-
da Lei de supremacia de Henrique VIII (Morton, 1972). glaterra assumisse a liderança no desenvolvimento industrial (Falcón, 1986).
No século XVII, Hobbes e Locke construíram as bases dos procedimen- Vejamos, sucintamente, o que ocorreu. Embora no século XVII a socie-
tos contratualistas no plano da sociedade e da política, criando um espaço dade inglesa tivesse defendido, com todo o vigor, os direitos civis, privados
de desenvolvimento capaz, no caso de Locke, de se contrapor, através das e públicos, e transformado a vida política, a revolução industrial não deve
experiências sensoriais, às ideias inatas de Descartes (Skinner, 1996), ser analisada como simples consequência de tais transformações, pois a

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revolução do século XVII não possuía um sentido burguês em seu início, Foram esses conflitos que originaram a Revolução Inglesa do século
era um movimento de oposição à centralização real e combatia o projeto XVII, anunciando uma nova etapa de sua história, com a consolidação dos
de implantação do absolutismo.
valores burgueses através da monarquia limitada de caráter constitucional.
A consciência política que fez a sociedade se levantar contra o rei derivou Uma pergunta que sempre surge quando um historiador interpreta o sé-
das modificações ocorridas desde o fim do século XV e, paradoxalmente, culo XVII inglês é: Como, depois de um século de guerras civis, a Inglaterra
promovidas pela reforma de Henrique VIII. Com o intuito de estabelecer a pôde no século XVIII realizar a sua revolução industrial? E é em direção às
centralização, Henrique VIII elaborou um movimento de reforma religiosa possíveis respostas que podemos encontrar elementos que podem explicar
que conduziu a um processo de ampliação do poder real, na medida em que o desenvolvimento inglês.
fez com que todas as terras dos católicos viessem a se tornar propriedade O primeiro elemento importante foram as guerras civis do século XVII,
real. Com isso, haveria uma redução significativa do poder do Parlamento, que tiveram como vitoriosos os homens comuns da sociedade inglesa. Os
uma vez que, distribuindo essas terras entre homens de sua confiança, o rei setores burgueses foram os que mais fortemente se bateram pela autonomia
poderia aumentar a sua representação no Parlamento (Hill, 1977). com relação ao poder real, associados aos interesses comerciais e financeiros
O resultado, no entanto, foi negativo. Apropriando-se das terras por de Londres. Juntos derrotaram os exércitos reais e derrubaram, durante um
desígnio real, os gentis-homens ingleses passaram a defender a liberdade breve período da república de Cromwell, a monarquia.
tradicional dos proprietários de terras na Inglaterra, assegurando a auto- O segundo elemento originou-se da configuração da fé religiosa na
nomia do Parlamento. sociedade inglesa, especialmente pela não separação entre fé e ação, que
Sucederam-se tensões durante todo o século XVI entre reis e Parlamento, redundou na afirmação de uma ética e de uma moral capazes de desenvol-
mas a vida económica inglesa se desenvolveu. Com a reforma de Henrique ver uma disciplina de trabalho e de poupança que garantiu a fundação do
VIII, houve um aumento das áreas cultivadas e uma presença maior dos mundo do trabalho e da ordem na nação inglesa (Weber, 1995).
produtos ingleses na economia espanhola; aumentaram as rendas dos pro- O terceiro elemento derivou dos dois primeiros e pode ser assim ex-
prietários, mostrando-lhes que o caminho estava no aumento da produção presso: durante os conflitos civis, a sociedade continuou a trabalhar e as
como única alternativa de manutenção da riqueza. guerras circunscreveram-se às regiões onde os impactos sobre a economia
Isso provocou contradições, uma vez que o poder real, cada vez mais não foram tão significativos.
limitado, não possuía meios de acumular recursos para manter sua estru- Por último, o século XVII produziu um movimento de renovação de visão
tura de poder. Também isso, por mais surpreendente que fosse, auxiliou de mundo ancorado numa perfeita ligação entre tradição e modernização.
o desenvolvimento inglês, pois fez com que surgissem as companhias de Além das consequências percebidas em solo inglês, importa destacar como o
século XVII anunciou a possibilidade de ampliação da ação inglesa no mun-
comércio e a política colonial, principalmente com Elizabeth I, no fim do
século XVI. do com a ocupação dos peregrinos das treze colónias da Nova Inglaterra.
Para concluir, ao lado desse processo de luta pelas liberdades do reino,
Por maiores que fossem os conflitos, havia na Inglaterra uma consciên-
entendido como o lugar da sociedade, houve três condições que se realiza-
cia clara da atenção para a produção. Com as crises do século XVII, essas
ram plenamente na Inglaterra moderna.
fontes de recursos apresentaram problemas, a manutenção da política
A primeira, já mencionada várias vezes por nós, foi a acumulação de
mercantilista inglesa tornou-se muito custosa, porque envolveu guerras,
capital, ou melhor, os caminhos trilhados pela sociedade inglesa desde o sé-
principalmente com a França, e a necessidade de recursos indicou como
culo XVI que permitiram uma concentração de riquezas capaz de reorientar
única saída o aumento das rendas reais através do fiscalismo ou aumento
a economia. A história desses modos de acumulação de capitais começou
de impostos. A aplicação dessa política produziu graves consequências e
no fim da Idade Média, quando se modificaram os estatutos tradicionais
reintroduziu o embate entre rei e Parlamento.
de servidão e as antigas classes senhoriais foram obrigadas a implementar

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novos processos de produção, muito bem assinalados por Marx, no Ca- elementos semelhantes aos primeiros tipos, principalmente no que diz res-
pital., quando se referiu às formas de obtenção de renda nesse período de peito a sua dinâmica (Iglesias, 1996).
passagem para os Tempos Modernos (Marx, 1976). Os cercamentos do século XVII podem ser considerados como sínteses
O que deve ser assinalado como importante nessas formas não são de todas as transformações que levaram à consolidação do capitalismo na
apenas os resultados obtidos pelos proprietários de terras, mas o aumento Inglaterra. Em primeiro lugar, porque sua especialização exigiu uma arti-
dos mercados, a introdução de uma economia monetária, a circulação de culação fundamental com o mercado. Como se concentraram na atividade
mercadorias, o cultivo de novos produtos agrícolas, a incorporação de novas de produção da lã, a realização da renda dependeu dos mercados, de novas
técnicas de plantio etc. Tão importante quanto os aspectos anteriormente tecnologias de beneficiamento do produto e do emprego de novos tipos de
mencionados foram as mudanças sociais que daí decorreram. A passagem ovelhas. O crescimento dessa atividade impôs novas formas de organização
da forma de obtenção de renda sobre o trabalho à consolidação do trabalho nas indústrias urbanas, representando o fim do sistema clássico das corpo-
assalariado aumentou a capacidade de produção de riqueza em outros setores rações, aumentando a oferta de empregos urbanos e atraindo a população
que não apenas a aristocracia. Pequenos e médios proprietários surgiram, rural para a nova expressão da riqueza — as cidades.
ao longo desse processo, assumindo funções económicas, primeiro com- Mas o movimento de crescimento urbano e de sua economia foi devedor
plementares, como a circulação, porém mais tarde, controlando bancos e ainda dos cercamentos do século XVIII em outro aspecto. Examinando
indústrias (Dobb, 1978). os seus efeitos, nota-se que a opção pelos rebanhos de ovelhas produziu
Essas modificações fizeram-se, no entanto, à custa de muitas lutas, prin- um grande impacto sobre a população rural. O seu principal aspecto foi
cipalmente por parte daqueles que foram excluídos do processo inicial de a liberação de mão de obra, que acabou por gerar duas formas diferentes
acumulação. de desenvolvimento. A primeira situou-se no próprio campo e foi respon-
Verificou-se isso através do chamado processo de cercamento dos cam- sável pelo desenvolvimento das formas domésticas de artesanato, fosse o
pos, que se iniciou no século XVI e que teve como objetivo racionalizar o artesanato disperso ou concentrado em determinadas áreas. Isto porque,
uso da terra, dando-lhe uma função específica de acordo com as tendências diferente das áreas de produção agrícola, as especializadas em ovelhas não
de aumento das rendas e de desenvolvimento dos mercados. Dessa forma, precisavam do mesmo número de trabalhadores destas, liberando assim
os cercamentos podem ser identificados, desde o século XVI, com uma mão de obra (Falcón, 1986).
tendência de produção que já mostra a força de uma economia capitalista A segunda concentrou-se na inter-relação do campo com a cidade e, num
(Iglesias, 1996). primeiro momento também vinculou-se à liberação de mão de obra, que,
Esses cercamentos, que aumentaram a capacidade de obtenção de renda nas cidades, se incorporou tanto às novas indústrias quanto ao comércio
pela profissionalização de sua produção, expulsaram famílias que viviam da internacional.
agricultura e que tiveram como alternativas a concentração de seu trabalho Houve, além disso, uma outra dimensão dos cercamentos do século
no artesanato da lã e o afastamento dessas unidades cercadas, ocupando XVIII, tão importante quanto as anteriores, que dizia respeito ao processo
novas áreas e funcionando como alargadores da fronteira agrícola. O im- de especialização e divisão do trabalho. As áreas cercadas foram uma espé-
portante é perceber como a lógica desse movimento engendrou formas de cie de laboratório para a organização do trabalho manufatureiro e para o
ampliação da produção e novas condições de fazer riqueza (Arruda, 1990). desenvolvimento de técnicas de racionalização da produção eficazes para
Se os cercamentos do século XVI estavam envolvidos com a produção o aumento das rendas. O resultado, em geral, dessas transformações no
agrícola, os dos séculos XVII e XVIII já mostravam uma qualidade dife- campo foi a expansão técnica da produção rural, sua especialização e, por
rente. Basicamente dirigidos para a atividade de organização de matérias- fim, o crescimento das manufaturas rurais.
primas para o desenvolvimento industrial e urbano, estes cercamentos Essas alterações só podiam ganhar consistência e adquirir a forma de um
concentraram-se na produção da lã. Seu exame mostra-nos como existiram processo porque a continuidade de seu desenvolvimento articulou-se dire-
O S É C U L O XX AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

tamente com a atividade económica que incentivou essas transformações: em que despossuídos ingressaram naquilo que Marx denominou exército
o comércio interno e externo. Foram os resultados positivos das atividades industrial de reserva (Marx, 1976).
mercantis inglesas, principalmente a partir do século XVII com as compa- A complexidade social não foi esvaziada pelo programa de desenvolvi-
nhias de comércio, que serviram de sustentação para essas mudanças, pois, mento; ao contrário, o paradoxo da revolução industrial foi ter produzido
por serem um setor de ponta, aceleraram o crescimento da produção interna
a contradição entre o capital e o trabalho e uma nova classe social — o
e produziram um tal volume de capitais que possibilitou investimentos no
proletariado urbano e rural. Acentuaram-se as diferenças sociais, que
campo e na cidade, na forma de compras diretas de terras, de organização
ficaram mais explícitas pela transparência dos mercados, indicando uma
de indústrias, mas, principalmente, da estruturação do setor bancário.
relação direta entre o ganho e as formas de vida. Ao ficarem patentes as
A presença desses capitais fez com que as inovações técnicas se proces-
diferenças e ao tomarem consciência da mecânica do sistema, os motins e
sassem mais rapidamente através dos empréstimos gerenciados pelos bancos.
as rebeliões se produziram por conta de lutas por terras, por controle de
A afirmação do sistema bancário potencializou a circulação e garantiu o
atividades urbanas e, principalmente, por falta de alimento.
aumento da velocidade de circulação, gerando lucros incessantes e promo-
Esses motins, entretanto, não possuíam uma ideologia de unidade e
vendo a base que possibilitou a revolução industrial (Iglesias, 1996).
respondiam a situações conjunturais imediatas, sem representar a produção
Os impactos sociais foram evidentes, entretanto manteve-se a marca
constante do período que vai do século XVI ao século XVIII, a riqueza e de um outro modelo de sociedade (Rude, 1982).
a pobreza corriam juntas. As transformações industriais deram uma dinâmica nova à sociedade
Essas novas formas de desenvolvimento, embora pouco a pouco elimi- inglesa, por um lado, consolidando as ideias de representação política e,
nassem as diferenças entre campo e cidade, mantiveram a presença da por outro, construindo uma referência para as ideias de soberania popular
perspectiva tradicionalista bem como as diferenças sociais e espaciais. A e direitos civis.
não eliminação dos interesses agrários desse processo fortaleceu o desen- As influências de Adam Smith, Robert Malthus, Jeremy Bentham e
volvimento de uma nova aristocracia de proprietários, além do crescimento David Ricardo, associadas à ética protestante e ao aumento de mercado,
e do enobrecimento de setores agrários vinculados à gentry, nobreza pro- estabeleceram uma sociedade que apoiava a introdução do livre-comércio
prietária de terras. e a consolidação da Inglaterra como oficina do mundo. O aumento dos
Um dos segmentos sociais atuantes nessas mudanças, os comerciantes e lucros, o crescimento industrial e comercial, bem como a acumulação de
homens de negócios, que já no século XVII haviam contribuído para o cresci- capitais, prepararam a eclosão da Revolução Industrial.
mento mercantil inglês, transformaram-se nos empresários empreendedores Em linhas gerais, assistiu-se, no final do século XVIII, à passagem da
da nova economia industrial. É bom que se reafirme que o envolvimento manufatura para a fábrica moderna, onde a produção das mercadorias era
com a economia, embora definisse um círculo de interesses privados, jamais feita em série. A produção domiciliar deu lugar ao trabalho organizado e
afastou da vida pública esses homens que, como acumuladores e produtores, especializado. O agente desse processo, o empresário, dono dos capitais,
constituíram-se em exemplos para a sociedade. Eles atuaram politicamente, atuou como agente produtivo e organizador da racionalidade na produção.
controlando os empregos e as atividades marginais do pequeno comércio. Essa racionalidade, escorada, num primeiro momento, na observação da
Outros segmentos populares também foram tocados pelas novas ideias. vida humana nas fábricas, caminhou em direção a um processo de complexi-
Os arrendatários livres, os pequenos proprietários e os trabalhadores dade com o advento da máquina, que exigiu um novo padrão de organização
rurais em geral, muitos deles antigos proprietários excluídos pelo processo industrial e novas relações de trabalho (Falcón, 1986).
de cercamentos, embora mantivessem a sua sobrevivência, sofreram as Dessa forma, mais importante que as máquinas em si mesmas foi a in-
pressões da nova racionalidade económica e, a curto prazo, funcionaram trodução do maquinismo, do mecanismo de associar o trabalho à produção
como instrumentos importantes do aumento do lucro do capital na medida e ao lucro, com a participação do trabalhador mas sem que este se desse

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O S É C U L O XX AS R E V O L U Ç Õ E S B U R G U E S A S

conta dos novos procedimentos de exploração e dessa maneira fosse levado Entretanto, para nós, talvez as ferrovias sejam o setor que sintetiza a
a se encantar com os novos recursos tecnológicos. grandiosidade dessas transformações. Não só porque incorporou diretamen-
Embora, na Inglaterra, tenha ocorrido o movimento dos ludditas ou te todo o aperfeiçoamento técnico, mas porque também teve como função
quebradores de máquinas, a ideologia do maquinismo e da automação já essencial ligar áreas de produção a áreas de matérias-primas, aumentando
penetrava no fundo do coração dos homens, apresentando-se como novidade a velocidade de incorporação destas às indústrias e promovendo o aumento
e diferenciando os trabalhadores. Além disso, verificou-se a legitimidade da da oferta de produtos. Mas há um outro aspecto tão importante quanto esse
razão burguesa pela aproximação entre a valorização do trabalho e o de- primeiro: as ferrovias integraram os mercados, aumentando-os quantitati-
senvolvimento da ciência, produzindo uma aparente atmosfera de felicidade vamente. Esse processo também não se esgotou aí: o desenvolvimento das
ou de progresso futuro, escondendo suas vinculações com as necessidades ferrovias exigiu uma reorganização das indústrias e impôs o surgimento de
próprias de um novo tipo de economia e procurando apresentar-se de estabelecimentos industriais especializados na construção de locomotivas e
maneira a se contrastar com a vida em cidades como Manchester, tão bem trilhos, assim como provocou impactos sobre as áreas de formação de mão
observada por F. Engels em seu livro sobre as condições de vida do prole- de obra, principalmente na engenharia.
tariado inglês (Engels, 1973). Foi esse o caminho nacional da Inglaterra. O Estado inglês se fortaleceu
não apenas internamente, como representação dos interesses dos empresá-
3.1. A revolução industrial inglesa e o processo de desenvolvimento rios, mas sobretudo externamente, através de uma política de obstáculos
ao desenvolvimento industrial em outras áreas, pois só assim seria possível
A Revolução Industrial, no cenário inglês, resultou da ação conjunta da manter a taxa de desenvolvimento inglesa. Esse processo de dependência
tradição renovada ao longo dos séculos XVI e XVII, da ampliação da ação ficou conhecido como divisão internacional do trabalho e fez com que a
mercantil inglesa, dos cercamentos, do crescimento das cidades e das indús- Inglaterra fosse a potência europeia hegemónica no mundo até o fim do
trias, mas também dos esforços de um grupo de economistas e empresários século XIX (Rodrigues, 1974).
que se ocuparam, com constância, em pensar os mecanismos de otimização
dos elementos anteriormente descritos. Assim, a Revolução Industrial não 4. A via francesa: a modernização pela revolução
foi apenas uma mudança na paisagem, mas a afirmação de uma nova ciência
aplicada à produção (Dobb, 1978). 4.1. As bases de formação do Estado francês
A segunda metade do século XVIII (1750) é frequentemente indicada
Considerado também como modelo clássico no processo de implantação da
como aquela que marcou o início da Revolução Industrial. Seria mais pru-
vida burguesa, a França, se comparada com a Inglaterra, teve uma história
dente considerá-la apenas como um marco simbólico de um processo que
marcada pelos conflitos e pela violência. A radicalidade desses conflitos
foi longo e lento em sua maturação. Melhor seria associá-la às transfor-
resultou do modo como se processaram os mecanismos de constituição da
mações ocorridas a partir de 1769, com o aperfeiçoamento da máquina a
sociedade de corte na França e da sua tradição feudal, ao mesmo tempo
vapor por James Watt, que assegura o impulso necessário ao crescimento
aristocrática e guerreira.
da industrialização por tornar mais eficaz o processo de utilização de força
Para termos um ponto de começo talvez seja interessante dizer que a
ou energia e consolidar as indústrias dos setores de tecelagem, cerâmica,
França foi a primeira unidade territorial a sofrer um processo de identidade
mineração e metalurgia.
política, e isso decorreu da permanência das instituições do antigo Estado
Podemos estabelecer, em termos de Inglaterra, a importância das técni- carolíngio. Mas, se por um lado essa tradição serviu de base para esse van-
cas de desenvolvimento da máquina a vapor, que propiciou o aumento da guardismo, só comparado ao Estado da Sicília, por outro, pela forma de
produção dos setores têxteis e da indústria pesada (mineração e metalurgia). sua constituição, mostrou como o poder real teve que aceitar a autonomia

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dos senhores proprietários de terra, projetando uma difícil relação entre o real, fosse pela lentidão das comunicações ou pelos obstáculos produzidos
poder central e o poder local (Anderson, 1983). pelo poder local.
Durante os últimos séculos da Idade Média, a situação apresentava Essa divisão, erradamente associada à oposição campo/cidade, criou
tendências a transformações. O movimento das cruzadas e as mobilizações um dualismo territorial, político e económico. No campo, em geral, man-
contra as heresias transformaram a nobreza francesa na defensora do pa- tiveram-se as relações clássicas do período medieval, o que determinou
trimónio católico do Ocidente. um controle político sobre a população rural, que beneficiou os senhores
Assumindo a função de defensora da fé, a sociedade francesa passou a se proprietários de terras, constituindo-se no elemento central de produção
beneficiar do alargamento do poder do papado e a projetar seus interesses de rendas através da manutenção dos antigos impostos. Outro aspecto im-
para fora do seu território. As lutas entre o papado e o império pelo domínio portante foi que esses senhores continuaram a ter o monopólio das armas
da Europa, e em especial da Itália, fez com que a França se tornasse a única e asseguraram a sua função militar (Anderson, 1983).
potência em condições de incumbir-se da defesa da fé católica e fosse eleita, Mas, mesmo considerando a estrutura rural, percebe-se que essa genera-
pelo papado, como o grande Estado católico da Europa. Essa posição só foi lização produziu situações singulares. As regiões mais afastadas de Paris e
perdida no fim do século XIV, devido à politização da Igreja e às tensões as áreas de fronteira experimentaram um processo de mudanças económicas
entre os membros da cúpula romana, que redundaram no cisma de Avignon. decorrentes das relações comerciais com outros espaços europeus, promo-
Essa crise do século XIV anunciou mudanças. Aos poucos a confiança vendo não só o aumento da riqueza dos proprietários, mas alterações nas
do papado na França diminuiu e ele passou a investir no mundo ibérico. O relações sociais. Essas modificações produziram o alargamento da economia
resultado foi a perda da autoridade e da hegemonia da França na Europa. de trocas e fundaram uma nobreza provinciana voltada para a produção e
Entretanto, devido a sua posição central e a sua força militar, ela não po- o comércio, mas que manteve suas atitudes tradicionais no que diz respeito
dia ser descartada de qualquer maneira. Assim, como um mecanismo de à cultura política, onde qualquer mecanismo de intervenção real era visto
compensação, o papado, através da Concordata de 1516, assegurou ao rei com maus olhos e provocava embates (Dobb, 1978).
da França — Francisco I — a condição de soberania sobre o seu território, Ao lado dessa nobreza renovadora encontramos áreas, como a Bretanha,
uma vez que, além de ter o controle dos mecanismos da tradição real, ele onde se mantiveram as velhas relações de servidão, com a manutenção do
passou a ser o responsável pela nomeação do corpo eclesiástico, o que lhe espírito feudal e a vontade de autonomia.
permitia estabelecer uma rede de relações que, partindo de Paris, a ela Se o século XVI trouxe consigo essas mudanças no campo, as modifi-
voltavam, ao mesmo tempo que possibilitava a constituição de rendas reais cações não foram menores e com menos impacto nas cidades. A política
oriundas dos pagamentos desses cargos (Anderson, 1983). mercantil de Francisco I e sua estratégia diplomática asseguraram um
Esse modo de centralização deu ao rei autonomia com relação à socie- crescente processo de expansão dos negócios e com esse crescimento as
dade, uma vez que ele não dependia mais das circunstâncias de obediência cidades adquiriram uma nova função no cenário francês. Ao lado de suas
e reconhecimento dos seus súditos, permitindo ao rei organizar a sua funções mercantis e industriais, as cidades transformaram-se em centros
economia na direção da expansão territorial com o objetivo de manter a de atuação da burocracia real, o que propiciava o controle do campo. E, na
unidade do território e dispor de um mecanismo de novas rendas por conta medida em que seus negócios decorriam das ações políticas reais, as cidades
da política mercantil. passaram a depender muito mais do rei do que o campo (Anderson, 1983).
O resultado foi um processo de dualidade no território que projetou uma Com isso, estruturaram-se modos renovados de ampliação de rendas
maior autonomia nas decisões locais, constituídas, no campo da política, tanto no âmbito do rei como no da sociedade em geral. Como se mantiveram
pelo modelo tricurial. Ou seja, a sociedade de ordens ou estamentos se as formas de autoridade local, a médio prazo esse dualismo foi responsável
beneficiou com a centralização territorial sem que esta interferisse radi- pela constituição de obstáculos ao próprio processo de centralização, não
calmente sobre os poderes locais, diluindo também a ação administrativa só pelas particularidades de cada uma das áreas, mas pelo reconhecimento,

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em ambas, da necessidade de controle da máquina política, transformando Por outro lado, por parte dos ingleses e alemães, a França desconfiava que
a França num espaço de tensões.
o apoio aos huguenotes também poderia trazer, embora em menor escala,
O modo pelo qual essas disputas pelo poder se revelaram foi próprio do prejuízos, pois configuraria uma atitude de isolamento que redundaria em
século XVI — a partidarização da sociedade francesa seguiu o caminho perdas económicas e políticas.
dos conflitos religiosos. A segunda metade do século XVI foi marcada Henrique III, diante dessa situação, optou por aquilo que lhe pareceu
pelas guerras religiosas na França. Inicialmente, apresentando um caráter mais confiável e passou a apoiar os setores protestantes, reconhecendo
francês, os conflitos acabaram por adquirir um sentido europeu e os adeptos Henrique de Navarra como seu sucessor. Embora a resolução real fosse re-
do catolicismo receberam o apoio da Espanha, que nesse momento estava sultado de um cálculo de sobrevivência, concretamente a massa protestante
sob a autoridade de Filipe II, denominado defensor do papado e com um era, no sentido quantitativo, muito menor que a massa católica. No caso
projeto de tornar-se o imperador do mundo. O outro lado era formado específico do volume de riquezas os protestantes levavam vantagem. Mas
pelos huguenotes, protestantes de inspiração calvinista, que controlavam essa vantagem poderia ser perdida com o isolamento político de Henrique
o comércio e os bancos (Goubert, 1971). de Navarra, além de provocar restrições à circulação e aos negócios.
Para observarmos como essa divisão espelhou as disputas pela Coroa Por último, o sucessor de Henrique III deveria fazer a França retomar as
basta lembrar que os dois grupos tiveram como líderes os pretendentes à suas antigas posições de prestígio no cenário europeu e isso só seria concre-
Coroa da França: os católicos chefiados pela família Guise e os protestantes tizado se ela demonstrasse a sua vantagem sobre os outros, estabelecendo a
pela família Bourbon. paz no que concerne aos problemas religiosos, retomando suas ligações com
A partir de 1562, esses conflitos transformaram-se em guerra e desem- o papado e adquirindo condições de passar a ser o árbitro mais competente
bocaram na célebre Noite de São Bartolomeu, fato dramático na história da no trato das questões religiosas.
França que na época radicalizou os conflitos pela eliminação de qualquer Em 1594, Henrique de Navarra assumiu o trono francês como Henrique
canal de ligação entre os dois lados. IV e como católico. Segundo os comentários da época, "Paris bem que valia
A tensão evoluiu durante o reinado de Henrique III (1574-89), princi- uma missa". Entretanto, muita água havia rolado durante esse período de
palmente na década de 1880, quando os exércitos de Henrique de Guise guerras religiosas. A politização da sociedade foi apenas um dos aspectos
atacaram os do líder protestante, Henrique de Bourbon. Entretanto, esse decorrentes do conflito e enquanto tal agiu no sentido de reordenar as
aumento dos conflitos não resultou unicamente das tensões internas. O que práticas políticas da monarquia francesa.
estava em jogo, no fim do século XVI, era a própria condição de existência A sociedade francesa queria a paz e lutou por ela, mas não julgava
da França como espaço político soberano. O desenrolar geral das reformas que essa luta podia ser resolvida sem que a unidade política da França se
concretizasse e isso dependia agora do modo pelo qual a autoridade real
religiosas e a atuação pesada do papado no sentido de barrar o desenvol-
reconhecesse os direitos dessa sociedade.
vimento do protestantismo asseguravam espaço político para o projeto de
Como os interesses continuavam apresentando diferenças acentuadas,
Filipe II. Nesse momento, os domínios do monarca espanhol avançavam
seria muito difícil projetar uma unidade se a estrutura permanecesse a
sobre a Europa, tanto na Península Ibérica, com a união das duas coroas,
mesma. Faziam-se urgentes reformas que deveriam mostrar a boa vontade
quanto no Império, pelas pretensões de Filipe II (Ogg, 1974).
do soberano em atender ao conjunto da sociedade mas também aproveitar
A França transformou-se no espaço de decisão para a política do rei de
o seu resultado para estabelecer a autoridade do rei como algo que estava
Espanha e Portugal; dominada a França, estava aberto o caminho para a
acima da sociedade e associá-lo à única possibilidade de ordem.
expansão na Itália e para a retomada de parte dos Países Baixos, consoli- Henrique IV conseguiu fazer com que a sua soberania fosse reconhecida,
dando o domínio sobre o Mediterrâneo europeu e criando as bases para sua ao definir como base de seu reinado a organização administrativa e a pa-
penetração no Norte da África. Assim, a França era o fiel de uma balança. cificação. A primeira demonstração veio com o Edito de Nantes, de 1598,

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que estabeleceu a liberdade religiosa para os calvinistas, reconhecendo-os não ocorresse primeiro a legitimidade da autoridade central. Esse modelo
como homens da França e garantindo-lhes a manutenção de suas atividades. no fim do século XVI, ainda dependia de ações que reconheciam a impor-
Entretanto, a grande realização de Henrique IV ficou por conta do modo tância dos ricos protestantes, fazendo com que outros setores se sentissem
de usar a figura do primeiro-ministro. A partir do seu reino, o primeiro- excluídos desse processo (Anderson, 1983).
ministro passou a atuar como gerente do Estado, como muro para onde As possibilidades de solução só se verificaram no reinado de Luís XIII
todas as queixas deveriam convergir, possibilitando ao rei um maior espaço (1610-1643) com a atuação do cardeal de Richelieu. Em termos gerais, a
para as decisões, assegurando-lhe a função de árbitro. política do primeiro-ministro deu continuidade ao reforço do poder central,
A força de Henrique IV ficou também associada a Sully, seu primeiro- mas realizou esse objetivo através de uma inversão da política de Sully.
ministro. Homem extremamente competente e cuidadoso, possuía um gran- Talvez uma imagem possa tornar compreensível a comparação. Para Sully, a
de conhecimento da situação da França e realizou um projeto de reformas França vinha a Paris; para Richelieu, Paris vai à França.
que ajudou a consolidar a autoridade real e a pacificação. Essa inversão alterou substancialmente a ação do Estado e pode ser
O cerne do projeto de Sully decorria da sua avaliação da função política reconhecida como aquela que conduziu a concretização da centralização.
do rei. Dado que o rei apresentava-se como representante da ordem, a ma- Entretanto, uma certa continuidade pode ser verificada no reconhecimento
nutenção desta decorria de um processo diferenciado de ações económicas de que a política real deveria atender de forma diferenciada às demandas
que tiveram como base a possibilidade de integração do campo à cidade da sociedade francesa.
pela intermediação do Estado. O Estado foi o lugar para onde convergiram As reformas de Sully, por um lado, haviam encaminhado um resultado
as diferenças e de onde elas voltaram marcadas pelo selo real. mais positivo para as esferas urbanas, notadamente reconhecidas como de
Com isso, Sully construiu uma forma de manter o crescimento da ação influência protestante, de modo que foi criado um desequilíbrio político
do rei sobre a sociedade, criando as bases de um processo racional de cen- que deveria ser compensado. Por outro lado, Paris havia sido transformada
tralização. Suas reformas projetaram um grande conjunto de medidas com numa cidade sitiada por pressões de variados graus. As reformas anteriores
o intuito de atender às despesas reais e fomentar a riqueza da sociedade. também não haviam diminuído a politização da sociedade francesa, o que
Assim, a abertura de mercados internos e externos, bem como os incen- inviabilizou grande parte dos projetos de Sully (Anderson, 1983).
tivos agrícolas, adquiriu a função de organizadoras da unidade, pois con- Diante desse quadro tornou-se necessária uma demonstração de força
vinha a todos, independentemente dos interesses específicos. Além disso, a que antecederia as reformas. Essa demonstração tinha como objetivo de-
valorização das terras transformava-as em lugar de investimento de riquezas finir que o poder maior na França era o rei como representação corporal
urbanas, diminuindo a distância entre cidade e campo e intensificando as de todos os franceses, que o soberano se encontrava acima deles e era o
suas relações para, ao fim, estabelecer uma unidade cultural. único capaz de enxergar mais longe e vislumbrar as medidas que deveriam
Como o Estado passou a assumir um papel de destaque, foi preciso ser tomadas para manter a soberania da França e de sua sociedade.
reorganizar os mecanismos económicos para agilizar a autonomia do rei e Elaboraram-se, assim, os princípios norteadores do Estado absoluto,
facilitar o desenvolvimento dos mercados. Paris cresceu não apenas como associando o corpo do rei ao corpo social e revelando a morada do rei
capital da França e sede do poder, mas como centro articulador da política como a França em ponto menor, onde eram jogados os destinos maiores
de Sully, o que transformou a cidade em lugar de circulação e prestígio, do estado (Anderson, 1983).
aumentando a população e a demanda por serviços, abrindo novas opor- A demonstração de força ficou por conta da perseguição dos huguenotes
tunidades e fazendo crescer os setores urbanos, desde os comerciantes até e ocupou a atenção do primeiro-ministro até 1629, quando foi promulgada
os trabalhadores assalariados. a Graça de Alais, restituindo a liberdade aos protestantes. Na verdade,
A estratégia de Sully reconhecia as dificuldades, em consequência das esse tipo de ação teve um duplo objetivo. Em primeiro lugar, ela atendeu
diferenças no território francês, de realizar uma unificação económica se à demanda da maior parte da população francesa e acenou positivamente

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para o papado, reconhecendo como correta a política da Igreja católica ordem e a imposição da lei, além do fornecimento de informações sobre o
no Concílio de Trento. O efeito de demonstração abriu espaço para os que se passava na sociedade.
franceses retomarem a sua posição de defensores da fé, num momento de Elas representaram a consolidação do poder real sobre o poder local,
crise na Península Ibérica, transformando a França novamente em potência fosse quando atuavam, nas áreas locais, representando os interesses do rei
hegemónica (Goubert, 1971).
e da França, fosse quando atribuíam a determinadas ações da sociedade o
Fixada essa primeira base, a segunda dizia respeito à reorganização sentido de oposição à vontade do rei. Também funcionaram como redutores
interna do Estado. Havia que se considerar dois aspectos. Um, ligado ao do poder do clero, quando patrocinaram projetos de reformas nas áreas
modo mais eficaz de tornar Paris presente na França. O outro, à separação, locais para atender às demandas dos novos segmentos sociais em detrimento
em Paris, da excelência do poder com o reforço da sociedade de corte, me-
dos setores do clero.
canismo através do qual se criava um conjunto de nobres potencialmente A atuação dessas intendências, no campo e nas cidades, supunha a
legitimadores da autoridade do rei e ávidos por ajudarem nos negócios do subordinação absoluta da sociedade ao Estado e provocou o surgimento
Estado, seja através de cargos administrativos, seja através de doações de de movimentos sociais de oposição que as associaram à centralização real.
suas riquezas, isolando a Igreja, que perdia parte de suas rendas. Entretanto, a ação real imediata desmontou esses movimentos. Em face
Entretanto, o clero também fazia parte dessa sociedade de corte e, por deles, sempre que ocorriam, a ação real apresentava-se como de salvação
isso, o alto clero francês, oriundo em sua grande maioria da nobreza pro- da sociedade, culpando os burocratas pelos excessos (Rude, 1982).
prietária de terras, participou intensamente como conselheiro dos negócios Por outro lado, no exercício de sua autoridade, as intendências ocuparam
do reino.
os espaços das áreas locais através da cooptação das famílias locais mais
Os custos dessa reforma foram muito altos e dependiam de um novo ilustres e as transformaram numa rede de informações, o que favoreceu a
sistema para a obtenção de rendas reais que só poderiam ser obtidas através rapidez da intervenção no caso de sedição.
de ações fiscais. Entretanto, esses expedientes só seriam aplicados depois que A distância entre o rei e a sociedade alargou-se e, com isto, fortaleceu-se
estivessem consolidadas as bases de controle do Estado sobre a sociedade e a autoridade real, por se manter fora das tensões que diziam respeito ao
para isso era fundamental que cada palmo de terra na França viesse a ser cotidiano da vida e não às causas nobres que pesavam sobre os ombros do
conhecido (Rude, 1982).
rei, que tinha de cuidar dos destinos da França.
A introdução dos censos urbanos e rurais teve como objetivo assegurar A parcimônia, a tranquilidade e a justiça eram atributos que garantiam
esse conhecimento, facilitando a aplicação de políticas fiscais diferenciadas. ao rei a soberania. No caso de Henrique III, no entanto, as questões eram
Dessa maneira a burocracia real foi sobrepondo-se aos poderes locais sem mais complexas. Casado com Ana d'Áustria, de uma família declarada-
tirar deles, nesse momento, qualquer forma simbólica de poder. No entan- mente inimiga da França, e protestante, o rei se distanciou realmente da
to, os funcionários reais foram sendo reconhecidos, principalmente pelos sociedade que governava. O seu primeiro-ministro, pelo uso que fez de sua
setores explorados, como interlocutores entre eles e o rei, desmobilizando competência política, acabou por assumir não apenas as funções de gerente
desta maneira a autoridade local e concretizando-se com a formação dos do Estado, mas de sombra do rei.
tribunais reais, que podiam reivindicar ou avocar para si o julgamento de Quem já se debruçou sobre as páginas de Os três mosqueteiros e acom-
determinados processos quando estes eram do interesse do rei ou diziam panhou suas aventuras nas séries televisivas pode compreender melhor a
respeito aos funcionários reais (Tocqueville, 1984). imagem que Richelieu construiu de si mesmo. A filmografia, acompanhan-
Essa ação de conhecimento e de intervenção sustentou-se, para alcançar do Alexandre Dumas, transformou o primeiro-ministro num demente,
seus objetivos, na reforma administrativa de Richelieu, que se concentrou deixando de lado o reconhecimento de seu cálculo político e de sua con-
na criação das intendências, entre as quais se destacaram a das Finanças, tribuição para o desenvolvimento do absolutismo na França. As relações
a da Justiça e a da Polícia. Elas tinham por função o estabelecimento da de Richelieu com a rainha indicavam a inimizade com a Casa d'Áustria.

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Através das críticas, veiculadas por seus homens, o primeiro-ministro ten- mente porque ficava patente a pouca relevância económica que possuíam.
tou consolidar uma unidade nacional, ultrapassando a unidade territorial Longe de suas propriedades, muitas delas já ocupadas por interesses
e politizando a sociedade francesa em torno do seu destino soberano. burgueses ou afundadas em rebeliões de camponeses, sem condições de
A ideia da França ter uma rainha estrangeira foi o veículo pelo qual ampliar suas rendas, viviam da presença na corte, ou seja, sobreviviam
Richelieu encontrou espaço para assegurar o seu poder. Entretanto, á como representações do luxo e da honra de uma sociedade centralizada.
construção da unidade política só se poderia realizar se, ao lado dessas O refinamento da corte era uma forma de diferenciação num processo
medidas de caráter estatal, houvesse um conjunto de projetos económi- de enobrecimento que já não distinguia quem era nobre de sangue; além
cos que atendessem aos anseios das demandas sociais. Nesse sentido era disso, a proximidade do rei acentuava a importância dessa nobreza, que
fundamental a manutenção da sociedade de corte e da sua caracterização podia facilmente manipular suas relações com o objetivo de assegurar a
como modo exemplar de vida nobre, passível de ser exportado com as sua sobrevivência, especializando-se em intrigas, que não deixaram de ser,
rendas e os bordados de ouro, as espadas e as capas, de forma a favorecer no Antigo Regime, uma forma de ação política.
às indústrias francesas. Muitos desses nobres de alta estirpe se envolveram com o exército e a
Era necessário que as reformas funcionassem como algo monumental, Igreja, ou desenvolveram formas de sobrevivência que acabaram sendo muito
colocando a França no topo da história da Europa, e o que se desenvolveu bem representadas no romance Ligações perigosas. Como conselheiros ou
foi uma política organizada de desenvolvimento do comércio, da marinha como militares, a alta nobreza continuava a manter um controle sobre a
e da colonização como forma de alavancar a economia francesa, propi- corte, evidenciando-se, no caso de Richelieu, a tensão entre os interesses
ciando o aumento das rendas reais, o crescimento do comércio através das próprios da nobreza e a política do Estado.
companhias e o incremento da produção agrícola e industrial. Por outro lado, os comportamentos dessa alta nobreza acabaram por
A política desenvolvida pela França também acentuou as rivalidades com servir de modelo para as outras cortes da Europa, levando a França a ser
outras áreas nacionais. Foi com a Inglaterra e os príncipes alemães que as identificada como o centro de todas as manifestações de bom gosto. Di-
tensões adquiriram maior relevância, indicando objetivos distintos. Com ziam os portugueses, através da voz de D. Luís da Cunha, que os franceses
relação aos príncipes alemães, as questões diziam respeito à hegemonia con- haviam inventado a maior praga do mundo: a moda.
tinental francesa, tanto no plano de política internacional quanto no plano da O luxo, a etiqueta, a sociabilidade e o refinamento abriram caminho
economia, pois a consolidação da hegemonia francesa favorecia a ampliação para uma atividade que, ao fim, acabou por ter efeitos negativos sobre a so-
da influência de seus costumes e hábitos sobre as outras cortes europeias. ciedade do Antigo Regime. A ociosidade da nobreza em Paris provocou não
Com relação à Inglaterra, as questões, além de envolverem também a apenas conspirações por poder e cargos mas também estabeleceu relações
luta pela hegemonia na Europa, atingiam a política colonial francesa, es- que conduziram, a médio prazo, a mudanças.
pecialmente no que diz respeito às áreas das Américas Central e do Norte. O refinamento envolvia aquilo que à época denominava-se graça e humor,
Para a França, no entanto, os custos dessa política implicaram uma maior palavras que designavam o que os franceses chamavam de espírito ou de
necessidade de controle interno em função tanto das despesas financeiras espiritualidade, que fizeram avançar o gosto pela literatura, pela arte e pela
quanto das formas usadas para obtenção de recursos. As poucas alternativas discussão sobre a natureza. Os salões da nobreza passaram a ser os lugares
de acumulação fizeram com que o enobrecimento, via venalidade, expan- da diferença numa sociedade em que os processos de herança sanguínea
disse a nobreza da França e aumentasse a parte da população envolvida não possuíam mais a mesma eficácia.
com os privilégios reais. O resultado foi o aumento da população de Paris Molière, mais tarde, ao escrever o Burguês fidalgo, inspirou-se justamen-
e o início de tensões nos segmentos da nobreza e do clero. te nessa nova diferença que atraía os burgueses: a sabedoria, a retórica e a
A nobreza de primeira ordem, ciosa de sua tradição de fundadora da filosofia. O conhecimento passou a estabelecer um novo modo de sobrevi-
França, não via com bons olhos o enobrecimento dos burgueses, especial- vência e de ascensão social.

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Ainda na corte, avançavam os novos homens de negócios. Paris cada Mas antes de enfrentarmos a crise política da França na passagem para
vez mais apresentava uma dupla face. De um lado, a monumentalidade do a segunda metade do século XVII, olhemos o que ocorreu com o clero.
poder real, que fazia com que Paris fosse maior que a França, de outro, a Qualquer um que lesse o que aqui foi escrito poderia se perguntar sobre
Paris dos novos homens, da nova sociedade, da multidão de trabalhadores a ausência de referências ao clero, pois todos estamos acostumados a ver
ampliando a fronteira urbana, diminuindo a cidade e o mundo rural. a França como uma sociedade constituída por três ordens ou estamentos:
Mas e o mundo rural? O que acontecia no campo? A política de cen-
clero, nobreza e terceiro Estado.
tralização implementada no reinado de Luís XIII configurou a expansão Se vocês se lembram de como nós começamos, talvez parte dessas inda-
de valores urbanos sobre o mundo rural. O resultado evidenciou-se pelo
gações já possa ser entendida. Um dos aspectos importantes do processo
crescimento urbano no campo. Novas cidades e antigas aldeias, agora
de centralização, iniciado por Francisco I, foi a prerrogativa real de indicar
com novas atividades, povoavam o território rural, fazendo concorrência
os membros do clero francês, o que fazia com que a distinção entre clero e
às antigas sedes episcopais. O campo, na segunda metade do século XVII,
nobreza passasse a ser menor e o comportamento de uma e de outra ordem
mudou bastante. A consciência política dos proprietários e dos trabalhadores
caminhasse no sentido de uma aproximação política, em primeiro lugar,
rurais implicou uma alteração das relações sociais.
como garantia de sobrevivência da sociedade do Antigo Regime e, em segun-
O desenvolvimento da política francesa incrementou, no interior, novas
profissões, ligadas não só ao processo de centralização administrativa mas do, como forma de ocupação de cargos administrativos, transformando-se
também aos novos empreendimentos produtivos na agricultura, na indústria num braço importante da centralização.
ou na mineração. O que ocorreu foi exatamente um movimento de identidade entre o clero
Ao lado da antiga nobreza de terra, surgiam novos proprietários, mais e a nobreza que foi responsável pela manutenção da estabilidade política
interessados em transformar suas terras em empreendimentos produtivos e até Luís XIII. A partir de então as coisas se modificaram. Para exercer sua
que precisavam de mais espaço e de novas relações de trabalho, abalando política de centralização, o cardeal acabou passando por cima do clero e
as formas tradicionais de trabalho e injetando capital no mundo rural. A da nobreza, retirando-lhes poder e autoridade, além de provocar reações
monetarização do mundo rural implicou um processo de avanço dos in- que conduziram a uma fragmentação, principalmente no que se refere ao
teresses burgueses sobre as antigas propriedades nobres, reabilitando-as e clero. A forte politização do clero no século XVII, além de conduzi-lo a uma
tornando-as produtivas. quebra na sua hierarquia, ocasionou uma radicalização religiosa, passível
Entretanto, esse movimento, assim como na Inglaterra, provocou a exclu- de ser observada na perseguição aos jansenistas (Lefebvre, 1979).
são de grandes massas de trabalhadores rurais e arrendatários ou parceiros Instaurou-se uma divisão no clero. O alto clero associou-se à vida cortesã
das terras da antiga nobreza, gerando revoltas t rebeliões. Esse avanço das e deixou de lado a vida espiritual, o que provocou a revolta do baixo clero,
novas formas de propriedade alargou o espaço agrícola e pressionou tanto tanto nas cidades quanto no mundo rural, e o desenvolvimento de uma
os trabalhadores como os nobres que haviam mantido a sua moradia no divisão nítida entre campo e cidade naquilo que diz respeito à vida social.
campo, aqueles que não foram para Paris e que viam nesse movimento Foi como se a França do século XVII apresentasse uma dualidade de ima-
os dedos do poder real como forma de consolidar o seu domínio sobre a gem. Havia as cidades, principalmente a capital, onde tudo se concentrava,
França (Rude, 1982). e havia o resto da França, tão perto e ao mesmo tempo tão longe de Paris.
Por isso mesmo, foram muito comuns rebeliões da chamada nobreza A centralização fez com que a distância diminuísse, ao tornar presente a
provinciana contra as regulamentações reais, estabelecendo alianças cir- figura do rei em qualquer lugar da França. Porém, também criou proble-
cunstanciais entre trabalhadores rurais e nobres de terras. O aumento da mas, já que nem mesmo um muro de igreja que desmoronasse poderia ser
pressão centralizadora transformou essas alianças em ações políticas que
reconstruído sem ordens reais.
se desencadearam quando da morte de Luís XIII e da decadência da auto-
A burocratização imposta pela centralização produziu descontenta-
ridade do cardeal.
mentos nas cidades e principalmente no campo, que aos poucos se tornou

• Oí 109
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um lugar próprio para o refúgio daqueles que eram perseguidos por suas O acaso fez com que o primeiro-ministro escolhido fosse de ascendên-
ideias ou daqueles que simplesmente queriam ficar longe da corrupção e da cia italiana, o que, associado a uma rainha estrangeira, suscitou a atenção
luxúria que viam em Paris. O mais importante foi que o reconhecimento de daqueles que aproveitavam a crise da sucessão para tentar mudar a política
uma situação de crise tomou agora a forma de denúncias. O clero, por ser o da França.
estamento mais preparado intelectualmente, vai tanto fazer a defesa do rei A crise de sucessão era o sinal para que os vários tipos de desconten-
quanto patrocinar as críticas ao poder real. As tensões no interior da hie- tamentos adquirissem a sua forma de ação política. O principal problema
rarquia religiosa abriram caminho para a divulgação, através da imprensa, enfrentado pela regente e seu primeiro-ministro foram as frondas. Normal-
de situações da corte que tornavam mais claro para o homem da França a mente identificadas a reações feudais, as frondas não podem ser estudadas
decadência moral do Estado francês. Os párocos e padres seculares agiram apenas como se fossem partes de um movimento mais geral contra a centra-
como publicistas numa sociedade onde poucos sabiam ler. lização e que buscava a situação anterior de autonomia dos poderes locais.
Tornou-se cada vez mais evidente que havia uma dualidade na França Mazarino assumiu a direção do governo francês em 1643. Cinco anos
e que ela não refletia apenas modos diferentes de vida — campo versus mais tarde, o parlamento de Paris associou-se às rebeliões populares na ci-
cidade —, mas interesses e projetos políticos distintos. dade, que tinham como objetivo a renúncia da regente, e decretou a vacância
Foi essa politização, associada às pressões centralizadoras, que conduziu de governo para a França, projetando a organização de um novo governo
a França à crise dos anos 40 do século XVII. Para que fique mais clara a regido pelos homens de sabedoria da França. Conhecida como fronda par-
conjuntura, vocês devem ter em mente que o cardeal produziu boa parte lamentar, ela foi derrotada pelo príncipe Conde, que tinha como objetivo
dos resultados de seu programa de centralização atacando a rainha Ana tomar o poder na França, iniciando a denominada fronda dos príncipes,
d'Áustria, principalmente no tocante à política de unidade do território associada a um movimento de retorno ao feudalismo.
francês e à mobilização em torno de objetivos nacionais. Conde foi derrotado pelo exército francês, leal à manutenção da regente
O que se verificou foi que tudo aquilo que havia sido apregoado por e de Mazarino. A avaliação desse resultado é interessante para o que se se-
Richelieu como negativo — ter uma rainha estrangeira —, acabou por gue. A vitória da regente indicou que a centralização da França estava em
se tornar realidade. Com a morte de Luís XIII e a menoridade do delfim, via de se consolidar porque, num momento de crise as estruturas construí-
assumiu o trono da França, como regente, a grande inimiga do cardeal: das ao longo do reinado de Luís XIII foram as que se apresentaram como
Ana d'Áustria. mais competentes para a superação da crise política, dando condições de
Mesmo que esse aspecto não fosse fundamental na vida política da continuidade à centralização com Mazarino.
França, a situação descrita por nós já nortearia uma sucessão complicada. Ouvinte atento de Richelieu, Mazarino retirou da crise muitas lições; a
A luta pelo poder na França ganhou ao longo do reinado de Luís XIII, fruto mais importante foi a de avaliar que o equilíbrio político da França estava
dos resultados da centralização, novas condições. Os ganhos de ser rei na ameaçado e que a sua manutenção no poder era difícil. Tratava-se então
França provocaram a ambição de todos aqueles que, de alguma maneira, se de costurar a unidade da França em torno da ordem política na figura do
achavam com o direito de requerer a legitimidade de sua presença como rei. soberano. O trabalho de Mazarino foi o de desenvolver as estruturas de
Assim, é fácil perceber em que circunstâncias Ana d'Áustria assumiu a centralização sem provocar conflitos, anunciando que a soberania da França
regência. Além disso, havia a necessidade de equilibrar interesses no interior só seria mantida pela manutenção da legalidade da sucessão.
de Paris e na própria corte. Por isso, a escolha do primeiro-ministro recaiu Sem grandes alardes, Mazarino foi construindo formas de atender às
sobre Mazarino, que não só era o responsável pela educação do futuro Luís reivindicações do mundo rural, principalmente daqueles envolvidos com a
XIV, como também havia sido introduzido nos negócios da política por produção para o mercado. O primeiro-ministro deu continuidade à política
Richelieu. Isso concretamente indicava que, em linhas gerais, a política de fomento fabril, principalmente na região de Lyon, e patrocinou também
de centralização se manteria e seria reforçada a noção da soberania real. o desenvolvimento da cultura francesa.

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O S É C U L O XX
AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

Dessa maneira, quando em 1661 Mazarino morreu, Luís XIV assumiu onde todas as demandas sociais seriam avaliadas e levadas ao rei, tornando
sem que maiores conflitos relativos à legitimidade da soberania afetassem o rei o grande árbitro. O primeiro-ministro era um filtro que ao mesmo
a coroação do novo rei.
tempo dava ao rei espaço e tempo para decidir, anulando qualquer pressão
O reinado de Luís XIV foi o esplendor da França. Foram atingidos, ou encobrindo atitudes apressadas, dando aos conselheiros espaço para
durante os quase cinquenta anos de soberania do rei-sol, todos os objetivos avaliação das decisões reais (Doyle, 1991).
de centralização anunciados anteriormente, o que explica o porquê de seu A supressão da figura do primeiro-ministro eliminou essa barreira e
reinado ser tomado como o exemplo da política absolutista. abriu caminho para as pressões sobre o rei. A construção de Versalhes atuou
Em primeiro lugar, foi com o novo rei que se consolidou o poder pessoal como uma nova barreira para a atuação política do rei, ao mesmo tempo
do soberano sobre o território e os homens da França. Luís XIV se colocou que permitiu a superação das relações de reciprocidade como a corte de
acima do Estado como seu construtor, apresentando-se como a França. Paris. Transferindo-se para Versalhes, o rei renovou a corte e reestruturou as
Se com Luís XIII Paris já era maior que a França, com Luís XIV o rei era relações entre o rei e os demais estamentos da França, impondo através da
maior que Paris.
distância entre Paris e Versalhes uma nova imagem do rei (Anderson, 1983).
A consolidação dessa posição não se realizou por direito divino, embora Além disso, a eliminação do primeiro-ministro fez com que os projetos
este fosse invocado para legitimar o soberano. O que se anunciou como mais implementados pelo poder real estivessem diretamente associados ao rei.
importante foi a eliminação da barreira que separava o rei dos seus súditos; Nada na França a partir desse momento deixava de levar a marca do rei,
desta maneira eliminou-se a dualidade das duas Franças e recuperou-se a consolidando sua soberania e realizando a centralização absolutista.
autoridade real, colocando-a acima dos estamentos e ordens. Anunciou-se Entretanto, essa marca, no caso do reinado de Luís XIV, não foi uma
um novo tempo, o tempo do progresso da França, dos investimentos na demonstração de obediência acomodada, pela tradição, ao rei. Se houve
nova ciência do século XVII, dos grandes projetos de inovações urbanas e alguma coisa que configurou a atuação de Luís XIV, foi a sua atuação pes-
rurais, com a criação de sociedades agrícolas e finalmente com o incentivo soal em termos de política. O sucesso do absolutismo de Luís XIV estava
para a leitura e eliminação do analfabetismo como forma de propiciar a diretamente ligado às formas de presença física do rei, a sua atenção como
igualdade entre os súditos.
criador das Academias, a sua participação nas reuniões, ao mecenato do Es-
O palácio do rei transformou-se na morada de todos os franceses. A tado na forma de pensões para projetos que pudessem desenvolver a França,
monumentalidade arquitetônica de Versalhes era a da França e o novo rei não se descuidando da política económica, agora transformada na questão
teria por missão regenerar a Europa. O palácio abria-se na procissão real mais sensível da França, pois dela dependia a afirmação da soberania do rei.
para o olhar admirado e emocionado dos seus súditos. Mas a construção A política económica agora tinha sua definição ancorada na contabi-
de Versalhes foi além da fundação na França de uma nova Roma, aonde lidade geral do reino da França; nada mais se improvisava. Sob a direção
todos os caminhos levavam — imagem definitiva da centralização absolu- de Colbert, a política mercantilista ganhou novo impulso. Primeiramente,
tista (Argari, 1993).
com uma revisão geral da política aduaneira, principalmente com relação
A construção de Versalhes foi fruto da racionalidade política que se à Holanda, com a intenção de equilibrar a balança comercial e gerar re-
anunciou na França com Luís XIV. O objetivo da construção foi o de alterar cursos que pudessem implementar as companhias de comércio, básicas
os mecanismos de pressão sobre as decisões reais, recompor o quadro de para o processo de expansão em direção à América, especialmente para
relações entre o rei e os estamentos. E isso se explica quando associamos estabelecer o controle do açúcar e sustentar a política de colonização nas
Versalhes ao que ocorreu quando da ascensão ao poder do rei-sol.
áreas do Canadá e da Louisiana.
A primeira atitude de Luís XIV foi eliminar a figura do primeiro-minis- Para tornar eficazes essas diretrizes tiveram que avançar os custos de
tro. Lembremo-nos de que a figura do primeiro-mínistro fazia parte da guerras resultantes da política de expansão e colonização com a Holanda
cultura política da centralização, uma vez que se anunciava como um lugar e a Inglaterra e da hegemonia europeia da França com os Habsburgos.

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O S É C U L O XX AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

A sustentação dessas diretrizes dependia de uma reforma administrativa a lei, todos aqueles que não estavam socialmente compreendidos entre os
que permitisse o aumento da velocidade de relacionamento do Estado com dois primeiros estados.
a sociedade. Assim, estabeleceu-se a política dos conselhos, enfatizando em Numericamente, era o terceiro Estado que se apresentava como mais
especial o Conselho de Estado, órgão definidor dos projetos de controle numeroso; dos 23 milhões de habitantes, cerca de 100 mil eram sacerdotes
político. Ao Conselho das Finanças, chefiado por Colbert, foi conferido ò
e 400 mil pertenciam à nobreza (Rude, 1982).
papel de controlador do reino e de incrementador das mudanças económicas,
O clero, além da posição de honra, era também o estamento mais privi-
com atenção especial para a agricultura e para as indústrias, privilegiando
aquelas que tinham maior aceitação na Europa, as de luxo. legiado. A tradição de urn corpo coeso que se traduzia por uma assembleia
Durante cinquenta anos, a França e o mundo viveram à sombra do periódica dava-lhe força política, além de autonomia administrativa, o
rei-sol e nesse período a França assumiu uma posição de destaque pelo seu que tornava o clero um corpo administrativo no interior da administração
modo de vida e pelo incremento de novas tecnologias de desenvolvimento. francesa (Lefebvre, 1979).
Entretanto, esse novo tipo de política, que passava a ter adeptos em todo Economicamente diferente da nobreza, o clero não dependia do Estado,
o mundo, refazia o quadro das relações sociais na França, principalmente, pois possuía uma rede de arrecadação dos dízimos e dos impostos sobre
porque alimentava de forma clara o sonho de riqueza dos burgueses, am- as propriedades eclesiásticas. O clero agia como um nobre superior e con-
pliando suas rendas, e mantinha uma política de alargamento da fronteira corria com a nobreza, inclusive, no que diz respeito ao sistema financeiro,
agrícola, patrocinando o avanço burguês para o campo e propiciando frequentemente emprestando dinheiro ao rei, aos nobres e aos burgueses.
conflitos entre os vários interesses rurais. Desde logo, isso mostrou que se Outro aspecto importante para o alargamento do poder do clero foi a de-
não se aprofundasse o domínio real no sentido da identidade da França, cisão, depois da revogação do Edito de Nantes por Luís XIV, de que todos
voltar-se-ia a uma situação anterior.
os franceses deveriam professar a fé católica e, para serem considerados
Os custos de manutenção da corte de Versalhes exigiram uma política franceses, receber todos os sacramentos, sob pena de seus filhos não serem
fiscal que dificultou as ações económicas da França no cenário internacio-
considerados legítimos e não poderem receber as heranças (Lefebvre, 1979).
nal. Os preços dos produtos franceses eram mais elevados do que os dos
Tudo isso, associado ao monopólio do ensino, da assistência de saúde,
ingleses, dificultando a sua inserção nos mercados. Isso acarretou um peso
maior sobre a sociedade francesa e seus setores de ponta, que acabaram do controle dos hospitais e dos locais de assistência aos pobres, além da
pagando os custos. ação de censura, transformou o clero em segmento profissional.
A preocupação maior localizava-se na política industrial, especialmente No entanto, essa aparente unidade, embora se mantivesse no campo
nos produtos de luxo. No fim do século XVII, não só outros estados co- espiritual por força das circunstâncias, no plano social era frágil. Apresen-
meçaram a oferecer produtos com essa destinação, como o mercado das tando uma grande variedade de formas de inserção, em função de sua
cortes europeias diminuía. Boa parte das dificuldades também derivou posição na Igreja, o clero apresentava uma divisão: o alto clero, formado
dos desvios de grandes quantidades desses produtos para o consumo da pelo clero nobre, e o baixo clero, pelos plebeus. Essa distinção, no interior do
corte, tornando os preços altos e dificultando tanto a circulação quanto a clero, transformou-se na base das discórdias e das denúncias de corrupção
acumulação, mesmo com o apoio do Estado. do alto clero.
A nobreza gozava também de privilégios, tanto no que se referia aos
4.2. A crise do Antigo Regime e a Revolução francesa impostos quanto com relação ao privilégio de poder usar espada. Diferente
do clero, não formou um corpo unido em função da variedade de interesses
Como vimos, na França do Antigo Regime os preceitos legais estabeleciam e do processo de associação à sociedade de corte. No fim do século XVII,
a diferença entre três ordens ou estados: o clero, no topo da hierarquia;
estava perdendo a sua prerrogativa de nascimento. Entretanto, os privilégios
a nobreza, logo abaixo; e o terceiro Estado, onde se juntavam, segundo
da nobreza acabaram funcionando como uma faca de dois gumes, pois, em

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O S É C U L O XX AS R E V O L U Ç Õ E S B U R G U E S A S

compensação, eles estavam proibidos de exercer qualquer profissão ou ofício, Ao lado desses aspectos, ainda possuiu importância a luta pela sucessão
restringindo sua atuação à grande propriedade de terras (Anderson, 1983). do rei, principalmente porque, antes de morrer, Luís XIV reconheceu, como
Com Colbert, a nobreza se abriu para novas atividades, não por conta legítimos, todos os seus filhos bastardos, abrindo caminho para disputas
das pressões da nobreza de sangue, mas pela força de um novo tipo de no- entre os nobres.
breza, aquela que tinha o seu título comprado e que já exercia atividades O enfraquecimento do poder real e a decadência da sociedade de corte
profissionais. No reinado de Luís XIV, os nobres puderam se envolver com anunciaram um novo tempo. A falta de alternativas para os setores domi-
o comércio, principalmente o marítimo. nantes do Antigo Regime e o desespero diante da perda de poder fizeram
Ao lado da nobreza de espada, surgiu um novo tipo de nobreza, aquela os conflitos ultrapassar o espaço do poder e avançar sobre as cidades, espe-
que dependia da bondade do rei ou do valor pago pelo título. O uso da cialmente Paris. As cidades transformaram-se no palco dos conflitos entre
venalidade como mecanismo político de centralização fez com que o rei velhos e novos interesses, levando de roldão todos aqueles que, de formas
utilizasse os títulos de nobreza para recompensar servidores reais, aumen- distintas, viviam a expectativa da mudança (Anderson, 1983).
tando o número de nobres e colocando-os em paralelo com os nobres de No entanto, as formas de oposição se renovaram. Já não eram as armas
sangue. Em oposição à velha nobreza de espada, os novos nobres eram que desempenhavam papel importante, os duelos estavam em franca de-
descendentes de famílias ricas burguesas e tinham sobeja competência para cadência. Com a ampliação da influência burguesa no sistema jurídico, o
administrar suas riquezas e rendas. A principal atividade da nobreza foi na espaço privilegiado para o desenvolvimento dos confrontos passou a ser
área jurídica — a nobreza de toga —, expandindo determinadas normas e o tribunal ou a repartição administrativa (Lefebvre, 1979).
A reação ao centralismo real organizou-se a partir das cortes — tribunais
formas de vida burguesa e minando a velha etiqueta aristocrática.
que com o tempo haviam adquirido função política —, pois qualquer edito
Diante do avanço desse novo tipo de nobres e do isolamento da nobreza
real tinha de ser registrado por elas e os seus membros podiam apresentar
tradicional na corte, depois da morte de Luís XIV, a nobreza de sangue
objeções, reduzindo, por vezes, a eficácia das medidas reais, notadamente
tentou reagir, buscando alianças com setores de oposição ao Antigo Re-
aquelas que se relacionavam aos impostos.
gime e, ao mesmo tempo, elaborando um movimento de retorno a suas
Não se deve, evidentemente, avaliar essas cortes como limitadoras, pois
propriedades rurais.
o soberano podia convocar as cortes para registrar suas resoluções, sem que
A reação, entretanto, foi limitada. Em primeiro lugar, porque as modi-
houvesse tempo para interpor objeções; afinal, a França continuava sob a
ficações sofridas pela estrutura fundiária não permitiram que a volta aos
tutela do poder real absoluto.
campos se efetuasse sem conflitos com os burgueses e os camponeses e, em Por outro lado, essas tensões não permitiram que se concretizasse a
segundo, porque a nobreza provinciana, ciosa de suas posições, descartou unificação nacional. Diante do enfraquecimento do poder centralizado,
as alianças.
surgiram novas formas de organização dos poderes locais, fazendo com
Perdida com o avanço burguês, a nobreza de sangue entrou em deca- que se desenvolvessem os dualismos de decisões e as diferenças no entendi-
dência, não sem antes utilizar a sua derradeira arma: o conhecimento das mento do significado do poder central. Essas formas de representação dos
mazelas e abusos reais, com o intuito de chamar a atenção do rei e recu- poderes locais assumiram, com o tempo e o aprofundamento dos conflitos,
perar-se, invertendo o caminho inicial. expressão política, na forma de novos projetos para a sociedade francesa,
Mas a aristocracia sofreu outro golpe. Com a morte de Luís XIV, depois desde aqueles, que levaram em conta as dimensões estamentais, até os que
de um longo reinado, no qual as práticas da corte adquiriram novos compo- apresentaram a incorporação das ideias da liberdade e da igualdade, pas-
nentes, Filipe de Orleans, agora regente da França, anunciou uma guinada sando por fora da sociedade de ordens.
em direção a um processo de alargamento dos interesses dos burgueses e A crise do poder centralizado tinha sua origem nas pressões internas, que
dos nobres que não participavam da corte esvaziando a sua importância. desorganizaram as formas de controle fiscal e inviabilizaram a autonomia

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í.
O SÉCULO XX AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

económica do poder real, bem como nas pressões externas. Quanto a estas, passassem a se incorporar às políticas reais, principalmente no campo da
verificaram-se de dois modos diferentes. No primeiro modo, derivaram da economia e das finanças (Soboul, 1965).
perda da hegemonia francesa nos mercados das cortes europeias, em de- Atuando no comércio e na indústria, os interesses burgueses tomaram,
corrência dos avanços industriais ingleses e do desenvolvimento dos valores pelas bordas, o Estado francês, transformando-o em seu refém. Mesmo que
burgueses que supunham uma nova racionalidade económica. No segundo a política real tendesse a salvar a nobreza de corte, ela não só esbarraria
modo, pelo crescente processo de aproximação com a América inglesa, na na oposição burguesa mas também na impossibilidade da realeza, pelos
defesa dos objetivos coloniais franceses, que acabaram por determinar a compromissos financeiros, se ver livre dela.
Guerra dos Sete Anos, na qual a França foi derrotada (Goubert, 1971). Os preceitos burgueses evoluíram para reações que colocaram em xe-
Na busca desesperada por uma saída, Necker — ministro das Finanças que toda a estrutura do Antigo Regime. Pela propaganda filosófica e pelas
de Luís XVI, e de origem burguesa — viabilizou a sobrevivência da econo- atitudes económicas, esses valores alcançaram a qualificação de uma nova
mia através de empréstimos que, além de desequilibrar as contas nacionais, visão do mundo, impondo através das Luzes novas concepções sobre o
aumentando o déficit real e as dívidas do Estado, foram utilizados não homem e suas relações com a política.
para a retomada da produção, mas para enfrentar as situações imediatas O aprofundamento da crise, no reinado de Luís XVI, tornou a revolução
de guerra e de miséria. iminente. O descontentamento geral da sociedade francesa isolou o rei e a
O esbanjamento, a evasão fiscal, o descontrole administrativo e a deca- sociedade de corte e avançou em suas críticas aos procedimentos do Antigo
dência da soberania real impediram que novas intervenções fiscais tivessem Regime. Reações espontâneas surgiram em toda a França e a alternativa
resultados positivos: como aumentar impostos, se cada vez mais ficava real foi, depois de cem anos, voltar a convocar os Estados Gerais da França
evidente o luxo da realeza? (Rude, 1982).
A crise foi de tal ordem que os estamentos não tiveram condições de No período que antecedeu a convocação dos Estados Gerais, a burguesia
se mobilizar para assumir as rédeas do Estado, pois ainda não havia um ampliou sua inserção na sociedade francesa. Detentores da riqueza, os bur-
elemento comum que pudesse juntar interesses tão diversos. A convocação gueses estavam em todos os lugares. Exerciam funções públicas e controla-
dos Estados Gerais feita por Luís XVI demonstrou a fraqueza do soberano vam as atividades económicas, o que fazia com que fossem privilegiados em
e foi o acontecimento político capaz de unificar a sociedade francesa contra termos do conhecimento da situação geral da França e passassem a divulgar
a política real (Lefebvre, 1979). esses conhecimentos. O desenvolvimento da imprensa francesa constituiu a
Quando algumas alternativas eram apresentadas, orientavam-se por base sobre a qual esse conhecimento produziu impacto e unificou as visões
pregações moralistas ou voltavam-se para a recuperação de privilégios, o com relação aos abusos da sociedade de corte (Darnton, 1996).
que aumentava os entraves a uma solução conjunta. Foi no interior des-
sa conjuntura que começaram a surgir proposições de modernização da 4.3. A Revolução Francesa e a frança capitalista
máquina estatal oriundas dos setores mais avançados da nobreza e que
constituíram o ramo liberal desta, acenando para o terceiro Estado como Convocados os Estados Gerais, e reunidos em assembleia, foram eles que,
única saída para o progresso da França. através de seus representantes, e depois de negarem os aumentos solicitados
A realidade do avanço da oposição ao Antigo Regime traduziu-se no pelo rei, se declararam em Assembleia Constituinte e patrocinaram a discus-
desenvolvimento da burguesia. Constituída por diferentes setores da ati- são do novo Estado francês. A reunião dos Estados Gerais juntou todos os
vídade económica e financeira, seus integrantes possuíam origens sociais descontentamentos e permitiu identificar os graus diferentes de interesses.
variadas, o que auxiliou no sentido de evitar radicalizações com relação Na avaliação de George Lefebvre (1979), as origens da revolução deriva-
aos nobres liberais. A ocupação de cargos públicos, desde a época de Luís ram de quatro formas diferenciadas de oposição ao Antigo Regime e que
XIV, fez com que os comportamentos burgueses penetrassem na corte e teriam dado origem a quatro revoluções ou a quatro modos distintos de

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AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

encaminhar o processo de transformação. Uma revolução aristocrática, francesa em cidadãos ativos e passivos, pois só aqueles que possuíam ri-
que reivindicava a descentralização além da autonomia local é que no quezas podiam participar das eleições ou serem eleitos.
século XVIII estava longe de representar valores feudais. Uma revolução A eliminação da censura e a introdução da livre expressão fez com que
burguesa, que tinha como projeto a eliminação dos entraves à produção as insatisfações penetrassem no âmago da sociedade francesa, despertando
e que propunha a propriedade privada, mas que continha variantes mais conflitos escondidos pela boa-nova da revolução ou anunciando novos.
radicais, adeptas da república francesa. Uma revolução camponesa, que O Estado e sua máquina administrativa também foram objeto de aten-
almejava a conquista da terra pelos camponeses e a eliminação de todas ção. Os princípios de racionalidade do Iluminismo foram introduzidos,
as formas de exploração antigas. Uma revolução popular, constituída pela garantindo eficiência e expressando o avanço da burguesia, em termos do
junção de setores radicais da burguesia com os pobres urbanos que, além individualismo e da propriedade privada.
da melhoria das condições de vida e do trabalho, não conseguiam exprimir Nesse período, de 1789 a 1791, ocorreram simultaneamente as revoluções
claramente o seu projeto.
aristocrática e burguesa, tendo se iniciado a revolução popular. Durante
Essa avaliação reforça o clima de insatisfação da França que atingiu os esse período, os projetos aristocráticos foram derrotados e avançaram as
diferentes segmentos sociais e que tomou forma na reunião dos Estados reivindicações burguesas e populares. A grande derrota da aristocracia
Gerais. A primeira etapa da revolução, identificada por Ernest Labrousse verificou-se com a perda da direção na condução das reformas; as pressões
como era das constituições, teve como objetivo reformar o Antigo Regi- sociais pela demora da implantação das reformas justificaram a mudança
me, demonstrando os limites de sua ação revolucionária. Acabou com o
na direção (Faicón, 1986).
feudalismo e eliminou os privilégios da nobreza e do clero (Faicón, 1986). Mas não foi apenas uma derrota da aristocracia. Além dos nobres da
Os debates nos Estados Gerais mostraram que o grande inimigo da so- corte e da realeza, também foram derrotados setores aliados da burguesia.
ciedade francesa, nesse momento, reunida e una, era o rei e iniciou-se um Os pequenos comerciantes e industriais viram-se, da noite para o dia, diante
movimento de radicalização política que transformou os Estados Gerais de alterações nas relações económicas e não foram capazes de acompanhar
em Assembleia Nacional Constituinte.
o ritmo dos acontecimentos, acabaram por perder o controle da produção e
Com a nova ação dos burgueses foram eliminados os obstáculos à livre da circulação e foram substituídos pelos novos empreendimentos burgueses,
concorrência e à livre circulação das mercadorias. As bases corporativas da onde já se viam industriais e grandes comerciantes associados aos grandes
antiga economia foram solapadas e foi efetivada a secularização dos bens
banqueiros.
da Igreja, através da Constituição Civil do clero, cujos membros daí em Também foram vitoriosos, nessa etapa, os membros da chamada nobreza
diante passaram a ser considerados como funcionários do Estado. liberal, responsáveis pela implantação da monarquia constitucional, que,
O impacto dessas reformas não agitaram apenas os setores de oposição com a burguesia, reinventaram o Estado, transformando-o em campo de
à revolução. Os segmentos que haviam apoiado a revolução olharam com
ação da política de acumulação de riquezas.
maus olhos o crescimento da liderança burguesa, principalmente a pequena Os avanços e os conflitos deles decorrentes, durante esse primeiro pe-
burguesia e os trabalhadores urbanos. Mesmo a ampliação dos direitos de ríodo, ultrapassaram os muros das cidades, tomaram os campos e nestes
igualdade a todos os franceses, com a consequente eliminação de qualquer atingiram os setores que tradicionalmente os ocupavam: a nobreza de terra,
tipo de privilégios, não reduziu a insatisfação dos setores mais à esquerda, os burgueses proprietários agrícolas, camponeses e pequenos proprietários.
que queriam reformas sociais (Rude, 1982).
O mundo rural, de certa maneira, recebeu com maior impacto as reformas
Além disso, o modelo político, na forma de uma monarquia constitucio- burguesas. Seja no aspecto jurídico, com o avanço da propriedade privada
nal de caráter censitário, reproduziu essa dominação burguesa e, se superou e dos maus usos dos cartórios, através do registro de propriedades que
a hierarquia do Antigo Regime, estabeleceu outra que dividia a sociedade não pertenciam àqueles que as registraram, seja no aspecto económico,

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revelado pela concorrência entre os empreendimentos industriais urbanos produção, pois desviou da atividade económica um número significativo
e o artesanato rural. de trabalhadores.
O medo do mundo rural passou a fazer parte do universo político dos A iminência da derrota e os impactos da política de guerra produziram
burgueses, que perceberam nele o grande opositor às suas reformas, uma conflitos que fizeram retornar ao palco da política os movimentos populares,
vez que o controle da produção agrícola estava fora do domínio burguês. que, através dos jacobinos, assumiram o controle do Estado e da guerra.
Foram exatamente as crises de carestia, que já eram observadas no Antigo Surpreendidos pelas vitórias que foram acumulando, os jacobinos passaram
Regime e que associaram Maria Antonieta à célebre frase: se não há pão, a radicalizar as reformas, tomando como decisão a eliminação de qualquer
dê-lhes brioches, os grandes obstáculos ao prosseguimento das reformas resquício burguês ou nobre (Lefebvre, 1979).
burguesas. A oposição emperrava o debate e a lentidão nas decisões àfetou Marat, o amigo do povo, Robespierre e Danton eram alguns dos líderes
o governo da nova França. daqueles que se reconheciam como a verdadeira França e, em nome desse
A Constituição de 1791 e a transformação da Assembleia Constituinte privilégio, consideravam-se os únicos capazes de indicar o caminho correto
em Legislativa indicaram que a burguesia, embora dividida nos seus inte- da revolução, através dos tribunais revolucionários e das decisões revolu-
resses particulares, ganhou espaço e acentuou a sua direção, dando origem cionárias que não podiam ser discutidas, pois eram apresentados como
aos conflitos e às disputas entre os vários projetos que emergiram da opo- procedimentos indispensáveis ao bem comum da França (Arendt, 1988).
sição ao domínio da burguesia, originando a segunda etapa da revolução, A apreensão dos resultados da guerra e a ineficácia de certas medidas
identificada por E. Labrousse como era das antecipações (Falcón, 1986). económicas fizeram com que os jacobinos anunciassem que os culpados
A partir de 1792, teve início a radicalização das críticas, que anunciou o eram os traidores da França, que se escondiam com máscaras e atuavam
avanço dos movimentos populares, urbanos e rurais, além do crescimento em nome dos interesses revolucionários e que deveriam servir de exemplo
da ação política dos jacobinos, que se encarregaram de anunciar o novo para toda a sociedade, através de suas mortes na guilhotina, apelidada de
tempo, assumindo a direção política da nova etapa da revolução. Santa Guilhotina, pelo efeito de purificação que provocaria, segundo os
A nova etapa trouxe consigo problemas. Se até 1791 boa parte da rea- jacobinos, na sociedade francesa. A desconfiança, somada às intrigas, fez
leza e da alta nobreza ainda mantinha a ideia de voltar a ter uma posição com que a política de purificação atingisse os próprios revolucionários,
de destaque na vida francesa, mesmo com a revolução, a reação jacobina projetando um regime de violência conhecido como época do Terror e or-
acabou com essas expectativas e provocou a contrarrevolução. A nobreza ganizado na forma do que se conheceu como período da Convenção, que
foi buscar nas cortes europeias, também receosas de que essas situações de foi até 1794 (Soboul, 1965).
radicalização se verificassem em seus territórios, auxílio para eliminar a De 1794 a 1815, a revolução readquiriu, em grande parte, a feição do
revolução, dando origem, num momento delicado da vida francesa, a uma primeiro período, apenas com a diferença de que agora não eram somente
guerra da Europa dos Antigos Regimes contra a Nova França (Soboul, 1965). os burgueses que passavam a comandar o Estado, os setores da nobreza
A mobilização para a guerra foi custosa, mas, por outro lado, encheu de liberal também a eles se associaram, determinando a recuperação de boa
brios os revolucionários que decidiram destruir completa e definitivamente parte das prerrogativas dos nobres, fazendo avançar uma aliança política
a reação aristocrática. A manipulação da guerra e dos seus negócios trouxe entre os novos e velhos setores da sociedade francesa e alijando do processo
a burguesia de novo à cena. Qualificados para administrar a guerra, os os setores radicais jacobinos e todo o movimento popular, dando início à
burgueses começaram a reocupar espaços e a ilustrá-los com o lema da última fase da revolução, a era das consolidações.
unificação, situação que os fazia avançar em direção à consolidação de seu Mas, além da burguesia perceber que não possuía base social e política
domínio económico nas fronteiras. suficiente para recuperar a direção dos acontecimentos e que dependia
Por outro lado, os custos da guerra eram repassados para a sociedade dos seus aliados, ela ainda observou que o período revolucionário havia
na forma de impostos. Além disso, a mobilização para a guerra reduziu a esgotado o tempo da modernização, que se fazia urgente a renovação da

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França e para isso era preciso deixar o Estado sob a direçãò de uma força expansão exerceram um papel negativo na consolidação desse projeto
que, além de ser reconhecida como capaz de proteger, ainda simbolizasse económico. Além disso, havia a concorrência inglesa.
a unidade da França: o exército. Como a direçãò da industrialização francesa manteve a antiga feição de
Com o apelo ao exército, a consolidação política deveu-se à afirmação privilegiar a produção de mercadorias de luxo, após a queda de Napoleão
do general Napoleão Bonaparte. Entre 1795 e 1799, a França assistiu ao sérios problemas se apresentaram. Em primeiro lugar, porque os tempos
desenvolvimento de uma república, onde a presença do exército se constituiu eram outros e o avanço da ética do produtor como acumulador reduziu
no móvel principal da ordem e da estabilidade da sociedade. Entretanto, a o fausto do mercado de luxo. A saída para a França foi manter a política
multiplicidade de interesses presentes no Diretório não permitiu a consolida- protecionista, que reduziu ainda mais a circulação de seus produtos. Porém
ção das reformas, dando origem a confrontos e rebeliões, principalmente no a consequência mais grave da não consolidação da revolução industrial
campo, que demonstravam os limites do novo governo e faziam reaparecer na França foi a persistência, em boa parte de seu território, das formas
os velhos movimentos de camponeses, identificados como jacqueries, em tradicionais de desenvolvimento económico no campo, o que restringia o
alusão ao movimento do século XIV (Lefebvre, 1979). mercado interno e desestabilizava sua balança comercial. Só em 1860 foi
As fases seguintes desta última etapa — o Consulado t o Império — fo- que se verificou um grande surto industrial na França, através da opção de
ram períodos de consolidação da intervenção militar, que manteve o ideário desenvolvimento dos setores financeiros que investiram pesado na recupe-
liberal da revolução e reprimiu qualquer atitude de oposição, identificando-a ração da economia (Falcón, 1986).
como traição da revolução.
Com Napoleão Bonaparte, os avanços burgueses se consolidaram não 5. A revolução passiva: a modernização alemã
apenas na França mas alcançaram o mundo, abrindo caminho para o cres-
cimento da economia francesa, agora não mais centrada na produção de A história do desenvolvimento alemão é complexa e difícil de ser apresentada
mercadorias de luxo, mas buscando uma alternativa que pudesse fazer com de forma sucinta, se pretendermos mais do que simplesmente mencionar
que ela aparecesse na economia-mundo como uma nova força económica. a passagem tardia do complexo de estados alemães para o capitalismo e a
O problema era a expansão industrial inglesa. Com poucas chances de ação intervencionista do Estado como organizador do projeto de industria-
produzir, de forma imediata, capitais que sustentassem a sua revolução lização (Henderson, s.d.).
industrial, a França dependeu de sua força militar para alavancar deter- Essas definições diminuem a importância da historicidade alemã e do
minados mercados e regiões de matérias-primas, como o Vale do Ruhr. O seu processo de revolução, além de excluir das interpretações questões
bloqueio continental, furado pela coroa portuguesa no Brasil, em 1808, fundamentais como a cultura política e económica associada aos processos
anunciou o desespero dessa falta de base. de reformas religiosas do século XVI, além da nova ética protestante como
Assim, concluímos que a emergência do capitalismo na França se asso- manifestação concreta do início da modernização.
ciou à própria história da sociedade francesa do século XVI ao XVIII. O A trajetória alemã em direçãò ao capitalismo deve ser procurada no
processo de avanço do capitalismo sempre se orientou pela atuação do processo histórico e o ponto de partida é a Renascença.
Estado como organizador dos interesses económicos, que nem sempre eram O que hoje conhecemos como Alemanha era formado, no início dos
os verdadeiros interesses da sociedade, como no caso dos investimentos nas Tempos Modernos, por um conjunto de unidades políticas autónomas,
indústrias de luxo, distanciando-se, assim, do processo inglês. participantes do Império, denominação genérica para a área que havia
A revolução deu à França a honra de ser a tradutora de novos valores, constituído o Sacro império Romano-Germânico (Skinner, 1996).
mas também limitou o seu desenvolvimento económico. Só com Bonaparte Nessas unidades destacaram-se a política, a economia e a religião. No
foi iniciado um processo de reestruturação da economia, com o fortaleci- terreno da política, essas unidades promoveram o desenvolvimento de ins-
mento dos setores privados, e, mesmo assim, as despesas provocadas pela tituições e normas jurídicas que foram capazes de constituir a experiência

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O S É C U L O XX AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

mais antiga de organização de um Estado moderno: o Estado da Sicília. crescimento populacional e urbano. Nesse período, não apenas a região da
Influenciaram também, decisivamente, na vida política das principais ré- > Prússia definiu-se como portadora de um sentido expansionista, pela via do
públicas italianas da Renascença. desenvolvimento militar, mas várias outras regiões impulsionaram novas
Além disso, os conflitos entre Império e papado revelaram, no final da atividades económicas, desde a continuação das experiências mercantis
Idade Média, a produção de categorias políticas que atuaram como for- que vinham da Idade Média, na forma das ligas de cidades, como a Liga
madoras dos estados modernos, entre elas a noção de particularismo em Hanseática, até os investimentos na organização de manufaturas e na sua
oposição à de universal, que forneceu a base da constituição das primeiras infraestrutura técnica (Kemp, 1985).
unidades estatais.
O que parece ter ocorrido com as interpretações foi que elas ou buscaram
A essas contribuições, tão bem apresentadas por Quentin Skinner na história da Alemanha elementos que explicassem os acontecimentos do
(1996), devemos associar as transformações, em termos de secularização, século XX, principalmente o nazismo, ou deixaram de prestar atenção na
das reformas religiosas de cunho protestante. Além de representarem uma singularidade da nobreza dos estados alemães e nos seus modos de atua-
espécie de síntese do vigor do pensamento moderno, as reformas protes- ção, fazendo com que a nobreza alemã, comparada com a europeia, fosse
tantes aceleraram a ruptura com a tutela teológica e com o dogmatismo da identificada como menor em sua competência política e económica.
escolástica, ao mesmo tempo que indicaram um novo caminho de liberdade, Os nobres dos estados alemães conduziram a modernização através de
revelando um novo espaço de atuação do homem na busca da ampliação uma ação que, ao mesmo tempo que expandiu as suas riquezas, manteve os
de seus horizontes.
seus poderes e as suas autonomias, o que não permitiu traçar semelhanças
As reformas protestantes fizeram com que o homem se percebesse como com o que se passou na Inglaterra e na França.
moderno através da exigência concreta de uma ação na realidade, uma in- Um dos exemplos mais contundentes da modernização da nobreza alemã
tervenção da razão humana como consciência da vida. Os resultados desses foi a maneira de conceber o poder do rei e do imperador. Depois da repres-
novos modos de conhecer o mundo e os homens estão até hoje presentes são aos movimentos camponeses no século XVI, as atitudes dos príncipes e
e deles derivaram formas de organização económica que se constituíram nobres evidenciaram a perspectiva de que a unidade política decorria de um
em terreno fértil para o capitalismo, conforme descreveu-nos Max Weber. sistema de aproximações que, ao mesmo tempo que reforçava as unidades
Assim, podemos concluir que as bases da emergência do capitalismo na locais, permitia uma ação mais ampla de controle. Entretanto, o limite dessa
Alemanha são bem anteriores ao século XIX (Weber, 1995). perspectiva foi o elemento que deu origem à ideia de que sem uma ação mais
Durante os séculos XVII e XVIII, a Alemanha revelou intelectuais do concreta, em termos de mudanças nas estruturas de produção e de trabalho,
peso de Kant, Leibniz, Lessing, Herder e outros, desenvolveu a tecnologia não seria possível realizar o controle. Portanto, o impulso modernizador
da mineração e da siderurgia, influenciando o desenvolvimento dessas tec- começou como complemento da manutenção dos poderes locais tradicionais.
nologias na Inglaterra e no resto do mundo (Cassirer, 1996). Sem os tradicionais privilégios da França, os estamentos nobres alemães
Talvez o que tenha feito a historiografia tratar a Alemanha de forma tiveram que se dedicar à produção e à administração dos seus bens, o que
menor seja a sua história política, pois, enquanto a Europa assistiu ao pro- implicou uma presença mais acentuada dessa nobreza nos seus domínios,
cesso de unificação política em direção ao Estado nacional, na área dos fornecendo-lhes a base de conhecimento para ampliar a produção. A nobre-
estados alemães afirmou-se a autonomia das unidades estatais. Alguns his- za, no entanto, não teve um procedimento padrão na Alemanha. De região
toriadores identificaram essa defasagem como decorrente da manutenção de para região, variavam os modos de produzir e as relações de trabalho. Essas
valores feudais, explicitando isso através da manutenção de uma economia variações deram força às unidades estatais e reforçaram a autoridade real
predominantemente agrícola.
e a cultura do Império (Rude, 1982).
Esqueceram, entretanto, que durante esses dois séculos — o XVII e o Durante o século XVIII, os valores das Luzes expandiram-se para a
XVIII — a região da futura Alemanha foi uma das áreas europeias de maior Alemanha, assegurando o desenvolvimento da arte, da religião, da polí-

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O S É C U L O XX AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

tica e auxiliaram no processo de desenvolvimento económico. O exemplo em direção à modernização foi feito por Bismarck, ou, pior ainda, que o
mais elucidativo foi a presença nas cortes dos estados alemães de filósofos caso alemão é resultado da ação burguesa de um Estado feudal. Todas
franceses como Voltaire (Cassirer, 1996). essas identificações deixam de lado a realidade histórica alemã e apenas se
O fortalecimento das unidades estatais e a sua atuação progressista no preocupam em descrever o processo alemão em contraposição aos demais
campo da economia não eliminaram as diferenças e, ao lado desse processo processos de desenvolvimento, excluindo da interpretação elementos que
crescente de modernização, verificaram-se conflitos e guerras decorrentes conduzam a buracos ou vazios.
da consequência lógica do fortalecimento, qual seja a expansão dos meca- A ação do Estado foi decisiva, como também a atuação de Bismarck;
nismos protecionistas que acabaram com as políticas de alianças entre as entretanto, o que fundamentava a política do Estado? O próprio Estado?
unidades estatais. Essa fragmentação não pode nos induzir a achar !que se Ou os interesses dos nobres alemães? A unificação, como estrutura de desen-
manifestou, nesse momento, todo o teor feudal das visões de mundo dos volvimento, resultou da vontade política da Prússia e dos outros estados
estados alemães. A fragmentação resultou de um duplo procedimento — alemães (Skocpol, 1985).
expansão e proteção — que, mesmo antes da unificação do século XIX, foi A política do Estado abriu caminho para a ordenação económica, permi-
revertido, pois os nobres empreendedores verificaram os limites económicos tiu reduções em vários segmentos da economia, conduziu os recursos para
dessas ações. Não causou espanto, por isso, que a unificação alemã tenha setores que precisavam, com a participação dos que detinham as riquezas
sido iniciada pelos acordos económicos (Lowy, 1993). e controlavam os mercados. Os critérios de racionalidade do projeto de
Esse processo lento de modernização foi identificado como conservador ; desenvolvimento decorreram das próprias experiências feitas nos territórios
ou tradicionalista, o que sugere a ideia de que não houve revolução na Ale- alemães e já promoviam a inserção dos valores burgueses pelas formas de
manha, por terem sido as modificações dirigidas por setores identificados organização da circulação de mercadorias.
pela história como tradicionais. Na verdade, as transformações podem A racionalidade garantiu o progresso e manteve a estabilidade política
ter sido lentas, mas foram marcadas por processos de conflitos radicais e do Estado alemão, principalmente a partir da administração de Bismarck,
envolveram a vitória de um projeto que, ao fim, revelou a sua consistência onde os critérios de racionalidade atingiram o ponto mais alto. Assim,
por ter deixado de lado grandes voos filosóficos e haver se orientado sempre a unificação alemã, sob a direção da Prússia, foi resultado de um longo
para a realidade concreta, transformando a história num instrumento de processo de transformações no qual se associaram os valores iluministas
explicação e compreensão do mundo. às experiências dos setores tradicionais, que no momento da unificação
A revolução alemã é comumente associada a uma revolução passiva, já não podiam mais ser considerados como tradicionais, configurando-se
porque era difícil identificar as mesmas dualidades de classe encontradas como setores burgueses que dominavam a economia dos alemães antes da
na Inglaterra e na França. Alguns se referem a esse processo como uma unificação e grandemente responsáveis pela sua realização (Skocpol, 1985).
revolução pelo alto, porque sua vitória dependeu totalmente da intervenção Uma das decisões mais importantes relacionou-se ao processo de for-
de um Estado. Ainda outros qualificam esse conjunto de eventos como uma mação da Liga Aduaneira dos Estados Germânicos — Zollverein —, que
modernização conservadora, porque o processo de constituição do novo, se constituiu na primeira etapa de desenvolvimento da unificação política.
como sociedade burguesa e capitalismo, decorreu da ação conjunta dos Isto porque, além dos resultados concretos em termos económicos — como
setores tradicionais e do Estado com o intuito de expandirem mercados e maiores condições de concorrência com os produtos ingleses em função
concorrerem com os produtos ingleses. Para alcançar esses objetivos, era da eliminação das barreiras internas e dos impostos fiscais sobre as ma-
necessário, primeiro, realizar a unificação. térias-primas, organização da produção agrícola e industrial, aumento da
A questão é que os desdobramentos desses rótulos ou identificações circulação de mercadorias com a expansão dos mercados e a melhoria dos
acabaram por comprometer o próprio entendimento do processo. É comum transportes, além do desvio dos capitais que saíam para as importações,
ler-se que a industrialização alemã foi feita pelo Estado, ou que o avanço transformando-os em novos investimentos internos, disponíveis para a

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O S É C U L O XX AS R E V O L U Ç Õ E S B U R G U E S A S

política industrial e garantindo o equilíbrio da balança comercial com a da feição mais geral do capitalismo internacional mas da tradição política
redução das importações —, houve a busca de um sentimento nacional que centralizadora (Skocpol, 1985).
pudesse englobar a identidade germânica. Por outro lado, a estruturação da nova economia alemã abriu caminho
Os anos 1833 e 1834 anunciaram um processo consciente de revolução para o avanço do modo de vida burguês e, em consequência, para pressões
industrial, dirigido pela região — a Prússia —, que já havia experimentado, políticas orientadas para a busca de autonomia e de participação nas deci-
com maior radicalidade, a modernização conservadora. sões do Estado. Essa ação dos homens empreendedores da nova Alemanha,
Entretanto, esse processo não teve um desenvolvimento sem conflitos. No identificada com uma política liberal, chocou-se com os interesses dos setores
nível das relações entre as regiões, a Áustria comportou-se como oposição tradicionais, pois colocava em xeque a política de centralização.
à liderança prussiana, mas foi derrotada pelos sucessos da Liga Aduanei- A escolha de Bismarck, cuja biografia o identificava como antiliberal
ra. No nível interno das relações sociais, os conflitos e as tensões também e partidário da monarquia centralizada com forte controle político-admi-
atuaram como identificadores da força de exclusão da revolução passiva e nistrativo, inseriu-se nesse conflito de interesses. A ação de Bismarck, no
do caráter centralizador da intervenção estatal de Bismarck. O processo, entanto, mesmo conservando a sua rigidez autoritária, dirigiu-se para uma
no século XIX, atingiu uma velocidade que até então não havia sido im- composição de interesses, especialmente porque para o ministro era funda-
pressa às mudanças e, neste aspecto, as consequências foram complicadas: mental a unificação política e a modernização do Estado e da sociedade.
com a unidade fragmentada foram suscitadas reações de isolamento que A questão da militarização não se prendeu apenas às tradições prussia-
prejudicaram a unificação (Henderson, s.d.). nas ou ao opositor austríaco, funcionou como elemento de mobilização da
Entretanto, eles não foram suficientes para barrar o crescimento econó- ideia do sentimento de nação alemã, ultrapassando os conflitos locais e co-
mico. A partir de 1860 e principalmente no ano de 1861, com a ascensão de locando-se acima do Estado. A prática burguesa de oposição apresentou-se
Bismarck ao Ministério de Guilherme I da Prússia, ampliaram-se os distritos concretamente contra a política de Bismarck quando este, para manter as
industriais, cresceram as cidades em atividade económica e população e suas diretrizes, propôs a extensão do tempo do serviço militar obrigatório
desenvolveram-se os mercados. e a elevação dos impostos para financiar a política militar. Com a intenção
Mas a grande transformação ocorreu com o crescimento da malha de levar adiante os seus objetivos, Bismarck passou por cima dos interesses
ferroviária. A ampliação de 2.000 km para mais de 10.000 km acelerou e radicalizou o seu controle sobre a sociedade, aprimorando a intervenção
a industrialização, com a integração das áreas de produção às áreas for- do Estado, garantindo a unificação política, mas deixando permanecer a
necedoras de matérias-primas, e exigiu o aumento da produção de carvão oposição. O problema da oposição liberal foi que o seu projeto era o mesmo
e de ferro, em decorrência das novas estradas de ferro. Neste movimento de Bismarck: divergiam na condução do projeto e a força de controle do
propulsor desenvolveram-se a siderurgia, a metalurgia e as artes mecânicas, ministro acabou por ser o elemento de decisão (Skocpol, 1985).
o que acabou por impulsionar o ensino técnico-científico, ao lado do cultivo Se no contexto mais amplo foi possível observar como se processou
das humanidades. o desenvolvimento da industrialização alemã, controlada pelo Estado e
As novas condições eram tão significativas que a Áustria tentou entrar conduzida por ações aparentemente sem relação com os valores liberais,
na Liga Aduaneira, ela que no primeiro momento havia se excluído da no plano político esse processo revelou-se extremamente autoritário, não
fundação do Zollverein. O coroamento dessa política foi a vitória alemã apenas em suas instituições, mas na sua aplicação, ou seja, em suas políticas
na Guerra Franco-Prussiana de 1870. Além disso, o sucesso da industria- para a sociedade.
lização funcionou como atenuador dos conflitos sociais na medida em As tensões sociais, dominadas pela força, revelaram a presença naquela
que aumentou a oferta de trabalho. A vertigem do crescimento económico sociedade de interesses diferenciados. Os Junkers, proprietários de terras
amadureceu a unificação política e determinou o modo de desenvolvimento de origem nobre, eram os grandes baluartes da economia. Acostumados
do capitalismo através da concentração monopolista, não apenas em função com as guerras, esses nobres experimentaram um modo de vida distinto

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O S É C U L O XX AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

dos seus pares da Europa (Kemp, 1985). Desde cedo envolveram-se com a Quando Lenin analisou a via prussiana, embora assumisse uma posição
produção para o mercado, atuando como empresários, mas também não crítica, considerou-a, em conexão com a realidade russa, como um tipo de
se esquivaram de atuar politicamente, reforçando os poderes locais. Asso- desenvolvimento particular do capitalismo e da industrialização que justi-
ciando esses aspectos a sua tradição, eles eram reconhecidos como aqueles ficava a revolução na Rússia, ou seja, considerava a realidade alemã como
que davam sentido ao próprio Estado como reserva moral das tradições. já sendo capitalista e promotora da modernização.
Além disso, boa parte desses Junkers diversificou as suas atividades
económicas, investindo no comércio e na indústria, favorecendo a manu- 6. A experiência americana: a formação dos Estados Unidos da América
tenção das tradições pelo domínio familiar da economia. As famílias eram
reconhecidas pelo tipo de atividade económica que desenvolviam. A ordem A via americana envolveu a recepção dos valores europeus na América e a
interna da casa representava a identidade da ética que movia essa economia. criatividade decorrente das formas de adaptação da nova área às experiên-
As guerras e os conflitos religiosos só fizeram consolidar essas tradições, cias anteriores.
ao mesmo tempo que abriram caminho para o crescimento de atividades A formação da nação americana teve sua origem na Europa, o que não
complementares. A economia agrícola manteve-se dominante, mas atuou quer dizer que a história dos Estados Unidos da América seja simplesmente
como realizadora de outras atividades; neste aspecto, as relações sociais uma decorrência da história inglesa. Ao contrário, a via americana foi o
distribuíam-se de modos variados (Weber, 1995). desenrolar de um processo particular determinado pela junção entre ação
Essas variações confirmavam a política pessoal dos Junkers e faziam com humana e ambiente natural (Gusdorf, 1993).
que a diferenciação social entre as várias regiões apresentasse conflitos Devedores dos valores europeus, a experiência americana reuniu a dis-
com tons e problemas diferenciados. ciplina religiosa puritana à ação social e como consequência produziu uma
Como não nos cabe aqui examinar pontualmente cada tipo de conflito, nação na América capaz de elevar os valores das Luzes ao seu lugar mais alto.
iremos apenas, com o perigo da generalização, indicar os pontos comuns. A partir do século XVII iniciou-se a saga lenta da formação dos Estados
As relações sociais no campo eram, em sua grande maioria, determinadas Unidos da América. Ao norte, região sob o controle da Nova Inglaterra, as
pelo controle pessoal do proprietário, o que fez com que tanto a servidão terras foram ocupadas pelas colónias de Massachusetts, New Hampshire,
como o trabalho assalariado fossem comuns. Rhode Island e Connecticut, que reuniram juntas uma população em tor-
Além disso, mesmo nas áreas de maior domínio servil, os camponeses no de 700 mil habitantes. Na região central localizaram-se as colónias da
possuíam certas liberdades que garantiam a sua sobrevivência, permitindo Pensilvânia, Nova York, New Jersey e Delaware, cuja população chegou a
o alcance de alguma riqueza que os inseria no mercado das trocas. As ati- 530 mil habitantes. Ao sul, onde se concentrou o maior número de colo-
vidades complementares eram o artesanato e a criação de gado. nos, cerca de l milhão de habitantes, fundaram-se as colónias de Virgínia,
O crescimento urbano e as ligas aduaneiras ampliaram a produção do Maryland, Carolina do Norte, Carolina do Sul e Geórgia (Naro, 1987).
mundo agrícola, elevando as rendas de todos os que se ocupavam dos campos. O crescimento dessas colónias fixou-se nos parâmetros do processo de
O clima de liberdade de circulação fez com que os camponeses se envolvessem fundação da modernidade europeia. O desenvolvimento foi desigual e dife-
também com atividades mercantis, garantindo o seu acesso a alguma forma renciado. Na região do norte e do centro desenvolveu-se a pequena e média
de propriedade da terra. Em nenhum momento, entretanto, observou-se a propriedades, baseadas, em termos globais, no trabalho livre, realizado em
aquisição, por parte dos setores subalternos, de direitos políticos. grande parte pelo próprio proprietário e sua família. Havia ainda, em algu-
Os avanços económicos tiveram um papel importante na superação dos mas áreas dessas regiões, o trabalho temporário, de acordo com o sistema
conflitos, pois propiciaram o desenvolvimento de novos ramos da economia. de colheitas dos produtos agrícolas e das estações do ano. Esse trabalho
A diversificação económica consolidou o mundo da produção e organizou temporário compreendeu contratos que absorviam parte das novas levas de
o sistema de trabalho, garantindo o sucesso da via prussiana. colonos, que vinham complementar a escassez de mão de obra permanente.

132 133
O SÉCULO XX

A produção no norte e no centro dos Estados Unidos da América


organizou-se a partir de critérios racionalistas, fazendo com que a produ-
ção, desde o início, já tivesse capacidade de abastecer o mercado interno e
concorrer no mercado externo. A concorrência verificou-se principalmente
com os ingleses metropolitanos, uma vez que a semelhança entre os produtos
coloniais e europeus era absoluta. Os resultados foram, do lado americano,
a continuação de sua ação produtiva e, do lado inglês, a redução de sua
presença nos mercados coloniais americanos, determinando o início de
um processo de conflitos, importante, nesse momento, porque politizava >' •-•>. N -yv % ,
as relações e mostrava aos colonos que o caminho a ser seguido era o que \; ° \ —>-x a í .-
eles haviam idealizado (Rude, 1982).
Os principais produtos eram a madeira, os produtos oriundos da ativi-
dade pesqueira e os produtos ligados à navegação e eram eles que represen-
taram a presença americana na balança comercial inglesa.
Como o volume de produtos não era ainda significativo e as regiões eram
ricas em matérias-primas, a política inglesa abriu mão de proibir a produção
de manufaturas na América e incentivou o desenvolvimento industrial. A
Inglaterra, mais tarde, veio a se arrepender de ter criado a base de desen-
volvimento das indústrias coloniais e de ter constituído uma região capaz,
a médio prazo, de concorrer com os produtos industriais metropolitanos,
em função do aumento constante da produção e, com ela, da necessidade
de ampliar mercados. De qualquer maneira esse movimento em direção
ao progresso já mostrava a força que a ética de vida dos colonos possuía
(Naro, 1987).
Além disso, como as colónias do sul dependiam mais fortemente da me-
trópole, as áreas do norte e do centro criaram mecanismos de circulação
próprios, aumentando as suas rendas sem a intervenção inglesa. A simplici-
dade dos procedimentos de trocas facilitou o desenvolvimento e a expansão
dessas regiões, garantindo-lhes a sobrevivência sem depender da Inglaterra.
Esse movimento em direção à autonomia agitou as cabeças dos colonos,
que desde cedo descobriram mecanismos para garantir as suas liberdades.
No sul, o comércio com a Inglaterra era feito em torno de produtos tro-
picais como tabaco, anil e algodão e da importação dos produtos manufa-
turados ingleses. Em função dessa relação entre a metrópole e o sul colonial
americano, a propriedade, na região, apresentou-se sob a forma da grande
propriedade com o uso da mão de obra negra, na forma da escravidão.
-mundo regionais, quando ainda preservavam sua autonomia
134
A revolução americana:
a liberdade pela lei

Na teia armada pelos roteiros de viagens, a integração do mundo


,0 império do Sol
O colonialismo como a glona do império

A rainha Victona e os
grandes de seu tempo:
onipotência e eternidade
de uma sólida Ordem

O Império Britânico, onde o Sol jamais se punha

A moda, o charme e a elegância da belle époque

1
Resistências ao capitalismo: plebeus, operários e mulheres

Mulheres no batente:
nas dobras da exploração,
a promessa de emancipação

A África em 1880, ainda apenas aflorada pelos europeus

Greves e bandeiras vermelhas:


a cólera dos oprimidos
A resistência dos povos a partilha do mundo A Primeira Grande Guerra

CANÁRIAS
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Estado livre dos bôfKOs

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A partilha da África

A Europa em 1914: alianças preparadas para a guerra


O lado obscuro da guerra: o inferno das trincheiras

O desmembramento e enfraquecimento da Europa depois da


Primeira Guerra Mundial: o mundo perdera um centro
A Primeira Grande Guerra
AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

A peculiaridade das colónias do norte e do centro permitiu um desen-


volvimento autónomo, que, além da concorrência com os ingleses em largas
áreas, inclusive no sul dos Estados Unidos da América, alargou sua presença
sobre a América Central e as regiões atlânticas da África.
Os conhecidos "comércios triangulares" foram estruturados a partir
do comércio de peixes, madeira, gado e de produtos agrícolas das regiões
antilhanas, onde os colonos do sul obtinham melaço para o rum, que con-
corria com a produção das Antilhas nos mercados africanos. O açúcar fazia
parte do circuito que ligava a Filadélfia, Nova York ou Newport, onde era
trocado por produtos coloniais e enviado da África para a Inglaterra. O
retorno fazia com que os colonos recebessem tecidos e instrumentos de ferro.
Outra ligação comercial importante era aquela que ia das colónias para
o mundo ibérico. Em troca dos produtos coloniais, os colonos conseguiram
receber sal, frutas e outros, que eram enviados à Inglaterra em troca de
produtos manufaturados.
O avanço económico das Treze Colónias começou, aos poucos, a do-
minar os mercados atlânticos e a disputar a primazia sobre eles com os
comerciantes metropolitanos, dando origem ao processo de tensão entre
a área colonial e a metrópole que acabara por emancipar as colónias, mas
que no momento exigiu uma ação de força da Inglaterra.
Diante da concorrência das colónias, a Inglaterra passou a desenvolver
uma política de controle mais acentuado. Não que interessasse à metrópole
eliminar a produção colonial, mas estava na hora de reorientá-la no sen-
tido de atender mais de perto às necessidades inglesas. No fundo, o que a
metrópole fez foi aplicar as leis que já presidiam as relações entre as duas
áreas. Entretanto, esse reposicionamento inglês não se deveu apenas ao
processo de crescimento das colónias. Havia também a questão do avanço
colonial francês em direção à América Central, ao Canadá e à Louisiana.
O avanço francês era mais preocupante porque tornava os franceses
Na guerra química, os homens tornam-se monstros
parceiros comerciais das colónias, possibilitando o domínio dos mercados
do Atlântico Norte. A Guerra dos Sete Anos, que ocorreu entre 1756 e
1763, foi o auge da uma tensão que se arrastava desde o início do século,
que envolveu em determinados momentos Portugal, França e Inglaterra e
que em 1710 fez com que os franceses invadissem a Baía de Guanabara, em
represália ao não cumprimento, por parte de Portugal, dos acordos com
relação às Guianas (Rude, 1982).

Mapas das páginas 3, 4, 7, 8, 9 e 10: Atlas Stratefllque, Gérard Chaliand e Jean-Pierre Rageau
Outras imagens: arquivos dos autores
O S É C U L O XX AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

Na passagem da primeira para a segunda metade do século XVIII, a trativo e burocrático, exigindo a selagem em documentos legais, contratos,
tensão aumentou e deu origem a um conflito mais violento, porque não jornais, opúsculos e até baralhos de cartas e dados de jogo.
estavam em jogo na guerra apenas os interesses de ambos os estados na As respostas dos colonos concentraram-se na Lei do Selo, com a argu-
América, mas também a hegemonia na Europa. mentação de que era um imposto que incidia sobre a vida interna da colónia,
Com a vitória inglesa, reforçou-se o poder metropolitano na medida em e não sobre as relações entre a Coroa inglesa e os colonos. Entretanto, o que
que a anexação das áreas de domínio francês estabeleceu uma nova base preocupou mais os colonos foi que as novas leis acabaram por limitar não
para a presença inglesa na América, além de justificar medidas de proteção, apenas o comércio externo de exportação, mas também as importações,
com o posicionamento de forças militares inglesas no Atlântico Norte. fundamentais para o crescimento económico, pois o peso do pagamento
Entretanto, a estratégia metropolitana foi além do que aumentar sua área dos novos impostos diminuía a acumulação interna da riqueza e reduzia
na América. Com a justificativa de que os novos territórios beneficiavam a circulação monetária, impossibilitando a produção de alternativas que
os colonos como área natural de expansão da produção e dos negócios, os pudessem aliviar as novas cargas fiscais (Rude, 1982).
ingleses aprovaram no Parlamento uma solicitação de que os colonos ame- Em 1765, os colonos reuniram-se em Nova York para discutir as leis
ricanos arcassem com os custos da guerra com os cidadãos metropolitanos, inglesas. A realização desse congresso, embora fizesse questão de manter
alimentando com isso o ideal de unidade. a posição de obediência à Coroa, significou o avanço político dos colonos,
No quadro geral das relações entre colónia e metrópole, a manifestação que criticaram as restrições comerciais, tomando a decisão de não mais
do Parlamento envolveu mais do que pagamentos de guerra. Os custos da realizar qualquer forma de comércio com os ingleses, o que representava
guerra serviriam para a retomada dos direitos ingleses sobre a América e criar altos prejuízos para os homens de negócios da Inglaterra e para a
ainda era uma forma de represália pela atitude passiva dos colonos diante riqueza inglesa em geral.
da guerra com os franceses. A estratégia dos colonos foi a de colocar os comerciantes ingleses contra
Além disso, o aumento da intervenção fiscal incidiu sobre os produtos, a Coroa, fazendo-os seus aliados e automaticamente em grupos de pressão
elevando seus preços e diminuindo a capacidade de presença dos colonos sobre o Parlamento para eliminação das leis. Essa política foi coroada de
nos mercados, abrindo espaço para a ação inglesa e criando limites para a sucesso, e o Parlamento, pressionado pelos comerciantes ingleses, aboliu a
autonomia dos colonos. Na verdade, a derrota francesa já havia sido um Lei do Selo e as taxas sobre o açúcar.
grande castigo para os colonos, que perderam os mercados franceses. O resultado positivo alargou o horizonte de expectativas dos america-
A nova posição de pressão da Inglaterra possibilitou o avanço da cons- nos, anunciando a retomada da luta pela autonomia e aprofundando as
ciência política dos colonos, que viam a construção de sua liberdade amea- críticas à política inglesa. No entanto, esse movimento precisou de uma
çada. O resultado foi a radicalização de posições e a explosão de conflitos base filosófica que se identificava principalmente com os objetivos do pro-
que concretamente ocorreram em função, em primeiro lugar, do envio para gresso económico e social. As ideias das Luzes transformaram-se na base
as colónias de uma nova força militar metropolitana encarregada de definir de orientação da ação dos colonos, adaptadas aos valores éticos e morais
a nova posição inglesa na América, não simplesmente em função da presença resultantes das suas conquistas (Naro, 1987).
dos soldados, mas porque as autoridades inglesas fizeram recair sobre os A demonstração dessa nova etapa de desenvolvimento das ideias dos co-
colonos a manutenção da tropa através de duas novas leis aprovadas pelo lonos verificou-se durante o ano de 1766, quando foi discutida a autoridade
Parlamento: Lei do Açúcar e Lei do Selo (Naro, 1987). do Parlamento metropolitano em negócios internos da colónia, através do
A Lei do Açúcar, de 1764, limitou a autonomia comercial dos colonos, repúdio à chamada Lei do Aquartelamento, que exigia dos colonos prio-
impedindo que a riqueza colonial crescesse e interferindo no alcance do ridade no auxílio para alojamento, alimentação e transporte das tropas
comércio interno. Já a Lei do Selo, de 1765, estabelecia um controle adminis- inglesas assentadas na colónia.

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No fundo, os colonos começaram a entender que só seria possível manter da terra sentiram-se reprimidos pela Coroa. Em primeiro lugar, porque o
a liberdade e a autonomia se eles se organizassem coletivamente através de alargamento da fronteira agrícola diminuía o controle metropolitano; em
um governo que os protegesse e garantisse os seus direitos. segundo lugar, os novos agricultores do oeste passaram a concorrer com
As autoridades metropolitanas, percebendo o avanço da política colonial os ingleses no comércio com os índios. A saída encontrada pelos ingleses
e da recepção das ideias iluministas, atacaram mais pesadamente e, através foi estabelecer um limite para os pioneiros, utilizando para isso os índios
dos chamados Atos Townshend, impuseram o pagamento de impostos através da demarcação de suas reservas.
sobre produtos importados como o chá, os vidros, o papel e as tintas. O O ato derradeiro ocorreu em 1764, quando a metrópole determinou que
que apareceu como novo foi que esses atos vieram acompanhados de for- as terras disponíveis fizessem parte do controle metropolitano de Quebec.
mas concretas de cobrança, como a constituição de Juntas Alfandegárias, As consequências mais pesadas para os desbravadores foram a perda das
encarregadas de cobrar os impostos e que, para desespero dos colonos, propriedades pela limitação de seu uso ou pela sua venda em busca de novas
passaram a gozar de autoridade para fazer buscas nas casas comerciais áreas, principalmente de minas de ouro. Também, os proprietários do sul fo-
e nas residências dos colonos em apuração de situações de contrabando. ram afetados pela política inglesa. A baixa tecnologia aplicada na produção,
A reação seguiu a direção já anteriormente indicada de pressão sobre provocando o esgotamento das terras, fez com que os colonos procurassem
os comerciantes ingleses através do boicote das importações, reduzindo a constantemente novas terras, também limitadas pelos atos metropolitanos.
circulação e provocando crises nos negócios. Novamente o resultado foi A situação se complicou com a proibição da emissão de dinheiro na co-
positivo e os atos foram abolidos. Entretanto, o sucesso não foi integral. A lónia, também em 1764, o que limitava o aumento das rendas e intervinha
Coroa inglesa não só manteve o imposto sobre o chá, como o aprimorou, nas formas tradicionais de organização das trocas. O descontentamento
através de uma nova regulamentação que veio em 1773 com a Lei do Chá com a metrópole tomou a sociedade de colonos como um todo e anunciou
(Tea Act). um embate que fez surgir uma nova nação.
A Lei do Chá, na verdade, era complicada, pois, de um lado, diminuía o O que mais preocupava os colonos era a organização coletiva da opo-
preço do chá, mas, de outro, eliminava os ganhos dos intermediários, uma sição à metrópole que só poderia ser concretizada pela construção de uma
vez que dava o monopólio de circulação à Companhia das índias Orientais. direção política que garantisse as liberdades, as autonomias e as diferenças.
Os prejuízos foram grandes e colocaram um novo problema: depois do chá, A questão era que a possibilidade de construção desses direitos políticos
outros produtos também poderiam receber o mesmo tratamento. dependia da emancipação. Amadureceu, então, a ideia de que só a elimina-
A reação dos comerciantes coloniais assumiu a dimensão da violência ção dos laços de dependência seria suficiente para manter a liberdade e a
social. Em Boston, eles destruíram as caixas de chá que estavam nos porões autonomia.
dos navios ancorados no porto (The Boston Tea Party). A discussão começou com a convocação do Primeiro Congresso Conti-
A retaliação inglesa foi imediata e radical, pois as ações dos colonos nental de Filadélfia, em 1774. Os debates mostraram que as posições dos
começavam a sair do controle da metrópole. Em 1774, o Parlamento inglês colonos se dividiam entre a independência e as tentativas de fazer com que
votou as conhecidas Leis Intoleráveis, que redefiniam as formas de auto- a Coroa reconhecesse os direitos dos colonos. Vencedores, os reformistas
ridade da Coroa na colónia, impedindo que os colonos tivessem qualquer demarcaram o sentido da obediência à Inglaterra e mandaram uma petição
autonomia ou liberdade e incidindo sobre a livre circulação dos homens, ao Parlamento e ao rei. O conteúdo da petição revelava o desgaste das rela-
das ideias e da sua expressão (Naro, 1987). ções entre os dois lados, fazia uma análise dos prejuízos e, por fim, solicitava
Não apenas os comerciantes se organizaram contra os ingleses, os a eliminação das leis de restrição à vida dos colonos (Eisenberg, 1982).
agricultores também sofreram com a política metropolitana e estavam Um detalhe marcou a petição, detalhe que evidenciou a presença de
ressentidos com a Coroa. Estimulados a avançar na ocupação para o oeste, uma proposta de definição dos interesses dos colonos através da ideia de
como modo de afastar as pretensões francesas e espanholas, os homens igualdade de direitos em relação aos cidadãos metropolitanos. As divisões

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entre os colonos e a pouca atenção da Coroa deram origem a conflitos Ocidente, era preciso que ela atingisse a sociedade como um todo. Entre-
que aumentaram a partir de 1775, quando os mais radicais passaram a se tanto, o próprio momento da independência mostrou que os interesses dos
organizar militarmente. ex-colonos das várias regiões eram distintos e haviam tomado um corpo
Em 1775, reuniu-se um Segundo Congresso Continental em Filadélfia único, na forma de uma nação soberana e livre, em função de um inimigo
que, com a organização armada dos colonos, veio a fomentar a separação. comum: a Inglaterra.
Nesse congresso despontaram duas figuras importantes no processo de Associe-se a isso a expansão reprimida no momento anterior à revolução,
construção do Estado americano: George Washington — comandante das o aumento populacional e as imigrações, produzindo limitações ao controle
forças dos colonos — e Thomas Jefferson — intelectual encarregado de social. Além disso, o governo, deliberadamente, ocupou-se de aumentar
redigir o documento de concretização da vontade dos colonos de construir o território e a população. Em 1803, comprou a Louisiana à França; em
um novo Estado e especialmente a Declaração de Independência, que deveria 1819, adquiriu a Flórida da Espanha; em 1845, anexou o Texas; em 1846,
conter os valores que regeriam os direitos do homem americano.
foi a vez do Oregon e, em 1848, após a guerra com o México, incorporou
A presença de tropas inglesas transformou a luta pela emancipação em
a Califórnia, os estados de Nevada, Utah, Arizona e Novo México.
guerra pela independência. Durante o processo da guerra, os dirigentes
Aumento de população e condições políticas favoráveis fizeram com que
americanos enviaram representantes aos vários Estados europeus para
a nação americana recebesse, ao longo da primeira metade do século XIX,
apresentar o projeto dos ex-colonos, o que garantiu a ajuda dos franceses
um grande número de imigrantes. Os resultados foram a continuação do
e espanhóis através de Benjamin Franklin.
alargamento da fronteira oeste e a corrida do ouro na costa do Pacífico.
Em 1783, com o Tratado de Versalhes, terminaram os conflitos e a inde-
pendência foi reconhecida. Em 1787, foi redigida e promulgada a primeira A diretriz do Estado americano foi a de fortalecer a ocupação territorial
Constituição dos Estados Unidos da América, que apresentava como novi- e, em 1862, através do Homestead Act, o governo autorizou a distribuição
dade a criação de um governo republicano presidencialista com a divisão gratuita de terras aos estrangeiros, afetando as áreas indígenas e levando
em três poderes, já com clara influência de iluministas, como Montesquieu. ao início do seu extermínio.
Também nessa oportunidade, George Washington foi eleito primeiro pre- As atuações estatais se ocuparam de aprimorar o sistema de governo
sidente americano (Eisenberg, 1982). sem interferir nos territórios que tradicionalmente compunham as antigas
A Declaração de Independência, de 4 de julho de 1776, representou, áreas dos colonos. As diferenças entre elas foram mantidas, produzindo o
de forma clara e límpida, o ideal dos ex-colonos associado aos valores da desenvolvimento económico desigual e em condições singulares. As áreas
Luzes, pois reconhecia a igualdade e os direitos naturais, por obra divina, agrícolas aumentaram a sua produção, principalmente de algodão, em
a vida, a liberdade e a felicidade, identificando o governo como a justiça função da industrialização europeia. O sucesso do algodão fez avançar as
garantidora dos direitos. ferrovias e o uso da maquinaria na agricultura em virtude do fato de que a
É importante registrar que, embora influenciados pelos valores da razão oferta de trabalhadores não se adequava ao ritmo da demanda.
moderna, a experiência americana da independência deveu muito à tradi- Por outro lado, os sucessos mostraram dois modos diferenciados de cres-
ção das formas de colonização. O que deu sentido à nação americana foi o cimento que, de certa maneira, confirmaram as diversidades de origem. Os
aprendizado de liberdade que envolveu a construção das colónias. estados do norte, desde o início voltados para o incremento da produção,
baseados nas fazendas e com mão de obra assalariada, estimularam a sua
6.1. A consolidação do capitalismo nos Estados Unidos da América riqueza, a partir de 1860, com uma política deliberada de industrialização.
Os estados do sul, desde o início, tiveram um sistema de grandes pro-
A euforia da independência escondeu problemas que foram reaparecendo ao priedades, de base escravista, e aceleraram o seu enriquecimento através do
longo do século XIX e que determinaram a Guerra de Secessão em 1860. aumento da produção do algodão, cuja comercialização agora não se dava
Embora a forma política desenvolvida fosse, à época, a mais avançada no apenas com a Europa, mas também com as indústrias dos estados do norte.

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O crescimento dos estados do norte e do sul, ao mesmo tempo que fa- Para o sul tornou-se fundamental a ampliação de áreas onde fossem
voreceu a nação americana, representou a abertura das tensões por conta utilizados os escravos negros.
das políticas económicas. Concretamente, havia dois modelos económicos A posição do norte era manter a linha desenvolvida no processo de ocu-
e ambos apresentavam resultados positivos. Entretanto, no plano político, pação através dos imigrantes e dos trabalhadores livres, pois significavam
o modelo que melhor representava os ideais da democracia americana era mercados para a produção nortista. Mais competentes intelectualmente,
o dos estados do norte, pois os estados do sul traziam a mancha da escra- as elites nortistas desenvolveram a campanha pela abolição da escravidão
vidão negra, que funcionava como marca negativa para a consolidação de baseada na reapresentação dos valores que haviam criado a nação ameri-
uma nação civilizada. cana: a igualdade entre os homens e a moral religiosa oriunda dos preceitos
Essa pressão sulista para manter a escravidão já havia apresentado pro- bíblicos (Weber, 1995).
blemas em 1828, com conflitos derivados da política tarifária. Cada área O primeiro resultado positivo da luta dos nortistas foi o Acordo do
reivindicou condições diferentes. Enquanto para o sul eram melhores as Mississippi de 1820, que limitava a escravidão à área do Estado americano
taxas baixas de importação e exportação, porque assim a economia cres- abaixo do paralelo 36. A formação dessa dualidade fez avançar estratégias
ceria, com o aumento da venda dos produtos agrícolas, e com os produtos de fuga de negros do sul. Também alguns estados que estavam na região
importados baratos as condições de vida dos sulistas melhorariam. Além delimitada passaram a integrar os que proibiram a escravidão, como a
disso, o sul não dependeria dos produtos do norte (Naro, 1987). Califórnia. O parecer favorável à solicitação da Califórnia produziu a
Para os interesses dos estados do norte, as tarifas deveriam ter um sen- abertura de uma brecha para que a direção nortista do Estado nacional
tido protecionista e, nesse aspecto, tinham que se manter altas para tornar ampliasse a sua política antiescravista através do Compromisso Clay, de
viável o aumento de mercados para seus produtos industriais. 1850, que transferiu a decisão sobre a escravidão para cada estado, ouvidos
No fundo, os estados do norte, unidos politicamente, estavam interessa- os seus habitantes.
dos em gerar a autonomia do Estado americano através da formação de um A questão da escravidão politizou a sociedade americana e as pressões
forte mercado interno e de uma parceria com o sul. O algodão serviria para sobre os escravistas aumentaram, saindo do controle do Estado e iniciando
aumentar as indústrias têxteis, e a incorporação de outras áreas fornecedo- os primeiros conflitos entre nortistas e sulistas. Os dois partidos políticos
ras de matérias-primas, no centro e no oeste, auxiliaria na diversificação — Democrata e Republicano — passaram a tentar conduzir a questão. Os
dos investimentos e dos produtos. Como para a concretização do projeto republicanos optaram pela abolição, mas queriam apaziguar os conflitos e
era preciso aumentar a malha ferroviária, ampliando as comunicações e manter a União. Em 1860, eles apresentaram como candidato às eleições
produzindo o crescimento urbano, pois só assim os investimentos teriam Abraham Lincoln. Os democratas, que eram mais fortes politicamente,
sentido, a questão se colocava da seguinte maneira: o norte precisava de estavam divididos, o que não permitiu a unidade em torno de um nome
sócios na empreitada, e o sul era o sócio ideal; juntos poderiam consolidar para a Presidência, favorecendo a vitória de Lincoln e dos republicanos
a unidade territorial e desenvolver a economia, tornando-a nacional. (Eisenberg, 1982).
Na perspectiva do norte, a manutenção do trabalho escravo no sul era Entretanto, a polarização em torno da escravidão fez o seu primeiro
um obstáculo ao sonho de um forte mercado interno, pois impossibilitava efeito com o desligamento da União, ainda em 1860, da Carolina do Sul,
que um grande contingente da população se convertesse em consumidores. seguida de outros territórios, que passaram a formar os Estados Confede-
Entretanto, nas condições do sul, a escravidão garantia o desenvolvimento rados da América.
da base económica. A Guerra de Secessão era iminente e durante cinco anos a guerra civil
Depois de 1815, o preço dos escravos aumentou por conta da proibição alastrou-se pelo território americano. A vitória do norte significou a hege-
do tráfico negreiro e os proprietários do sul passaram a criar escravos monia do modelo industrial em bases diferentes daquilo que tinha sido o
negros. Suas áreas de produção eram divididas entre algodão e negros. desenvolvimento inglês.

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Baseado na industrialização radical que envolveu o avanço sobre as áreas o problema da destruição de áreas agrícolas, o que determinou a dissemi-
agrícolas do sul, a economia americana, sob a direção do norte, lançou-se nação da miséria e da carestia entre os setores subalternos.
definitivamente no processo de afirmação da racionalidade capitalista, Essas crises, que ocorreram periodicamente, também revelaram um
possível graças à unificação, às condições internas de desenvolvimento e processo de deterioração do poder do xogunato com o surgimento de
ligada diretamente à política da Doutrina Monroe, de 1822 — "a América lideranças regionais que disputavam os privilégios e o controle do poder.
para os americanos". No século XIX, o confronto entre o poder central e os poderes locais
Racionalidade, investimento, trabalho e tradição religiosa, somados aos ganhou uma nova dimensão. Ante as restrições impostas pelo poder central,
empreendimentos de desenvolvimento da ciência e de sua aplicabilidade às os poderes regionais, como estratégia para a ampliação de suas riquezas,
indústrias, propiciaram o crescente desenvolvimento americano, que passou propuseram a eliminação do isolamento com o exterior.
a ocupar o lugar que nos séculos XVIII e XIX havia sido da Inglaterra, Em 1853, conseguiram que o xogunato, enfraquecido pelas contradições
substituindo a denominação de Revolução Industrial pelas denominações internas, abrisse os portos japoneses aos comerciantes ocidentais, daí resul-
mais contundentes do século XX: americanismo e fordismo. tando importantes modificações na economia e na sociedade japonesa, todas
elas relacionadas ao processo de ocidentalização. Cresceram o comércio e
a indústria e apareceram os primeiros núcleos urbanos especializados na
7. A inserção do Japão na economia-mundo: a emergência do capitalismo
relação entre produção e comércio.
A partir de 1854, com o Tratado de Kanagawa, consolidou-se a abertura
Para que se tenha uma ideia mais clara da evolução japonesa em direção
do Japão e iniciou-se a expansão nipônica sobre a Ásia. Estabeleceram-se
ao Estado nacional torna-se necessário estabelecer alguns fatos relevantes
concessões aos Estados Unidos da América e foram firmados acordos co-
na história japonesa para a compreensão da revolução Meiji.
merciais com a Inglaterra, a França e a Rússia.
O Japão, depois de ter sido objeto da ação expansionista europeia nos Essas alterações nas condições de desenvolvimento da economia pro-
séculos XV e XVI, a partir de 1680, com o xogunato Tokugawa, realizou jetaram-se sobre a vida política e determinaram o surgimento de novos
um processo crescente de isolamento, aliado a uma forte repressão interna conflitos. Esses conflitos iam desde questões relacionadas à manutenção
que produziu a centralização política e a hierarquização da sociedade através da tradição cultural e religiosa oriental até a luta por terras. O desenvolvi-
de um movimento de privilégios do segmento Kuge — nobreza cortesã —, mento dessas tensões acabou por significar o fim do xogunato e a criação
que funcionou como garantidor da legitimidade do xogunato e dos Dai- do império, depois das tensões entre os nobres proprietários de terras do
mio — nobreza feudal/proprietários de terras. Abaixo desses segmentos norte e os guerreiros samurais do sul.
encontramos os Heimin — a sociedade não privilegiada — e os Eta ou A guerra entre o norte daimio e o sul samurai indicava a existência de
Hinin — párias —, que se ocupavam do trabalho nas cidades e no campo, dois modos diferentes de observar o desenvolvimento do Japão. Do lado dos
com um estatuto muito próximo àquele do servo europeu da Idade Média. daimios, a pressão de autonomia e liberdade de circulação, que apostava na
Grande parte dessas categorias subalternas dedicava-se ao trabalho no continuidade do xogunato mais descentralizado, e, de outro, os samurais, re-
mar, ou seja, atuava na pesca e na produção de barcos. Entre os segmentos querendo um poder centralizado forte que pudesse garantir o desenvolvimento
privilegiados e os excluídos observa-se a existência da Samuria, formada de uma política de abertura controlada no sentido de manter as tradições.
por funcionários da burocracia do xogunato e de guerreiros e de vassalos
dos daimios (Skocpol, 1985). 7. 1. A passagem ao Japão moderno
O domínio político do xogunato Tokugawa estendeu-se até a revolução
Meiji, não sem tensões internas e externas. O processo crescente de desen- Com Mutsu Hito, em 1867-68, começou a época da luz do Imperador, co-
volvimento da centralização, através do aumento de impostos, fez com que nhecida entre nós como era Meiji, revolução Meiji ou, ainda, reconstrução
ocorressem revoltas entre os segmentos privilegiados, agravando a crise com Meiji. Essa nova etapa de desenvolvimento do Japão estendeu-se até 1873

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e consistiu na reorganização do regime político japonês. A constelação Ao lado de medidas que pretenderam consolidar o poder territorial do
de governos locais de nobres sobre a hegemonia do xogunato Tokugawa imperador notam-se outras que dizem respeito à intenção de recolher frutos
deu lugar a um Estado nacional centralizado, baseado na burocracia e no da relação do Japão com as potências mundiais.
exército, na figura do imperador Meiji. A organização de um programa de bolsas de estudos para japoneses
A definição de um novo padrão de relacionamento externo e a atenção viajarem e estudarem fora e a licença para a entrada no Japão de técnicos
para o desenvolvimento interno foram os caminhos abertos pela revolução e assessores europeus demonstraram a preocupação em definir as novas
Meiji para a modernização japonesa: bases de progresso do Japão.
A consolidação desse primeiro momento realizou-se com um conjunto de
[...] a restauração Meiji desenvolveu-se independentemente dos camponeses. reformas básicas. A primeira no exército. Para estabelecer um movimento
A restauração foi orientada contra o perigo da pressão estrangeira que amea-
de renovação de quadros que pudesse combater os controles pessoais foi
çava a semicolonização do Japão e contra o regime Tokugawa, devido à sua
implantado o serviço militar obrigatório em 1872 (Skocpol, 1985).
incapacidade para governar com eficácia. Foi desencadeada por um golpe de
Estado no Palácio Imperial t os agricultores acabaram por se ver como vítimas Ainda nesse mesmo ano o ensino foi reformado e se tornou obrigatório.
de mudanças planejadas e operadas por membros da classe governante dos A partir de padrões europeus, foram idealizadas as instituições policiais,
guerreiros [...]. O poder de governar deslocara-se de um grupo de guerreiros a imprensa, a constituição do direito japonês. Além disso, também foram
dirigentes (os Tokugawa) para o imperador e para o grupo de clãs ocidentais implementados o sistema de correio, um novo sistema de transportes, que
que o apoiavam. Não houve qualquer derrubada da classe guerreira governante, privilegiou as estradas de ferro, e um sistema de saúde. Uma moeda de valor
qualquer ascensão dos camponeses ao poder ou qualquer mudança radical nas internacional, o iene, foi criada, tendo sido também fundado o Banco do
suas condições (Borton, 1938, p. 2).
Japão, responsável pela economia monetária.
Esse primeiro momento, por mais que mostre a vontade de modernização,
O movimento em direção à modernização enfrentou três momentos não ficou incólume a conflitos. Com as reformas houve a supressão das
diferenciados, que demonstraram as preocupações de equilíbrio entre a pensões dos antigos samurais e a eliminação do "direito de espada", que,
abertura para o Ocidente e a tradição oriental.
em 1877, provocou a revolta dos samurais japoneses.
O primeiro relacionou-se à superação das antigas estruturas fundiárias A repressão foi forte e os samurais foram derrotados. Este evento sim-
japonesas. Essa superação verificou-se através da divulgação do "Progra- boliza o fim de uma era e o início de outra, voltada para a consolidação
ma da Nova Era", anunciado em 1869, e da pressão sobre os daimios do económica, política e social do Estado japonês.
Sul, para que aceitassem a autoridade do imperador. Com a incorporação O segundo momento relacionou-se à efetiva consolidação do poder in-
dos proprietários de terras ao império ficou fácil desenvolver o projeto de terno, com a institucionalização das mudanças políticas. Em 1878, foram
reformas. Em 1871, o governo imperial decretou a abolição da ordem feu- criados os parlamentos provinciais, que representavam a forma concreta
dal e da servidão, e os antigos feudos deram lugar aos modernos distritos de subordinação dos poderes locais ao imperador.
administrativos — ken (províncias). O cuidado em manter o equilíbrio Em 1884, foi formada a Câmara Alta, integrada pelos nobres — Kuge
social fez com que logo a seguir fosse decretada a igualdade jurídica de — e pelas famílias dos daimios. Em 1885, definiu-se a figura do primei-
todos os japoneses.
ro-ministro, que era de nomeação exclusiva do imperador. Em 1888, foi
A necessidade de evitar confrontos com os antigos poderes locais criou criado o Conselho Secreto do Estado (Sumitsuin), cuja função era proteger
um sistema de pensões estatais como forma de indenização dos antigos o imperador, através do controle geral de tudo o que acontecia no Japão,
daimios, que passaram a circular entre os nobres do imperador e assumi- estabelecendo, ao mesmo tempo, as estratégias de controle sobre a sociedade.
ram funções tanto na burocracia quanto no exército como grandes chefes Em 1889, foi promulgada a Constituição da Nova Era, redigida pelo
militares.
príncipe Ito Hirobumi, que instituiu a monarquia constitucional hereditária

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T AS REVOLUÇÕES BURGUESAS

com a Câmara Alta e a Câmara dos Deputados, ambas com 300 membros, Argan, Giulio Cario. 1993. História da arte como história da cidade. São Paulo,
só que a primeira era preenchida pelas famílias nobres e a segunda através Martins Fontes.
de eleições. Arruda, José Jobson. 1990. A Revolução Inglesa. São Paulo, Brasiliense.
A Constituição ainda estabeleceu a autonomia administrativa das cidades Asthon, T. S. 1973. A Revolução Industrial. Lisboa, Europa-América.
e das comunidades e, o mais importante, mesmo sendo uma constituição Burke, Edmund. 1969. Reflexões sobre a Revolução Francesa. Brasília, UNB.
Borton, Hugh. 1983. Peasant uprisings in Tokugawa Japan. Nova York, Paragon Book
ocidentalizada, assumiu a autoridade suprema do imperador legitimada
Reprint Corporation.
pela sua ascendência divina.
Cassirer, Ernest. 1996. Filosofia do iluminismo. São Paulo, Edunicamp.
O terceiro momento foi aquele em que, confirmados os resultados in- Cavalcante, Berenice. 1991. A Revolução Francesa e a modernidade. São Paulo,
ternos, o Japão se lançou como potência mundial e expansionista. Além Contexto.
das reformas, essa evolução só tornou-se possível porque houve um grande Châtelet, François (dir.). 1974. A filosofia do novo mundo. Séculos XVI e XVII. His-
crescimento populacional. tória da Filosofia 3. Rio de Janeiro, Zahar.
Em 1867, o Japão possuía 26 milhões de habitantes e, em 1913, 52 Chaunu, Pierre. 1985. A civilização das luzes. 2 volumes. Lisboa, Estampa.
milhões. Este aumento populacional, ao lado do incremento industrial que Darnton, Robert. 1986. O grande massacre dos gatos e outros ensaios. Rio de Janeiro,
provocou, determinou uma política de expansão com vistas a garantir a Graal.
. 1987. Boémia literária e revolução. São Paulo, Companhia das Letras.
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. 1996. O lado oculto da revolução. Mesmer e o final do iluminismo na França.
No período de 1875 a 1910, a política japonesa orientou-se para a consoli- São Paulo, Companhia das Letras.
dação industrial, para a formação do mercado interno e para o controle de no- . 1996. O iluminismo como negócio. História da publicação da Enciclopédia.
vas áreas. Foram exemplos dessa política a guerra sino-japonesa de 1894-95, 1775-1800. São Paulo, Companhia das Letras.
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150 151
O colonialismo como a glória
do império
Edgar de Decca
Professor de História da Universidade de Campinas
O espetáculo foi imaginado para ser visto por milhares de pessoas que
deveriam estar na cidade de Londres para as festividades de 22 de junho de
1897. A ocasião não poderia ser mais especial. Comemorava-se o jubileu
de diamante da rainha Vitória em um momento muito especial. Nunca
antes a Inglaterra tinha vivido um período de tão grande prosperidade
económica, com sua poderosa industrialização estendendo seus benefícios
para um número cada vez maior de pessoas. Apesar dos protestos traba-
lhistas, que insistiam em reivindicar melhores condições de vida e de tra-
balho para os operários, o certo é que o país estava envolto numa enorme
euforia. Poder-se-ia dizer com orgulho que o mundo europeu vivia na mais
perfeita paz e tranquilidade e que nunca os negócios capitalistas tinham ido
tão bem. Aliás, desde o fim das guerras contra Napoleão, os europeus não
viviam um período tão longo de tranquilidade, perturbados vez por outra
por uma ou outra notícia vinda de lugares longínquos, como a África, ou
pelo envolvimento dos ingleses na guerra da Crimeia, entre 1854 e 1856,
quando suas tropas lutaram ao lado dos turcos contra o império russo.
No entanto, a grandiosidade do espetáculo não havia sido concebida
para o deleite e a satisfação de reis e de chefes de Estado estrangeiros. Toda
a pompa construída visava exclusivamente promover os mais destacados
personagens de um império que só teve um rival em sua magnitude, o im-
pério romano da antiguidade. Apesar desta comparação ser plausível, ainda
assim teríamos que levar em consideração o fato de que a Inglaterra, por
volta da década de 1890, possuía um domínio territorial maior do que a
Roma dos Césares. Para termos uma ideia mais aproximada deste domínio,
basta dizer que o império britânico possuía um quarto de toda a superfície
da Terra. Contudo, deixemos claro, desde já, que esta comparação termina
por aqui, porque a ideia de expansão imperial concebida por Roma em nada
se assemelhava com a expansão capitalista levada a termo pela Inglaterra
e por outros países europeus.

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O S É C U L O XX O COLONIALISMO COMO A G L Ó R I A DO I M P É R I O

Nada mais apropriado, portanto, do que esta ocasião de festividade para que a recém-criada Alemanha aumentou os seus domínios em 2,5 milhões
demonstrar o poderio britânico. No cortejo triunfante em homenagem à de quilómetros quadrados, ao passo que a Bélgica e a Itália aumentaram
rainha Vitória, minuciosamente descrito pela historiadora Barbara Tuchman seus domínios numa escala de mais ou menos 2 milhões de quilómetros
em seu livro A torre do orgulho, as carruagens imperiais transportavam quadrados. Apesar de ter ocorrido nesse mesmo período um avanço no do-
os primeiros-ministros das colónias, dentre os quais destacavam-se os do mínio territorial de países como os Estados Unidos e o Japão, não podemos
Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia. Na parada militar eram dignos deixar de registrar que esta corrida desenfreada por novas colónias foi um
de destaque os cavaleiros de várias partes do globo, como os rifles do Cabo, acontecimento predominantemente europeu.
os hussards do Canadá, a cavalaria ligeira de Trinidad, os lanceiros de tur- A principal característica desse processo desenfreado por ampliação de
bante da índia, os guerreiros de Chipre, montados em póneis de crina preta. espaços era a de que a expansão dos Estados europeus tinha sido motivada
Os -regimentos de infantaria de negros andavam pelas ruas em uniformes por uma necessidade irrefreável da ampliação de mercados das economias
variados, bem como a polícia de Bornéu e da Nigéria, além da artilharia competitivas do capitalismo industrial. Isto significava uma mudança radical
da Jamaica, os sikhs da índia, os houssas da Costa do Ouro, os chineses no modo de organização política dos Estados-nação, uma vez que as suas
de Hong Kong, os malaios de Cingapura e os negros da Guiana Inglesa e de fronteiras tornaram-se restritivas e constrangedoras para a expansão dos
Serra Leoa. "As companhias desfilavam diante de um público deslumbrado, mercados capitalistas. Se as fronteiras nacionais tinham sido até então a
espantado mesmo, perante o testemunho do seu próprio valor. No fim do base de sustentação do edifício político do Estado, as forças avassaladoras
desfile, num trem aberto, puxado por oito cavalos brancos, vinha a figura do capitalismo industrial pressionavam para que essas fronteiras fossem
central da consagração, uma pessoa magra, vestida de preto, com penas rompidas e expandidas a uma dimensão sem precedentes. Por este motivo,
creme ondeando o chapéu. O sol brilhava, bandeiras coloridas agitavam-se podemos entender por que num espaço de menos de 40 anos, entre 1876 e
ao vento, os candeeiros estavam cobertos de flores e, ao longo de nove qui- 1914, a Inglaterra, como a maior potência industrial da Europa, expandiu
lómetros de ruas, milhões de pessoas felizes aplaudiam e saudavam num o seu domínio territorial em mais de 10 milhões de quilómetros quadrados.
êxtase de simpatia e de orgulho (Tuchman, 1990). Emocionada, a rainha Tudo o que pudesse representar abertura de novos mercados e domínio de
chegou a escrever em seu diário: "Nunca ninguém recebeu tamanha ovação fontes estratégicas de matérias-primas (ferro, cobre, petróleo, manganês,
quanto a que me foi dada. Cada face parecia reluzir de autêntica alegria. jazidas de diamantes etc.) passou a ser prioritário para as burguesias desses
Fiquei muito agradecida e comovida." estados europeus expansionistas. Se tivéssemos que analisar didaticamente
o modo como ocorreu essa expansão dos estados europeus pelos continentes
longínquos da África e da Ásia, diríamos que os interesses capitalistas das
NA POLÍTICA IMPERIALISTA A EXPANSÃO É TUDO burguesias europeias desembarcaram nessas terras distantes acompanhados
de um séquito burocrático administrativo e ambos foram escoltados pelas
Com certeza, nenhuma outra potência europeia foi capaz de se autoglorificar forças militares dos respectivos países.
como fez a Inglaterra da época vitoriana. No entanto, a euforia não era Outra particularidade importante a ser destacada é o fato de que essa
menor em outros países como a França, Alemanha, Bélgica e Itália. Todos expansão dirigiu-se, prioritariamente, para o continente africano, para toda a
eles haviam ampliado de modo desmesurado os seus domínios territoriais área territorial banhada pelo Oceano Pacífico e para a Ásia, sendo de pouca
por volta da última década do século XIX. Calcula-se que a Inglaterra au- significação os processos de expansão europeia no continente americano. Tal-
mentou o seu território em 10 milhões de quilómetros quadrados, enquanto vez esta atitude devesse ser tributada à Doutrina Monroe, que pregava uma
a França, entre 1876 e 1914, aumentou suas possessões em 9 milhões de América para os americanos, e, se dermos crédito aos protestos dos Estados
quilómetros quadrados. Apesar destas duas potências terem liderado a Unidos contra qualquer intromissão estrangeira, o resultado mostrou-se,
corrida por novos domínios coloniais, não devemos negligenciar o fato de pelo menos, eficaz. Durante esse período, destaca-se apenas a vociferada

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intervenção do presidente americano Grover Cleveland, colocando-se em possuía. Isso talvez explique por que os opositores da política expansionista
favor da Venezuela no conflito com a Guiana Inglesa. Não que este incidente dos estados europeus tenham tido pouca margem de manobra dentro das
tenha causado grande perturbação à diplomacia inglesa, mas mostrava que a instituições políticas de seus respectivos países. Afinal de contas, com a
atitude expansionista da Inglaterra poderia sofrer pressões mais contunden- produção capitalista em crescente expansão na Europa, não seria razoável
tes se fossem dirigidas à América. Desse conflito de poder com a Inglaterra opor-se às pretensões expansionistas dos mercados e, mesmo que algumas
fica-nos a impressão de que o continente norte-americano deveria servir vozes tenham se levantado contra os aspectos pouco humanitários da domi-
de base para a expansão de sua emergente potência capitalista, os Estados nação estrangeira, acabaram se restringindo a protestos em defesa do direito
Unidos. Nas palavras do historiador inglês Eric Hobsbawm, "não restou desses povos coloniais na manutenção de seus códigos de leis e valores.
qualquer Estado independente no Pacífico, então totalmente distribuído Agora, talvez, seja o momento de definirmos esse conjunto de aconteci-
entre britânicos, franceses, alemães, holandeses (...)" (Hobsbawm, 1989). mentos históricos que expandiu as economias e os estados europeus para
Por volta de 1914, a África também pertencia inteiramente a esses mesmos todas as partes do planeta, criando um grande sistema global de trocas de
países. Na Ásia, o império britânico anexou a Birmânia ao seu antigo e mercadorias, dinheiro, movimento de trabalhadores e um incessante incre-
vasto domínio na índia. Por outro lado, os franceses avançaram em direção mento dos meios de comunicação. A força avassaladora desse movimento
à Indochina e criaram uma zona de domínio colonial, que, na década de de mercadorias, dinheiro, armas e população europeia para o domínio de
1950, lutou contra este domínio estrangeiro francês e depois americano, vastas áreas territoriais em toda as partes do mundo foi de tal proporção
escrevendo uma página definitiva na história das lutas pela emancipação que ainda hoje estamos acostumados a definir este período da história
dos povos coloniais, com a prolongada Guerra do Vietnã. contemporânea, que se estende de 1870 a 1914, como o período do impe-
Toda essa política levada a cabo pelas potências europeias, já dissemos, rialismo. Entretanto, muitas vezes, esta definição serve mais para confundir
foi ancorada numa necessidade inerente ao modo capitalista de produção do que para esclarecer os interessados no assunto. Apenas, para melhor
de riquezas, que não encontra limites para a sua expansão, entrando em entendimento, diríamos que há uma grande ambiguidade na utilização do
contradição, principalmente, com os limites jurídicos consagrados pelo termo imperialismo, porque, à primeira vista, ele seria sinónimo de criação
Estado-nação, criado sob o princípio da soberania e do consentimento e construção de impérios. Esta confusão é bastante compreensiva, posto que
civil por meio de um código de leis. O território onde esse Estado exerce muitos dos estados que se afirmaram política e economicamente durante
a sua soberania e recebe o consentimento de seus súditos para a aplicação o século XIX, pretenderam ser reconhecidos como impérios. É o caso da
de um código civil de leis é um território de fronteiras limitadas, e não um França e o seu segundo império, inaugurado com o golpe de Estado de Luís
espaço indefinido produzido por uma expansão económica sem limites e Bonaparte, em 1852, e que durou até 1873, mas também da Alemanha, que
sem um código de leis que possa ser aplicado aos povos que são submetidos se unificou sob o signo imperial, sem esquecermos, é claro, do declinante
ao seu domínio. Tal impossibilidade existiu pela simples e objetiva razão de Império Austro-Húngaro, do Império Russo e até de um império tropical
que nem sempre aqueles que foram submetidos ao domínio de uma nação nas Américas, o Brasil de D. Pedro II.
estrangeira consentiram com essa dominação e também porque os povos No entanto, nada mais equivocado do que utilizar o termo imperialismo
dominados, tendo leis civis e códigos próprios, acabam sendo excluídos de como sinónimo de construção de impérios, porque, para que este termo
qualquer pacto político que venha a ser proposto pelas nações europeias tivesse alguma correspondência com a realidade, seria necessário que a
expansionistas. Além disso, como essa expansão ilimitada dos mercados nação promotora desse império estendesse as suas leis e suas instituições
económicos derrubou as fronteiras nacionais, os indivíduos detentores do aos territórios anexados e tornasse os povos dessas regiões tão iguais em
capital e do dinheiro, bem como os administradores das colónias, além do direitos quanto aqueles que vivem no território da nação-mãe. Entretanto,
aparato militar, gozavam de uma liberdade de ação e decisão que nenhum aconteceu o contrário dessa situação. Nunca os ingleses enxergaram os povos
segmento ou grupo que vivia no interior desses Estados-nação europeus que estavam sob seus domínios como iguais em direito, a ponto da lei inglesa

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ter o mesmo valor para um cidadão londrino e para um birmanês. Com UM CAPITALISMO SEM FRONTEIRAS E HOMEM COMUM
exceção feita ao Canadá e à Austrália, todos os povos que estiveram sob o
domínio britânico durante o período do imperialismo foram considerados Se a expansão é tudo e o capitalismo precisa de novos mercados consumido-
como raças inferiores. Além disso, as instituições político-administrativas res e de suprimento de matérias-primas, existe ainda aquela sua necessidade
criadas pelo domínio imperialista jamais se confundiram com as instituições maior, que é o reinvestimento do capital acumulado, que não encontra mais
dos Estados-nação europeus. O aparato administrativo militar foi moldado espaço nos limites do Estado-nação para se reproduzir, sob o risco de cair
e esteve muito mais a serviço dos interesses das empresas capitalistas que a zero a sua taxa de lucratividade. Dentre as nações capitalistas europeias
exploravam as suas colónias do que sujeito a possíveis controles por parte que viveram um processo acelerado de transformações tecnológicas e de
das instituições políticas dos estados europeus. Nesse sentido, podemos produção industrial, a Inglaterra representou o exemplo mais aprimorado.
definir o imperialismo como uma política deliberada dos estados europeus País pioneiro da industrialização, com grandes investimentos na área tecno-
de anexação de povos e territórios com vistas à expansão dos mercados ca- lógica, com um sindicalismo operário propenso às negociações em torno do
pitalistas. Essa política só se consolidou por meio do domínio militar e teve aumento da produtividade, vivendo um processo de competição acirrado, a
grande eficácia em vastas regiões do mundo, onde quer que os comerciantes ponto de empresas menos eficientes estarem sendo absorvidas por grandes
e burgueses, donos de empresas europeias, tivessem interesses em mercados companhias, a Inglaterra presenciou uma enorme crise económica por volta
consumidores ou em reservas estratégicas de matéria-prima. Vale ressaltar de 1870, resultante dessa crescente concentração de empresas industriais e de
que a ampliação desses mercados capitalistas durante as últimas décadas uma diminuição progressiva das taxas de lucro. Nenhuma nação europeia
do século XIX, nem sempre se realizou mediante a ostensiva política im- sentiu mais precocemente a necessidade de expansão de mercados do que a
perialista de controle burocrático e militar de povos e nações. Um exemplo Inglaterra, porque, sendo os pioneiros da industrialização, já por essa época,
significativo de um modo diferente de expansão do capitalismo europeu, os ingleses viviam os impactos da nova configuração do mundo capitalista,
sem a presença de corpos burocráticos e militares, aconteceu no Brasil. que não poderia sobreviver constrangido às limitadas fronteiras geográficas
Durante esse período, com a expansão da cultura cafeeira em São Paulo, e políticas do Estado-nação. Isto explica de maneira objetiva e sucinta por
avultou-se o investimento estrangeiro em casas bancárias e comerciais, no que as nações industriais europeias acabaram se envolvendo numa corrida
aparelhamento dos portos, nos transportes e serviços urbanos (empresas de armamentista e numa busca desenfreada por novos mercados e por novos
bondes, de energia elétrica e de gás) de São Paulo e do Rio de Janeiro, bem territórios. A competitividade internacional das potências europeias criada
como na abertura de uma rede ferroviária que se estendia por toda a região pela crescente industrialização, apesar de estar se processando em meio a
de cultivo do café. Foram vultosos os investimentos de capitais ingleses, uma paz aparente vivida no mundo entre 1870 e a primeira década do sé-
mas também belgas, alemães, holandeses e franceses, propiciando um ar culo XX, só poderia acabar naquela que seria a Primeira Guerra Mundial.
de grande modernidade a centros urbanos que pouco tempo antes tinham A meta principal das nações industriais europeias era, portanto, expan-
aspectos completamente provincianos. Neste exemplo, enquadram-se muito dir as fronteiras para o capitalismo, mas também expandir os horizontes
bem as cidades de São Paulo, Santos e Campinas, que durante os anos de do homem comum europeu, que vivia nas grandes cidades ainda receoso
1890 a 1914 viram-se transformadas em cidades modernas, com a ampliação e perplexo com a velocidade das mudanças tecnológicas e dos valores em
dos meios de transportes, com o crescimento de instituições financeiras e uso. Seria necessário, portanto, atiçar os ânimos dos habitantes das cidades,
comerciais, com a implantação da luz elétrica e do gás, além dos melhora- um tanto amortecidos pelos efeitos dos confortos modernos. A vida sofria
mentos dos serviços públicos sanitários de água e esgotos. Diríamos, neste grandes alterações no plano dos comportamentos, atitudes e valores e a
caso, que a expansão do capitalismo no Brasil foi mais suave se comparada característica principal desse período marcado por grande desenvolvimento
com as administrações militares das colónias da África e do Pacífico. industrial foi o agigantamento das metrópoles, capitais dos impérios euro-
peus. Não que essas grandes aglomerações urbanas fossem centros de pro-

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dução industrial. Ao contrário, a maioria das fabricas inglesas, por exemplo, operárias de Londres pudesse ser traçada levando-se em conta a localização
estava localizada nas regiões industriais de Manchester e Yorkshire, e não dos bares (pubs), espaço predileto do lazer dos trabalhadores.
próximas à cidade de Londres. O mesmo acontecia com uma capital como Vender, mediante exposição pública permanente, as mercadorias produ-
Paris. No entanto, a população parisiense havia aumentado de 1.174.300 zidas pela indústria tornou-se rapidamente a estratégia principal do sistema
habitantes em 1861 para 2.600.000, por volta de 1896. Londres, por outro capitalista, e vender não apenas mercadorias palpáveis, mas também os
lado, possuía 2.800.000 habitantes em 1861 e, em 1896, ultrapassava a sonhos de uma vida cheia de prazeres e também de aventuras. Dentre as
casa dos 4.200.000 habitantes.
criações mais originais da venda de promessas da sociedade industrial, a
Não resta dúvida que o crescimento desmesurado dessas cidades teve mais magnífica de todas elas foi a criação das exposições universais, ver-
diversas origens, mas não devemos desconsiderar a possibilidade de que dadeiros palácios de sonhos da industrialização e do progresso. Tamanho
os avanços na melhoria das condições de vida propiciadas pelo desenvol- foi o prestígio dessas feiras internacionais, que se espalhavam pela Europa
vimento da ciência e da medicina favoreceram esse significativo aumento e pelos Estados Unidos, que elas se tornaram os verdadeiros símbolos da
populacional. Isto não quer dizer que a miséria e a pobreza dos bairros modernidade, com a construção de monumentos magníficos como o Palácio
populares tivessem desaparecido, mas já se vislumbrava aos poucos uma de Cristal, na Inglaterra, e a Torre Eiffel, em Paris, sem contar, é claro,
melhoria nos serviços de higienização urbana. No entanto, a grande trans- com a Estátua da Liberdade na entrada do porto de Nova York. Exemplos
formação ocorrida nos comportamentos de vida urbana esteve ligada, sem majestosos de uma arquitetura que se desenvolvia à custa de materiais como
dúvida, ao novo sistema de distribuição e venda de mercadorias, que eram o ferro e o vidro, esses monumentos tornaram-se ícones da modernidade
produtos da revolução tecnológica propiciada pela industrialização. Nada industrial. Visitar essas exposições internacionais era uma experiência que
mais significativo na feição das grandes cidades do que a exposição pública pode ser comparada, atualmente, a um passeio à terra do sonho tecnológico,
das mercadorias nas vitrines e o aparecimento da loja de departamentos. a Disneylândia, que é um parque de diversões inspirado no modelo dos par-
Ela representava uma resposta comercial à fábrica moderna, produtora de ques do século XIX, dos quais o Tívoli de Copenhague ainda é o exemplo
grande quantidade de mercadorias, que por sua vez deveriam ser vendidas mais deslumbrante. Tamanho foi o fascínio por este parque de diversões
rapidamente, em grande número e com pequena margem de lucro. A ve- magnífico que o próprio imperador Pedro II do Brasil não se cansava de
locidade na comercialização dessas mercadorias garantia a taxa de lucro visitá-lo. Mas igual fascínio também era criado pelas exposições universais
desses grandes magazines e suas vitrines mudavam constantemente para da indústria, onde ficavam expostos à visitação e à curiosidade de todos os
a exposição pública das novidades produzidas pela tecnologia industrial. mais novos inventos da tecnologia aplicados à indústria e à vida cotidiana.
Do ponto de vista do homem moderno habitante das grandes cidades, Na exposição universal de Paris de 1867, por exemplo, foi apresentado
parece que o tempo de lazer havia aumentado, e ele podia dedicar-se mais um diadorama do Canal de Suez, que iria ser inaugurado para a navega-
às diversões e ao consumo. Neste sentido, não só a ampliação do sistema de ção em pouco tempo, deixando os visitantes curiosos e extasiados com as
exposição e venda de mercadorias foi decisivo, mas também a abertura maravilhas da tecnologia moderna. A historiadora Sandra Pesavento, que
de novos negócios voltados ao aproveitamento do tempo livre e de lazer do escreveu um livro sobre essas exposições universais, descreve com muita
homem moderno. Teatros, casas de espetáculo, circos, atrações esportivas, perspicácia o deslumbramento das pessoas que visitavam as exposições
parques de diversão, panoramas (divertimento que antecedeu o cinema) universais. Dentre as inúmeras novidades que a autora nos apresenta da ex-
foram se multiplicando para o deleite e o prazer das classes ociosas, que posição de Paris de 1867, destaca-se o escafandro, essa "criatura de aspecto
podiam usufruir desses passatempos urbanos. Até as classes populares aos monstruoso", segundo os espectadores. Não menos surpresos e fascinados
poucos foram conquistando um tempo maior de lazer como resultado de ficaram os curiosos diante da novidade dos elevadores. Segundo o visitan-
suas batalhas sindicais pela redução das jornadas de trabalho fabril. Por te Hippolyte Gautier, "estranhas serão as vossas sensações; vos parecerá
isso, não seria nada improvável que a melhor cartografia das agitações que todos os objetos fogem a vossos pés, mas bem mais estranha ainda a

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vista que se oferecerá a vós do alto do teto (...) se semelhantes aparelhos, O TURISTA ACIDENTAL E A AVENTURA IMPERIALISTA
construídos tais como aqueles que existem depois de longos anos nos hotéis
da Inglaterra ou dos Estados Unidos, substituírem por tudo as escadas tão Um dos filmes mais aclamados dos últimos anos conta uma história re-
penosas de montar, cada um quereria procurar, nos andares superiores, cheada de sonhos e fantasias do turista moderno que acabou em tragédia.
o grande ar e as perspectivas agradáveis que faltam ordinariamente aos Refiro-me ao filme Titanic. O navio representa um microcosmo da socie-
apartamentos confortáveis" (citado in Pesavento, 1997). dade da Europa moderna do período imperialista, com seu andar superior
A exposição dos produtos industriais tinha uma dimensão absoluta- repleto de personagens típicos da burguesia abastada e ociosa, da agonizante
mente inebriante e na mesma exposição tanto se poderia admirar a nova aristocracia e da classe média ascendente, todos eles turistas em busca de
máquina de costura Singer como o mais moderno canhão da fábrica alemã aventuras e fantasias no além-mar. Nos andares inferiores, amontoam-se
Krupp. Além dessas inovações tecnológicas, a exposição universal de Paris trabalhadores que emigram para países distantes da Europa em busca de
de 1867 foi a primeira que reservou um lugar de destaque para a mais nova sonhos de felicidade. Não deixa de ser significativo que todos estão no
descoberta da modernidade, a eletricidade, além de apresentar com grande mesmo barco, que, entretanto, ao afundar, privilegia o salvamento dos mais
impacto o telégrafo, que passara a funcionar desde 1866, com a instalação abastados e deixa os trabalhadores jogados à própria sorte. Uma semelhança
do primeiro cabo submarino. Muitas dessas novas maravilhas do mundo muito grande com o que acontecia na vida cotidiana das grandes cidades
europeias e que também encontraria continuidade na aventura imperialista.
moderno podiam ser usufruídas pelos visitantes da feira e a eletricidade
Todos parecem ter o seu sonho satisfeito dentro do navio: os burgueses,
foi a maior atração da exposição parisiense, proporcionando mais diver-
porque suas aventuras e fantasias iriam se transformar em lucros capitalistas
são e lazer. Segundo um membro da comissão da exposição parisiense, as
fabulosos na expansão e exploração económica imperialista; a aristocracia
diversões podiam ir até tarde da noite: "o parque, ficando aberto até as 11
decadente, por acreditar no sonho imperial cavalheiresco da expansão e da
horas, retinha ainda um certo número de visitantes que desejavam aí jantar
dominação europeia no mundo; a classe média ascendente, porque esperava
e gozar de algumas distrações que ele oferecia. (...) Caindo a noite, o pórtico
alcançar os cargos burocráticos e militares da administração colonial; e
do palácio se iluminava de um cinturão de fogos, aos quais os restantes
os trabalhadores por sonharem com terras distantes, onde iriam começar
acrescentavam o brilho de suas luzes. O grande farol do lago cintilava sobre uma nova vida diferente das agruras das grandes cidades industriais e da
Paris" (citado in Pesavento, 1997, p. 127).
pobreza do trabalho rural assalariado. O elemento emblemático do filme
Dentre todos esses inúmeros estímulos que agiam sobre o homem das Titanic é esse navio, símbolo da vitória da tecnologia e da ciência, que se
cidades em sua preocupação de consumo e de aproveitamento do tempo acreditava indestrutível e impossível de submergir, como se a confiança
livre, nenhum foi mais inebriante do que a venda de viagens e aventuras na ciência e na técnica fosse de tal grandeza, a ponto de cegar os homens
maravilhosas, isto é, a venda de sonhos mirabolantes no extenso mundo para a possibilidade de um desastre. Todos aqueles que participaram da
colonial criado pelo imperialismo. Com o desenvolvimento das ferrovias viagem, de uma maneira ou de outra, acreditaram nessa fantasia criada pela
e da indústria naval, não foi apenas a produção industrial que encontrou tecnologia industrial e apenas perceberam o tamanho do pesadelo quando
mais velocidade para a vazão de suas mercadorias. Também o homem da acordaram tarde demais. Se pudéssemos resumir a experiência imperialista
cidade pôde começar a usufruir das viagens de trem e de navio. Estava numa única imagem, o Titanic seria sem dúvida uma das mais completas.
nascendo com a aventura imperialista um novo personagem, que a partir Evidentemente, existiram outras, mas que talvez não tenham alcançado a
desse período irá circular por todos os cantos do mundo moderno, o turista. dimensão real desse navio, que de sonho maravilhoso transformou-se num
enorme pesadelo.
O imperialismo também iniciou-se como uma viagem de sonhos fasci-
nantes e aos poucos também foi se transformando num verdadeiro pesadelo,

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que tomou conta da sociedade europeia por ocasião da Primeira Guerra de uma vida levada na mais pacata ordem, rotina e disciplina. Ao levarmos
Mundial. Sonhos de tal maneira mirabolantes e grandiosos que o mais em consideração o modo como as pessoas que vivem nas cidades atualmen-
enigmático dos negociantes imperialistas ingleses, que manteve negócios te se fascinam pelos esportes radicais, conseguiremos avaliar quanto foi
fabulosos na África a ponto de um país africano ter recebido o seu nome fascinante, no fim do século XIX, imaginar que qualquer um poderia se
(Rodésia, hoje Zimbábue), chegou a delirar que estava anexando os planetas engajar numa aventura imperialista e servir de instrumento dessa política
do sistema solar para a coroa da Inglaterra. Esta necessidade de expansão dos estados europeus em países distantes. Ainda hoje convivemos com a
foi de tal magnitude que não poderia ter terminado, a não ser em desastre projeção desse sonho imperialista mirabolante, quando, no escurinho do
e horror. Com uma franqueza que chega às raias da loucura, Cecil Rhodes, cinema, ficamos extasiados com as espetaculares aventuras de Indiana Jones,
que acreditava que "a expansão é tudo", se lamentava e se deprimia ao olhar este simpático antropólogo do imperialismo que optou pelas causas mais
o céu e pensar que não iria poder anexar as estrelas, "essas estrelas (...) nobres e pela justiça dos mais fracos. O que é mais intrigante é que esses
esses vastos mundos que nunca poderemos atingir. Se eu pudesse, anexaria modelos de herói cinematográfico têm correspondência na vida real e foram
os planetas" (citado in Arendt, 1976, p. 16). copiados de personagens enigmáticas do imperialismo. Outro personagem
A personalidade desse novo homem urbano sujeito às mais variadas fascinante da política imperialista, que inspirou um filme magnífico do
formas de estímulos e de desejos e ao mesmo tempo objeto de toda uma diretor inglês David Lean, foi Lawrence da Arábia, um agente do serviço
tecnologia disciplinar, que se estendia da casa à escola e da escola ao tra- secreto de espionagem britânico que se transformou em líder do movimento
balho nos escritórios e nas fábricas, passou a ser preocupação, principal- de libertação nacional árabe contra os turcos.
mente, de médicos e de profissionais de uma nova área do conhecimento Dentre todos os personagens do período do imperialismo, Lawrence
que se especializava no tratamento de problemas mentais, a psicologia. talvez tenha sido o mais intrigante e mais enigmático. Escritor genial, filho
Nesse período, em Viena, uma das cidades burguesas que simbolizavam a da aristocracia inglesa, intelectual erudito, um verdadeiro asceta e acima
modernidade, um médico austríaco desenvolvia pesquisas sobre o funcio- de tudo um aventureiro, engajou-se no serviço secreto britânico por puro
namento da mente humana, buscando descobrir a origem dos traumas e desejo de emoções, tendo se tornado um dos idealizadores da guerrilha
das neuroses individuais produzidas pela repressão dos desejos. Se dermos moderna. Sua maior realização foi ter conseguido a união dos povos árabes
a devida atenção aos desejos de expansão, de anexação dos planetas do contra a Turquia durante a Primeira Guerra Mundial. Em uma biografia
imperialista Cecil Rhodes, podemos ter uma vaga ideia das neuroses que de Lawrence ficamos sabendo que ele foi muito respeitado entre os árabes
o psicanalista Sigmund Freud estudou na sua clínica vienense. Apesar de e, usando dos mais diferentes estratagemas, conseguiu tudo de que preci-
Cecil Rhodes jamais ter se deitado no divã do Dr. Freud, com certeza muitos sava de apoio militar dos ingleses. Este inglês asceta fez de tudo: "chefiou
homens comuns abriram o seu coração para que ele pudesse descobrir o tribos, conquistou cidades, dinamitou trens, desnorteou o inimigo com
mal-estar de uma civilização em crise com a sua própria identidade. Esse suas estratégias ousadas e eficazes, manipulou e deturpou informações,
doutor perturbador e pai da psicanálise desvendava o mistério da alma do enganando os turcos e os alemães, e, quando chegou a vitória, retirou-se
homem moderno das grandes cidades e percebia que as fantasias mais ater- anonimamente. Depois da guerra, tornou-se uma lenda viva na Inglaterra,
radoras e diabólicas poderiam muito bem ser imaginadas pelos mais pacatos mas recusou todas as homenagens, furtando-se a uma audiência com o rei
pais, mães e filhos de famílias burguesas. Jorge V e rejeitando honrarias e convites insistentes de Winston Churchill
Seguindo a distância as descobertas do Dr. Freud, podemos ter a noção para trabalhar como conselheiro político no Oriente Médio" (comentário
da dimensão do sonho de expansão e de dominação imperialista projetada introdutório ao livro de T. E. Lawrence, 1975).
pelos mais comuns dos homens das cidades europeias. Ainda hoje, esse so- Para além das interpretações, fica a imagem de um homem de génio,
nho de aventuras e façanhas mirabolantes em terras distantes ocupa a nossa que conciliou ação e contemplação, exaltação guerreira e capacidade in-
imaginação, como a expressão de um desejo de expansão e de superação trospectiva, carisma profundo e aspiração pelo anonimato, entusiasmo e

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depressão (citado por Lawrence, 1975). Nem o romance de ficção com o e de desprendimento, em nome do puro prazer da aventura. A ficção e a
agente secreto 007 de Sua Majestade, James Bond, conseguiu superar a realidade se misturam quando lemos esses romances de Kipling ao lado
ousadia e o aventureirismo de Lawrence da Arábia, tendo criado, apenas, dos relatos da experiência pessoal do agente secreto britânico conhecido
uma pálida imagem da personalidade e da psicologia do agente secreto do como Lawrence da Arábia.
imperialismo. Contudo, se Kipling representou a maior glória literária em favor da
Pois bem, já que falamos de romances de aventura, podemos aproveitar política imperialista, outros escritores, principalmente ingleses, perceberam
a oportunidade para estudá-los e melhor compreender a personalidade dos que esse sonho haveria de se transformar, como num passe de mágica, num
homens que viveram a aventura imperialista. Entre os registros históricos verdadeiro pesadelo para o cidadão comum europeu. Uns menos e outros
de que dispomos desse período, nenhum é tão rico em sugestões do que os mais críticos, escritores como E. P. Foster, com a sua desconcertante análise
romances de aventura que povoaram a imaginação de milhões de pessoas do desejo sexual do dominador pelo dominado em Passagem para a índia,
em todo o mundo. Neles encontramos todos os elementos da política im- a dinamarquesa Isak Dinesen, com a sua fracassada A fazenda africana,
perialista, desde aqueles mais triunfalistas e propagandísticos até os mais o socialista George Orwell, que, além de crítico do totalitarismo em sua
críticos, céticos ou pessimistas. Independentemente da posição assumida obra maior 1984, foi também um virulento opositor da política imperialis-
ante a política imperialista, a verdade é que as décadas finais do século ta em seu livro sobre a irracionalidade da dominação colonial Meus dias
XIX foram extremamente férteis para a criação literária. Alguns escritores na Birmânia, todos eles representaram a consciência culpada e crítica do
posicionaram-se criticamente à política expansionista, enquanto outros europeu ante a dominação colonial.
escreveram obras inesquecíveis mas legitimadoras do domínio europeu Entretanto, foi um escritor polonês, naturalizado inglês, de nome Joseph
no mundo. Dentre os que louvaram a política imperialista, destaca-se um Conrad, o responsável pela maior obra de ficção escrita sobre a política
grande escritor de origem indiana, Rudyard Kipling, ganhador do Prémio imperialista, o romance-síntese de toda uma época, O coração da treva,
Nobel de literatura de 1907, que se tornou um dos maiores poetas da língua uma viagem assustadora para o interior das trevas do homem moderno.
inglesa. Seus contos endereçados para um público infantil e de adolescen- Nesse romance, a grande cidade europeia é metaforizada nas selvas africa-
tes fascinou ainda com maior intensidade os adultos, que provavelmente nas, onde o homem civilizado, livre de todas as convenções, imbuído dos
sentiam um desejo infantil de aventuras muito mais arrebatador do que o ideais de progresso, expande ilimitadamente o seu poder, levando tudo que
das crianças. As aventuras de Mowgli, o menino-lobo, que narra a educa- o rodeia à destruição e à barbárie. O enredo do romance, resumidamente,
ção de uma criança numa matilha de lobos, ainda é a peça literária mais é um relato de um marinheiro contratado por uma companhia comercial
impressionante de tradução dos princípios da obediência do cidadão ao para subir um rio na África em busca de um comerciante exemplar que, ao
Estado poderoso e absoluto. Numa linguagem absorvente e encantadora, o levar ao paroxismo e ao exagero os seus métodos de exploração e expansão
menino-lobo aprende a disciplina das selvas, e os versos de Kipling ressoam económicas, põe em risco os próprios poderes da companhia. A viagem do
fortemente os princípios de obediência ao Estado, concebidos pelo filósofo marinheiro Marlowe subindo o rio é de uma alegoria desconcertante e ele,
inglês Thomas Hobbes em sua célebre obra O Leviatã. Os mirabolantes ao presenciar a arrogância com que o homem branco exerce o seu poder
desejos expansionistas de dois aventureiros ingleses, apostando que pode- sobre povos de outras "raças", começa a questionar o porquê daquela missão
riam ser reis de algum povo colonizado, transformam-se em realidade, na em busca de Kurtz. Marlowe, em seu barco subindo o rio, presenciando as
magnífica narrativa O homem que queria ser rei. As peripécias e desafios iniquidades da expansão colonial, viaja em direção ao âmago do homem
do agente secreto britânico, que acredita poder manipular as leis da história moderno, com seus ideais de expansão e progresso, e, ao encontrar Kurtz,
agindo na clandestinidade, no sigilo e no anonimato, são magnificamente acaba encontrando o vazio e a solidão de si mesmo.
retratados no romance Kim. Nesse conto magnífico, o agente secreto é A Londres do século XIX está metamorfoseada na selva de Joseph Con-
uma criança, completamente entregue aos seus desejos de despojamento rad, e o homem moderno, com sua angústia, sua solidão e seu medo tem em

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Kurtz o seu próprio paradigma, que em sua profunda tristeza percebe que pá expansionista e civilizadora dos povos, tinha no romance de aventuras
sua ânsia de expansão só terminará quando todos estiverem destruídos. Por a possibilidade de sonhar com uma vida diferente da sua, limitada pelas
isso, no fim do percurso do rio, Marlowe vai ouvir de Kurtz uma mesma e necessidades e pela repetição monótona do cotidiano das grandes cidades.
aterrorizante palavra: o horror, o horror... Esse período, cujas consequências mais desastrosas só seriam visíveis
Esse rio transporta Marlowe para o âmago das trevas e da escuridão para o homem comum com a ameaçadora presença da guerra de 1914, foi
do homem moderno. Um rio da África que bem poderia ser o Tamisa, o período do imperialismo. A sua própria denominação é um problema
bordejando a selva da cidade de Londres numa noite sem fim. "Lanternas para o historiador atual, que recusa as periodizações tão abrangentes. Seria
deslizavam sobre o rio, pequeninas flamas — verdes, vermelhas, brancas — possível abarcar um conjunto tão complexo de acontecimentos sob uma
que se perseguiam, se alcançavam, juntavam-se e entrecruzavam-se para, em única generalização? Acreditamos que não. Preferimos tomar a precaução
seguida, separarem-se lenta ou velozmente. O comércio da grande cidade de designar de imperialismo determinados elementos da política e da cul-
se adensava sobre o irrequieto rio." tura europeias que produziram no homem moderno o desejo desenfreado
Esta alegoria aparece no romance de Conrad, logo no início, quando de uma expansão cujos limites alguns literatos, como Joseph Conrad em
Marlowe, o marinheiro, se põe a pensar a respeito das águas do rio Tamisa, 1902, souberam apreender.
que banha a cidade de Londres: Enfim, na índia ou na África, a burocracia, o exército e os negociantes
criaram uma administração própria cooptando segmentos da população na-
Estava pensando naqueles tempos remotos em que os romanos, pela primeira
tiva, sem introduzir qualquer instituição política legal dos estados europeus,
vez, apareceram aqui, há cerca de mil e novecentos anos (...). Ontem, afinal
com exceção feita à França, que considerou os povos de suas colónias como
(...). Desde esse momento a luz irradiou-se deste rio. Os paladinos, dirão vo-
cês. (...) Sem dúvida (...). A treva, porém, estava aqui ainda ontem. Imaginem cidadãos de segunda classe. Isto quer dizer que a administração colonial na
o estado de alma do capitão (...) de uma bela trirreme do Mediterrâneo (...). maioria das vezes agiu de acordo com os seus próprios interesses. Apesar de
Imaginem-no aqui, no fim do mundo (...) subindo o rio com provisões, ordens as instituições políticas do Estado inglês terem tentado, inúmeras vezes, pôr
ou o que mais quiserem (...). A morte rondando no ar, nas águas, nas brenhas freio às pretensões dos imperialistas, elas não impediram que as pretensões
(...). Deviam morrer feito moscas aqui! E, no entanto, ele cumpria a missão. expansionistas alcançassem uma dimensão mais assustadora do que aquela
Cumpria-a muito bem, não há dúvida, e sem pensar muito nisso, exceto mais retratada por Joseph Conrad em O coração da treva.
tarde, para se vangloriar de tudo o que teve de suportar em seu tempo. Sim,
Sabemos agora um pouco mais sobre o leitor dos romances de Conrad
eram homens capazes de olhar a treva de frente (...). A conquista da terra, que
e Kipling, e começamos a desconfiar do porquê de ele saborear tão avida-
consiste fundamentalmente em torná-la daqueles cuja cor é diferente da nossa
ou têm o nariz ligeiramente achatado, não é coisa agradável de se ver se nela mente as aventuras empolgantes nos mares do Sul, na índia e na África. Nas
aprofundamos o nosso olhar. O que a redime é tão somente a ideia. Uma ideia grandes cidades, a imprensa diária já alcançava um grande público leitor
que lhe dá respaldo, não um pretexto sentimental mas a ideia e uma fé altruísta ávido por novidades e podemos imaginar quão empolgantes não teriam sido
nessa ideia, algo, enfim, a que se pode exaltar, reverenciar e oferecer sacrifícios. os relatos de aventuras em terras longínquas em contraste com a monótona
(Trechos do livro de Joseph Conrad, O coração da treva.} rotina da vida cotidiana. Os navios não eram apenas fantasiados como o
elemento difusor da cultura e da civilização europeia pelo mundo. Já nessa
Como vimos em inúmeras passagens, Conrad e Kipling trabalharam época uma indústria florescente abria novas possibilidades de lazer para
alegoricamente os elementos contraditórios do homem moderno e seus as classes abastadas das cidades. O turismo iria acompanhar de perto a
romances são exemplos magníficos do cosmopolitismo reinante no fim expansão da política imperialista e o sonho do cidadão comum passava a
do século XIX. O mundo parecia não ter fronteiras e o homem urbano ser, desde então, uma viagem repleta de surpresas e aventuras num navio.
europeu, que sonhava aventuras arrebatadoras, acreditava que a expansão Os relatos dos viajantes e os romances de aventuras faziam aquilo que
não tinha limites. Esse homem, que olhava mapas imaginando uma Euro- mais tarde iria fazer uma nova ciência social, a antropologia (cujo nasci-

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mento corresponde ao período do imperialismo): eles davam respostas às desse conflito seria o desmembramento do movimento socialista em todo
questões que as pessoas comuns tinham sobre as várias sociedades que o mundo, em uma tendência anarquista que recusava as lutas em defesa
emergiam "debaixo do guarda-sol colonial". de uma legislação social para os trabalhadores e repudiava a formação de
partidos políticos que viessem a participar de trabalhos parlamentares e uma
outra, na qual os marxistas eram majoritários, que aceitava tanto a luta por
UM OUTRO SONHO DA MODERNIDADE: O SOCIALISMO legislação social como a participação no sistema político do Estado burguês.
Mas essa Associação, apesar de suas divisões, ainda iria causar muito
Sem sombra de dúvida, o movimento socialista, por volta de 1890, preten- tumulto e pânico nas classes dominantes, e a constatação disso já se po-
dia-se internacional. A Associação dos Trabalhadores da Segunda Inter- dia observar no pavor que se abateu sobre a cidade de Viena, quando o
nacional já tinha, inclusive, um hino que pregava e prometia a redenção líder socialista austríaco Victor Adler convocou todos os trabalhadores
internacional dos trabalhadores. Em sua sessão de abertura, no dia 14 de para uma greve geral no dia 1° de maio de 1890. As manifestações de rua
julho 1889, em Paris, na data comemorativa do centenário da Revolução criaram um imenso pânico nas autoridades políticas e policiais, temendo
Francesa, estavam presentes organizações e partidos socialistas de vários que a multidão saqueasse e ateasse fogo nas lojas de comércio, causando
países, mas, se observarmos atentamente, iremos perceber que quase todos grandes distúrbios. Aos olhos de um observador atento, essa manifestação
eram oriundos da Europa, com exceção feita às representações dos Estados de trabalhadores em uma época de grande tranquilidade burguesa repre-
Unidos da América, da Austrália, da índia e do Japão, um sinal ainda fraco sentava o próprio "inferno, sôfrego e inexorável, que se abre por debaixo
da internacionalização do socialismo na corrente da expansão imperialista. da sociedade industrial". A verdade é que, em meio à tranquilidade reinante
Nesse congresso adotou-se, além do hino, também dois outros símbolos, no mundo da burguesia e de uma classe média ascendente, sobreviviam
o primeiro deles a bandeira muito vermelha que passaria a representar o milhões de trabalhadores espalhados pela Europa com jornadas de trabalho
sangue de todos os homens que lutaram por ideias socialistas e o segundo, de 12 horas durante sete dias por semana, vivendo com baixos salários e
a comemoração do Dia Internacional dos Trabalhadores, o 1° de Maio, em más condições de saúde e habitação. Ainda não havia chegado o dia
onde se levantariam as vozes para o lema "Trabalhadores de todo o mundo, do descanso dominical e das jornadas de 10 horas para a grande maioria
uni-vos". Estavam presentes os membros de partidos e organizações socialis- dos operários industriais, benefícios que só seriam alcançados muito mais
tas da Inglaterra, Alemanha, França, Holanda, Itália, Bélgica, Dinamarca, tarde e apenas em alguns países.
Áustria, Hungria, Suécia, Noruega, Espanha, entre outros. Contudo, o que mais deu intensidade aos debates da Internacional So-
Com todos esses representantes, os trabalhadores industriais e de todos cialista não foi a urgência por tais conquistas. Ainda que elas pudessem
os outros ramos de atividade do trabalho poderiam ou não se sentir repre- representar ganhos inestimáveis na luta dos trabalhadores contra a explo-
sentados. Isto porque tal congresso não era, propriamente, uma reunião ração capitalista, o que mais ocupou o tempo dos líderes da Internacional
de operários. Mas tal suspeita ou dúvida, com certeza, não era procedente foram quais os caminhos e os rumos a serem seguidos pelos socialistas.
para aqueles militantes que participavam da Associação Internacional. Para Diante do enorme crescimento das economias capitalistas, do aumento da
esses militantes socialistas, os trabalhadores de todo o mundo tinham, fi- concorrência entre nações industrializadas em busca de novos mercados
nalmente, conquistado um espaço de visibilidade nunca antes imaginado, e com o processo de acumulação de capital aumentando a competição
através da Associação Internacional. Entre as várias tendências socialistas internacional, uma tendência marxista pregava a iminência do colapso
que participaram da abertura do congresso, a mais influente era, sem dúvida, capitalista e a revolução política, ao passo que a outra ala acreditava que
a de orientação marxista. Tal peso político no interior da Associação Inter- os dias finais do capitalismo não estavam tão próximos e que o socialismo
nacional dos Trabalhadores acabou por expulsar as correntes de inspiração poderia, muito bem, ser alcançado mediante reformas graduais no sistema
anarquista, já em 1896, por ocasião do congresso de Londres. O resultado burguês, conseguidas através de alianças com outros partidos políticos pro-

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gressistas. Revolução ou reforma, este foi o grande dilema da Internacional não só estava aumentando o contingente de classe média pela ampliação
durante o período entre o congresso de 1889 e a Primeira Guerra Mundial do setor terciário da economia capitalista, como também estava havendo
e que propiciou uma divisão significativa entre os partidários do socialismo melhorias nas condições de vida do operariado industrial.
marxista. A fragrância juvenil do congresso de Paris de 1889 permitiu por Por tudo isso, este alemão achava que não era nada viável uma revolução
algum tempo que as lutas socialistas se unificassem em torno de quatro nos países industrializados, acreditava que o capitalismo teria muito fôlego
pontos fundamentais, num momento em que os anarquistas ainda não para aguentar crises periódicas e que o movimento socialista deveria se
tinham sido expulsos da Internacional. Foram eles: a jornada de trabalho preparar para lutar por reformas políticas e sociais, através de alianças com
de 8 horas, o sufrágio universal masculino, a substituição do exército de outros partidos reformistas. A indignação dos socialistas contra Bernstein
cidadãos por um exército permanente e, por último, a observância da data pode ser comparada com a reação dos cristãos contra um fiel que renegasse
do 1° de Maio como dia de confraternização, de protestos e demonstrações a figura de Cristo. A hostilidade foi tão grande que a própria viúva de Marx
trabalhistas em todo o mundo. acabou escrevendo uma carta aos socialistas defendendo o antigo amigo
No entanto, gostaríamos de dar ênfase a duas questões que, por tradi- da família. Sua polémica foi responsável por uma divisão entre os socialis-
ção, aparecem muito pouco nos textos que tratam do socialismo nesse tas, ainda mais profunda do que aquela ocorrida por ocasião da retirada
período. A primeira, já foi mencionada acima, é a famosa disputa no mo- dos anarquistas da Internacional. Essas mudanças foram mais evidentes
vimento socialista entre os partidários da revolução e os do reformismo. A nos posicionamentos do Partido Social-Democrata da Alemanha, a maior
segunda refere-se à difusão do socialismo pelo mundo e os impactos dessa organização política marxista do Ocidente, e elas acabaram se espalhando
propagação diante da corrida imperialista. Poucos livros dão atenção para entre os membros da Associação Internacional dos Trabalhadores. O maior
estes problemas e o primeiro deles inaugurou uma acirrada disputa polí- temor dos militantes da Internacional ante as posições de Bernstein era o
tica entre os partidários da teoria marxista e deveu-se, principalmente, a de que, com as suas teses, os próprios socialistas, aos poucos, viessem a
um socialista alemão, Bernstein, amigo da maior confiança de Karl Marx abandonar a bandeira do socialismo, pois ele deixava de ser uma inevita-
e Frederic Engels, os pais fundadores do socialismo científico. Aliás, ele bilidade histórica. Além disso, para o desgosto dos socialistas, Bernstein
conviveu durante algum tempo com Marx, quando pesquisavam nas bi- foi mais longe em suas críticas a Marx, pois chegou à conclusão de que o
bliotecas de Londres e eram, de certa forma, ajudados financeiramente por operariado não era uma classe homogénea, estava profundamente dividido
Engels. Este último cedeu uma casa em Londres, onde Marx e Bernstein com a especialização do trabalho na economia capitalista, não conseguia
se hospedaram. Pois bem, anos depois da morte de Marx e, em seguida, definir metas e objetivos comuns, e uma boa parcela dele era muito hostil ao
da morte de Engels, Bernstein publicou em um jornal socialista suas ideias próprio socialismo. Portanto, Bernstein considerou que Marx e seus segui-
pouco ortodoxas a respeito da crise final do capitalismo. Suas opiniões dores não perceberam as transformações ocorridas na economia capitalista
desagradaram imensamente os partidários da revolução, que o acusaram e por esta razão ainda pregavam uma revolução inevitável. De acordo com
de trair o pensamento de Marx. Justamente um dos melhores amigos de as suas teses, o objetivo dos socialistas deveria ser o de tornarem-se então
Marx, e que seria responsável pelo testamento de Engels, expôs ideias defensores de uma sociedade eticamente democrática e para isso deveriam
que se voltavam diretamente contra Marx. Bernstein, opondo-se a Marx, contar com o apoio de outros partidos políticos para a consecução de re-
não acreditava que estivesse havendo uma concentração da propriedade formas que pudessem melhorar a qualidade de vida de todos, e não apenas
capitalista. Achava, ao contrário, que o desenvolvimento capitalista estava de um proletariado profundamente idealizado.
distribuindo a propriedade capitalista entre mais pessoas, com a criação A verdade é que não havia como ignorar a importância do debate re-
das sociedades de ações. Também acreditava que Marx havia se enganado visionista, porque o capitalismo estava avançando em todos os lugares da
ao imaginar que o desenvolvimento capitalista traria mais pobreza para Europa e fora dela, os trabalhadores industriais estavam se constituindo
os trabalhadores e que também proletarizaria a classe média. Segundo ele, numa força política importante e os partidos socialistas ganhavam lugares

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importantes no Parlamento de vários países. Entre as vitórias conquistadas da teoria, postulando vulgarmente um marxismo que se assemelhava a
destacam-se, principalmente, a do Partido Social-Democrata da Alemanha um evolucionismo do tipo darwinista, como se a história das sociedades
nas eleições de 1902, o crescimento do socialismo na Itália com a forte se assemelhasse à evolução dos seres e à crença quase religiosa na inevita-
presença das cooperativas camponesas, a quase maioria dos socialistas no bilidade do socialismo.
governo da Câmara da França e também a presença marcante do Partido A geografia dessa difusão, se não é coincidente, assemelha-se muito com
Socialista na Áustria. a própria geografia do imperialismo, imprimindo um rumo muito pecu-
Diante de um crescimento significativo da presença socialista na vida liar à história desse período. Portanto, o imperialismo teve que se debater
política de vários países europeus, qual foi a força dessas organizações na com uma poderosa força política de contestação que ele próprio ajudou a
luta contra a política imperialista? Em primeiro lugar, precisamos conhecer propagar: o socialismo.
de que modo o socialismo, uma doutrina elaborada em círculos europeus, Entretanto, toda a propaganda internacional das ideias socialistas, pro-
não propriamente de operários, e que aos poucos foi ganhando peso entre os porcionada pela política da Internacional, não foi suficiente para impedir
trabalhadores, pôde, num espaço de tempo relativamente curto, entre 1889 que, em 1914, as nações industrializadas líderes da corrida imperialista
e 1914, ganhar uma repercussão mundial. Sua divulgação num contexto iniciassem uma das guerras mais assustadoras da História. Uma das ten-
internacional sugere, primeiramente, que os trabalhadores submetidos à tativas mais importantes foi a do Congresso da Internacional Socialista de
exploração capitalista, bem ou mal, estavam aprendendo a ler e que, por Bruxelas, em 1912. Todos os grandes nomes do socialismo europeu estavam
outro lado, ela significou um empobrecimento teórico da doutrina. Tornar presentes, entre eles o lendário alemão Bebei e o líder francês Jaurès, que, do
compreensível para os operários de todas as partes do mundo as ideias de púlpito de uma catedral, fez um discurso eloquente contra a guerra imperia-
Karl Marx sobre o capitalismo e o socialismo era uma meta a ser perse- lista: "Chamo os vivos para que possam defender-se do monstro que surge
guida pelos partidários da Internacional e, para lograr êxito nesta tarefa, no horizonte. Choro os inúmeros mortos que neste momento apodrecem
eles procuraram se utilizar de uma linguagem de senso comum, além de no Leste. Quebrarei os raios da guerra que ameaçam os céus" (Tuchman,
simplificar ao máximo a doutrina marxista da luta das classes e do socialis- 1990). Também na França, em 1913, Jaurès procurou impedir que uma lei
mo. Cientes de que o partido marxista deveria conquistar o maior número que revigorava o militarismo passasse na Câmara. Realizou uma manifes-
de adesões entre os trabalhadores, a Internacional Socialista, inaugurada tação pública de 150 mil trabalhadores, mas não conseguiu impedir que a
em 1889, tomaria para si a responsabilidade de vulgarização das ideias de lei fosse aprovada. Após o assassinato de Francisco Fernando, herdeiro do
Marx. Primeiramente, esta divulgação aconteceu em um contexto nitida- trono austríaco, no fim do mês de junho de 1914, os socialistas perceberam
mente europeu, na Alemanha, França, Itália e Bélgica, mas em menor pro- que seria necessário intensificar ainda mais a propaganda antimilitarista,
porção na Inglaterra. Além disso, não podemos esquecer que em algumas porque apenas eles e os anarquistas eram contrários à guerra. A resposta do
regiões europeias o anarquismo foi uma doutrina mais atraente do que o movimento dos trabalhadores em todos os países deveria ser a declaração
marxismo — na Espanha, por exemplo —, como também aconteceu com o de uma greve geral revolucionária contra o militarismo, esperando com isto
trabalhismo inglês. Apesar dessas oposições, o fato é que, em um período bloquear o avanço da corrida belicista. Entretanto, mesmo com grandes
relativamente curto, a Internacional, aproveitando-se, inclusive, de uma nova manifestações públicas, o socialismo parecia estar perdendo a sua batalha.
emigração europeia para outras partes do mundo, conseguiu vulgarizar a Isto ficou simbolicamente retratado na noite do dia 31 de julho, quando
tal ponto as ideias de Marx que não era improvável que um trabalhador Jaurès, depois de sair da redação do seu jornal, resolveu se reunir com um
de Tóquio, no Japão, de Xangai, na China, de Sidney, na Austrália, de São grupo de colegas no Café Croissant, em Paris. Comendo com os amigos, o
Francisco, Chicago e Nova York, nos Estados Unidos, ou em Buenos Aires, líder socialista francês foi surpreendido por um vulto que já o seguia, que
na Argentina, não soubesse de cor ideias vulgarizadas do marxismo. Mas o lhe apontou uma pistola e o matou com dois tiros. Jaurès estava morto e
que significou essa vulgarização? Por um lado, uma extrema simplificação a notícia se espalhou com incrível velocidade, mas a sensação era de que a

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última esperança pacifista havia caído morta num café parisiense. No dia ciência. Procuraram as respostas dessa crise intelectual produzida pelas
seguinte, a notícia da morte de Jaurès se espalhou por toda a França e a descobertas científicas não no conhecimento racional, mas em outras for-
Alemanha, mas nada impediu que as tropas do exército francês se dirigissem mas de conhecimento, que há muito haviam sido relegadas ao submundo.
à estação ferroviária para iniciar a guerra contra a Alemanha por causa do Proliferaram, nessa época, as visões místicas, o ocultismo, a quiromancia
território perdido da Alsácia-Lorena durante a Guerra Franco-Prussiana. e correntes religiosas ligadas ao orientalismo e ao espiritismo. Por se tratar
A Alemanha, armada para o combate vindouro, garantiu o apoio à sua de conhecimentos existentes no submundo da sociedade, e não tendo eles
aliada, a Áustria, e acabou declarando guerra à França, Inglaterra e Rússia. grande prestígio no mundo intelectual das elites originalmente, o ocultis-
'5
Iniciava-se, deste modo, uma das guerras mais cruéis da História, pondo mo, a magia, a quiromancia e o espiritismo tinham numerosos pensadores
fim a um longo período de tranquilidade aparente vivido pela população autodidatas de esquerda. Contudo, a tendência histórica deste período foi
de vários países europeus. completamente diferente e todos esses conhecimentos místicos deixaram o
submundo e passaram a dar sustentação à crise intelectual do pensamento
/ de direita. Tanto é assim que, nas origens, esses conhecimentos heterodoxos,
A BELLE-ÉPOQUE OU A ALEGRIA DE VIVER como a frenologia, a homeopatia, o espiritismo, foram acolhidos principal-
mente por homens e mulheres céticos e descrentes das virtudes das ciências
Num período onde as ambições foram imensas e os sonhos também grandio- estabelecidas. Nesse período, entretanto, esses conhecimentos perdiam a sua
sos, do domínio imperialista ao paraíso socialista, não seria absurdo dizer dimensão contestadora para se transformarem em válvula de escape para
que todos os outros campos da atividade humana foram também atingidos o pensamento conservador, que tinha de enfrentar inimigos tão perigosos
por essa sensação de expansão ilimitada dos desejos. Por este motivo a psi- como o socialismo e a teoria da relatividade de Eisntein.
canálise de Freud ganhou importância, defrontando-se com o cidadão das Apesar da proliferação desses conhecimentos ter sido considerável em
grandes cidades ávido de emoções e dilacerado pela infelicidade de não poder meios conservadores, é importante observar a extraordinária perda de ter-
realizar plenamente as suas fantasias. Lembremos que o imperialista Cecil reno da religião tradicional, ocasionada principalmente pela maior instru-
Rhodes chorou quando teve a consciência de que o seu desejo de expansão ção da classe trabalhadora. A defesa do livre-pensamento pelas correntes
não lhe permitiria anexar as estrelas. Havia a nítida sensação de que tudo do socialismo e do anarquismo ampliou a crença dos trabalhadores no
estava em expansão, e as certezas fixas e mecânicas, que haviam garantido evangelho científico, e uma das mais notáveis realizações da Internacional
o pensamento europeu, principalmente o filosófico e o científico, durante Socialista e dos anarquistas foi a criação das escolas livres e dos programas
os últimos dois séculos, estavam em via de desaparecer. Não poderia ser de instrução técnico-científicos para os trabalhadores. Entre os países que
diferente quando observamos o avanço das matemáticas não euclidianas e viviam uma industrialização intensa, apenas nos Estados Unidos a religião
da descoberta da relatividade por Albert Einstein. tradicional não sofreu grandes abalos, permitindo uma comparação com
Os impactos sobre a grande maioria da população causados pelo desen- a atualidade, quando seitas religiosas protestaram contra o ensinamento
volvimento das ciências eram menores do que a aplicação tecnológica das da teoria da evolução do homem a partir do macaco, insistindo no ensi-
descobertas científicas, como foi o caso da eletricidade, do telégrafo, do no da visão bíblica de Adão e Eva. O movimento socialista internacional
telefone e outros. Pois bem, o modo como essa crise intelectual de grandes esteve sempre na linha de frente dessa crença na razão e no progresso e a
proporções foi vivida pelas mais diversas pessoas deve ser analisado com vulgarização do marxismo se deveu à associação que os livros de divulgação
maior atenção. Uns a encararam com a certeza de que essas descobertas faziam entre as leis da ciência e as leis da história, colocando o marxismo
científicas estavam ampliando o conhecimento humano, entre eles o pen- como uma ciência evolucionista, determinista e materialista.
sador alemão Max Weber, um dos fundadores da nova ciência do homem, Num período de tantas mudanças e descobertas seria difícil avaliar como
a sociologia. Outros reagiram de maneira peculiar às descobertas da ocorreram tais transformações. Contudo, uma coisa parece mais do que

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l
O S É C U L O XX O C O L O N I A L I S M O C O M O A G L Ó R I A DO I M P É R I O

certa. Muitas dessas descobertas só foram possíveis pelo desenvolvimento também nas escolas e hospitais, além de se tornarem a figura fundamental
tecnológico propiciado pela industrialização. Maior disponibilidade de na família burguesa, agora não mais extensa e cheia de dependentes, mas
energia elétrica, ao lado de um aprimoramento dos aparelhos de pesquisa, constituída apenas pelo pai, pela mãe e os filhos. Com a redefinição dos
até do desenvolvimento de um sistema educacional fortemente voltado para papéis sociais, a mulher se torna a figura central da esfera familiar, além
o estudo das ciências, principalmente nas universidades. Entretanto, estas de, aos poucos, começar a ser ouvida nos espaços públicos. Ela tornou-se
seriam as causas materiais, e não espirituais, das descobertas. Continuando uma presença pública, não apenas como objeto de desejo masculino, atra-
neste argumento, não seria difícil concluir que os estudos de bacteriologia vés das artes, da propaganda e mesmo da prostituição, mas também como
desenvolveram-se com a expansão imperialista, na medida em que os ho- participante da vida política, com o surgimento de manifestações em favor
mens brancos precisavam estar imunizados contra as bactérias perniciosas do voto feminino. Para se ter uma ideia das dificuldades enfrentadas pelas
do mundo colonial. O mesmo acontecendo com as políticas de saneamento mulheres antes do início da Primeira Guerra Mundial, basta mencionar que
voltadas à higienização dos bairros operários das grandes cidades europeias, poucos países ocidentais haviam assegurado em suas leis o voto feminino.
tendo elas servido para o avanço das pesquisas em bacteriologia. Uma outra Os exemplos raros foram Austrália, Nova Zelândia, Noruega e Finlândia.
ciência que teve grande prestígio nesse período foi a eugenia, que, com o Figuras tão extravagantes como a presença feminina nos espaços pú-
advento da genética em 1900, se propôs a aplicar os cruzamentos seletivos blicos foram também os artistas. Do parque de diversões aos circos, dos
da agricultura e da pecuária em seres humanos. As implicações dessas teorias pintores de rua aos salões, dos cabarés às salas de concerto, toda a arte
eugênicas no aprimoramento das raças iria causar um verdadeiro cataclismo foi se transformando neste período, inclusive com o advento da fotografia
na humanidade algumas décadas mais tarde, quando Adolf Hitler adotou e do cinema. Através dessas artes e de seus espetáculos foram vividos os
os princípios da eugenia para justificar o massacre de milhões de judeus e momentos mais criativos desse período. Ao abandonar o círculo exclusivo
de opositores do regime nazista alemão. dos mecenas e transformar a sua obra em objeto de apreciação pública e
Mais difícil é imaginar de que modo as novas descobertas da física e da de negociação financeira, o artista desceu de seu pedestal elitista e ganhou
matemática se relacionam com os acontecimentos aqui mencionados. Não as ruas das grandes cidades. Com essa atitude, eles tornaram-se também
que físicos e matemáticos vivam no mundo da lua, enquanto a realidade colaboradores de uma nova estética que se anunciava com os avanços da
corre rápida sob seus pés. Apesar de assemelharem-se a seres muito desli- ciência e da tecnologia. Através do domínio desses novos conhecimentos
gados, como é caso do personagem de Albert Einstein, eles participam da eles puderam conceber uma nova estética pictórica, a arte impressionista,
história e suas descobertas têm uma relação mais abstrata com a realidade. observando os avanços do conhecimento científico sobre a decomposição
De uma coisa podemos estar certos, observando esses cientistas com suas da luz. A fotografia também se transformou em verdadeiro ícone dessa
descobertas maravilhosas: eles não estavam sozinhos nessa viagem, porque modernidade, quer no que diz respeito à formação da personalidade do
muitos homens e mulheres que viveram nesse período também perceberam indivíduo, através do retrato, quer quando utilizada como veículo de in-
que os valores e padrões estabelecidos não davam mais conta da nova reali- formação e notícia. Datam deste período, por exemplo, as primeiras foto-
dade mundial. Nesse sentido, eles não diferem dos artistas e dos sonhadores grafias de fronts de guerra, com seus mortos e feridos, produzindo uma
em todas as áreas de atuação, sejam homens ou mulheres. nova sensação de veracidade e realismo ao acontecimento jornalístico, que
Talvez, agora, seja o momento para observarmos a presença cada vez passou a estruturar a vida cotidiana dos habitantes das grandes cidades.
mais acentuada de um novo personagem na cena da história. Refiro-me Utilizando-se das técnicas prenunciadoras do cinema de animação, apare-
às mulheres, que começaram a ganhar o espaço da vida pública nesse mo- ceram na Europa os magníficos panoramas, que, através de uma ilusão de
mento marcado por grandes transformações na organização da vida e do óptica, criavam, em ambientes fechados, cenários da grande cidade. Poucos
trabalho. Além de serem requisitadas como trabalhadoras assalariadas nas desses panoramas sobreviveram ao tempo, mas ainda hoje há um exemplar
fábricas e no setor comercial, as mulheres começaram a se fazer presentes magnífico na cidade holandesa de Haia, o panorama Mesdag, que recebeu

iso 13!
O S É C U L O XX O COLONIALISMO C O M O A G L Ó R I A DO I M P É R I O

o nome de seu pintor. Ele criou uma tela em forma circular, em ambiente BIBLIOGRAFIA
fechado, onde se tem a impressão real de uma vista panorâmica da cidade
de Haia a partir de seu ponto mais alto, com a iluminação de luz natural Abendroth, Wolfgang. 1997. A história social do Movimento Trabalhista Europeu.
dando a sensação ao visitante de que ele pode ter várias impressões da Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Arendt, Hanna. 1989. As origens do totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras.
cidade, dependendo das horas do dia.
Aries, Philippe. 1991. História da vida privada: Da Revolução francesa à Primeira
A vida moderna e as ruas da grande metrópole ofereceram-se de ma- Guerra Mundial. São Paulo, Companhia das Letras.
neira espetacular à inspiração artística, anunciada na poesia parisiense de Brunschwig, Henry. 1993. A partilha da África Negra. São Paulo, Perspectiva.
Charles Baudelaire, As flores do mal e nos contos alucinantes do escritor Hobsbawm, Eric. 1982. A era do capital. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
americano Edgar Allan Põe. As figuras assustadoras da metrópole, bem . 1982. História do marxismo: O marxismo na época da II Internacional. Rio
como as novas sensibilidades e as novas formas de convívio social, pro- de Janeiro, Paz e Terra.
. 1989. A era dos impérios. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
porcionadas pela maior liberalidade dos costumes, tornaram-se os temas
Pannikar, K. M. 1997. A dominação ocidental na Ásia. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
prediletos dos artistas. Desde as percepções otimistas da arte até as suas Pesavento, Sandra. 1997. As exposições universais: espetáculos da modernidade do
representações mais sombrias, todas essas imagens formam um verdadeiro século XIX. São Paulo, Hucitec.
quadro impressionista da modernidade europeia do final do século XIX. Ao Said, Edward W. 1995. Cultura e imperialismo. São Paulo, Companhia das Letras.
lado de uma euforia, muitas vezes exacerbada, da maioria dos indivíduos Sartre, Jean-Paul. 1968. Colonialismo e neocolonialismo. Rio de Janeiro, Tempo
das abastadas classes média e alta insinuava-se, principalmente nas artes Brasileiro.
Schorske, Cari E. 1988. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo, Companhia
e na filosofia, uma percepção sombria e negativa desse mundo dos sonhos
das Letras-Editora da Unicamp.
da belle époque, como anunciando a falta de remédios para um imenso Tuchman, Barbara. 1990. A torre do orgulho. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
mal-estar da civilização.
Se pudermos fazer uma alusão mais artística desse mal-estar, nada como
recordar os belos dias de uma das mais charmosas e artísticas cidades da Eu- LIVROS DE FICÇÃO
ropa, a Viena burguesa, capital do Império Austro-Húngaro. Nessa cidade,
berço de Sigmund Freud, autor de um dos mais arrepiantes dignósticos da Joseph Conrad. 1984. O coração da treva. Trad. Marcos Santarrita, 3a edição. São
modernidade, o texto O mal-estar da civilização, parecia não haver lugar Pauto, Brasiliense.
para temores e para o pessimismo, até o início do século XX. Foi nesta Viena Rudyard Kipling. 1980. Mowgli, o menino-lobo. Trad. Monteiro Lobato, 4a edição.
embalada pelas valsas românticas de Strauss, como a Valsa dos bosques de São Paulo, Companhia Editora Nacional.
. 1987. Kim. Trad. Cordelia Dias d'Aguiar. Rio de Janeiro, Tecnoprint.
Viena e Danúbio azul, que um outro compositor, Maurice Ravel, compôs
George Orwell, 1984. Dias na Birmânia. Trad. Newton Goldman, 2a edição. Rio de
sua nova valsa, carregada de pessimismo, com uma composição musical toda Janeiro, Nova Fronteira.
dissonante, onde, segundo o historiador Cari Schorske (1988), intercalam-se T. E. Lawrence. 2000. Os sete pilares da sabedoria. Trad. de C. Machado. Rio de
ritmos alucinantes e compulsivos, anunciando uma ruptura com as suaves Janeiro, Record.
melodias das valsas de Strauss. Não seria nada absurdo afirmar que a valsa, Isak Dinesen. 1986. A fazenda africana. 3a edição. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
música símbolo de Viena, tinha se transformado na composição de Ravel E. M. Foster. 1980. Passagem para a índia. Trad. Sônia Coutinho. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira.
em uma "desvairada dança macabra", anunciadora de tormentos somente
compreendidos diante do horror da Primeira Guerra Mundial.

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Resistências ao capitalismo: plebeus,
operários e mulheres
Francisco Carlos Palomanes Martinho
Professor Adjunto de História Contemporânea do Departamento de
História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
INTRODUÇÃO

Durante a segunda metade do século XIX, a Europa foi tomada por um


grande susto: o crescimento desenfreado das cidades. As indústrias recru-
tavam quantidades cada vez maiores de trabalhadores fabris, mas os cen-
tros urbanos eram também ocupados por outros tipos de trabalhadores,
informais, como biscateiros, além de mendigos e prostitutas, sem falar dos
subempregados e desempregados. A plebe urbana parecia não ter fim. É
bem verdade que ela já havia surgido desde a primeira fase da Revolução
Industrial, entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do
XIX. Mas nunca havia sido tão grande em magnitude, nem tão diversos
os seus tipos, nem crescera de modo tão acelerado como agora. Apesar
disso, a revolução nas indústrias química e metalúrgica consolidavam uma
crença aparentemente inabalável no progresso e no crescimento material.
Esse crescimento, fruto de um capitalismo que aparentava não ter frontei-
ras, provocou reações de vários tipos. Para as elites dominantes, havia a
preocupação de controlar os novos segmentos populares e lhes impor um
sentido de ordem. Para as lideranças revolucionárias, o crescimento das
cidades abria a possibilidade de uma presença maior da classe operária no
cenário político, fato que lhes dava esperanças de transformações a curto
prazo. Ao mesmo tempo, as cidades faziam brotar um novo personagem,
cuja ação, em muitos momentos, era autónoma e até oposta à conduta do
proletariado e das lideranças políticas à esquerda e à direita: as mulheres,
que, de forma até então inimaginável, fizeram com que seus interesses se
apresentassem como temática obrigatória nos debates políticos à época. É
desses cenários, de uma nova cidade, de uma vasta plebe urbana, da classe
operária e das mulheres, que trataremos aqui.

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O S É C U L O XX RESISTÊNCIAS AO CAPITALISMO: P L E B E U S , O P E R Á R I O S E M U L H E R E S

1. Entre a negação e a negociação — o luddismo e o cartismo na primeira mobilizou um total de 100 mil trabalhadores, entre mineiros e marinheiros
metade do século XIX (Rude, 1991, pp. 69-70). Esses movimentos, dependendo das circunstâncias
podiam se transformar em violentos motins populares. Principalmente por-
O nascimento das fábricas, originariamente na Grã-Bretanha, transformou que as "associações" de trabalhadores estavam proibidas por legislações que
de tal modo a geografia da cidades europeias que chegou mesmo a provocar atingiram em 1721 e 1726 os alfaiates, também em 1726 os ofícios de lã,
um profundo estranhamento, tanto entre as elites económicas como entre as em 1749 os ofícios de seda, linho, algodão, fustão, ferro e couro e, através
chamadas classes populares. Em seu livro Tudo que é sólido desmancha no da Lei da Associação de 1799, todos os trabalhadores britânicos. Por isso,
ar, Marshall Berman cita a novela romântica de Rousseau A nova Heloísa, era mais comum o motim contra o patrão do que a greve ou a petição ao
em que o personagem Saint-Preux migra do campo para a cidade. Em seu Parlamento. Assim, em 1763, os tanoeiros de Liverpool, em represália ao
novo habitat, escreve para a amada Julie, onde diz, a respeito da vida citadi- seu comportamento arrogante, arrastaram um mestre tanoeiro pelas ruas
na, que "tudo é absurdo mas nada é chocante, porque todos se acostumam em um mastro. Em 1775, na mesma cidade, em greve por questões salariais,
a tudo" (citado in Berman, 1986, p. 17). Esse sentimento de Saint-Preux os marinheiros desfilaram pelas ruas armados de modo a ameaçar as autori-
expressa o sentimento de atração e repulsa que o homem sentia diante do dades. Mas a forma mais comum de protesto no período pré-industrial foi o
crescimento aparentemente vertiginoso do mundo urbano. É claro que o que ataque a propriedades, oficinas e maquinarias, sempre exigindo a negociação
era considerado à época uma grande cidade correspondia a centros urbanos com patrões ou autoridades. De um modo geral esses levantes tinham dois
relativamente modestos para nossos padrões contemporâneos. Em 1830, objetivos: proteger os trabalhadores contra cortes nos salários ou aumento
apenas Londres tinha mais de l milhão de habitantes e Paris mais de 500 de preços e contra o surgimento de novas máquinas que pudessem substituir
mil, e a típica cidade industrial era composta de aproximadamente 100 mil o trabalho humano. Esses protestos muitas vezes são confundidos com o
luddismo, forma de motim operário característico da Inglaterra no período
habitantes (Hobsbawm, 1982, pp. 187-188). Mas, ainda assim, esse cres-
1811-1817. Os movimentos trabalhistas do século XVIII proporcionaram,
cimento aparentemente discreto, para nossos padrões atuais, foi suficiente
em sua maioria, a criação de mecanismos de negociação precursores dos
para provocar os mais variados sentimentos e as mais diversas reações. Pois
existentes nas sociedades capitalistas "modernas" (Rude, 1991, pp. 71-81).
o que na verdade se via como revolucionário não era exatamente o tama-
Talvez o primeiro "grito" de protesto contra a exploração propriamente
nho da cidade, da classe operária ou ainda da chamada "plebe urbana",
capitalista tenha sido o movimento chamado de luddismo. O termo, apa-
mas sim a velocidade com que cresciam as cidades, o operariado e a plebe. rentemente, vem de um aprendiz de tecelagem chamado Ned Ludd que,
Da mesma forma que as chamadas transformações estruturais do mundo ao ser molestado em seu trabalho, quebrou com um martelo os caixilhos
capitalista (fábricas, cidades etc.) eram embrionárias, necessitando ainda do mestre (Rude, 1991, p. 84). Mais importante que a origem do termo,
de um processo de amadurecimento, também o comportamento popular porém, é o significado que teve o movimento luddista para a história da
passou por distintas fases e etapas. Segundo George Rude, em seu livro A classe operária na primeira metade do século XIX.
multidão na história: estudo dos movimentos populares na França e na Em geral, o luddismo, que em seu apogeu obrigou à mobilização de mais
Inglaterra — 1730-1848, as chamadas disputas trabalhistas podem ser de 12 mil soldados durante o verão de 1812, é lembrado exclusivamente
encontradas na Inglaterra já no século XVIII. O autor cita, por exemplo, como um movimento contra as máquinas. Esta é, por certo, uma de suas
os casos dos barqueiros de Newcastle e dos alfaiates de Londres que, em principais facetas. Mas o luddismo deve ser entendido também como um
1750 e 1751, respectivamente, entraram em greve por melhores salários. movimento tipicamente sindical, destinado a forçar os empregadores a con-
Também em Manchester, em 1753 e 1758, houve movimentos de carpintei- cessões. Isto para falarmos dos dois modelos mais importantes das práticas
ros, marceneiros t pedreiros, chegando, no segundo movimento grevista, ao luddistas. Além destes, podemos citar motins contra a fome, conspirações
número de 10 mil trabalhadores paralisados. Em 1765, por fim, nas regiões políticas e outras ações que, quando coincidentes com o luddismo, eram
mineradoras do nordeste britânico, uma paralisação por melhores salários também assim caracterizadas.

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O S É C U L O XX R E S I S T Ê N C I A S AO CAPITALISMO: PLEBEUS, O P E R Á R I O S E MULHERES

O estopim do movimento luddista foi a depressão industrial vivida c saudados como "mulheres do general Ludd", lideraram um movimento de
pela Inglaterra em 1811. Além do cerco napoleônico, o chamado Bloqueio assalto à residência de Joseph Goodair, proprietário de teares em Edgeley, e
Continental, o súbito fechamento do mercado americano, decorrente da queimaram-na, com seus teares (Rude, 1991, pp. 88-89).
reação a decretos retaliatórios da Inglaterra, provocou um profundo colapso Apesar da visão predominante do luddismo como um movimento in-
na economia britânica. Além disso, uma sucessão de más colheitas entre génuo e opositor do progresso, na verdade ele constituiu uma ação dotada
1809 e 1812 só fez agravar ainda mais a situação. As áreas mais atingidas, de racionalidade e propósitos bem definidos. Como na greve moderna, o
e portanto o foco dos movimentos luddistas, foram aquelas destinadas à luddismo não hesitava em negociar e, a rigor, só partia para as ações vio-
exportação. Em Nottingham, por exemplo, desde o início do século XVIII lentas quando as portas da negociação se fechavam. Assim, quando a nova
o comerciante de malhas arrendava seus teares para o mestre tecelão que, ordem industrial se impôs e novas formas de mobilização se apresentaram, o
por sua vez, contratava operários avulsos. Havia um século, portanto, que luddismo deixou de existir como movimento dotado de representatividade.
negociações salariais se processavam naquela região. Quando as negociações Como vimos, a escolha da quebra das máquinas significava o resgate de
foram suspensas, em virtude da crise económica, as agitações começaram uma antiga tradição popular na Inglaterra. Mas deve ser sempre lembrado
(Rude, 1991, pp. 84-85). como o primeiro grande ato de rebeldia das classes populares diante das
Os primeiros levantes luddistas se deram junto às empresas tecelãs que mazelas da nascente sociedade capitalista (Rude, 1991, p. 98).
produziam meias "cortadas" a partir de moldes de empresas maiores, traba- Se o luddismo representou um manifesto de revolta popular contra a
lho este que requeria mão de obra sem especialização e, consequentemente, exploração capitalista, outros movimentos mostraram-se mais afeitos à par-
mais barata. Em fevereiro de 1811, em Arnold, perto de Nottingham, os ticipação nos canais abertos pela sociedade liberal. Em 1780, na Inglaterra,
tecelões invadiram as oficinas dos produtores e desmontaram seus teares. uma Comissão da Reforma propôs uma série de pontos de mudança na legis-
Em abril, na mesma região, mais de duzentos teares haviam sido destruídos. lação, entre os quais: voto universal masculino, remuneração dos deputados,
As primeiras manifestações luddistas, entretanto, entraram em declínio, voto secreto e parlamentos anuais. Mais de meio século depois, em 1838, a
tanto em consequência da repressão como em consequência da negociação. Associação dos Trabalhadores de Londres preparou os seis pontos da Carta
Enquanto patrões comprometeram-se a aumentar salários e até mesmo a do Povo, onde todas as reivindicações de 1780 se encontravam inscritas. No
suspender a produção de meias "cortadas", uma nova legislação foi elabo- resgate do passado, nascia um novo movimento que viria a ser decisivo na
rada no sentido de impor limites à ação luddista. Assim, em fevereiro de história dos movimentos populares na Inglaterra: o cartismo (Rude, 1991,
1812, o Parlamento aprovou uma lei que tornava a destruição dos teares p. 195). Os seis pontos constantes na Carta do Povo eram: 1. sufrágio mas-
um crime capital (Rude, 1991, pp. 85-88). culino; 2. votação secreta; 3. distritos eleitorais iguais; 4. remuneração dos
Apesar da ameaça agora imposta em lei, os movimentos luddistas vol- membros do Parlamento; 5. parlamentos anuais; 6. abolição das condições
taram a se manifestar, desta vez nas regiões do noroeste da Inglaterra, onde, de propriedade para os candidatos (Hobsbawm, 1982, p. 132).
em cidades como Manchester e Liverpool, se localizava o centro da revo- O cartismo foi, ao mesmo tempo, um movimento de caráter nacional e
lução industrial inglesa. Desta vez, as energias dos manifestantes luddistas local. O que deu a ele uma dimensão nacional foi o fato de trazer consigo
voltaram-se não mais contra os teares manuais, mas contra os teares a vapor, tanto segmentos sociais saudosistas do passado, como trabalhadores das
exemplo do rápido processo de modernização da indústria britânica. A rigor, indústrias domésticas e dos teares manuais, entre outros, que entravam em
as primeiras manifestações de Manchester e Liverpool não podem ser conside- declínio diante do novo sistema industrial quanto representantes da nova
radas luddistas, uma vez que não houve quebra das máquinas. Tinham, sim, indústria, como os trabalhadores do algodão de Lancashire e da Escócia e
um caráter predominantemente político, com vistas à aprovação de leis que os mineiros do centro da Inglaterra. Trabalhadores esses que privilegiavam
restringissem o maquinário moderno. Este tipo de ação propriamente luddista as negociações através de seus sindicatos e associações, em vez dos velhos
reapareceu em abril de 1811, quando dois homens vestidos como mulheres métodos de "justiça natural" característicos das sociedades pré-capitalistas.

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O S É C U L O XX
RESISTÊNCIAS AO CAPITALISMO: P L E B E U S , O P E R Á R I O S E MULHERES

Também seus líderes compunham um amplo leque de perfis, que ia desde comportamento que viriam a predominar entre as classes trabalhadoras na
antigos radicais, passando por defensores do sindicalismo e até marxistas. metade seguinte do século.
Ao mesmo tempo, o cartismo buscou sempre privilegiar os métodos de ma- Houve, portanto, entre os trabalhadores de uma Inglaterra em pleno
nifestação e as tradições de cada região, fator este que lhe conferiu também processo de industrialização, dois modelos básicos de comportamento. O
um caráter local. Talvez o mais correto seria considerar o cartismo como primeiro, o luddismo, caracterizado pela revolta e pela violência. O segundo,
um conjunto de manifestações locais realizado em um breve espaço de o cartismo, onde predominaram mobilizações em torno do Parlamento e,
tempo em toda a Grã-Bretanha. Em comum aos vários cartismos estava a por isso, legalistas. Porém, esses modelos de comportamento não podem ser
fidelidade à Carta de 1838 (Rude, 1991, pp. 196-197). vistos como dicotômicos ou excludentes. O luddismo, apesar da violência
O método de ação predominante foi a elaboração de petições (ou cartas) que o caracterizou foi também um movimento dotado da capacidade de
a serem enviadas ao Parlamento solicitando a aceitação e a implementação negociação. E o cartismo não deixou de trazer em seu bojo movimentos
dos referidos seis pontos. A primeira delas, lançada em Birmingham em radicais que extrapolavam a simples petição ao conservador Parlamento
1838, chegou, em julho do ano seguinte, a 1.280.000 assinaturas. Foi, en- britânico. No fundamental, o que interessa é a percepção de que as atitu-
tretanto, rejeitada pelo Parlamento por ser considerada uma forte ameaça des de negociação e de conflito são partes integrantes da conduta dos
à propriedade. Nos anos seguintes, os cartistas procuraram se fortalecer, trabalhadores e da população urbana de um modo geral. Uma não exclui
criando a Associação Nacional da Carta, que, em 1842, já contava com 48 necessariamente a outra. E esse movimento, ora pendulando entre os ex-
mil membros. Nova petição, desta vez com mais de 3 milhões de assina- tremos, ora combinando as ações radicais e a negociação, se fará presente
turas, número superior ao dos eleitores do país, tornou a ser rejeitada pelo ao longo da segunda metade do século XIX.
Parlamento. As sucessivas derrotas e as divergências entre as suas lideran-
ças deram a impressão de que o cartismo havia morrido. Entretanto, ele 2. Uma nova paisagem: a plebe urbana nas cidades
ressurgiria no conturbado ano europeu de 1848. Apesar do pacifismo de
seus líderes, o governo britânico, temeroso de que houvesse influências A Revolução Industrial, com o rápido desenvolvimento do sistema fabril,
de líderes franceses e irlandeses, reuniu 170 mil policiais para dispersar provocou mudanças profundas nas sociedades europeias tradicionalmente
os manifestantes naquele que seria o último suspiro do cartismo (Rude, agrárias. Uma das mais importantes foi o rápido processo de transformação
1991, pp. 187-188). Qual a importância, então, de um movimento que, se nas cidades. Por um lado, a cidade virou um espaço público onde a popula-
tomarmos como referência as petições, resultou em constantes fracassos? ção pobre que nela morava escapava à vigilância e ao controle, tão comuns
Em primeiro lugar, não podemos esquecer que o movimento cartista foi no mundo rural. Aos domingos, por exemplo, às margens tanto do rio Sena
contemporâneo de uma Europa em que o capitalismo ainda não se havia em Paris, quanto do Tamisa, em Londres, era normal ver trabalhadores
estabilizado, levantando-se contra ele revoluções constantes. Assim, o temor bem-vestidos passeando com suas famílias (Perrot, 1987, pp. 122-125). Por
de que a propriedade e a ordem fossem questionadas era comum entre as outro lado, a população pobre crescia e migrava para as cidades em escala
antigas classes dominantes (Hobsbawm, 1982, pp. 132-138). Além disso, jamais vista. Para se ter uma ideia do fenómeno, a cidade de Londres tinha,
ou talvez por isso, o cartismo se viu acompanhado de motins, insurreições em 1841, mais de 1,8 milhão de habitantes; já em 1891, sua população
e manifestações populares mais ou menos radicais. Essas manifestações, ultrapassava a casa dos 4 milhões (Bresciani, 1989, p. 31).
muitas vezes, antecederam os movimentos cartistas e, em boa parte dos O crescimento urbano, ao mesmo tempo que demonstrava um progres-
casos, os ultrapassaram. Assim, o cartismo deve ser visto como parte inte- so material sem precedentes, provocado pela acelerada industrialização,
grante dos movimentos sindicais da Inglaterra na primeira metade do século também provocava uma forte inquietação entre os segmentos mais conser-
XIX. Pela sua longevidade, representatividade e método predominantemente vadores, em particular devido ao medo que se tinha não apenas da classe
reformista, deve ser também entendido como o que construiu padrões de operária, mas sobretudo do grande número de desempregados, vagabundos

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e mendigos que tomava conta do espaço público. Essas massas suscitavam, batedores de carteira, mendigos, inválidos e toda espécie de trabalhadores
ao mesmo tempo, fascínio e terror (Bresciani, 1989, p. 10). informais, que faziam da rua o lugar de seu trabalho (Bresciani, 1989, pp.
Falemos um pouco de Londres. A capital da Inglaterra viveu com muita 20-21; Germain, 1993, pp. 69-75). Deste modo, Londres era também o
intensidade o seu período vitoriano, ou seja, o reinado da rainha Vitória, lugar de um vasto "mundo subterrâneo".
iniciado em 1837 e encerrado com sua morte a 22 de janeiro de 1901. Na As características e os problemas de Paris em larga medida se asseme-
segunda metade do século, seu crescimento demográfico foi assustador. Por lhavam aos da capital da Inglaterra. A capital da França também assistiu
volta de 1850, tinha uma população de mais de 2 milhões de habitantes; em a um rápido crescimento desde a época da Revolução Francesa. Rousseau,
1870, esta população já chegava a 3,3 milhões e, em 1914, atingia a marca por exemplo, em sua novela romântica, A nova Heloísa, mostra um jovem
de 4,6 milhões (Mayer, 1987, p. 78). Foi um longo período marcado, de um que migra do campo em direção à cidade. Esse jovem vive ao mesmo tem-
lado, por intensas turbulências e agitações sociais e, de outro, pela tentativa po a atração diante da novidade e da abertura de um novo universo, em
de consolidação como exemplo maior de civilização industrial. Na virada constante transformação, ao lado do medo diante de uma sociedade onde
da primeira para a segunda metade do século XIX, a Inglaterra era o único "tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo"
país do mundo a ter a maior parte de sua população nas cidades. Londres (Berman, 1986, p. 17). As condições de vida e moradia da população pobre
era a mais importante de todas. Seu crescimento, entretanto, dava-se sem de Paris impunham à cidade, principalmente em certas áreas, uma atmosfera
controle e sem planejamento. Apenas em 1850 foi criado um departamento sufocante. Para as classes dominantes, a promiscuidade e a falta de higiene
de obras públicas, para enfrentar os já graves problemas de higiene. Ao caracterizavam um comportamento selvagem em nada dignificante. Tanto
mesmo tempo que o orgulho londrino buscava apresentar uma cidade rica é assim que suas preocupações fundamentais nesse terreno eram a higieni-
e próspera, espelho de todo o Reino Unido, havia, a rigor, várias cidades zação e o controle (Perrot, 1991, p. 314). Entretanto, essa população, vista
dentro de uma só. Uma heterogeneidade que lhe garantia uma riqueza cul- com os olhos da desconfiança, preferia morar longe dos grandes centros,
tural bastante significativa. Londres, na condição de capital de um vasto pois sua liberdade estava diretamente vinculada à ausência de controle.
império, tinha o maior porto do mundo, garantindo para si um estatuto de Preferiam habitações clandestinas, feitas em terrenos baldios, áreas de mar-
cidade cosmopolita que nenhuma outra tinha. Talvez por isso tenha sido ginais e ponto de encontro de vadios. Ser livre, aliás, era mais importante
o centro de referência do pensamento progressista e revolucionário, abrigo que morar bem. O apego à terra, ao campo, era muito forte e a ideia de
para exilados políticos das mais variadas partes do mundo. Karl Marx, por liberdade vinculava-se à da construção de ambientes comunitários, típicos
exemplo, viveu em Londres entre 1850 e 1883, ano de sua morte (Charlot: das aldeias (Perrot, 1991, pp. 316-317). Era como se, na reconstrução de
e Marx, 1993, pp. 13-14). Não era, portanto, só o espelho do progresso uma memória do passado vivido, fosse possível abolir o rígido controle das
industrial e económico da Inglaterra, mas de um mundo que mudava ver- sociedades rurais. E assim, apesar da ida à cidade ser um (ou o) caminho
tiginosamente. E essas mudanças eram vistas dia após dia numa cidade para se obter a liberdade, o passado camponês e localista é reconstruído
marcadamente intelectualizada, que fazia dos cafés e pubs (bares típicos da positivamente. Desta perspectiva, os espaços populares são patrimónios
Inglaterra) lugares de encontros de grandes escritores, como Charles Dickens a serem preservados. São ilhas dispersas em meio à selvageria da cidade.
e Oscar Wilde, e também de escritores e artistas menores que sonhavam um Mas, para além das características de vida da população das cidades, de
dia ser reconhecidos. Sendo a cidade dos grandes negócios, centro financeiro suas escolhas, seria também interessante analisarmos as condições da vida
mundial, tornou-se também um importante centro de comércio varejista, cotidiana das pessoas. Para começar, a ideia que temos hoje de centro urbano
inaugurando as primeiras grandes lojas de departamentos, constituindo-se é completamente diferente da que se tinha há cem anos. É possível que a
como um forte mercado a seduzir para o consumo, com poder de atração grande diferença entre as cidades do século XIX e as do século XX esteja na
sobre todos, embora muito poucos tivessem acesso a seus produtos (Charlot, definição das políticas de saneamento e higiene. As cidades cresciam muito
1993, pp. 61- 63). Além da já citada prostituição, Londres estava repleta de aceleradamente e, no mesmo ritmo, cresciam também seus problemas. A

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começar pelo problema crónico da falta d'água. Não só a falta d'água, mas como dia de descanso, a proibição do trabalho noturno para crianças e
também a ausência de lugares onde jogar a água após o seu uso. O lixo, mulheres, além da ampliação do direito do voto.
os esgotos domésticos e mesmo os dos urinóis eram jogados na rua. Os No entanto, outras formas de resistência ante as difíceis condições de
esgotos públicos, raros, desaguavam no rio local. Assim, o hábito de tomar vida também se faziam presentes, combinando-se com greves e insurreições.
banho, devido à falta d'água e às dificuldades de sua eliminação, era coisa E também não devemos nos esquecer que havia, do mesmo modo, a pos-
rara. Raras eram as casas com banheiras e muitas pessoas atravessavam sibilidade do estabelecimento de relações amistosas entre trabalhadores e pa-
suas vidas sem tomar um banho sequer. Também não havia o hábito de trões. Dependendo das condições específicas, os comportamentos variavam.
trocar com frequência as roupas ou mesmo de lavá-las. A falta de hábitos A classe operária de meados do século XIX era, sem dúvida, bastante
de higiene, que eram comuns em cidades como Paris, era mais grave ainda diferente das classes trabalhadoras da primeira metade do século. Estas tra-
nas condições das províncias ou do campo. Somava-se à falta d'água o mo- balhavam sobretudo no setor têxtil, e engrossavam, além disso, os setores,
ralismo da época, que impedia que as pessoas, mesmo sozinhas, ficassem ainda então bastante significativos, de artesãos (alfaiates, sapateiros etc.).
nuas. Por volta de 1900, esses hábitos começaram a mudar, na mesma O crescimento posterior das ferrovias aumentou o número de trabalhadores
medida em que a medicina sanitária avançava, defendendo novos hábitos em segmentos mais "modernos" da economia, em particular a metalurgia.
e costumes. A defesa da água encanada, do hábito de ferver o leite antes Por outro lado, as ferrovias, com suas demandas (as novas locomotivas
de torná-lo, o reconhecimento de que a explosão urbana podia provocar movidas a vapor), também povoavam as minas de carvão. Para se ter uma
doenças endémicas. Todos esses fatores contribuíram para a construção de ideia desse crescimento, em 1871, na Inglaterra, havia menos de 100 mil
uma nova ideia de saúde e higiene, ligada à limpeza e à prevenção. Além ferroviários e aproximadamente 500 mil mineiros; em 1911, o número
disso, verificamos também a mudança nos hábitos alimentares da popula- de ferroviários saltou para 400 mil e o de mineiros para 1,2 milhão. Ao
ção, fator que possibilitaria uma vida mais saudável. Principalmente a partir lado do crescimento numérico da classe operária, assistimos também ao
do século XX, quando um período de prosperidade económica conduziu a nascimento de grandes concentrações industriais. Enquanto em 1860, o
França à sua belle époque. Os novos hábitos alimentares, somados às me- estaleiro Armstrongs empregava por volta de 6 a 7 mil operários — uma
lhores condições de vida da população, aumentaram o consumo de carne, média alta para a época —, em 1914 este número chegaria a cerca de 20
enquanto diminuía o de pão, alimento básico da população de baixa renda mil (Hobsbawm, 1987, pp. 275-277). Esse crescimento numérico da classe
durante o século XIX (Weber, 1988, pp. 84-85). A melhoria das condições operária e das indústrias foi um fator importante para a integração nacio-
de vida combinava-se, entretanto, com um pessimismo muito grande com nal da Inglaterra. Assim, um operário do distante condado de Durham,
relação à velocidade das mudanças em curso. A nostalgia de um passado embora tivesse nascido e morrido no mesmo lugar, não estava, nem se sen-
supostamente melhor mesclava-se com a acentuada mudança no padrão de tia, isolado, pois, com a integração nacional, a classe operária também se
comportamento dos homens. integrava. Não por acaso, as novas ferrovias, com suas redes, facilitaram
a organização da poderosa Federação dos Mineiros, que englobava todos
3. A classe operária: comportamento e ação os trabalhadores de minas da Grã-Bretanha (idem, p. 279).
Essa integração fortaleceu não só os sindicatos, como também as or-
A história da classe operária costuma privilegiar os momentos de revolta ganizações políticas dos trabalhadores. Em 1848, a Europa assistiu a uma
e resistência. As greves e as insurreições operárias certamente têm uma de suas mais impressionantes revoluções. Quase todos os países avançados
importância muito decisiva na sua formação e desenvolvimento. São esses sofreram rebeliões que, iniciadas em fevereiro na Itália e na França, se
os momentos em que se registram inúmeras conquistas para o Mundo do espalharam rapidamente pelos demais países. Na França, a revolução
Trabalho e até mesmo para além dele. São exemplos dessas conquistas a começou com objetivos modestos: uma campanha em favor da ampliação
definição de um horário máximo para a jornada de trabalho e do domingo do direito de voto, proibida pelo governo do primeiro-ministro Guizot. A

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partir daí, grandes manifestações de apoio ocorreram. O rei, curvando-se 1848, seguiu-se um período de prosperidade e também de recuo dos mo-
à opinião popular, demitiu o Ministério. Entretanto, sua atitude, longe vimentos revolucionários. Além da revolução de 1848, a Europa assistiu a
de acalmar a população, fez com que esta radicalizasse seus objetivos. As outros movimentos de insubordinação e revolta. O mais significativo deles
reivindicações haviam mudado: "direito ao trabalho", oficinas nacionais foi a Comuna de Paris, ocorrida entre os meses de março e maio de 1871
para os desempregados, direito de organização em sindicatos, jornada de Mais uma vez, uma revolução iniciada e terminada em breve espaço de
trabalho de 10 horas, voto masculino adulto e proclamação imediata da tempo. A França se encontrava em guerra contra a Prússia, que, na ocasião,
República. Alguns manifestantes foram mortos por soldados, e, por isso, a liderava o processo de unificação da Alemanha. A política prussiana, através
partir de 24 de fevereiro, Paris estava tomada pela rebelião que, vitoriosa, de seu primeiro-ministro Otto von Bismarck, defendia o nascimento de uma
proclamou a República. No entanto, a radicalização do movimento afas- Alemanha que congregasse os territórios de língua germânica. Essa política
tou gradativamente alguns setores que, embora simpáticos ao movimento, atentava contra os interesses do governo francês, devido às pretensões de
temiam a ameaça do fim da propriedade. Uma manifestação republicana Bismarck às regiões que faziam fronteira com a Alemanha, como a Alsácia
convocada para abril fez com que os membros não socialistas do governo e a Lorena. Daí a guerra, iniciada em 1870. Com a queda de Napoleão III,
convocassem a Guarda Nacional para uma contramanifestação. Assim, na instalou-se na França um governo provisório que convocou eleições para
medida em que os socialistas radicalizavam, o governo reagia. Nem sempre fevereiro de 1871. A vitória das correntes monarquistas significou então
com êxito, pois parte da força regular do Estado apoiava os manifestantes. a vitória dos partidários de acordos de paz com os prussianos vitoriosos.
A contrarrevolução, como sempre na Europa, viria das reservas tradicionais Entretanto, os termos de paz desagradaram aos parisienses, que, como
das forças conservadoras: do campo. Voluntários do interior da França em 1789 e 1848, se levantaram em armas. O objetivo dos revoltosos, em
cercaram Paris e, depois de uma grande e última insurreição, em junho, a larga medida, retomava as bandeiras das revoluções anteriores: queriam
revolução estava derrotada (Rude, 1991, pp. 182 e segs.). Como na França, a continuidade da guerra e a reafirmação dos princípios da Primeira Re-
outras revoluções populares rapidamente brotaram lutando pela ampliação pública. O chefe do novo governo, Thiers, responsável pelo acordo de paz
do sufrágio, por trabalho e pela República. E, também como na França, com as tropas alemãs, decidiu sufocar a revolta. Milhares de pessoas foram
foram rapidamente derrotadas. Foram revoluções que nasceram no centro mortas pelas tropas do governo (Hobsbawm, 1979, pp. 90-92). É interes-
da Europa, afastadas de sua periferia. E foi esta periferia, ocupada ainda sante ver como as lutas revolucionárias, embora muitas vezes derrotadas
por um maior contingente populacional, que fez o cerco à rebelião. Além momentaneamente, renasciam em momentos de crise política e social. A
disso, os proprietários temiam a radicalização do movimento. Temiam as Comuna de Paris foi, sem dúvida, herdeira das tradições revolucionárias
ideias socialistas, novidade maior daquela revolução. Temiam, como disse- surgidas no âmbito da Revolução Francesa. Apesar de objetivos nem sempre
ram Marx e Engels no Manifesto Comunista, não por acaso publicado em idênticos, a ideia do povo que vai às ruas e toma o poder renasce a cada
1848, o "espectro do comunismo". As revoluções de 1848, democráticas, momento. Não se pode dizer, dado o seu curto tempo de duração, que a
poderiam ter sido burguesas, não tivesse a burguesia fugido delas. E fugiu Comuna tenha se constituído em um regime político novo. Mas teve, sem
porque temia a radicalização popular. O interessante é que as reformas dúvida, um caráter revolucionário onde, em meio às barricadas, vários
pretendidas pela revolução acabaram acontecendo. Mas, em geral, vieram projetos socialistas e populares se encontravam. Mais sonhos utópicos do
depois da derrota dos revoltosos. Vieram para provar que a democracia não que programas realizados. Porém marcaram profundamente os projetos
era incompatível com a ordem pública. Assim, nas eleições de dezembro de revolucionários posteriores (Hobsbawm, 1996, pp. 69-70).
1848, elegeu-se Luís Napoleão, futuro imperador (desde 1852) sob o título As mobilizações populares, greves e revoluções, caracterizaram-se pela
de Napoleão III, e sobrinho de Napoleão Bonaparte. Não representava o existência de diversas correntes políticas que pretendiam a liderança sobre
republicanismo, nem a velha monarquia. Não era um revolucionário nem esses movimentos. Após a derrota de 1848, como já referido, a Europa
conservador. Mas representava um ideal de prosperidade e paz para a grande assistiu a um largo período de prosperidade económica, ao longo do qual
maioria da população (Hobsbawm, 1979, pp. 45-46). Após a derrota de as lutas sociais sofreram certo declínio. Entretanto, a partir de 1857, a crise

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se abateu novamente sobre a sociedade capitalista e, com ela, a insatisfação cional, afastando-se então alguns de seus importantes quadros dirigentes
popular (Hobsbawm, 1979, pp. 49-52). Para as correntes de esquerda, era o que, como Lenin na Rússia e Rosa Luxemburgo na própria Alemanha se
momento de retomada da mobilização e de uma organização mais consis- opunham à submissão aos interesses nacionais.
tente para a classe operária. Assim, a partir de fins da década de 1850, os Além da luta política em sentido estrito, as lutas operárias desse período
movimentos dos trabalhadores europeus buscaram uma unidade internacio- caracterizaram-se também pela construção de certos rituais que até hoje
nal. Em 1864, era fundada a Associação Internacional dos Trabalhadores se repetem. As comemorações de datas e a repetição de gestos e atitudes
(AIT), conhecida posteriormente como Primeira Internacional, contando durante uma greve são os exemplos mais marcantes desses rituais. Com
com adeptos das mais variadas correntes ideológicas. Dos comunistas, lide- relação às datas, é significativo lembrar que, durante todo o século XIX,
rados por Karl Marx, aos anarquistas, passando pelos sindicalistas ingleses principalmente em sua segunda metade, uma data bem popular é o 14
(trade unionists) e os socialistas utópicos da França. Em comum, a ideia de de julho, aniversário da Revolução Francesa. Nessa data, comemora-se a
que os interesses da classe operária eram internacionais, estando portanto liberdade e o fim da opressão. Comemora-se, sobretudo, a conquista de
acima dos interesses dos governos de cada país. Os vários congressos da direitos, a cidadania e a igualdade entre os homens. Por isso, o 14 de Julho
AIT expressaram as suas divergências internas. Para uns, como Marx, a é também um momento de luta e mobilização. Ainda assim, o aniversário
luta política era fundamental para a classe trabalhadora. Para outros, como da Revolução Francesa não é aceito de forma unânime por parte das di-
o socialista utópico Proudhon, as únicas lutas fundamentais eram as de versas lideranças políticas e correntes ideológicas do movimento operário.
caráter sindical. Para os anarquistas, como Bakunin, presente na AIT a Em 1889, no Primeiro Congresso da Segunda Internacional discutiu-se
partir do Congresso da Basileia em 1869, nenhuma luta que reconhecesse uma data para as manifestações operárias. O argumento em favor do 1°
o Estado ou buscasse reformá-lo era válida (Abendroth, 1977, pp. 34-39). de Maio deveu-se ao fato de que a American Federation of Labour, em
Além das divergências, a AIT era composta de sindicatos, correntes políticas seu congresso de dezembro de 1888, adotara a data para a realização de
e partidos, diferentemente da futura Internacional Socialista, que se tornaria manifestações. Assim, o 1° de Maio nasceu da tentativa de demonstração
conhecida como Segunda Internacional, organizada à base de partidos. Essa de força do operariado através de uma ação e de gestos que se realizariam
situação, além das de ordem política, acabou levando ao fim da AIT. É que ao mesmo tempo nos mais variados espaços e lugares. A ideia de fazer uma
na conferência de Londres de 1871 foi aprovada a resolução de fundação manifestação internacional da classe operária esteve presente em toda a
de partidos legais nos diversos países capitalistas avançados. Tal resolução década de 1880. A depressão económica deste período assistiu ao nasci-
não agradou às correntes anarquistas, hostis aos partidos políticos, nem aos mento, já em 1883, de manifestações dos "sem trabalho", que ocuparam
trade unionists, como era o caso do sindicalismo inglês. Essas divergências praças e ruas e se instalaram diante das prefeituras, exigindo emprego.
foram se radicalizando até levarem à dissolução, em 1876, da AIT. Quan- Estas ações, entretanto, eram defendidas basicamente pelos anarquistas
do, em 1889, seis anos após a morte de Marx, a Segunda Internacional foi e, embora importantes, não conseguiram construir uma unidade entre os
criada, o seu caráter partidário e marxista já estava mais bem definido. trabalhadores. O ponto de unidade e "mola impulsionadora" do 1° de Maio
A Segunda Internacional defenderia a luta parlamentar como parte da foi a luta em favor das oito horas de jornada de trabalho. Porém, mesmo
estratégia de luta em favor do socialismo. As divergências em seu interior assim, a luta pela determinação de uma jornada de trabalho definida em
se agravaram em torno das discussões sobre o caráter da participação elei- lei não alcançou a unidade pretendida. Enquanto as oito horas era uma
toral. Para uns, ela era apenas parte da luta contra o capitalismo, que só reivindicação aparentemente possível para países como a Inglaterra ou os
seria derrubado com a ação revolucionária da classe operária. Para outros, Estados Unidos, para outros, como a. França, era considerada como um
a luta Parlamentar tinha importância em si mesma, e o socialismo seria projeto para o futuro. Optando pelo possível, os operários preferiram a luta
alcançado com o acúmulo de reformas sociais realizadas no Parlamento. pela jornada de dez horas. Porém o mais interessante é, de fato, a utilização
Quando, em 1914, o Partido Social-Democrata Alemão apoiou os esforços do 1° de Maio como uma grande festa popular, que se misturava com lutas
de guerra da Alemanha, abriu-se uma grave crise no interior da Interna- e reivindicações e, por isso, assustava patrões e administradores. Quanto

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aos primeiros, a preocupação maior se dava em função das ameaças e Encontram-se também no cotidiano, no dia a dia da classe operária. É, por
pressões para que fechassem as fábricas no dia da manifestação. Quanto exemplo, o caso do "Andy Cap", o boné específico que se tornou característico
aos segundos, a preocupação ia no sentido de manter a ordem pública. Na dos trabalhadores britânicos. Se olharmos as fotos do início do século de uma
verdade, desde a Comuna de Paris a imagem do mundo operário estava entrada ou saída de fábrica, ou mesmo de um bairro operário, perceberemos
associada à violência. Nas preparações do 1° de Maio de 1890, um ope- um número enorme de trabalhadores usando roupas escuras e o boné chato
rário das minas da região de Lille, na França, ameaçou de morte o chefe. cobrindo-lhes a cabeça (Hobsbawm, 1987, pp. 279-280).
Sua demissão causou uma greve prolongada. O pânico e o terror entre as
elites às vésperas do 1° de Maio era enorme. Apesar de algumas correntes 4. Mulheres: as várias famílias, a vida cotidiana e a participação pública
defenderem manifestações pacíficas, os anarquistas apoiavam uma jorna-
da ofensiva, radicalizando os protestos. Assim, patrões e prefeitos tinham Com relação à história das mulheres, convém recordar que um enfoque
alguma razão no temor talvez excessivamente demonstrado. Sem ter sido privilegiadamente voltado ao universo feminino é recente. Quando do
uma revolução, o 1° de Maio de 1890 realizou-se por toda a França. Teve, nascimento do trabalho industrial moderno ao longo do século XIX, por
ao mesmo tempo, um caráter de festa e de reivindicação. Simultaneamente exemplo, privilegiou-se sempre a análise do trabalho produtivo masculino
um feriado e uma greve. Pacífico e desordeiro. Sobretudo, construiu um nas fábricas ou nas minas. O trabalho feminino era visto como secundário
rito que, como o Ano-Novo ou o Natal, se repetiria a cada ano (Perrot, para o desenvolvimento do capitalismo moderno, onde as novas fábricas não
1987, PP. 138-159). mais incorporariam a presença das mulheres. Quanto ao trabalho domés-
Entretanto, apesar da festa e da luta, o 1° de Maio sofreu também com a tico, maioritariamente feminino, este era praticamente esquecido, como se
indiferença e com a resistência de setores da própria classe operária. Assim, fosse um não trabalho, uma vez que desvinculado da produção. Esse com-
em diversas regiões, as manifestações do 1° de Maio sofreram idas e vindas. portamento tem mudado, embora muito lentamente. Muito ainda deve ser
Não raras vezes, as lideranças socialistas ou anarquistas encontraram-se dito e pesquisado em relação à história das mulheres, que, só recentemente,
sós, sem apoio ou amparo por parte dos trabalhadores. Além disso, deve- nos anos 1970 em diante, começou a ser trabalhada com maior atenção.
mos nos recordar que a visão que a classe operária tinha de seus patrões A posição da mulher durante o apogeu do capitalismo contemporâneo
não era necessariamente hostil. Aliás, o próprio termo "patrão" é ambíguo. é, por certo, rica e contraditória. Por um lado, não há dúvidas de que se
Pode significar uma certa ideia de patrocínio e de proteção que nada tem a vivia sob uma sociedade patriarcal e também sob rigorosos limites sociais
ver com o termo puramente económico que mais se utiliza. Era comum, no impostos às mulheres. Por outro, as rápidas mudanças construíam um
século XIX, operários verem o patrão como um pai, capuz de lhes oferecer novo padrão de comportamento e, neste caso, a luta feminina por diversos
proteção e segurança, assim como a sua família. A presença desses patrões em direitos teve um significado marcante. Assim, o seu papel na sociedade da
festas de casamento ou de balizado de um operário (ou filho de) costumava virada do século XIX para o XX esteve marcado pela difícil combinação
ser frequente. Nesses casos, os operários, ao invés de se oporem à fábrica, se da mudança com a permanência de velhos e tradicionais valores.
orgulhavam de nela trabalhar, vangloriando-se da estabilidade e da sucessão Durante todo o século XIX, e até mesmo antes, a oposição masculino/
de pai para filho no mesmo lugar de trabalho e no mesmo ofício. Entretan- feminino desqualificava a mulher em relação ao homem. Não que ela não
to, na medida em que o capitalismo se modernizou, ocorreu um gradativo tivesse qualidades. É que a cultura, considerada natural no homem, era su-
distanciamento entre patrões e empregados, tendendo a declinar as relações perior à natureza, característica marcante nas mulheres. Essa natureza, de
de tipo paternalista. O que se quer ressaltar aqui é que o estudo e a reflexão acordo com Michelet, importante historiador francês do século XIX, tem
da ausência de greves é tão importante quanto o estudo e a reflexão sobre dois lados: um benéfico e outro maléfico. O lado benéfico é o da mãe, da
elas (Perrot, 1987, pp. 82-83). Mas esses ritos e identidades não estão pre- dona de casa que vela por sua família. O lado maléfico, "vermelho como o
sentes apenas nos momentos de luta ou de comemoração de datas festivas. sangue, negro como o diabo", é o da mulher que pretende tomar o lugar do

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homem. Se predomina este último lado, desabrocham a "violência, o gosto Contra esta mulher e este comportamento, postou-se a reação da gran-
pelo sangue e a paixão noturna que nela habita". Por esta razão, Michelet de maioria da sociedade, que se recusava a aceitar mudanças tão radicais.
analisa alguns dirigentes da Revolução Francesa como "homens mulheres". Ao contrário, defendia o resgate da virilidade e das atitudes tipicamente
O caso mais típico é o de Marat, dado o seu temperamento excessivamente masculinas — o militarismo, a violência, o desprezo pela mulher... (Perrot,
nervoso e sanguíneo. A feminilização da monarquia no fim do século XVIII 1987, pp. 183-184). De fato, o século XIX é permeado de exemplos enal-
teria sido um dos sintomas de sua decadência. O poder do Estado deveria tecedores do papel do homem e defensor da masculinidade aparentemente
pertencer ao homem (citado in Perrot, 1987, pp. 174-175). Claro que a des- perdida com o fim da nobreza e o advento da sociedade liberal-democrática.
crição de Michelet não correspondia ao que efetivamente existe em relação Segundo opositores do liberalismo democrático, o fortalecimento do ideal
à mulher. Mas reflete uma visão representativa dos valores da época. Um de masculinidade no século XIX representava uma contraposição ao seu
problema enfrentado pelos homens do século XIX é que, vivendo um período oponente, a feminilidade (Gay, 1995, p. 103). Resta saber se havia de fato o
consagrador dos valores liberais e individualistas, tornava-se difícil encontrar ideal feminino contraposto ao masculino, ou estas ideias não eram apenas
argumentos que justificassem a exclusão das mulheres. Não seria ela também argumentos, álibis, para conservar a supremacia do homem. A mudança
um indivíduo? A resposta, e a solução, para este problema, foi encontrada mais significativa do período corresponde ao fato de que, nas cidades, ao
na ciência, particularmente nas descobertas da biologia e da medicina. menos nas mais populosas, a mulher começa a ganhar a rua, a ocupar seu
Segundo certos padrões "científicos" do século XIX, haveria duas espécies tempo não mais exclusivamente no restrito espaço do lar. Tornou-se cada vez
com características particulares. O homem, com o cérebro, a inteligência, a mais comum, por exemplo, a participação e a presença da mulher de classe
razão e a capacidade de decisão; a mulher, com o coração, a sensibilidade e média em eventos destinados à caridade. Este tipo de situação era ao mesmo
os sentimentos. Por isso, dada a natureza necessariamente racional da polí- tempo exaltado e criticado. Exaltado na medida em que, conforme já vimos,
tica, a mulher não poderia ocupar cargos públicos ou intrometer-se nesses o coração e a sensibilidade eram considerados esferas do comportamento
assuntos. À mulher estaria reservado, e ainda assim com limites, o espaço feminino. Mas, na medida em que a atitude caridosa era administrada
privado, íntimo, da casa e da família (Perrot, 1987, pp. 176-180). pela mulher e afetava os interesses dos patrões, sempre homens, acabava
No entanto, a despeito de valores que consideravam a mulher secundária sendo criticada por intervir em domínios que não lhe pertenciam. Apesar
em relação aos homens, compartilhados inclusive pelas mulheres, houve uma da majoritária visão negativa que se tinha da mulher, é interessante lembrar
efetiva mudança no comportamento feminino durante a segunda metade que havia, no século XIX, segmentos interessados em sua emancipação.
do século XIX e início do XX. Há o caso, já no período, de mulheres que Neste caso, assiste-se a um permanente conflito entre os novos e os antigos
saíam em busca da conquista de seus direitos civis e políticos e de igualdade valores. De um lado, a Monarquia, e principalmente a Igreja, exaltando
em relação ao homem. Essa é a "nova mulher", nascida na luta pela "eman- o papel de Maria, arquétipo da mulher submissa ao homem. De outro, a
cipação feminina". Os dois termos acima destacados eram muito comuns República e os socialistas, desejosos de que, ao contrário do que pretendia
nas conversas e debates do fim do século XIX. Entretanto, as mulheres a Igreja, a mulher se libertasse do fardo da mãe obediente. Neste sentido, a
emancipadas eram ainda uma minoria. Em geral, das classes médias. Do República, imagem feminina, projeta para a mulher o ideário e o desejo de
ponto de vista material, pode-se sentir a mudança no comportamento das liberdade (Perrot, 1987, pp. 179-182).
mulheres através de certos índices, como, por exemplo, a taxa de natali- E quanto à mulher simples do povo, como vivia? Claro está que as ima-
dade, que nos países desenvolvidos da Europa Ocidental começou a sofrer gens projetadas sobre a mulher são construções de elites ou, no máximo,
uma relativa queda. Tal fato está ligado tanto à opção de casar mais tarde de camadas médias. No entanto, embora muitas vezes reproduzisse os
como à de praticar alguma forma de controle da natalidade. Nos dois casos, valores das mulheres das classes superiores, a mulher do povo tinha seus
não há como negar uma conduta "emancipada" para os padrões da época próprios códigos e formas de agir. Nos subúrbios, as famílias populares se
(Hobsbawm, 1988, pp. 273-275). alocavam, em geral, chegadas do interior, de comunidades aldeãs. Nesses

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lugares, a mulher tem um papel preponderante. É a dona da casa e é tam- Social das Mulheres. O caráter independente do movimento refletia o pouco
bém a guardiã dos valores tradicionais da aldeia contra a modernidade e os interesse dado à questão da participação feminina pelos partidos políticos
novos costumes da cidade. As casas dos subúrbios costumavam ser amplas tradicionais (Oliveira, 1999, p. 50). Embora nascidas nas melhores famílias
e o lugar privilegiado era a cozinha. As mulheres, circulando livremente inglesas, as chamadas sufragettes/suíiagistas (partidárias da extensão do
entre as fontes de água e o comércio local, eram as donas das panelas e da direito de voto às mulheres) não hesitavam em tomar atitudes radicais e até
conversa. Das novidades e das intrigas. Em geral, sabiam informar onde violentas, como, por exemplo, a invasão de seções eleitorais e a quebra de
havia emprego e hospedavam os passantes. Tinham, portanto, seu próprio urnas. Este tipo de ação, especialmente entre 1906 e 1914, deram à ação das
universo, dotado de relativa autonomia. A mulher do subúrbio, não sendo sufragettes um caráter espetacular que, a despeito do número reduzido de
igual ao homem, também descartava a polidez e os "bons modos". Os militantes, forçou a opinião pública a posicionar-se sobre suas reivindicações
assuntos "de homem" não as incomodavam. E mais: eram admiradas e (Hobsbawm, 1988, pp. 299-300). O interesse era claro: chamar a atenção
respeitadas pelos homens (Perrot, 1987, pp. 205-207). da conservadora sociedade britânica para um direito que viria representar a
Não era o caso, entretanto, da ativista, da militante. Esta era vista com mais elementar forma de cidadania. Podemos, portanto, datar da luta pelo
desconfiança em suas atitudes "destemperadas". Em dado momento, no direito ao sufrágio a origem do feminismo moderno (Oliveira, 1999, p. 53).
curso de uma greve, as mulheres, irreverentes, chegaram a mostrar o traseiro No caso da França, a luta pela emancipação feminina consistiu no en-
a uma autoridade local, que se recusasse a recebê-las. Tal atitude era vista frentamento do Código Napoleônico de 1804, que impedia as mulheres de
com maus olhos por parte das lideranças sindicais, que se esforçavam para votarem, de testemunharem nos atos civis, de participarem de júris e de tra-
que não se comentasse o assunto. Nos momentos de luta contra a carestia, a balharem ou gastarem seu dinheiro sem o consentimento prévio do marido.
opinião sobre a participação feminina se dividia. Por um lado, havia os que O adultério feminino era considerado crime, ao passo que o masculino não
incentivavam e viam com bons olhos a ação "espontânea" das mulheres. era considerado sequer uma contravenção. O movimento sufragista francês,
Ação criativa e renovadora. Por outro, havia os que desconfiavam de seu apesar do anacronismo do Código Napoleônico, era frágil, dividido em
comportamento efémero, de sua organização sempre momentânea. Pre- facções diversas e concentrado apenas em Paris. Ao mesmo tempo, o pre-
tendiam "organizá-las", fazer com que entendessem a necessidade de uma conceito reinante entre legisladores e a opinião pública em geral era evidente.
participação mais permanente. Que se adequassem às formas tradicionais Assim, apesar de conquistas parciais, como o direito ao divórcio em 1884,
de organização. E, se possível, que fossem dirigidas pelos homens. Porém, o direito de abrir conta de poupança sem consentimento do marido, em
devemos assinalar que o número de ativistas sindicais do sexo feminino no 1886, e a equivalência de direitos entre mulheres solteiras e separadas, em
final do século XIX era bastante reduzido, em geral ultrapassando a pouco 1897, tais avanços eram lentos, se comparados à rápida inserção feminina
mais de 10% do total de militantes (Hobsbawm, 1988, p. 296). no mercado de trabalho e nas universidades (Weber, 1988, pp. 117-119).
Das questões políticas que mais mobilizaram as campanhas feministas, Sendo movimentos característicos de minorias organizadas, a maioria
a luta pelo direito de voto foi a mais importante. Antes de 1914, esse di- das lideranças dos movimentos feministas da virada do século entendia a
reito só foi reconhecido na Austrália, Nova Zelândia, Finlândia, Noruega luta das mulheres como parte integrante da emancipação geral da huma-
e alguns poucos estados americanos. Mas, mesmo assim, a luta pela plena nidade, preconizada pelos movimentos operários e socialistas. Não por
cidadania das mulheres não tinha maior reconhecimento e importância em acaso, foi no seio dos movimentos socialistas e revolucionários que surgiram
muitos países, salvo os Estados Unidos e a Inglaterra, onde contavam com algumas das mais importantes lideranças femininas da virada do século,
o apoio maciço das classes alta e média, além dos movimentos socialistas como Rosa Luxemburgo, Alexandra Kollontai, Emma Goldman, Beatrice
(Hobsbawm, 1988, pp. 299-300). Webb, entre outras (Hobsbawm, 1988, pp. 297-298). Entretanto, a despeito
O primeiro grande movimento em favor de uma participação política mais de sua inquestionável importância, vale ressaltar que seus projetos especí-
ativa das mulheres data de 1903, quando da criação da Associação Política e ficos, como o direito de voto, o acesso à educação e a luta por um status

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igual ao do homem, no tocante ao direito de propriedade, não despertava Diante das pressões populares, que exigiam reformas nas questões refe-
maior interesse junto às camadas populares. Não se deve esquecer que a rentes ao direito de propriedade, Thiers transferiu a sede do governo para
luta das mulheres de classe média em prol de tais exigências se ancorava Versalhes. Também suspendeu os soldos da Guarda Nacional, visando a
no surgimento de um outro tipo de trabalho feminino, muito mais amplo e sua desmobilização. Este fato desagradou profundamente a plebe, que se
pouco emancipatório: o das empregadas domésticas. Por outro lado, a luta tornou o principal foco de resistência contra as medidas governamentais.
emancipatória das mulheres esbarrava, mesmo entre as de classe média, no Contra o levante popular de Paris, e com o apoio prussiano, Thiers ordenou
receio de que se pudesse perder autonomia nos espaços tradicional e tipica- a invasão de Paris. Em resposta, em 18 de março de 1871, a população
mente "femininos", tais como o controle sobre o mundo doméstico, sem a organizou um governo popular que veio a ser conhecido como A Comuna
contrapartida das vantagens obtidas nos novos espaços "emancipados" que de Paris (Reis Filho, 1997, p. 2).
então se abriam (Hobsbawm, 1988, pp. 293-294). Tratava-se, portanto, de O Conselho da Comuna, eleito através de sufrágio universal, reuniu
um movimento que ainda necessitava de um processo de convencimento representantes de diversas tendências ideológicas, populares e operárias.
entre as próprias mulheres, virtuais beneficiárias do mundo emancipado. Dentre os pontos constantes no programa de reformas apresentado pelo
conselho, devem ser destacados: ensino gratuito e obrigatório, controle dos
5. A Comuna de Paris: entre a plebe e a classe operária preços dos alimentos, direito da apropriação das fábricas abandonadas
pelos proprietários e nova legislação sobre os aluguéis. Medidas tímidas,
O início da década de 1870 foi trágico para a França. Em setembro daque- se comparadas aos programas socialistas dominantes à época, que, por
le ano, como já foi referido, os exércitos franceses foram derrotados pela sua vez, condicionaram ações igualmente tímidas. Com efeito, após a
derrota, verificou-se que apenas uma empresa abandonada por seu antigo
Prússia, tendo sido preso o próprio imperador, Napoleão III. Uma série de
proprietário havia sido ocupada pelos trabalhadores parisienses (Reis Filho,
manifestações populares em Paris exigiu a continuidade da luta. Um go-
1997, p. 2). Apesar da intensa mobilização popular, a Comuna terminou
verno provisório, chefiado por Léon Gambetta, organizou um governo de
por ser derrotada quando, em maio, as tropas governistas invadiram Paris
Defesa Nacional com o intuito de enfrentar o exército prussiano e defender
e impuseram a derrota aos revoltosos. Resultado: milhares de execuções e
a capital francesa. Constituiu-se uma Guarda Nacional, com elementos
deportações, cerca de 15 mil prisões.
oriundos das camadas populares e das classes trabalhadoras industriais.
As tradições revolucionárias da França foram apaixonadamente reto-
Apesar da humilhante derrota, o governo provisório assinou, em janeiro madas pelos communards. Nesse quadro, as reivindicações de teor polí-
de 1871, um armistício com a Prússia. A Guarda Nacional, entretanto, se tico tinham especial relevância: elegibilidade de todos os cargos através
mantinha intacta, para o desconforto das correntes capitulacionistas. de sufrágio universal; revogabilidade de todos os eleitos pelos eleitores;
Deve-se destacar que, apesar do resgate às tradições revolucionárias remuneração para os eleitos; mandatos imperativos; e supressão do serviço
francesas, dessa vez o inimigo não era mais o Antigo Regime, as forças da militar obrigatório e do exército permanente. Como se observa, a Comuna
velha aristocracia. Quem passava a representar a ordem era agora a burguesia rejeitava as formas de representação em favor da democracia direta. O poder
conservadora, ávida por preservar seus privilégios e controlar a qualquer não emanava do povo. O poder era o próprio povo.
preço as camadas populares. À classe burguesa, agora, cabia o papel da O cerco contra a Comuna foi impressionante. Uniram-se contra aquele
conservação, muitas vezes em franca aliança com a velha aristocracia, "mau exemplo" a França derrotada e a Prússia vitoriosa. Contra o levante
adversária de outros tempos (Martinho, 1996, p. 12). popular das massas parisienses, juntaram-se forças políticas até então
O governo provisório, já sob a liderança de Adolphe Thiers, convocou antagónicas e adversárias. O governo prussiano chegou mesmo a libertar
eleições para a Assembleia Nacional. As restrições ao direito do voto para prisioneiros de guerra para fortalecer o exército francês da ordem. E os
as camadas populares garantiram a vitória de uma maioria republicana resultados não poderiam ser mais catastróficos: uma matança generalizada,
e conservadora interessada, sobretudo, na defesa de suas propriedades. entre 20 mil e 35 mil pessoas. Ao todo, morreram dez vezes mais pessoas

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que em 1848 e cinco vezes mais que no período do Terror da Revolução Mas era, em parte, necessária para as várias formas de trabalho que a
Francesa. Diante da inevitável derrota, a população de Paris radicalizou cidade criava. Por outro, as classes trabalhadoras passavam a ocupar o
ainda mais sua ação de resistência. Ateou fogo à cidade, em atitude decan- espaço público, a tomar para si decisões que, para as classes dirigentes, não
tada pelos elementos da ordem como de vandalismo que justificava a ação estavam a elas reservadas. E também as mulheres. Estas construíram seu
violenta que se impunha. Um povo expulso pela morte ou degredo buscava próprio espaço, a despeito do papel secundário a que eram relegadas até
levar consigo a cidade que, por dois heróicos meses, lhe pertencera (Reis mesmo pelas próprias lideranças de esquerda. Mas elas fizeram sua história.
Filho, 1997, pp. 4-6). Hoje, a plebe se encontra em seu próprio espaço. Menos integrada do
Apesar da importância radical que teve a Comuna de Paris na história que desejava no século XIX. Ao contrário, não vai mais ao centro. Isola-se
dos movimentos populares e revolucionários, ela foi, entretanto, derrotada. em seus guetos. Os trabalhadores também já não causam mais medo.
A primeira das razões é que uma das virtudes da Comuna era também Dispersaram-se em meio à dispersão da cidade. Não há mais bairros ope-
expressão de sua fragilidade. A Comuna restringiu-se à cidade de Paris, rários nem o "Andy Cap" a identificá-los. E não há mais o desejo de novas
esperando que outras comunas se formassem a fim de se constituir uma comunas, de novas insubordinações. Quanto às mulheres, sua ocupação
Federação de Comunas em território francês. Contrária, como era, a um no mercado de trabalho é mais devido às necessidades de sobrevivência do
poder centralizado e discricionário, recusou-se a se impor ante as demais que motivo de emancipação pública.
regiões do país, esperando por sua autodeterminação. O fracasso de outras Do ponto de vista da conduta popular diante da cidade, ela oscilou de
tentativas de comunas e o conservadorismo de um interior ainda dominado acordo com as circunstâncias. Muitas vezes, os movimentos tipicamente
por relações tradicionais determinaram a derrota dos communards de Paris. rebeldes, como, por exemplo, o luddismo, trouxeram consigo manifesta-
Em segundo lugar, o desprezo por um exército permanente impôs a derrota ções conciliatórias, tipicamente sindicais. O ato de rebeldia significava a
diante de dois disciplinados e hierarquizados exércitos: o prussiano e o última atitude ante um impiedoso progresso que excluía um contingente
francês. Em terceiro e último lugar, a Comuna não foi capaz de formular representativo de trabalhadores em atividade. Por outro lado, atitudes for-
um programa revolucionário comum, em grande parte devido à existência malmente sindicais, como o cartismo, podiam, também de acordo com as
de diversas facções na Comuna. circunstâncias, caminhar no sentido de enfrentamentos. A rigor, as atitudes
Ficou, entretanto, a memória de um levante não exatamente proletá- radicais aconteciam quando o direito de viver, e viver na cidade de forma
rio, como pretendeu a tradição marxista, mas sim popular, plebeu. Um plena, era vedado ou posto em questão.
levante dos "de baixo". O último, posto que, a partir daquele momento, Quanto à Comuna, um autor afirmou que sua derrota representou o fim
o caminho das revoluções passaria a ser ocupado não mais pela imponde- "de uma luta, de uma tradição, de um povo, de uma época" (Reis Filho, 1997,
rável rebeldia da plebe, mas pelas vanguardas organizadas e seus partidos p. 6). Conforme sabemos, movimentos históricos de grande importância sig-
rigorosamente hierarquizados. nificaram muitas vezes o retorno a valores do passado. Assim, por exemplo,
o Renascimento representou a volta aos valores da Antiguidade Clássica.
Talvez nos reste, portanto, a esperança de que as lutas e as tradições de
CONCLUSÃO épocas passadas voltem, inesperadamente, a renascer; a hipótese de a histó-
ria renascer. Como renasceram diversas comunas e diversas outras formas
O triunfo do capitalismo trouxe para as cidades um contingente cada vez de rebeldia. Como no passado, a transformação da história continuará a
maior de pessoas. Estas nem sempre se adequaram ao ritmo urbano de depender sobretudo da capacidade humana de criar.
maneira pacífica. Daí, os inúmeros conflitos, as intermináveis crises. Por
um lado, a plebe urbana, sendo uma novidade, causava espanto e medo.

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O S É C U L O XX

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212
A conquista da terra, que na maioria das vezes significa toma-la
daqueles que têm uma cor ligeiramente diferente, ou narizes ligeiramente
mais chatos que os nossos, não é uma coisa muito bonita quando a
gente a olha bem de perto.
JOSEPH CONRAD,
O CORAÇÃO DA TREVA

INTRODUÇÃO

O século XIX foi marcado por uma intensificação dos contatos entre os
diversos povos do mundo. A chamada "globalização", que hoje em dia põe
em contato cada vez mais estreito e instantâneo as pessoas, as culturas e,
sobretudo, os mercados mundiais, tem suas origens no século XIX, quan-
do se formou efetivamente uma economia global, que, paulatinamente,
alcançava as mais remotas regiões do planeta (Hobsbawm, 1988, p. 95).
Principalmente a partir dos anos 1870, quando o imperialismo foi visto
pelos países capitalistas industrializados como uma saída para a crise de
suas economias, causada pelo acirramento da concorrência internacional.
A maioria absoluta dos povos africanos e asiáticos sofreu a conquista e
a dominação de países europeus a partir, sobretudo, dos últimos vinte e cinco
anos do século XIX. Em cerca de um século, entre 1870 e 1970, quando teve
fim o processo de descolonização iniciado após a Primeira Grande Guerra
(1914-1918), esses povos passaram pela conquista de seus territórios, pela
rebelião contra esse domínio, pelas lutas de independência política e, em
alguns casos, pela sua inserção política, cultural e estratégica nas relações
internacionais.
A partilha do mundo em colónias, protetorados e áreas de influência
realizada pelos países europeus, porém, nem sempre foi recebida de modo

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O S É C U L O XX AS R E S I S T Ê N C I A S DOS POVOS À P A R T I L H A DO MUNDO

passivo pelos povos, cujos territórios foram objeto da cobiça. A história da OS DIVERSOS TIPOS DE RESISTÊNCIA
expansão imperialista é também a história da resistência a essa expansão.
Os países colonialistas europeus dominaram diferentes povos, culturas, Mas mesmo com toda a sua superioridade bélica, os processos de coloniza-
etnias e estabeleceram sua hegemonia política e cultural sobre eles, desqua- ção, ainda que esmagadoramente vitoriosos, tiveram de lidar com as diver-
lificando-os e procurando impor-lhes seus valores, com base na crença na sas resistências e rebeliões. Essas reações ante a conquista e a dominação
supremacia do "homem branco" europeu. Entretanto, os povos dominados colonial aconteceram durante toda a Era dos Impérios, desde as últimas
ofereceram resistência às conquistas e realizaram inúmeras revoltas contra décadas do século XIX até a Primeira Grande Guerra (1914-1918). Essas
o domínio que se estabelecia. resistências podem ser classificadas, grosso modo, em três tipos: (1) lutas de
Apesar das teorias racistas da época, que diziam que os "homens brancos resistência diante da invasão militar colonialista; (2) rebeliões que procura-
eram superiores aos de cor", e da propalada superioridade da civilização vam preservar as tradições e propunham a restauração do passado anterior
europeia, os europeus tiveram de contar mesmo com a força das armas. à chegada dos europeus; (3) movimentos de tendência ocidentalizante que
Foi principalmente o desenvolvimento da indústria bélica no período que pregavam a modernização como modo de fazer frente à invasão ocidental.
Essa classificação não é compartimentada nem excludente, ou seja, um
permitiu a expansão imperialista. Os canhões, fuzis e revólveres tornaram-se
mesmo processo de resistência anticolonialista pode combinar a luta contra
cada vez mais mortíferos, permitindo aos soldados europeus compensar com
a ocupação, a rebelião contra o estabelecimento da colonização, a tentativa
armamentos mais eficientes o seu pequeno número diante dos numerosos
de restabelecer a velha ordem e um movimento reformista que procure en-
guerreiros africanos e asiáticos (Oliver, 1994, pp. 182-183).
frentar a dominação através da adoção de alguns valores ou procedimentos
Os portugueses, por exemplo, só conseguiram avançar dentro do terri-
ocidentais. As resistências também não são necessariamente militares, ou
tório africano durante esse período. Anteriormente, Angola e Moçambique
não utilizam somente a violência aberta como meio de expressão, pois elas
eram colónias litorâneas. Os ingleses e franceses só então tiveram condições
podem ser também culturais ou de cunho religioso.
de derrotar os reinos do oeste africano e de impor derrotas humilhantes aos
Nesses movimentos o nacionalismo muitas vezes é um fator fundamental.
exércitos da China. Ainda assim, para derrotar militarmente os Estados Inventado no Ocidente, o nacionalismo foi traduzido nas lutas de libertação
mais poderosos, como os da China e da índia, os europeus necessitavam como o ódio ao estrangeiro, seja ele ocidental ou não e permitiu a fusão de
de estratégias políticas do tipo "dividir para reinar", insuflando e aprovei- projetos modernizantes ou ocidentalizantes com a defesa das tradições. O
tando-se dos conflitos e disputas internos, enfraquecendo desse modo os contato com uma formação ocidental acabou por gerar nas elites intelec-
adversários e facilitando a conquista. tuais reformistas das áreas dominadas esse duplo vínculo que possibilitava
Dominar significou também conhecer. Não por acaso que a Antropo- ao mesmo tempo rejeitar a dominação e abraçar a modernização. Benedict
logia moderna é contemporânea ao imperialismo e que a sua principal Anderson comenta a relação entre os intelectuais e o surgimento do nacio-
característica metodológica, o trabalho de campo, foi em geral realizada nalismo no contexto colonial:
por antropólogos europeus em áreas sob influência dos impérios coloniais.
Não se pode subestimar, embora não seja o objetivo deste artigo analisar Geralmente se reconhece que a intelligentsia foi fundamental para o surgimen-
esse processo, o impacto dos relatos antropológicos na cultura europeia to do nacionalismo nos territórios coloniais, também porque o colonialismo
garantia manterem-se relativamente raros os magnatas agrícolas, grandes
ocidental nas transformações das visões de mundo, do gosto artístico, das
comerciantes, e empresários industriais nativos, e, até mesmo, uma grande
perspectivas políticas e nas elaborações científicas dos países colonizadores. classe de profissionais liberais. Quase por toda a parte, o poder económico era
mobilizado pelos próprios colonizadores, ou desigualmente repartido com uma
classe politicamente impotente de homens de negócios párias (não nativos) —
libaneses, indianos ou árabes na África colonial, chineses, indianos e árabes na

;. ' õ 217
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Ásia colonial. Não menos geralmente reconhecido é que o papel de vanguarda tradicionais muitas vezes articulavam o fluxo do comércio de modo a for-
da intelligentsia decorre de sua alfabetização bilíngue ou, mais exatamente, talecer e a estender seu poder. Mas no século XIX, como parte da expan-
de sua alfabetização e bilinguismo. (...) O bilinguismo representava o acesso, são colonialista, expedições lideradas por não africanos começam a abrir
por intermédio da língua de Estado, à cultura ocidental moderna no sentido
caminho para o interior do continente e, muitas vezes utilizando a força,
mais amplo e, em particular, aos modelos de nacionalismo, de nation-ness e de
a criar sistemas de autoridade alternativos àqueles dos chefes tradicionais.
Estado-nação produzidos alhures no correr do século XIX (Anderson, 1989,
pp. 127-128). Os conflitos que foram gerados a partir de então opõem não somente
estrangeiros contra nativos, mas também grupos locais cujas rivalidades
Quando o imperialismo expandiu o capitalismo monopolista e financeiro eram acirradas e estimuladas pelos europeus como tática de expansão de
para todo o mundo, conquistou territórios e estabeleceu colónias, promo- seus interesses comerciais (Oliver, 1994, pp. 182-185).
veu nas sociedades conquistadas profundas transformações económicas e Durante os primeiros momentos da partilha da África, os movimentos
sociais. Essas sociedades tinham diferentes sistemas sociais e económicos mais frequentes de resistência provinham dessas elites locais ameaçadas em
que, em contato com o capitalismo, foram desarticulados, redefinindo-se suas posições. O principal movimento da primeira década da partilha foi o
segundo a dominação capitalista. que ocorreu na hinterlândia sudanesa do Egito ocupado pelos britânicos.
Nessa área, desencadeou-se uma rebelião em 1881 contra o governo colo-
O capitalismo teve, portanto, a capacidade de manter muitas das antigas
nial inglês, instituindo-se um Estado independente (Oliver, 1994, p. 203).
relações econômico-sociais anteriores, articulando-as numa nova estrutura,
O Sudão, que era dominado pelo Egito, em 1873 passou ao controle da
dependente do capitalismo internacional. Desse modo, frutificaram os pro-
Grã-Bretanha, que se interessava cada vez mais por essa região estratégica
jetos das elites que buscaram readaptar as sociedades aos novos tempos e a
para os planos de estender seus domínios de norte a sul da África (Egito até
sua inserção no contexto dos interesses internacionais do capitalismo, isto
África do Sul) e para evitar o projeto da França de construir um domínio de
é, dos projetos modernizadores. Porém, algumas resistências tiveram por
oeste a leste da África. O Sudão tornou-se mais um ponto de disputa entre
objetivo reverter, após a conquista, a tendência de transformação de socie-
França e Grã-Bretanha pela conquista de territórios africanos.
dades coloniais não capitalistas em sociedades dependentes do capitalismo.
Entre 1881 e 1898, formou-se no Sudão o Estado Mahdista, liderado
A religião, muitas vezes, teve um papel importante neste caso.
por Muhammad Alimed ibn-Seyyid Abdullah (1844-1885), que se procla-
Para se ter uma ideia da variedade e da extensão desses movimentos de
mou o há muito esperado Mahdi (O guiado do Profeta), tradicional figura
resistência é necessário construir uma perspectiva panorâmica sobre as suas
da religião islâmica incumbida de liderar a jihad (guerra santa) contra os
ocorrências na África e na Ásia/Oceania, mas procurando não homogenei-
infiéis e em defesa do islamismo.
zá-los. A ideia aqui é evitar o que Edward Said denominou orientalismo:
A Revolta Mahdista iniciou-se em 1880 e em 1885 a cidade de Cartum
"um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e episte-
caiu nas mãos dos revoltosos, depois de uma batalha com o exército do
mológica feita entre 'o Oriente' e (a maior parte do tempo) 'o Ocidente'",
Egito, liderado por oficiais britânicos. Em 1885, uma expedição militar foi
ambos tomados como categorias absolutas e reificadas (Said, 1996, p. 14).
derrotada pelos mahdistas e ficou claro que a reconquista do Sudão não
valia a pena para os interesses da Grã-Bretanha naquele momento. Alguns
anos depois, com o crescimento do papel económico do Egito britânico e
ÁFRICA
com a ameaça francesa na região, a Grã-Bretanha decidiu acabar com os
mahdistas do Sudão.
Até o século XIX, as rotas comerciais africanas que integravam o comércio
Após a sua morte, o Mahdi foi sucedido pelo califa Abdullah Taaisha
intercontinental eram organizadas pelos próprios africanos e não pertur-
(1846-1899), que tentou em vão conquistar o quase já totalmente britânico
bavam fundamentalmente as estruturas políticas do continente. Os chefes
Egito. Em 1896, os britânicos enviaram finalmente uma expedição para

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acabar com a revolta. O combate decisivo entre os britânicos e os sudane- decidiram que a resistência não era possível e ordenaram romper o cerco a
ses — a batalha de Omdurman — aconteceu em 2 de setembro de 1898, qualquer custo. Muitos conseguiram escapar pelo sudeste, e todos os que
junto à cidade de Omdurman, defronte da cidade de Cartum. Os 20 mil fugiam nessa direção não eram perseguidos.
soldados britânicos armados de potentes metralhadoras massacraram os Os que ficaram foram massacrados pelos soldados alemães. Posterior-
soldados sudaneses, matando cerca de 11 mil e ferindo 16 mil deles. Os mente, os alemães construíram uma série de campos armados ao longo do
britânicos, então, desenterraram o cadáver do Mahdi e transferiram seu perímetro do deserto para evitar que os hereros que para lá haviam fugido
crânio para Londres. pudessem retornar. Em 2 de outubro de 1904, Von Trotha decretou a or-
Mas, antes de seu fim, o Estado Mahdista do Sudão tentou se expandir, dem de acabar com os últimos indícios da revolta antes do fim do ano. No
voltando-se para o sul, sobre os domínios da Etiópia. A 12 de março de início de 1905, a revolta, de fato, terminou e os alemães consolidaram a
1889, os exércitos mahdista e etíope confrontaram-se no sul do Sudão. A conquista da região.
Etiópia, após ter conseguido barrar a invasão italiana, também iniciou Na África do Sul, em 1906, aconteceu uma revolta dos zulus na cidade
a conquista de terras localizadas ao sul de seus domínios, tomando-as aos de Natal. Seis anos depois, em 1912, foi fundado o Congresso Nacional
povos de kaffa e galla. Sul-Africano, que posteriormente viria a se chamar Congresso Nacional Afri-
Na África, as resistências ante a invasão colonialista foram particular- cano, com importante papel na luta contra o regime de segregação racial
mente fortes no Oeste da África, ao sul do deserto do Saara. Nessa região, criado, mais tarde, pelos colonos de origem europeia, o apartheid.
desde o início do século XIX, formaram-se poderosos estados muçulma- Na ilha de Madagáscar, situada no litoral sudeste da África, após a
nos que cresceram territorialmente através da jihad contra grupos não morte do rei Radama I (1810-1828), ocorreram conflitos sucessórios que
muçulmanos ou parcialmente islamizados. Por exemplo, os mandingas, enfraqueceram o povo malgaxe diante da conquista colonialista. No fim
liderados pelo muçulmano Samori, criaram um reino ao sul do rio Níger do século XIX, a França iniciou a conquista da ilha. No entanto, os fran-
e ofereceram intensa resistência à conquista da região pela França, sendo ceses encontram forte resistência dos malgaxes, tendo levado cerca de dez
derrotados apenas em 1898. anos (1895-1905) para conseguir vencê-los e consolidar a conquista de
Na África do sudoeste alemão (atual Namíbia) ocorreram revoltas dos Madagáscar.
hereros contra o domínio colonial alemão. Em janeiro de 1903, iniciou-se Na Etiópia, então chamada pelos europeus de Abissínia, aconteceu
o levante dos hereros, liderado por Samuel Maharero, que conseguiu bater uma vitoriosa resistência à ocupação colonialista italiana. Os italianos,
as forças alemãs em várias escaramuças durante vários meses. As ordens encorajados pelos britânicos que queriam neutralizar a presença francesa
do imperador alemão eram de esmagar a revolta. Para isso foi enviado um na região, iniciaram o projeto de conquista do leste do continente africano,
militar experiente em ações repressoras na África, o general Von Trotha, o chifre da África.
com as seguintes instruções, segundo o próprio general: "Sua majestade o Após a construção do canal de Suez em 1869, o litoral do Mar Vermelho
Imperador e Rei apenas me disse que ele esperava que eu esmagasse o levante tornou-se atraente para os europeus, para fins de colonização, porque seus
com quaisquer meios necessários e então informá-lo das razões do levante." portos tinham uma importância vital no controle da navegação da região
O general Von Trotha desembarcou na África no dia 13 de junho de 1904 e, consequentemente, de grande parte do comércio europeu com a Ásia. A
e prometeu que liquidaria o levante e não aceitaria a rendição dos revoltosos. região mais visada era o sul do Mar Vermelho, perto do estreito que o liga
Os hereros haviam se retirado com suas forças para Waterberg, ao norte da ao Golfo de Áden, o chifre da África.
cidade de Windhoek. De junho a julho de 1904, as forças alemãs cercaram A França tomou o porto de Djibuti e áreas anexas, ameaçando os in-
os acampamentos hereros e os imobilizaram numa pequena área. Cerca de teresses ingleses na região, bem como o controle da navegação das rotas
50 mil pessoas ficaram então confinadas, com seus pertences e gado, numa comerciais que passavam pelo Mar Vermelho. A Grã-Bretanha apoiou,
área de 18 quilómetros quadrados. Samuel Maharero e os demais chefes portanto, os interesses italianos na Eritreia e Etiópia como forma de barrar

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o avanço francês na região, pois a França era a maior rival da Grã-Bretanha derrotados. Pela primeira vez, desde a Antiguidade, um exército africano
na África e ambos lutavam para ampliar suas áreas colonialistas e impedir vencia um exército europeu.
que o rival ampliasse as suas, ainda que tivessem que apoiar a criação de "O saldo da batalha, para a Itália, foi a morte de 289 oficiais e 2.918
uma colónia "tampão" de um outro país colonialista que se interpusesse soldados, contra a de cerca de 2 mil soldados nativos da Eritreia. Do exér-
entre as suas respectivas áreas de dominação. cito etíope morreram em torno de 7 mil soldados, e por volta de 10 mil
Em 1885, os italianos desembarcaram na costa da Eritreia e conquis- resultaram feridos." Os etíopes barraram assim a ocupação e a colonização
taram a cidade portuária de Masawa, havia pouco tomada pelos exércitos italianas e a Etiópia manteve-se como Estado independente. Em outubro de
egípcios de Ismael Pasha, e passaram a almejar a conquista da Eritreia e 1896, a Itália assinou com a Etiópia o Tratado de Adis-Abeba, aceitando
da Etiópia. os termos de paz dos etíopes. No entanto, nos anos 1930, a Itália fascista
A 2 de maio de 1889, o rei etíope Menelik II (1844-1913) assinou com os tentaria, então com êxito, novamente anexar a Etiópia.
italianos o Tratado de Wichale (ou Uccialli), com o qual pretendia estabele- No norte da África e do Egito, áreas de forte presença árabe e muçul-
cer uma relação de colaboração com a Itália, que seria o país intermediário mana, ocorreram revoltas de cunho islâmico, como a que foi liderada por
dos interesses etíopes na Europa. O tratado reconhecia ainda a soberania Al-Afghani. No Egito, durante as últimas décadas do século XIX, assistia-se
da Itália sobre a Eritreia, região sobre a qual os etíopes não tinham efetivo a um processo de ocidentalização que era acompanhado ao mesmo tempo
domínio e que era habitada em sua maioria por muçulmanos. pela formação de tendências nacionalistas e de um movimento de renova-
A versão em italiano do texto do Tratado de Wichale, porém, diferia da ção islâmica. O grande líder desse renascimento islâmico foi Jamal ai Pin,
versão em aramaico no ponto que estabelecia a natureza da relação entre os conhecido por AI-Afghani, pois vivera no Afeganistão durante um certo
dois países. Assim, a versão italiana do artigo XVII do texto definia uma período. Al-Afghani era professor e filósofo e, apesar de admirar profun-
relação de dependência. Já a versão em aramaico definia uma relação de damente a superioridade técnica do Ocidente, propunha uma restauração
parceria. Os italianos passaram a interpretar o Tratado de Wichale, a partir da unidade muçulmana e a deposição dos governantes que se submetessem
desse artigo adulterado, como um atestado de submissão da Etiópia. Por aos europeus.
sua vez, os países europeus acabaram por não reconhecer a independência Esse movimento de protesto promoveu a ascensão de uma imprensa
da Etiópia e a considerá-la protetorado da Itália. egípcia e de um partido político, mas, como lhe faltava coesão social, a
Em 1893, Menelik II denunciou o acordo. Três anos depois, a Itália única força unificadora era a rejeição da influência estrangeira no Egito.
invadiu a Etiópia, subestimando a capacidade de reação dos etíopes. Nesse Nessa rejeição incluía-se não apenas a influência ocidental, mas também a
meio-tempo, Menelik II conseguiu o apoio de outros reis etíopes e tornou-se elite egípcia, formada pelos descendentes de famílias turcas e circassianas.
então negusa nagast (rei dos reis), isto é, imperador, o primeiro em séculos, Um dos principais grupos de protesto era o dos oficiais egípcios do Exército
conseguindo unificar a Etiópia. Além disso, o imperador Menelik II orga- que se queixavam de discriminação. Esta é a origem da revolução egípcia
nizou um exército com cerca de 196 mil soldados fiéis, metade dos quais de 1881 (Wesseling, 1998, pp. 59-60).
armada com rifles, que enfrentou o exército italiano composto de 20.819 Liderados pelo coronel Ahmed Arabi, o paxá Arabi, os oficiais do exér-
soldados. Os etíopes conseguiram os mais modernos rifles e canhões e farta cito tomaram o poder no Egito. Arabi logo tornou-se um ditador militar e
munição que seus recursos financeiros podiam então adquirir, fornecidos acabou por provocar a reação conjunta da França e da Grã-Bretanha, que,
especialmente através do porto de Djibouti, controlado pela França. nessa época, partilhavam o controle do Egito. Foi enviada uma esquadra
Com o controle da Eritreia, os italianos passaram a planejar a conquista conjunta dos dois países e, depois, uma tropa britânica, que derrotou os
da Etiópia. Invadiram a região norte da Etiópia e tomaram a cidade de revoltosos e estabeleceu pela força a presença da Grã-Bretanha no Egito
Adowa. Nos arredores desta cidade aconteceu a batalha que pôs fim ao pro- (Wesseling, 1998, pp. 64-65).
jeto de conquista italiana, a batalha de Adowa, na qual os italianos foram

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ÁSIAEOCEANIA
resistência da guerrilha do movimento Bandeiras Negras, comandado pelo
imperador Ham Nghi e, entre 1888 e 1918, por De Tham. Nas cidades de
Na Ásia, assim como na África, foram diversas as formas de resistência, Hanói, atual capital do Vietnã, e Hue, antiga capital imperial, ocorreram
de luta e de organização. A especificidade neste caso reside no fato de atividades de resistência. Entre 1906 e 1908, generalizou-se a revolta em
que boa parte desses movimentos envolveu a questão do confronto entre toda a chamada Indochina. No Camboja houve lutas entre 1885 e 1897.
ocidentalização versus tradição, que, muitas vezes, informou as disputas Em 1913, foi fundada por Phan Boi Chau (1897-1940) a Associação para
políticas internas dessas áreas dominadas. Resistir ao estrangeiro nem a Restauração do Vietnã (Viet Nam Quang Phuc Hoi).
sempre significava somente resistir ao europeu, mas também, por vezes, a A tentativa francesa de controlar a situação passou pela centralização
outros povos asiáticos que submetiam essas populações, como foi o caso administrativa e por uma concessão maior de poderes ao governo da In-
dos manchus, dinastia estrangeira estabelecida na China desde o século dochina. Mas a administração nos moldes franceses acabou por exasperar
XVII. Do mesmo modo, lutar contra a dominação estrangeira não implicava o nacionalismo da oposição, que foi ainda mais estimulado pela ascensão
necessariamente a recusa radical da ocidentalização. Ao contrário, pois em
do Japão e por sua vitória na guerra contra a Rússia, em 1904-1905. Es-
vários momentos são justamente os elementos mais ocidentalizados dessas
tudantes partiam para estudar no Japão e agrupavam-se em organizações
sociedades que lideraram as resistências. O caso japonês, por exemplo, é
que usavam desde a literatura de propaganda até as ações armadas diretas
justamente um processo de modernização de cunho ocidental que serve de
para divulgar as suas ideias nacionalistas (Panikkar, 1965, pp. 232-233).
poderoso instrumento para recusar a subordinação aos estrangeiros.
A Indochina foi posteriormente uma das principais áreas estratégicas da
Na Birmânia (atual Mianmar), os britânicos tiveram de utilizar cerca
Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria na Ásia. O processo de ocidenta-
de 32 mil soldados, entre 1886 e 1891, para consolidar a ampliação para
leste de seus domínios na índia. lização da Indochina opôs, durante a Guerra Fria, por ocasião das guerras
Na Oceania, após o fim da guerra entre os EUA e a Espanha, em agosto do Vietnã e do Camboja, duas elites que tomaram diferentes posições: de
de 1898, os americanos receberam as Filipinas dos espanhóis. Antes do modo geral, a elite intelectual propunha a independência e a criação de uma
fim da guerra, no entanto, os americanos encorajaram Emílio Aguinaldo república socialista aliada ao mundo socialista. Por outro lado, a elite eco-
(1869-1964), que estava em Hong Kong e havia liderado em 1896-1897 nómica sintonizava-se com os interesses da França e, posteriormente, dos
uma revolta contra a dominação espanhola, a retornar às Filipinas. Ao EUA, para evitar essa aproximação.
chegar, ele proclamou a independência das Filipinas em 12 de junho de As religiões tiveram importante papel agregador nas rebeliões anticolo-
1898. Entretanto, não estava nos planos dos EUA sair das Filipinas. Após nialistas não só na África, mas também na Ásia, como é o caso da grande
derrotarem definitivamente a Espanha, os EUA criaram um governo mili- índia, com o hinduísmo e o islamismo, da Ásia Central russa (Turquestão)
tar. Em fevereiro de 1899, os filipinos iniciaram uma revolta liderada por em 1916, com o islamismo, e do confucionismo na China, ainda que este
Emílio Aguinaldo contra a nova dominação americana, que durou até não possa ser considerado efetivamente uma religião.
1901, quando ele foi capturado em Palawan. Esta guerra custou a vida de Mas as religiões não foram importantes apenas para unir os povos co-
cerca de 7 mil soldados dos EUA. Mas, mesmo depois da captura de Emí- lonizados contra os colonialistas europeus. Foram também elementos de
lio Aguinaldo, a população muçulmana da ilha de Mindanao continuou unidade diante de antigos inimigos e conquistadores regionais e de definição
resistindo à ocupação americana. Nessa região das Filipinas existe, até os das fronteiras culturais perante outros povos que posteriormente coabita-
dias de hoje, um importante movimento separatista de inspiração islâmica. riam o mesmo Estado. Este é o caso da relação entre os povos que viriam,
Na antiga Indochina Francesa, que hoje corresponde ao Vietnã, ao mais tarde, constituir os Estados indiano e paquistanês, dos movimentos
Camboja e ao Laos, os franceses também não encontraram facilidades para de secessão do Ceilão (atual Sri Lanka), do Tibete, de Timor do Leste e da
consolidar sua ocupação. Entre 1883 e 1888, eles tiveram de enfrentar a ilha de Mindanao, no sul das Filipinas.

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Na Ásia existiram ainda importantes exemplos de rebeliões moderni- a "poluição" que as mulheres chinesas cristãs traziam para os homens
zadoras na China e na índia. A China conheceu disputas dinásticas que boxers e a mais conhecida dessas mulheres era "Lotus" Huang, filha de
enfraqueceram a dinastia Qing, oriunda da Mancharia, já deteriorada pela um barqueiro pobre e uma ex-prostituta, a quem eram atribuídos poderes
pressão e ação colonialistas das potências capitalistas. Áustria, França, Ale- espirituais especiais (Spence, 1995, p. 236).
manha, Grã-Bretanha, Itália, Japão, Rússia e Estados Unidos disputavam Em maio de 1900, milhares de boxers tomaram várias regiões rurais do
territórios e acordos comerciais exclusivos com a China. Várias cidades norte da China, recrutando lavradores e outros trabalhadores insatisfeitos,
comerciais e portuárias foram tomadas, na prática, por essas potências, que atacando missões religiosas cristãs, massacrando missionários estrangeiros
definiam áreas exclusivas, nas quais estabeleciam seus comerciantes, diplo- e cristãos chineses, estes últimos sendo especialmente odiados. Mais tarde,
matas e missões religiosas e onde os chineses tinham de pedir autorização dirigiram-se às cidades, conseguindo no caminho mais seguidores. Em junho
para entrar. Em fins do século, como parte da intensificação da expansão de 1900, explodiram revoltas boxers nas cidades, como Beijing (Pequim),
imperialista, as potências estrangeiras acirraram ainda mais os abusos quando rebeldes atacaram missões religiosas e diplomáticas ocidentais,
contra a China. Corno reação a isto, emerge entre setores da sociedade atemorizando os estrangeiros.
chinesa uma nova consciência de suas relações com os estrangeiros, sejam Uma força militar internacional, formada por europeus e americanos,
eles ocidentais ou manchus. O levante da Sociedade dos Punhos da Justiça .• ajudou na evacuação de seus concidadãos e na retomada das áreas conquis-
e da Equidade (conhecida pelos ocidentais como a revolta dos boxers), de tadas pelos revoltosos. A imperatriz enviou tropas para barrar o caminho
1900, é um dos exemplos desse novo protonacionalismo chinês (Spence, desse corpo expedicionário, obrigando-o a tomar fortalezas costeiras para
1995, pp. 234-235). facilitar o acesso à capital. Em seguida, Tzu-Hsi ordenou a morte de todos
A Imperatriz Tzu-Hsi (1835-1908), após um retiro na Cidade Proibida, os ocidentais e os boxers iniciaram um ataque, que duraria oito semanas,
retornou ao poder e passou a influenciar, por intermédio dos seus ministros, às fortificadas áreas residenciais dos estrangeiros em Beijing.
e a apoiar a organização secreta I-ho ch'uan ("Punhos da justiça e da Equi- Nova força militar internacional foi então enviada a Beijing, composta
dade") que pretendia expulsar os estrangeiros da China e que, em princípio, de 19 mil soldados. Capturou a cidade em 14 de agosto, expulsando os
também queria derrubar a dinastia Qing. Os seus membros, como referido, boxers e pondo fim à rebelião que deixou um saldo de 250 estrangeiros
eram chamados de boxers pelos ocidentais, pois utilizavam técnicas das artes mortos. A imperatriz e sua corte fugiram para o norte e um ano depois foi
marciais chinesas (wu shu) posteriormente conhecidas no Ocidente como assinado um tratado, a Paz de Beijing, que impôs humilhantes cláusulas aos
kung-fu. Alguns desses guerreiros acreditavam que eram invulneráveis às chineses. Também conhecido como Protocolo dos Boxers, o documento de
armas e às balas dos soldados ocidentais, pois estariam protegidos por um 1901 previa, além da punição dos culpados e da tradicional construção
poder espiritual. Usavam espadas chinesas tradicionais e vestiam turbantes de um monumento comemorativo em honra de uma autoridade europeia
e faixas vermelhas sobre camisas azuis e carregavam estandartes de tecido morta nos conflitos, a proibição de importar armas e munições durante dois
vermelho e branco. Levaram pânico e horror aos ocidentais e criaram nos anos, o pagamento de uma indenização de 100 milhões de libras, a exclusão
estrangeiros um medo que contribuiu para a construção, no Ocidente, de dos chineses dos bairros das legações estrangeiras, cuja proteção deveria
uma visão estereotipada dos chineses como um povo exótico, violento e ser garantida pelos próprios europeus, o que significava a manutenção de
ardiloso (o perigo amarelo). tropas em plena cidade de Beijing (Panikkar, 1965, pp. 210-211).
Cerca de 70% dos boxers eram camponeses jovens, do sexo masculino, Após essas revoltas, no início do século XX, a China passou por um
mas havia também artesãos, ex-soldados, contrabandistas de sal e homens vigoroso processo de ocidentalização. Em 1905, Sun Yat-sen fundou uma
de diversas ocupações. Havia ainda batalhões femininos entre os boxers, organização política secreta, posteriormente transformada no Kuomintang
! sendo o mais importante deles o das Lanternas Vermelhas Cintilantes, (Partido Nacional do Povo Chinês), liderou a luta pela instauração da re-
formado por meninas entre 12 e 18 anos de idade. Elas lutavam contra pública na China (1911) e proclamou um governo republicano provisório

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em 1912, na cidade de Nanjing (Nanquim), tornando-se por pouco tempo A percepção de que a modernização era uma imposição da necessidade de
seu presidente. Dos anos 1920 aos anos 1940, a China passou por guerras fazer frente à expansão capitalista ocidental fez com que o Japão adotasse e
civis e uma guerra de libertação contra o Japão, entrando em choque dois adaptasse certos procedimentos ocidentalizantes internamente, mas também
projetos de modernização de inspiração ocidental: o liberal, do Kuomin- externamente. O crescimento do poderio militar e industrial japonês esteve
tang, liderado por Jiang Jieshi (Chiang Kai-shek), e o comunista, do Partido associado, a partir das últimas décadas do século XIX, a uma política de
Comunista Chinês, liderado por Mão Zedong (Mão Tsé-tung). expansão imperialista na Ásia. Em 1894-1895, o Japão venceu a China numa
Na índia também houve uma combinação entre libertação e oci- guerra provocada pelas disputas na Coreia e, pelo tratado de Simonoseki,
dentalização. O Congresso Nacional Indiano, fundado em 1885, foi a adquiriu Formosa (Taiwan) dos chineses, iniciando assim um longo período
primeira organização política de inspiração ocidental nas áreas coloniais de expansão dos interesses japoneses na China e de derrocada do prestígio
e pretendia reformas constitucionais moderadas. Nos anos 1920, com a internacional chinês (Panikkar, 1965, pp. 201-203).
liderança de Mohandas (Mahatma) Gandhi, obteve apoio popular para O Japão também rivalizou com a Rússia na Coreia e no sul da Man-
a política de desobediência civil. chúria, o que resultou na guerra de 1904-1905, vencida pelos japoneses.
O caso mais radical de opção pela ocidentalização como forma de resistir Este foi um importante revés ideológico do colonialismo europeu na Ásia,
à dominação estrangeira foi o do Japão. Depois de passar por um período pois a derrota da Rússia na Guerra Russo-japonesa significou a primeira
de dois séculos de isolamento ante os ocidentais, desde 1853 o país foi vitória de um exército oriental sobre soldados ocidentais. Seu exemplo serviu
forçado por uma missão militar americana a abrir seus portos ao comércio para enfraquecer a dominação colonialista europeia na Ásia e fortalecer as
internacional. Várias transformações já estavam ocorrendo na estrutura pretensões expansionistas japonesas no Extremo Oriente.
social japonesa, como a redução do poder dos daimios (senhores de terras)
e dos samurais através de uma maior centralização política, resultando na
DOMINAÇÃO E RESISTÊNCAS
pacificação dos campos e no aumento expressivo da produtividade agrícola.
Mas a invasão estrangeira exacerbou o nacionalismo japonês, que era, ao
Marshall Sahlins, analisando o impacto da chegada do capitão James Cook
mesmo tempo, uma ideologia voltada para o passado e modernizadora,
ao Havaí, na década de 1770, propõe questões importantes para o estudo
permitindo a união de diversos setores sociais na luta contra essa dominação.
dos encontros entre povos produzidos pelas diversas formas de colonização.
O movimento que expressou esse nacionalismo foi o que deu origem
Apesar de se voltar para um contexto e uma época diferentes dos que são
à Restauração Meiji, que aboliu, em 1868, o poder do xogurn Tokugawa
tratados aqui, o antropólogo americano nos fornece alguns instrumentos
e restaurou o governo imperial direto da dinastia Meiji. O período Meiji
para se pensar o significado da expansão imperialista do século XIX.
(1867-1912) foi marcado pelo poder de novos governantes, que viam no
Os eventos desse tipo produzem mudanças culturais nas sociedades
desenvolvimento capitalista o único meio de garantir a independência e envolvidas, especialmente naquelas que são alvo da invasão estrangeira.
um lugar próprio para o Japão na cena internacional. As reformas então O estrangeiro é "traduzido" em termos locais e incorporado na estrutura
implementadas tinham o sentido de estimular o crescimento económico e preexistente, que, a partir desse momento, se modifica. Trata-se de um tipo
fortalecer o Estado. Entre elas, destacaram-se a dissolução das unidades de mudança cultural induzida por forças externas, mas "orquestrado de
militares locais, a implantação da alfabetização universal entre os adultos modo nativo" (Sahlins, 1990, p. 9). Portanto, o contato intercultural, por
do sexo masculino, a introdução do serviço militar obrigatório, o fim dos maior que seja o grau de violência e dominação que o acompanhe, nunca se
privilégios dos samurais, a exploração direta dos camponeses pelo Estado dá a partir de uma via de mão única. Os povos dominados pelos europeus
e pelos proprietários fundiários agrocomerciais e não mais pelos senhores produziram ao mesmo tempo as suas formas de resistência e de assimila-
tradicionais de terras (Anderson, 1989, pp. 106-108). ção, pois mesmo que a resistência fosse feita em nome da manutenção da

228 229
O S É C U L O XX AS R E S I S T Ê N C I A S DOS POVOS À P A R T I L H A DO MUNDO

tradição, o contato já era em si transformador. Quantas "invenções de Portanto, o móvel da expansão colonialista não foi simplesmente o desejo
tradições" não foram necessárias, por exemplo, para fazer do islamismo de dominação dos europeus, mas sim a transformação pela qual passou o
uma grande força agregadora na luta contra a dominação estrangeira no capitalismo no fim do século XIX. O que diferencia o colonialismo reali-
l ;
norte da África? zado pelos países capitalistas avançados europeus ou não (como Japão e
Talvez o mais importante exemplo de como resistência e assimilação EUA) daquele empreendido nessa mesma época por outros Estados1 (afri-
podem aparecer juntas nas lutas anticoloniais seja o do uso do nacionalismo canos e asiáticos) são, basicamente, os interesses da expansão do mercado
como base ideológica para a organização desses movimentos. Ideologia capitalista sobre os mais distantes povos da Terra. A resistência que esses
ocidental, o nacionalismo foi reelaborado no contexto das resistências e povos ofereceram ao colonialismo, de modo geral, não conseguiu barrar
acabou por influenciar a modificação da própria estrutura interna dessas essa expansão, mas contribuiu para definir as condições em que cada povo,
sociedades. Dessa maneira, o colonialismo contribuiu para desarticular os etnia ou Estado se inseriu nesse mercado mundial.
antigos impérios que dominavam ou, pelo menos, ameaçavam a indepen-
dência de outros povos, como o Império Chinês. Na China, o colonialismo
enfraqueceu não somente o Império Chinês, mas também a antiga dinastia BIBLIOGRAFIA
estrangeira dos manchus (oriundos da vizinha Manchúria). Assim, a ex-
pansão colonial do século XIX teve conexões profundas com o processo Anderson, Benedict. 1989. Nação e consciência nacional. São Paulo, Ática.
de desagregação da "velha ordem" das sociedades tradicionais dos povos Atla$ Geográfico Mundial. 1994. São Paulo, Folha de S. Paulo.
conquistados e colonizados, bem como com a emergência do nacionalismo Chesnaux, Jean. 1976. A Ásia Oriental nos séculos XIX e XX. São Paulo, Pioneira.
entre esses povos. Chevrier, Yves. 1996. Mão e a Revolução Chinesa. São Paulo, Ática.
Falcon, Francisco J. e Moura, Gerson. 1974. A formação do mundo contemporâneo.
De um modo geral, pode-se afirmar que as revoltas e levantes antico-
Rio de Janeiro, Americana.
lonialistas do período entre 1880 e 1914 impuseram importantes reveses Hobsbawm, Eric J. 1996. Bandidos. Rio de Janeiro, Forense-Universitária.
ao colonialismo europeu sem, contudo, barrar-lhe o caminho, com as . 1988. A era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
exceções vitoriosas da Etiópia e do Japão. Produziram, em alguns casos, Jornal do Brasil, 22/2/1995 Rio de Janeiro, p. 12.
pesadas perdas humanas aos europeus, como no caso dos holandeses na Memmi, Albert. 1977. Retraio do colonizado precedido pelo retraio do colonizador.
Sumatra (atual Indonésia), dos britânicos na Birmânia (atual Mianmar) e Rio de Janeiro, Paz e Terra.
dos americanos nas Filipinas. Olivier, Roland. 1994. A experiência africana. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
Certamente os países colonialistas europeus provocaram destruições Panikkar, K. M. 1965. A dominação ocidental na Ásia. Rio de Janeiro, Saga.
Sahlins, Marshall. 1990. Ilhas de História. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
em muitos povos, culturas e Estados da África, Ásia e Oceania, o que cus-
Said, Edward W. 1990. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São
tou milhares de vidas. No entanto, é preciso recordar que o colonialismo
Paulo, Companhia das Letras.
não foi privilégio dos europeus ou do então chamado "homem branco". Spence, Jonathan D. 1995. Em busca da China moderna. Quatro Séculos de História.
O Japão, que em meados do século XIX foi cobiçado pela Grã-Bretanha e São Paulo, Companhia das Letras.
pelos EUA, conseguiu, como foi referido, no fim do século, passar por um Wesseling, H. L. 1998. Dividir para dominar. A partilha da África: 1880-1914. Rio
movimento reformista, a Restauração Meiji. Este movimento não apenas de Janeiro, UFRJ/Revan.
evitou a sua dominação como também transformou o Japão num país co-
lonialista, que, nos últimos anos do século XIX e no início do século XX,
tornou-se uma ameaça aos interesses europeus e, sobretudo, americanos
no Extremo Oriente e Oceania.

250 231
O S É C U L O XX

NOTA

1. No período aqui analisado, Estados africanos e asiáticos realizaram guerras de


conquista, anexações territoriais e colonizações que não se inscrevem nas caracte-
rísticas da expansão colonialista. Como exemplo, citamos a política expansionista
do Estado Mahdista do Sudão em direção ao sul da África. Além disso, a Etiópia,
após derrotar a Itália na batalha de Adowa, iniciou a conquista de territórios ao
sul e a leste.

A Primeira Grande Guerra


Márcia Maria Menendes Motta
Professora Adjunta de História Contemporânea da Universidade
Federal Fluminense

: 232
AS POTÊNCIAS EM CONFLITO E A GUERRA

A Primeira Guerra Mundial envolveu vários países, mas representou,


principalmente, o confronto entre quatro potências: França, Inglaterra,
Rússia, por um lado, e a Alemanha, do outro. Para compreender as razões
da eclosão deste primeiro conflito mundial é preciso ter em mente que ele
foi uma guerra imperialista, onde as rivalidades políticas expressavam a
competição económica das potências em conflito.
As principais nações envolvidas eram diferentes entre si, mas, apesar
disso, as transformações ocorridas na Europa durante a segunda metade do
século XVIII e por todo o século XIX, caracterizadas pelo aparecimento
do capitalismo industrial, só podem ser entendidas em seu conjunto. As
diferenças entre países refletiam os problemas criados pela industrialização
l e a consequente competição por mercados e capitais. Em suma, o desenvol-
vimento do capitalismo empurrou o mundo inevitavelmente em direção a
uma rivalidade entre os Estados, à expansão imperialista, ao conflito e à
guerra (Hobsbawm, 1995, p. 437).
Comecemos pela Inglaterra, a primeira nação industrial do mundo de
então. Em fins do século XVIII, a Inglaterra tinha dado início à Revolução
Industrial. Através da utilização da máquina a vapor e da indústria têxtil,
os ingleses iniciaram um processo de modificação das formas de produzir
que alteraria a sociedade em todos os seus aspectos. Além disso, o processo
de fechamento dos campos havia liberado grande parte da população cam-
ponesa, que, expulsa do campo, foi para a cidade em busca de emprego. A
aceleração do crescimento económico inglês se beneficiava da existência de
um amplo e consolidado mercado interno. Além disso, havia um importante
comércio ultramarino, sendo a Inglaterra considerada como "a senhora dos
mares". Tal comércio era favorecido pelo papel de seu governo no processo
da conquista de mercados através da guerra e da colonização.

235
O S É C U L O XX A PRIMEIRA GRANDE GUERRA

No entanto, na primeira década do século XX, aquele país "pagava sentido, o mercado interno era pouco desenvolvido, pois os camponeses só
o preço" por seu pioneirismo. O surgimento de outros países industriais esporadicamente compravam algum produto industrial. As poucas indús-
colocou um limite à expansão da indústria britânica. A experiência inglesa trias existentes atendiam a uma pequena parcela da população que vivia
servia como modelo para os novos países industriais. Isso não quer dizer nas cidades. Além disso, a concorrência dos produtos ingleses desestimulava
que eles imitavam passo a passo o que havia ocorrido com a Inglaterra. Isso, os investimentos que pretendessem rivalizar com eles.
sabemos, era impossível Eles não precisavam passar por todos os estágios, Assim, ao contrário das indústrias têxteis inglesas, os franceses, desde o
podiam "queimar etapas", pois, à luz da realidade britânica, acumulavam início, concentraram suas indústrias nos produtos de qualidade, aproveitan-
um maior conhecimento acerca do processo industrial. Assim, ameaçada do o fato de que a cultura francesa era, àquela época, sinónimo de beleza e
pelo crescimento económico das outras potências, a Inglaterra tinha — bom gosto. Com o auxílio do Estado e com o apoio do capital inglês, foram
naquela época — equipamentos e tecnologias obsoletos em comparação, construídas estradas de ferro que permitiram a consolidação do mercado
principalmente, com a forte indústria alemã. nacional, encorajando o investimento na indústria em larga escala e a sua
Vejamos então a experiência alemã. Em menos de uma geração, a Alema- concentração em locais mais favoráveis (Kemp, s.d.). Apesar dos avanços,
nha transformou-se de um conjunto de estados economicamente atrasados porém, a França era ainda um país atrasado, se comparado à Inglaterra e,
num país unificado e forte. Impulsionada pela indústria pesada, com uma particularmente, à Alemanha. Para alguns autores, a razão desse atraso
base tecnológica muito avançada, a Alemanha adquiriu o status de potên-
talvez fosse decorrência do fato de que a industrialização francesa tenha
cia em poucos anos. Sem romper as estruturas políticas mais arcaicas da
sido um fator de menor ruptura social, na medida em que preservou, por
sociedade, o Estado alemão apoiava-se no poder dos grandes proprietários
exemplo, a sociedade camponesa.
de terra e impulsionava sua industrialização, que tinha como característica
A quarta e última potência era a Rússia. Sua força não estava na indús-
uma forte associação entre a indústria e os bancos. O estímulo à constru-
tria. De certa forma, ela era um "gigante com pés de barro". Havia de fato
ção de estradas de ferro ajudou a consolidar o mercado interno, ao mesmo
um setor industrial eficiente e tecnologicamente avançado, mas este setor era
tempo que fortaleceu sua industrialização.
uma ilha num país de camponeses, pois cerca de 79% da população russa
O processo de industrialização alemão foi resultado de um planejamento
era ainda composta de pessoas que viviam no campo. Portanto, um país
cuidadoso. Para responder à forte concorrência britânica, o Estado alemão
estimulou a formação de cartéis, favorecendo a generalização de grandes de imensos contrastes, onde o que havia então de mais moderno em termos
conglomerados industriais capazes de concorrer nos mercados nacional e industriais convivia com sociedades agrárias miseráveis. Se podemos falar
internacional. Além disso, desde cedo, o Estado percebeu que sua desvan- de que havia um processo industrial em curso na Rússia, não podemos nos
tagem económica poderia ser superada através da educação. Assim, ao pa- esquecer de que tal industrialização era dependente de capital estrangeiro.
trocinar e estimular um sistema de educação técnica e científica direcionada Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, o capital internacional contro-
à industrialização avançada, o Estado formou em poucos anos uma nova lava cerca de 72% dos investimentos diretos no setor metalomecânico e
geração de homens científica e tecnicamente qualificados, "preparados para investia fortemente na indústria têxtil, até então reservada ao investimento
acabar rapidamente com a inferioridade alemã na indústria e para assegurar de capitalistas russos (Reis Filho, 1987, p. 14).
o primeiro lugar à Alemanha nas indústrias dependentes da ciência, que A Rússia era, em suma, uma potência em número de habitantes. O mais
estavam a se tornar cada vez mais importantes" (Kemp, s.d., p. 122). populoso dos países europeus era dominado por um Estado militarizado
A França era a outra potência. Sua industrialização havia seguido um e autoritário, que procurava atuar como intermediário entre o capital in-
curso diverso do da Inglaterra, e possuía características surpreendentes. No ternacional e a indústria. Cabia a esse Estado a responsabilidade de asse-
início do século XIX, a França tinha uma economia ainda dominada pelo gurar a ordem e a paz social, tentando impedir as revoltas dos operários e
setor agrário. A maior parte da população francesa vivia no campo. Neste camponeses contra a miséria que então assolava o país. A Primeira Guerra

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O S É C U L O XX A PRIMEIRA GRANDE GUERRA

só faria crescer a miséria e a desorganização económica, trazendo à luz a necessário forjar a noção da superioridade de um povo em relação ao outro
fragilidade da industrialização desse país. e criar, em caso de derrotas passadas, o desejo da revancke. O nacionalismo
A descoberta de novas fontes de energia, de novos remédios e de novas era assim criado para fortalecer a unidade nacional, a obediência de todos
tecnologias fortalecia a crença na inesgotável capacidade humana de in- os cidadãos aos interesses do país, fortalecendo o patriotismo, que, uma
ventar, de criar novos produtos, dando a ilusão de que se estava vivendo vez testado, faria com que milhares de jovens se mostrassem dispostos a
um período áureo da humanidade. Era a belle époque, conhecida pelo seu defender o seu país numa guerra.
otimismo, pela certeza de uma estabilidade e paz duradouras. Mas, na Não era difícil supor que a rivalidade entre França e Alemanha poderia
verdade, o desenvolvimento económico daqueles quatro países (Inglaterra, provocar um conflito. Afinal, a unificação da Alemanha em 1871 ocorreu
Alemanha, França e Rússia) acentuava a hipótese de conflitos. no interior da Guerra Franco-Prussiana, que significou para a França não
Os esforços da industrialização e a competição desenfreada tendiam a somente a derrota, como também a perda das regiões da Alsácia e da
recriar antigas rivalidades. Nesse sentido, a deflagração de uma guerra en- Lorena (ricas em ferro e carvão). Não era difícil supor que o rápido desen-
tre duas ou mais potências era uma realidade possível. Não era à toa que a volvimento da indústria alemã ameaçava de frente os interesses ingleses e
indústria bélica via aumentar os seus recursos, incentivando-se a criação de exigia, por parte da Inglaterra, medidas de contenção ao poder germânico.
novas tecnologias para a morte. Um período de "Paz Armada", pois, além A Alemanha, por sua vez, via com grande interesse a possibilidade real de
das novas armas, foi adotado, em quase todos os países, o serviço militar se tornar a principal potência europeia.
obrigatório. A obrigação do jovem em prestar serviço militar tinha por si só A expansão imperialista de cada um desses países era um fato por si só
efeitos sociais bastante significativos, pois fazia crescer a influência do exército explosivo. Assim, por exemplo, a região dos Bálcãs parecia um barril de
na sociedade e na política de seus países, a disciplina dos quartéis tornava-se pólvora, envolvendo interesses da Áustria, da Rússia e do Império Turco.
um exemplo a ser seguido em outros locais (Rodrigues, 1985, p. 31). Ali, os interesses austríacos esbarravam no desejo de autonomia das minorias
Mas nenhum governante acreditava numa guerra longa que pudesse vir étnicas e no avanço russo na região. A Alemanha, interessada em preservar
a envolver tantas nações. O surgimento do sistema de alianças e a formação seus acordos com a Áustria formou então a Tríplice Aliança, composta
de blocos atendiam aos interesses de cada país de se defender em relação à por este país, o Império Austro-Húngaro e a Itália (que mais tarde iria se
ofensiva de um terceiro, mas era difícil prever que isso provocaria um efei- aproximar de outra aliança).
to dominó, ou seja, uma vez iniciado o conflito, as partes envolvidas num Havia ainda o confronto envolvendo a Inglaterra e a França em relação
acordo se colocariam na defesa de sua aliança em contraste com a(s) outra(s). à região do Marrocos. O esforço de superar a rivalidade entre eles criou a
De certa forma, a ideia de que a guerra seria curta e rápida estava de entente cordiale, que estabeleceu acordos para a definição das áreas coloniais
acordo com a crença na superioridade de um país em relação ao outro. Com a na África. O acordo firmado entre França e Inglaterra acabou por definir
industrialização, fortaleceu-se o nacionalismo dos países, o que significou uma estratégia contra o avanço alemão, uma vez que ambos os países so-
a construção e generalização de um conjunto de tradições que procuravam friam os resultados — diretos ou indiretos — da expansão imperialista da
convencer a população de cada país de sua importância e superioridade na Alemanha. A entente cordiale ainda contaria mais tarde com a participação
história mundial. O passado de cada nação era contado de forma a mostrar da Rússia. Necessitando dos capitais franceses e ingleses para empreender
sua força e a união de seu povo. Desdobrava-se do nacionalismo a ideia sua industrialização, a Rússia firmou um acordo com as duas potências.
de um inimigo externo (outra nação), encarado como o responsável pelos Além disso, o país buscava expandir sua influência em direção aos Bálcãs,
problemas vividos pelo país. apoiando a independência dos povos eslavos, que então eram dominados
O Estado tinha então um importante papel a cumprir. A generalização pelo Império Austro-Húngaro.
da educação pública consolidou uma única língua nacional, construiu uma
única história e, para tanto, utilizou-se de antigas mágoas e rivalidades. Era

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O S É C U L O XX A PRIMEIRA GRANDE GUERRA

O INÍCIO E A GENERALIZAÇÃO DA GUERRA: AS FRENTES DE BATALHA


alemães estavam corretos em sua previsão. Eles estavam tão confiantes no
sucesso de seu plano que, já em fins de agosto de 1914, as tropas germânicas
A gota d'água para a eclosão da guerra foi um atentado que levou à morte se deslocavam para a Europa Oriental, em direção à Rússia.
o príncipe herdeiro do trono austríaco, realizado em Sarajevo, capital da Logo no início da Primeira Guerra Mundial, portanto, estabeleceram-se
atual Bósnia, então uma província do Império Áustro-Húngaro. Estavam
ir ali em disputa dois projetos. De um lado, a Sérvia, país também localizado
duas frentes de batalha: a ocidental e a oriental. Na primeira, localizavam-se
os embates dos exércitos alemães contra as tropas inglesas e francesas; já na
nos Bálcãs, que defendia a formação de uma grande Sérvia, capaz de abrigar segunda, encontravam-se os conflitos que envolviam, por um lado, alemães
todos os povos eslavos da região. Nesse sentido, aproximara-se da Rússia. e austríacos e, pelo outro, os russos.
De outro lado, a Áustria-Hungria, com suas ambições imperialistas na re- Apesar da esperança de todos, a guerra mostrava-se cruel: ela não seria
gião. Em 1914, o herdeiro do Império Áustro-Húngaro, prestes a assumir o de curta duração. Logo, desde os primeiros meses, colocou-se a questão
poder, divulgava o seu projeto, que se resumia em constituir uma monarquia dos efetivos militares, em razão das enormes perdas sofridas no início do
tripla, composta pela Áustria, Hungria e pela população eslava. Ao chegar conflito. O dispêndio de munições superou assim todas as previsões. Os
a Sarajevo para propagar suas intenções, o herdeiro foi morto por uma Estados então envolvidos na guerra tiveram que se organizar para armar,
sociedade secreta, a Mão Negra, que defendia a incorporação da Bósnia equipar e abastecer os exércitos, que, apesar das previsões otimistas, não
à Grande Sérvia e sua independência ante os interesses austro-húngaros. voltariam logo para suas casas (Crouzet, 1968, p. 24).
A morte do herdeiro do Império Áustro-Húngaro tornou-se assim o Em relação ao confronto com a Rússia, na frente leste, os alemães per-
estopim do conflito, uma vez que a Áustria, apoiada pela Alemanha, exigiu ceberam que a situação ali era extremamente delicada. Apesar da supe-
a apuração sumária do episódio. Ora, como isso não foi feito, a Áustria rioridade germânica, do ponto de vista do arsenal militar, os russos eram
declarou guerra à Sérvia. Para se precaver contra a ofensiva desse império, bastante numerosos e, naquele momento, confiantes em sua responsabilidade
m os sérvios procuraram a ajuda dos russos. Como um efeito dominó, o sis- de defender o país do tzar. No entanto, em fins de agosto de 1914, o exército
tema de alianças transformaria um conflito regional na Primeira Guerra alemão conseguiu uma expressiva vitória na frente oriental, na batalha de
Mundial. Colocaram-se de um lado, e num primeiro momento, França, Tannemberg. Em 29 de outubro, os russos tiveram ainda que enfrentar mais
Inglaterra e Rússia; de outro, a Alemanha e a Áustria-Hungria. um novo inimigo, com a entrada do Império Turco na guerra. Em resposta,
Os interesses alemães ficaram bastante claros logo no início do con- França, Grã-Bretanha, Bélgica e Sérvia declararam guerra àquele país.
flito, através da tática conhecida como Plano Schlieffen. Formulado por Na frente ocidental ocorreu, ainda no ano de 1914, uma das principais
Alfred von Schlieffen, o plano partia da crença de que a guerra seria de batalhas da Primeira Guerra — a Batalha do Marne. A sua importância
curta duração. Assim, preparou-se um estudo de operações militares que resume-se no fato de que ela consagrou a derrota do plano alemão e o
previa a violação do território belga e do noroeste da França, passando a surgimento da guerra de trincheiras. Ali, ambos os adversários iriam sen-
oeste de Paris. Segundo as previsões do plano, os franceses seriam então tir os efeitos da guerra que dominaria a frente ocidental em quase todo o
derrotados num período máximo de 40 dias. Após a derrota francesa, os período do conflito. O domínio da artilharia e a incapacidade de vencer
alemães atacariam os russos. decisivamente o inimigo dariam um caráter estático à guerra, sem a possi-
A ofensiva alemã, portanto; começou pela Bélgica e pelo noroeste da bilidade de avanço real de nenhuma das partes envolvidas. De temporárias,
• França e partia do pressuposto da inexorabilidade da vitória alemã, des- as trincheiras passaram a ser então definitivas. Desde o Mar do Norte até
considerando assim a capacidade de resistência, tanto de belgas quanto de Verdun, os soldados permaneciam entrincheirados e milhares de homens
franceses. A superioridade inicial do exército alemão fez, de fato, com que ali morreram sem que uma das partes alcançasse a vitória.
os franceses fossem obrigados a recuar. A chegada do exército inglês à Bél- Os esforços dos aliados em vencer a guerra impunham a busca de novas
gica não impediu as primeiras derrotas dos aliados. Tudo indicava que os estratégias de ataque. Assim, entre 1915 e 1916, as ofensivas inimigas não
"f; 240 241
O S É C U L O XX A PRIMEIRA GRANDE GUERRA

conseguiam a vitória definitiva, apesar da preparação e do emprego da criou as condições para a Revolução de Fevereiro (de 1917), que derrubou
artilharia pesada. Em 23 de maio de 1915 foi a vez da Itália se posicionar o tzarismo e que, após sua queda, formou um governo provisório. No en-
em relação ao conflito, declarando guerra contra a Áustria. Das batalhas tanto, esse governo não atendeu aos anseios populares: manteve a. Rússia
que então se seguiram, a de Verdun mostrou ao mundo os efeitos arrasa- na guerra e não foi capaz de diminuir a miséria. A crise na indústria a
dores da guerra, quando os alemães tentaram quebrar o poderio francês. escassez de alimentos e a inflação davam os argumentos necessários para
Os esforços dos aliados em vencer o inimigo deram origem, em 1916, ao que os bolchevistas conseguissem aumentar sua influência junto ao ope-
Plano Joffre. Era, em suma, a decisão de um ataque franco-inglês na região rariado. A síntese das lutas sociais de então: "pão, paz e terra", respondia
do Somme, com o objetivo de destruir o avanço germânico. aos apelos dos pobres do campo e da cidade. Assim, em outubro de 1917
Dois acontecimentos importantes ocorreram nos anos de 1915 e 1916. os bolchevistas, liderados por Lenin, tomaram o poder e, um pouco mais
O primeiro foi a chamada Campanha de Gallipoli. As forças aliadas de- tarde, com a paz de Brest-Litovsk (março de 1918), conseguiram retirar a
sembarcaram na península de Gallipoli e ali encontraram as tropas turcas Rússia da guerra.
fortificadas e mais bem equipadas para a guerra de trincheiras do que eles Após a saída da Rússia, os alemães ampliaram seus esforços na frente
próprios. A campanha, marcada por atos de heroísmo e cheia de sacrifícios ocidental para dar fim ao conflito e conseguirem afinal a vitória. Os rneses
culminou com a derrota aliada e sua retirada em junho de 1916. Como resul- finais de 1917 foram bastante problemáticos para os aliados, pois parecia
tado da campanha, cabe ressaltar a entrada na guerra da Bulgária, ao lado impossível romper a linha germânica e avançar. Além disso, tanto a Áustria
da Alemanha, e a ocupação da Sérvia pelos inimigos. O segundo ocorreu como a Alemanha lançaram uma grande ofensiva no norte da Itália.
em setembro de 1916, a chamada ofensiva do Somme, quando os tanques As dificuldades das forças aliadas foram aos poucos sendo sanadas
— inventados pelos britânicos — foram empregados pela primeira vez. com os reforços americanos, cujos exércitos começaram a desembarcar na
O ano de 1917 seria decisivo para as forças aliadas. Em janeiro, a França. No entanto, durante os meses de abril e maio de 1918, os alemães
Alemanha proclamou o completo bloqueio da Grã-Bretanha e da França, ainda castigaram bastante as nações da enterite, mas isso teve um preço: o
e todas as potências neutras foram avisadas para que retirassem seus exército alemão estava também esgotado.
navios e vapores dos mares britânicos. O bloqueio alemão, que significava Nos meses de junho e julho de 1918, apoiados pela aviação e pela ar-
na prática o afundamento indiscriminado de qualquer navio estrangeiro, tilharia pesada, os aliados começaram a acumular sucessivas vitórias. A
acabou por impor a entrada dos Estados Unidos na guerra. criação de um comando único em julho, em mãos do general francês Foch,
Os Estados Unidos já eram uma potência e mantinham uma posição permitiu uma organização mais racional da ofensiva aliada. Um exemplo
de neutralidade diante do que então acontecia com os países europeus. disso foi a chamada segunda batalha do Marne. Em junho, os austríacos
Assim, entre os anos de 1914 e 1917, os americanos não se envolveram no foram derrotados pelos italianos. Logo depois, americanos e ingleses
conflito, embora mantivessem estreita relação comercial com os Estados conseguiram romper as linhas alemãs e, a partir daí, estes foram sendo
aliados, vendendo-lhes alimentos e armas. Por conseguinte, o bloqueio sucessivamente derrotados.
alemão feria os interesses económicos americanos, uma vez que impedia a Em 18 de novembro de 1918, após quatro longos anos de conflitos,
manutenção das exportações deste país para os seus parceiros. Outro fator mortes e sofrimentos para ambos os lados, o Estado alemão assinou o
acelerou a decisão americana de declarar guerra à Tríplice Aliança: a saída armistício. Para o povo alemão, porém, o reconhecimento da derrota sig-
da Rússia da guerra. nificou a aceitação de um tratado marcado por humilhações ao povo e à
A eclosão da Primeira Guerra Mundial foi um ponto de inflexão impor- nação alemães. A Primeira Guerra Mundial terminara com a condenação
tante para a vitória da Revolução Russa de 1917. O crescimento da miséria de um único país, visto como responsável pelo conflito. Mas sabemos que
e a desorganização da economia faziam crescer o descontentamento de ela expressou de forma cruel a competição das potências e a crença na
todos os setores em relação ao Estado. O acirramento dos conflitos internos superioridade de uma em detrimento de outra.

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O S É C U L O XX A PRIMEIRA GRANDE GUERRA

Ao todo, 14 países da Europa entraram no conflito. Em 1917, um ano precedentes na história da guerra" (Hobsbawm, 1995, p. 33). No princípio,
antes do término do conflito, apenas a Suíça, a Espanha e alguns reinos a construção de trincheiras era vista como uma medida temporária e tinha
escandinavos se mantinham neutros. Todos os demais foram arrastados a como finalidade ser um bom campo de tiro para as armas portáteis. No en-
uma campanha cuja intensidade não parava de crescer (Rémond, s.d., p. 24). l tanto, elas se tornaram o palco principal da guerra, na medida em que nenhum
dos dois lados conseguia avançar. Milhões de homens ficavam uns diante dos
outros nos parapeitos das trincheiras em barricadas feitas com sacos de areia.
AS TÉCNICAS PARA O MASSACRE Ali, conviviam diariamente com ratos e piolhos — agentes transmissores de
infinitas doenças. Sem auxílio médico, morriam muitas vezes em razão de
A morte de milhares de cidadãos franceses, alemães, russos e ingleses, enfermidades. A guerra de trincheiras impedia ainda a remoção dos cadáveres
além de outros povos, ajudou a consolidar o adjetivo de Grande Guerra abandonados, o que só agravava o estado geral de degradação e dor.
para este evento. Entre 1914 e 1918, muitos e muitos homens estiveram em A guerra de trincheiras trazia também graves consequências psicológicas
longas e cansativas batalhas, às vezes entrincheirados, lutando em nome para aqueles que sobreviviam ao caos. Nas palavras de um famoso histo-
de seu país, e morrendo por ele. A França teve 1,4 milhão de mortos, num riador, o combatente estava a todo instante sujeito a uma tensão nervosa:
período em que a população francesa era de 39 milhões de habitantes. o abastecimento não chegava, os bombardeios martelavam as posições a
A Alemanha perdeu 1,7 milhão de homens, numa população total de 66 fim de destruir as redes, as trincheiras e os abrigos, os obuses de grosso
milhões (Rémond, s.d., p. 35). calibre abriam enormes buracos, que transformavam o terreno num campo
As perdas humanas representaram o fim do sonho de um mundo de de crateras que a chuva convertia em lamaçal (Crouzet, 1968, p. 29).
paz por parte daqueles que, em nome de seus países, haviam assumido O sofrimento daqueles homens pode ser sentido através de alguns de seus
a responsabilidade de defendê-los. Eram, em sua grande maioria, jovens depoimentos, escritos nos campos de batalha. Um combatente da batalha
soldados e, por conta disso, suas mortes representavam a perda de parte da do Somme escreveu:
população economicamente ativa, ou seja, de pessoas capazes de exercerem
A mesma velha trincheira, a mesma paisagem,
várias atividades profissionais. Na Inglaterra, por exemplo, um quarto dos
Os mesmos ratos, crescendo como mato,
alunos das importantes universidades de Oxford e Cambridge com menos Os mesmos abrigos, nada de novo,
de 25 anos morreu em combate (Hobsbawm, 1995, p. 33). Os mesmos e velhos cheiros, tudo na mesma,
Mas as mortes desses mesmos homens traziam também à luz uma realida- Os mesmos cadáveres no front,
de muito dura para os seus países de origem. Muitas mulheres tornaram-se, A mesma metralha, das duas às quatro,
com a perda de seus respectivos maridos, as "viúvas de guerra". Antes Como sempre cavando, como sempre caçando,
mesmo de se saberem viúvas, elas e outras mulheres haviam ingressado no A mesma velha guerra dos diabos
mercado de trabalho, substituindo os homens que estavam nas frentes de (citado in Marques, Berutti e Faria, 1990, p. 118).
batalha nas profissões que, até então, eram reservadas ao sexo masculino.
Uma carta encontrada no bolso de um soldado alemão afirmava:
Aprendendo a sobreviver sem a ajuda de seus maridos, elas tiveram ainda
que aprender a criar sozinhas seus filhos, órfãos dos homens que morreram
Estamos tão exaustos que dormimos, mesmo sob intenso barulho. A melhor
na guerra. Estas crianças que muitas vezes nem chegaram a conhecer seus coisa que poderia acontecer seria os ingleses avançarem e nos fazerem prisionei-
pais, ficaram conhecidas como "pupilos da nação". ros. Ninguém se importa conosco. Não somos substituídos. Os aviões lançam
A morte de milhares de homens foi decorrência direta do fato de estarmos projéteis sobre nós. Ninguém mais consegue pensar. As rações estão esgotadas
tratando de uma guerra de trincheiras que se tornou — nas palavras de um — pão, conservas, biscoitos, tudo terminou! Não há uma única gota de água.
importante historiador — "uma máquina de massacre provavelmente sem É o próprio inferno (idem, p. 120).

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Entrincheirado, o soldado deveria estar disposto a resistir aos bombar- Segunda Guerra os tanques e os gases viriam a comprovar sua capacidade
deios, à fome e ao desespero. Com um pouco de sorte poderia vir a sobreviver de produzir morte aos milhares.
ao caos, mas, para que isso pudesse ocorrer, era preciso também que ele O emprego de aeronaves é, sem dúvida, um capítulo interessante da
estivesse imbuído da ética da responsabilidade, da crença de que a vitória Primeira Guerra Mundial, principalmente no que se refere à utilização dos
na guerra dependia de sua coragem, de sua capacidade sobre-humana de zepelins, aeronaves (chamadas dirigíveis) alongadas, em forma de charuto, e
resistir. A resistência era um valor, que uma vez compartilhado por todos cheias de gás hélio. O primeiro dirigível impulsionado a motor foi construí-
os soldados entrincheirados, permitia que eles acreditassem numa vitória do pelo alemão Paul Haenlein, em 1865. Logo depois, ele foi aperfeiçoado
inevitável. pelo também alemão, conde Zeppelin, daí o nome dessas aeronaves. Com
A proximidade da morte unia os soldados e eliminava as diferenças o grande sucesso obtido antes da guerra no transporte comercial, o zepelim
de classe. A hierarquia social era substituída pela hierarquia fundada na havia impressionado os militares, e muitos acreditaram na sua capacidade
coragem física e na integridade. O inimigo era o outro, o estrangeiro. Para de servir como arma de guerra. Além disso, as autoridades navais alemãs
o francês, o alemão era o assassino do seu irmão e o espírito de vingança estavam convencidas de que o zepelim era capaz de desempenhar importante
prevalecia sobre o cansaço e o medo (Prost e Vincent, 1992, p. 208). Para papel nas operações navais (Whitehouse, s.d., p. 37).
o alemão, a mesma coisa. Era o francês o responsável pela desgraça, pelo Em 1906, Santos Dumont realizou o primeiro voo do "mais-pesa-
surgimento e generalização da guerra. do-que-o-ar"; no entanto, a supremacia do dirigível continuava, pelo
Entretanto, para piorar ainda mais a vida dos soldados, os exércitos em menos na mente do público. Isso explica o medo da população inglesa na
conflito experimentaram novas tecnologias para a morte. Empregado pela primeira noite, após a declaração de guerra. Muitos acreditavam que os
primeira vez pelos alemães na primavera de 1915, o gás fazia aumentar as zepelins iriam atacar Londres, à noite. Segundo um estudioso do papel
desempenhado pelo zepelim, a Grã-Bretanha fora, durante muitos anos, o
baixas em ambos os lados. Muitos dos gases então utilizados não eram muito
alvo da propaganda alemã. Alguns comentaristas tinham, inclusive, escrito
eficazes, mas provocavam um efeito psicológico efetivamente arrasador.
artigos na imprensa popular, pressagiando os ataques que viriam do Mar
Soldados entrincheirados ficavam apavorados com medo de uma possível
do Norte (Whitehouse, s.d., p. 37).
morte provocada por envenenamento. O mais conhecido dos gases então
Não foi dessa vez, no entanto, que a aviação mostraria também o seu
utilizados ficou conhecido com o nome de gás mostarda, a mais temida de
poder de destruição. Na Primeira Guerra, ela foi usada basicamente para
todas as armas químicas da Primeira Guerra Mundial. Diferentemente dos
reconhecimento e observação dos tiros da artilharia.
outros gases, que atacavam apenas o sistema respiratório, este queimava
Foi no mar que novas armas tiveram o efeito desejado, ou seja, ajudar a
qualquer parte exposta do corpo humano, incluindo os olhos.
pôr fim ao conflito. Ali, as forças navais utilizaram novos modelos de navios
Os britânicos, por sua vez, inauguraram, em setembro de 1916, o em-
— cruzadores e submarinos alemães e couraçados e submarinos ingleses,
prego de tanques. O tanque era uma arma que estava sendo desenvolvida
por exemplo. Ambos os lados procuraram destruir os navios carregados
em segredo, e, por conta disso, a origem do termo tank nada mais era do de suprimentos para os inimigos. Ao afundá-los, eles impediam que as po-
que uma alusão de que seria apenas um tanque de armazenar água. Na pulações civis tivessem alimentos suficientes para sobreviver. Desta forma,
verdade, eram veículos blindados que tinham como objetivo vencer as pretendiam matar de fome os inimigos.
trincheiras do inimigo. Alguns depoimentos de guerra nos informam que Os submarinos foram uma das grandes esperanças da Alemanha. No
os alemães ficaram bastante assustados quando viram pela primeira vez início de 1917 os alemães aumentaram a atividade da guerra submarina,
aquele monstro que cuspia balas por todos os lados. Não foi nessa guerra, tentando vencer a Inglaterra antes da entrada dos Estados Unidos. A in-
no entanto, que tais armas mostraram todo o seu poder de destruição. tensificação da guerra submarina aumentou as perdas britânicas, até junho
Problemas técnicos impediram a completa eficácia dos tanques. Somente na de 1917. No entanto, o início do sistema de comboios e outras táticas an-

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tissubmarinas reduziram muito a eficácia do submarino. A partir daquele A realidade, porém, foi outra. Ao contrário dos desejos dos bolchevistas,
momento, novas estratégias procuraram impedir a destruição de navios, a Alemanha voltou a combater e os soldados alemães defenderam sua pátria
particularmente os mercantes. e não foram sensíveis aos apelos do operariado russo. A força do nacio-
No entanto, durante longos meses, em razão dos ataques de submarinos nalismo era muito maior do que o desejo de união de todos os operários.
e navios, velhos, mulheres e crianças — ausentes dos campos de batalha — Sem saída, o novo Estado da Rússia aceitou o Tratado de Brest-Litovsk,
sentiam na pele, ou melhor, no estômago, o efeito mais cruel de uma guerra: que foi, sem sombra de dúvida, uma paz humilhante. Pelo tratado, os bol-
a morte pela fome. Indefesos em suas moradias, os cidadãos de inúmeros chevistas foram obrigados a aceitar a perda da Finlândia, da Polónia russa
países viviam a generalização da miséria e da inanição. Muitos morriam e da Ucrânia, assim como a dos chamados países bálticos: a Lituânia, a
literalmente de fome, enquanto outros contraíam doenças ocasionadas por Letónia e a Estónia.
uma alimentação deficiente e irregular. No início de 1918, o então presidente dos Estados Unidos apresentou
Para aqueles que haviam acreditado um dia na superioridade inquestioná- perante o Congresso americano um plano de paz, que pretendia ser uma
vel de seu país e de seu povo e apostado numa vitória rápida, a fome trazia solução justa para o fim da guerra. Seu plano ficou conhecido como "Os 14
a certeza de que a guerra não mais se limitava aos campos de batalha Ela pontos do presidente Wilson". Segundo o presidente americano, os Estados
tornava-se presente no cotidiano de todas as pessoas e apresentava-se viva Unidos haviam entrado na guerra para precipitar a paz entre os povos e,
através da fome, como a forma cruel de uma técnica de massacre. neste sentido, o plano tinha como finalidade assegurá-la, constituindo-se
como fundamento das futuras negociações com os alemães. Sua divulgação
pública e internacional acabou por fortalecer a suposição dos alemães de
OS ACORDOS DE PAZ que os acordos de paz seriam baseados naqueles princípios, numa "paz
sem vencedores".
Antes mesmo do fim do conflito, como já foi referido, a Rússia saiu da Para tanto, o plano estabelecia:
guerra, mas sua retirada não foi tranquila. Ao contrário, ela representou um
jogo de forças no interior da nação russa e expressou as disputas políticas 1. abolição da diplomacia secreta, ou seja, a diplomacia entre os países
pelas quais passava a nova sociedade, surgida com a Revolução de 1917. deveria se tornar pública;
Após tomarem o poder, os bolchevistas tinham que resolver uma questão 2. plena liberdade de navegação, tanto em período de paz quanto na
fundamental, pois, para salvar a revolução, eles tinham que fazer a paz guerra, o que significava uma crítica à tática do bloqueio naval;
— desejo expresso por soldados, camponeses e operários. Os bolchevistas 3. remoção, quando possível, de todas as barreiras económicas entre
desejavam uma paz sem anexações territoriais, mas não era essa a intenção as nações e o estabelecimento de uma igualdade de condições de
de seus inimigos, os austríacos e os alemães. Coube a Leon Trotsky, um dos comércio entre as nações;
líderes da revolução, encaminhar as negociações com os inimigos. 4. limitação dos armamentos nacionais, reduzidos ao menor nível,
A estratégia de Trotsky era a de afirmar que não assinaria uma paz coerente com a segurança nacional;
anexionista, ao mesmo tempo que declarava terminado o estado de guerra. 5. ajuste imparcial das pretensões coloniais, considerando-se também
Esta atitude confundia os alemães, mas na verdade encobria o fato de que os interesses dos colonizados;
dificilmente o exército russo tinha condições de voltar a combater (Ferro, 6. ajuda à Rússia, para que este país pudesse obter uma oportunidade
1974, pp. 92-5). Havia também a crença de que, caso o Estado alemão deci- desimpedida e desembaraçada para a determinação independente
disse prosseguir o conflito contra os russos, os soldados e operários alemães de seu desenvolvimento político;
não obedeceriam às ordens, irmanados com os princípios da Revolução de 7. restauração da independência da Bélgica;
1917 (Reis Filho, 1987, pp. 102-105). 8. devolução da Alsácia-Lorena à França;

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9. reajustamento das fronteiras nacionais italianas; Conhecido pelo nome de Tratado de Versalhes para os aliados e "Ditado
10. autonomia dos povos da Áustria-Hungria; de Versalhes" para os alemães, os termos da paz eram profundamente cruéis
11. restauração da Roménia, de Montenegro e da Sérvia, assegurando para com a Alemanha. Em primeiro lugar, ela era obrigada a restituir a
o acesso ao mar aos sérvios; região da Alsácia e da Lorena à França, além de entregar a bacia carboní-
12. autonomia dos povos até então submetidos aos turcos; fera do Sarre para ser explorada pela França durante quinze anos. Findo
13. criação de uma Polónia independente; este prazo, deveria haver um plebiscito para que a população decidisse pela
14. criação de uma Sociedade ou Liga das Nações (Rodrigues, 1985, nacionalidade francesa ou alemã.
pp. 57-58). Havia outras questões territoriais impostas pelo tratado. Deveriam ser
3 entregues os distritos de Eupen e Malmedy à Bélgica; da maior parte do
Para o presidente americano, existia um princípio que norteava os seus Schleswig à Dinamarca, de Memel à Lituânia, de grande parte da Prússia
quatorze pontos: era o princípio de justiça para todos os povos e naciona- Oriental à Polónia, inclusive a bacia carbonífera da Alta Silésia. Além disso,
lidades, e o direito de cada um a viver em iguais condições de liberdade e estabelecia-se uma faixa de terra, dividindo o restante da Prússia Oriental
segurança, uns com os outros, fossem eles fortes ou fracos (Fenton, 1975, da Alemanha, conhecida com o nome de "corredor polonês", para dar
p. 134). uma saída marítima à Polónia. Transformava-se ainda a cidade alemã de
A proposta do presidente Wilson se resumia numa paz sem vencedores, Dantzig em cidade livre, sob o controle da Liga das Nações, e dividia-se
onde princípios gerais deveriam assegurar o fim do conflito e o estabele- todo o império colonial alemão pelas potências vencedoras, principalmente
cimento de um mundo de paz. É verdade que a restituição da Alsácia e França e Inglaterra.
Lorena à França era algo então considerado justo, assim como a libertação Como podemos ver, a humilhação imposta à Alemanha representava o
da Bélgica e a criação de uma Polónia independente. Mas, para franceses e fim de sua soberania sobre o seu território. Porém, ela não se restringia a
ingleses, algumas das proposições de Wilson eram mais do que discutíveis. isso. Havia também as chamadas indenizações punitivas. Elas significavam
A Inglaterra não estava nem um pouco interessada em defender o princípio que a Alemanha deveria pagar 132 bilhões de marcos-ouro, divididos em
da liberdade dos mares. A França, principal campo de batalha da frente quotas, num prazo de trinta anos! Eram ainda confiscados todos os inves-
ocidental, acreditava que a Alemanha devia fazer reparações pelos danos timentos e bens nacionais ou privados alemães existentes no estrangeiro.
da guerra em seu território. Os alemães eram obrigados também a entregar anualmente 40 milhões de
Em suma, a proposta do presidente dos Estados Unidos não agradou aos toneladas de carvão aos aliados europeus, durante um período de 10 anos!
franceses e ingleses. Para aqueles que haviam lutado durante longos quatro Isso tudo significava que o povo alemão faminto pela guerra teria que reunir
anos, era preciso mais do que intenções para assegurar uma paz definitiva esforços para pagar o impagável às forças vencedoras.
no continente europeu. Para eles, era preciso impedir, a todo custo, que Não satisfeitos, os aliados fizeram constar no Tratado de Versalhes ainda
a Alemanha pudesse voltar a ameaçar os vencedores. Era preciso ainda mais humilhações. A Alemanha foi obrigada a admitir sua inteira respon-
sabilidade pela deflagração da guerra. E isso também significava que ela
desarmar aquele país e obrigá-lo a reparar os sofrimentos das populações
teve que aceitar a desmilitarização do seu exército. O tratado era bastante
das nações aliadas.
minucioso nesse aspecto. Segundo seus artigos, as forças militares deveriam
Em 19 de janeiro de 1919 reuniu-se a Conferência de Paris, onde os ter-
ser desmobilizadas e reduzidas a apenas sete divisões de infantaria e três
mos da paz foram discutidos com a presença dos representantes da França,
divisões de cavalaria. Além disso, durante doze anos, o engajamento no
Inglaterra e, é claro, dos Estados Unidos. Os derrotados não foram ouvidos.
exército não poderia ser obrigatório, mas sim voluntário.
Após a Conferência, comunicaram-se aos vencidos e ao mundo os termos
O tratado não deixou escapar nenhum detalhe que pudesse signifi-
de uma paz não negociada e imposta.
car, aos olhos dos vencedores, uma ameaça alemã. Quanto à marinha,

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estabelecia-se o número e os tipos de navios, além da tonelagem máxima Com a Grande Guerra, o sonho deu lugar ao pesadelo, o otimismo ao
permitida. Submarinos eram proibidos, pois os vencedores sabiam o papel pessimismo e a razão cedeu lugar à violência. Após quatro longos anos de
desempenhado por eles durante a guerra. Os canhões pesados, os aviões conflito, os ex-combatentes voltaram para as suas casas, mas não encontra-
militares e a artilharia antiaérea também estavam interditados. ram mais a mesma sociedade pela qual haviam lutado. O aumento da miséria
Os aliados dos alemães — o Império Austro-Húngaro, o Império Otoma- e das incertezas fazia fortalecer a crença de que a violência era a melhor
no e a Bulgária — também foram punidos. Pelo Tratado de Saint-Germain, saída. Se a paz dera lugar a uma guerra, como reconhecê-la novamente?
de 10 de setembro de 1919, e de Trianon, de 4 de junho de 1920, o Império Os soldados haviam lutado em nome de seu país e acreditavam na sua
Austro-Húngaro desapareceu, dando lugar a diversos países independen- superioridade. Como seria possível agora defender a igualdade de todos os
tes: Áustria, Hungria, Checoslováquia, lugoslávia e Polónia. homens? Em nome do nacionalismo, muitos haviam ido para os campos
, O Império Otomano também foi punido, principalmente pela pressão de batalha e os que ficaram cuidaram de fazer continuar a vida. A presteza
exercida pela Inglaterra, interessada em assegurar sua dominação no Medi- com que as pessoas se identificavam com a sua nação tinha sido posta à
terrâneo Oriental. Nesse sentido, pelo Tratado de Sèvres, de 11 de agosto de prova. E, após a guerra, era preciso recomeçar. Mas para que isso fosse
1919, novos Estados surgiram da ruína daquele império: o Iraque, a Síria, possível, o nacionalismo tornava-se mais uma vez o elemento de união entre
o Líbano, a Palestina e a Transjordânia. A Turquia — nome que assumiu os cidadãos de cada país, continuando a operar com a ideia de que as razões
o núcleo do ex-Império Otomano — reduziu-se ao planalto anatoliano e das mazelas sociais encontravam-se no outro, naquele identificado como
suas adjacências imediatas (Rémond, s.d., p. 31). estrangeiro. Os anos posteriores à Primeira Guerra Mundial iriam mostrar
A Bulgária, apesar de não ter participado efetivamente da guerra, perdeu, que ela não terminara. As rivalidades continuaram, o desejo de revanche
pelo Tratado de Neuilly, de 27 de novembro de 1919, todas as suas costas também. A Segunda Guerra não tardaria a acontecer.
marítimas no Mar Egeu, em favor da Grécia.

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Wernet, Augustin. 1991. A Primeira Guerra Mundial. São Paulo, Contexto. A noite de Varennes (La nuit de Varenmes). Direção de Ettore Scola, 1981, Itália/
França, 121 min.

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No século XVIII, durante a Revolução Francesa, os passageiros de uma diligência Entre dois amores (Cut of África). Direção de Sydney Pollack, 1985, Estados Unidos,
— entre eles o já velho Giacomo Casanova — discutem os destinos da França e da 150 min.
família real, que tenta fugir do país. Casada por conveniência com aristocrata indiferente e apaixonada por aventureiro
Danton — o processo da Revolução (Danton). Direção de Andrzej Wajda, 1982, galante, escritora recorda a juventude passada em fazenda africana.
França, 136 min. Grandes esperanças (Great expectations, the untold history). Direção de Tim Burstall,
Em 1791, segundo ano da Revolução Francesa, o líder popular Danton prega o 1987, Austrália, 310 min.
fim do regime do Terror que ajudara a instituir. Enfrenta Robespierre, fortemente No início do século XIX, dois criminosos, antigos parceiros e atuais inimigos, são
comprometido com as razões de Estado. condenados na Inglaterra a trabalhos forçados na Austrália. O filme tem como
Ligações perigosas (Dangerous liaisons). Direção de Stephen Frears, 1988, Estados pano de fundo a luta pela independência nacional da Austrália.
Unidos da América, 120 min. Nascimento de uma nação (The birth ofa nation). Direção de David W. Griffith, 1915,
Na França do século XVIII, nobres ociosos sem escrúpulos dedicam-se a demolir Estados Unidos, 159 min.
reputações de seus pares. A saga de duas famílias americanas, os Stoneman, do norte, e os Camoreon, do sul,
Noites com sol (II Sole anche di notte). Direção de Paolo Taviani, 1990, Itália/França/ durante o período da Guerra Civil. Um marco do cinema americano, é o primeiro
Alemanha, 113 min.
filme que trata de um tema traumático e que causa polémica até hoje, devido ao
No século XVIII, no sul da Itália, jovem barão provinciano é escolhido como o novo
seu conteúdo racista. A organização segregacionista Klu Klux Klan é apresentada
auxiliar do rei Carlos III. Vítima de uma desilusão amorosa e decepcionado com
como a responsável pela restauração da política e do estilo de vida do sul após a
a vida na Corte, isola-se em uma modesta casa no campo e inicia vida dedicada à
derrota na guerra.
espiritualidade.
O homem que queria ser rei (The man who would be king). Direção de Jonh Huston,
Revolução (Revolution). Direção de Hug Hudson, 1985, Estados Unidos, 123 min.
1975, Estados Unidos, 129 min.
Aventureiro e seu filho são forçados a participar da Guerra de Independência dos
No fim do século passado, dois ex-sargentos do exército britânico partem para o
Estados Unidos.
remoto e imaginário Cafiristão em busca de fortuna, enfrentando a natureza hostil
Tributo à liberdade (The perfect tribute) Direção de Jack Bender, 1991, Estados Uni-
e a belicosidade das tribos da região.
dos, 95 min.
Durante a Guerra Civil Americana, garoto sulista atravessa a frente de batalha para Os bostonianos (The Bostonians). Direção de James Ivonyy, 1984, Estados Unidos/
tentar encontrar seu irmão, internado em um hospital confederado. Durante a ca- Inglaterra, 120 min.
minhada, conhece o presidente Abraham Lincoln, que se encontra solitário e triste. Um cavalheiro e uma feminista disputam o amor de uma jovem na conservadora
Boston do século XIX.
Um amor de Swann (Un amour de Swann/ Swann in love). Direção de Volker Schion-
O colonialismo como a glória do Império dorff, 1984, França/Alemanha, 100 min.
Culto e rico, Charles Swann causa escândalo ao casar-se com cortesã famosa e
Amistad (Amistad). Direção de Steven Spielberg, 1997, Estados Unidos, 154 min.
bissexual, em vez de simplesmente tê-la como amante. Baseado na obra de Mareei
No século XIX, navio espanhol é capturado na costa dos EUA com 53 negros
Proust, retrata a vida da alta burguesia de Paris no século XIX.
amotinados a bordo. Os escravos são levados a um julgamento que acende grande
polémica no país envolvendo abolicionistas, que querem libertar os réus, e conser-
vadores, que querem condená-los. Resistências ao capitalismo: plebeus, operários e mulheres
Avalon (Avalon). Direção de Barry Levinson, 1990, Estados Unidos, 127 min.
Emigrante polonês chega à cidade de Baltimore (EUA), na década de 1910, e Anna Karenina (Anna Karenina) Direção de Clarence Brown, 1982, Estados Unidos,
constrói sua família dentro da mais completa crença no sonho americano. Com a 128 min.
lenta chegada do resto da família, reúne-se o clã inteiro, que irá se desintegrar aos Na Rússia do século XIX, bela mulher casada arrisca tudo por uma paixão proi-
poucos no começo da década de 1960. bida. Melodrama baseado em romance de Leon Tolstoi, apresentando a história
Breaker Morant (Breaker Morant). Direção de Bruce Beresford, 1979, OST, 107 min. de uma mulher que desafiou os preconceitos de uma época para viver um grande
Três soldados durante a guerra dos bóeres são submetidos à corte marcial por não amor fora do casamento.
cumprirem as ordens do império britânico. Baseado em fato real. Casa das bonecas (A doll's house). Direção de Joseph Losey, 1973, Inglaterra, 103 min.

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O S É C U L O XX BIBLIOGRAFIA, FILMOGRAFIA E CRONOLOGIA

Os sonhos e as desilusões de uma das precursoras da luta pela igualdade social e As resistências dos povos à partilha do mundo
moral das mulheres. Uma peça histórica que aborda o feminismo, baseada em peça
clássica de Henrik Ibsen.
índia, mistério, amor e guerra (The far pavillions). Direção de Peter Duffel, 1984,
Escândalo, pavor e chamai (The triangle factory fire scandal). Direção de Mel Stuart, Inglaterra, 90 min.
1979, Estados Unidos, 100 min.
Na índia do século XIX, oficial inglês apaixona-se por princesa indiana em meio
Baseada no incêndio que, em 14 de março de 1911, matou 146 trabalhadoras de às rebeliões contra o domínio britânico.
tecelagem em Nova York, a história começa a ser contada um dia antes do acidente,
Kim (Kim). Direção de John Davies, 1995, Estados Unidos, 99 min.
quando quatro mulheres relatam seus sonhos.
Em 1894, na índia, durante o domínio britânico, um menino mestiço é envolvido
Escolhas do coração (Choices ofthe heart). Direção de Paul Shapiro, 1994, Estados pelas revoluções internas.
Unidos, 92 min. Simba (Simba). Direção de Peter Markle, 1955, Inglaterra, 99 min.
Enfermeira é perseguida por lutar pelo planejamento familiar e educação sexual na
Jovem chega ao Quénia e descobre que seu irmão foi assassinado pelos maus-maus.
conservadora Nova York de 1914. Drama contundente, com cuidadosa reconsti-
Vigoroso drama, com algumas cenas de violência, enfocando conflitos raciais entre
tuição da época e roteiro engajado na denúncia aos maus-tratos e descaso político
colonialistas britânicos e revoltosos da tribo africana Mau-Mau.
com a mulher da época.
Utu (Utu). Direção de Geoff Murphy, 1983, Nova Zelândia, 92 min.
Gringo vermelho (Oldgringo). Direção de Luis Puenzo, 1989, Estados Unidos, 120 min.
Utu era o grito de guerra usado pelos nativos da Nova Zelândia durante o massa-
Em 1913, solteirona americana, com uma vida pacata, desiludida e dedicada à
cre que se seguiu à invasão inglesa ao arquipélago em 1870. Um violento conflito,
memória do pai, que ela sabe não estar morto, decide se empregar como governanta
retratando a resistência de um povo.
dos Miranda, latifundiários mexicanos. Naquele país, ela se vê em plena revolução
Zulu (Zulu). Direção de Cy End Field, 1964, Inglaterra, 243 min.
e encontra um escritor americano descrente com o que escreveu, sentindo-se atraída
Em 1879, na África, soldados ingleses em minoria defendem forte ataque de guer-
pela espontaneidade dos camponeses e por um líder rebelde, Pancho Villa.
rilheiros zulus. Episódio verídico da história da colonização britânica, com belas
Libertários. Direção de Lauro Escorei Filho, 1976, Brasil, 26 min.
imagens.
O filme recupera o anarquismo no início do movimento operário em São Paulo,
mostrando as primeiras lutas e formas de organização dos trabalhadores no prin-
cípio do século. A Primeira Grande Guerra
Norma Rae (Norma Rae). Direção de Martin Ritt, 1979, Estados Unidos, 113 min.
Uma pobre operária têxtil do sul dos EUA torna-se pouco a pouco uma grande líder Adeus às armas (The stupid years). Direção de Alyson Mead, 1988, Estados Unidos,
dos trabalhadores de Nova York, militando pela união da classe trabalhadora. 65 min.
Os companheiros (I compagni). Direção de Mário Monicelli, 1963, Itália, 120 min. Três amigos nova-iorquinos fogem do colégio antes da formatura e decidem con-
Professor e sindicalista consegue organizar aos poucos um pequeno grupo de ope- correr a prémios num programa de TV. Chegando a Los Angeles, defrontam-se
rários que querem um nova sociedade. O filme descreve com paixão e coragem as com incertezas quanto ao futuro de cada um.
primeiras tentativas de afirmação do socialismo enquanto movimento operário no A grande ilusão (La grande ilusion). Direção de Jean Renoir, 1937, França, 117 min.
final do século XIX, tendo como pano de fundo uma cidade que se industrializa. Durante a Primeira Grande Guerra, três pilotos franceses capturados entram em
Os miseráveis (Lês misérables). Direção de Glenn Jordan, 1978, Estados Unidos, 123 choque com o oficial alemão que comanda a unidade onde estão presos. Um clássico,
min. citado com frequência em enciclopédias cinematográficas.
Após roubar pedaço de pão para alimentar sua família, trabalhador desempregado A ponte de Waterloo (Waterloo bridge). Direção de Mervyn LeRoy, 1948, Estados
é perseguido por inspetor de justiça. Comovente relato das injustiças sociais na Unidos/Inglaterra, 103 min.
França pós-revolucionária, em adaptação do clássico romance de Victor Hugo. Durante a Primeira Grande Guerra, modesta bailarina do Bale de Londres e aris-
Sacco e Vanzetti (Sacco e Vanzetti). Direção de Gitiliario Montaldo, 1971, Itália, 120 min. tocrático oficial encontram-se durante bombardeio, apaixonam-se e marcam o
Dois imigrantes italianos, Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, são acusados de casamento. Mas ele desaparece no campo de batalha e ela o julga morto.
assassinato em 1921, condenados à morte e executados em 1927 nos EUA, no Coronel Redl (Oberst Redl). Direção de István Szabó, 1985, Alemanha/ Hungria/
famoso erro da justiça americana. Áustria, 149 min.

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Jovem de origem humilde, usando as pessoas, faz carreira de oficial do Império 1492 — Conquista de Granada pelos espanhóis
Austro-Húngaro, nos anos anteriores à Primeira Grande Guerra, mas sua ascensão — Conquista das Canárias pelos espanhóis
o torna cada vez mais vulnerável. — Colombo inicia a conquista do Novo Mundo
Gallipoli (Gallipoli). Direção de Peter Weir, 1981, Austrália, 110 min. 1494 — Tratado de Tordesilhas
Em 1915, durante a Primeira Grande Guerra, dois corredores australianos tornam-se 1500 — Viagem de Pedro Álvares Cabral ao Novo Mundo
amigos ao ingressar na Brigada Ligeira. Após um período de treinamento no Cairo, 1518-22 - Viagem de circunavegação de Fernão de Magalhães
desembarcam na península turca de Gallipoli e participam da batalha de Nek. 1529 — Tratado de Saragoça
Baseado em fato real. 1580 - União Ibérica
Johnny vai à guerra (Johnny got gis gun). Direção de Dalton Trumbo, 1971, Estados 1600 — Fundação da Companhia das índias Orientais em Londres
Unidos, 87 min. 1602 — Fundação da Companhia Unida das índias Orientais em
Johnny vai à guerra e, numa explosão, perde os braços, as pernas e todo o rosto: Amsterdã
boca, nariz, olhos e ouvidos. Vive sua agonia num hospital militar, sem poder 1620/50 — Depressão económica — crise do século XVII
ver, ouvir, falar, cheirar — apenas "sente". Mesmo assim, tenta o impossível: 1621 — Fundação da Companhia Holandesa das índias Ocidentais
comunicar-se. Filme originalíssimo, um dos mais comoventes manifestos do cinema 1654 — Leis de navegação inglesas
contra o absurdo da guerra. 1694 — Fundação do Banco da Inglaterra
Lawrence da Arábia (Lawrence of Arábia). Direção de David Lean, 1962, Inglaterra, 1703 — Tratado de Methuen entre Portugal e Inglaterra
206 min. 1720/30-1810/17 - Era de prosperidade do Setecento
A vida do lendário arqueólogo, militar e escritor T. E. Lawrence, que se encantou 1748-63 — A França é expulsa da América do Norte pela Grã-Bretanha
pelo mundo árabe e renunciou a uma brilhante carreira no exército britânico para 1750 — Início do comércio de ópio em Cantão (China)
comandar tropas árabes contra a Turquia na Primeira Grande Guerra. 1768-79 — Viagem de James Cook ao litoral oriental da Austrália
2900 (Novecento). Direção de Bernardo Bertolucci, 1977, Itália/França/Alemanha, 1776 — Adam Smith publica a Riqueza das nações
243min. 1789-1815 - Revolução Francesa
Dois jovens italianos, um camponês e um herdeiro de latifundiários, seguem rumos 1810-50 — Depressão — crise de passagem do "antigo" ao "novo" regime
diferentes durante a Primeira Grande Guerra. Mais tarde, ao se reencontrarem, económico
durante a ascensão do fascismo, descobrem que a amizade não é mais possível. 1815 — Proibição do tráfico transatlântico de escravos ao norte do
Nada de novo no front (AU quiet on the Western front). Direção de Lewis Milestone, Equador
1930, Estados Unidos, 105 min. 1815-50 — Restauração e revoluções
Baseado no famoso romance de Erich Maria Remarque, um dos filmes mais ex- 1815-53 — Crises económicas cíclicas
pressivos sobre a guerra de 1914-18. Um retraio dos adolescentes que morreram 1830 — Conquista francesa da Argélia
nos campos de batalha. 1832/34-1839/40 - Crises egípcias
1833-34 — Abolição da escravidão nas colónias britânicas
1840-42 — Guerra do ópio
CRONOLOGIAS 1842 — Colonização francesa na Costa do Marfim e no Gabão
1848 — Publicação do Manifesto comunista
— "Primavera dos Povos"
O capitalismo unifica o mundo
- Golpe "18 Brumário"
1850/51-73 — Prosperidade da 1a industrialização
1350-1450 — Crises económicas, crise do fim da Idade Média
1450-1620/50 — "Revolução Comercial" e dos preços 1850-73 - Revoluções pelo alto
1453 — Tomada de Constantinopla pelos turcos 1850-1914 — Realismo e nacionalismo
1487-88 — Viagem de Vasco da Gama à índia (Calicute) 1854-69 — Construção do canal de Suez

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1856-60 - Segunda guerra do ópio 1870 — Unificação alemã


1858 — Guerra dos sipaios (índia) 1870-71 — Guerra Franco-Prussiana
1859 — Ocupação de Saigon 1872 — O serviço militar obrigatório no Japão
1861-65 — Guerra de Secessão 1895 — Guerra Sino-japonesa
1868 - EraMeiji 1904-5 — Guerra Russo-japonesa
1870-1914 — Era do capitalismo monopolista e imperialista
1871 — Comuna de Paris
1873-95 — Grande depressão do século XIX O COLONIALISMO COMO A GLÓRIA DO IMPÉRIO

As revoluções burguesas a) Consolidação do capitalismo e a expansão imperialista


1455-85 Guerra das Duas Rosas: as casas inglesas de Lancaster e York 1796 — A Inglaterra conquista o Ceilão.
lutam pela posse do trono inglês 1806 — A colónia do Cabo passa ao controle da Inglaterra.
1517 Começa a reforma luterana
1819 — O Império Britânico transforma Cingapura em porto de livre
1524-25 Guerra dos camponeses: revolta no sul da Alemanha contra comércio
a exploração pelos senhores de terras 1823 — Doutrina Monroe decretada pelo presidente americano John
1543 Chegada dos portugueses ao Japão Monroe
Copérnico começa a publicar suas descobertas astronómicas 1824 — Os ingleses começam a conquistar a Birmânia e o Assam.
1546 Thomas Morus escreve a Utopia 1825-30 — Guerra de Java: revolta dos indonésios contra os holandeses.
1562 Noite de São Bartolomeu (24/8) 1840 — A Grã-Bretanha anexa a Nova Zelândia.
1598 Edito de Nantes — assegurava liberdade religiosa na França 1842 — Guerra do ópio: a Grã-Bretanha anexa Hong Kong
1637 O xogunado de Tokugawa proíbe o contato do Japão com o 1845-49 — O Império Britânico conquista Punjab e Caxemira
exterior 1850 — Rebelião dos Taiping, na China, até 1864
1642 Início da Revolução Puritana 1853/1855 — Guerra da Crimeia: a Inglaterra e a França apoiam a Turquia
1685 Revogação do Edito de Nantes na luta contra o Império Russo
1688 Revolução Gloriosa (Inglaterra) 1854 — O comodoro Perry força o Japão a iniciar o comércio com os
1694 Fundação do Banco da Inglaterra Estados Unidos
1756-63 Guerra dos Sete Anos, entre França e Inglaterra 1857 — O Grande Motim na índia (revolta dos sipaios)
1769 Início da Revolução Industrial na Inglaterra, com a introdução 1858 — Tratado de Tientsin: mais portos abertos ao comércio estran-
da máquina a vapor por James Watt geiro na China.
1774 A Inglaterra vota as leis intoleráveis 1860 — Tratado de Pequim: a China cede a região de Ussuri à Rússia
Primeiro Congresso Continental de Filadélfia — Expansão francesa na África Ocidental partindo do Senegal
1775 Segundo Congresso Continental de Filadélfia 1863 — A França estabelece o protetorado sobre o Camboja
1776 Declaração de Independência dos Estados Unidos 1869 — Abertura do canal de Suez
Publicação de A Riqueza das nações (Adam Smith) 1877 — A rainha Vitória é proclamada imperatriz da índia
1789-99 Revolução Francesa 1881 — A França conquista a Tunísia
1853 O Japão é forçado pelos americanos a abrir o comércio com 1884 — A Alemanha conquista o sudoeste da África, o Togo e os
o Ocidente Camarões
1860 Surto industrial na França 1885 — O rei da Bélgica assume o controle do Congo
1868 Início da Era Meiji no Japão — A França estabelece o protetorado sobre Tonquim

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1887 — A França estabelece a União Indo-Chinesa Resistências ao capitalismo: plebeus, operários e mulheres
1889 — A Companhia Inglesa da África do Sul, formada por Cecil
Rhodes, dá início à colonização da Rodésia (1890) 1750-51 — Primeiros motins populares: barqueiros de Newcastle e alfaia-
1894-95 — Guerra Sino-japonesa: o Japão vence e ocupa Formosa (Taiwan) tes de Londres entram em greve por melhores salários
1898 •— Crise entre a Grã-Bretanha e a França em Fashoda 1753-58 — Em Manchester, cerca de 10 mil trabalhadores, carpinteiros,
— Guerra hispano-americana marceneiros e pedreiros, paralisam o trabalho
1899 — Início da Guerra Anglo-Bôer 1765 — Nas regiões mineradoras do nordeste britânico, trabalhadores
1900 — Revolta dos boxers na China fazem paralisação por melhores salários, mobilizando um total
1904-5 — Guerra Russo-japonesa; o triunfo japonês fomenta o nacio- de 100 mil trabalhadores, entre mineiros e marinheiros
nalismo asiático 1780 - Na Inglaterra, uma Comissão de Reforma propõe uma série de
1907 — Acordo anglo-russo mudanças na legislação, entre as quais: voto universal mascu-
1908 — O Estado Belga assume o governo do Congo lino, remuneração para deputados, voto secreto e parlamentos
1910 — Formação da União da África do Sul anuais
— O Japão anexa a Coreia 1812 — Apogeu do luddismo (quebra de máquinas), destinado a forçar
1911 — A Itália conquista a Líbia os empregadores a concessões
1820 — Luta nacional pela independência na Grécia.
b) 2." Revolução Industrial, o pensamento cientificista e a cultura 1830 — Movimentos revolucionários na França, Alemanha, Polónia
e Itália; a Bélgica torna-se independente
1769 James Watt inventa a máquina a vapor 1838 — A Associação dos Trabalhadores prepara os Seis Pontos da
1776 Publicação de A riqueza da nações, de Adam Smith Carta do Povo, onde todas as reivindicações de 1780 se encon-
1792 Cartwright inventa o tear a vapor tram inscritas, a saber: 1. sufrágio universal; 2. voto secreto;
1798 Thomas Malthus publica Ensaio sobre o princípio da popu- 3. distritos eleitorais iguais; 4. remuneração dos membros do
lação Parlamento; 5. Parlamentos anuais; 6. abolição da exigência
1825 Primeira ferrovia entre Stockton e Darlington com máquinas de propriedade para candidatos
a vapor para transporte de passageiros (Inglaterra) — Surgimento do cartismo, um novo movimento que viria a ser
1848 Manifesto comunista publicado por Karl Marx (1818-83) e decisivo na história dos movimentos operário e popular da
Friedrich Engels (1820-95) Inglaterra
1859 Darwin publica A origem das espécies 1848 — Publicação, em Londres, do Manifesto do Partido Comunista,
1861 Pasteur desenvolve a teoria dos micróbios de Karl Marx e Friedrich Engels
1867 Karl Marx publica O Capital (vol. 1) — Movimentos revolucionários na Europa
1874 Primeiro bonde elétrico (Nova York) •— Eleição de Luís Napoleão, sobrinho de Napoleão Bonaparte,
1876 O telefone é patenteado pelo escocês Alexander Graham Bell presidente da França
Sigmund Freud publica, na Áustria, A interpretação dos sonhos 1851 — Queda da República francesa, golpe de Luís Napoleão (Na-
e dá início à psicanálise poleão III) e fechamento do Parlamento francês.
1905 Albert Einstein cria e desenvolve a Teoria da Relatividade na 1861 — Abolição da servidão na Rússia
Alemanha — Aprovado, pela primeira vez, o sufrágio feminino (Austrália)
1913 Henry Ford desenvolve a montagem da correia transportadora 1864 — A Rússia reprime a revolta polonesa
para a produção do automóvel Modelo T, em Detroit, EUA — Fundação, no dia 28 de setembro, em Londres, da Associação
Internacional dos Trabalhadores (AIT), conhecida posterior-
mente como Primeira Internacional

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O S É C U L O XX BIBLIOGRAFIA, FILMOGRAFIA E CRONOLOGIA

1867 — Marx publica O Capital (vol. 1). Depois da morte de Marx, 1885 — Conferência de Berlim — partilha da África entre as potências
em 1883, a obra passou a ser editada por Engels europeias
1870 — Unificação italiana e início da Guerra Franco-Prussiana, que — Fundação do Congresso Nacional Indiano
teve a vitória da Prússia, concluindo a última fase da unificação 1892-1904 — Os franceses esmagam a rebelião Abomey e conquistam o
da Alemanha Benim
1871 — Comuna de Paris, entre março e maio (72 dias) 1894 — Sun Yat-sen funda a Associação para o Renascimento da China
1876 — Divergências no interior da Associação Internacional dos 1894-95 — Guerra Sino-japonesa pelo controle da Coreia — vitória japo-
Trabalhadores (AIT), entre os partidários de Marx e os anar- nesa
quistas (Bakunin), levam à dissolução da AIT 1895 — Resistência dos malgaxes contra a dominação francesa
1883 — Morte de Karl Marx 1898 — Término da resistência antifrancesa liderada por Almany
1889 — Realiza-se, em Paris, o Primeiro Congresso da Internacional Samory, chefe guerreiro dos malinques (Costa do Marfim)
Socialista (II Internacional) 1899-1902 - Guerra dos bóeres
1895 —• Morte de Friedrich Engels 1900 - Revolta dos boxers
1899 — Rosa Luxemburgo publica Reforma social ou revolução, de- — Tomada de Pequim pelos boxers
sencadeando a luta contra a tendência revisionista no interior 1903 — Levante dos hereros
da social-democracia alemã, liderada por Edward Bernstein 1904-1905 — Guerra Russo-japonesa
1905 — Manifestação de trabalhadores na Rússia é duramente reprimida 1905 — Fundação do Partido Nacional do Povo na China (Kuomintang)
pelas tropas do tzar Nicolau II, no episódio conhecido como 1906 — Revolta dos zulus na África do Sul
Domingo Sangrento, desencadeia a primeira Revolução Russa 1911 — Proclamação da República na China
1914 — Início da Primeira Grande Guerra 1912 — Fundação do Congresso Nacional Sul-africano
— A maioria do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), o maior 1913 — Fundação da Associação para a Restauração do Vietnã
partido operário, apoia os créditos de guerra da Alemanha 1914-18 — Primeira Grande Guerra
(União Sagrada), Lenin (na Rússia) e Rosa Luxemburgo e Karl
Liebknecht (na Alemanha) começam a oposição ao SPD A Primeira Grande Guerra

As resistências dos povos à partilha do mundo 1870 — Guerra Franco-Prussiana


1871 — Comuna de Paris
1840-42 — Guerra do ópio na China — Tratado de Frankf urt — término da Guerra Franco-Prussiana
1844 — A China assina com os Estados Unidos o tratado de Hohia 1892 — Formação da Tríplice Aliança
1848-65 — Rebelião Taiping na China contra a dinastia Tching 1908 — Império Austro-Húngaro anexa a Bósnia
1852-54 — Segunda guerra do ópio na China 1912-1913 — Primeira Guerra Balcânica
1857-58 — Rebelião dos sipaios na índia 1913 — Segunda Guerra Balcânica
1860-70 — Rebelião dos maoris contra a dominação britânica da Nova 1914 — Execução do príncipe herdeiro do Império Austro-Húngaro
Zelândia em Sarajevo
1868 — Restauração Meiji no Japão — Alemanha declara guerra à Rússia e à França
1869 — Construção do canal de Suez (Egito) — Invasão da Bélgica pelos alemães
1880 — Revolta mahdista 1915 — Primeiros ataques dos zepelins contra a Grã-Bretanha
1881 — Rebelião ocorrida no Sudão contra os ingleses — Primeira ofensiva dos submarinos alemães
1883-1918 — Resistência dos "bandeiras negras" na Indochina contra os — A Itália alia-se à entente
franceses — Bulgária entra na guerra ao lado da Tríplice Aliança

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O S É C U L O XX BIBLIOGRAFIA, FILMOGRAFIA E CRONOLOGIA

1915-16 Guerra de trincheiras, emprego de gás e de tanques Bibliografia, filmografia e cronologia


1917 Revoluções russas (fevereiro e outubro)
Os britânicos atacam os turcos na Palestina
Volume II - O tempo das crises
A Alemanha lança uma guerra submarina indiscriminada
1918 Proposta dos 14 pontos do presidente Wilson
A crise do capitalismo liberal
Tratado de Brest-Litovsk (a Rússia retira-se da guerra)
José Jobson de Andrade Arruda
Abdicação e fuga do Kaiser Guilherme II, da Alemanha
Proclamação da República em Berlim (Alemanha)
As revoluções russas
Assinatura do armistício pela Alemanha
Daniel Aarão Reis Filho
1919 Conferência de Paris (janeiro)
Tratado de Versalhes imposto à Alemanha (junho)
Cultura e política nos anos críticos
Tratado de Sèvres imposto à Turquia (agosto)
Leandro Konder
Tratado de Saint-Germain imposto à Áustria (setembro)
Tratado de Neuilly imposto à Bulgária (novembro)
Tratado de Trianon imposto à Hungria (junho) O socialismo soviético
1920
Jorge Ferreira

Os fascismos
PLANO GERAL DA OBRA Francisco Carlos Teixeira da Silva

Volume I - O tempo das certezas A Segunda Guerra Mundial


Williams da Silva Gonçalves
O capitalismo unifica o mundo
Francisco Falcon A Guerra Fria
Paulo G. Fagundes Vizentíni
As revoluções burguesas
António Edmilson Martins Rodrigues Capitalismo, prosperidade e estado de bem-estar social
Enrique Serra Padrós
O colonialismo como a glória do império
Edgar de Decca Bibliografia, filmografia e cronologia

Resistências ao capitalismo: plebeus, operários e mulheres Volume III - O tempo das dúvidas
Francisco Carlos Palomanes Martinho
O mundo socialista: expansão e apogeu
As resistências dos povos à partilha do mundo Daniel Aarão Reis Filho
Adriana Facina
Ricardo Figueiredo de Castro Descolonização e lutas de libertação nacional
Maria Yedda Leite Linhares
A Primeira Grande Guerra
Márcia Maria Menendes Motta América Latina: dependência, ditaduras e guerrilhas
Ana Maria dos Santos

270 271
O S É C U L O XX

O mundo árabe e as guerras árabe-israelenses índice


Keila Grinberg

1968: rebeliões e utopias


Marcelo Ridenti

Crise e desagregação do socialismo


Daniel Aarão Reis Filho

A questão nacional no mundo contemporâneo Acapulco, México, 38 Argel, 57


Marco António Pamplona Adler, Victor, 173 Argélia, 55-58, 64
África do Sul, 57, 59-61, 219, 221 Arizona, EUA, 72, 141
Globalização e nova ordem internacional África ocidental, 59 Ásia, 18,19,23,27,42,44, 52,58,61-70,
Octavio lanni África sul saariana, 55, 58-61 87,145,157,158,218,221,224-231
África, 18, 19, 23, 24, 33, 37, 40, 44, Assembleia Constituinte, 119-122
Mídia e informação no cotidiano contemporâneo 54, 58, 61, 100, 135, 155, 157, 158, Austrália, 38,43,61,68,71, 73,156,160,
Celeste Zenha 160, 166, 167, 169-171, 218-222, 172,176,181,206
224, 225, 228, 239 Áustria, 39, 48,130,172, 176,178, 226,
Aguinaldo, Emílio, 224 239, 240, 242, 243, 252
No limiar do século XXI
Al Pin, Jarnal (Al-Afghani), 223
Ciro Flamarion Cardoso
Alasca, EUA, 72 Bacon, Francis, 28
Alemanha, 37, 41, 48, 52, 81, 83, 87, Bahamas, 73
Bibliografia, filmografia e cronologia
125-131, 156, 157, 159, 172, 175, Bakunin, Mikhail Aleksandrovitch, 200
176, 178, 199-201, 226, 235-240, Balboa, 34
242-244, 247, 249-252 Banda, 19
América do Norte, 32, 39, 40, 106 Bihar, índia, 41
América do Sul, 52 Bismarck, Otto von, 129-131, 199
América, 34, 35, 37, 113, 118, 133-136, Bolchevistas, bolcheviques, 243,248,249
144, 157, 158, 172 Bombaim, índia, 41
Américas, 31, 32, 39, 44, 55, 71-74, 106, Bonaparte, Luís, 58,159
159 Bonaparte, Napoleão, 124,125,155,198
Amsterdã, Holanda, 32, 33, 36, 37, 41 Bordéus, França, 31, 33, 40
Anderson, Benedict, 98, 99, 103, 113, Bornéu, 156
116,117,217,218,228 Bosch, J. Van den, 65
Angola, 37, 60, 216 Bougainville, 43
Anticolonialismo, 53, 54, 57 Bourbon, família, 100
Antigo Regime, 25,26,39,80, 81, 85, 86, Barbados, 38, 40
107, 109,114-122, 208 Barreto, Mário, 27
Antigo sistema colonial, 23-25, 39-43 Baudelaire, Charles, 182
Antilhas, 36, 38-41, 72, 73, 135 Bebei, August, 177
Antuérpia, Bélgica, 19, 30, 32, 33, 35 Bélgica, 52, 60, 156,157, 172,176, 240,
Arabi, Ahmed, 223 241,250,251

272 273
O S É C U L O XX ÍNDICE

Belle époque, 50, 51,178, 182, 196, 238 Celebes, 19 Diderot, Denis, 43 Ferry, Jules, 64
Bentham, Jeremy, 87, 95 Changarnier, Nicolas, 58, 92, 93 Dickens, Charles, 88, 194 Filadélfia, EUA, 135, 139, 140
Berlim, Alemanha, 59 Chicago, EUA, 176 Dinamarca, 172, 251 Filipinas, 19, 32, 34, 42, 66, 73, 224,
Berman, Marshall, 188,195 China, 19, 24, 32, 34, 40,41, 42, 52, 61, Dominica, 41 225, 230
Bernstein, Eduard, 174,175 64-67,69,72,148,176,216,224-230: Doutrina Monroe, 144, 157 Finlândia, 181, 206, 249
Bourbon, Henrique de, 100 Chipre, 156 Drake, Sir Francis, 36 Flórida, EUA, 41, 72,141
Boxers, Guerra, 148 Churchill, Winston, 167 Dumas, Alexandre, 105 Foch, Ferdinand, 243
Brasil, 34, 38,40, 71,124,159,160,163 Cingapura, 64, 156 Formosa, Taiwan, 148, 229
Bristol, Inglaterra, 31, 33, 40 Circuito extraeuropeu, 30-32 Egito, 18, 55-57, 219, 223 Foucault, Michel, 25
Bruges, Bélgica, 19 Cleveland, Grover, 158 Einstein, Albert, 178, 180 França, 36, 38, 41, 52, 53, 55-58, 65, 67,
Bruxelas, Bélgica, 177 Clive, 41 El Hadj-Omar, 59 68, 70, 72, 81, 83, 87, 90, 97-128,
Buenos Aires, Argentina, 40,176 Cochin, índia, 41 Elizabeth I, Rainha, 90 135, 141, 145, 156, 159, 171, 172,
Bugeaud, Thomas Robert, 58 Colbert, Jean-Baptiste, 84,113, 114, 116 Engels, Frederic, 48, 51, 88, 96,174, 198 176-178,188,195,196,202,207-209,
Bulgária, 242, 252 Colombo, Cristóvão, 33, 34 emente cordiale, 239 219-223,225,226,235-244,249,250
Burguesia (burguês), 25, 208 Colonialismo (dominação colonial), 53- Espanha, 34-36, 38, 39, 43, 50, 53, 72, Francisco Fernando, 177
57,153-182 73, 82,100,141, 172, 176, 224, 244 Francisco I, Rei, 98, 99, 109
Cabo Verde, 34 Comuna de Paris, 58, 199, 202, 208-210 Estado-nação, 158 Frankfurt, Alemanha, 32, 33
Cabo, 27, 37, 60, 61 Conde, Príncipe, 111 Estados Gerais, 37, 118-120 Franklin, Benjamin, 140
Cabral, Pedro Álvares, 34 Connecticut, EUA, 133 Estados Unidos, 44, 52, 67, 69, 71-73, Freud, Siginund, 166,178, 182
Cádiz, Espanha, 33 Conrad, Joseph, 169-171, 215 87,133-135,140,145,151,157,158, Fuggers de Augsburgo, 31, 35
Calcutá, Índia, 41 Constituição, 120, 121, 147 163, 164, 172, 176, 179, 201, 206,
Califórnia, EUA, 72, 141, 143 Cook, Estreito de, 43 226, 242, 247, 249, 250, 252 Gabão, 59
Camarões, 59 Cook, James, 39, 43, 229 Estónia, 249 Galileu, 28, 29, 36
Camboja, 64, 224, 225 Copenhague, Dinamarca, 32, 163 Etiópia, 220-223, 230, 232 Gambetta, Léon, 208
Campinas, Brasil, 160 Copérnico, Nicolau, 28 Europa, 17, 18, 22, 24, 27, 28, 30, 31, Gâmbia, 59
Canadá, 39, 41, 71,113,135, 156, 160 Coreia, 19, 148, 229 33, 35, 36, 40, 42, 43, 46, 48, 49- Gana, 59
Canárias, Ilhas, 33 Cortez, Fernando, 34 51, 54, 55, 82, 83, 87, 98,100,106, Gandhi, Mahatma (Mohandas), 228
Cantão, China, 41, 66-68 Costa do Marfim, 59 107, 112, 122, 126, 132, 133, 136, Genebra, Suíça, 33
Capital monopolista, 44 Cromwell, Thomas, 36, 37, 91 141, 157, 159, 163, 165, 181, 182, Génova, Itália, 19, 25, 33
Capitalismo comercial, 16, 24 Cuba, 68, 72, 73 187, 192, 197, 198, 204, 222, 235, Geórgia, EUA, 133
Capitalismo industrial, 21, 29, 39, 44, Cunha, D. Luís da, 107 241, 244, 252 Globalização, 13,215
45, 157, 235 Curaçao, 37, 38 Europa capitalista, 50 Godinho, Virgílio, 34
Capitalismo, 13-17,30,51, 73, 79,81, 88, Expansão capitalista, 46, 47, 50, 51, 71, Goldman, Emma, 207
161,173-176,187,192,200,210,218 Dalhousie, Lord, 62 74, 155, 229 Goodair, Joseph, 191
Caribe, 32, 38 Danton, George Jacques, 123 Expansão Europeia, 8,22,28,43,59,157 Granada, 18, 40, 41
Carlos V, Imperador, 31 Dantzig, Alemanha, 251 Expansão imperialista, 73,172,180,216, Guadalupe, 38, 40
Carolina do Norte, EUA, 133 Daomé, 59 226, 229, 235, 239 Guatemala, 73
Carolina do Sul, EUA, 133,143 Declaração de Independência, 139 Extremo Oriente, 66, 72, 229, 230 Guerra — ver Primeira Grande Guerra
Cartismo, 188,191-193, 211 Delaware, EUA, 133 Guerra da Crimeia, 155
Cartum, Sudão, 219, 220 Descartes, Renné, 28, 36 Faidherbe, Louis Léon César, 59 Guerra Franco-Prussiana, 130, 178, 239
Cavaignac, Godefroy, 58 Desenvolvimento tecnológico - ver indus- Filipe II, Rei, 34,100 Guerra mundial — ver Primeira Grande
Cecil Rhodes, 60, 61,166,178 trialização Feminino —• ver mulher, mulheres Guerra

274 275
O S É C U L O XX ÍNDICE

Guiana, 37, 53, 73, 135, 156, 158 163, 164, 166, 167, 172, 178, 188- Lincoln, Abraham, 143 Michelet, Jules, 203
Guillaume, Augustin, 53, 58, 61, 65, 71 197, 201, 206, 235-240, 244, 247, Lisboa, Portugal, 33, 35, 43 Mikado, Imperador, 69
Guise, família, 100 250-252 Lituânia, 249, 251 Mill, Stuart, 54, 87
Guise, Henrique de, 100 Insulíndia, 19, 28, 32, 34, 37, 41, 42 Liverpool, Inglaterra, 31,33,40,189,190 Mindanao, Filipinas, 224, 225
Guizot, François, 197 Internacional, 135, 136, 140, 145, 155 Locke.John, 88 Minto, Lord, 62
Habsburgo, família, 113 Internacionalismo, 156, 158, 161, 166, Londres, 30, 32, 33, 37, 40, 41, 61, 88, Mississippi, EUA, 143
Haia, Holanda, 65,181,182 167, 172, 174, 176, 177 91,155,162,163,169,170,172,174, Moçambique, 60, 216
Ham Nghi, Imperador, 225 Itália, 19, 30, 48, 52, 98, 100, 156, 157, 188,191,193-195, 200, 220, 247 Modernização conservadora, 128
Hamburgo, Alemanha, 32, 33, 41 172, 176, 197, 222, 223, 226, 239, Luddismo, luddistas, 188,189,191,193, Mohamet-Ali, 56, 57
Hastings, W., 62 242,243 211 Molière, Jean-Baptiste Poquelin, 107
Havaí, EUA, 43, 229 Luís XIII, Rei, 103, 108-112 Molucas, 19, 34, 35, 37
Hawkins, Sir John, 36 Jamaica, Inglaterra, 38, 40, 73 Luxemburgo, Rosa, 201, 207 Montesquieu, Charles de Secondat, 140
Hegemonia holandesa, 36-38 Japão, 32, 33, 37, 41, 44, 52, 61, 66, 69, Luzes - ver iluminismo, iiuminista Morazé, Charles, 51
Henrique III, Rei, 100, 101, 105 70, 72, 81, 87, 144-148, 157, 172,
Morus, Thomas, 88
Henrique VIII, Rei, 88,90 176, 225, 226, 228-231 Madagáscar, 221 Movimento Operário, 201
Herder, Johan Gottfried, 126 Jaurès, Jean, 177, 178 Madras, índia, 41 Muhammad Ahmed ibn-Seyyid Abdullah,
Hill, Christopher, 83, 89, 90 Jefferson, Thomas, 140 Madri, Portugal, 43
219
Hitler, Adolf, 180 Jieshi, Jiang, 228 Magalhães, Femão, 34
Mulher, mulheres, 226, 244
Hito, Mutsu, 145 Juarez, Benito, 72 Maharero, Samuel, 220
Hobbes, Thomas, 88, 168 Mianmar, 224, 230
Malaca, 19, 34, 64
Hobsbawm, Eric, 44, 60, 64, 79, 80, 86, Kant, Emanuel, 126 Malthus, Robert, 95
88, 158, 183, 188, 191, 192, 197- Kipling, Rudyard, 53,168-171 Nacionalismo, nacionalista, 47, 238
Manchester, Inglaterra, 96,162,188,190
200, 203, 204, 206-208, 215, 235, Kollontai, Alexandra, 207 Nagasaki, Japão, 37, 66, 69
Manchu, Dinastia, 67, 224
244, 245 Krúger, Paulus, 61 Napoleão, Luís (Napoleão III), 64, 198,
Mão Zecíong (Mão Tsé-tung), 228
Holanda, 37, 38,40, 53, 65, 70,113,172 199, 208
Maomé, 18
Hong Kong, China, 64, 67, 156, 224 La Condamine, 43 Navarra, Henrique de, 101
Marat, Jean Paul, 123, 204
Hugo, Victor, 58 La Perouse, 43 Ned Ludd, 189
Maria Antonieta, 122
Hungria, 172, 252 Labrousse, Ernest, 20,120, 122 Marquesas, Ilhas, 38 Nevada, EUA, 141
Lagos, Nigéria, 59 Marrocos, 18, 33, 55, 57, 239 New Hampshire, EUA, 133
Idade Média, 15, 21, 79, 91, 98, 126, Lamoricére, Cristophe Luis Léon, 58 Marselha, França, 33, 40 Newjersey, EUA, 133
127, 144 Laos, 64, 224 Martinica, 38, 40 Newport, EUA, 135
Ilhas Pescadores, 148 Lean, David, 167 Marx,KarI, 194, 200 Newton, Isaac, 28, 36
Iluminismo, iiuminista, 81, 121, 138 Lefebvre, George, 109,115,117,118,119, Maryland, EUA, 40,133 Nigéria, 59, 156
Império Otomano, 18, 48, 55-57, 252 123,124 Massachusetts, EUA, 133 Noruega, 172,181, 206
índia, 32-42, 61-66, 156, 158,169, 171, Leipzig, Alemanha, 32 Maximiliano, Príncipe, 72 Nova Guiné, 38
172,214,216,224-226,228 Lenin,VladimirIllitchVlianov, 133,201, Mazarino, Jules (Giulio), 110, 111 Nova York (cidade), EUA, 133, 135,137,
Indochina, 64, 158, 224, 225 243 Mazzini, 48 163,176
Indonésia, 19, 32, 65, 230 Leopoldo II, Rei, 60 Meiji, Dinastia, 70, 144-146, 228, 230 Nova Zelândia, 38, 43, 61, 71, 73, 156,
Industrialização, 133,193 Lessing, Gotthold Ephraim, 126 Menelik II, Rei, 222 181,206
Inglaterra, 31, 36, 38-41, 81-83, 87-97, Letónia, 249 Mercantilismo, 42, 54, 82 Novas Hébridas, 38, 43
106, 108, 113, 126-128, 133-137, Libéria, 54 Metalismo, 42 Novo México, EUA, 72, 141
139, 141, 144, 145, 155-158, 161, Liga Hanseática, 127 México, 35, 66,141 Novo sistema colonial, 44

276 277
O S É C U L O XX ÍNDICE

Oceania, 52, 61, 72, 73, 218, 224, 230 Revoltas populares, 226, 227 Senegal, 59 Tuchman, Barbara, 156
Operários (proletariado e trabalhadores Revolução comercial, 21, 29 Serra Leoa, 54, 59, 156 Turgot, Anne Robert Jacques, 39
industriais), 45, 155, 172, 173, 176, Revolução francesa, 25, 39, 44, 87, 114- Sérvia, 240 Turquia, 55,167, 252
180,185,189,190,248 124,172,195,199, 201, 204, 210 Sevilha, Espanha, 33, 35 Tycho-Brahe, 28
Oregon, EUA, 72, 141 Revolução industrial, 17, 24, 39, 40, 44, Sibéria, 19 Tzu-Hsi, Imperatriz, 226, 227
Orwell, George, 169 73, 87, 88, 95,187,188,193, 235 Sidney, Austrália, 176
Revolução inglesa, 89, 91 Simiand, François, 21 Ucrânia, 249
Países Baixos, 19, 30, 36, 37, 100 Revolução passiva, 125-133 Síria, 18, 55, 56, 252 Utah, EUA, 141
Paris, 32, 58, 98, 99,101-104, 106, 110- Revolução pelo alto, 128 Skinner, Quentin, 88, 125, 126
117, 162-164, 172, 174, 177, 188, Revolução russa, 242 Smith, Adam, 15, 39, 54, 87, 95 Veneza, Itália, 19,25
193, 195, 198, 199, 207-210, 240, Revolução, 24, 46, 47 Socialismo, 172-178 Venezuela, 158
250 Revoluções burguesas, 77-148 Socialista, 200 Versalhes, França, 112-114
Parlamento, 137 Rhode Island, 133 Somme, 242 Via prussiana, 132
Penang, 64 Rhodes, Cecil, 60, 166, 178 Sri Lanka, 225 Viena, Áustria, 18, 53, 55, 166,173,182
Pensilvânia, EUA, 133 Ricardo, David, 87, 95 St. Kitt's, 38 Vietnã, 19, 64, 158, 224, 225
Pequim, China, 68, 227 Richelieu, Cardeal de, 103-107, 110, 111 Stevenson, Robert Louis Balfour, 43 Villegaignon, Nicolas Durand de, 36
Peru, 35, 40, 68 Rio de Janeiro, Brasil, 36, 160 Sudeste asiático, 3, 19, 32 Vitória, Rainha, 155, 156, 194
Petty, William, 29 Robespierre, Maximilien de, 123 Suécia, 31, 36 Vives, Vincent, 35
Phan Boi Chau, 225 Roménia, 250 Suez, Canal de, 56, 163 Voltaire, François Marie: Avouct, 43
Pizzarro, Francisco, 35 Rousseau, Jean-Jacques, 43, 188, 195 Sully, Maximilien de Béthune, 102, 103 Von Trotha, 220, 221
Põe, Edgar Allan, 182 Rude, George, 95, 104, 105, 108, 115, Sumatra, 19, 42
Política imperialista, 61, 64, 156, 160, 119, 120, 127, 134, 135, 137, 188, Surat, índia, 41 Wallerstein, 16
167-169, 171,176 189,190,191,192,198 Swazilândia, 61 Washington, George, 72, 140
Polónia, 48, 249, 250, 251, 252 Rússia, 37, 39, 48, 49, 50, 52, 56, 67-70 Swift, Jonathan, 38, 43 Watt, James, 96
Port Arthur, 148 72, 133, 145, 178, 201, 225, 226, Webb, Beatrice, 207
Porto Rico, 73 229, 235, 237-243, 248, 249 Taaisha, Abdullah, 219 Weber, Max, 80, 91,126, 132, 143, 178
Portugal, 33, 34, 36, 39, 53,100,135 Taiti, 38, 43 Wellesley, Richard Colley, 62
Primeira Grande Guerra, 8, 56,161,166, Sahlins, Marshall, 229 Tasman, Abel, 38 Whitehaven, Inglaterra, 40
167,174,181,182,235,237,240-253 Said, Edward, 218 Tasmânia, 38 Wilde, Oscar, 194
Primeiro de Maio, 172-174, 201, 202 Saint-Arnaud, Jacques Achille Leroy de, Texas, EUA, 141 Wilson, Thomas Woodrow, 249, 250
Prússia, 39,127,129,130,199,208,209, 58 Thiers, Adolphe, 199, 208, 209
251 Saint-Malo, França, 40 Tibete, China, 225 Xangai, China, 67, 176
Salomão, Ilhas, 38, 43 Timor Leste, 37, 225 Xianfeng, Imperador, 68
Quebec, Canadá, 139 Samoa, Ilhas, 43 Togo, 60
Quesnay, François, 39 Santa Lúcia, 73 Tokugawas, 69, 144, 146, 228 Yorkshire, Inglaterra, 162
Santos, Brasil, 160 Tonga, 38
Radama I, Rei, 221 São Domingos, Haiti, 40, 54 Tóquio, Japão, 70, 176 Zaire, 60
Ravel, Maurice, 182 São Francisco, EUA, 176 Torres, Estreito de, 43 Zeppelin, Conde, 247
Raynal, Guillaume, 24 São Paulo, Brasil, 160 Trabalhadores, 175, 179 Zimbábue, 166
Reforma, 26, 31 Sarajevo, Bósnia, 56, 240 Tratado de Versalhes, 140, 250-252 Zollverein, 129, 130
Resistência, 215-231 Segunda Guerra Mundial, 187,225,246, Tríplice Aliança, 239, 242 Zululândia, 61
Revolta mahdista, 219 252 Trotsky, Leon, 248

278 279
A presente História do Século XX compõe-se

de três volumes.

Este primeiro estende-se da expansão euro-

peia de fins do século XIX ate a Primeira Guerra

Mundial, compreendendo também estudos intro-

dutórios sobre a unificação do mundo pelo capi-

talismo e sobre processos clássicos de revoluções

burguesas. A formação do mercado capitalista

internacional, as burguesias conquistadoras, a glo-

ria dos impérios colonialistas europeus no con-


O texto deste livro foi composto em Sabon,
texto da segunda grande revolução industrial, as
desenho tipográfico de ]an Tschichold de 1964
baseado nos estudos de Claude Garamond e críticas, as resistências e as revoltas empreendi-
Jacques Sabon no século XVI, em corpo 10,5/14.
das por mulheres, plebeus, proletários e povos
Para títulos e destaques, foi utilizada a tipografia
Frutiger, desenhada por Adrian Frutiger em 1975. de varias partes do mundo atestam as contradi-

ções que permeavam um processo de modo


A impressão se deu sobre papel off-set 90 g/m2
nenhum linear. O resultado foi a Primeira Guerra
pelo Sistema Digital Instant Duplex da Divisão
i Gráfica da Distribuidora Record. Mundial, que abalou em seus fundamentos esse

tempo de certezas.

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